Volume 2 - PROTESTANTISMO · (Câmara Brasileira do Livro) Calvino, João, 1509-1S64 Daniel ... da...

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V olum e 2

C ap ítu los 7 - 1 2

oao ffakino

Tradução

Valter G raciano Martins

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Dados Internacionais p a ra Catalogação na Publicação (CIP) (C âm ara Brasileira do Livro)

Calvino, João, 1509-1S64Daniel,volume 2, capítulo$7-12 / JoãoCalvino;

tradução: Vai ter Graci ano Martins.— Slo Bem ardo do Campo, S P : Edições Parakletos, 2002.

ISBN 85-88589-08-7

1. Biblia. A.T. Daniel-Critica c interpretação I. Título.

O riginalm ente im presso por Calvin Translation Society, E dim burgo, Escócia.

R eim presso em 1998 p or B aker Books um a divisão da B aker B ook H ouse Com pany

P.O. B ox 6287, G rand Rapids, M I 49516-6287

1° edição em português: dezem bro de 2002 Tiragem: 2.000 exem plares

02-5878 CDD-224.506

índices p a ra catálogo sistemático: I. Daniel: Livros proféticos: Bíblia:

Intcrprclação c critica 224.506

E dição baseada em: Calvin s Commentaries

Volum e XIII ISBN: 0-8010-2440-4

Editoração e capa: Eline A lves M artins

Rua Adamantina, 36 • Baeta Neves 09760-240 ■ São Bernardo do Campo, SP - Brasil

Telefax: 11 4121-3350 • e-mait: paraMetoK9uol.com.br

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L e e

33* Exposição.......................................................................................................... 22

35* Exposição.......................................................................................................... 46

36* Exposição...........................................................................................................59

38“ Exposição...........................................................................................................84

39* Exposição...........................................................................................................98

40a Exposição......................................................................................................... 110

41* Exposição........................................................................................................ 123

42* Exposição......................................................................................................... 135

43* Exposição......................................................................................................... 148

44* Exposição......................................................................................................... 160

45* Exposição......................................................................................................... 172

46* Exposição......................................................................................................... 186

47* Exposição.........................................................................................................201

48* Exposição........................................................................................................ 214

49* Exposição........................................................................................................ 228

50* Exposição........................................................................................................ 242

51*Exposição...................................................................................................... 25552* Exposição.........................................................................................................268

53* Exposição......................................................................................................... 28154* Exposição.........................................................................................................292

55* Exposição.........................................................................................................304

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DANIEL

56* Exposição........................................................................................................ 318

57* Exposição.........................................................................................................331

58* Exposição........................................................................................................ 343

59* Exposição........................................................................................................ 356

60* Exposição........................................................................................................ 370

6l*Exposição.........................................................................................................381

62* Exposição........................................................................................................ 393

63* Exposição........................................................................................................406

64* Exposição........................................................................................................422

65a Exposição........................................................................................................436

66* Exposição........................................................................................................449índice de referências bíblicas..............................................................................465

índice de palavras hebraicas............................................................................... 469

índice de autores sacros e profanos.................................................................... 471

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O ração que João Calvino costum ava fazer no início de suas preleções:

Que o S en h o r y e rm ita nos en ga ja rm o s nos m istér ios ceíestia is d e sua sab edoria , p a r a q u e jjr o g r id a m o s em verdad eira san tidad e, y a r a o

íou vo r d e sua g íó r ia e y a r a nossa y r ó y r i a ed ifica ção.

Amém.

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32a

d í i p í t u â o 7

1 N o prim eiro ano de Belsazar, rei de B a- 1 A nno prim o B eltsazar R egis Babylonis,b ilônia, D aniel teve um sonho e v isões de Daniel som nium vidit, e t visiones capitissua cabeça, em seu leito. Então escreveu o ejus in lecto ejus. T unc som nium scripsit,sonho, e relatou a sum a dos assuntos. sum m am serm onum exposuit.2 Falou D aniel, e disse: Vi em m inha v i- 2 L oquutus est D aniel, e t exposuit: Vidisão noturna, e eis que os quatro ventos in v isione m ea per noctem , e t eccequatu-do céu agitavam o grande mar. o r venti ccelorum p u g n a n te s ,1 in raari

magno.

Aqui Daniel com eça oferecendo instrução peculiar à Igreja. Pois Deus anteriormente o designara como intérprete e instrutor de reis profanos. Agora, porém, ele o designa como mestre da Igreja, para que exerça nela seu ofício e sua instrução destinados aos filhos de Deus em seu seio. E mister que notemos esse fator, antes de tudo, porque até aqui suas predições se estenderam para além dos limites da fam ília da fé; aqui, porém, o dever de Daniel se restringe à Igreja. Diz ele: E sta visão m e foi concedida no p rim eiro ano do rei B elsazar, antes que ocorresse a mudança que já vimos previamente. Antes de tudo, devemos tentar enten­der o desígnio do Espírito Santo; ou, seja, o fim e o uso para os quais ele revelou a Daniel o conteúdo deste capítulo. Todos os profetas insistiram com o povo eleito sobre a esperança de livra­mento, depois que Deus houvera castigado neles sua ingratidão e

1 Alguns traduzem “erguendo-se de".

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[7.1, 2] DANIEL

obstinação. Ao lermos o que outros profetas anunciaram concer­nente a sua redenção futura, presumiríamos que à Igreja fora pro­metido um estado feliz, tranqüilo e completamente pacífico, de­pois que o povo houvesse regressado do cativeiro. A história, porém, testifica quão diferente foi tal regresso. Pois os fiéis teri­am caído exaustos e teriam apostatado, a menos que fossem ad­moestados sobre as diversas perturbações que estavam por vir. Eis aqui, pois, a prim eira razão por que Deus revelara a seu Pro­feta o que logo veremos; ou, seja, que ainda restavam três m onar­cas, cada um dos quais sucederia o anterior, e que durante seu governo todos os fiéis teriam que perseverar em permanente e constante confiança nas promessas, ainda que vissem o mundo inteiro estremecer e severas e angustiantes convulsões prevale­cendo por toda parte. Por essa razão, aqui se apresenta a visão de Daniel concernente aos quatro impérios. Talvez seria melhor adiar seu sumário até que o Profeta comece a tratar de cada animal em separado. Mas, com respeito aos dois primeiros versículos, é bom que observemos o tempo do sonho.

Antes que os medos e persas transferissem o império caldai- co para si, os profetas foram instruídos sobre este assunto, para que os judeus pudessem reconhecer o cumprimento parcial do que Deus lhes havia com muita freqüência prometido, a eles a seus pais. Pois se seus inimigos houvessem possuído Babilônia sem alguma nova predição, talvez os judeus não atentassem bem para aquelas profecias que outrora foram pronunciadas em seu favor. Daí Deus querer arejar suas memórias, e então, quando vissem a queda daquele império que todos criam ser inexpugná­vel, perceberiam o domínio dos conselhos secretos de Deus, do­mínio parcial, se não completo, cujo cumprimento fora testifica­do pela instrumentalidade de seus profetas. D iz ele: teve u m so­nho. Ao falar previamente do sonho do rei Nabucodonosor, ele mencionou um a visão, porém não pela mesma razão, porque a descrença, mesmo vendo, não observa. De fato observavam algo,

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32* EXPOSIÇÃO 17.1, 2]

obscuramente, sem qualquer distinção, enquanto seus pensamen­tos imediatamente esmaeciam. O método dos profetas era dife­rente; visto que não apenas sonhavam, porém divisavam uma visão distinta, e então proveitosamente passavam para outros o que haviam recebido. O Profeta, pois, expressa algo peculiar por meio desta frase, pois sabemos como os profetas costumeiramente atribuíam a Deus tais visões, quando percebiam os segredos do céu, não com os olhos carnais, mas pela iluminação e inteligên­cia procedentes do Espírito.

Ele acrescenta: visões de sua cabeça, em seu leito; e assim o sonho teria mais peso, e não concluiríamos que teria havido al­guma confusão no cérebro de Daniel. E assim ele expressa como vira tudo quanto o Senhor quis que ele soubesse, através de um sonho, com mente serena. Ele diz em seguida: E n tão ele escre­veu o sonho e explicou o significado das palav ras. Por meio dessa frase, ele nos ensina que a visão que recebera não foi por sua própria causa, mas para a edificação com um da Igreja. Os que supõem Daniel como que saltando subitamente de seu leito, para que esquecesse o sonho, oferecem um com entário fútil e frívolo. Daniel, antes, desejava testificar essa visão como sendo não peculiar a ele próprio, mas como algo comum ao povo eleito de Deus; e daí não só teria que ser celebrado oralmente, mas ti­nha que ser entregue à posteridade para memorial perpétuo. Pre­cisamos ter em mente estes dois pontos: primeiro, Daniel escre­veu esta profecia para que o conhecimento dela fosse sempre ce­lebrado entre os fiéis; e, segundo, ele considerava os interesses da posteridade, e por isso escreveu a visão. Ambos esses pontos são dignos de nota para induzir-nos a prestar mais atenção à vi­são, um a vez que a mesma não fora enunciada por um mero indi­víduo; senão que Deus escolhera a Daniel como seu ministro e como o arauto e testemunha deste oráculo. D aí virmos com o esse oráculo nos diz respeito; não foi o ensino para alguma época sin­gular, mas se estende a nós e deve vigorar até o fim do mundo.

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[7.1,2] DANIEL

Ele repete a mesma coisa, adicionando: explicou o sentido das p a lav ras. Pois os que separam essas duas classes parecem ir d i­reto ao chão.2 D aniel en tão falou e disse - Isso não é um a refe­rência a palavras, mas a escritos; como se o Profeta dissesse: Cumpri meu dever! Já que ele sabia que o que mais adiante vere­mos concernente às quatro monarquias não lhe fora divinamente confiado devido ao encobrimento de algo já conhecido, mas, an­tes, ele se sentia um instrumento escolhido de Deus, que estava assim sugerindo aos fiéis recurso para confiança e paciência. Portanto, ele fa lou e explicou; ou, seja, ao desejar prom ulgar este oráculo, ele dava testemunho de não haver diferença entre ele e a Igreja de Deus neste anúncio; mas, como fora eleito e ordenado mestre, assim entregou o que havia recebido, através de suas mãos. D aí Daniel não só enaltece sua própria fé, mas excita a todos os piedosos à ansiedade e atenção, para não desprezarem o que Deus pronunciara por sua boca.

Ele reitera uma vez mais: E le viu em sua visão d u ra n te a noite. U m a vez mais, repito, Daniel afirm a que não apresenta nada mais senão o que autorizadamente lhe entregara. Pois sabe­mos que na Igreja todas as tradições humanas têm de ser tratadas como algo sem valor, visto a sabedoria humana não passar de vaidade e mentira. Como somente Deus merece ser ouvido pelos fiéis, assim Daniel aqui assevera que ele nada oferece de si mes­mo por meio de sonhos, no sentido ordinária, mas que a visão é certa, e com o tal não engana os piedosos.

Em seguida ele acrescenta: E eis que os q u a tro ventos do céu agitavam o g ran d e m ar. Dou mais preferência a esta tradu­ção. Os intérpretes diferem com respeito aos ventos, mas o senti­do genuíno parece-me ser este: Daniel usa um símile universal­mente conhecido, pois em chão firme, quando estala algum a po-

1 A frase no texto latino é um provérbio: nttdum quierere in scyrpo. O francês é correto em sua interpretação: chercher de la difficulté où il n 'y en a point. Tanto Ennius quanto Terence usam o provérbio.

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32* EXPOSIÇÃO [7.1,2]

derosa tempestade, qualquer concussão turbulenta raramente se ouve como vinda do mar. Sem dúvida, ele aqui apresenta a ima­gem de um mar furioso para advertir os fiéis contra a proxim ida­de de comoções terríveis, como se o m ar fosse agitado por tor­mentas e furiosas tempestades estalassem por todos os lados. Esse é o significado da frase. Daí denominar ele de quatro ventos, para mostrar aos fiéis como o movimento que estilhaçaria o globo não seria único e simples, mas que diversas tormentas viriam juntas de todos os lados - exatamente como acontece. As vezes é possí­vel vermos a terra sacudida justamente como se um a tempestade a quisesse arremessar ao mar vinda de todas as direções, mas o movimento ainda é único. Deus, porém, queria mostrar a seu Pro­feta não só um a simples concussão, mas muitas e distintas, como se todos os ventos se centrassem num único conflito geral. É ver­dade que os filósofos enumeram os ventos como sendo mais de quatro quando desejam tratar do número com precisão, porém o costume é falar de quatro ventos soprando dos quatro cantos ou regiões do globo. O sentido, contudo, é óbvio e de forma alguma forçado - sendo o mundo como um mar conturbado, não agitado por uma única tormenta ou vento, mas por diferentes rajadas con­flitantes, como se todos os céus conspirassem para provocarem comoções.

Esta visão, num primeiro relance, parece muito amarga para os fiéis, porquanto contavam os anos prescritos por Jeremias; expirando assim os setenta anos, Deus então lhes prometera o término de suas tribulações. Agora Deus anuncia que não devem deixar-se dominar pela esperança de repouso e alegria; mas, ao contrário, que se preparassem para enfrentar o ímpeto de ventos ainda mais ferozes, quando o mundo seria por toda parte agitado por diferentes tormentas. Quem sabe chegassem mesmo a sus­peitar que Deus não concretizaria suas promessas; todavia, isso seria suficiente para apaziguar suas mentes e reanimá-las com a esperança de redenção, quando nada viam acontecer, nem abrup­

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[7.3] DANIEL

tamente, nem casualmente. Uma vez mais Deus veio ao encontro de suas tentações a fim de que sua coragem não se desvanecesse, ensinando-lhes que o método de sua redenção não era tão fácil quanto haviam previamente concebido à luz das predições ante­riores. Deus deveras não havia mudado seus planos, pois ainda que passasse um longo período desde que ele falara pelos lábios de Isafas e outros profetas, todavia desejava preparar os judeus contra a delonga, a fim de que não se lhes desvanecesse a cora­gem que lhes era requerida para mitigar tão profundas aflições. Mas quando a redenção realmente se aproximava, então Deus explicou seu método mais clara e familiarmente, e mostrou quão grandes e severas eram as lutas restantes. Daí os fiéis, introduzi­dos por tais profecias, contenderiam exaustivamente, e todavia avançariam constantemente em seu curso de fé e obediência. E então prossegue:

3 E quatro animais grandes, d iferentes uns 3 E t quatuor b e s t is raagn® prodibant e d os outros, subiram do mar. mari. d iv e rs* hsec ab illa.'

Depois que Daniel divisou essas grandes comoções que esta­vam abalando a terra em diferentes partes, foi-lhe oferecida outra visão. O que já se disse concernente ao mar agitado e o conflito dos ventos se estende a quatro monarquias, acerca das quais tra­taremos agora. Insinua-se uma certa preparação quando Deus põe ante os olhos de seu Profeta um mar conturbado, proveniente do conflito dos ventos. É como se dissesse: depois dessas turbulên­cias, outras surgirão; assim os homens esperarão em vão pela paz e tranqüilidade, pois terão de sofrer sob as agitações da carne. Agora é expresso o tipo de conturbação, através das palavras: q u a tro an im ais g randes su b iram do m ar. D aí essa concussão, essas tormentas e esse confuso distúrbio do mundo inteiro atra­vés de um reino sucedendo a outro. Dificilmente seria possível ocorrer que algum reino venha a perecer sem que envolva outros

' Ou. seja, diferenciando entre si.

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32* EXPOSIÇÃO [7.4]

em sua ruína. Dificilmente seria possível que um único edifício se desmorone sem que sua colisão seja ouvida por rincões dis­tantes e a terra não se embasbaque ante sua fragorosa ruína. En­tão, o que aconteceria quando as mais poderosas monarquias su­bitamente perecessem? Daí Daniel mostrar neste versículo como o mundo se assemelha a um mar encapelado, um a vez que vio­lentas mudanças, entre seus impérios, estavam tão próximas. A com paração dos impérios com animais é facilmente explicável. Sabemos como a glória e o poder de Deus se manifestam com fulgor em todos os reinos, se forem corretamente conduzidos se­gundo a lei da eqüidade. Visto, porém, que amiúde vemos a ver­dade do que fora dito a Alexandre: Os maiores reinos são os maiores gatunos, e bem poucos assimilam todo o poder num gran­de império e exercem uma tirania cruel e excessiva. Aqui o Pro­feta compara os impérios a animais enormes e selvagens, dos quais ele tratará mais adiante. Agora entendemos o significados das palavras: e podemos aprender esta lição do que geralmente acontece nos impérios do mundo; em si mesmos, como já disse­mos, eles são os mais belos reflexos da sabedoria, virtude e justi­ça divinas, a despeito de que os que obtêm supremo domínio raramente reconhecem que eles mesmos são criados para o de­sempenho de seu ofício. Portanto, como os reis são, em sua maio­ria, tiranos, sobrecarregados de crueldade e barbárie, esquecidos do espírito de humanidade, o Profeta caracteriza esse vício como que emanando deles mesmos, e não da sacra ordenação de Deus. Avancemos mais:

4 O prim eiro era com o um leão, e tinha 4 Prim a sicut leo,1 e t alie a q u ilx ei: vidiasas de água; enquanto eu olhava, foram - donec e v u ls s sun ta lsee jus, e tsu b la ta fu itlhe arrancadas as asas, e ele foi levantado e terra, e t super pedes suos quasi hom oda terra e posto em pé com o um hom em , estetit. e t cor hom inis datum est ei.e foi-lhe dado um coração de hom em .

É evidente que as quatro monarquias são aqui representadas.

‘ A primeira besta como um leio.

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[7.4] DANIEL

Não há, porém, concordância entre todos os escritores sobre qual m onarquia é a últim a e qual a terceira. Com respeito à primeira, todos se dispõem a entender a visão como sendo um a referência ao império caldaico, o qual se uniu ao assírio, como já se viu anteriormente. Pois Nínive foi absorvida pelos caldeus e babilô­nios; porém o Profeta discorre por fim sobre o império assírio e caldaico, o qual então florescia. Ninguém, contudo, teria imagi­nado que seu fim estaria tão próximo; e na mesma noite em que Belsazar foi morto, vimos como ele, entregue à segurança e à soberba, mergulhou em seus prazeres, e que excessiva e desaten­ta segurança imperava por toda a cidade. Essa monarquia, pois, tem de estar, em primeiro lugar, diante de nossos olhos. Visto como no segundo capítulo esse império foi chamado a cabeça de ouro da estátua, assim também ele é agora chamado um leão; ou, seja, é comparado a um animal nobre. Está compreendido sob a imagem de um animal, e sua ferocidade e atrocidade, como eu já disse, estão assim implícitas; mas, com respeito ao outro reino, admite-se-lhe alguma superioridade, visto que o mundo está sem ­pre indo de mal a pior. E ainda que Ciro fosse um príncipe bas­tante prudente, todavia ele não atingiu a temperança dos séculos anteriores; era insaciável em sua ambição, avareza e crueldade. Pois Isaías também, ao falar dos persas, diz: "não farão caso da prata, nem tampouco desejarão ouro” (13.17).

Percebemos, pois, a razão por que o profeta diz: O p rim eiro an im al e ra com o leão, posto que maior integridade florescia sob os caldeus do que quando todos os impérios se mesclaram, e os persas subjugaram tanto os caldeus quanto os medos. Pois é evi­dente, à luz de todas as histórias, que constituíam uma nação bárbara e feroz. Aliás, eram ostentosos em seu louvor da virtude, visto que viviam suas vidas em austeridade e desprezavam toda e qualquer luxúria e eram excessivamente temperantes em seu vi­ver; sua ferocidade e brutal crueldade, porém, fizeram deles se­res detestáveis.

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32* EXPOSIÇÃO 17.4]

O primeiro animal, pois, era como leão , diz ele, e tin h a asas de águias; ou, seja, embora fosse um leão. todavia possuía asas. Isso se refere a sua ligeireza, visto sabermos como em pouco tempo os assírios fizeram sua monarquia desenvolver-se, pois haviam previamente subjugado os caldeu, precisamente como um leão em sua ligeireza. Pois um leão possuía força, ímpeto e cruel­dade para a prática de destruição. Além disso, o Profeta viu um leão alado, visto que não só aumentavam seu império com sua própria força, mas subitamente estenderam suas asas em toda direção. Vemos, pois, como a força e o poder estão implícitos, de um lado, e maior rapidez, do outro. Em seguida, ele diz: Suas asas fo ram a rran ca d as . Pois quando os caldeus quiseram es­tender suas fronteiras ainda mais, o Senhor os restringiu dentro dos devidos limites e refreou suas vitórias contínuas. Suas asas foram então arrancadas quando Deus os restringiu, pondo-lhes freio para que não avançassem tão livremente com o fizeram an­teriormente.

Então o Profeta acrescenta: E ste an im al foi levan tado da te rra , implicitando a cessação do império. Porque nem os cal­deus nem os assírios foram inteiramente destruídos; porém sua glória foi completamente obliterada. O rosto do animal não mais apareceu, quando Deus transferiu essa monarquia para os medos e persas. D aí o Profeta acrescentar: e posto em pé com o um hom em , e lhe foi dado um coração de hom em . Por meio dessa forma de expressão, ele pretendia realçar a redução dos assírios e caldeus a sua ordinária condição, e que não mais eram como um leão, mas como homens individuais privados de seu poder e for­ça. Daí a expressão e lhe fo i dado um coração como de homem não deve ser entendida à guisa de louvor, mas por “um homem” ele tinha em mente alguma pessoa em particular; como se quises­se dizer: o aspecto dos caldeus e assírios não mais era terrível, visto que, enquanto prevalecia seu domínio, todos os homens eram terrificados por seu poder. Daí Deus remover do mundo o rosto

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[7.5] DANIEL

desse animal, substituindo-o por um rosto de homem, e o fez pôr-se de pé. Anteriormente planavam no ar e desprezavam a terra, pondo tudo sob seus pés; Deus, porém, os fe z erguer sobre seus pés\ ou, seja, não se conduziram segundo seus costumes e postura antiga, mas simplesmente no nível comum, depois de Deus os privar de seu império. Esse, em meu juízo, é o significa­do simples do Profeta. Se houver alguma necessidade, mais adi­ante confirmaremos as observações que ora assinalamos, porém rapidamente. Segue:

5 E e is outro anim al, um segundo, sem e- 5 E t ecce bellua, beslia . posterior altera5 lhanie a um urso, e ele se ergueu num de sim ilis urso (inquit) et surrexit ad latusseus lados, tendo na boca três costelas unum : e t tres c o s ts in ore ejus in te rd en -entre seus dentes; e lhe foi dito assim : tes ejus: e t sic dicebant e i/ ' Surge, come-L evanta-te, devora m uita carne. de carnem multam.

Aqui o Profeta proclama como fora instruído, por meio de um sonho, acerca do segundo animal. Se simplesmente ju lgar­mos à luz do evento, este animal sem dúvida representava o reino dos medos e persas, embora o Profeta especifique os persas, quan­do o medos desde outrora se submeteram a seu jugo. Eis, diz ele, o u tro an im al sem elhante a um urso. Sabemos ser o urso um animal estúpido e imundo, indolente e inerte, bem como cruel. Ao com parar o urso com o leão, sua aparência é imunda e desa­gradável, enquanto que a do leão é notável pela beleza e formidá­vel em seu porte. Ele compara os persas a um urso, em virtude de sua barbárie, porquanto já declaramos que essa nação era em ex­tremo feroz e selvagem. Repetindo, os persas não eram civiliza­dos como os assírios e os caldeus, que habitavam na mais bela região de todo o mundo, e num país tão encantador que se asse­melhava a um nobre teatro. Os persas, porém, viviam ocultos com o bestas selvagens em suas covas. Habitavam entre suas montanhas e viviam como os brutos. Daí o Profeta compará-los.

' Ou, seja, o segundo animal seguia o primeiro.* Ou, seja. “Assim lhe foi diio"; pois esta palavra é tomada em sentido indefinida.

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32* EXPOSIÇÃO [7.5]

mui apropriadamente, a um urso. Sim, Deus revelou essa form a a seu Profeta. Em seguida, ele acrescenta: e ele se e rg u eu num de seus lados. H á quem pensa que isso foi acrescentado com o in­tuito de expressar o domínio bem combinado dos medos e per­sas; essa opinião, porém, não se adequa bem. Sabemos quão ex­tenso era o domínio dos medos antes de serem subjugados pelo poder de Ciro e dos persas. Por si sós, os medos eram mais pode­rosos; então os persas foram acrescentados e em seguida Ciro apoderou-se das possessões da monarquia caldaica. Ele possuiu inclusive as chaves do Egito, reinou na Síria, dominou a Judéia e estendeu-se para além do mar, até que, por fim, foi vencido pelos citas. Quando, pois, se diz: ele se pôs num de seus lados, está implícita a origem obscura de seu reino, pois a fam a dos persas se espalhou inclusive no seio de suas montanhas, até Ciro adqui- rir-lhes um nome por meio de suas proezas. Porque ele era um bravo guerreiro, merecidamente eclipsou a glória de todos os mais. Daí, a princípio, esse anim al se pôs num de seus lados\ ou, seja, os persas eram sem fama ou reputação; não possuíam riquezas e jam ais emergiram de seus esconderijos. Vemos como este parti­cular se restringe a sua origem em decorrência de sua obscuridade.

Então o Profeta acrescenta: tendo n a boca trê s costelas en ­tre seus dentes; e lhe foi d ito assim : L evanta-te , devo ra m uita carne! Os que entendem as três costelas como sendo três reinos definidos parecem dar demasiada atenção a minudências. Creio ser um número indefinido, porque esse animal havia abocanhado não apenas uma costela, mas três; uma vez que os persas, como já dissemos, exibiam em si o poder dos medos, e mais tarde sub­jugaram os assírios e os caldeus, e Ciro também subjugou muitas nações, até que toda a Ásia M enor reconhecesse sua autoridade. Quando, pois, o Profeta fala de três costelas, o que está implícito é a natureza insaciável desse animal, posto que não se contentava com apenas um corpo, mas concomitantemente devorava muitos homens. Porque, por “muitas costelas” ele tem em vista muita

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presa. Eis o sentido como um todo. Não hesito explicar as pala­vras foi-lhe d ito [ao animal] como um a referência aos anjos ou ao próprio Deus. Há quem prefere entendê-las no sentido de estí­mulo pelo qual Ciro fora instigado à crueldade. Visto, porém, que Deus exibe ante seu Profeta a imagem de sua Providência, o que recentemente sugeri vem a ser muitíssimo provável, ou, seja: fo i-lhe d ito : E rgue-te , devo ra m u ita carne ; não porque Deus fosse o autor de crueldade; mas, visto que ele governa, por seu secreto conselho, os eventos que os homens realizam sem méto­do, sua autoridade é aqui merecidamente posta ante nossos olhos. Posto que Ciro não teria penetrado tão ligeiramente em diferen­tes regiões, cumulado para si tantos impérios e subjugado nações tão poderosas, não houvera Deus planejado punir o mundo, e não teria tomado a Ciro como seu instrumento de matança. Como, pois, Ciro executou a vingança de Deus derramando tanto san­gue humano, o Profeta declara que lhe disseram: Ergue-te, devo­ra muita carne. Em um aspecto, Deus não se deleitou com a matança de tantas nações, pelas mãos de Ciro e pelo crescente poder e tirania de um só homem através do derramamento de sangue humano; mas, em outro aspecto, fala-se de Deus como comandando a conduta de Ciro, uma vez que ele queria punir o mundo por sua ingratidão, à qual acrescentou-se a mais desespe­rada obstinação e rebelião. Não havia remédio para tais vícios; daí Deus confiar a Ciro o dever de executar seu juízo. Sinto-me compelido a deter-me neste ponto.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que nos expuseste a várias tribulações neste mundo com o propósito de exercitar nossa f é e paciência, concede- nos que permaneçamos tranquilos em nossa condição, pelo exercí­cio da confiança em tuas promessas. Quando as tormentas nos en­volvem de todos os lados, que jamais desmaiemos e jam ais nossa coragem se descoroçoe; ao contrário, que permaneçamos firm es em nossa vocação. O que quer que aconteça, possamos reconhecer-te como Aquele que leva a bom termo o governo do mundo, não só para

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punir a ingratidão dos réprobos, mas para reter a f é de teu próprio povo e revelar-lhe tua proteção, bem como preservá-lo até o fim. Que mantenhamos nossa paciência, sejam quais forem as mudanças que nos afetem; e que nossa mente jam ais se perturbe e mergulhe em profunda angústia, até que, por fim, sejamos congregados naquele descanso feliz, onde estaremos isentos de toda guerra e de todas as disputas, e onde desfrutaremos da eterna bem-aventurança, a qual preparaste para nós em teu unigénito Filho. Amém

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33ag.xposição

6 D epois disso, continuei olhando, e eis 6 Post hoc vidi,7 e t ecce alia, beslia scili-outro , sem elhante a um leopardo, e tinha cet, sicut pardus, sim iiis pardo, e t alsequatro asas de aves em suas costas; o ani- quatuor avis super dorsum ejus, e t quatu-mal tinha tam bém quatro cabeças; e foi- o r capita b c s tis : et potestas data est ei.lhe dado dom ínio.

Daniel acaba de falar de dois impérios, a saber: o caldaico e o persa. Os intérpretes concordam com a necessidade de atribuir esta visão ao império macedônio. Ele compara esse reino a um leopardo, ou, como alguns o traduzem, a um a pantera, visto Ale­xandre haver granjeado seu grande poder unicamente por sua ra­pidez. E ainda que ele não fosse de modo algum um animal notá­vel, todavia conduziu-se com extraordinária rapidez e subjugou todo o Oriente. Outros encontram muitos pontos de semelhança, nos quais o caráter grego se acha em harmonia com a natureza do leopardo. Receio, porém, que tais minutics sejam de mui pouco peso. Para mim é suficiente que o Espírito esteja aqui tratando do terceiro império. A princípio ele não era de grande importância, e tampouco podia terrificar as regiões longínquas nem adquirir súditos por sua própria dignidade. Então ele veio a tornar-se se­melhante a um animal veloz, se assim podemos dizer, visto a rapidez de Alexandre tornar-se notória; porém não se destacou em prudência, nem em gravidade, nem em juízo, nem em quais­quer outras virtudes. A mera precipitação assenhoreou-se dele; e mesmo que jam ais houvesse provado vinho, só sua ambição o

1 Ou. seja, foi-me oferecida uma visâo.

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teria intoxicado. Daí ser toda a vida de Alexandre a de um ébrio; não havia nele nem moderação nem compostura. Vemos, pois, quão adequadamente isso corresponde ao caráter de Alexandre, ainda que o mesmo se tenha estendido a seus sucessores, parti­lhando todos eles, em grande escala, da natureza de seu príncipe. Portanto Daniel declara: A pareceu-lhe ou tro anim al sem elhante a u m leopardo.

E diz também: T in h a ele q u a tro asas nas costas e q u a tro cabeças. Algumas pessoas, e creio que obstinadamente, fazem distinção entre as asas e as cabeças. Pressupõem o reino na figura de animais alados, visto Alexandre haver se assenhoreado de muitos reinos num período muito curto. O sentido mais simples, porém, é que esse animal tinha quatro asas e quatro cabeças, uma vez que Alexandre, ao morrer, dificilmente teria completado suas vitórias, contrariando toda e qualquer expectativa; e, depois de sua morte, cada uma [das cabeças] assenhoreou-se para si de uma porção da presa. Entretanto, isto é indubitável: depois de os prin­cipais generais de seu exército haver contendido por muitos anos, todas as histórias concordam em declarar que o supremo poder centrou-se em quatro. Pois Seleuco obteve a Á sia M aior e Antí- gono, a Ásia Menor; Cassandro foi rei da Macedônia, e foi suce­dido por Antípater; enquanto que Ptolomeu, filho de Lago, veio a ser o governante do Egito. Aliás, haviam também concordado entre si: pois Alexandre teve um filho com Roxana, filha de Da- rio; ele teve um irmão, Aridíeus, que chegou à idade adulta, mas era epiléptico e de intelecto avariado. Então, já que os generais de Alexandre eram por demais sagazes, agiram sob esse pretexto para que todos jurassem lealdade a seu guarda, e então a Ari- dasus, em caso de seu guarda morrer antes que chegasse à idade senil.8 Então Lisímaco foi posto sobre o tesouro, outro coman­dou as forças e os outros receberam várias províncias. Quinze ou

' O texto latino na edição de Genebra de 16J7 traz “populi", onde deveria ser "pupillC. A de 1569 é a redação correia - “pupilU".

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vinte líderes dividiram entre si as forças e o poder, enquanto nin­guém ousava assumir o título real. Pois o filho de Alexandre era o rei legítimo e seu sucessor era aquele A rid$us de quem já falei. Mas logo depois se uniram; e essa foi um espécimen admirável de providência divina, o que por si só é suficiente para provar aquela passagem bíblica: “Aquele que derramar o sangue do ho­mem, pelo homem seu sangue será derramado” (Gn 9.6). Por­quanto nenhum dos generais de Alexandre escapou em seguran­ça, exceto aqueles quatro de quem já fizemos menção. Sua mãe, com a idade de oitenta anos, sofreu morte violenta; sua esposa, Roxana, foi estrangulada; seu filho pereceu miseravelmente; Ari- dzeus, seu irmão, homem de mente avariada, e quase se nivelan­do aos brutos, foi morto com o restante - na verdade toda a fam í­lia de Alexandre sofreu mortes violentas. Com respeito aos ge­nerais, pereceram em batalhas, sendo alguns deles traídos por seus soldados e outros, vítimas de sua própria negligência; e, to­davia, posto que previssem um fim sanguinário, não escaparam dele. Mas, somente quatro sobreviveram, e assim todo o império de Alexandre foi dividido em quatro partes. Pois Seleuco, cujo sucessor foi Antíoco, obteve a Ásia Superior, ou, seja, o império oriental; Antígono, a Ásia Menor, com parte da Cilicia, Panfília e outras regiões circunvizinhas; Ptolomeu apoderou-se do Egito e parte da África; Cassandro e então Antípater foram reis da Mace- dônia. Pelas expressões quatro asas e quatro cabeças Daniel tem em mente aquela partilha que se procedeu imediatamente após a morte de Alexandre. Agora, pois, entendemos o que Deus quis mostrar a seu profeta sob esta visão, quando pôs diante dele a imagem de um leopardo com quatro asas e quatro cabeças.

D iz ele: Foi dado poder ao an im al, porque o sucesso de Alexandre, o Grande, foi incrível. Pois quem teria imaginado que, ao cruzar o mar, teria ele conquistado toda a Ásia e o Oriente? Levou consigo 30.000 homens, e não empreendeu a guerra ex­clusivamente sob sua própria responsabilidade, mas, através de

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várias artes, ele obteve dos Estados Livres nomeação para a lide­rança da Grécia. Alexandre foi, portanto, um rei de mercenários gregos, porque não podia levar consigo mais de 30.000 homens, com o já dissem os. Engajou na batalha 150.000, em seguida 400.000, e então quase uma miríade. Pois Dario, em sua última batalha, havia coletado acima de 800.000 homens, além de cam­poneses; de sorte que juntou a seu redor quase um milhão. A le­xandre já havia atraído a si alguns auxiliares dentre as nações estrangeiras que havia conquistado; porém não pôde confiar ne­les. D aí toda sua força estar centrada nesses 30.000, e no dia em que venceu a Dario sentia-se tão vencido pelo sono que mal po­dia manter-se desperto. Os historiadores que enaltecem sua pru­dência justificam esse fato registrando sua vigília durante a noite anterior. Além disso, todos concordam em declarar que ele se manteve aparentemente morto, e quando todos seus generais se aproximaram, quase não puderam acordá-lo, e então proposita­damente fizeram ecoar um a gritaria em torno de sua tenda, ainda que ninguém ousasse entrar. Alexandre mal esfregara seus olhos, e Dario já havia fugido. Daí ser verdadeira a declaração do Profe­ta: ao animal fo i dado poder, visto tal acontecimento ter-se dado além da expectativa natural e de toda e qualquer opinião huma­na, como se por sua exclusiva orientação ele pudesse apavorar toda a Grécia e lançar prostrado tão imenso exército. Ele fala isso em referência ao Terceiro Império. Não repetirei aqui o que se pode dizer e se pode deduzir da história; pois muitas coisas po­dem ser proteladas até o capítulo onze. Portanto, sumariarei em termos breves os pontos que parecem necessários para a inter­pretação da passagem. Então prossegue:

7 D epois d isso vi nas visões noturnas, e 7 Postea, post hoc. vidi, hocest, videbam,eis um quarto anim al, espantoso e tem '- in visionibus noctis; e t ecce b estiaquartavel e excessivam ente forte; e ele linha form idabilis, e t m etuenda,9 e t fortis val-grandes den tes de ferro; devorava e des- de: et dentes ferri, hocest, feirei, illi mag-

* Ou. seja, o qual pode infligir terror.

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pedaçava e p isava aos pés o que sobrava; ni: com edens e t conterens, et reliquume era d iferente de todos os anim ais que pedibus conculcans: e t ip sa diversa eraivieram an tes dele; e tinha dez chifres. ab om nibus bestiis prioribus, e t com ua

decem illi.

A dificuldade com esta Quarta M onarquia é ainda maior. Os que se revestem de juízo moderado confessam que esta visão se concretizou no império romano; mas depois discordam, um a vez que o que aqui se diz do quarto animal muitos transferem para o papa. ao acrescentar-se o surgimento de um Pequeno Chifre; ou­tros, porém, acreditam que o que está aqui compreendido é o reino turco sob o romano. Os judeus em sua maioria se inclinam nesta direção, e são necessariamente compelidos a agir assim, visto que Daniel mais adiante acrescentará: Vi o trono do Filho do Homem; visto ser evidente, à luz desta predição, que o reino de Cristo foi erigido pela subversão do domínio romano, os ju ­deus retrocedem e, como já disse, reúnem a monarquia turca com a romana, um a vez que não descobrem seu Cristo em conformi­dade com sua imaginação. E há entre nossos escritores quem pense dever esta imagem restringir-se ao império romano, mas que deve incluir o turco. A meu ver, não há nada provável nessa opinião. Não tenho dúvida de que nesta visão mostrou-se ao profeta a figura do império romano, e isso se fará ainda mais evidente à medida que avançarmos.

D iz ele que surgira u m q u a r to an im al. Não fixa um nome, porque nada semelhante existira no mundo. O profeta, não acres­centando nenhuma similitude, dá a entender quão terrível mons­tro era aquele, pois previamente comparara o império caldaico a um leão, o persa a um urso e o macedônio a um leopardo. Em tais comparações havia algo de natural; mas quando se dirige ao quarto animal, sua descrição é: e ra form idável em seu aspecto , e te r r í ­vel, e bravíssim o, ou muito forte, e sem qualquer adição o deno­mina “um animal” . Vemos, pois, seu desejo de expressar algo prodigioso através desse quarto animal, como não havendo ani­mal tão feroz ou cruel no mundo que pudesse, de algum a forma,

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representar com suficiente força a natureza deste animal. Portan­to, eis o quarto animal, o qual era form idável e feroz e fo rtíssi­mo. Não temos notícia de um a tal monarquia antes desta. Ainda que Alexandre subjugasse toda o Oriente, sua vitória, bem o sa­bemos, não foi estável. Ele apenas se contentou com a fama; con­cedeu liberdade a todo mundo; e enquanto fosse bajulado por todos, nada mais lhe importava. Sabemos, porém, que os roma­nos se tom aram soberanos até mesmo sobre Babilônia; sabemos ainda que os seguintes países foram subjugados por eles: Ásia Menor, Síria, Cilicia, Grécia e Macedônia, tanto a Espanha, a Gália, o Ilírico como parte da Alemanha. Por fim, a Bretanha foi subjugada por Júlio César. Não surpreende que esse animal fosse denominado á t form idável e fortíssim o ! Pois antes que Júlio César se tornasse soberano do império, todo o M ar M editerrâneo se tornou, em todas suas partes, sujeito ao império romano. Sua es­pantosa extensão é bem notória. É verdade que o Egito teve seus próprios reis, mas era tributário; todos os éditos que os romanos decretavam eram imediatamente executados no Egito. Existiam soberanos menores na Á sia Menor como um a espécie de espi­ões, mas tal estado de coisas trataremos no momento oportuno. É também mui notório que possuíam poder supremo sobre todo o Mar M editerrâneo, e isso mediante a conquista de Mitridates. Pompeu reduziu o Ponto a seu vassalo. As atividades no Oriente foram todas pacificadas. Os medos e os persas lhe trouxeram muita dificuldade, mas jam ais reagiam a não ser que fossem provoca­dos. Os espanhóis não estavam ainda acostumados ao jugo, po­rém sabemos que sempre houve dois pretores ali. Júlio César foi o primeiro a entrar na Bretanha depois de subjugar a Gália. Daí vermos o quanto e quão amplamente os romanos estenderam seu poder, e com que imensa crueldade. D aí Daniel denominar este animal dq form idável e fortíssimo.

E em seguida acrescenta: possuía g randes den tes d e ferro . Isso deve ser atribuído a sua audácia e insaciável avidez. Desco-

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brimos que sua nação era completamente isenta do medo da m or­te; pois eram tão impiedosos que, se algum deles se desertasse de suas fileiras para evitar o perigo, o mesmo era em seguida estig­matizado com tais marcas de infâmia, que ou era com pelido a estrangular-se ou aexpor-se voluntariamente à morte! Existe, pois, certa crueldade brutal naquela nação, e sabemos quão insaciá­veis eram eles. Por essa razão, Daniel diz que tinham grandes dentes de ferro. E acrescenta: ele consum ia, despedaçava e p i­sava aos pés o que sobejava.

Essas coisas são expressas alegoricamente, não só porque esta visão foi apresentada ao santo Profeta, mas também porque Deus desejava pintá-la com cores vivas, nas quais pudesse exibir o ca­ráter peculiar de cada governo. Pois sabemos quantas terras os romanos consumiram e como transferiram para si as pompas do mundo inteiro, e tudo quanto era valioso e precioso na Asia M e­nor, na Grécia, na Macedônia, bem como em todas as ilhas e na Á sia M aior - era tudo varrido! - e tudo isso era ainda insuficien­te para saciá-los! Essa, pois, é a voracidade de que o Profeta ora fala, visto que consumiam, diz ele, e pisavam aos pés o que sobe­java - metáfora essa digna de observação, porquanto sabemos que estavam acostumados a distribuir a presa que pudessem le­var consigo. Devoravam e rasgavam com seus dentes os tesouros e tudo quanto era objeto caríssimo. Pois suas provisões provi­nham dos tributos que, por sua vez, produziam enormes somas de dinheiro. Se havia alguma porção do M editerrâneo que não pudessem defender sem manter ali um a guarnição permanente, sabemos que empregavam os serviços de reis tributários. Assim o reino de Eumenes aumentou numa grande extensão até os tem­pos de seu neto Átalo, mas a concederam em parte aos rodianos e em parte aos cipriotas e outros. Jamais remuneravam os aliados que quase exauriam suas próprias possessões no esforço de auxi- liá-los, tirando de seus próprios recursos, porém os enriqueciam espoliando outros; e não só apoderavam da propriedade de uma

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33a EXPOSIÇÃO [7.7]

cidade e a concediam a outra, mas expunham suas terras à venda. E assim a liberdade dos lacedíemonianos foi entregue ao tirano Nabis. Também enriqueceram os masinissas com tanta riqueza, que adquiriram a África para si a sua própria custa. Em suma, eles agraciaram de tal sorte os reinos, apoderando-se deles e dan­do-lhes domínio, que se converteram em províncias tranqüilas pela riqueza e às custas de outras. Isso se fez admiravelmente conspícuo no caso da Judéia, onde do nada criaram etnarcas, te- trarcas e reis, que outra coisa não eram senão seus satélites - e que não duravam mais que um momento. Pois tão logo alguma mudança ocorria, retraíam o que haviam dado tão facilmente quan­to o haviam concedido. D aí essa sua astuta liberalidade ser deno­minada como pisar sob a planta de seus pés\ pois, o que sobrava do que não podiam devorar e consumir, lançavam debaixo de seus pés e o pisoteavam , mantendo em sujeição todos quantos haviam enriquecido ou favorecido. Assim vemos com que servi­dão eram exaltados por aqueles que haviam obtido algo através de sua generosidade. E quão degradante era a servidão da Grécia desde o tempo em que os romanos entraram no país! Pois assim que cada estado adquiria algum novo território, logo erigia um templo em honra dos romanos. Enviavam também seus em bai­xadores para lá e os erigiam como espiões que, sob a pretensão de punir o povo vizinho por subtevar-se contra eles, enriqueci­am-se por meio de pilhagem. E assim os romanos mantinham debaixo de seus pés tudo quanto haviam dado a outros. Vemos, pois, com quanta propriedade e justeza fala o Profeta, ao dizer: os romanos pisoteavam o resto; pois quanto estava em seu poder, o que não podiam consumir, e que sua voracidade não podia de­vorar, eles pisavam debaixo de seus pés.

E em seguida acrescenta: E este an im al e ra d iferen te de to ­dos os an te rio res , e possuía dez chifres. Ao dizer: este animal era diferente de todos os anteriores, ele confirma o que anterior­mente eu disse, ou, seja, este era um prodígio horrível, e nada se

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[7.7] DANIEL

lhe podia comparar na natureza das coisas. E, seguramente, se alguém atentar e prudentemente considerar a origem dos roma­nos, com certeza se sentirá atônito ante seu notável progresso de tão imenso poder; pois ele era um monstro inusitado, e nada se­melhante jam ais aparecera. Os intérpretes analisam de várias maneiras o que o Profeta anexa no que diz respeito aos dez chi­fres. Eu sigo um a opinião simples, porém genuína, a saber: o que o Profeta tem em mente é que este império pertence a mais de um a pessoa. Porquanto o anjo a seguir assevera que os dez chi­fres são reis; não que Roma seria governada por muitos reis, se­gundo o tolo sonho dos judeus, os quais são ignorantes quanto a todas as coisas; o Profeta, porém, aqui distingue do resto a Quar­ta M onarquia, como se quisesse dizer que a mesma seria um go­verno popular, não presidido por apenas um rei, mas dividido em muitas cabeças. Pois ainda dividiam as províncias entre si e fazi­am alianças recíprocas, de modo que um era governador da Ma- cedônia, outra da Cilicia e outro da Síria. E assim notamos quão numerosos eram os reinos. E com respeito ao número dez, sabe­mos ser essa uma forma de expressão freqüente e comum na Es­critura, onde dez significa muitos. Quando se denota pluralidade, se usa o número dez. Portanto, quando o Profeta declara que o quarto animal possuía dez chifres, sua intenção é que há muitas províncias assim divididas, uma para cada governante, fosse pro­cônsul ou pretor, era ele considerado rei. Enquanto o poder su­prem o lhes era dado, a cidade e a Itália eram cedidas aos cônsu­les. Aliás, o cônsul podia escrever às províncias e ordenar-lhes o que bem lhe agradasse; e assim ele podia elevar em honra a quem quisesse motivado por algum favor ou amizade; porém, cada um dos pretores e procônsules, ao obter uma província, se convertia numa espécie de rei, um a vez que ele exercia o supremo poder de vida e morte sobre todos seus súditos. Não carece ficarmos preo­cupados com o número, como já explicamos. Os que o aplicam às províncias romanas cometem grave equívoco; omitem o ele­mento primordial; consideram Espanha como apenas um a pro-

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33* EXPOSIÇÃO [7.8]

víncia, quando sabemos que havia duas. Não dividem a Gália, todavia sempre houve ali dois procônsules, com exceção de Júlio César que obteve o comando de ambas as Gálias. Da mesma for­ma se referem à Grécia, e no entanto nem procônsul nem pretor jam ais era enviado para lá. Finalmente o Profeta simplesmente pretende dizer que o império romano era complexo, sendo divi­dido em muitas províncias, e essas províncias eram governadas por líderes de grande dignidade em Roma, cuja autoridade e po­sição eram superiores aos demais. Os procônsules e pretores ob­tinham as províncias por sorteio, mas o favor amiúde prevalecia, como as histórias daqueles tempos nos asseguram sobejamente. Prossigamos:

8 E stando eu a considerar o s chifres, eis que entre e les subiu outro chifre peque­no, d iante do qual havia três d en treos pri­m eiros ch ifres arrancados pelas raízes; e eis que neste chifre havia o lhos com o os o lhos de hom em , e um a boca que falava grandes coisas.

Daniel prossegue com sua descrição do quarto animal. Pri­meiro, diz ele, eu estava aten to [ou considerava], com a inten­ção de despertar-nos para séria meditação. Pois o que se diz do quarto animal era extraordinariamente memorável e digno de nota. Eis, pois, a razão por que Deus golpeou o coração de seu servo com indagação. Pois o Profeta não teria dado atenção à conside­ração do quarto animal a menos que fosse impelido pelo instinto secreto de Deus. A atenção do Profeta, pois, proviera de um im­pulso celestial. D aí ser nosso dever ler o que aqui está escrito, não com um a mente displicente, senão com o intuito de pesar seriamente e com a mais atenta diligência o que o Espírito pre­tende com esta visão.

Portanto, eu estava a ten to , diz ele, p a ra os chifres, e eis que

10 Ou. seja, eu estava atento.

8 In telligebam 1“ ad cornua: e t ecce cornu aliud parvum exortum fuit in ter alia: et tria ex cornibus prioribus ab lata sun t e facie ejus: et ecce oculi quasi oculi hom i­nis in cornu illo, e t os loquens grandia.

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[7.8] DANIEL

sub iu en tre eles u m chifre pequeno. Aqui os intérpretes com e­çam a diferir entre si. Alguns o torcem para significar o papa; e outros, a Turquia. Mas nenhuma dessas opiniões me parece pro­vável. Ambas são errôneas, um a vez que acreditam que todo o curso do reino de Cristo está aqui descrito, enquanto Deus queria simplesmente declarar a seu Profeta o que sucederia até o pri­meiro advento de Cristo. Eis, pois, o erro de todos aqueles que querem abarcar nesta visão o estado perpétuo da Igreja até o fim do mundo. A intenção do Espírito Santo, porém, era totalmente diferente. Explicamos no início por que esta visão foi dada ao Profeta - porque as mentes dos santos desmaiariam constante­mente ante as terríveis convulsões que se aproximavam, ao ve­rem o supremo domínio escapar aos persas. E então os macedô- nios se lançaram sobre eles e se revestiram de autoridade por todo o Oriente, e em seguida os assaltantes que fizeram guerra sob o comando de Alexandre de repente se converteram em reis, em parte por crueldade e em parte por fraude e perfídia, o que criou mais discórdia do que hostilidade aparente. E quando os fiéis viram todas essas monarquias perecerem, e o império roma­no surgir como um novo prodígio, sua coragem se desvaneceu em meio a tais mudanças confusas e turbulentas. E assim esta visão foi apresentada ao Profeta para que todos os filhos de Deus viessem a entender que graves tribulações os aguardavam antes do advento de Cristo. Daniel, pois, não foi além da redenção pro­metida e não abrangeu, como eu já disse, todo o reino de Cristo, mas se contenta em apresentar aos fiéis aquela exibição da graça que aguardavam e pela qual suspiravam.

É suficientemente óbvio, pois, que essa exibição deva ser uma indicação do primeiro advento de Cristo. Não tenho dúvida de que o pequeno chifre se relaciona com Júlio César e com os ou­tros Césares que o sucederam, a saber: Augusto, Tibério, Calígu- la, Cláudio, Nero e outros. Se bem que, como eu disse antes, o conselho do Espírito Santo se fazia presente, o qual conduziu os

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33* EXPOSIÇÃO (7.8]

fiéis rumo aos primórdios do reino de Cristo, ou, seja, para a pregação do evangelho, a qual começou sob Cláudio, Nero e seus sucessores. Eie o denomina de pequeno chifre, porquanto César não assumiu o título de rei; quando, porém, Pompeu e a maioria do senado foram vencidos, ele não celebrou sua vitória sem antes arrogar para si o poder supremo. Daí ele se fez tribuno do povo e seu ditador. Entrementes, sempre houve procônsules; existiu sem­pre alguma sombra de república, enquanto consultava diariamente o senado e assentava-se em seu trono enquanto os cônsules esta­vam nos tribunais. Otávio seguiu a mesma tática, e mais tarde também Tibério. Pois nenhum dos Césares, a menos que fosse cônsul, ousava ascender ao tribunal; cada um tinha sua própria sede, ainda que dessa posição ele pudesse com andar todos os demais. Não surpreende, pois, que Daniel tenha denominado a monarquia de Júlio e dos demais Césares de pequeno chifre, seu esplendor e dignidade não eram bastante grandes para eclipsar a majestade do senado; pois enquanto o senado retinha o título e a forma de honra, é suficientemente notório que um único homem possuía o poder supremo. Portanto, ele diz: este pequeno chifre se ergueu en tre os ou tros dez. Tenho que prorrogar a explica­ção do que segue, a saber: trê s desses dez fo ram arran cad o s.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que outrora admoestaste teus servos de que teus filhos, enquantoforem peregrinos neste mundo, devem estar bem a par de bestas horríveis e cruéis, caso a mesma coisa vier a suce­der-nos, que estejamos preparados para todo e qualquer combate.Que suportemos e vençamos todas as tentações, e que jam ais duvide­mos de teu intuito de defender-nos por tua proteção e poder, conso­ante tua promessa. Que prossigamos pelos meandros de inumeráveis perigos, até que se conclua a trajetória de nossa luta e por fim alcan­cemos aquele fe liz descanso que nos está preparado no céu p o r Cris­to nosso Senhor. Amém.

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34ag.xposição

(~ 7rês coisas restam a serem explicadas por nós na exposição dos Quatro Animais. Em primeiro lugar, três chifres foram

arrancados de seus lugares; segundo, o pequeno chifre, que su­biu entre os dez, apareceu com olhos humanos; terceiro, fa lava com magnificência, ou pronunciava palavras arrogantes. Com res­peito aos três chifres, é suficientemente óbvio à luz do testemu­nho do anjo que eram três reis; não porque isso deva indicar pes­soas, como refutei na mensagem anterior, mas porque os roma­nos costum avam enviar a cada província governantes como reis que ali exerciam suprema autoridade. Os que estendem esta pro­fecia até o final do reino de Cristo crêem que está im plícita uma dispersão que ocorreu certa de três ou cinco séculos depois da morte de Cristo; porém estão muitíssimo equivocados. Evidente­mente, boa parte de toda a força do império romano era exaurida e as províncias gradualmente eliminadas até tornar-se um a espé­cie de corpo mutilado; mas já demonstrei a inexatidão de qual­quer explicação deste oráculo, exceto aquela acerca do estado da Igreja no primeiro advento de Cristo e a proclamação do evange­lho. Naquele tempo, sabe-se bem, nada fora subtraído das fron­teiras do império. Pois Júlio César foi formidável não só em rela­ção aos gauleses, mas também em relação aos germânicos; e, além disso, os negócios do Oriente estavam em paz. Após sua morte, ainda que Otávio ou Augusto houvesse sofrido dois m or­ticínios muito destrutivos, especialmente sob Quintino Varo, o qual foi enviado à Germânia com um poderoso exército, todavia

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ele também estendeu as fronteiras do império, especialmente no Oriente. Ele também subjugou toda a Espanha, onde depois dis­so não mais ocorreu nenhuma comoção. Portanto, como naquele período nenhuma província foi eliminada do império romano, o que se pretende com a expressão: Três chifres foram arrancados e removido do animal pelas raízesJ A solução não é difícil. Basta observarmos como o pequeno chifre é comparado com a primei­ra estrutura do animal. Ele prim eiro apareceu com dez chifres; quando o pequeno chifre se ergueu, sua figura foi modificada. O Profeta então diz - uma parte dos chifres foi eliminada, quando o senado então cessou de criar procônsules. Pois sabemos que, quan­do Augusto assumiu para si certas províncias, ele fez isso com o propósito de criar presidentes segundo seu talante e de constituir um a força bem resistente, sempre perto, para que ninguém se rebelasse contra ele. Pois ele não se preocupava tanto com as províncias quanto com um exército, qualquer tumulto que sur­gisse. Portanto, ele nutria o desejo de pôr freio a todas elas a fim de que nenhuma ousasse tentar um a revolução. Tudo quanto foi assim acrescentado ao pequeno chifre foi tirado dos dez chifres, ou, seja, de todo o corpo, quando o estado da monarquia foi intei­ramente modificado. Não há nada forçado nesta exposição. D e­vemos também insistir com um número definido ou fixo sendo estabelecido no lugar de um incerto; como se o Profeta dissesse: uma parte do poder do animal foi subtraída depois do surgimento do pequeno chifre. E assim muito da primeira sentença.

Ele então acrescenta: Os olhos neste pequeno ch ifre e ram sem elhantes aos de hom em ; e então: ele falava g randes coisas. Com respeito aos olhos, esta expressão implica: foi exibida a forma de um corpo humano, porque os Césares não aboliram o senado nem mudaram imediatamente toda a forma de governo; mas, como dissemos na mensagem anterior, contentaram-se com o poder; e quanto ao esplendor, títulos e pompa, prontamente deixaram tudo isso com os cônsules e o senado. Se alguém

34a EXPOSIÇÃO £7.8]

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considerar a maneira na qual esses Césares, os quais são indubi­tavelmente indicados pelo pequeno chifre, se conduziam, sua conduta se assemelhará a um a figura humana. Pois Júlio César pretendia, ainda que fosse ditador, obedecer à autoridade do se­nado, e os cônsules pediam a opinião dos senadores, segundo a moda antiga. Ele sentava-se no centro e perm itia que muitas coi­sas fossem decretadas sem interpor sua vontade. Augusto tam­bém usava em demasia a sombra do poder tribunício só com o propósito de governar o império. Assim ele se submetia aos côn­sules; e quando desejava ser eleito para aquele ofício, fazia-se candidato com os demais competidores, e vestia um manto bran­co como um cidadão particular. Tibério também foi um grande pretendente, e enquanto tramava projetos de tirania, não era fran­co nem engenhoso em seus planos. Assim também apareceu no pequeno chifre os olhos de homem, ou, seja, depois que essa mudança ocorreu e o senado e o povo foram privados de sua liberdade. Aquele que mantinha o governo da república não era formidável, como um animal completo, mas se assemelhava a qualquer homem em sua forma externa.

O Profeta acrescenta: O pequeno chifre tin h a um a boca que fa lava g randes coisas. Pois ainda que, com vistas ao favor con­ciliatório, os Césares se conduziam como os homens, sabemos quão atrozmente tratavam seus inimigos e quão imperiosamente impediam ou cometiam tudo quanto desejavam, como bem lhes apetecia. Havia, pois, um a grande diferença entre sua boca e seus olhos. Pois, como já dissemos, o esplendor e dignidade do impé­rio estavam, a princípio, no poder dos cônsules e do senado. En­tretanto, por meio de artes insidiosas, os Césares assenhorearam- se de todo o poder, até que ninguém ousasse fazer coisa alguma, exceto por ordem deles. Muitos intérpretes explicam isso como blasfêm ia contra Deus e impiedade; e o anjo fará menção disso no final do capítulo. Mas, se pesarmos toda a expressão judicio­samente, o que afirmo parecerá correto, e falar grandes coisas

[7:8] DAN IEL

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aqui mencionado pelo Profeta significará a soberba com que os Césares estavam inflados, impondo silêncio a todos os homens e não permitindo que alguém abrisse a boca contrariando sua von­tade. As palavras do Profeta são muito bem explicadas por este fato; pois os três chifres sendo removidos dentre os dez signifi­cam alguma parte do império que se separava do corpo principal; então, o pequeno chifre sendo dotado com olhos humanos impli­ca um tipo de modéstia, quando os Césares agiam como pessoas particulares e se privavam da exibição externa ante o senado e o povo; e, terceiro, quando a boca do pequeno chifre fa lava sober- bamente, a consternação se assenhoreava de todos os romanos, especialmente daqueles que desfrutavam de alguma reputação, pendentes do aceno dos Césares, os quais impunham a mais vil escravidão e recebiam a mais torpe e mais vergonhosa bajulação por parte do senado. Então prossegue:

9 Eu vi a inda que desciam tronos, e o 9 V idebam usque dum throni erecti sunt,"A ncião de dias tom ou assento, cu ja vesti- e t A ntiquus, senex, d ierum sedit: vesti­m enta era b ranca com o a neve; o cabelo m entum ejus quasi nix candidum , e t ca-de sua cabeça, com o a pura l i ; seu trono pillus capilis e jus quasi lana m unda, so­e ra como um a cham a ardente, e suas ro- lium ejus sei ntillat ignis, rota; ejus ignisdas como chama-s de fogo. ardens.

Daniel então relata como vira outra figura, a saber, Deus as­sentado em seu trono para exercer juízo. Veremos mais adiante acerca de Cristo, m as Daniel agora ensina simplesmente o apare­cimento de Deus em seu caráter de juiz. Essa é a razão por que muitas pessoas estendem esta profecia até a segunda vinda de Cristo - interpretação essa de modo algum correta, como mostra­rei mais amplamente no lugar próprio. Mas, antes, é digno de consideração aqui por que ele diz: o A ncião de dias, significan­do sua própria Deidade eterna, assentou-se no tro n o do juízo.

" Ou removido; pois a palavra remiv, é explicada pelos intérpretes em dois senti­dos: verbalmente, “até que removessem tronos ou os erigissem no ar1'. “A palavra pode ser traduzida "foram armados" ou postos para a recepção da Deidade e seus assessores, os santos.” - Winile.

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{7.9] DANIEL

Esta cena parece desnecessária, porquanto é o ofício peculiar de Deus governar o mundo; e como sabemos que isso não pode ser feito sem o reto juízo, segue-se que Deus tem sido um ju iz perpé­tuo desde a criação do mundo. Ora, mesmo um moderado conhe­cim ento das Escrituras revela quão bem esta passagem se adequa a nós, apelando a nossos sentidos; pois a não ser que o poder de Deus se faça patente, pensamos nele como que abolido ou inter­rompido. Daí aquelas formas de expressão que ocorrem em ou­tras partes, tais como: “Até quando te esquecerás de mim, Se­nhor? Para sempre? Até quando esconderás de mim teu rosto?” [SI 13.1; 9.7 e outros lugares]. E para o reconhecermos em seu papel de juiz, assentado em seu trono, temos de crer que ele real e experimentalmente se nos revela como tal. Eis, pois, a razão por que Daniel diz que Deus pessoalmente assentou-se para julgar.

Mas antes de avançarmos mais, devemos observar o sentido em que ele diz: tronos foram erigidos ou postos - pois a palavra □Tl, rum, pode ser tomada em ambos os sentidos. Os que a tradu­zem: “Tronos foram removidos" a interpretam pelo prisma das Quatro Monarquias já mencionadas. De minha parte, porém, in­clino-me, antes, para um a opinião distinta. Se alguém prefere explicá-la pelo prisma dessas monarquias, não me oponho ao mesmo, pois tal sentido é provável; no que diz respeito ao cerne da questão, não há muita diferença. Creio, porém, que os tronos são aqui postos com o intuito de exibir o juízo divino, visto que o profeta imediatamente representará miríades de anjos postos em pé diante de Deus. Sabemos quão amiúde os anjos são adornados com este título, como se fossem assessores da Deidade; e a forma de linguagem que Daniel usa quando diz: “O juízo foi estabeleci­do" também concordará com isso. Ele fala aqui de assessores junto do Juiz, como se Deus não se assentasse só, mas tivesse conciliares a seu redor. Em minha opinião, a explicação mais adequadaé: foram criados tronos parao Onipotente sentar-se com seus conciliares; não implicando isso sua necessidade de algum

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concílio, mas de seu próprio beneplácito e mero favor ele digni­fica os anjos com tal honra, como veremos a seguir. Daniel, pois, descreve, segundo nossa forma humana, as preparações para o juízo; precisamente como se algum rei fosse publicamente apre­sentado com o propósito de realizar algum negócio do momento e em seguida assentar em seu tribunal. Os conciliares e nobres assentariam em torno dele, em ambos os lados, não participando de seu poder, mas, antes, aumentando o esplendor de seu apare­cimento. Pois se o rei ocupasse sozinho todo o espaço, a dignida­de não seria tão magnificente como quando seus nobres, que dele dependem, estão presentes em toda parte, porquanto excedem muitíssimo à multidão ordinária. Daniel, pois, relata dessa forma a visão a ele apresentada; primeiro, porque era um homem habi­tando na carne; e, segundo, ele não a divisava para si pessoal­mente, mas para o benefício comum de toda a Igreja. E assim Deus quis exibir uma representação que pudesse infundir na mente do Profeta e na de todos os santos um sentimento de admiração, e todavia pudesse ter algo em comum com os procedimentos hu­manos. Portanto, diz ele, foram erigidos tronos\ em seguida, o Ancião de dias tomou assento. Já expliquei como Deus então começou a sentar-se assim que, previamente, apareceu pacifica­mente, e não para exercer justiça no mundo. Pois quando as coisas são conturbadas e mescladas com densas trevas, quem pode dizer: “Deus reina”? Quando as coisas estão desordenadas e turbulen­tas na terra, é como se Deus estivesse encerrado no céu. Em con­trapartida, diz-se que ele sobe a seu tribunal quando assume para si o ofício de ju iz e publicamente demonstra que não está dor­mindo nem ausente, ainda que esteja oculto da percepção humana.

Essa forma de linguagem era muito apropriada para denotar a vinda de Cristo. Porque então Deus exibiu seu supremo poder, como Paulo cita uma passagem dos Salmos [68.8 em E f 4.8]: “Tu subiste às alturas.” Quando o tema em questão é a primeira vinda de Cristo, ele não deve restringir-se aos trinta e três anos de

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[7.9] DANIEL

sua peregrinação neste mundo, mas que abarca sua ascensão e a proclamação do evangelho que introduziu seu reino - isso será expresso novamente com mais clareza e copiosamente. Daniel apropriadamente relata como Deus estava assentado quando se descreve o primeiro advento de Cristo, visto que a majestade de Deus resplandece na pessoa de Cristo; por essa razão ele é deno­minado “a imagem invisível de Deus e o caráter de sua glória” [Hb 1.3]; ou, seja, da substância ou pessoa do Pai. Deus, pois, que por tantos séculos parecia não haver notado o mundo nem se preocupado com seu povo eleito, subiu a seu tribunal no advento de Cristo. Todos os Salmos, do 95 ao 100, se relacionam com esse tema: “Deus reina, regozije-se toda a terra”; “Deus reina, temam-no todas as ilhas.” Aliás, Deus não habitou [com os ho­mens] em completa privacidade antes do advento de Cristo; mas o império que ele havia erigido estava oculto e invisível, até que manifestasse sua glória na pessoa de seu unigénito Filho. Portan­to, o Ancião de dias tomou assento.

Ele então diz: Sua vestim enta e ra b ra n c a com o a neve; o cabelo de sua cabeça, com o a p u ra lã. Deus aqui se manifesta a seu Profeta na form a humana. Sabemos quão impossível nos é visualizar a Deus como ele realmente é, até que ele nos transfor­me a sua semelhança, como João diz em sua epístola canônica [1 Jo 3.2], Visto que nossa capacidade não pode suportar o fulgor daquela inatingível glória que essencialmente pertence a Deus, sempre que ele se manifesta a nós necessariamente tem de ser através de uma forma adaptada a nossa compreensão. Deus, pois, jam ais foi visto pelos pais em sua própria perfeição natural; mas até onde a capacidade deles permitia, ele lhes oferecia um a prova de sua presença para o seguro reconhecimento de sua Deidade. E todavia eles o compreendiam até onde lhes era útil e lhes era possível suportar. Eis a razão por que Deus aparecia com vesti­m en ta b ran ca , que é característico do céu; com cabelos com o neve, brancos e puros como a lã. O seguinte tem o mesmo propó-

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34* EXPOSIÇÃO [7.10]

sito: Seu tro n o e ra com o cham as a rden tes, ou, seja, como fogo candente; suas rodas e ram como cham as de fogo. Deus, na re­alidade, nem ocupa trono algum nem é conduzido sobre rodas; mas, como eu já disse, não devemos imaginar a Deus, em sua essência, como apareceu a seu próprio Profeta e outros santos pais, mas se vestia de variadas aparências segundo a com preen­são humana, a quem ele desejasse fornecer algum sinal de sua presença. Não preciso ficar mais tempo sobre essas formas de linguagem, ainda que as alegorias sutis sejam agradáveis a mui­tos. Fico satisfeito com aquilo que é sólido e seguro. Continuemos:

10 Uma torrente ardente flu ía e saía d e 10 F luvius1* ignis fluebat, e t exibat a p ra - d iante dele; m ilhares de m ilhares lhe m i- sentia ejus, vel a conspeciu: m illia m i­nistravam e dez m ilhares vezes dez m i- llium IJm in istrabantei:etdeciesm ilH acie- Ihares assistiam diante dele; assentou-se cies m illium 14 coram ipso stabant: jud i- o ju íz o e abriram -se os livros. cium sedit, et libri aperti sunt.

Daniel prossegue com o que começou no versículo anterior. Ele fala de um esplendor ou torrente de fogo; pois TI3, neher, pode ser usado em ambos os sentidos, visto que TI3, neher, sig­nifica tanto ‘fluir’ quanto ‘brilhar’. Todavia, visto que ele previa­mente falara de esplendor, a palavra ‘torrente’ se adequa muito bem à passagem, pois um a to rren te canden te fluía d a p resen ­ça de Deus, a qual tanto inundava quanto queim ava a terra. Sem dúvida Deus queria inspirar seu Profeta com temor com o propó­sito de despertá-lo mais profundamente, visto que jam ais com ­preenderemos suficientemente sua majestade a não ser quando somos humilhados; e não podemos experimentar essa humildade sem temor. Eis a razão por que Deus sempre revela algo de terrí­vel quando aparece a seus servos, não meramente para gerar per­plexidade, mas para excitar seu temor e reverência. D aí Daniel parecer haver considerado este ponto nesta visão, quando a to r ­ren te su rg iu ju n tam en te com o aparecim ento dele, sim , um

12 alguns, ik luz ou esplendor." Ou seja. milhões.IJ Ou seja. miríades de miríades, ou centenas de milhões.

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[7-10] DANIEL

rio de cham as. Em seguida ele acrescenta: assistentes inum e­ráveis estavam d ian te dele. Sem a menor sombra de dúvida, o Profeta aqui fala de anjos. Ele declara que somavam m ilhares de m ilhares, ou dez vezes cem milhares: e ainda, dez m ilhares ve­zes dez m ilhares, ou, seja, dez mil miríades. Aqui os números não são computados, porém Deus quer dizer que tem a sua dispo­sição as maiores forças que obedecem a sua vontade, as quais excedem infinitamente os exércitos arregimentados pelos mais formidáveis e poderosos príncipes.

Esta passagem nos ensina que os anjos foram criados com o propósito de receber e executar as ordens de Deus e de serem eles os ministros de Deus, visto que se acham a sua disposição no céu e na terra. No que respeita a números, não admira que tantas miríades sejam mencionadas pelo Profeta. Cristo disse: “Ou pen­sas tu que eu não poderia agora pedir a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos?” [Mt 26.53]. Portanto, nesta passagem Daniel diz que estavam ali anjos incontáveis ao dispor de Deus, e que não havia necessidade de convocar exércitos se­gundo o costume dos príncipes, visto que estão sempre presentes e prontos a obedecer. E assim cumprem imediatamente todas suas ordens, visto que os anjos percorrem velozmente todo o céu e terra. Percebemos também denotado aqui o supremo poder do Onipotente, como se o Profeta quisesse dizer: Deus não é como um rei ou um ju iz [terreno] que possui um mero título, mas ele possui o mais formidável e o mais infinito poder; ele conta com miríades de satélites sempre à mão com o propósito de cumprir e executar sua suprema vontade. E nesse sentido ele diz: assistiam d ian te dele. Ele usa a palavra para ministério ou serviço, e em seguida acrescenta: diante dele. Pois nem os ministros podem prestar seu serviço tão prontamente como seus superiores dese­jam . O método angélico, porém, é diferente. Não só estão prepa­rados a obedecer, mas num instante percebem o que Deus deseja e ordena sem necessitar de tempo para pronto atendimento. Ve­

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34* EXPOSIÇÃO [7.10]

mos ainda que os maiores príncipes não podem pôr em prática im ediatam ente seus decretos, porque seus ministros nem sem ­pre estão à disposição. Mas não há necessidade de continuar fa­lando ainda dos anjos. Daniel acrescenta: assentou-se o ju ízo e ab rira m -se os livros. A inda que unicam ente Deus seja em i­nente e conspícuo acima dos anjos, e a excelência da glória de­les e bem assim sua dignidade, não obscurecem o supremo im ­pério do Onipotente, todavia, com o já vim os previam ente, ele os ju lga dignos da honra de serem postos como conciliares acada lado dele, buscando engrandecer sua própria majestade. Pois já declaramos que os mais nobres não tomam assento ao lado dos monarcas visando a ofuscar sua majestade ou detrair algo dela para si, mas, antes, procuram refletir mais plenam ente a m agni­tude e poder do monarca. Eis a razão por que o Profeta associa os anjos com Deus, não como aliados, mas simplesmente como seus conciliares.

Associo a frase abriram -se os livros com a pregação do evangelho. Embora Deus fosse reconhecido em Judá, como se acha expresso no Salmo 76 [v. 2], todavia tal reconhecimento era apenas superficial e envolvida em muitas figuras. Deus era reve­lado através de enigmas até a vinda de Cristo; mas então ele ma­nifestou-se plenamente, justam ente como o abrir de livros anteri­ormente fechados. Há, pois, um contraste a ser observado aqui entre aquela época obscura que precedeu a vinda de Cristo e a claridade que agora resplandece sob o evangelho. Portanto, visto que Deus se fez conhecer claramente depois que nasceu o Sol da justiça, de acordo com o profeta M alaquias [4.2], essa é a razão por que se diz que os livros foram abertos naquele tempo. Entre­mentes, confessamos que Deus não esteve totalmente oculto, nem falamos de ocultação, mas isso é expresso pelo Profeta com para­tivamente, quando os livros eram abertos sempre que Deus se manifestava publ icamente como o Juiz, Pai e Preservador do mun­do, na pessoa de seu unigénito Filho. Então prossegue:

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11 E ntão olhei, por causa da voz das gran- 11 Videbam tune, p ropter vocem 1' serm o-des palavras que o chifre proferia; olhei num g ran d iu m .q u o sco m u proferebal. vi-ainda a té que o anim al foi m orto, e seu debam usque dum occisa fuit bestia, etcorpo destru ído e entregue à cham a ar- abolitum corpus ejus, e t data fuit incen-dente. dio ignis.

Visto que os pretensos discursos do pequeno chifre terrifica- ram o Profeta, ele agora diz que estava atento à consideração dessa parte. Em seguida afirma: O an im al foi m o rto e seu c o r­po foi consum ido pelo fogo arden te . Isso deve ser claramente uma referência ao fim do império romano. Pois desde o tempo em que os estrangeiros obtiveram o domínio, o quarto animal deixou de progredir. O nome foi sempre retido, todavia com grande desdém daquele antigo monarca. Omito agora toda e qualquer menção a Calígula, Nero, Domiciano e monstros afins. Mas quan­do os espanhóis e africanos adquiriram o domínio absoluto, é possível continuarmos chamando Roma a senhora do mundo? Seguramente isso seria total estupidez! Da m esm a forma todos os dias os alemães também dizem que possuem o império roma­no: mas enquanto o título império passou para os alemães, evi­dentemente muito de Roma está nesse mesmo dia em escravi­dão. Pois quando o papa erigiu ali seu próprio trono, esse impé­rio é indigno do nome monarquia. Mas seja qual for nossa visão desse ponto, cerca de 1500 anos os romanos têm estado sob es­cravidão de príncipes estrangeiros. Pois depois da morte de Nero, Trajano foi seu sucessor, e desde esse tempo raramente um único romano obteve o império; e Deus o estigmatizou com as marcas mais desditosas de ignomínia, quando um guardador de porcos foi feito imperador pelo desejo da força militar! O senado reteve seu nome até então; mas se a vontade dos soldados era fazer al­guém um único César, o senado foi imediatamente compelido a submeter-se a seus ditames. Assim o Profeta com grande propri-

" Ou, seja. estava olhando aquela visão até que: significa a atenção da mente, e isso não segundo o método humano, mas como se fosse apanhado no ar pelo espírito profético. E assim ele diz. que seus sentidos estavam fixados naquela visão - portanto "em raz lo da voz", ou “através da voz".

[7.11] DANIEL

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34* EXPOSIÇÃO [7.11]

edade diz: o animal fo i morto logo depois da promulgação do evangelho. Então o pretenso discurso do pequeno chifre chegou ao fim, e o quarto animal foi concomitantemente extinto. Desde então nenhum romano se fez imperador que reivindicasse para si alguma participação de poder; Roma mesma, porém, caiu em desditosa escravidão, e não só ali reinaram estrangeiros da forma mais vergonhosa, mas até mesmo bárbaros, criadores de suínos e de bovinos! Tudo isso ocorreu em cumprimento do que Deus mos­trara a seu Profeta, ou, seja, após a vinda de Cristo e a abertura dos livros, isto é, depois do conhecimento que resplandeceu sobre o mundo inteiro através da proclamação do evangelho - a destruição do quarto animal do império romano que estava próxima.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, sejam quais forem as revoluções que ocorram dia­riamente no mundo, fa z com que estejamos sempre atentos à vista de tua glória, uma vez manifestada a nós em teu Filho. Que o esplendor de tua majestade ilumine nossos corações e penetremos além dos céus visíveis, além do sol, da lua e de tudo quanto esplende; e que contemplemos a bem-aventurança de teu reino, o qual nos propuses­te na luz de teu evangelho. Que atuiemos pelo meio das trevas e afli­ções do mundo, contentes com a luz pela qual nos chamas à esperan­ça da herança eterna que nos prometeste e adquiriste para nós por meio do sangue de teu unigénito Filho. Amém.

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35a

12 E, quan to aos ou tros anim ais, foi-lhes 12 E t reliquis bestiis abstu lerant potesta- tirado seu dom ínio; todavia foi-lhes pro- tem , vel dominationem, e t longitudo in longada a vida por um a época e um tem - vita data iltis fuerat usque ad tem pus et po. tem pus.

Sem dúvida, o Profeta se refere ao que deve vir primeiro em ordem, visto que os impérios de que está falando foram extintos antes do romano. Daí, esses verbos têm de ser tomados no senti­do mais-que-perfeito, porque o poder já havia sido removido dos outros três animais. Pois os hebreus costumavam repetir algo depois de ser omitido, e nem sempre observavam a ordem de tempo em suas narrativas. E assim, depois de haver dito que o quarto animal fora morto e consumido pelas chamas, ele então acrescenta o que havia omitido acerca dos três restantes, a saber: foi-lhes tira d o seu dom ínio. Acrescenta ainda o que é digno de nota: a extensão ou continuação foi-lhes p ro longada a v ida por a in d a um a época e u m tem po. Há duas palavras diferentes usa­das aqui, mas o significado de ambas é o mesmo, ou, seja, um tempo conveniente. Aqui o Profeta entende que nada acontece acidentalmente, mas que todas as coisas ocorrem no mundo em seu devido tempo, segundo Deus as decretou no céu. Provavel­mente, quando o tema do discurso se estende à vida, significa a protelação do período dessas aflições, para que não se desvaneça repentinamente como nuvens. O que se anuncia não são apenas provações severas, mas provações prolongadas aguardam os fi­éis, as quais afligiriam suas mentes com exaustão, a menos que a

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35a EXPOSIÇÃO [7.12]

esperança de um melhor resultado os mitigasse. E assim o Espí­rito Santo prediz como Deus por fim libertaria sua Igreja, ao exer­cer ela sua paciência por uma extensão de tempo. O p o d er dos an im ais restan tes foi tirado . A cópula na palavra HD1KX ve- arkeh, “e extensão”, pode ser resolvida assim: “em virtude da extensão da vida”; como se ele dissesse: As provações pelas quais os filhos de Deus estavam para ser oprimidos não seriam perpé­tuas, visto que Deus prescreveu e definiu um período fixo. Por­tanto, foi-lhes concedido um prolongamento da vida, ou, seja, por uma época e um tempo. A cópula pode ser considerada como sendo “um a partícula adversativa” ; por exemplo, “se bem que um prolongamento”, ou, seja, se bem que as pessoas não esca­pam imediatamente dessas preocupações dolorosas que as opri­miam, todavia chegará por fim a oportunidade de Deus, a saber, o tempo em que aprouve a Deus redimir sua própria Igreja. Mas a prim eira exposição parece a mais genuína e a mais consistente, porque a extensão de tempo tem seus próprios limites e frontei­ras. Há também um contraste entre as palavras HD1K, arkeh, ‘ex­tensão’, e p t , zemen, ‘tem po’, e ]1Jí, gneden, ‘tem po’, porque extensão ou ‘prolongam ento’ se refere a nossas percepções; pois quando estamos sofrendo dores, o tempo mais rápido nos parece muito extenso. E assim alguém que enfrenta ansiedade por um melhor estado de coisas conta cada minuto, e é tão clamoroso em seus desejos que chega ao ponto de questionar com Deus acerca de sua delonga. Como, pois, a impaciência humana é dem asiada­mente grande, quando os homens estão esperando com ansieda­de a libertação de sua adversidade, o profeta diz, na acepção or­dinária da frase: foi concedido aos animais um prolongamento do tempo; mas contrapõe um tempo conveniente; como a dizer: age sem propósito quem assim se entrega a suas próprias pai­xões. Visto que Deus tem fixado seu próprio tempo, requer-se paciência e não devem contar os anos; mas essa única coisa tem de ser concluída: quando o Senhor quiser, não mais reterá seu auxílio. Este, pois, é o pleno sentido do versículo. Então prossegue:

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[7.13] DANIEL

13 E u vi nas visões noturnas, e eis que 13 Videbam in v isionibus noctis: e t ecceum sem elhan te a Filho de hom em veio in nubibus1* cceli. vel ccelorum, tanquamcom as n uvens do céu , e se d irig iu ao F ilius hom inis veniebat, e t usque ad An-A ncião de d ias, e o fizeram chegar-se a té liquum dierum venit, e t coram eo re p rs -cle. sen larun t.17

Após Daniel narrar como viu a Deus no trono do juízo, exer­cendo publicamente seu poder e abrindo ao mundo o que anteri­ormente estivera oculto dele, ou, seja, sua suprema autoridade em seu governo, ele agora acrescenta a segunda parte da visão: com o foi que o F ilho do hom em apareceu nas nuvens. Sem dúvida isso deve ser entendido como uma referência a Cristo, e os judeus, perversos como são, se envergonham de negá-lo, em­bora posteriormente divirjam sobre Cristo, M as o objetivo desta visão era capacitar os fiéis a esperar convictamente o Redentor prometido em seu tempo certo. Ele foi dotado com o poder celes­tial, e sentou-se à destra do Pai. D aí Daniel dizer: a ten te i bem nessas visões n o tu rnas. E tal reiteração de forma alguma é su­pérflua, como somos informados à luz da vigilância do profeta, quando Deus se mostra presente. Daniel expressa isso plenam en­te em suas própria palavras, pois ele se despertou assim que per­cebeu as questões importantes, raras e singulares que se lhe apre­sentam. Essa atenta disposição do profeta deve instigar-nos a ler sua profecia sem apatia e com mentes despertas solicitamente a derivar do céu genuína e sincera inteligência. Eu estava, pois, diz ele, atento às visões noturnas, e eis um com o F ilho de hom em . Já afirmei que esta passagem não pode ser vista de outra forma, senão como uma indicação de Cristo. Devemos então ver por que ele usa a palavra ‘com o’, ‘semelhante a’, um Filho de ho­mem; ou, seja, por que ele usa a letra D, ke, a qual denota seme­lhança. Isso pode ser torcido em favor da estultícia dos mani- queus que pensavam ser o corpo de Cristo apenas imaginário.

14 Pois OJJ, gnenu é nesta passagem tomado da Caldaica, como 3. be. Esse uso é costu­meiro; daí. “nas nuvens".

” Verbalmente, "fizeram-no aproximar-se” . O texto latino de t56I tem “eum " no finaldo versículo, e a tradução francesa o tem implícito.

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35a EXPOSIÇÃO [7.13]

Pois como torceram as palavras de Paulo e perverteram seu sen­tido, fazendo com que Cristo fosse em semelhança de homem [Fp 2.7], assim também podem usar mal o testemunho do profe­ta, quando não se diz ser Cristo um homem, mas simplesmente semelhante a homem. Com respeito às palavras de Paulo, ele não está falando da essência de sua natureza humana, mas somente de seu estado; pois ele está falando de Cristo que se fez homem, de sua condição humilde e abjeta, e até mesmo servil. Mas, na passagem que temos diante de nós, a razão é diferente. Pois o profeta diz: Ele lhe apareceu como um Filho de homem , quando Cristo ainda não havia tomado para si nossa carne. E é bom que observemos este dito de Paulo: Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher [GI 4.4], Cris­to, pois, começou a ser homem quando apareceu sobre a terra como Mediador, porquanto ele não assumira a semente de Abraão antes que se unisse a nós em união fraterna. Eis a razão por que o profeta não diz que Cristo se fez homem nesse período, mas ape­nas semelhante a homem; pois do contrário ele não teria sido aquele Messias outrora prometido sob a Lei como o filho de Abraão e de Davi. Pois se desde o princípio ele houvera se vesti­do da carne humana, então não teria nascido desses progenitores. Segue-se, pois, que Cristo não era homem desde o princípio, mas apenas apareceu na figura humana. Quando também Irineu18 diz: Este foi um 'prelúdio’, ele usa aquela palavra. Tertuliano tam­bém diz: “Então o filho de Deus vestiu-se de um espécimen de sua humanidade.” 19 Portanto, este foi um símbolo da futura carne de Cristo, mesmo quando tal carne ainda não existisse. Então vemos quão adequadamente essa figura se harmoniza com a coi­sa significada, na qual Cristo se manifestou como o Filho do ho­mem. em bora ele então fosse o eterno Verbo de Deus.

" A tradução latina de Irineu é "pncluditim" . A francesa tem aqui "une approche et eniree”. e então acrescenta: "Ele usa uma palavra que não podemos traduzir para o fran­cês." Ela significa um prefácio ou introdução.

As palavras de Tertuliano são: “Tunc prjeluxii Filus Dei humanitaie sua.”

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17.13] DANIEL

Em seguida temos: E le veio ao A ncião de dias. Isso, em m i­nha opinião, deve ser explicado como um a indicação da ascen­são de Cristo; pois ele então começou seu reinado, como transpa­rece de inumeráveis passagens bíblicas. Tampouco é esta passa­gem contrária ao que o profeta dissera previamente - ele viu o Filho do homem nas nuvens. Pois, com esta expressão, ele sim ­plesmente deseja ensinar como Cristo, em bora semelhante a um homem, todavia diferia de toda a raça humana e não partilhava da ordem comum dos homens, senão que excelia ao mundo intei­ro em dignidade. Ele expressa muito mais quando diz, na segun­da sentença: ele foi conduzido ao A ncião de dias. Pois ainda que a D ivina Majestade estivesse oculta em Cristo, todavia ele tomou sobre si o dever de um escravo e esvaziou-se, como diz Paulo [Fp 2.7]. Assim também lemos no primeiro capítulo de João [Jo 1.14] que a Glória manifestou-se nele como a do unigé­nito Filho de Deus; ou, seja, a qual pertence ao unigénito Filho de Deus. Cristo, pois, despiu-se assim de sua glória por algum tempo, e contudo, por meio de seus milagres, bem como de m ui­tas outras provas, ofereceu um claro e evidente espécimen de sua glória celestial. Ele realmente apareceu a Daniel nas nuvens, mas quando subiu ao céu então despiu-se de seu corpo mortal e assu­miu uma nova vida. Assim também Paulo, no capítulo 6 de Ro­manos, diz que ele vive a vida de Deus [v. 10]; e outras frases amiúde usadas por nosso Senhor mesmo concordam muito bem com isso, especialmente no Evangelho de João: “Eu vou para o Pai” ; “É conveniente que eu vá para o Pai, pois o Pai é maior do que eu” [16.7; 14.28]; ou, seja, é conveniente que eu suba para aquele tribunal régio o qual o Pai erigiu para mim por seu eterno conselho, e assim o mundo inteiro saberá que o supremo poder me foi confiado. Agora, pois, entendemos o pleno sentido das palavras do profeta.

Visto, porém, que muitos fanáticos torcem o que foi dito pela pessoa do Mediador, como se Cristo não fosse o verdadeiro Deus,

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35* EXPOSIÇÃO [7.13]

mas que tivesse origem no Pai em algum período de tempo, é mister que observemos como a expressão do profeta se adequa não à natureza humana, nem à natureza divina de Cristo, propri­amente falando, mas um M ediador é aqui posto diante de nós que é Deus manifestado em carne. Pois se mantivermos o princípio de que Cristo nos é descrito, não como o Verbo de Deus, nem como a semente de Abraão, mas como o Mediador, ou, seja, o Deus eterno que se dispôs a tornar-se homem, tom ar-se sujeito a Deus o Pai, ser como um de nós e ser nosso Advogado, então não restará dificuldade alguma. Assim ele apareceu a Daniel como o Filho do homem, que posteriormente tornou-se verdadeira e real­mente como tal. Ele foi visto nas nuvens, ou, seja, separado da sorte comum da humanidade, como sempre portou em si algu­mas marcas da Deidade, mesmo em sua humilhação. E le então se ap rox im a do A ncião de dias, ou, seja, ao subir ao céu, visto que sua divina majestade foi então revelada. D aí ele dizer: É-lhes conveniente que eu vá para o Pai, porque o Pai é maior do que eu [Jo 14.28]. Cristo aqui não subtrai nada de sua Deidade, porém, como sua natureza não era conhecida no mundo, enquanto sua divina majestade esteve oculta na forma de um servo, ele chama o Pai simplesmente Deus; como se quisesse dizer: Se eu perm a­necer convosco na terra, o que a presença de minha carne vos aproveitará? Quando, porém, eu subir para o céu, então aquela unicidade que tenho com o Pai se fará claramente manifesta. Quando, pois, o mundo entender que eu sou um com o Pai, e que a Deidade é una, a esperança de todos os santos se fará mais sólida e invencível contra todas as tentações; pois por si mesmos saberão estar igualmente sob a proteção tanto de Deus quanto do homem. Se, pois, Cristo permanecesse para sempre habitando na terra, e testificasse milhares de vezes como nos sendo dado por seu Pai como o guardião de nossa salvação, todavia teria havido alguma hesitação e ansiedade. Quando, porém, sabemos que ele está sentado à destra do Pai, e quando sabemos ser ele verdadei­ramente Deus, todos os joelhos não se dobrariam diante dele a

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[7.14] DANIEL

menos que ele fosse o Deus eterno. Tenhamos em mente aquela passagem de Isaías [42.8]: “Eu sou o Senhor; este é meu nome; minha glória, pois. não a darei a outrem, nem meu louvor às im a­gens de escultura.” Como, pois, a glória de Deus jam ais poderá ser transferida para um homem nem para qualquer outra criatura, a verdadeira unidade e natureza de Deus necessariamente res­plandecem na natureza humana de Cristo para que todo joelho se dobre diante dele. Agora, pois, entendemos o sentido no qual o profeta diz que Cristo apareceu como o Filho do homem, ou, seja, semelhante a um homem, apresentando-se diante do A n ­cião de dias. Porque, depois que Cristo enfrentou o período de seu auto-aviltamento, segundo Paulo [Fp 2.7], ele subiu ao céu e foi-lhe concedido domínio, como o profeta diz no versículo se­guinte. Esta passagem, pois, sem a menor sombra de dúvida, deve ser visualizada como uma indicação da ascensão de Cristo, as­sim que ele deixou de ser um homem mortal. Diz ele: Ele a p re ­sentou-se d ian te de Deus, ou, seja, tomou assento a sua destra. E prossegue:

14 E ali foi-lhe dado dom ínio, e g lória , e 14 Et ei dala fuii potestas, e t gloria , vel,um reino, para que todos os povos, na- decus. e t regnum ; et om nes populi, natio-ções e línguas o servissem . Seu dom ínio nes, e t lin g u a ei servient: potestas ejusé dom ínio eterno, que jam ais cessará; e potestas seculi. leierna, quse non aufere-seu re ino jam ais será destruído. tur, e t regnum ejus non corrum petur.“

O profeta confirma e explica mais claramente, neste versícu­lo, o que dissera no anterior. Pois podemos extrair dele como o personagem previamente mencionado chegou ao Ancião de dias, que é Deus, ou, seja, em virtude do poder que lhe fo i dado. Pois ainda que Cristo realmente subisse ao céu [Mt 28.18], todavia devemos evidentemente considerar seu propósito em agir assim. Foi para granjear o supremo poder no céu e na terra, como ele mesmo afirma. E Paulo também faz menção desse propósito no primeiro e segundo capítulos de Efésios [1.21; 2.7], Cristo dei-

’ Ou. n lo será abolido.

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35a EXPOSIÇÃO [7.14]

xou o mundo e partiu para o Pai; primeiro, para subjugar a si mesmo todas as potestades e recompensar os anjos obedientes; em seguida, restringir o diabo e proteger e preservar a Igreja com seu auxílio, bem como todos os eleitos de Deus o Pai. Assim, pois, Daniel agora avança com o que anteriormente disse sobre a aproximação de Cristo a Deus. E assim é refutada a loucura da­queles que argumentam contra ser Cristo o verdadeiro e eterno Deus, porquanto diz-se ter ele chegado ao Ancião de dias. Pri­meiramente. como já dissemos, isso subentende a pessoa do M ediador, em seguida, toda dúvida é removida quando o profeta acrescenta: foi-lhe dado poder. Aqui temos, portanto, certa me­dida de explicação. Não queremos dizer que o mesmo lhe foi concedido com relação a sua existência e em ser ele chamado Deus. Foi-lhe dado em seu papel de M ediador, como Deus mani­festado na carne, e com respeito a sua natureza humana. Obser­vamos que todas essas coisas se harmonizam muito bem, quando o profeta diz aqui: Proeminente poder fo i dado a Cristo. Portan­to, devemos manter sua referência a essa manifestação, porque Cristo foi desde o princípio a vida dos homens, o mundo foi cri­ado por ele e sua energia sempre o sustentou [Jo 1.4]; mas foi-lhe dado poder para informar-nos como Deus reinou por meio de sua mão. Se nos fosse requerido que buscássemos a Deus sem um M ediador, sua distância seria incomensurável; mas quando o M ediador nos encontra e se nos oferece em nossa própria nature­za humana, tal é a proximidade entre Deus e nós que nossa fé facilmente avança para além do mundo e penetra os próprios céus. Por essa razão, pois, todo poder, h o n ra e reino foi dado a Cris­to. E acrescenta também: todas as nações o serv irão , ou, seja, podem servi-lo; pois a cópula deve ser traduzida assim: Q ue to ­das as nações, povos e línguas o sirvam . Já mostramos como isso deve ser propriamente entendido como indicação do início do reino de Cristo, e não deve ser conectado com sua conclusão final, como muitos intérpretes forçam e restringem a passagem.

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[7.14] DANIEL

Entrementes, devemos acrescentar que os eventos que o profeta aqui narra não estão ainda completos; mas isso deve ser familiar a todos os santos, pois sempre que se trata do reino de Cristo, sua glória é magnificentemente enaltecida, como se estivesse agora absolutamente completa em todas suas partes. Não surpreende se, segundo o uso freqüente e perpétuo da Escritura, o profeta dissesse poder fo i dado a Cristo para ele subjugar a si todos os povos, nações e línguas, como se expressa o Salmo 110.1: “Dis­se Jehovah a meu Senhor: Assenta-te a minha direita até que eu faça de teus inimigos estrado de teus pés.” Vemos, pois, como Cristo foi exaltado a seu próprio império com o fim de governar sua igreja no nome e no poder de seu Pai, enquanto, ao mesmo tempo, muitos inimigos levantam-se contra ele. A obstinação do diabo e de todos os ímpios ainda continua, em bora Cristo gover­ne céu e terra e seja o supremo rei diante de quem todo joelho há de dobrar-se. Também sabemos quão marcante diferença existe entre o com eço de seu reino e sua consumação final. Seja qual for o significado, esta visão se adequa muito bem às muitas asse- verações de Cristo, nas quais ele testifica do poder que lhe foi dado pelo Pai [Mt 28.18 e outras partes]. Ele não fala aqui do ju ízo final, mas simplesmente nos instrui sobre o objetivo de sua ascensão ao céu.

O profeta confirma este ponto de vista, dizendo: seu dom ínio é dom ínio e terno , o qual ja m a is será rem ovido, e seu reino jam ais p o d erá se r abolido. Pois, com estas palavras, ele ensina de modo familiar e franco por que Cristo é o Rei supremo, isto é: para o perpétuo governo de sua Igreja neste mundo. Precisamos erguer os olhos para o céu, em cada realização, sempre que o estado da Igreja estiver em consideração, visto que sua felicidade não é terrena, nem perecível, nem temporária, ainda que tudo o que é terreno seja sólido ou perpétuo. Mas quando o profeta diz que o domínio de Cristo é eterno, ele indubitavelmente tem em m ente a perene duração de sua monarquia até o fim do mundo.

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35* EXPOSIÇÃO [7.15, 16]

quando então congregará seu povo para uma vida feliz e uma herança eterna. Portanto, em bora a imortalidade celestial esteja compreendida sob essas palavras, todavia, numa passagem ante­rior, o profeta realçou a perpétua existência da Igreja neste mun­do, porque Cristo a defenderá, ainda que esteja diariamente su­je ita a infindas causas de destruição. E quem não asseveraria o quase perecimento diário da Igreja, se Deus prodigiosamente não a preservasse pela mão de seu unigénito Filho? Daí ser correto entender a frase: Seu reino será o reino e terno . E assim recebe­mos uma consolação não corriqueira, quando vemos a Igreja agi­tada em meio a várias flutuações e quase sepultada e devorada por contínuos naufrágios, no entanto Cristo está sempre esten- dendo-lhe suas mãos e preservando-a e salvando-a de todas as dolorosas e horríveis espécies de destruição. Então prossegue:

15 Eu. D aniel, fiquei angustiado em meu 15 Succisus fuii spiritus m eus m ihi Dani-espírito no âm ago de meu corpo, e as vi- e li,!l in m edio corporis.” e t v isiones ca­sões de m inha cabeça m e atribulavam . pitis mei terruerunt me.

16 C heguei-m e a um dos que estavam 16 A ccessi ad unum ex his qui aderant, etperto e lhe pedi a verdade de tudo isso. E sciscitatus sum ex eo veritatem super hise le me falou e m e fez saber a interpreta- om nibus: et d ix it m ihi, e t enarrationemção das coisas. serm onum patefect mihi.

Daniel afirma que seu espírito estava ou eliminado ou des­vanecido, como se ele estivesse sofrendo de alguma deficiência mental. Dessa forma Deus desejava com unicar a seu servo a magnitude da visão. E ele nos inspira também com reverência por essa visão, a fim de não a tratarmos com tibiez e como algo corriqueiro. Devemos, porém, entender como Deus abre a Dani­el, seu servo, e a nós por meio de sua assistência e ministério, esses mistérios que não poderiam de outra form a ser compreen­didos por nossos sentidos humanos. Pois se Daniel, que sabemos ter sido um profeta extraordinário, sentiu em seu espírito tanta

11 Ou desvanecido, ou meu espírito estava faltando a mim, Daniel.Ou “invólucro", propriamente; aqui, porém, esse substantivo é transferido metaforica­

mente para o corpo. Aben-Ezra chama o corpo “o invólucro” da mente.

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[7.15, 16] DANIEL

deficiência e à beira do desfalecimento, seguramente nós, que conhecemos ainda tão pouco dos mistérios de Deus, sim, que raramente experimentamos seus rudimentos mais elementares, nunca podemos atingir tão grande altitude, a menos que vença­mos o mundo e nos desvencilhemos de todas as sensações huma­nas. Porquanto essas coisas não podem ser percebidas por nós, a menos que nossa mente seja límpida e completamente purificada.

Portanto, ele diz em primeiro lugar que m eu esp írito estava suprim ido , ou desfalecido, no âm ago de m eu corpo; como se quisesse dizer que estava quase sem vida e bem próximo da m or­te. E acrescenta, como razão: as visões de m inha cabeça m e a trib u lav am . Ninguém pode desfalecer - fato esse que às vezes sucede - sem bom motivo. Quando o terror chamado pânico se apodera das pessoas, observamos como se tom am privadas do autocontrole e ficam como que inânimes. Daniel, porém, se reve­lou distinto de tais pessoas, dizendo que ficara angustiado ou per­turbado pelas visões de sua cabeça; como se quisesse dizer que sua perturbação não era sem causa, mas que fora causada pelo mistério do qual a visão lhe fora apresentada. Ele chegou a um dos que estavam perto . Ele dissera um pouco antes que dez mil vezes dez mil estavam à destra do tribunal de Deus. Sem a menor sombra de dúvida, o pedido do profeta foi dirigido a um desses anjos. E aqui devemos observar sua modéstia e docilidade em buscar alguém para instrução, visto que estava cônscio de sua própria ignorância, e não encontrava nenhum outro remédio. Ao mesmo tempo, somos instruídos pelo exemplo do profeta a não rejeitar todas as visões, mas a buscar sua interpretação em Deus mesmo. Ainda que Deus atualmente não nos fale por meio de visões, todavia ele quer que nos contentemos com sua Lei e com o Evangelho, enquanto anjos não se nos manifestarem e pública e claramente não descerem do céu; visto, porém, que a Escritura nos é obscura, em decorrência das trevas que nos envolvem, apren­damos a não rejeitar aquilo que vai além de nossa capacidade,

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35* EXPOSIÇÃO [7.15, 161

ainda quando algum véu escuro a envolva, mas corramos para o remédio que Daniel usava, não buscando em anjos a com preen­são da palavra de Deus, os quais não nos aparecem, mas de Cris­to mesmo, o qual atualmente nos ensina familiarmente pela ins- trumentalidade de pastores e ministros do evangelho. Ora, como nos foi dado um supremo e único Mestre da parte do Pai, assim também ele exerce o ofício de mestre por meio de seus próprios ministros a quem ele pôs sobre nós [Mt 23.8,10]. Portanto, visto que Daniel aproximou-se do anjo que se encontrava perto dele, assim se nos ordena diariamente a aproximarmo-nos daqueles que têm sido dotados com o dom da interpretação e que podem fielmente explicar-nos coisas que de outra forma permaneceriam obscuras. Nossa confiança, também, precisa ser aumentada pelo que diretamente vem a seguir: O an jo falou e esclareceu a in ­te rp re tação das palav ras. Daniel aqui dem onstra que sua mo­déstia e humildade não foram em vão, ao ordenar Deus que o anjo lhe explicasse tudo quanto era obscuro. Assim, sem dúvida, Cristo hoje atende nossas orações, caso sejamos realmente seus discípulos; ou, seja, se, depois que os mistérios que ultrapassam e absorvem todo nosso senso, nos tiverem terrificado, corramos para aquela ordem que nos foi prescrita, e busquemos ser fiéis ministros e mestres na interpretação daquelas coisas que são difí­ceis e obscuras, as quais se nos acham totalmente ocultas.

ORAÇÃO

D eus O nipotente, v is to que a f é dos p a is esteve envo lta p o r som bras en igm áticas, p e la s qua is qu iseste que e la fo s s e nu tr ida , a té que teu F ilho m a n ifes tam en te se nos revelasse n a carne, oro a ti p a ra que hoje , d ep o is que ele se n o s m an ifestou co m o o m e lh o r e m a is p erfe ito M estre e n o s exp lico u teus co n se lh o s d e fo r m a tã o fam iliar , concede- n os que n ã o se ja m o s tão estú p id o s nem tã o d isp licen tes ao p o n to de p erm itires que esca p e d e nossa apreensão a im ensa c la reza e a m a n i­fe s ta ç ã o que no s o fereces no evangelho . Q ue se ja m o s a ss im en ca m i­nhados à vida eterna, a té a p ó s a concre tização do curso d e nossa p re sen te vida e a rem oção d e todos o s obstácu lo s que S a ta n á s põe

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DAN IEL

em n o sso cam inho, em b araçando -nos ou fa ze n d o -n o s desviar, p o s­sam os, p o r f im , a lca n ça r o d esfru to d a q u e la bem -a ven tu ra d a v id a na q u a l C risto , teu u n igén ito F ilho, nos an tecipou . E ass im se jam os co -herdeiro s co m ele: e co m o o d esig n a ste ún ico herdeiro, a ss im ele no s congregue p a ra a in fa líve l h era n ça d e u m a ben d ita im o rta lid a ­de. A m ém .

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36ag.xposição

17 Estes g randes anim ais, que são qua- 17 Hæ bestiæ m agnæ quas vidisti quatuor,tro, são quatro reis que subirão da terra. sunt quatuor régna, quœ exsurgent e terra.18 M as os santos altíssim os receberão o 18 Et sortientur, obtinebunl, regnum sanc-reino e possuirão o re ino para sem pre, e torum xcelsorum : e t possidebunt regnumde eternidade a eternidade. usque in seculum , e t usque in seculum

seculorum .

Aqui o anjo dá resposta a Daniel no que se refere aos quatro animais que lhe foram mostrados na visão. Portanto, diz ele: s u r ­g iram q u a tro reinos, e pela designação reino ele tem em mente monarquia; pois sabemos que os persas tinham muitos reis até Alexandre transferir para si o império do Oriente. Embora Ciro tivesse sete ou oito sucessores, todavia o império persa conti­nuou através de todos eles. E, como vimos antes, em bora tudo o que Alexandre adquirira através de seus exércitos fosse dividido entre seus quatro sucessores, contudo ainda restou o reino mace- dônio. O mesmo se deve dizer acerca do quarto reino. Embora saibamos que foram criados cônsules na Roma mais antiga, to­davia aquele governo durou até que Júlio César o destruiu e con­sumiu a resistência do império, de modo a exceder com seu po­der a esplêndida altitude que por muito tempo e amplamente foi conspícua no mundo. D aí responder o anjo: quatro reinos são denotados pelos quatro animais; diz ele: levantarão; e no entan­to o caldaico surgira há muito tempo, e estava agora à beira de um colapso sob Belsazar. Mas o propósito do anjo era instruir o profeta e a todo o povo que não havia razão para as revoluções os deixarem tão perturbados. Os israelitas, pois, se viram prostra­

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[7.17, 18) DANIEL

dos como mortos; sim, realmente sepultados e escondidos sob a terra. Pois o exílio era para eles equivalente a túmulo. Por essa razão, pois, o anjo anuncia o surgimento de quatro reinos, en­quanto o primeiro era então florescente; mas, como eu já disse, isso se adequa muito bem ao escopo e objetivo da profecia. Ele anteriormente dissera: do mar, porém a palavra ‘m ar’ é usada metaforicamente, visto a condição da terra ser sempre turbulenta ao longo das eras. Portanto, como nada era estável. Deus, apro­priadamente, apresenta o mundo inteiro sob a figura do mar. Em seguida ele acrescenta: receberão o reino dos santos altíssim os. Neste ponto, os intérpretes se divergem consideravelmente, por­que, como já expliquei previamente, alguns tomam esta profecia em referência ao reino da Turquia; outros, à tirania do papa de Roma, e estendem ao juízo final o que o profeta aqui diz. Não há, pois, nada de surpreendente nessa diversidade de opinião, reve­lando-se mais plenamente nos diversos detalhes. Pela expressão os santos alguns entendem os anjos; mas resta ainda m uita con­trovérsia acerca de palavras, pois o substantivo santos é ‘em re­gência’ , como se o profeta, propriamente dito, dissesse os santos dos altos.23 Passagens afins justificam os que as tomam “no esta­do absoluto” . Mas se seguirmos a construção gramatical, não podemos explicá-la de outra forma; o primeiro substantivo, po­rém, pode ser expresso num estado de regência, como já disse­mos. Eu, de minha parte, abraço esta opinião. Há quem a atribui ao único Deus, mas creio que essa é uma forma profana de ex­pressão. Não tenho dúvida de que o profeta tem em mente os filhos de Deus como sendo os santos altíssimos, porque, embora sejam peregrinos no mundo, contudo elevam suas mentes para além e têm consciência de que são cidadãos do reino celestial. Daí, pelo termo ■prrVl?, gnelionin, ‘altíssimos’, não tenho dúvi-

25 O latim. aqui. se refere à construção hebraica. A tradução francesa tem expresso o significado de Calvino sem manter estrita às palavras. Les saincts des souverain.s é a reda­ção francesa da regência hebraica.

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36* EXPOSIÇÃO [7.17, 18]

da de que o profeta tem em mente os poderes celestiais; ou, seja, tudo quanto podemos conceber da divindade e tudo quanto é exal­tado acima do mundo. Agora apresentarei brevemente minhas razões por que aprecio este sentido como sendo o melhor.

Se entendermos os altíssimos como sendo o próprio Deus, que sentido iremos extrair da passagem? Teriam os caldeus e o restante das monarquias usurpado e transferido para si o poder de Deus? Há alguma verdade nisso, porque todo aquele que domina sem admitir o Deus único o usurpa de sua honra peculiar, e são antes ladrões do que reis. O profeta, porém, em minha opinião, entendeu algo mais do que disse o anjo, a saber, que a Igreja perderia toda forma e dignidade no mundo durante a expansão dessas quatro monarquias. Sabemos que os filhos de Deus são herdeiros do mundo; e Paulo, ao falar da promessa feita a Abraão, diz que ele foi escolhido por Deus como herdeiro do mundo (Rm 4.13: Hb 1.2). E esta doutrina é suficientemente conhecida - o mundo foi criado no interesse da raça humana. Quando Adão apostatou de seus direitos legais, toda sua posteridade ficou alie­nada; Deus os privou da herança que lhes fora designada. Agora, pois, nossa herança tem de ser restaurada através de Cristo, por cuja razão é ele chamado o único herdeiro do mundo. E assim não surpreende que o anjo diga que os tiranos, quando exercem o domínio supremo, assumem e arrogam para si a propriedade pe­culiar dos santos altíssimos, significando o povo de Deus. E isso se adequa muito bem às asseverações da presente passagem con­cernente à Igreja ao ser privada de sua dignidade, em inência e visibilidade no mundo. Porque então o povo de Deus se asseme­lhava a uma carcaça pútrida, cujos membros eram desmem bra­dos e dispersos em todas as direções, sem qualquer esperança de restauração. Por fim, ainda que por permissão de Dario e pelo édito e liberalidade de Ciro alguma porção deles regressou a seu país, todavia o que era tal regresso nominal? Não tinham senão uma precária prevalecência na herança a eles divinamente pro­

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17.17, 18] DANIEL

metida; eram oprimidos de todos os lados por seus inimigos e estavam sujeitos à luxúria e injustiça de todos eles. Pois a Igreja não desfrutou de liberdade sob o império persa. Depois da tercei­ra mudança, sabemos quão miseravelmente foram afligidos, es­pecialmente sob Antíoco. Aquela nação foi sempre sua algoz, porém então estavam quase reduzidos a extremos, quando Antí­oco empreendeu furiosamente abolir toda a lei e o culto de Deus. Sob o reino macedônio, os judeus estiveram em constante servi­dão; mas quando o exército romano adentrou aquelas regiões, sentiram a terrível tirania do quarto animal, como já vimos. Fi­nalmente, é bastante evidente, à luz da história contínua daqueles tempos, que os filhos de Deus estavam sempre debaixo de jugo e eram tratados não só cruelmente, mas também ignominiosamente.

E assim esta profecia se cumpriu, a saber: os quatro animais tomaram para si o império que propriamente pertencia aos san­tos das alturas; ou, seja, aos filhos eleitos de Deus, os quais, ainda que habitantes da terra, são dependentes do céu. Não vejo nesta interpretação nada que seja forçado, e quem quer que pru­dentemente pese a matéria, espero eu, reconhecerá que de fato penetrei a intenção do profeta. Agora segue a sentença final: re ­ceberão o reino, diz ele, p a ra sem pre, de e te rn id ad e a e te rn i­dade. Suscita-se aqui uma questão difícil, visto que, pelas pala­vras de Daniel, ou do anjo a dirigir-se-lhe, parece expressar uma condição perpétua sob essas quatro monarquias. Belsazar fora o último rei da dinastia babilónica, e no período desta visão já se divisava a ruína dessa monarquia. Com respeito aos reis persas, houve apenas oito deles além de Ciro. E concernente a A lexan­dre, sabemos que aconteceu um a mudança súbita; o terror que ele infligiu disseminou-se por toda parte como uma tormenta, mas se desvaneceu assim que afetou todos os povos do Oriente. O reino macedônio também sofreu um a concussão, quando aque­les líderes começaram a discentir entre si quem havia herdado de Alexandre a autoridade e supremacia; e por fim o reino dividiu-

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36* EXPOSIÇÃO [7.17, 18]

se em quatro, como já observamos, e disso se fará menção nova­mente. Ora, se contarmos os anos, a extensão dessas monarquias não foi tão grande que justifique o epíteto ‘perpétuo’. Respondo: isso deve referir-se às sensações que sentem os santos, para quem essa delonga parecia especialmente tediosa, de modo que elas eram dolorosamente penetrantes em sua miséria, não houvera esta profecia de alguma form a a mitigado. Vemos no presente mo­mento quão grande é o ardor do desejo quando se faz referência ao socorro divino; e quando nossa mente é dominada por tal de­sejo, imediatamente ela se deixa dominar pela impaciência. As­sim sucede que as promessas de Deus não são suficientes para sustentar-nos, porque nada é mais difícil do que enfrentar uma delongada espera. Pois se a Igreja de nosso tempo for oprimida por cem anos, que constância se discerniria em nós? Se surge um torvelinho, caímos em perplexidade e gritamos: “O que virá em seguida?” Três ou quatro meses não terão expirado sem que to­dos os homens se ponham a discutir com Deus e a protestar con­tra ele, só porque ele não se apressa de vez em dar assistência a sua Igreja. Não fiquemos surpresos, pois, quando o anjo aqui designa um tempo, ou, ainda, “de eternidade a eternidade”, aos tiranos sob quem a Igreja seria oprimida. Posto que eu não duvi­de que a referência seja à plenitude dos tempos, como sabemos ter Cristo sido o fim da Lei e como seu advento se aproximava, assim Deus admoestou os fiéis a transportarem suas próprias ex­pectativas para o advento de seu Redentor. Portanto, quando o anjo usa a frase um tem po e de e tern idade a e te rn idade , não tenho dúvida de que ele definia o tempo para os eleitos, a fim de fortalecê-los a pacientemente suportarem provações de todos os tipos, segundo divinamente decretado; pois os quatro animais de­veriam reinar não por uns poucos anos, mas por eras contínuas; ou, seja, até o tempo em que a renovação houvesse chegado para o mundo, quando Deus restauraria completamente sua Igreja. Avancemos mais:

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19 E ntão eu quis conhecer a verdade a 19 Tunc optavi ad veritatem :J de bestiarespeito do quarto anim al, o qual era d i- quarta, quse erat d iv rsa ab om nibus aliis.ferente de todos os outros, excessivam ente terribilis valdc, cujus den tes erartt ferri,terrível, cu jos dentes eram de ferro e suas ferrei, et ungues x r is , terei, com edens etunhas, de bronze: o qual devorava, fazia conterens, e t residuum pedibus su is con-em pedaços e pisava com seus pés o q ue culcans.sobrava;20 E a respeito dos dez chifres q u e ja /.i- 20 E t super com ibus decem , de com ibusam em sua cabeça, e do outro que subia. decem, quíe eram in capite ejus, e t de pos-diante do qual os três caíram ; ainda da- trem o quod surgebat, e t quod ceciderant quele ch ifre que tinha olhos e um a boca ex prioribus tria: e t quod com u illi eramque proferia grandes coisas, cu ja aparên- oculi, e t os loquens grandia: e t aspectuscia era m ais robusta que a de seus com - e jus m agnus prse cociis.25panheiros.

Aqui o profeta interroga o anjo acerca do Quarto Animal, mais atenta e cuidadosamente; como anteriormente o vimos tocado por profunda admiração ao divisar o animal que era formidável acima dos outros três, de modo que nem um nome nem descrição se podia encontrar para ele. Visto, pois, que Deus exibia algo grande sob a imagem do quarto animal, ele levou seu profeta a despertar-se para entender o mistério dele [o animal]. Por essa razão ele agora interroga o anjo; pois afirm a que queria saber a verdade concernente ao quarto animal, e também repete o que vimos antes, a saber: ele e ra d iferen te dos outros. E seguramen­te a sujeição de tantos reis ao império romano era um a diferença digna de nota. Pensemos na origem daquela nação - uns poucos assaltantes apoderaram-se de uma parte do deserto, desenvolvendo grande e brutal audácia e força, até que reduziram todos seus vizinhos a seus vassalos. Então cruzaram o mar e sob seu domí­nio juntaram um a província, e depois outra. E quando o reino de M acedônia foi posto sob seu poder, isso foi deveras algo porten­toso. Por fim tornaram-se senhores de todo o circuito do M edi­terrâneo, e não havia canto que não aceitava seu jugo; e isso ja ­mais poderia ser imaginado pela mente humana.

[7.19, 20] DANIEL

:J Esta palavra, lO X '1?. litzía, geralmente é explicada no sentido de "para a verdade", ou seja. desejo saber. A Vulgaia traz "diligentius discere". Wintle: "acurada informação.''

Ou. seja, “ além dos outros animais.”

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36a EXPOSIÇÃO {7.19, 20J

Então foi dito: este anim al era diferente dos outros, e e ra te rrível. No mesmo sentido, seus dentes foram denominados de ferro , e suas unhas, de bronze. Até aqui não se havia feito m en­ção das unhas. O profeta falara somente dos dentes de ferro, mas agora adiciona unhas de bronze, como se dissesse: Este animal será dotado de tal dem ência selvagem, ao ponto não só de atacar todas as coisas com sua inusitada violência, mas também de ras­gar, lacerar e devorar todas as coisas, ao reiterar ele um a vez mais o que dissera: comendo e destruindo e pisando com seus pés o que sobrava. Como já expliquei todos os pontos, não tenho disposição de consumir debalde o tempo do leitor e confundi-lo com repetições inúteis. Tam bém pergunte i, disse ele, acerca dos dez chifres que jaz iam em sua cabeça. E essa é a razão por que abrevio o tema neste ponto, visto que o anjo dará sua respos­ta diretamente. O profeta, pois, cede agora, sem dúvida, a um impulso celestial, visto que Deus estava dispondo-se a instruir a ele só como uma pessoa privativa; ele tinha de ser um a testemu­nha e arauto de tão incomensurável mistério; e podemos em nos­sos dias aprender à luz desses escritos que devemos fazer o m á­ximo uso deles, para nós, ao nos tomarmos plenamente familia­rizados com eles.

Portanto, diz ainda: E le tam bém in q u iriu ace rca dos dez chifres que ja z iam sobre a cabeça do an im al, bem com o do o u tro ch ifre que surg iu , indicando o pequeno, e acerca dos três chifres caindo do rosto do anim al. Já indicamos como as pro­víncias eram denotadas pelos dez chifres, e como se realçava a diferença entre o império romano e as demais monarquias, por­que jam ais houve um governo supremo em Roma, exceto quan­do Sylla e M arius exerceram sua autoridade usurpada - porém cada um deles só por pouco tempo. Aqui, pois, o estado contínuo do império romano está em revista, pois ele não era simplesmen­te um animal singular enquanto tinha dez chifres. Um número finito é substituído por um infinito. Com respeito ao pequeno

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chifre, eu disse que ele aponta para os Césares, os quais conquis­tam para si todo o govemo do estado, depois de privar o povo de sua liberdade e o senado de seu poder, enquanto ainda sob seu domínio alguma dignidade se mantinha no senado e alguma m a­jestade retida pelo povo. Já explicamos também como os três chifres falavam; ou, seja, quão astutamente os Césares infringi­am e apoucavam a força tanto do povo quanto do senado. Por fim, já explicamos este pequeno chifre sendo exibido com olhos humanos, um a vez que os Césares exerciam seu domínio com astúcia, ao pretenderem ser apenas tribunos do povo e permitiam que as insígnias do império ficassem nas mãos dos cônsules; pois quando adentravam o senado, sentavam-se numa posição secun­dária em assentos da mais alta dignidade preparados para os tri­bunos. Portanto, visto que tiranizavam com sagacidade e dolo, e não com violência pública, diz-se ser o mesmo dotado com olhos humanos. Então, no tocante à língua, o sentido é o mesmo; pois ainda que professassem sempre que o poder consular era supre­mo no estado, todavia não conseguiam restringir-se, senão que vomitavam uma infindável verbosidade vituperativa. Por um lado, vemo-los como notáveis por seus olhos; e, por outro, por sua língua. E seu aspecto e ra te rrív e l acim a de seus com panhei­ros. Isso não parece um a peculiaridade pertencente ao pequeno chifre que se ergueu entre os dez, mas, antes, ao quarto animal. Se alguém, porém, deseja entendê-lo como indicativo do peque­no chifre, não faço questão, visto que o mesmo denota um senti­do tolerável. Eu, porém, ao contrário, mantenho m inha opinião anterior, pois não surpreende encontrar o profeta, depois de seu discurso sobre o pequeno chifre, volvendo-se para o animal pro­priamente dito.

21 Eu O lhava, e o m esm o chifre fez g u er- 21 Vidi, e t c o m u illud faciebat p ra liu m ra c o n tra os santos, e prevaleceu con tra cura sanctis, et przevalu it illis.eles;22 A té que veio o A ncião dc dias e se 2 2 D o n ec venit A n tiq u u sd ie ru m .e tju d i- estabeleceu o ju íz o e ra prol do s santos do c ium datum es t san c tis exce lso ru m , c l

[7.21,22] DANIEL

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A ltíssim o; e chegou o lem po em que os venil tem pus, et regnum accepeaint sancli. santos possuíram o reino.

O profeta agora acrescenta o que havia omitido. O anjo nem lhe havia ainda respondido, porém, como não havia expresso su­ficientemente como o pequeno chifre deflagrara guerra contra os filhos de Deus, ele então preenche a omissão. Portanto, ele diz que olhou - isso deve ser recebido à guisa de correção; E u olhei, diz ele, o significado me foi mostrado numa visão, como o pe­queno chifre fez g u e rra co n tra os san tos ao pon to de p revale­cer co n tra eles. Evidentemente, muitos outros tiranos assalta­ram o povo eleito de Deus com injúrias ainda maiores. D aí mui­tos aplicarem isso a Antíoco Epífanes, que era hostil em relação aos judeus mais do que em relação aos outros, e estava totalmen­te determinado a apagar de Israel o nome do Deus. E sabemos quão amiúde ele suscitava poderosos armamentos com o fim de extinguir tanto o povo quanto o culto devido a Deus. Portanto, visto que a crueldade de Antíoco era tão severa contra os israeli­tas, muitos crêem que sua imagem fosse exibida pelo profeta como um pequeno chifre, e o que mais adiante veremos sobre ‘tem po’, ‘tem pos’ e ‘metade de um tem po’, explicam como indicativo dos três anos e meio durante o qual o templo ficou em ruínas, e o povo com isso ficou privado de oferecer sacrifícios. Portanto, visto que sua religião foi então interrompida, acreditam que a tirania estava implícita, pela qual o povo foi proibido de testifi­car sua piedade. Ainda, porém, que essa opinião seja plausível, e à primeira vista tem toda a aparência de veracidade, todavia, se pesarmos todas as coisas em ordem, podemos facilmente julgar que não se encaixa na figura de Antíoco. Portanto, por que o profeta diz: o pequeno chifre deflagrou guerra contra os santos? Certamente Antíoco fez guerra contra a Igreja, e assim fizeram muitos outros; os egípcios, bem o sabemos, com freqüência der­rubou e espoliou o templo, e bem assim os romanos, antes da monarquia dos Césares. Eis minha resposta: isso se expressa com ­parativamente, porque nunca se efetuou guerras com tanta assi-

36* EXPOSIÇÃO [7.21,22]

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[7.21, 22] DANIEL

duidade e aplicabilidade contra a Igreja como as que ocorreram depois que os Césares surgiram no cenário da história, e depois que Cristo se manifestou ao mundo; pois o diabo estava então mais engajado e Deus também afrouxou as rédeas para provar a paciência de seu povo. Por último, era natural que os mais amar­gos conflitos se irrompessem quando a redenção do mundo fosse efetuada; e o evento claramente o demonstra. Sabemos, antes de tudo, através de hórridos exemplos, como a Judéia ficou devasta­da, pois nunca se praticou tal crueldade contra qualquer outro povo. Tampouco a calamidade era de pouca duração; estamos bem familiarizados com sua extrema obstinação, a qual com pe­lia seus inimigos a ignorar completamente a clemência. Pois os romanos desejavam poupá-los o quanto possível, porém tão gran­de era sua obstinação e a demência de sua raiva, que provocavam seus inimigos como a devotá-los à destruição, até que ocorreu medonha carnificina, da qual a história nos tem suficientemente informado. Quando Tito, sob os auspícios de seu pai Vespasiano, tomou e destruiu a cidade, os judeus foram apunhalados e mortos como reses por toda a extensa Ásia. Até este ponto, pois, diz respeito aos judeus.

Quando Deus inseriu o corpo dos gentios em sua Igreja, a crueldade dos Césares abrangeu todos os cristãos; assim o pe­queno chifre deflagrou guerra contra os santos de um a maneira distinta daquela dos primeiros animais, porque a ocasião era dis­tinta, e a ira de Satanás foi incitada contra todos os filhos de Deus em virtude da manifestação de Cristo. Esta, pois, é a m elhor ex­plicação de o pequeno chifre deflagrou guerra contra os santos. E assim diz ele: e prevaleceria. Pois os Césares e todos os que governavam as províncias do império se enraiveceram com tão extrem a violência contra a Igreja, que ela quase desapareceu da face da terra. E assim aconteceu que o pequeno chifre prevaleceu na aparência e na opinião geral, quando, por pouco tempo, a se­gurança da Igreja foi quase posta a pique.

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3 6 ' EXPOSIÇÃO [7.21,22]

Então segue: A té que chegou o A ncião de d ias, e estabele­ceu-se o ju ízo em p ro l dos san tos do Altíssim o. Sem dúvida o profeta diz que Deus chegou no mesmo sentido de antes, a saber: quando ele erigiu seu tribunal e publicamente apareceu como o Juiz do mundo na pessoa de Cristo. Ele não põe aqui o Filho do homem diante de nós, como fizera antes, mas ainda uma mais plena explicação desta passagem deve ser buscada na passagem anterior. Então se nos diz que Deus chegou, quando ele manifes­ta seu poder ao suprir as necessidades da Igreja, como por meio de uma figura comum dele se diz que se mantém distante de nós, e dormir ou repousar quando ele não se nos revela publicamente como nosso libertador. Portanto, em contrapartida, dele se diz que veio para nós, quando francamente prova seu constante cui­dado por nós. Sob essa figura, Daniel agora diz que viu o apare­cimento do próprio Deus. Então chegou o Ancião de dias. Se perguntarmos quando, temos resposta que foi imediatamente; foi imediatamente depois da promulgação do evangelho. Então Deus estendeu sua mão para sua Igreja, e ergueu-a do abismo. Pois, visto que a denominação judeu fora por muito tempo odiada, e todos os povos desejavam exterminar os judeus do mundo, o ad­vento de Cristo aumentou esse ódio e crueldade; e a licença para injuriá-los foi acrescida, quando pensaram que os discípulos de Cristo planejavam uma mudança de governo e desejavam sub­verter o existente estado de coisas; como nestes dias todos os piedosos sofrem gravem ente sob essa falsa imputação. Deus, portanto, é descrito como que chegando, quando a doutrina do evangelho era mais e mais promulgada e algum descanso conce­dido à Igreja. E assim, com essa resposta, os santos receberam o reino que havia sido tirado deles, ou, seja: o reino de Deus e dos santos obteve alguma fama e celebridade no mundo, através da difusão geral da doutrina da piedade, em toda direção. Agora, pois, entendemos o que Daniel desejava com unicar pela frase: chegou o Ancião de dias e estabeleceu-se o ju ízo em prol dos santos do Altíssimo. O restante fica para a próxima preleção.

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DANIEL

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que provas nossa f é e constância com muitas tribulações, como é nosso dever neste aspecto e em todos os demais submeter-nos a tua vontade, concede-nos, peço-te, que não demos motivo aos muitos ataques pelos quais somos acossados. Porque so­mos assaltados de todos os lados, por Satanás e por todos os ímpios, e enquanto sua fúria ainda arde e gera crueldade contra nós, que jam ais cedamos à mesma. Que prossigamos em nossa guerra, confi­ando no invencível poder do Espírito, mesmo quando os ímpios pre­valeçam por algum tempo. Que olhemos para o advento de teu uni­génito Filho, não só quando manifestar-se no último dia, mas tam­bém sempre que agradar-te que ele assista tua Igreja e a soerga de suas miseráveis aflições. E mesmo que suportemos nossos estresses, que a coragem jam ais nos falhe, até que. por fim, sejamos congrega­dos para o feliz descanso que já fo i conquistado para nós através do sangue do mesmo unigénito Filho. Amém.

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37a

ia preleção anterior começamos explicando como o juízo em prol dos santos foi estabelecido nos primórdios da era

evangélica. Pois sabemos quão parcial, mesmo naqueles tempos, era a tranqüilidade da Igreja. Porquanto, quando ela era isenta de perseguição externa e de derramamento de sangue, erguiam-se os inimigos domésticos os quais provavam ser muitíssimo mais injuriosos. E assim o reino de Cristo nunca floresceu no mundo ao ponto de ter algo em comum com aqueles impérios nos quais o esplendor e a pompa ficavam em evidência. Deus, porém, quis propor este consolo a seu profeta, mostrando-lhe a futura reputa­ção da Igreja e sua elevação a certo grau de honra depois de emergir da obscuridade, de sorte que os eleitos ousassem publicamente render homenagem a Cristo e professar a genuína e sincera pie­dade. Daí, estabelecendo-se o juízo em prol dos santos, o profeta tem em mente a restauração do direito do qual tinham sido priva­dos e ao mesmo tempo sua obtenção do reino, quando a Igreja não mais se viu prostrada como se dera antes do advento de Cris­to. Porque a promulgação do evangelho estava finalmente libera­da, como passamos a ver. Volvamo-nos ao contexto:

23 A ssim ele disse: O quarto anim al será 23 Sic d ixit,w B estia quarta, regnum quar- um quarto re ino sobre a terra, o qual será tum erit in terra, quod e rit d iversum ab

36 A expressão parece concisa, mas visto que ele anteriormente acrescentara o que havia omitido, com o propósito de conectar a história, ele repete novamente “ assim disse o anjo", ou, seja, “quanto àquela porção da visão, assim falou o anjo” .

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d iferen te de todos os reinos, e devorará om nibus regnis: e l vorabit21 totam terram,toda a terra, e a pisará, e a fará em pedaços. e t conteret,2' e t com m inuet eam .24 E dos dez chifres deste reino procede- 24 E t com ua decem ab illo regno, decemrão dez reis; e outro se erguerá depois R eges sunt, qui exorientur, qui surgent,deles; e e le será diferente do s prim eiros e e t aliud postrem um surget post illos Re-subjugará os três reis. ges,s e t ip se ^ e n t divrsus a superionbus,51

et tres R eges affliget.

Essa resposta do anjo está sujeita à mesma obscuridade que a visão propriamente dita, mas deve ser suficiente para aplacar as mentes dos fiéis e soubessem eles que várias mudanças surgirão e abalarão toda a terra; pois, como muitas tribulações estavam preparadas para os santos, assim também tinham que tom ar alen­to com determinação e paciência. Pois Deus não se dispunha a explicar plenamente o que mostrara a seu profeta; ele apenas de­sejava pôr esta conclusão diante deles: surgirá um reino com ple­tamente diferente de todos os outros. E assim diz o anjo: o Q u a r­to A nim al significa um q u a rto reino, o q ual será d iferen te de todos os reinos. Anteriormente a esse período, nenhum estado fora tão extenso em seu domínio. Pois ainda que os espartanos e os atenienses efetuassem extraordinárias e memoráveis proezas, todavia sabemos que se mantiveram dentro de tacanhas frontei­ras; e a ambição e prolixa vaidade dos gregos os levaram a cele­brar aquelas guerras que foram de bem poucas conseqüências, como aprendemos ainda de suas próprias histórias. Qualquer que seja o caminho a que isso nos leve, foi com dificuldade que Es- parta obteve a segunda posição na Grécia, enquanto Atenas m an­tinha a primeira. No que diz respeito ao império romano, sabe­mos ter sido ele mais extenso e poderoso do que as demais m o­narquias. Quando toda a Itália caiu sob seu domínio, isso era su­ficiente para qualquer monarquia nobre; porém a Espanha, a Si­

[7.23, 24] DANIEL

M Alguns o traduzem no passivo, “para que não se faça mudança alguma” .28 Alguns traduzem: "espatifará em pedaços", porém o sentido é o mesmo.25 Ou. após aqueles chifres.30 O rei, ou o próprio chifre, será diferente.” O que se denota pelo chifre.

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37* EXPOSIÇÃO [7.23, 24]

cília, parte da Grécia e o Ilírico foram adicionados, e m ais tarde toda a Grécia e a Macedônia, a Ásia Menor, a África e todas as ilhas; pois com uma só palavra expulsaram o rei de Chipre e ven­deram seus bens em leilão público. Quando a ralé do povo foi dominada, Cláudio promulgou um a lei para o banimento do rei de Chipre, e isso ele conseguiu com sua voz singular, sem o uso da menor força. Não surpreende, pois, que Deus preanunciasse quão diferente esse reino seria de todos os demais\ ele não tinha um a cabeça única; o senado mantinha a autoridade principal, ainda que todo o poder estivesse centrado no povo. Portanto, havia uma espécie de fusão combinada, visto que o governo de Roma ja ­mais foi estabelecido. E se pesarmos prudentemente todas as coi­sas, ele não era nem um a república nem um reino, mas um com­posto confuso, no qual o povo exercia grande poder de forma tumultuosa, e o senado oprimia o povo o máximo que podia. Havia três categorias: a senatorial, a eqíiitadoriana e a plebéia, e tal mis­tura transformou o reino num monstro. O anjo, pois, anuncia que o quarto reino seria diferente dos outros.

Em seguida ele confirm a o que dissera antes; diz ele: d ev o ra­rá toda a te rra , a p isa rá e a fa rá em pedaços. Isso se cumpriu depois que a Gália e a Bretanha foram dominadas, a Alemanha parcialmente subjugada e o Ilírico, Grécia e M acedônia reduzi­dos a sujeição. Por fim penetraram a Ásia, e Antfoco foi banido para além do Tauro; seu reino mais tarde tornou-se presa deles, e então obtiveram a posse da Síria. Os reis do Egito foram seus aliados, e no entanto tornaram-se dependentes de seus caprichos; o soberano não ousava designar um herdeiro sem consultar antes seu beneplácito. Portanto, visto que passaram a governar supre­mamente por tanto tempo e tão amplamente, cumpriram esta pro­fecia, devorando toda a terra. Pois um a voracidade tal por domí­nio jam ais existira antes; guerras cumulavam-se sobre guerras, e aumentavam sua avidez por sangue alheio e de form a alguma poupavam o seu próprio. O sorvedouro era insaciável, enquanto

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absorvia o mundo inteiro e sua soberba o esmagava e o pisava sob a planta de seus pés. Crueldade acrescentava-se à soberba, pois todos olhavam para os romanos e conciliavam o favor de Roma por meio de bajulação, com o propósito de assolar selva- gemente a seu próprio povo. Através dessas artes quase toda a Grécia pereceu. Porque sabiam como tantas pessoas inocentes por toda parte pereciam em cada cidade, uma espécie de diversão que os deleitava; eram plenamente cônscios quão facilmente era atrair para si todo o poder do mundo inteiro, quando este não tinha como apresentar nem força nem habilidade e nem poder contra eles. Porquanto seus nobres estavam constantemente em discordância; a supremacia ora estava com um a facção, ora com outra, e assim o esplendor de cada cidade fácil e gradualmente diminuía. E assim toda a Grécia foi espoliada e os romanos exer­ceram seu domínio ali sem qualquer dificuldade, como se faz com as feras brutas. O mesmo podemos dizer também da Asia. Não nos surpreende, pois, que o anjo tenha dito: esse quarto ani­m al pisaria sob seus pés toda a terra.

Em seguida ele diz: O s dez chifres são dez reis que su rg i­rão . Esses dez reis são claramente compreendidos sob um só império, e não há dúvida de que aqui são pessoas distintas. No reino persa observamos muitos reis, e todavia a imagem do se­gundo animal era singular, enquanto abarcava todos aqueles reis até que ocorresse a mudança. Assim também agora, ao tratar dos romanos, o profeta não diz que os dez reis procederiam entre si em ordem regular, mas, antes, a natureza multiforme do reino, sob mais de uma cabeça. Porque o ofício régio pertencia aos se­nadores ou cidadãos proeminentes, cuja autoridade prevaleceu muito extensamente tanto em relação ao senado quanto em rela­ção ao povo. E com referência ao número, dissemos que o núme­ro plural era apenas denotado, sem qualquer limitação ao número dez. A conclusão é esta: esse reino seria semelhante a um animal singular e terrível portando muitos chifres, um a vez que nenhum

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único rei manteve ali seu domínio máximo, como era costumeiro pelo uso comum em outras terras, mas seria uma mescla, sendo muitos reis em vez de um a manter a preeminência. O cumpri­mento disso é suficientemente notório à luz da história de Roma; como se houvera dito: não haveria um único rei em Roma, como na Pérsia e em outras nações, mas muitos reis ao mesmo tempo, aludindo à mescla e confusão em que a autoridade suprema se achava envolta.

Segue o Pequeno Chifre: S u rg irá um rei, diz eie, d iferente de todos os an terio res, e aflig irá trê s reis. Já demonstramos quão ininteligível isso se tornaria, a menos que o atribuamos aos Césares para quem passou a monarquia. Porque depois de longas e contínuas intrigas domésticas, todo o poder passou para o Tri­unvirato. Teve ingresso uma conspiração movida por Lépido, Marco Antônio e Otávio. Otávio, então, não passava de um garo­to, quase não atingindo a maturidade, porém todos os soldados veteranos eram a seu favor em conseqüência do nome de Júlio César e sua adoção por ele. Daí ser ele recebido pelos outros dois naquela aliança, da qual Lépido era o primeiro e Antônio, o se­gundo. Por fim, suscitaram-se discordâncias entre eles, e Lépido foi privado de sua posição no triunvirato e passou a viver como um semi-morto, enquanto sua vida só lhe foi poupada porque foi elevado ao ofício de sumo sacerdote.

A reverência pelo sacerdócio restringiu Antônio de efetuar sua morte, enquanto o mesmo se contentou em viver sozinho em retiro. Otávio, por fim, veio a ser supremo, porém por meio de que artifício? Dissemos que Júlio César assumiu para si não mais que o ofício de ditador, enquanto os cônsules erram eleitos anu­almente segundo o costume. Ele não levou o poder da ditadura além da moderação, porém se restringiu tanto que alguns direitos populares poderiam parecer ainda vicejar. Otávio também imi­tou a astúcia de seu tio e adotado pelo pai. A mesma conduta se verá nos demais Césares, ainda que houvesse muitas diferenças

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17.25] DANIEL

entre eles. Visto que ainda permanecia certa sombra de um a re­pública, enquanto o senado mantinha alguma medida de reverên­cia, não surpreende que o anjo tenha predito que o animal sobre­viveria, quando se erguesse outro chifre pequeno diferente dos outros.

E acrescenta: e aflig irá os trê s reis. Já expliquei este ponto pela leve mudança que os Césares efetuaram nas províncias, pois se qualquer das províncias encetasse uma guerra, fortes exércitos e soldados veteranos geralmente eram enviados para lá. Os Césa­res os levavam consigo, enquanto alguns dirigentes executivos eram deixados com o senado com respeito às outras províncias. Por último, com essa forma de expressão, o anjo retrata o dom í­nio vindouro do pequeno chifre e a diminuição da força dos pri­meiros. Todavia, o animal ficaria aparentemente inteiro; assim, a insígnia da república era preservada, como o povo era sempre denominado: no fórum, pelo título pomposo, romanos; e na bata­lha, como colegas militares. Entrementes, ainda que o nome do império romano fosse assim celebrado, e sua majestade estivesse nos lábios de cada um, a autoridade suprema estava de posse de um pequeno chifre que permanecia oculto, e não ousava erguer sua cabeça publicamente. Esse, pois, é o fio da interpretação do que o anjo aqui põe diante de nós. Sigamos em frente:

25 E e le proferirá grandes palavras con- 25 E t serm ones ad regionem , vel ad ta- tra o A ltíssim o, e desfibrará os santos d o tus, excelsi loquetur, e t sanctos excelso-A ltíssim o, e pensará em m udar tem pos e rum conteret, e t putabit ad m utandum 53leis; e serão entregues em suas m ãos, por têm pora e t legem: e t tradetur in m anumum tem po e tem pos, e a divisão de um ejus usque ad tem pus, e t em pora, e t d ivi-tem po. sionem temporis.

O anjo então explica um pouco mais claramente sobre o que o profeta anteriormente tocara, porém de form a breve, a saber: este último rei seria um inimigo manifesto e professo da Igreja. Na preleção anterior mostramos quão miserável e cruelmente a

Ou seja. pensará consigo m esm o em mudar.

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37* EXPOSIÇÃO [7.25]

Igreja tinha sido destroçada por muitos tiranos. E se com parar­mos esses tiranos uns com os outros, veremos que a Igreja foi muito mais seriamente afligida depois do advento de Cristo, bem como teve que enfrentar a oposição dos Césares em guerra fran­ca. Foi assim que surgiu a ocasião. A doutrina do evangelho foi disseminada através de quase todas as províncias do império. O nome judeu era em extremo odioso; e a novidade da doutrina aumentou grandemente essa impopularidade. Homens, através dos judeus, haviam inventado para si uma nova divindade - Cris­to assim, segundo a linguagem deles, parecia implicar a adora­ção de um a nova divindade. Portanto, visto que se lhes era ofere­cido algum material para o fogo contra o culto puro de Deus, os Césares se tornaram mais e mais estimulados a declarar guerra contra os eleitos e a oprim ir a Igreja. Não era culpa deles se não conseguiram extinguir toda a luz da doutrina celestial, abolir a verdadeira religião e banir do mundo o conhecimento de Deus. Isso concorda muito bem com o que Daniel relata desse rei tor- nando-se tão voluntarioso, proferindo palavras contra o Deus Altíssimo. Alguns o traduzem: da parte do Altíssimo; eu, porém, não conheço razão alguma para se agir assim. I S 1?, letzed, signi­fica ao lado ou região. Uma frase equivalente seria: tão grande será a soberba desse novo rei, que não exercerá seu poder pu­blicamente, mas por meio de fraude velada, a tal ponto que é como se sentasse ao lado de Deus para fazer-lhe oposição. Signi­fica, pois, que ele seria manifestamente inimigo de Deus. Os que entendem isso como uma referência ao Anticristo crêem que sua opinião é confirmada pela conduta dos outros tiranos que leva­ram a bom termo sua guerra contra Deus, com exércitos e violên­cia, porém não com palavras. O profeta, porém, não fala com tanta sutileza aqui. Pois pelo termo palavras ele aqui não quer dizer doutrina, mas aquela vanglória verbal pela qual os Césares ousavam promulgar seus éditos pelo mundo todo, instigando os procônsules a punir os cristãos e a não permitir que as seitas ím ­

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[7.25J DANIEL

pias e malditas se expandissem. E assim os terrores percorreram todo o orbe. Cumpriu-se então o que Daniel agora relata, ou, seja: a verbalização de palavras de provocação contra Deus; pois aqueles tiranos acreditavam que seus próprios éditos, sem qual­quer material bélico, seriam suficientes para extinguir a memória de Cristo. Assim também a verdadeira piedade foi desditosamente denegrida e o próprio Cristo lacerado por horríveis opróbrios, como os historiadores nos têm amplamente informado.

Portanto, esta explicação se adequa melhor ao pequeno chi­fre que profere ou pronuncia palavras contra o Altíssimo. E le aflig irá , diz o anjo, os santos das a ltu ras . Já explicamos sucin­tamente o significado desta expressão, de acordo com sua cons­trução gramatical. Por santos ele indubitavelmente quer dizer os filhos de Deus, ou seu povo eleito, ou a Igreja. Ele os denomina de “os santos das alturas” , porque, como eleitos, dependem do céu: e ainda que sejam peregrinos no mundo, sua vida, contudo, está no céu, onde a eterna herança os aguarda, a qual foi obtida por Cristo. Portanto, visto que seu tesouro está agora no céu, merecidamente se gloriam de ser cidadãos do céu, aliados e ir­mãos dos anjos. E assim são apropriadamente chamados “santos das alturas”; são separados do mundo e sabem que vivem aqui cotidianamente até chegarem àquele firme e perene repouso. Sa­bemos que isso se tem cumprido, porque terror esmagador caiu sobre todos os santos e a Igreja quase pereceu, enquanto as mul­tidões suspeitas de serem cristãs foram sujeitadas a torturas cru­éis. A prevalecência dessa licença para se perseguirem todos os santos explica como os mesmos foram então afligidos pelo pe­queno chifre.

Em seguida, o profeta ou, melhor, o anjo diz: E le pensará , ou ponderará, em m u d a r tem po e lei, e eles serão en tregues em sua m ão. Quanto ao tempo aqui indicado, muitos o atribuem a dias santos. Nós, porém, podemos discerni-lo geralmente como uma indicação do pequeno chifre esmagando tudo o que costu-

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37* EXPOSIÇÃO [7.25]

meiramente estava no mundo; e assim também interpreto a pala­vra m , reth, não da lei de Deus ou do evangelho, mas de quais­quer ritos, costumes e instituições. Enquanto os intérpretes con­tinuam discutindo acerca desta palavra, alguns a atribuindo ao Decálogo e outros à pregação do evangelho, creio que a intenção simples do profeta era: os Césares perverteram todas as leis, tan­to humanas quanto divinas. Já vimos o quanto tentaram fazer isso e quão longe conseguiram ir. Não surpreende, pois, se o pro­feta atribua essa extrem a audácia a este último rei, que pensou em m udar tudo quanto anteriormente fo ra ordenado no mundo. E por essa razão se disse anteriormente que este chifre seria mu­nido com olhos humanos; e em seguida ele proferiria grandezas, trovejando horrivelmente e inspirando em todos os homens o medo do mero ecoar de sua voz. Sabemos ter sido isso represen­tado como num espelho, se considerarmos a que ponto chegaram os Césares em sua arrogância. Primeiro, quanto a Otávio, en­quanto se restringia politicamente dentro dos devidos limites, ele impôs que fosse adorado como um deus e altares lhe fossem eri­gidos; queria que o vulgo fosse persuadido de sua divindade, e celebrou um banquete no qual sentou-se entre as divindades su­periores. Tibério negligenciou inteiramente as cerimônias religi­osas, e todavia sabemos como ele chegou a desprezar todos os homens. Ainda que fosse de uma disposição obtusa, em sua ou­sadia ele era extremado, e passava todo seu tempo maquinando em como enganar o senado. Em seguida, no tocante a Calígula, ele ameaçou Júpiter desta maneira: “E então! tu és aqui um exila­do e eu, um nativo da terra; eu te banirei para a Grécia, tua terra nativa.” Ele amiúde aplicava golpes na estátua de Júpiter, e não se contentando com o nome de um deus ordenou que os sacrifíci­os mais importantes lhe fossem oferecidos. Tal fúria diabólica cresceu ainda mais em Domiciano. E considerando os Césares como homens, o que dizer de seu caráter? Um deles disse: “Que­ro que o povo romano tenha apenas um pescoço.” Ele divertiu-se

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[7.25] DANIEL

com a chacina do senado como um esporte e desejava fazer de seu cavalo um cônsul. Quão miserável era tal conduta! Vemos, pois, como esta predição não foi totalmente sem causa; ou, seja, tão grande seria a arrogância do pequeno chifre, que o mesmo ousaria mudar e reverter em novo caos toda a ‘lei’, significando toda ordem de todo gênero; e os ‘tem pos’, significando a própria sucessão e natureza de todas as coisas. O profeta, pois, diz que ele pensou. Não expressa o resultado, mas simplesmente signifi­ca a chegada do pequeno chifre a um grau tal de dem ência ao ponto de supor que poderia trazer do céu o sol, converter a luz em trevas e nada deixar inteiro, nada em ordem no mundo inteiro. Es­sas conseqüências realmente ocorreram de acordo com esta profe­cia. Não posso entrar em muitos detalhes aqui. Eu teria que deter o leitor por muitos dias ou mesmo meses com citação da história; e posso apenas tocar de leve no que é necessário com o fim de expli­car as palavras do profeta e o significado de sua predição.

Serão en tregues em suas m ãos significa: por mais que o pequeno chifre amontoe desespero a sua fúria, todavia Deus sem ­pre governará sobre ele e nada acontecerá sem sua permissão. Era Deus, pois, quem entregava nas mãos do rei os santos, o go­verno político e as instituições de misericórdia, permitindo-lhe derramar indiscriminadamente o sangue humano, violar todo e qualquer direito nacional e arruinar quanto possível toda a reli­gião. Traz-nos não pequeno conforto saber que a permissão divi­na é concedida aos tiranos para assenhorearem-se da Igreja e in­terferirem em seu culto legítimo; pois se fôssemos deixados à mercê de seus desejos tresloucados, quão angustiante seria a con­fusão universal! Ele, porém, nos socorre, como diz o anjo, quan­do os tiranos se apoderam de nós e perturbam toda a ordem com sua horrível licenciosidade e cruel furor contra o miserável e o inocente; ele nos socorre, repito, de modo que são incapazes de mover sequer um dedo contra nós sem que Deus o permita. Não nos é permitido saber por que Deus afrouxa as rédeas dos inimi­

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gos de sua Igreja; quem sabe seja para provar e testar a paciência de seu povo! É-nos suficiente que os planos e tramas dos tiranos, em todas suas formas, são incapazes de fazer algo sem a divina permissão.

Mas uma consolação ainda maior é acrescida à últim a senten­ça: a in d a p o r um tem po e tem pos e a d ivisão [ou m etade] de u m tem po, como alguns a traduzem; é propriamente uma divi­são. Os intérpretes diferem amplamente sobre estas palavras, e eu não trarei a lume todas suas opiniões, do contrário seria neces­sário refutá-las. Eu não teria pouco trabalho em refutar todos seus pontos de vista, porém seguirei meu próprio costume de expres­sar sucintamente o genuíno sentido do profeta, e assim toda difi­culdade será removida. Os que consideram um 'tem po' no senti­do de um ‘ano’ em minha opinião estão equivocados. Citam os quarenta e dois meses de Apocalipse [13.5], o que perfaz três anos e meio; mas tal argumento não é conclusivo, visto que nesse caso um ano não consistiria em 365 dias, mas o ano propriam en­te dito seria tomado figuradamente por qualquer tempo indeter­minado. Por isso é melhor limitar-se às palavras do profeta. Um ‘tem po’, pois, não equivale a certo número de meses ou dias, nem ainda a um único ano, mas a qualquer período cuja determi­nação só está no secreto conselho de Deus. Eles, pois, serão en­tregues em suas mãos por um tempo, diz ele, e em seguida acres­centa tempos; ou, seja, por um a seqüência de tempos; e, outra vez, ainda até uma seção ou divisão de um tempo; significando: essas calamidades chegariam a um fim quando Deus, em sua misericórdia por sua Igreja, restringisse aqueles tiranos por meio de sua ira contra eles. Portanto, enquanto a crueldade dos Césa­res oprimia a Igreja de Deus, ela estava entregue nas mãos deles. Já vimos como muitos Césares eram inimigos da verdadeira Igreja. Sobretudo Nero que agiu de forma crudelíssima, porquanto quei­mou alguns milhares de cristãos em Roma com o fim de extin­guir a infâmia que lançaram contra ele. O povo não conseguia

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[7.25] DANIEL

tolerar seu barbarismo: pois enquanto a quarta parte da cidade era destruída pelo fogo, ele estava a divertir-se em suas luxurias e a regozijar-se ante a visão de tão lastimável espetáculo! Visto que temia o tumulto popular contra si, ele lançou mão de muitos cristãos e os ofereceu ao povo como uma espécie de expiação. Os que o sudeceram não cessaram de derramar sangue inocente, e os que pareciam estar imbuídos de algum grau de clemência e humanidade eram todos, por fim, apossados de um a fúria diabó­lica. Trajano, que foi considerado um príncipe muitíssimo exce­lente, contudo sabemos como ele ordenava que os cristãos por toda parte fossem mortos, já que acreditava serem eles obstina­dos em seu erro. E outros eram ainda mais selvagens. Não adm i­ra, pois, que o anjo tenha predito: ainda por um tempo e tempos, e a divisão de um tempo, que se daria licença aos tiranos e inimi­gos da Igreja de perverterem todas as coisas, de desprezarem a Deus e renunciarem toda a justiça e executarem uma chacina cruel e bárbara. Isso deve ser predito para duas ocasiões: primeiro, para que, através de um tempo muito longo, os fiéis não apostatas- sem, porque quando ‘o tempo' - um espaço de cerca de dez anos - tiver escoado, chegariam o j tempos, consistindo de cerca de cinqüenta ou cem anos.

Essa, pois, foi uma razão por que Deus admoestou os fiéis acerca do tempo e tempos. Mas também ele queria mitigar seu sofrimento adicionando metade de um tempo, assim prometendo alguma moderação e fim de tão grandes calamidades. A lingua­gem de nosso Senhor a seus apóstolos concernente a várias co­moções da terra corresponde muito bem a este ponto de vista. “Haverá guerras e rumores de guerras, mas ainda não será o fim”, diz ele. Ele as anuncia como prelúdio de males ainda maiores, quando toda a Judéia seria devastada com guerras e outras m a­tanças. Em seguida ele acrescenta: “A menos que aqueles dias sejam abreviados” [Mt 24.6; Mc 13.7; Lc 21.9]. Essa abreviação dos dias é aqui observada como se o Senhor encurtasse um a con­

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37a EXPOSIÇÃO E7-25]

tínua sucessão deles. Pois quando a posse da tirania parecesse feroz, então de súbito e além de toda e qualquer expectativa, Deus por fim arrebataria sua Igreja, e então a doutrina evangélica em er­giu e foi celebrada por toda parte. Deus, pois, então abreviou os dias em prol de seus próprios eleitos, e isso é entendido pela últi­ma sentença, uma divisão de tempo. Adiarei o restante para a próxim a preleção.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto como devemos ser diariamente treinados por várias provações, que jam ais nos entreguemos às enfermidades da carne e jam ais nos esqueçamos de tua santa vocação. Anima-nos, te imploramos, para os empreendimentos hostis; que continuemos ina­baláveis contra todos os assaltos de Satanás e dos ímpios: e assim renunciemos a nós mesmos e nos devotemos a ti. Que jam ais hesite­mos em enfrentar a própria morte, se necessário for. e até mesmo oferecer-nos diariamente a vários tipos de morte, até que tenhamos terminado nossa guerra e possamos desfrutar aquele fe liz e eterno descanso que nos preparaste em teu santo Filho unigénito. Amém.

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38a g.xposição

26 M as o ju íz o será estabelecido, e eles 26 E t jud ic ium sedebit, e t potestatem ejustirarão seu dom ínio, para o consum ir e o auferent ad d issipandum e t perdendum .’dcsln iir a té o fim . usque in finem.

Então o anjo responde a Daniel acerca da morte do quarto animal. Pois dissemos que, quando os Césares transferiram o império para si, a força do senado e do povo ficou debilitada; visto, porém, que o nome ainda permanecia, não se diz que o quarto animal fora morto até que estrangeiros desditosamente se tom aram senhores de Roma. Pois se os romanos houvessem sido conquistados centenas de vezes pelos inimigos confessos, não teriam sofrido um a desgraça tão profunda como quando homens obscuros e de origem vulgar exerceram um a cruel e bárbara tira­nia; porque então nem o senado nem o povo já não desfrutavam qualquer autoridade. O anjo assim marca corretamente o tempo no qual o quarto animal devia cair, quando os espanhóis, os afri­canos e outros bárbaros, que foram sempre desconhecidos inclu­sive em seu próprio país, se ergueram às mais elevadas posições, muito além da expectativa da humanidade. Pois sua luxúria opri­miu todo o estado; decapitaram os senadores mais nobres e de­signaram em seu lugar os homens mais miseráveis, em sinal de seu espírito de ignomínia e repúdio. E n tão o q u a rto an im al foi m orto ; e esta é a explicação desta porção da resposta do anjo. Ele também diz: o ju ízo será estabelecido; ou, seja, Deus no-

" Ou seja. para dissipar e apagar.

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38* EXPOSIÇÃO (7.26]

vãmente restaurará à ordem toda esta confusão, e o mundo senti­rá sua Providência administrando a terra e a raça humana. Pois quando se permite que todas as coisas se processem impunemen­te, e nem a justiça nem a honestidade são tidas em qualquer con­sideração, supõe-se, pois, que Deus estaria desfrutando de sua vida tranqüila no céu e já teria se esquecido da raça humana. Daí, em oposição a isso, somos informados que ele subiu ao tribunal, e isso com tal freqüência que real e experimentalmente sentimos seu cuidado sobre nós. Assim a restauração é aqui denominada como um assentar-se em juízo, quando o império romano foi apa­gado e Deus executou a penalidade de tão grande e tão desabrida ferocidade como a já registrada. Como esta frase é muito comum e de freqüente uso na Escritura, não continuarei a explanação.

O juízo , pois, será estabelecido', ou, seja, depois que todas as coisas ficaram por longo tempo envoltas em trevas, nova luz ir­romperá e os homens prontamente reconhecerão a soberania do Onipotente. E o poder, diz ele, se rá tira d o do anim al, p a ra o d iss ip ar e o d e s tru ir a té o fim. Aqui o anjo anuncia a subversão final do quarto animal. Acerca do plural do verbo, já menciona­mos a opinião de alguns que o atribuem a mais de um anjo; mas é preferível entendê-lo de uma forma mais simples, como uma forma absoluta e indefinida de expressão. E contudo não faço objeção, como afirmei antes, ao ponto de vista dos que o tomam em referência a anjos, porém temo ser isso demasiadamente refi­nado; prefiro o ponto de vista mais simples como sendo isento de toda controvérsia. O sentido, pois, é este: Quando o animal tiver agido cruelmente por certo tempo, e especialmente o pequeno chi­fre, Deus cumprirá o ofício de juiz, e o animal, com esse pequeno chifre, será removido do caminho. Em seguida o anjo acrescenta: Não haverá esperança de qualquer nova vida semelhante àquela de muitos reinos que amiúde caem num período e se erguem nova­mente noutro; ele, porém, aqui anuncia a matança final, como se quisesse dizer: a ferida é incurável e mortal. Vamos em frente:

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27 E o reino e o dom ínio e a grandeza d o 27 E t regnum . e t potstas, e t m agnitudoreino sob todo o céu serão dados ao povo regni sub toto ccelo dabitur populo sanc-dos santos do A ltíssim o, cujo reino é um torum excelsorum . R egnum ejus regnumreino e tem o, e todos os dom ínios o servi- seculi, hoc esl, perpetuum, e t osnnes po­rão e lhe obedecerão. testates e i servient, atque obedient.

Este versículo nos assegura como essas predições concernen­tes à destruição do animal consideram a segurança da Igreja. As­sim os fiéis podem saber que são notados por Deus e como as mudanças que ocorrem sucessivamente tendem para o mesmo fim - o reconhecimento por parte dos santos de sua continuação sob o cuidado e proteção de Deus. Pois qualquer discussão acer­ca das quatro monarquias teria sido fria e inútil, a menos que fosse acrescentado o cuidado peculiar de Deus por sua própria Igreja e sua condução das atividades do mundo para a segurança de seu povo. Como já dissemos em outros lugares, o povo eleito de Deus é de maior importância do que todos os reinos que estão em atividade no mundo [Is 43.3]. Esse, pois, é o sentido das pala­vras. Se separarmos este versículo de seu contexto, a profecia ainda terá sua aplicação. Podemos extrair dela como todas as coisas parecem estáveis no mundo e no entanto são perecíveis, e nada é tão firme que não esteja sujeito a constante variação a cada instante. Mas a principal intenção de sua predição é, como eu já disse, mostrar a relação de todos os eventos com a seguran­ça dos santos. Quando, pois, todas as coisas parecem arrebatadas pelo cego impulso do acaso, devemos sempre contemplar a Deus como o vigia de sua Igreja e temperar todas as tormentas e todas as comoções para o serviço e segurança dos santos que repousam em sua Providência. Essas duas coisas, pois, estão em m útua con­cordância, a saber: a m orte do q u a rto an im al e a en trega do reino e au to rid ad e ao povo dos santos. Isso parece não haver sido ainda concretizado; e daí muitos, sim, quase todos, exceto os judeus, têm tratado esta profecia como um a referência ao dia final da vinda de Cristo. Todos os intérpretes cristãos concordam neste ponto; mas, como já mostrei anteriormente, pervertem a

[7.27] DANIEL

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38* EXPOSIÇÃO [7.27]

intenção do profeta. Quanto aos judeus, sua explicação não é ne­nhuma explicação, pois são não só tolos e estúpidos, mas inclusi­ve loucos.34 E visto que seu objetivo é a adulteração da sã doutri­na, Deus também os cega até que se vejam totalmente em trevas, frívolos e pueris; e se eu fosse deter-me a fim de refutar sua rude­za, com certeza jam ais terminaria.

Esta profecia não parece ter-se concretizada na destruição do animal; mas isso é facilmente explicável. Sabemos com que mag­nificência o profeta fala do reino de Cristo, e adora sua dignidade e glória com esplêndidos louvores; e em bora estes não sejam exagerados, todavia, se julgados pelas percepções humanas, o leitor com certeza concluiria que são excessivamente extrava­gantes, e não descobriria nem solidez nem firm eza em suas pala­vras. E não surpreende: pois o reino de Cristo e sua dignidade não podem ser percebidos pelos olhos carnais, nem ainda com ­preendidos pelo intelecto humano. Os que parecem os mais saga­zes dos homens, que reunam toda sua clarividência, pois nem assim poderão jam ais subir à excelsitude do reino de Cristo, o qual vai além dos próprios céus. Nada é mais contrário a nosso ju ízo natural do que buscar vida na morte, riquezas na pobreza e carência, glória no opróbrio e desgraça - ser peregrino neste mundo e ao mesmo tempo ser seu herdeiro! Nossas mentes não podem naturalmente compreender essas coisas. Não surpreende, pois, se os mortais julgam erroneamente o reino de Cristo, e são cegos no meio da luz. Ainda não há falha nas expressões do pro­feta, pois elas nos descrevem a imagem visível do reino de Cristo e se acomodam a nossa obtusidade. Elas nos capacitam a perce­ber a analogia entre coisas terrenas e visíveis e aquela bem-aven- turança espiritual que Cristo nos tem oferecido, e as quais agora possuímos através da esperança nele. Pois enquanto apenas es­peramos, nossa felicidade está oculta de nós, e não é perceptível por nossos olhos nem por nenhum de nossos sentidos.

M A expressão de Calvino aqui c proverbial; o francês traduz: ils n 'en approchent ne près ne loin; o latim: neque coelum neque terram auingunl.

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Voltemos agora à passagem. Daniel, antes de tudo, diz: Um reino , e poder, e um extenso dom ínio serão en tregues ao povo dos santos. Isso parcialmente cumpriu-se quando o evangelho emergiu da perseguição; então o nome de Cristo foi por toda par­te celebrado e mantido em honra e estima, em bora previamente estivera sujeito à mais intensa inveja e ódio. Pois nada tem sido mais odiado e detestado ao longo de tempos infindáveis do que o nome de Cristo. Deus, portanto, então deu o reino a seu povo, ao ser ele reconhecido como o Redentor do mundo através de suas muitas mudanças, depois de ter sido previamente desprezado e totalmente rejeitado. E posso aqui observar ainda, e imprimir na memória o que já mencionei com freqüência, ou, seja: o hábito dos profetas, ao tratarem do reino de Cristo, era estenderem eles seu significado para além de seus primórdios; e fazem isso en­quanto insistem em seu começo. Assim Daniel, ou o anjo, não prediz aqui ocorrências conectadas com o advento de Cristo como Juiz do mundo, mas com a prim eira pregação e promulgação do evangelho e a celebração do nome de Cristo. Mas isso não o im­pede de delinear um magnificente quadro do reinado de Cristo e envolver sua completação final. É suficiente percebermos como Deus começa a dar o reino a seu povo eleito, quando, pelo poder de seu Espírito, a doutrina do santo evangelho foi recebida em todas as partes do mundo. A súbita mudança que ele ocasionou foi incrível, porém esse é um resultado costumeiro; pois quando algo é predito, pensamos que o mesmo não passa de fábula e de sonho, e quando Deus realiza o que jam ais teríamos imaginado, o evento parece-nos trivial e o tratamos como algo sem valor. Por exemplo, quando a pregação do evangelho teve início, ninguém teria imaginado que seu sucesso poderia chegar a ser tão grande e tão próspero; aliás, duzentos anos depois que Cristo manifestou- se, quando a religião estava quase apagada e os judeus eram exe­crados pelo mundo inteiro, quem teria imaginado que a Lei sairia de Sião? Todavia Deus erigiu ali seu cetro. A dignidade do reino

[7.27) DANIEL

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3 8 ' EXPOSIÇÃO [7.27]

havia desvanecido, a família de Davi estava extinta. Pois a fam í­lia de Jessé era apenas um tronco, segundo o símile usado pelo profeta Isaías [11.1]. Se alguém houvera perguntado a todos os judeus, um após outro, nenhum deles teria crido na possibilidade daqueles eventos que acompanharam a pregação do evangelho; mas por fim a dignidade e a virtude do reino de Davi resplande­ceram em Cristo. Todavia, ela desvanece diante de nossos olhos e buscamos novos milagres, como se Deus não houvera suficien­temente provado ter ele falado por boca de seus profetas! Assim observamos como o profeta se mantém dentro dos limites quan­do diz: Um reino, e poder, e a magnitude do império passaram para o povo dos santos.

E acrescenta: um im pério debaixo de todos os céus. Aqui o rabino Abarbinel, que acredita ser superior a todos os demais, rejeita nossa idéia do reinado espiritual de Cristo como sendo um a tola imaginação. Pois o reino de Deus, diz ele, está estabele­cido debaixo de todos os céus e é dado ao povo dos santos. Se está estabelecido debaixo do céu, diz ele, então ele é terreno; e se é terreno, então não é espiritual. Esse de fato parece ser um argu­mento muito sutil, como se Deus não pudesse reinar no mundo exceto como um ordinário mortal. Enquanto a Escritura diz “Deus reina”, segundo este argumento Deus deve ser transfigurado na natureza humana, do contrário não existiria o reino de Deus a não ser que o mesmo seja terreno; e se é terreno, é temporal, e portanto perecível. Daí inferirmos que Deus muda sua natureza. Seu reino, pois, consistirá em opulência, o poder e a ostentação militares, bem como as concupiscências com uns da vida - de modo que Deus se tornará distinto de si mesmo. Percebemos a pueril trivialidade daqueles rabinos que pretendem gloriar-se em sua engenhosidade que visa à total destruição de todo o ensino da piedade. Nada mais intentam além de adulterar a pureza da Es­critura com seus comentários pútridos e sem sentido. Nós, po­rém, sabemos que o reino de Deus e de Cristo, ainda que existin­

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17.27] DANIEL

do no mundo, todavia não lhe pertence [Jo 19.36]; o significado das duas expressões é exatamente o oposto. Deus, portanto, ain­da exerce seu reinado celestial no mundo, visto que ele habita os corações de seu povo por meio de seu Espírito. Enquanto Deus mantinha sua sede em Jerusalém, seu reino era meramente um reino terreno e corruptível? De modo nenhum, pois pela posses­são de um a habitação terrena ele não cessou de estar também no céu. Assim o anjo instruiu o profeta concernente aos santos que são peregrinos no mundo, e todavia desfrutarão do reino e possu­em o mais estupendo poder debaixo do céu. D aí também correta­mente concluirmos que esta visão não deve ser explicada pelo prisma da vinda final de Cristo, mas do estado imediato da Igre­ja. Os santos começaram a reinar debaixo do céu quando Cristo os introduziu em seu reino pela promulgação do evangelho.

Ainda outro ponto precisa ser observado: o que pertence à cabeça é transferido para o corpo. Não há nada novo nisso, visto que o supremo poder é constantemente prometido pelos profetas à Igreja, especialmente por Isaías que amiúde prediz sua com ple­ta supremacia. Os papistas se apoderam de tais testemunhos para vestir-se dos espólios de Deus, como se este lhes houvera cedido tal direito! Mas se acham imersos no mesmo erro dos judeus, que se inflam com soberba sempre que tal dignidade é prometida ao povo eleito, como se pudessem permanecer separados de Deus e ainda assim obter o direito de pisar o mundo inteiro sob a planta de seus pés. Os papistas também fazem exatamente o mesmo. Nós, contudo, devemos ser guiados por um a regra muitíssimo diferente, a saber: em decorrência da íntima união entre Cristo e sua Igreja, o atributo peculiar do próprio Cristo é amiúde transfe­rido para seu corpo. Não que a Igreja reine por si própria; Cristo, porém, como sua única e suprema cabeça, obtém domínio nesse particular, e não para sua própria vantagem pessoal - pois que necessidade tem ele desse domínio, senão para a comum segu­rança de todos seus membros? Por essa razão Cristo é nosso Rei,

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38* EXPOSIÇÃO [7.27]

e ele se propõe a erigir seu trono em nosso meio; ele nada usa em seu próprio benefício, mas nos comunica todas as coisas e as converte em nosso benefício; daí sermos merecidamente chama­dos reis, porquanto ele reina, e, como eu já disse, a linguagem que lhe é exclusivamente apropriada é transferida para nós em decorrência da íntima comunhão existente entre a cabeça e os membros.

Esse é também o sentido da frase aqui adicionada pelo profe­ta: Todos os poderes o serv irão e lhe obedecerão. Não tenho dúvida de que o anjo aqui confirmou a profecia de Isaías, como o Espírito Santo, para melhor confirmar e fortalecer a fé dos san­tos, amiúde concilia um profeta com outro, e assim sua mútua concordância se torna o selo de sua verdade. Lemos em Isaías: O reino e a terra que não te servirem serão destruídos; os reis virão e te adorarão, o povo oferecerá teus dons [60.12]. Lemos tam­bém nos Salmos: “Os reis se reunirão em assembléia para servi­rem a Deus” [SI 102.22]. E Isaías trata mui plenamente do impé­rio da Igreja. O anjo então reitera a mesma coisa, com o intuito de acrescentar, como eu já disse, mais plena confiança e autori­dade à profecia de Isaías. Entrementes, observamos quão com ­pletamente todos os profetas concordam, e ao mesmo tempo in­terpretamos essas palavras como uma referência ao reino de Cristo, desde o período em que a pregação do evangelho se tornou extra­ordinariamente patente; pois então o cetro régio de Deus saiu de Jerusalém e se difundiu mais e mais amplamente, enquanto o Senhor estendia sua mão e sua autoridade sobre todas as regiões do mundo. Visto que todos esses importantes eventos se destina­vam à comum salvação da Igreja, nos é dito: O reino p e rte n ce rá ao povo santo. Quanto à frase: os santos das alturas, já expli­quei por que o profeta aplica essa frase aos fiéis, e por que o anjo também faz o mesmo; ou, seja, porque Deus os separara do mun­do, e estavam sempre olhando para cima e voltando todas as suas esperanças para o alto. Então, no tocante ao rabino que citei, ele

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(7.27) DANIEL

torce esta passagem e tenta provar que o profeta não fala de Cris­to quando diz que viu a figura do Filho do homem. Isso, porém, é completamente pueril, pois ele assevera que o Filho do homem significa “o povo dos santos” , e assim a frase não teria nenhuma referência a Cristo, mas a toda descendência de Abraão. Não de­vemos deixar-nos dominar por perplexidade ante tão deprimente ignorância desses rabinos e em sua estupidez mesmo no tocante aos rudimentos, já que reconhecem a necessidade de um M edia­dor, unicamente por meio de quem a Igreja pode obter algum favor diante de Deus. Vangloriam-se no que também admitimos: em que os filhos de Abraão são os eleitos, e nesse titulo que os qualifica a tornarem-se o povo santo e herdeiro de Deus e um reino de sacerdotes. Esse é um fato, porém em que se fundava seu pacto de adoção senão em Cristo? Daí, separarem eles a Igre­ja de seu Mediador é como criar um corpo mutilado separando sua cabeça de suas articulações. Além disso, à luz do que o pro­feta declarou antes sobre o Filho do homem, seu tema é evidente­mente mudado neste versículo. Lá ele declarou que o poder foi dado ao Filho do homem depois que ele aproximou-se do Ancião de dias, e o Filho do homem ou, pelo menos, sua semelhança apareceu nas nuvens. Em primeiro lugar devemos observar essa semelhança, visto ser ela o Filho do homem, com o já explicamos a visão. Seguramente a posteridade de Abraão era realmente [com­posta] de homens, mas a visão oferecida ao profeta era apenas um a multidão. Como Cristo não havia se revestido de nossa car­ne, isso era apenas um prelúdio de sua futura manifestação na carne. Aqui ele fala francamente e sem figura alguma de o povo dos santos, e esta profecia depende da primeira. Pois a menos que Cristo estivesse sentado à destra do Pai e houvesse adquirido domínio, fazendo com que todos os joelhos se dobrassem diante dele, a Igreja jam ais poderia exercer seu poder. Assim observa­mos como todas as coisas mutuamente concordam entre si.

Entretanto, visto ser um fato que muitos perversamente se

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38* EXPOSIÇÃO [7.27]

têm rebelado contra Deus e a proclamação do evangelho, pode parecer absurdo que o anjo declare todos os poderes do mundo como sendo obedientes e submissos. Mas vale a pena estudar os métodos costumeiros de expressão bíblica. Por exemplo, pela frase “todo o povo” o Espírito não quer dizer cada pessoa em particu­lar, mas simplesmente que alguns dentre cada nação se sujeitari­am ao jugo de Cristo, reconhecendo-o como Rei e obediente­mente se uniriam a sua Igreja. Quão amiúde esses sentimentos ocorrem nos profetas! Todas as nações virão - todos os reis ser­virão. Naquele tempo não existiu sequer um rei que não profes­sasse ser inimigo da verdadeira piedade e que não desejasse que a m esm a fosse desarraigada do próprio nome de sua lei. Os pro­fetas ampliam assim, de form a magnificente, a futura restaura­ção deste reino, como já o declaramos antes, em decorrência de o evento ser tão completamente impossível. Portanto, também neste lugar, diz ele: todos os poderes o servirão e lhe obedecerão; ou, seja, nenhum poder se vangloriará, então, em sua eminência, não se dispondo de bom grado a sujeitar-se à Igreja, ainda que, no presente, todos tão plenamente a desprezem; sim, em bora se pre­cipitem com todo seu poder contra a Igreja tão amesquinhada, e em bora a pisem de forma tão ignominiosa, ainda assim se lhe sujeitarão. Bem o sabemos nós que isso se cumpriu amplamente. Algumas pessoas, além de seu significado, imprimem palavras de cunho universal, como quando Paulo diz: Deus deseja que todos sejam salvos. Daí dizerem eles que ninguém está predeter­minado à destruição, mas que todos são eleitos, ou, seja. Deus não é Deus [ITm 2.4]. Nós, porém, não nos sentimos surpresos com demência desse gênero, a qual corrompe ímpios e profanos, os quais desejam que suas cavilações promovam a descrença em relação a todos os oráculos do Espírito. Compreendamos clara­mente a freqüência dessa figura de linguagem; quando o Espírito Santo diz ‘todos’, sua intenção visa a alguns dentre todas as na­ções, e não a cada um universalmente.

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[7.28] DANIEL

28 A qui está o final do assunto. Q uanto a 28 H ucusque finis serm onis,’5 m ihi Da-m im , Daniel, m inhas cogitações m e per- nieii,“ m ultum cogitaliones m e * terrue-lurbaram m uitíssim o, e m eu sem blante se runl m e, e t vultus m eus m u ta tu sesl superme transm udou; eu, porém , guardei o as- m e, vel, in me, e t serm onem se rv av i," insunto em meu coração. corde meo.

Neste versículo Daniel primeiro diz que a visão estava con­cluída, e assim os fiéis podiam descansar satisfeitos, olhando para algo para além dela. Pois sabemos quão incansáveis são as fanta­sias do gênero humano, e quão insana doença é a fútil curiosida­de. Deus está consciente do que é útil para nossa informação, e assim ele adota seu método de ensino visando a nossa capacida­de e proveito. Todavia somos volúveis e insaciáveis, dizendo: Por que isso ou aquilo não é adicionado? Por que Deus não se detém aqui? Por que ele não avança um passo mais? Visto, pois, que a engenhosidade humana é por demais inflamada e desequi­librada, Daniel aqui merecidamente diz: a visão chegou a seu final, com o fim de levar todos os eleitos a aquiescer-se com ela e contentar-se com esse conhecimento parcial. E em seguida acres­centa: fiquei p e rtu rb a d o em m eus pensam entos, e m eu sem ­blan te se tran sm u d o u ; pois ele temia que os santos concluís­sem que esta visão não passava de um mero espectro evanescen- te. Era da maior importância distinguir esta visão de qualquer imaginação frívola. Daniel, pois, com o intuito de mostrar como a cena exposta a sua observação era um a revelação divina, ex­pressa claramente como ele ficou terrificado em seus pensam en­tos. Isso ocorreu porque Deus queria estampar em seu coração a infalibilidade da profecia. Com o mesmo propósito é a mudança de seu semblante. Ele acrescenta: guardei o assun to em m eu coração , com o fim de assegurar-nos de que ele era um intérpre­te fiel; pois se ele nos fosse suspeito de negligência, não recebe­ríamos com reverência a mensagem que enunciou nessas pala­

35 Ou. por enquanto há um final do discurso.** Ou. quanto a mim, Daniel, estou preocupado.17 Ou. estou disposto a guardá-lo.

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38* EXPOSIÇÃO [8.1]

vras como realmente procedentes de Deus. Quando, porém, D a­niel afirma que ele se desincumbira do dever de um servo fiel, que guardou todo o discurso em seu coração , acrescenta-se a seu ensino uma autoridade adicional. Concluindo, é preciso que nos lembremos de dois pontos: primeiro, a revelação celestial que se fez conhecer ao profeta com o intuito de provar que ele era um servo e mensageiro de Deus destinado a nós; e, segundo, o fiel desencargo de seus deveres, ao guardar em seu coração o que havia recebido, e assim o entregou com suas próprias mãos, na íntegra, à Igreja. Segue a outra visão:

(Zajyítuúo 81 No terceiro ano do reinado do rei Bei- I Anno tertio regni B eltsazar Regis. visio sazar. veio-m e um a visão, a m im , D aniel, visa fuit, visio apparuit, m ihi, m ihi in- d e p o is d a q u e la q u e m e a p a re c e u no quam Danieli postquam apparuerat mihi princípio. in princip io .“

Aqui Daniel relata outra visão, diferindo da anterior como uma parte [difere] do todo. Pois Deus desejava mostrar-lhe, pri­meiramente, que várias mudanças ocorreriam antes do advento de Cristo. A segunda redenção era o início de uma nova vida, visto que Deus, então, não só restaurou outra vez sua própria Igreja, mas como se fosse criado um novo povo; e daí a partida de Babilônia e o regresso a seu país serem chamados o segundo nascimento da Igreja. Visto, porém, que Deus, naquele tempo, oferecera, então, apenas um a prelibação da genuína e sólida re­denção, sempre que os profetas tratam desse livramento, eles es­tendem seus pensamentos e suas profecias para a futura vinda de Cristo. Portanto Deus, com grande propriedade, mostra a seu pro­feta as Quatro M onarquias a fim de que os fiéis não desfaleces­sem, visualizando o mundo tão amiúde convulso e tudo a mudar sua figura e natureza. E assim eles se veriam sujeitos às mais

” Ou. seja, em adição à visão que me foi oferecida antes.

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[8.1] DANIEL

aflitivas preocupações, tornando-se alvo de riso por parte de seus inimigos e permanecendo sempre desprezíveis e humilhados, sem poder socorrer-se sob essas constantes inovações. Os fiéis, pois, foram prevenidos acerca dessas Quarto Monarquias, para que não se supusessem rejeitados por Deus e privados totalmente de sua proteção. Agora, porém, Deus queria mostrar a seu profeta so­mente um a parte. Como a destruição do império babilónico esta­va próxima, e o segundo reino se avizinhava, este domínio tam­bém chegaria celeremente a seu término, e então o povo de Deus seria reduzido a quase total extermínio. E o principal objetivo desta visão é preparar os fiéis para enfrentarem pacientemente a horrível tirania de Antíoco, de quem o profeta trata neste capítu­lo. Agora, pois, entendemos o significado desta profecia, na qual Deus fala somente de duas monarquias, pois o reino dos caldeus logo seria abolido. Ele trata primeiro do reino persa; e, em segui­da. acrescenta o macedônio, porém omite todos os outros e desce diretamente a Antíoco, rei da Síria. Ele então declara a prevale- cência da mais miserável confusão na Igreja; pois o santuário seria privado de sua dignidade e o povo eleito seria por toda parte massacrado, sem ao menos poupar-se o sangue inocente. Vere­mos também por que os fiéis foram de antemão informados de calamidades tão graves e opressivas, com o intuito de induzi-los a olharem para Deus quando oprimidos por tão extrema escuri­dão. E nestes dias esta profecia nos é útil, para que nossa cora­gem não desfaleça ante a extrema calamidade da Igreja, visto que uma perpétua representação dela nos é delineada sob aquele ca­lamitoso e mortuário estado. Ainda que Deus amiúde nos poupe em nossas enfermidades, todavia a Igreja nunca está isenta de muita angústia, e a não ser que estejamos preparados para en­frentar todos os ventos contrários, jam ais permaneceremos fir­mes na fé. Este é o escopo e explanação da profecia. Adiarei o restante.

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38* EXPOSIÇÃO

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que outrora permitiste que teus servos manti­vessem sua coragem em meio a tantas e tão variadas comoções, faz com que extraiamos a mesma edificação dessas profecias; e visto que temos chegado à plenitude dos tempos, fa z com que tiremos pro­veito dos exemplos da Igreja antiga e das piedosas e santas admoes­tações que puseste diante de nós. E assim possamos permanecer f ir ­mes e invencíveis contra todos os ataques de Satanás, do mundo e dos ímpios, e assim nossa f é permaneça inexpugnável, até que, por fim , desfrutemos o fruto de sua vitória em teu reino celestial, por Cristo nosso Senhor. Amém.

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39a

/ 7 a escrevi um breve prefácio para esta visão, a qual nos é aqui r i descrita neste oitavo capítulo, com o intuito de capacitar o leitor a com preender seu conteúdo e perceber o objetivo para o qual ela foi oferecida ao profeta. Quanto ao tempo, devemos lem- brar-nos de que o profeta fora informado da vitória de Ciro e Dario ainda que a monarquia babilónica continuasse a florescer. Ainda que Ciro já houvesse alcançado grande progresso e com e­çado a restringir os territórios caldaicos, todavia Belsazar, como já vimos, displicentemente folgava em seus banquetes. Ninguém jam ais pensaria que Ciro viria a ser o conquistador de tão imensa monarquia, por isso Belsazar não pensou em convocar um gran­de exército em defesa das fronteiras de seu reino. Acreditava que repeliria a todos os empreendimentos de Ciro com toda facilida­de possível; por maior que fosse sua violência, o rei Belsazar esperava poder dominá-la. Ora, Deus queria mostrar a seu servo esses eventos futuros. Antes de tudo, é revelada a mudança ime­diata; em seguida, finalmente se faz conhecida a calamidade que viria - calamidade, digo eu, da Igreja sob o rei Antíoco e seus sucessores. O profeta, portanto, diz;

2 E vi num a visão (e sucedeu que, ao 2 Vidi in visione: ec fuit cum viderem , utolhar, eu estava no palácio de Susã, que ego essem in Susan,*' qua; est in E lam pro-íica na p rovíncia de E lio ); e eu vi num a vincia. Vidi in visione, e( ecce eram su-v is io . e eis que m e achava próxim o ao pe r fluvium Ulai.n o Ulai.

N 7 n '3 il, hebireh, o que alguns traduzem por cidadela, ou palácio, ou residência real.

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39a EXPOSIÇÃO [8.2,3]

3 E ntão ergui m eus olhos e vi. e eis que 3 E t extuli oculos m eos, e t vidi: e t ecccum carneiro estava de pé d iante do rio, o aries unus stabat coram fluvio,40 e t ei cor-qual tinha dois chifres; e os dois chifres nua duo, e t com ua erant excelsa, e t unumeram altos, porém um era m ais alto que o excelsius altero, e t excelsum hoc ascen-outro, e o m ais alto subiu por últim o. debat retro.

Sem dúvida alguma, o profeta aqui reconheceu um novo im­pério quando estava para surgir, o que não podia acontecer sem que antes Babilônia fosse reduzida à servidão. Isso, porém, não serviria de modo algum para aliviar as preocupações dos santos nem para mitigar suas angústias, quando viam o que previamente imaginaram ser incrível, ou, seja, a chegada da destruição daque­la horrível tirania sob a qual tinham sido tão cruelmente oprimi­do. E se a liberdade de regressar a sua pátria não fosse imediata­mente concedida ao povo, não seria pequena consolação divisar o ju ízo divino contra os caldeus como fora predito pelos profe­tas. Temos agora que examinar a linguagem do profeta. E u vi um a visão, diz ele. Esta palavra p in , chezon, um a ‘visão’, é adicionada para mostrar-nos que o carneiro de que se faz menção não era visto pelos olhos físicos. Daí ser este um oráculo celesti­al, e deve ter elevado o observador acima de todas as sensações humanas, com o fim de capacitá-lo a discernir a altitude da torre de vigia em que o mesmo estava oculto do resto da humanidade. Ele, pois, não via o que os homens ordinários podem ver, porém Deus lhe mostrou numa visão o que os sentidos mortais podiam apreender. Em seguida, ele acrescenta: Foi m o stra d a um a visão a m im , Daniel, e sucedeu que, diz ele, quando a vi eu m e achava em Susã. Há quem pensa estar Daniel, naquele tempo, residindo na Pérsia, porém tal ponto de vista de modo algum é provável; pois quem poderia persuadir o profeta de Deus que fora levado cativo com o restante e estava vinculado ao rei de Babilônia a partir como se ele estivesse inteiramente livre e fosse para Pér­sia, quando os persas eram então seus inimigos? Isso não é de todo provável; e me admira que algo tenha induzido os homens a

^ Ou. seja, na margem do rio.

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adotarem tal comentário, tão contrário a toda a razão. Pois não carecemos de discutir tal matéria que de modo algum obscurece a importância das palavras do profeta, quando ele remove toda dúvida, ao dizer: eu me achava em Susã quando vi, ou, seja, quan­do fui arrebatado pelo espírito profético para além de mim mes­mo e me vi acima do mundo. O profeta não diz que residia em Susã, nem na circunvizinhança, mas estava ali somente na visão. O versículo seguinte também mostra sobejamente que ele estava então na Caldéia - no terceiro ano, diz ele, do reinado do rei Belsazar. Ao ser coroado o rei, ele claramente expressa que então residia sob seu poder e domínio. Dessas palavras se deduz clara­mente, sem a mais leve sombra de dúvida, que o profeta então residia na Caldéia. E talvez Babilônia já estivesse sitiada, como vimos anteriormente. Ele diz que estava no palácio de Susã. Não sei como deveria traduzir o termo 71T3n, hebireh , já que não vejo nenhuma razão para preferir o significado cidadela em vez de ‘palácio’. Estamos certos da nobreza e celebridade da ci­dadela que mais tarde seria a cabeça do Oriente, pois todas as nações e tribos recebiam dali suas leis, direitos e julgamentos. Ao mesmo tempo, creio que essa cidadela ainda não tinha sido construída, pois seu império sobre o território persa não estava solidamente estabelecido até o tempo dos sucessores de Ciro. Poderíamos, talvez, distinguir Susã da Pérsia na íntegra; todavia, como ela é tratada como uma parte daquele reino, não insisto na distinção. O país, contudo, é muito mais ameno e mais fértil do que a Pérsia, visto que recebe seu nome por ser um a floricultura e abundante em rosas. Assim o profeta diz que teve ali uma visão.

Ele em seguida reitera isso: Vi n u m a visão, e eis que m e achava próxim o ao rio Ulai. Os escritores latinos fazem men­ção de um rio Eul$us, e visto que existe um a grande similarida­de entre as palavras, não hesito em entender a linguagem de D a­niel como uma referência ao E u lsus. A repetição não é supér­flua. E la imprime certeza na profecia, porquanto Daniel afirma

[8.2,3] DANIEL

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39a EXPOSIÇÃO {8.2, 3]

não ter tido qualquer espectro evanescente, com o se poderia sus­peitar de um a visão, mas clara e certamente uma revelação divi­na, como mais adiante relatará. Diz ele ainda: e rgu i m eus olhos p a ra o alto. Essa atitude atenta tem o mesmo significado, como a experiência nos informa, quão amiúde os homens são engana­dos por vaguearem em errôneas imaginações. Daniel, porém, aqui testifica que ergueu seus olhos para o alto, porquanto sabia que sua atenção era divinamente evocada a discernir eventos futuros.

Em seguida ele acrescenta: E eis um ca rn e iro de pé n a m a r­gem do rio , e tin h a dois chifres. Ele agora compara o império persa e medo a um carneiro. Não deve parecer absurdo que Deus tenha proposto a seu servo várias similitudes, porque seu dever era instruir através de vários métodos um povo rude; e sabemos que esta visão foi apresentada diante do profeta não só para sua instrução particular, mas também para o benefício comum de todo o povo. Não creio que precisemos escrupulosamente inquirir por que os reis persas são denominados carneiros. Não conheço ne­nhuma razão plausível, a não ser, quem sabe, para instituir uma com paração entre eles e Alexandre da M acedonia e seus suces­sores. Se esse é o caso, quando Deus, sob a imagem de um car­neiro, exibe a seu profeta o império persa, não está a ilustrar sua natureza em termos absolutos, mas apenas à guisa de com para­ção com a de Alexandre. Estamos bem cientes da oposição entre esses dois impérios. A monarquia persa é cham ada “um carnei­ro” , com referência aos macedônios, os quais, como veremos mais adiante, exibem a designação ‘bode’ em relação a seu antagonis­ta. E podemos deduzir a melhor razão para esta com paração da origem humilde dos reis da Pérsia. Com grande propriedade, pois, Ciro, o primeiro governante desse império, nos é aqui retratado sob a forma ou imagem de um carneiro. Seu ‘chifre’ produzia uma concussão por toda a terra, quando ninguém esperava que algo proviesse de um a região de modo algum farta de algo nobre. E quanto a Alexandre, ele é chamado ‘bode’ em relação ao ‘camei-

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[8 .2 , 3 ] DANIEL

ro’. como sendo muito mais astuto, e todavia mais obscuro em sua origem. Pois o que era M acedônia senão um mero canto da Grécia? Eu, porém, não me propus formar um paralelo entre es­tes pontos; é suficiente que Deus quisesse mostrar a seu profeta e a toda a Igreja como dentre os persas, ignotos como eram, des­prezados por seus vizinhos, se ergueria um rei com o fim de con­sumir o poder medo, como logo veremos, e também para subver­ter a monarquia babilónica. Portanto, diz ele, eis um carn e iro em pé p róx im o ao rio, ou na margem do rio, um a vez que Ciro subjugou tanto aos medos quanto a seu avô, segundo nos infor­mam os historiadores. Ciro, pois, irrompeu-se de suas próprias montanhas e pôs-se de pé na margem do rio. Diz ainda: E le ti­n h a dois chifres. Aqui o profeta apresenta dois chifres no lugar de dois impérios, e de modo algum de duas pessoas. Pois ainda que Ciro se casara com a filho de Cyaxares, seu tio, todavia sabe­mos que o império persa durou um longo período e forneceu aos historiadores um longo catálogo de reis. Uma vez que Ciro teve tantos sucessores, por dois chifres indubitavelmente Deus quis mostrar a seu profeta que os dois impérios, medo e persa, se uni­ram sob um a só soberania. Portanto, quando o carneiro apareceu ao profeta, ele representava ambos os reinos sob um só emblema.

O contexto confirma isso, dizendo: O s dois chifres e ram a l­tos, po rém um m ais alto que o ou tro , e o m ais a lto subiu por ú ltim o. Os dois chifres eram altos; porque, ainda que o território persa não fosse rico, e sendo o povo rústico e vivendo nas flores­tas. sua vida era austera e desprezavam todos os confortos, toda­via a nação estava sempre em guerra. Por isso o profeta diz que esse chifre era mais alto que o outro, significando que o império medo era mais alto. Ora, Ciro excedia a seu sogro Dario em fama, autoridade e condição, e até mesmo permitiu sempre que Dario desfrutasse a majestade régia até o fim de sua vida. Já que ele era mais velho, Ciro podia facilmente conceder-lhe o ofício mais ele­vado sem qualquer perda pessoal. Com respeito, pois, ao período

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seguinte, Ciro evidentemente foi proeminente, como sem dúvida era ele superior a Dario, a quem Xenofonte cham a Cyaxares. Por essa razão, pois, esse chifre era mais alto. Entrementes, porém, o profeta mostra como gradualmente Ciro foi ascendendo às altu­ras. O chifre subiu timidamente; ou, seja, “mais tarde” - signifi­cando: ainda que o chifre do reino medo fosse mais eminente e conspícuo, todavia o chifre que se ergueu depois obscureceu o esplendor e glória do primeiro. Isso concorda com as narrativas da história profana; pois todo leitor dessas narrativas não encon­trará nada registrado por Daniel que não se cumprisse através do evento. Vamos em frente:

4 Vi que o carneiro dava m arradas para o 4 Vjdi arietem ferientem O ccasum et Aqui-ocidenie, e para o norte, e para o sul; de lonem , Septentrionem e t M erid iem : etm odo que nenhum anim al podia estar di- n u lls besti* consistebant coram ipso,41 etante dele, nem havia quem pudesse esca- nem o eripiens e m anu ejus,4í itaque fecítpar de sua m ão; porém ele fazia confor- secundum arbitrium suum , e t m agnifica-me sua vontade, e tom ou-se grande. tus est.

O Profeta então traça em termos breves o grande sucesso que alcançaria esse duplo reino. Diz ele: O carn e iro golpeava todas as nações em d ireção oeste, n o rte e sul. O território persa e medo situava-se ao oriente de Babilônia, Egito, Síria, Á sia M e­nor e Grécia. Isso, sem dúvida, se estende a todos os sucessores de Ciro, que são registrados com o havendo convulsionado o mundo inteiro. Ciro mesmo foi logo depois cruel e vilmente as­sassinado, de acordo com muitos historiadores, ainda que Xeno­fonte afirme que ele morreu em seu leito. Eu, porém, já adverti o leitor a não depositar sua confiança naquele escritor, a despeito de sua grande excelência, visto que, sob a imagem daquele rei, ele desejava pôr diante de nós um exemplo de perfeita virilidade; e daí ele o retratar como a discursar em seu leito mortuário e a exortar seus filhos a cultivarem as virtudes régias. Seja qual for o relato verídico, Ciro foi evidentemente surpreendido em meio a

41 Ou. diante de sua face.42 N io havia ninguém para arrebatá-lo de sua m io.

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sua atividade. Assim Deus quis castigar sua insaciável cupidez, vício esse em que se assemelhava a Alexandre. Quanto a seus sucessores, excitaram comoções tais no mundo inteiro que agita­ram céu e terra. Xerxes disse que ele sozinho podia prender o m ar com grilhões! E conhecemos a grandeza do exército que ele comandava; e esta passagem trata não só de um rei, mas de todos os reis da Pérsia. Visto que obtiveram um domínio tão remoto e amplo, sua ambição e soberba sempre os inflamaram, e não ha­via fim para suas guerras, até que dominaram as longínquas fron­teiras do mundo. Estamos familiarizados também com suas nu­merosas tentativas de destruir a liberdade da Grécia. Tudo isso o profeta abarca em umas poucas palavras. Deus também queria dar ao profeta um breve relance do futuro, até onde tal conheci­mento pudesse ser proveitoso. Disse ele, pois: Vi um carneiro, ou, seja, um animal que possuía um chifre duplo, representando os medos e os persas unificados sob a m esm a soberania.

E le golpeava em d ireção a oeste, a no rte e a sul, d e m odo que n enhum anim a) pod ia fica r d ian te dele. Visto que o reino persa é aqui descrito sob a imagem de um carneiro, todos os reis e povos são denominados ‘animais’. Assim, n enhum an im al perm anecia d ian te dele, e n inguém podia livrá-lo de sua mão. Aliás, é bem notório como Xerxes e outros fracassaram em seus ataques, e quantas guerras as monarquias da Pérsia experimenta­ram, durante as quais foram vencidos pelos gregos. Mas até mes­mo seus conquistadores não ficaram em melhores condições, quando se viram compelidos a buscar paz como esmoleres. Tão imenso tornou-se o poder dos persas que inspiravam medo entre todas as nações. Por essa razão o profeta diz: ag iam conform e sua vontade, não significando o completo êxito dessas monar­quias conforme seus desejos supremos, pois tais desejos eram amiúde frustrados, segundo já referimos acerca do testemunho da evidência histórica. M esmo assim eram sempre formidáveis, não só em relação a seus vizinhos que entregaram seus pescoços

[8.4] DANIEL

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a seu jugo, mas em relação às nações mais remotas, ao cruzarem o mar e descerem da Ásia para a Grécia. Em últim a análise, ele expressa este fato: o ca rn e iro veio a se r poderoso. Pois o rei persa chegou a ser o maior de todos os monarcas do mundo, e é suficientemente notório que nada se pôde acrescentar a sua dig­nidade e força. Continuemos:

5 E, enquanto ponderava, e is que um bode S E t ego eram intentus,4’ ecce, inquit, hir-vinha do ocidente sobre a face de toda a cus caprarum venit ab O ccasu,“ super fa-terra, porém sem tocar o chão; e o bode ciem tolius te rra , neque tam en attingebatCinha um chifre notável entre seus olhos. terrant,43 e t hirco com u illustre erat inter

ocuios ejus.6 E ele chegou ao carneiro que tinha dois 6 E t venit ad arietem , cui erant com uachifres, o qual eu v ira em pé d iante do duo,46 quem videram stantem in ripa flu-rio, e correu em sua direção na fúria de vii,4’ e t cucurrit ad eum cum furore forti-seu poder. tudinis suee.

Aqui se m ostra ao profeta outra mudança, a saber: Alexandre chegando do oriente e assumindo para si o poderoso domínio dos persas, como mais tarde aconteceu. Com vistas, pois, a granjear confiança para sua predição, o profeta disse: E u estava atento . Indubitavelmente, ele frisa a reverência com que recebeu a visão com o fim exortar-nos a sair em busca da piedade, e também da modéstia e atenção. O profeta, portanto, não fora arrebatado pela imaginação de um sonho, sobre o quê se poderia lançar dúvida. Ele sabia que Deus havia posto esta visão diante dele, e reconhe­cia seu dever de recebê-la com modéstia e humildade. Pelo quê, diz ele. E u estava a ten to , e eis que um bode saiu do ocidente. É preciso notar a situação da M acedônia com respeito à Pérsia. Visto que os gregos estavam situados ao ocidente da Pérsia, o profeta diz: o bode saiu do ocidente, e cam inhou sobre a su­perfície de toda a te rra . Essas palavras significam o mui exten-

*' Ou. seja. atentei ou eslava atento.44 Procedente do ocidente.43 N5o tocava o ch2o.46 Que eslava de posse de dois chifres, ou, literalmente, "dono de chifres". <! D iante do rio.

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so domínio de Alexandre e o terror das nações circunvizinhas. E sobejamente notória sua chegada à Ásia com um exército muito insignificante. Ele cria que era suficiente 30.000 homens, depois de ter sido feito seu general pelos Estados da Grécia. Daí a passa­gem deve ser entendida não numericamente, mas em relação ao terror que se inspirava de todos os lados; pois ainda que ele avan­çasse com apenas uma força moderada, no entanto aterrorizou toda a terra.

Ele, porém , não tocava o chão, diz o profeta. Essa é uma referência a sua rapidez, pois ele mais voava do que viajava, quer por terra, quer por mar, tão incrível era sua rapidez nessa expedi­ção. Pois se alguém podia percorrer regiões em com pleta tran­qüilidade, então ele podia atravessar a Ásia com mais rapidez. Daí o bode ser exibido ao profeta como algo que não tocava o chão, ou, seja, sua rapidez se assemelhava a do relâmpago. Diz ele ainda: E o bode tin h a um chifre en tre os olhos - um chifre notável. Sabemos quanta glória Alexandre granjeou para si num curto espaço de tempo, e no entanto não empreendeu a guerra em seu próprio nome, ou sob sua própria responsabilidade, m as uti- lizou-se de todo artifício para obter dos Estados gregos o ofício de general-mor contra os persas, como inimigos perpétuos. Esta­mos bem familiarizados com a hostilidade dos persas em relação aos gregos que, ainda que amiúde compelidos a retroceder com grande infortúnio e infâmia e com a perda de tropas, ainda pros­seguiam renovando a guerra como se possuíssem abundância de homens e de recursos pecuniários. Quando Alexandre foi feito general de toda a Grécia, ele teve um chifre extraordinário entre seus olhos; ou, seja, ele se precaveu em que seu título de general fosse a causa do aumento de autoridade pessoal. Além disso, foi suficientemente proeminente constituí-lo o único general de todo o exército, enquanto todas as coisas eram efetuadas segundo seu beneplácito, durante o tempo em que empreendia a guerra. Eis, portanto, a razão pela qual o profeta diz: o ch ifre e ra visível

[8.5,6] DANIEL

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en tre os olhos do bode. E então: E le chegou ao ca rn e iro que tin h a os dois chifres; ou, seja, veio contra o rei dos medos e dos persas. Ciro também tinha se apoderado de Babilônia e subjuga­ra muitos reis, os dois chifres, porém, se destinam ao carneiro, visto que os reis persas tinham se unificado com os medos por meio de aliança. D aí um bode com seu chifre veio contra o car­neiro que tinha dois chifres e co rreu a seu encon tro no a rd o r de sua b rav u ra . E assim se denota a perseverança de Alexandre, enquanto se apressava, excedendo a toda expectativa, ante a ve­locidade de sua chegada. Ainda que Dario continuasse em segu­rança, em bora tivesse convocado um grande exército, Alexan­dre, porém, avançou na ousadia de sua força, e, com tremenda rapidez, cercou o inimigo. Sigamos em frente:

7 E o vi chegar peno do carneiro, e foi 7 E t vidi appropinquantem ad arietem , etm ovido d e cólera contra ele, e golpeou o exasperan tem se ipsum ,4Spercussit arie-cam eiro, e quebrou seus dois chifres; e não (em, et confregit duo com u a ejus, e t nonhavia poder algum no carneiro para per- fuit virtus in aríete ad standum coram fa-m anecer d iante dele, porém foi lançado ao cie ejus, et dejecit eum in cerram,4V et cal-chão e o pisaram; e n lo houve ninguém cavit eum : e t non fuit qui erueret arietemque pudesse livrar o carneiro de sua mão. e m anu ejus.

Aqui Deus mostra a seu profeta a vitória de Alexandre, sub­jugando quase que totalmente o oriente. Ainda que ele encon­trasse muitas nações no campo de batalha, especialmente os hin­dus, todavia o nome do império persa era tão celebrado no mun­do que a dignidade dos outros nem chegava a seus pés. Alexan­dre, pois, ao vencer Dario, tomou posse de quase todo o oriente. Deus mostrou a seu profeta, por meio dessa figura, a proxim ida­de de sua vitória. Diz ele: Vi quando ele aproxim ou-se do c a r ­neiro. Dario estava fortificado tanto pela distância de seus pos­tos quanto pela resistência de suas fortificações; porque muitas de suas cidades eram inexpugnáveis, segundo a opinião comum

J8 Ou, seja, quando o bode aproximou-se do carneiro, tornou-se excitado, ou tornou-se furioso contra ele.

45 Lançou-o prostrado.

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[8.7] DANIEL

da humanidade. Era incrível, pois, que o bode pudesse aproxi- mar-se do carneiro, cercado como estava de todos os lados por guarnições muitíssimo fortes e poderosas. O profeta, porém, diz que ele aproximou-se do carneiro, e então: exasperou-se co n tra ele. Isso se aplica aos furiosos ataques de Alexandre. Estamos bem familiarizados com a habilidade de seus dons e com a supe­rioridade de sua coragem; todavia, tal era sua desabrida audácia, que sua disposição aproximava-se mais da temeridade do que da bravura régia. Pois ele com freqüência se lançava com um cego impulso contra seus inimigos, e não foi por culpa sua se o nome macedônio não fora destruído dez vezes mais. Como, pois, ele se precipitara com uma tão violenta fúria, não surpreende que o pro­feta tenha dito: ele exasperou-se movido por sua própria índole. E golpeou o carneiro , diz ele. Venceu a Dario em duas batalhas, quando o poder da soberania persa ficou, por toda a Á sia Menor, completamente subvertido. Estamos bem familiarizados com os resultados dessas batalhas demasiadamente perigosas, revelando que todo o estresse da guerra repousou sobre aquele envolvimen­to no qual Dario foi pela primeira vez vencido; pois ao arregi­mentar novas forças e atacar um a segunda vez, perdeu a esperan­ça de manter seu reino, foi traído por seus seguidores e cruel­mente assassinado. Assim o bode golpeou o carneiro e arrancou seus dois chifres. Pois Alexandre tomou posse tanto do império medo quanto do persa.

Diz ele: O carn e iro não teve fo rça p a ra resistir; e ainda que houvera arregimentado uma imensa multidão, todavia essa preparação de nada valeu, pois não passou de fútil pompa. Pois Dario era mas resplendente com ouro e prata e jóias, com os quais ele exibia suas luxurias na guerra, do que podia exibir proem i­nência e força varonil. O carneiro, pois, não teve poder para perm anecer diante do bode. Daí, ele o lançou p ro s tra d o p o r te r r a e o pisoteou; e ninguém pôde livrá-lo de su a m ão. Aliás, D ario foi morto por seus assistentes; Alexandre, porém, pisoteou

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toda sua glória e a dignidade do império persa sob o qual todos os povos do oriente tremiam. Estamos também conscientes da soberba com que ele demonstrava em suas vitórias, inclusive sob a influência de meretrizes e orgias, segundo alguns relatam, tu­multuosamente pôs fogo naquela celebérrima cidadela de Susã num acesso de embriaguez. Visto que ele assim indignadamente pisou sob seus pés a glória da monarquia persa, vemos com quanta justeza os eventos cumpriram a profecia, na form a como regis­trada por todos os historiadores profanos.

ORAÇÃOOnipotente Deus, visto que quiseste que fôssemos arremessados de um lado para o outro em meio a muitas e variadas comoções, permi­te que nossa mente se volva sempre para o alto e para o céu, onde preparaste para nós o infalível descanso e uma tranqüila herança para além do alcance de toda conturbação e estremecimento. Quan­do a terra ao longo da qual peregrinamos cair em confusão, que estejamos então ocupados durante suas tormentas, permanecendo firm es e alicerçados na f é em tuas promessas, até que nos vejamos livres de nossa batalha e sejamos congregados naquele fe liz descan­so, onde desfrutaremos do deleitoso fru to de nossa vitória, em Cristo Jesus nosso Senhor. Amém.

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40ag.xposição

8 Portanto, o bode se engrandeceu sobre- 8 E t h ircus caprarum m agnificatus estm aneira; e , quando se viu forte, o grande adm odum : e t cum in robore suo esset,chifre foi arrancado; e em seu lugar subiu fractum fu itco rnu m agnum , e tp rod ierun to u tro s q u a tro no táve is, para os quatro loco e jus illu slria q u a tu o r alia, versusventos do céu. quatuor ventos ccelorum.

Esta profecia se relaciona com a morte de Alexandre. Já ex­plicamos como, sob a imagem de um bode, o império macedônio é posto diante de nossos olhos, tendo seu início na pessoa de Alexandre, mas de modo algum termina aí, visto que a monar­quia foi dividida em quatro partes. O anjo disse, ou, pelo menos, Daniel registra suas palavras: o bode se engrandeceu so b rem a­neira , porque vagueava como que por esporte através de quase todo o oriente, e ao mesmo tempo o subjugou; mas q u an d o se viu forte, diz ele, o g rande chifre foi a rran cad o . Por esse gran­de chifre ele tem em mente a monarquia, a qual foi a única em poder de Alexandre durante sua vida, visto ser ele o primeiro e o último monarca de sua raça. E, em decorrência de seus generais, os quais obtiveram o domínio dos quatro cantos do mundo, tor- nando-se reis, como logo veremos, a palavra ‘bode’ não se res­tringe a sua pessoa, mas se estende a seus sucessores. Ele mesmo é chamado “o grande chifre” . Daí, quando o bode se viu forte, o grande chifre fo i quebrado. Porque Alexandre, quando morreu, havia chegado ao auge da prosperidade. Se pereceu proveniente de doença ou se foi envenenado, não se sabe, já que os historia­dores nutrem grande suspeita de trapaça. O anjo não diz sua ida-

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40“ EXPOSIÇÃO [8.8]

de, que era de trinta e três anos em sua morte, em bora aparentas­se ter vindo ao mundo com o fim de subjugar toda a terra, ainda que fora arrebatado de forma tão súbita. O anjo, porém, leva em conta aqueles contínuos sucessos, visto que Alexandre quase de um relance subjugara todo o oriente, como declaramos anterior­mente, e avançava afoitamente de um lugar para outro. Daí pere­nemente lograr novas vitórias, ainda que na constante azáfama de sua vida revelasse possuir muito mais audácia do que propri­amente habilidade. Quando ele se viu forte , diz o anjo; signifi­cando: depois de haver subjugado todo o oriente. Havia regressa­do da índia, e determinara cruzar o m ar e reduzir a Grécia a seu vassalo; pois o Estado se rebelara contra ele, e os atenienses já haviam se constituído num grande exército; porém, quando Ale­xandre morreu, todos os Estados orientais da Á sia já se lhe havi­am tornado subservientes. O anjo liga tal fato à quebra do grande chifre.

Em seguida, ele acrescenta: E m seu lu g a r ro m p eram q u a­tro chifres proem inentes. Porquanto ele faz uso do substantivo n r r n , chezeveth, ‘notáveis’, como vimos na preleção anterior.30 Há, pois, quatro reinos que exceliam, e cada um deles era cele­brado e posto no topo. Tampouco é isso supérfluo, visto saber­mos quantos se fizeram reis e que haviam se alistado no serviço de Alexandre com reputação e dignidade. Perdiccas foi o prim ei­ro, e todos acreditavam que ele fora favorecido por Alexandre com honra especial. Quando perguntaram a quem ele desejava fosse o sucessor, sua resposta se adequa com a grandeza e sober­ba de seu espírito: “A pessoa a quem eu considerar digna do im ­pério.” Ele teve um filho com Roxana, filha de Dario, bem como outro filho; então Aridfeus, seu irmão, adiantou-se; ele, porém, a

50 Este substantivo é conectado a pTH. chezeven, “v isio”. e em nossa versão é traduzido variadamente. Em Isaías 18, ele é traduzido “concordemente", e no versículo 5 desse capí­tulo, “notável'', e na margem í traduzido corretamente “de vista” . A tradução latina de Calvino, “ilustre“, é muiü'ssimo adequada. - Nota editorial.

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[8.8] DANIEL

nenhum deles julgou digno da honra de ser seu sucessor, como se o mundo não possuísse nada que se lhe igualasse. Sua resposta, pois, deu prova de sua soberba. Mas quando ficou impossibilita­do de falar, estendeu uma campainha que se achava em sua mão e a passou a Perdiccas. Daí todos conjeturaram que este estava na preferência de Alexandre, e ele era detentor da autoridade supre­ma. Depois disso, Eumenes foi assassinado, o qual o havia servi­do. Ainda que fosse um aliado, ele foi julgado inimigo e traído por seus homens; sendo Lisâmaco, por outro lado, assassinado. Quinze generais foram mortos. E visto que tantos assumiram o posto de Alexandre e exerceram autoridade régia, o anjo correta­mente expressa como quatro chifres proeminentes irromperam do lugar do grande chifre. Porque, depois de vários conflitos e de muitas flutuações durante quinze anos, ou mais ou menos isso, a monarquia de Alexandre foi por fim dividida em quatro partes. Cassandro, filho de Antipater, ficou com o reino macedônio, de­pois de m atar Olímpias, mãe de Alexandre, sua irmã, seus filhos e sua esposa Roxana. Esse foi um morticínio horrível, e se Deus jam ais oferecesse ao mundo um espetáculo visível, pelo qual pu­blicamente denunciasse o derramamento de sangue humano, se­guramente um a prova memorável deste existiu em toda a raça de Alexandre! Nem sequer um sobreviveu nos quarenta anos depois de sua morte. Ainda que sua mãe houvesse chegado à velhice, não lhe foi permitido descer dignamente à sepultura, porém foi assassinada. Sua esposa, seu filho e seu irmão, e todos de seu parentesco partilharam de seu destino. E esse morticínio se afi­gurou ainda mais cruel quando nem um único líder poupava a vida de seus companheiros, mas cada um ou publicamente ataca­va, ou astuciosamente assaltava seu amigo e confederado. Omi­tindo, porém, os detalhes, quatro reinos foram por fim deixados depois de um a devastação tão nefanda. Pois Cassandro, filho de Antipater, ficou com a M acedônia e alguma parte da Trácia, ju n ­tamente com as cidades da Grécia. Seleuco veio a ser o soberano

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na Síria; Antígono, na Ásia Menor, juntando Frigia, Paflagônia e todas as demais regiões asiáticas, depois que cinco ou seis gene­rais foram mortos. Ptolomeu veio a ser prefeito do Egito. Isso perfaz quatro chifres, aos quais o anjo denom ina de ‘proeminen­tes’, pois, com base no testemunho da história, todos os outros principados se desvaneceram. Os generais de Alexandre dividi­ram entre si as grandes e férteis províncias, mas por fim se resu­miram nessas quatro cabeças. Diz ele: pelos q u a tro ventos do céu, ou, seja, da atmosfera. Ora, o reino da M acedônia ficava muito mais distante da Síria; a Ásia ficava ao meio e o Egito, ao sul. Assim, o bode, como já vimos, reinou pelos quatro cantos do globo; posto que o Egito, como já dissemos, estava situado ao sul; o reino da Pérsia, porém, que foi apossado por Seleuco, fica­va ao oriente e unido a Síria; o reino da Á sia ficava ao norte, e o da Macedônia, ao ocidente, como anteriormente vimos o bode estabelecendo-se desde o ocidente. Portanto, vamos em frente:

9 E de um deles saiu um chifre pequeno. 9 E t ex uno illorum egressum esl cornu o qual prosperou excessivam ente para o unum parvum , e t m agniftcatum fuit ext- su). e para o oriente, e para a terra aprazi- mie versus M eridiem , e t ad O rientem , et vel. ad g loriam .’1

Agora Deus m ostra a seu profeta o que peculiarmente inte­ressava ao bem-estar de sua Igreja. Pois era de mui grande im ­portância advertir os judeus quanto às calamidades que estavam para oprimi-los. Não há nada que mais atormenta as mentes hu­manas do que tornarem-se presas de falsas imaginações, crendo que o mundo é um joguete do acaso, enquanto jam ais ponderam sobre a Providência de Deus nem atentam para seus juízos. Daí, com tal desígnio, Deus queria ensinar ao profeta e a todos os santos qual é a natureza de suas aflições futuras, visto que assim entenderiam com o os eventos nunca se concretizam ao acaso,

40* EXPOSIÇÃO [8.9]

' ' Ou. desejo; há quem o traduza no genitivo, e entende-se como "terTa desejável"; pois a Judeia era amiúde chamada a terra desejável, porque Deus de seu gracioso beneplácito escoiheu ser adorado ati: mas podemos entendê-lo simplesmente como glória.

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[8.91 DANIEL

senão que todos esses açoites procedem de Deus; pois o mesmo Deus tanto determina quanto executa seus decretos, como ele tam­bém prediz eventos futuros. Pois se nada fora predito, os santos teriam se deslizado furtivamente para o desespero em decorrên­cia de suas aflições profundamente dolorosas. Sabemos também quão magnificentemente os profetas enalteciam a graça de Deus quando prometiam regresso e livramento. Isaías igualmente, em outras partes, falou a esse respeito: “O Senhor desnudou seu bra­ço perante os olhos de todas as nações; e todos os confins da terra verão a salvação de nosso Deus” [52.10]. “Porque com alegria saireis, e em paz sereis guiados; os montes e os outeiros rompe­rão em cântico diante de vós, e todas as árvores do campo bate­rão palmas” [55.12]. “ ... todos virão de Sabá; ouro e incenso tra­rão, e publicarão os louvores do Senhor” [60.6], Aos judeus se permitiu regressar a sua própria terra; sabemos, porém, quão cru­elmente foram assenhoreados por todos seus vizinhos, de modo que permaneceram naquele canto de mundo não sem as mais ter­ríveis dificuldades. A edificação tanto da cidade quanto do tem­plo foi dificultada por inúmeros inimigos, até que, por fim, se tom aram tributários dos reis da Síria. Aliás, Antíoco, de quem aqui se faz alusão, avançou com cruel tirania contra o povo de Deus. Se tal coisa não fora predita, teriam concluído que haviam sido enganados pelas esplêndidas e divinas promessas acerca de seu regresso. Quando, porém, perceberam que tudo sucedia de acordo com o que haviam sido de antemão advertidos, isso veio a ser um conforto não insignificante em meio a seus ais. Puderam, pois, determinar prontamente quão cabalmente estava no poder de Deus aliviá-los de tantos e tão opressivos males. Com que intenção, pois, preanunciara Deus todas essas coisas através de seu profeta Daniel! Os judeus puderam perceber o feliz resultado e não se furtaram ao desespero sob os acontecimentos tão carre­gados de ansiedade e confusão. Essa, pois, foi a utilidade da pro­fecia, com referência àquele período específico.

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40a EXPOSIÇÃO [8.9]

Quando o profeta diz: de um daqueles q u a tro ch ifres er- gueu-se u m pequeno, a indicação cai mais distintamente sobre Antíoco Epífanes. O título Epífanes significa ‘em inente', quan­do, depois da captura de seu pai, ele foi detido em Roma como refém, e então escapou da custódia. Os historiadores nos infor­mam que ele possuía um a disposição servil e muitíssimo dado a grosseira bajulação. Visto que ele nada tinha de régio nem de heróico em seus sentimentos, mas que era simplesmente notável por sua astúcia, o profeta é justificado em denominá-lo de o p e­queno chifre. Ele era muito mais poderoso que seus vizinhos; porém o chifre é denominado de pequeno , não em comparação com os reinos do Egito, ou da Ásia, ou da Macedônia, mas por­que ninguém poderia imaginar que ele um dia seria rei e sucede­ria a seu pai. Ele era o mais velho dentre muitos irmãos, e singu­larmente servil e astuto, sem o mais leve laivo de dignidade para futura realeza. Assim ele era o chifre pequeno que escapou secre­ta e fraudulentamente da custódia, como já mencionamos, e re­gressou a seu país de origem, ao qual mais tarde governaria.

Ele então acrescenta: E ste chifre p ro sperou excessivam en­te p a ra o sul, p a ra o o rien te e p a ra a te rra aprazível. Porque, a não ser que fosse refreado pelos romanos, ele teria tom ado pos­se do Egito. H á um a extraordinária e celebrada história de Pom- pilio que diz que lhe foi enviada um a ordem de abster-se do Egi­to, sob as ordens do senado. Depois de haver-lhe entregue a men­sagem, Antíoco pedia tempo para a deliberação, mas Pompilio traçou um círculo com o bastão que tinha na mão, e o proibiu de mover sequer um pé até que lhe fosse dado resposta. Embora reivindicasse o Egito como um direito de conquista, porém não ousou abertamente esquivar-se ante as exigências de Roma; a princípio ele pretendia ser simplesmente o guardião de seu sobri­nho, mas certamente apoderou-se do reino em seu próprio nome. Entretanto, não ousou opor-se aos romanos, porém, ao mudar seu território, seu desejo era despedir Pompilio. Tinha havido

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[8.10] DANIEL

relações mútuas entre eles enquanto esteve como refém em Roma; daí oferecer-se para saudar Pompilio na entrevista, porém este o rejeitou desdenhosamente e, como eu já disse, traçou um a linha a sua volta, dizendo: “Responda-me antes de sair desse círculo; não me engane pedindo tempo para consultar seus conselheiros; responda imediatamente, do contrário você sabe como o trata­rei.” Ele se viu impelido a renunciar o Egito, ainda que anterior­mente se recusara a fazê-lo. A linguagem do profeta, pois, não foi debalde: O pequeno chifre prosperou excessivamente para o sul, ou, seja, para o Egito, e para o oriente; pois ele estendeu seu reino para além dos Ptolomeus. Em terceiro lugar, ele usa o ter­mo glória [terra aprazível]; ou, seja, Judéia, o santuário de Deus, a qual ele escolhera como sua habitação e onde queria que seu nome fosse invocado. E assim esse pequeno chifre estendeu-se para a glória , ou para a terra de glória ou desejo. Não há nada de incerto no sentido, ainda que a interpretação raramente concorde com as palavras. Vamos em frente:

10 E se engrandeceu m uito, até ao exér- 10 Et m agnificatum est corpu illud par-cito do céu; e a alguns do exército e das vum ad exercttum crelorum , e t dejecit inestrelas arrojou ao chão c os pisou. terram ex illo exercitu , nempe ccelesti, el

ex stelüs, e t calvavit eas.

Aqui Daniel prossegue com a visão que havia recebido. Já mostramos que o objetivo do Onipotente é a preparação dos fiéis para suportarem sérias calamidades, porque não lhes aconteceria nada novo ou inesperado. Ora, a insistência de Daniel neste pon­to não causa surpresa, pois seu dever era informar os fiéis sobre as pesadas calamidades que estavam chegando, e assim moldá- los à paciência e eqüidade. E assim diz ele: O ch ifre to rnou-se m agnificente, até [chegar] ao exército dos céus. Sem a mais leve dúvida, esta figura caracteriza o povo eleito de Deus. Ainda que a Igreja amiúde se veja prostrada no mundo, e seja pisoteada pelos inimigos, e sepultada, todavia ela é sempre preciosa aos olhos de Deus. D aí o profeta adornar a Igreja com este extraordi-

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40a EXPOSIÇÃO [8.11]

nário enaltecimento, não com o intuito de obter para ela alguma honra diante dos homens, mas porque Deus a separou do mundo e lhe providenciou uma herança infalível no céu. Ainda que os filhos de Deus sejam peregrinos sobre a terra, e raramente possu­am um a habitação aqui, tornando-se proscritos aos olhos dos homens, não obstante são cidadãos celestiais. A utilidade deste ensino nos é evidente ao induzir-nos ele a suportar pacientemen­te sempre que nos virmos prostrados no chão e sempre que os tiranos e desdenhadores de Deus nos olharem com escárnio. En­trementes, nossa morada está no céu, e Deus nos nomeia entre as estrelas, ainda que, como diz Paulo, sejamos como lixo e escória de todos [ICo 4.13]. Em suma, Deus aqui mostra ao profeta, como num espelho, o apreço que ele tem por sua Igreja, por mais des­prezível seja ela sobre a terra.

Esse chifre, pois , fo i magnificado diante do exército dos céus, e lançou alguns dentre aquele exército por terra, e os apagou das estrelas. Precisamente como se proclamasse a liberação das rédeas ao tirano, permitindo-lhe tratar a Igreja com desprezo, es­magá-la com seus pés e derrubar as estrelas do céu, precisamente como se Deus nunca aparecesse para sua proteção. Pois quando Deus quer que nos refugiemos a salvos e seguros em sua mão, e declara ser impossível que se prevaleça contra seu auxílio, en­quanto que os tiranos se assenhoreiam de nós e nos oprimem segundo seus caprichos, isso se assemelha a derrubar as estrelas do céu. Deus, pois, quando nos tom a sob sua guarda, não nos oferece qualquer socorro, mas dissimula como se quisesse aban­donar-nos nas mãos de nossos inimigos. Portanto, nada é supér­fluo nessas expressões do profeta: As estrelas fo ram pisoteadas e o exército celestial foi lançado p o r te rra . E então acrescenta:

11 Sim . ele se engrandeceu a té contra o 11 E t ad Principem exercitus m agnifica- príncipe d o exército ; e por ele foi tirado o tum est,52 e t ab eo ablatum fuit ju g e ,33 et

52 Ou seja, avançou até ao príncipe do exército.Ou seja. o sacrifício.

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[8.11] DANIEL

sacrifício d iário e o lugar de seu santuá- projectus fuitM locus sanctuaríi ejus. rio foi lançado por terra.

Daniel anuncia aqui aigo ainda mais atroz, a saber: a exalta­ção do pequeno chifre contra Deus. Alguns tomam “o príncipe do exército” como sendo o sumo sacerdote, visto que os prínci­pes às vezes são chamados □'ÍITD, kuhnim , bem como □"HU?, serinr, mas isso é muito forçado. O verdadeiro sentido da passa­gem imputa a Antíoco um a tal arrogância e estultícia, ao ponto de ele declarar guerra às estrelas do céu, implicando não só sua oposição à Igreja de Deus, a qual é separada do mundo, mas tam­bém em desafiar ao próprio Deus e em resistir seu poder. Ele não só exerceu sua crueldade contra os fiéis, mas profanou o próprio templo, e tudo fez para extinguir toda piedade e abolir o culto divino por toda a Judéia, como explicaremos mais plenamente em outras passagens. Como, pois, Antíoco não só se enfureceu contra os homens, mas usou de seu máximo empenho para sub­verter a religião, Daniel relata com o esse ch ifre se exaltou até m esm o co n tra o p ríncipe do exército. Deus é com justiça qua­lificado para esse título, porque ele defende sua Igreja e a nutre debaixo de suas asas. Essa expressão deve ser explicada não só pelo prisma da glória e império de Deus, mas também de seu favor paternal para conosco, como ele se digna manifestar seu cuidado por nós como se fosse nosso Príncipe.

E p o r ele, diz o profeta, foi com pletam ente tira d o o sacrifí­cio d iá rio e o lu g a r de seu san tu ário foi lançado p o r te rra . Estas palavras são terríveis em sua essência; Deus foi assim es­poliado de seus direitos, visto que ele escolhera apenas um canto do mundo para seu culto especial. Que pagão, pois, desprezaria essa tolerância de Deus, em permitir ele ser privado de sua honra legítima por esse sórdido tirano? Como já declaramos, Antíoco não possuía nem grandeza de mente nem coragem bélica, sendo

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40* EXPOSIÇÃO [8.12]

que sua habilidade estava estritamente no campo da astúcia e dos mais vis atos de bajulação. Além disso, admitindo que ele tivesse abarcado centenas de Alexandres em sua própria pessoa, que de­sígnio é esse do Onipotente em permitir que seu templo fosse profanado e todos os verdadeiros sacrifícios cessados no mundo inteiro? Como acabei de mencionar, um único canto foi deixado onde Deus quis ser adorado, e então Antíoco se apodera do tem­plo e o profana e o macula com a máxima indignidade possível, não deixando assim um único lugar sagrado para o Todo-Podero- so. Por essa razão asseverei que a profecia parece escabrosa de­mais. O profeta então aumenta a indignidade ao falar do sacrifí­cio perpétuo [diário], Pois Deus sempre deu testemunho de ser seu templo o lugar de seu perpétuo ‘repouso’, ou seu ‘habitat’, ou seu ‘trono’. Todavia, ele agora é lançado desse santo lugar, como se fosse completamente exilado da terra. O templo não podia existir sem sacrifícios, pois que todo o culto sob a lei era um tipo de apêndice ao templo. Visto que Deus prometera que o sacrifí­cio seria perpétuo e eterno, quando Antíoco o destruiu, quem não afirmaria ou que todas as promessas foram enganosas, ou que toda a autoridade se apartou de Deus, o qual deixou de defender seu direito contra esse ímpio tirano? Seguramente, essa deve ter sido um a calamidade angustiante e esmagadora para todos os fi­éis! E quando, mesmo neste momento, lemos a profecia, todos nossos sentidos são terrificados por sua leitura. Não surpreende, pois, que Deus tenha precavido a seu servo de eventos tão doloro­sos, e de males tão incríveis, com o intuito de admoestar toda sua igreja em tempo hábil e armá-la contra as mais severas tentações, as quais doutra forma chocariam até mesmo os mais corajosos. O sacrifício, pois, diz cie, fo i arrebatado do próprio Deus e o lugar de seu santuário fo i lançado por terra ou dissipado. Continuemos:

12 E um tem po lhe foi dado contra o sa- 12 Ei tem pus,55 datum est super jug i sa-

si Alguns traduzem ‘exército’, eu, porém, aprovo o outro sentido, e o justificarei daqui a pouco.

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[8.12] DANIEL

crifício diário, por causa da transgressão, crificio in scelere,M e t projiciet veritatem e lançou a verdade por terra, o fez e pros- in terram , e t faciet,” et prospere agei. perou.

O profeta mitiga a aspereza que agora registra. Parece absur­do que Deus conceda a Antíoco tal licença, ou, seja, que seu tem­plo seja maculado e todos os sacrifícios e todo o culto exterm ina­dos. É difícil conciliar isso, porque natural e furtivamente a opi­nião se insinuará: possivelmente Deus esteja constrangido e pri­vado do poder de subjugar seus inimigos. O profeta, pois, clara­mente afirma aqui como a licença de humilhar e oprim ir a Igreja jam ais teria sido concedida a Antíoco sem a permissão de Deus. Tem po, pois, lhe será dado, diz ele. Pela expressão, tempo lhe será dado, ele indica a vontade de Deus, significando: os santos não terão motivo de sentir-se frustrados quando virem todas as coisas conturbadas e confundidas em cada direção, quando Deus administrará todas essas perplexidades por meio de seu ju ízo se­creto. Tempo, pois, lhe será dado, significando que Antíoco nada pode fazer por sua desenfreada e furiosa audácia, a menos que divinamente lhe seja permitido e previamente limitado. N3X, tze- ba, significa tanto ‘exército’ como ‘tem po’, mas o último signifi­cado é o mais adequado aqui; pois quando é traduzido “um exér­cito lhe será dado”, o sentido parece forçado. Sinto-me mais dis­posto a abraçar o sentido de um tempo que lhe será permitido; ou, seja, Deus testará a paciência de sua Igreja por certo tempo definido, e então volverá seus problemas para um fim determina­do. Sabemos ser impossível sustentar o espírito dos fiéis de outro modo que não seja por sua expectativa de um término favorável e pela esperança de emergir do abismo de sofrimento. Eis, pois, a razão por que Deus mostra a seu profeta, através de visão, a dura­ção temporária do domínio de Antíoco. Um período, pois, lhe se rá designado sobre o sacrifício perpétuo . Significando que.

56 Ou. por “coma da impiedade”, literalmente, “tempo será dado" - o tempo futuro.57 O u. seja, terá a execução preparada, como às vezes dizemos.

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40a EXPOSIÇÃO [8.12]

seja qual for sua intenção, ele não abolirá o culto divino. Porque, por mais que ele lute, Deus não permitirá que os sacrifícios pere­çam completamente e para sempre; ele os restaurará em seu de­vido tempo, como mais adiante veremos; e quando chegarmos ao final, descobriremos o contexto fluindo em harm onia com este significado - um tempo lhe será dado sobre o sacrifício contínuo.

Ele então acrescenta PU7D3, beph-sheng, “em impiedade” ou “em pecado” . Prefiro a tradução simples, “em pecado” em vez de “por meio do pecado” , ainda que diferentes sentidos sejam evo­cados segundo os diferentes conceitos dos intérpretes. É melhor deixar que cada um escolha livremente, e assim simplesmente traduzir “em impiedade” ou “em pecado". Alguns o aplicam a Antíoco, porque impiamente profanou o tempo de Deus e aboliu os sacrifícios. Este sentido é provável, mas adicionarei outros, e então direi qual deles me agrada mais. Alguns entendem “em pecado” como uma referência aos sacerdotes, porque, através da perfídia de Jason, Antíoco entrou na cidade, profanou o templo e introduziu aquelas abominações que exterminaram toda a pieda­de e o culto divino [2 Macabeus 4.7]. Como Jason desejava afas­tar o sacerdócio de seu irmão Onias, ele abriu os portões para Antíoco; então seguiu-se um grande morticínio, quando todos os adeptos de Onias foram cruelmente mortos. M ais tarde Menelau expulsou Jason novamente com semelhante perfídia. Alguns tra­duzem “por meio da impiedade”, visto que esses sacerdotes in­duziram Antíoco a praticar crueldade na cidade santa e violar o próprio templo. Outros chegam mais perto do sentido real, su­pondo que os sacrifícios foram interrompidos através da impie­dade, porque foram adulterados pelos sacerdotes. M as isso me parece restrito demais. Em minha opinião, inclino-me antes para o ponto de vista dos que tomam ‘im piedade’ como um a causa ou origem, com isso ensinando quão justamente foram os judeus castigados por seus pecados. Já expliquei quão apropriadamente a visão se limitou a um tempo e foi controlada pela permissão e

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[8.12] DANIEL

conselho secreto de Deus. A causa é aqui expressa; pois poder- se-ia ainda objetar: “Como é possível que Deus se submeta, a si e a seu sacro nome, ao ridículo dos ímpios, e ainda desampare a seu próprio povo? O que ele pretendia com isso?” O profeta, pois, assinala esta causa: os judeus devem sofrer a profanação do tem­plo, a triste devastação de toda a cidade e seu horrível morticínio, como uma recompensada por seus pecados. Um tempo, pois, lhe será designado sobre o sacrifício perpétuo em pecado ; ou, seja, em virtude do pecado. Aqui vemos como Deus, por um lado, modera o peso dos males que sobrevieram aos judeus, e lhes re­vela alguma bondade, para que dolorosa ansiedade e desespero não consumissem o povo esmagado; por outro lado, ele os humi­lha e os admoesta para que confessem seus pecados, e então insta com eles para que apliquem suas mentes ao arrependimento, de­clarando que seus próprios pecados eram a causa de suas afli­ções. Ele assim mostra como a fonte de todos seus males estava nos próprios judeus, enquanto a ira de Deus era provocada por seus vícios. E necessário parar aqui até amanhã.

ORAÇÃO

Onipotente Deus, visto que nos tens iluminado pelo ensino de teu evangelho, e tens posto diante de nossos olhos teu unigénito Filho como o Sol da Justiça para governar-nos, e tens designado separar- nos do mundo inteiro e fazer-nos teu povo peculiar e preparar para nós uma sede segura no céu, concede-nos, a ti oramos, que sejamos herdeiros da vida eterna. Concede-nos também constante meditação em tua santa vocação e que possamos empreender nossa peregrina­ção sobre a terra com espíritos contemplativos e inclinados para ti.Que meditemos sobre a justiça de teu reino e devotemo-nos inteira­mente a ti. Protege-nos com tua mão agora até o fim , e que marche­mos ousadamente sob tua bandeira, até que, por fim , cheguemos àquele bendito descanso onde o fruto de nossa vitória nos aguarda em Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

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4 1 « fexposição

qui Daniel faz menção de um entre os muitos crimes de c s í Antíoco: seu ato de lançar por terra a verdade. Esta ex­pressão deve ser anexada à primeira; pois Antíoco não poderia privar a Deus de seu culto legítimo sem abolir a sã doutrina. O anjo aqui parece expressar a razão para a destruição do santuário, porque o culto devido a Deus dependia da instrução da lei, que é aqui subentendida pela palavra ‘verdade’. Esta mensagem, pois, declara que nenhuma religião é agradável a Deus a menos que seja fundada sobre a verdade; pois Deus, segundo o ensino inva­riável das Escrituras, não quer ser cultuado segundo os caprichos humanos, mas, antes, prova a obediência dos homens prescre­vendo o que ele exige e aprova, para que os homens não ultrapas­sem esses limites. É preciso que aqui observemos a união que Daniel agora estabelece entre a subversão e a abolição do culto de Deus e o ato de lançar a verdade ao chão, quando ela nem obtém sua dignidade, nem subjuga a si todos os mortais.

Que se leia: ele lançou por terra a verdade; assim fazendo um a distinção entre céu e terra. E caso nos agrade lê-lo assim, o sentido será: a verdade ainda permanece estável mesmo quando pereça sobre a terra, porque ela mantém sua posição no céu. As­sim o sentido seria: depois da abolição do culto divino, e a cessa­ção dos sacrifícios, a piedade não mais pôde existir entre os m or­tais. Por fim ele acrescenta: ele será bem sucedido e prosperará. A prim eira palavra aqui implica execução. Deus queria que toda

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[8.13, 14] DANIEL

sua Igreja fosse admoestada quanto aos prósperos sucessos de Antíoco, para que os fiéis não se sentissem deprimidos ao visua­lizarem o ímpio tirano tão petulante e impudentemente profa­nando o templo de Deus e destruindo completamente sua reli­gião, como se ele quisesse provocar a Deus pessoalmente a um a confrontação. Pois tal conduta era equivalente a uma direta de­claração de guerra contra Deus. Pois seu sucesso traria tribulação aos santos, como se o tirano fosse superior a Deus mesmo. Daí esta predição advertir os fiéis contra a novidade ou subitaneidade de tudo o que pudesse ocorrer. Prossigamos:

13 E ntão ouvi um santo falando, e disse 13 E t audivi sanctum unum loquentem:outro santo àquele que falava: A té quan- dixit ergo sanctus unus m irabiii, dicemusdo durará a v isão acerca do sacrifício d i- postea de voce, loquens, Q uousque visioá r io e a transgressão desoladora, para que ju g is sacriflcii, e t sce leris vastan tis adseja en tregue tanto o santuário quanto o dandum ,’“ e t sanc tuarium , e t exerc itu sexército , a fim de que sejam pisados? conculcatio .”14 E e le m ed isse : A té do is mil e trezen- 14 E t dixit m ihi, ad vesperum , m ane,“ duoto sd ia s ;e n tio o sa n tu á r io será purificado. m illia e t trecenti anni: e t ju stificab itu r

sanctuarium .

Aqui ele expressa mais claramente o que disse anteriormen­te, desvendando a intenção divina de consolar e amenizar os so­frimentos dos santos, para que não fossem esmagados pela seve­ridade de suas provações, à vista de um tirano ímpio e dominador no santuário de Deus. Além disso, o sítio no qual Deus promete­ra estabelecer sua perpétua habitação estava entregue a ímpias superstições, pois o ídolo de Júpiter Olímpio fora erigido ali, como nos informa a história dos Macabeus [2 M acabeus 1.57; 6.2]. Deus, pois, queria sustentar seus servos, para que um a tão severa tentação não os esmagasse, e para que um a provação em formas

M Há quem traduza: Até quando se permitirá a visão? Mas é antes preferível tratar a questão pelas regras gramaticais - “Até quando se permitirá a visão do sacrifício perpétuo e a impiedade devastadora?"

5’ Ou, seja. para ser pisado. Esta palavra pode ser repetida.60 Ou. seja, até a tarde e a manhã. A nota de Wintle sobre estes versículos são muito

explanatórias e concordam com todos os comentários de Calvino. Ver Dissertação sobre este versículo.

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41* EXP05 IÇÃ 0 [8.13, 14]

tão variadas não os levasse à rendição e a torná-los deficientes em sua piedade pela falta de coragem. Mas enquanto Daniel fica estupefato com profunda perplexidade, Deus socorre sua fraque­za com a presença de um anjo. Daniel mesmo, sem dúvida, in­quiriu sobre a visão, como o veremos fazer mais adiante; aqui, porém. Deus queria contentá-lo quando viu o santo varão tão vencido pelo temor que quase não ousava form ular qualquer per­gunta. Aqui, pois, Deus oferece uma inusitada prova de sua bon­dade e indulgência paternais, ao interpor e enviar seu anjo para fazer inquirições em nome do profeta. Ele diz, pois, que ouviu um santo , significando um anjo. Porque, ainda que Deus se digne em cham ar os fiéis, enquanto habitam neste mundo, por um títu­lo tão honroso, todavia a pureza superior dos anjos nos é fami­liar, visto que são totalmente isentos dos desejos da carne. Mas, infelizmente, estamos detidos neste presídio e encarcerados na masm orra do pecado e contaminados por profunda corrupção. A santidade dos anjos, contudo, é muito maior que a dos mortais, e assim este atributo de ‘santidade’ lhes é apropriadamente aplica­da. Quando Daniel se viu arrebatado pelo espírito profético, ele foi separado da socie'dade dos homens e se viu admitido à socie­dade dos anjos.

Um an jo , pois, disse ao que é m aravilhoso . Os hebreus amiúde usam esta expressão quando querem dizer: “quem quer que seja" - ploni almoni - , e a aplicam tanto a lugares quanto a pessoas. Usam-na também em referência a qualquer lugar que lhes seja desconhecido ou velado. Tratam o substantivo como composto de duas palavras, e muitos o interpretam em referência a alguém desconhecido, mas creio que a palavra é mais enfática do que meramente isso.61 Daniel aqui apresenta um anjo falando, e adiciona dignidade a sua descrição denominando-o de ‘santo’. Sem dúvida, pois, a pessoa a quem o anjo fez a pergunta era seu

61 Calvino quer significar que os judeus usavam essas palavras para expressarem a idéia da frase latina: “omne ignotum pro magnifico."

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[8.13, 14] DANIEL

superior; não é provável que ele seja chamado ‘alguém ’ quando o anjo é intitulado um santo. A razão, pois, requer que a expres­são seja aplicada a algum anjo superior aos ordinários; pois, como Daniel o chama um anjo ‘santo’, assim ele teria chamado os de­mais, com o veremos mais adiante. Não obstante, quando se trata de um ser distinto, ele usa a palavra palmoni, e sua eti­mologia nos guia a seu sentido, como que significando algo m is­terioso e incompreensível. Então, quem não percebe que a pes­soa aqui implícita é Cristo, o qual é o Príncipe dos anjos e muitís­simo superior a todos eles? No capítulo 9 de Isaías [v. 6], ele é chamado pela , ‘o M aravilhoso’. A palavra no texto é com ­posta, como já dissemos, visto, porém, que K*?D, pela, significa em hebraico ‘oculto’, visto Cristo ser assim chamado, e visto em Juizes 3 .1 Deus reivindicar esse título como peculiaridade sua, todos esses pontos concordam plenamente bem. O sentido, pois, é que um anjo veio a Cristo por causa de Daniel e de toda a Igre­ja , e busca da parte dele, como o supremo Mestre e Senhor, o significado das declarações que acabamos de ouvir. Não carece que fiquemos surpresos com anjos inquirindo sobre o futuro, como se este lhes fosse desconhecido. E tão-somente propriedade da Deidade conhecer todas as coisas, enquanto que o conhecimento dos anjos é necessariamente limitado. Paulo nos ensina a mara­vilharmo-nos de a Igreja ser reunida dentre o povo profano e es­tranho; esse era um mistério velado dos próprios anjos, antes de Deus realmente revelar-se como o Pai do mundo inteiro [Ef 3.10]. D aí não haver absurdo algum em supor-se que os anjos queiram conhecer esse mistério, quando a ignorância não é necessaria­mente merecedora de vergonha, e quando Deus não ergueu suas criaturas a seu próprio nível. E seu domínio peculiar conhecer todas as coisas e manter tudo diante de seus olhos. O anjo deseja com preender esse mistério, não tanto para si mesmo, mas por causa de toda a Igreja. Porquanto sabemos que os mesmos são nossos ministros, de acordo com o claro testemunho do apóstolo

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41 * EXPOSIÇÃO 18.13, 14]

[Hb 1.14]. Visto que mantêm sobre nós cuidadosa vigilância, não nos surpreende encontrar o anjo inquirindo solicitamente acerca desta visão, e assim beneficiando a Igreja toda pela mão de Daniel.

Entrementes, devemos observar como Cristo é o Príncipe dos anjos e também seu instrutor, porquanto ele é a eterna Sabedoria de Deus. Os anjos, pois, devem receber dessa Fonte singular toda a luz de sua inteligência. Assim os anjos, por meio de seu exem­plo, nos atraem para Cristo, e nos induzem a dedicar-nos a ele através da persuasão de que essa é a suprema e única Sabedoria. Se somos seus discípulos, sendo-lhe obedientes, humildes e pas­síveis de instrução, desejaremos conhecer somente o que ele nos quiser manifestar. O anjo, porém, pergunta: Q ual é o significado d a visão do sacrifício perp é tu o e do pecado? Ou, seja, qual é o objetivo da visão concernente à anulação do sacrifício perpétuo e concernente ao pecado que assola? Quanto ao segundo ponto, explicamos na mensagem anterior as várias opiniões dos intér­pretes, alguns torcendo-a em direção a Antíoco que impiamente ousou violar o templo de Deus; e outros, em direção aos sacerdo­tes. Dissemos, porém, que a intenção visava ao povo, para que muitos, como era o costume, não se envergonhassem do Onipo­tente por afligir ele tão pesadamente a Igreja. Deus, porém, que­ria dar testemunho da origem dessa devastação como sendo os pecados do povo. É justamente como se o anjo dissesse: Até quan­do os sacrifícios cessarão? Até quando durará essa vingança pela qual Deus castigará a impiedade de seu povo? Pois o pecado é denominado devastação, por ser ele a causa de tal calamidade. Em seguida se acrescenta: até quando o san tu á rio e o exército serão pisoteados? Ou, seja, até quando o culto divino e a genuí­na piedade, e o próprio povo, serão pisoteados sob tão cruel tira­nia de Antíoco? Esta pergunta, porém, tem muito m ais eficácia do que se o profeta dissera, como vimos na mensagem anterior, que o castigo seria conveniente e temporário. Agora se fazia ne­cessário explicar o que já foi expresso mais claramente. Assim

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18.13, 14] DANIEL

esta questão foi interposta com o intuito de tom ar Daniel mais atento e despertar o povo, com sua narrativa, a buscar o aprendi­zado. Pois não é um acontecimento comum os anjos se aproxi­marem de Cristo movidos por nosso interesse e inquirir sobre os acontecimentos que dizem respeito ao estado e segurança da Igre­ja. Como, pois, os anjos tomam a seu encargo esse dever, sería­mos piores que uma pedreira se não nos movêssemos à solicitu­de e prudência na busca do conhecimento divino. Vemos, pois, por que esta passagem acerca do anjo se interpõe.

Segue-se então a frase: E ele m e disse. Isso se deve aplicar não à inquirição do anjo, mas ao Maravilhoso. D aí deduzirmos a grande ansiedade do anjo sobre a interpretação da profecia, não em seu benefício, mas para o comum benefício dos santos. No que concerne a este Maravilhoso, embora esteja eu persuadido de ser ele o Filho de Deus, todavia, quem quer que seja ele, certa­mente não rejeita o pedido do anjo. Por que, pois, ele se dirige a Daniel e não ao anjo? Porque o anjo não buscava seu próprio benefício, mas lutava em prol da causa de toda a Igreja, segundo já mostramos como os anjos se ocupam de nossa salvação. As­sim também percebemos como o anjo nota a perplexidade do profeta, ficando quase morto e sem ter coragem de inquirir do anjo, ou pelo menos não ousava quebrar o silêncio de uma vez; pois em seguida se recobra e é erguido pela mão do anjo, como logo veremos.

O M aravilhoso m e disse - ou, seja, o incompreensível ou o ominoso me disse: p o r duas mil e trezen tas ta rd es e m anhãs, e en tão o san tu ário será justificado. Aqui os hebreus mutuamen­te discordam se devem entender o número de anos ou meses; mas é surpreendente perceber quão grosseiramente se deixam enganar por uma questão tão clara. A expressão tarde e manhã não deixa dúvida, visto que Cristo claramente tem em mente dois mil e trezentos dias; pois que outro sentido poderia ter a frase tarde e m anhãl Ela não pode ser entendida nem de anos nem de

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41 ‘ EXPOSIÇÃO [8.13, 14]

meses. Evidentemente, temos de entender aqui dias naturais, con­sistindo de vinte e quatro horas cada um. Os que o entendem como sendo anos e meses estão miseravelmente equivocados, e até ridículos em seus cálculos. Pois alguns começam a calcular o tempo a partir de Samuel, em seguida descem ao reinado de Saul e por fim ao de Davi; e assim tolamente pigarreiam por não en­tenderem a intenção de Cristo, que queria que sua Igreja fosse prevenida sobre a vinda de impérios e de matanças, com o propó­sito de tornar os fiéis invencíveis, por mais duramente fossem oprimidos de todos os lados. Cristo, pois, queria projetar luz di­retamente em todos os eleitos através da aproximação das trevas sob a tirania de Antíoco, bem como assegurar-lhes que nas pró­prias profundezas dela eles não seriam desamparados do favor divino. A esperança assim elevaria suas mentes e todos seus sen­tidos em direção ao término prometido. Com que propósito, pois, esses intérpretes falam dos reinados de Saul e Davi? Percebemos ser isso totalmente estranho e adverso à intenção de Cristo e ao uso desta profecia. Não menos absurda é a conjetura dos que tagarelam em torno de meses. Sua refutação ocuparia três ou qua­tro horas, e seria um injusto desperdício de tempo, totalmente sem proveito. É suficiente deduzir das palavras este significado simples: Cristo não fala aqui de anos e meses, mas de dias. Deve­mos então buscar a verdadeira interpretação da passagem à luz de todo o contexto. Já demonstramos quão impossível é explicar esta profecia de outra forma que não aponte para Antíoco; o pró­prio evento prova ser esse o significado. Cegos de fato seriam os que não sustentam este princípio - o pequeno chifre procedeu de uma daquelas extraordinárias e eminentes pessoas que surgiram em lugar de um chifre muito grande. Os garotos sem saberem disso, estão lendo as histórias autorizadas daqueles tempos. Vis­to que Cristo aqui aludia à tirania de Antíoco, devemos observar como suas palavras se harmonizam com os fatos. Cristo computa 2.300 dias para a profanação do santuário, e esse período com ­

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[8.13, 14] DANIEL

preende seis anos e cerca de quatro meses. Depois usa períodos intercalados, visto que doze meses lunares não correspondem ao curso do sol. O mesmo costume prevalecia entre os gregos e os romanos igualmente. Júlio César primeiro organizou para nós o ano solar e supriu o defeito por dias intercalados, de modo que os meses pudessem concordar com o curso do sol. Mas, seja como for, esses dias, como eu já disse, perfazem seis anos e três meses e meio. Ora, se compararmos o testemunho da história, e especi­almente do livro dos Macabeus, com esta profecia descobrire­mos que essa raça foi miseravelmente oprimida por seis anos sob a tirania de Antíoco. O ídolo de Olím pia Jove não permaneceu no templo por seis anos contínuos, mas o começo da profanação ocorreu no primeiro ataque, como se ele insultasse o próprio ros­to de Deus. Não admira, pois, que Daniel tenha entendido esta visão como equivalente a seis anos e cerca de um terço, porque Antíoco então insultou o culto divino e a Lei; e quando ele derra­mou sangue inocente indiscriminadamente, ninguém ousaria pu­blicamente resisti-lo. Visto, pois, que a religião ficou então pros­trada por terra até a purificação do templo, vemos quão clara­m ente a profecia e a história concordam, no que diz respeito a esta narrativa. Além disso, é evidente que a purificação do tem ­plo não poderia ter terminado no sexto ano corrente, mas no mês 1*?DD, Keslu, correspondendo a outubro ou novembro, como os homens eruditos judiciosam ente decidem que ele foi profanado. Pois este mês entre os judeus começa às vezes em meados de outubro e às vezes no final, segundo o curso da lua; pois disse­mos que os meses e os anos eram lunares. No mês Keslu o tem­plo foi profanado; no mês T1N, Ader, cerca de três meses depois, quase no encerramento, os macabeus o purificaram [1 Macabeus 4.36]. E assim a história confirma de todas as formas o que D ani­el predisse muitos séculos antes - sim, quase três séculos antes de sua concretização. Pois isso ocorreu um século e meio depois da morte de Alexandre. Algum tempo também já havia passado

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41* EXPOSIÇÃO [8.15]

quando houve oito ou dez reis da Pérsia entre a morte de Ciro e Dario. Recordo apenas os principais eventos, e deve ser-nos sufi­ciente saber como as predições de Daniel se cumpriram em seu próprio tempo, como os historiadores claramente narram. Sem a mais leve dúvida, Cristo predisse a profanação do templo, e isso deixaria o espírito dos santos deprimidos, como se Deus os hou­vera traído, houvera desistido de todo e qualquer cuidado do tem­plo e renunciado inteiramente sua eleição e seu pacto. Cristo, pois, queria sustentar o espírito dos fiéis com esta predição, com isso informando-os de quão plenamente mereciam esses males futuros em decorrência de haverem provocado a ira de Deus; e no entanto sua punição seria temporária, porque o próprio Deus que anunciou sua aproximação prometeu, ao mesmo tempo, um resultado de prosperidade.

No tocante à frase o santuário será justificado, há quem a traduz assim: “Então o santuário será expiado”; eu, porém, prefi­ro reter o sentido próprio da palavra. Sabemos quão costumeira- mente os hebreus usam a palavra ‘justificar’ quando falam de direitos. Quando seus próprios direitos são restaurados em rela­ção aos que foram privados deles - quando um escravo é abenço­ado com sua liberdade quando aquele que foi injustamente oprimido é vencedor em sua causa, os hebreus usam esta palavra “justificado’. Visto que o santuário de Deus esteve sujeito a infâ­mia, com a imagem de Olímpia Jove sendo exibida ali, todo res­peito por ele se desvanecera; pois sabemos como a glória do tem­plo provinha do culto divino. Como o templo havia sido profana­do por tão grande desgraça, então ele foi ‘justificado’, quando Deus estabeleceu novamente seus próprios sacrifícios e restau­rou seu culto puro como prescrito na Lei. O santuário, pois, será justificado ; ou, seja, vindicado daquela desgraça a que outrora estivera sujeito. Prossigamos:

15 E aconteceu que, havendo eu. Daniel, 15 Et factum est, cum viderem ego Dani- lido a visão e buscado o significado, en- e l visionem , e t q u e re rem intelligentiam ,

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[8.15] DANIEL

tão . eis que se pôs d ian te de mim um a ecce stetit coram m e quasi aspectus, vel, com o que aparência d e hom em . species. viri.

Daniel um a vez mais confirma sua declaração original. Mas antes ele desce à interpretação, elabora um prefácio concernente à fidelidade e infalibilidade do oráculo, para que a Igreja não hesite em considerar seu pronunciamento como realmente pro­cedente de Deus. Ao agir assim, ele não usa de artifício como fazem os retóricos; Deus, porém, queria estimular a ele e aos santos a meditarem nesta profecia, cujo conhecimento era então tão peculiarmente necessário e proveitoso. D iz ele, pois; quando busquei o significado desta visão, pôs-se d ian te de m im um a com o que ap a rên c ia de hom em . Ora, Deus havia antecipado este desejo do profeta por meio da resposta que o anjo recebeu de Cristo que tinha em parte explicado o sentido desta visão. Então Daniel, percebendo que Deus o havia antecipado, não esperando por sua inquirição, reúne coragem e, confiando na disposição de Deus em fornecer-lhe um a resposta, deseja aprender o assunto mais claramente; não que ele fosse totalmente ignorante do tema, mas ainda não percebia com suficiente clareza qual era a utilida­de para si e para toda a Igreja. Vemos, pois, como a resposta de Cristo só lhe ofereceu uma prelibação da visão e apenas insistiu com ele a avançar para a plena compreensão dela. M uitos ficam imediatamente satisfeitos com apenas um a moderada informa­ção, e tão logo tenha compreendido um a porção de algum tema rejeitam toda e qualquer adição, e muitos tão logo param nos primeiros rudimentos, e sua obstinação obstrui aquele conheci­mento completo e tão necessário. Daniel, pois, dem onstra estar mui longe de tal indisposição, visto que ele se tornara mais aten­to para ouvir dos lábios de Cristo o real objetivo da visão. En­quanto atentava para entender a visão, diz ele, eis que se pôs diante de mim uma como que aparência de homem. E provável que tenhamos de interpretar esta passagem como um a referência a Cristo que agora é chamado homem, como anteriormente [7.13].

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41a EXPOSIÇÃO [8.16]

Porquanto ele ainda não havia se vestido de nossa carne, para que pudesse apropriadamente assumir o título hom em ; mas aqui era como se fosse homem, porquanto queria que os santos pais experimentassem de antemão o que podiam entender de sua fu­tura vinda como Mediador, quando se vestisse da natureza hu­m ana como Deus manifestado em carne [1 Tm 3.16]. Assim D a­niel fala adequadamente como fez quando disse: Cristo lhe apa­receu sob o aspecto de homem. Mas ele adiciona com o mesmo propósito:

16 E ouvi um a voz de hom em às m argens 16 E t audivi vocem hom inis in Ulai,“ et do Ulai, a qual clam ou e disse: Gabriel, c lam avit, e t dixit, G abriel, doce hanc vi- faça este hom em entender a v isão. sionem.

Ele não usa a partícula que implica adequação, mas diz ter ouvido a voz de um homem, porque não mais trata de um homem nem de um a figura, mas de uma voz. E suficiente dizer de um a vez que era semelhante a homem, não exatamente um homem, mas meramente sob a imagem e aparência de homem. Cristo, pois, apareceu sob a semelhança de homem, e é chamado assim, visto que a Escritura amiúde relata como os anjos às vezes apare­ciam sob a forma humana e são chamados indiscriminadamente ou anjos ou homens [Jz 8.3], Também neste ponto Daniel relata a aparição de um homem, ou o aspecto de um homem, na verdade impropriamente, mas sem qualquer risco de equívoco; pois em seguida adm oesta os fiéis, dizendo que essa pessoa não estava vestida com a substância de cam e, mas simplesmente tinha uma forma e aspecto humanos. O uvi, pois, u m a voz h u m an a às m argens do rio. Disto deduzimos que a mesma pessoa é aqui indicada, de quem há pouco se fez menção, visto que ele dirige ordens a um anjo; daí, isso só pode referir-se a Cristo.

G abriel, diz ele, in s tru i este hom em . Observamos quem fala às margens do rio, aqui ordenando a Gabriel, como sendo seu

62 Ou, seja. entre as duas margens do rio.

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[8.16] DANIEL

superior. Gabriel, como o nome de um anjo, é sobejamente co­nhecido à luz de outras passagens da Escritura [Lc 1.19, 26]; e sua etimologia, “a força de Deus”, é muito adequada a este signi­ficado. Sem qualquer dúvida, o anjo aqui recebe de Cristo suas ordens. E assim notamos o supremo poder e autoridade represen­tados sob a forma e aspecto de um homem, bem como a obediên­cia retratada em Gabriel, o qual se desincumbe do dever a ele imposto. A Deidade de Cristo é inferida deste fato, visto não po­der ele em itir ordens aos anjos sem ter ou autoridade especial ou ser o próprio Deus. Mas quando se usa a frase, “semelhante a homem”, somos informados de sua manifesta superioridade ao homem. E o que isso implica? Não natureza angélica, mas divi­na. Cristo, ao apresentar-se assim sob um a form a humana, mos­tra, por meio de um a espécie de prefiguração, como ele se tom a­ria homem quando chegasse a plenitude do tempo. Então real­mente se manifestaria como a cabeça da Igreja e o guardião da salvação dos santos. Pois ele mesmo prova ter poder sobre todos os anjos, quando ordena a Gabriel que exercesse o ofício de ins­trutor do profeta. Adiaremos o restante.

ORAÇÃOOnipotente Deus, visto que nestes dias a terra se encontra cheia de imundícies que maculam o sacro culto a teu Nome, visto que quase não há um canto do mundo que Satanás não tenha corrompido, e visto que lua verdade é por toda parte adulterada, permite que per­severemos e permaneçamos firm es no curso de nossa piedade. Que estejamos sempre atentos àquela luz que primeiramente fo i posta di­ante de nós na Lei e que brilha sobre nós agora mais plenamente sobo evangelho. Que jamais nos mergulhemos naquelas trevas nas quais vemos o mundo mergulhado e pelas quais os que parecem ser mais perspicazes se acham envoltos. Concede-nos sempre força para se­guirmos aquela vida que nos mostraste, até que cheguemos àquele alvo que puseste diante dos olhos de nossa fé e rumo ao qual diaria­mente nos convidas a avançar mediante teu unigénito Filho. Amém.

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42ag.xposição

17 E n tio ele aproxim ou-se de o nde eu 17 Et venit ad stationem m eam : ei cumestava; e, ao aproxim ar-se, tive m edo, e veniret territus sum , et cecid i super faci-caf sobre m eu rosto; e le , porém , m e d is- em meam: tunc d ix it ad me, Intellige, fílise: Entenda, 6 filho do hom em , po is e sta hom inis, qu ia ad tem pus finis visio .43visão se cum prirá no tem po do fim.

Não reiterarei o que já expliquei. Darei seqüência ao que já comecei, a saber: a carência que o profeta tinha de instrução, porque não conseguia entender a visão sem um intérprete; daí por que ao anjo se ordenara que explicasse esta revelação divina mais plenamente. Mas antes de narrar isso, ele diz: fiquei am e­d ro n tad o com a ap rox im ação do anjo. Sem dúvida, essa reve­rência estava sempre presente em sua mente. Sempre que perce­bia ser chamado ou instruído por Deus, se sentia dominado pelo temor; aqui, porém, é expresso um sentimento especial, visto que Deus queria influenciar sua mente com o intuito de deixar-nos um exem plo e fazer-nos mais atentos. Aqui Daniel nos explica o estado de sua própria mente, enaltecendo a magnitude e a impor­tância da visão, para que não lêssemos displicentemente o que ele a seguir relatará e encarássemos a ocasião com sobeja serie­dade. Pois Deus usou o anjo como seu servo para explicar ao profeta sua intenção; ao mesmo tempo, interiormente tocou sua mente para, por meio de seu Espírito, nos mostrar o caminho, e assim ele não só nos educaria com vistas à docilidade, mas tam­bém ao temor. Então ele diz: fiquei am edro n tad o e caí. Isso,

' Ou, no tempo do fim da visão.

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[8.17] DANIEL

como já dissemos, era comum ao profeta, como deve ser em rela­ção a todos os santos. Paulo também, ao celebrar o efeito e poder da profecia, diz: se algum incrédulo entrar na assembléia e ouvir um profeta falando em nome de Deus, prostrar-se-á, diz ele, so­bre seu rosto [IC o 14.25]. Se isso sucede ao incrédulo, quão gran­de será nossa estupidez, a menos que recebamos com mais reve­rência e humildade o que sabemos ter sido pronunciado pelos lábios de Deus! Entrementes, devemos recordar o que falei há pouco: a importância do presente oráculo tal como nos é aqui recomendado pelo profeta; pois ele caiu sobre seu rosto movido de pavor, como repetirá no próximo versículo.

Tampouco é supérflua a seguinte exortação: en tenda, diz ele, ó filho de A dão. Ser-nos-ia de pouco proveito ser movidos e excitados por algum tempo, a menos que nossas mentes estejam em seguida dispostas a ouvir. Pois muitos são tocados pelo temor quando Deus se lhes manifesta; ou, seja, quando ele os compele a sentir a força e o poder de seu domínio; porém continuam em sua obtusidade, e assim seu pavor se torna sem proveito. Aqui, porém, Daniel faz certa diferença entre ele e o profano, o qual se sente apenas aturdido, porém de modo algum preparado para a obediência. Ao mesmo tempo, ele relata como seu próprio exci- tamento foi afetado pela assistência do anjo. O temor, pois, do qual acabamos de fazer menção, foi um a preparação para a doci­lidade; esse terror, porém, teria sido em si mesmo inútil se não fora acrescentado: p a ra que ele en tenda. É indispensável que entendamos que a piedade não consiste meramente em reconhe- cer-se o temor de Deus, mas requer-se também obediência, pre­parando-nos para recebermos com emoções tranqüilas e equili­bradas tudo o que nos será ensinado. Devemos observar diligen­temente essa ordem.

E então prossegue: pois esta visão se c u m p rirá no tem po do fim. H á quem junta | 'p _ni7l7, legneth-ketz, fazendo o sentido: “no fim do tempo”, f p , ketz, estando neste sentido no caso ge­

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42* EXPOSIÇÃO 18.18]

nitivo à guisa de um epíteto, como os hebreus comumente o usam. Deduzem este sentido: a visão será por certo tempo prefixado. Outros, porém, preferem: o fim da visão será por certo tempo. Creio que este último sentido é o melhor, visto o primeiro pare- cer-me forçado. No cômputo geral, não é de muita importância, todavia, como essa forma de expressão é a mais fácil, ou, seja, o fim ou o cumprimento da visão seria em um tempo definido, achei m elhor seguir essa interpretação. O anjo assevera, pois, que isso não era vã especulação, mas um a causa associada a seu efeito, o qual teria sua completação num determinado período. Haverá um fim [cumprimento}, pois, da visão em seu tempo\ significan­do: o que você agora vê não será desvanecido nem será destruí­do, porém seu fim se concretizará quando o tempo chegar, o qual Deus já determinou. Yp, ketz, é amiúde tomado nesse sentido. Daí, haverá um fim [cumprimento] da visão ; ou, seja, a visão será completada quando chegar o tempo oportuno. Devemos ter em mente esta exortação do anjo, porque, a não ser que sejamos inabalavelmente persuadidos da fixidez de tudo quanto Deus fala, não estaremos prontos a receber tudo quanto Deus pronuncia. Mas quando somos convencidos dessa afirmação, Deus nunca separa sua mão de sua boca - significando: ele nunca se contra­ria, senão que seu poder acompanha sua palavra, e assim ele cum ­pre tudo o que declara; isso se converte num infalível e firme fundamento de nossa fé. Esta admoestação do anjo deve esten­der-se geralmente a toda a Escritura, visto Deus não pronunciar palavras ao vento, segundo a frase popular. Pois nada sucede pre­cipitadamente, mas tão logo ele fala, sua verdade, a própria ma­téria e seu efeito necessário, são todos consistentes. Prossigamos:

18 O ra, enquanto e le falava com igo, ca í 18 E t cum loqueretur m ecum . sopitus cor-com o rosto em ten a , em profundo sono; rui super faciem m eam in terram , e t teti-cie. porém , m e tocou, e m e fez ficar em git m e,M e t restitu it m e super stationempé. m eam.'8

M Alguns traduzem: "aproximou-se de mim", interpretaç5o essa tolerável. 45 Literalmente, “sobre meus pés”, como no francês antigo, “en mon estre".

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[8.19] DANIEL

O profeta reitera o que havia dito, ou, seja: ele se sentira ater­rado ante a magnitude desta visão; entrementes, ele foi erguido pelo anjo para que não continuasse naquele estado de estupor. Todavia, deve-se notar bem estas duas sentenças: a princípio, Daniel ficara atônito, pois, de outra forma, ele não poderia dis­por-se suficientemente a ouvir a voz do anjo; ao mesmo tempo, porém, acrescenta-se outra sentença: o anjo o pôs em pé. Sempre que Deus se dirige a nós, necessariamente somos tomados pelo temor e medo, com o fim de produzir humildade e nos fazer dó­ceis e obedientes. O temor é a genuína preparação para a obedi­ência; mas, como anteriormente dissemos, deve seguir-se outro sentimento, a saber: visto que Deus nos tem previamente pros­trado e lançado por terra, ele também nos ergue, com isso nos preparando para ouvir; e essa disposição não pode ser gerada, a não ser que nossas mentes estejam tranqüilas e dispostas. O profe­ta, pois, expressa aqui ambos esses estados mentais. Como eu já disse, isso é comum a todos os santos; todavia uma peculiaridade se nota aqui, para que os leitores da visão não se tornem estúpi­dos e a recebam criteriosamente; pois devem coordenar todos seus sentidos, cônscios de sua incapacidade de entendê-la, a não ser que o temor de Deus preceda e assim prepare a mente para a obediência. Portanto, enquan to ele fa lava comigo, ca í com o rosto em te r ra , em pro fundo sono; ou, seja, fiquei atônito, e ele m e tocou. Já expus a opinião de outros, os quais dizem que o anjo aproximou-se dele, o que é meramente tolerável. Então ele acrescenta:

19 E disse: Eis que te farei saber o que há 19 E t dixit. E cce ego docebo te“ quodde acontecer no últim o tem po da indigna- erit in fine i r s : quia ad p rsfix u m , vel, sta-çâo; pois no tempo determinado o fim virá. luium lempus fittis.

Os que lêem o substantivo ketz, ‘fim ’, no caso genitivo, no versículo 17, neste lugar entendem a palavra ‘visão’ novamente

“ Ou, abrirei a ti; ou. literalmente, te farei conhecer.

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42* EXPOSIÇÃO [8.19)

como se o profeta dissesse: “No tempo do fim haverá um a vi­são.” Visto, porém, que i n n , mevegned , ou moed, significa um “tempo fixo e estabelecido de antemão”, nada há de supérfluo nessa forma de expressão; então ketz, como eu já disse, é apro­priadamente tomado pelo próprio efeito, e seria abrupto e artifi­cial dizer: “no tempo do fim haverá um a visão”, no sentido de completar a visão. Pois este termo expressa tudo quanto tais in­térpretes desejam que ele implique. Além disso, todos concor­dam quanto à questão propriamente dita, visto que o anjo dá tes­temunho de ser ele o intérprete escolhido por Deus, o qual expli­ca ao profeta em termos de futuro. Portanto, diz ele, eis que eu te explicarei. Ele aqui, no exercício de seu ofício, granjeia confian­ça, visto que aceitara os mandamentos divinos a ele impostos. E devemos atentar para isso também, visto que nossa fé jam ais re­pousará nem se fará firme a menos que seja fixa a autoridade sobre a qual ela está fundada. Visto, pois, que o anjo declara ser o executor de um ofício divinamente imposto a si, devemos depo­sitar confiança nos homens que se conduzem de maneira temerá­ria e, embora assumam autoridade em nome de Deus, ainda não sentem nenhuma vocação convicta e legítima? Aprendamos, pois, como nem os anjos, nem os homens devem ser tidos em tal honra ao ponto de nos induzirem a receber tudo quanto eles apresen­tam, a menos que o Todo-Poderoso os tenha designado como seus ministros e intérpretes.

Ele então diz: te anunciare i o que acon tecerá no últim o tem po d a ira . Sem dúvida, o anjo assevera, com esta frase, a subitaneidade da ira divina. Estamos cientes de quão instantane­amente, ao regresso do povo, seus inimigos o atacaram na Ju- déia, e jam ais cessaram de infligir-lhes infindáveis tribulações. Pelo quê, tão logo os judeus regressaram do exílio, Deus com e­çou a exercitá-los de várias maneiras, e não sem razão plausível. Cada um, em particular, visava a seus próprios interesses, porém sem qualquer respeito pelo templo e qualquer sentimento pelo

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(8.20,21] DANIEL

culto divino, e assim se entregavam à avareza e aos caprichos. Também defraudavam a Deus mesmo nos dízimos e nas ofertas, segundo se faz evidente à luz dos profetas M alaquias e Ageu (1.12; 3.8). Desde aquele período, Deus passou a castigá-los, porém deferiu sua vingança para os dias de Antíoco. O anjo, pois, denom ina o tem po d a vingança, quando Deus infligiria o casti­go mais severo assim que o povo ultrapassasse a paciência divi­na. Portanto, eu te ensinarei, ou porei diante de ti, o que aconte­cerá no fin a l da vingança, porque, diz ele, será o tempo do fim . Aqui ele reitera o que dissera concernente ao efeito da profecia, significando que o cumprimento ocorreria em seu próprio tempo designado. Então devemos atentar para o substantivo moed, por­que ele aqui se opõe a nosso abrasamento e intemperança. A pressa em desejar tudo conduz, como costumamos dizer, à delonga; pois tão logo Deus dá testemunho de alguma coisa, já queremos que tudo se concretize imediatamente, e se ele susta sua execução apenas por uns poucos dias, não só indagamos, mas gritamos com ansiedade. Deus, pois, aqui nos admoesta, pelos lábios de seu anjo, dizendo que ele estabeleceu um tempo, e assim apren­demos a pôr um freio em nós mesmos e a não precipitar e nem irracionalmente correr, segundo nosso hábito costumeiro. D eve­mos, pois, lembrar-nos da explicação dada, e perceber como o efeito da visão é aqui demonstrado, e assim ela obterá de nós sua justa reverência. Prossigamos:

20 O carneiro que viste, tendo do is ch i- 20 E t aries quem vidisti habentem duofres. são os reis da M édia e d a Pérsia. com ua, reges sunt M edorum e t Persarum .21 E o bode peludo é o rei da G récia; e o 21 E t hircus c a p rs , qui naius eril ex hir-grande chifre que está entre seus olhos é co, rex G r a c ia , e t com u m agnum quodo prim eiro rei. era t inter oculos ejus, est rex primus.

Pela palavra ‘Javan’ os hebreus designam não só os gregos, mas também os macedônios e todo aquele espaço que é dividido pelo Helesponto, desde a Ásia M enor até ao Ilírico. Portanto, este é o significado: o rei da Grécia.

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42» EXPOSIÇÃO [8.22-25]

22 O ra, ao ser quebrado, enquanto qua­tro se põem em lugar dele, quatro reinos se erguerão da m esm a nação, m as não com a força dele.23 E n o ú ltim o tem po d e seu reinado, quando os transgressores com pletarem seu tem po, se erguerá um rei, de semblante feroz, e en tendido de sentenças obscuras.

22 E t confractum est.'1’ e t ex titerunt qua­tuor, com ua scilicet, loco ejus: quatuor régna a gente exsurgent, vel, existent, et non pro fortitudine illius.23 E t in fine regni illorum , ubi perfecti fuerin t sceierati, ex is te t rex præ fractus facie,'* e t intelligens ænigm ata.

Daí Lutero, deixando seus pensamentos correrem à solta, usa esta passagem como uma referência ao Anticristo; porém discu­tiremos este ponto mais adiante.69

24 E sua força será poderosa, m as não por seu próprio poder; e e le desiru irá prodi­g iosam ente, e prosperará, e fa rá intriga, e destruirá os poderosos e o povo santo.

25 E através de sua política tam bém fará prosperar em sua m ão a m alícia: e se m ag­n ificará em seu coração, e po r m eio da paz destruirá a m uitos; tam bém se porá con tra o Príncipe dos príncipes; m as será quebrado sem [o auxílio de] mão.

24 E t roborab itu r fortutudo ejus. e t non in fortitudine sua,™et m irabilia71 evertet, prosperabitur, e l efficiet, e t perdet, repe- tit idem verbum, ro b u stes, e t populum sanctorum .25 E l pro intelligentia sua prosperabitur dolus in m anu ejus, e t in corde suo magn- ficabil se, el in pace perdet m ultos, vel, fo r­tes. et contra Principem principum stabit, vel, exsurgel, e t absque m anu frangetur.

Previamente apresentamos uma breve explicação de todos esses temas. Aqui, porém, o anjo remove toda dúvida, a fim de não inquirirmos ansiosamente sobre o significado do carneiro que Daniel viu e do bode que seguiu e lançou por terra o carneiro. Aqui, pois, o anjo declara que o carneiro representa dois reinos, os quais se fundiram em um só. Ciro, segundo dissemos, o con­cedeu por algum tempo a seu sogro Cyaxares, mas ainda manti­nha todo o poder para si, e os persas começaram a estender seu domínio a todos os reinos do Oriente. Deus, porém, nesta visão,

67 O u. seja, o chifre foi quebrado.68 Literalmente, “em faces” .6(10 leitor que domine o inglês poderá consultar Life o f Luiher. de Michelet. Edição de

Haztin. 1846, pp. 455 e 459.70 Ou, segundo sua fortaleza; trataremos desta frase lambém.71 Ou. seja, "de m odo maravilhoso", •‘maravilhosamente"; sendo o substantivo usado em

lugar do advérbio.

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[8.24, 25] DANIEL

indica o início dessa monarquia. Quando, porém, os persas e medos se uniram, então no carneiro nasceram dois chifres; e o bode avançou e derrubou o carneiro, como já vimos. Nesse bode houve a princípio um grande chifre, e em seguida surgiram qua­tro chifres pequenos. O anjo então responde à pergunta concer­nente ao bode representante do reino dos gregos. Não há a mais leve dúvida aqui, visto que Alexandre apoderou-se de todo o Oriente, e assim a monarquia persa foi completamente destruída. Portanto, no bode se exibiu o reino da Grécia ou Macedônia, po­rém os chifres indicarão algo especial.

A quele g ran d e chifre, diz Daniel, e ra o p rim eiro rei, ou, seja, Alexandre; quatro chifres menores nasceram depois em seu lugar. Já explicamos isso. Pois quando muito sangue já havia sido derramado, e a maioria dos líderes já havia sido morta, e depois que os seguidores de Alexandre já haviam mutuamente se ataca­do e se destruído, os que permaneceram dividiram seus domínios entre si. Cassander, filho de Antípater, ficou com a Macedônia; Seleuco, com a Síria; Ptolomeu, com o Egito; e Antígono, com sua quarta parte. Dessa forma os chifres menores sucederam Ale­xandre, segundo o claro testemunho da história profana. À luz da freqüência com que Deus põe esta profecia diante de nós, dedu­zimos sua intenção de dar-nos um conspícuo sinal de sua majes­tade. Pois como poderia Daniel conjeturar eventos futuros num período tão distante de sua própria concretização? Ele não pro­nuncia meros enigmas, senão que narra coisas exatamente como se elas já houvessem se concretizado. No tempo atual, os epicu- reus desprezam as Escrituras e riem-se de nossa simplicidade, como se fôssemos demasiadamente crédulos. Eles, porém, na verdade expõem sua própria e prodigiosa demência e cegueira por não reconhecerem como divina a predição de Daniel. Infeliz­mente, desta profecia só podemos provar com certeza a unidade de Deus. Se alguém se inclinasse a negar esse prim eiro princípio, e a rejeitar totalmente a doutrina de sua divindade, o mesmo pode­

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42* EXPOSIÇÃO [8.24, 25]

ria convencer-se disso simplesmente com base nesta profecia. O que se trata aqui não é somente desse tema, Daniel, porém, apon­ta para o Deus de Israel com seu dedo, como o único em cuja mão estão todas as coisas, e de quem nada escapa nem se escon­de. À luz desta profecia, é tão-somente a autoridade da Escritura que se estabelece por meio de provas perfeitamente seguras e destituídas de dúvida, como o profeta trata com perfeita clareza no tempo ignoto, o qual nenhum mortal jam ais pôde prever.

Antes de tudo, ele diz: O ca rn e iro que viste, tendo dois ch i­fres, significa os reis dos m edos e persas. Isso não havia ainda ocorrido, pois esse carneiro não havia ainda surgido e se apode­rado de Babilônia, como já afirmamos. Assim Daniel foi como que elevado ao céu, e observou daquela posição coisas ocultas da mente humana. Em seguida ele diz: O bode é o rei d a G récia. Filipe, pai de Alexandre, ainda que um guerreiro incansável e muito habilidoso, o qual excedeu a todos os reis da M acedônia em destreza, todavia, superior como era, nunca ousou cruzar o mar. Foi-lhe suficiente poder corroborar seu poder na Grécia e tornar-se formidável contra seus vizinhos da Ásia Menor. Ele, porém, jam ais ousou atacar o poder da Pérsia, nem ainda moles- tá-la, e muito menos vencer todo o Oriente. Alexandre inflamou- se, mais por temeridade e soberba do que por bom siso; nenhum pensamento parecendo-lhe difícil demais. Mas, quando Daniel viu esta visão, quem jam ais teria imaginado que algum rei da Grécia invadiria tão poderosa monarquia, e não só apoderando- se de toda a Ásia, mas ainda granjeando o domínio do Egito, Síria e outras regiões? Ainda que a Ásia M enor fosse uma região muito extensa, e se sabe muito bem ser ela dividida em muitas províncias ricas e férteis, todavia não passava de um pequeno acréscimo a seu imenso império. M ais ainda, quando Nínive foi conquistada por Babilônia, e os caldeus vieram a ser senhores sobre a Assíria, esse foi também um acréscimo à monarquia per­sa. Estamos familiarizados com as espantosas riquezas dos me­

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[8.24, 25] DANIEL

dos, e todavia foram inteiramente absorvidas. Dario levou consi­go 800.000 homens, e sepultou completamente a terra debaixo de seu exército. Alexandre o encontrou na chefia de 30.000. Que com paração havia entre ambos? Quando Xerxes72 veio à Grécia, levou consigo 800.000 homens, e ameaçou prender o mar com cadeias; todavia Daniel fala desse incrível evento como se o mes­mo já houvera ocorrido e já fora matéria da história. Esses pontos devem ser diligentemente observados para que as Escrituras nos inspirem com aquela confiança que elas merecem.

O g ran d e chifre, diz ele, que estava en tre seus olhos e ra o p rim eiro rei, e quando ele foi quebrado , su rg iram ou tros q u a ­tro . Alexandre, como já mencionamos, pereceu na flor da idade, e tinha mais ou menos trinta anos de idade quando morreu pela influência ou de veneno ou de doença. Qual das duas mortes é incerto, em bora paire grande suspeita de fraude quanto à maneira de sua morte; e seja qual for a maneira que a mesma ocorreu, o fato é que o chifre foi arrancado. Em seu lugar ali surgiu quatro chifres, os quais, diz ele, surgiram daquela nação. Aqui devemos observar o seguinte: muito me admira que a mente de muitas pessoas as tenha levado a traduzir “de nações” , não obstante se­rem as mesmas hábeis no manejo do idioma hebraico. Primeiro, revelam grande ignorância mudando o número, e em seguida não compreendendo a intenção do anjo. Pois ele confirm a o que ante­riormente dissera concernente à unidade do reino e sua divisão em quatro partes, e aqui ele menciona a razão. Diz ele que surgi­riam de uma nação, significando os gregos, e todos de um a única origem. Pois com que direito Ptolomeu obteve o império? U ni­camente por ser ele um dos generais de Alexandre. A princípio, ele não ousava usar o nome régio nem ainda usar o diadema, mas apenas por um lapso de tempo. O mesmo vale para Seleuco, An- tígono e Cassandro. Vemos, pois, quão corretamente o reino dos

73 O editor geral de 1617 leu Merces incorretamenle; o d e Vincente, 1571, e o francês de Perrin. 1569, estão corretos, como no texto.

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42* EXPOSIÇÃO [8.24, 25]

gregos nos é representado sob a figura de um único animal, ainda que fosse imediatamente disperso e rasgado em quatro partes. Os reinos, pois, que surgiram da nação, significando a Grécia, p e r ­m anecerão , po rém não em sua fo rça to tal. A partícula é aqui tomada no sentido de ‘porém ’; os quatro reinos permanecerão, porém não em sua força total, pois Alexandre tocara o mar indi­ano e desfrutara a tranqüila posse de seu império ao longo de todo o oriente, havendo enchido todos os homens com o pavor de sua atividade, coragem e rapidez. D aí o anjo afirmar que os quatro chifres seriam tão pequenos, que nenhum deles seria igual ao primeiro rei.

E no fim de seu reinado , q u an d o o ím pio estiver em seu apogeu, perm an ecerá um rei. Ao dizer: no fim de seu reinado, ele não tem em mente significar que a destruição dos quatros reinos havia cessado. Os sucessores de Antíoco não foram dire­tamente destituídos de seu domínio, e a Síria não foi reduzida a uma província até cerca de oitenta ou cem anos depois que Antí­oco o Grande houvesse sido completamente vencido. Ele tam­bém deixou herdeiros que, sem dúvida, o sucederam no trono, como veremos mais claramente no capítulo onze. Mas este ponto é certo: Perseu foi o último rei da Macedônia, e os Ptolomeus continuaram até os tempos de Júlio César e Augusto, e estamos cientes de como Cleópatra foi completamente vencida e arruina­da por Antônio. Visto que mulheres sucederam ao trono, não podemos pôr a destruição do império macedônio sob Antíoco Epífanes. O anjo, porém, quer dizer: até o final de seu reinado, quando tivessem realmente chegado ao fim de seus reinados e que sua ruína final estivesse próxima. Pois quando Antíoco Epí­fanes regressou a seu país, parecia ter restabelecido seu poder, se bem que logo depois começou a ser extinto. Circunstâncias sim i­lares também ocorreram no Egito e na Macedônia, pois o reinado de todos seus reis estava precário e, ainda que não diretamente subvertido, todavia dependiam dos romanos, e assim sua majes-

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[8.24, 25] DANIEL

cade régia não passava de algo efêmero. Portanto, no fim de seu reinado , a saber, quando chegassem ao apogeu, e sua queda os levasse à ruína, então, diz ele, quando o ím pio fosse consum a­do ou te rm inado . H á quem aplica isso aos inimigos professos e externos da igreja; eu, porém, antes aprovo a outra opinião, a qual presume que o anjo esteja falando do ímpio que provoca a ira de Deus, até que se tornassem necessárias penalidades graves e severas infligidas sobre o povo, ao qual Deus tão magnificente- m ente prometera felicidade e estado tranqüilo. Entretanto, essa não era um a tentação comum, segundo os profetas haviam trata­do tão plenamente da felicidade e prosperidade do povo depois de seu regresso do cativeiro, de enfrentar tão horrível dispersão e testificar dos assaltos desses tiranos, não só aos homens, mas também ao próprio templo de Deus. Daí o anjo, como fizera an­tes, reanima o profeta e a todo o restante dos piedosos contra esse tipo de tribulação, e mostra como Deus não mudara seus conse­lhos ao afligir sua igreja, à qual prometera tranqüilidade, mas que havia sido gravemente provocado pelos pecados do povo. Ele, pois, mostra a urgente necessidade que havia compelido Deus a exercer tal severidade. Quando, pois, os ímpios chegaram a seu apogeu , ou, seja, quando chegaram ao pico máximo de sua into­lerável obstinação, então lhes veio o desespero. Percebemos, pois, como o anjo aqui enfrenta a provação e instrui de antemão os pios, desvendando-lhes a inviolabilidade da palavra de Deus, enquanto a impiedade do povo o compelia a tratá-lo severamen­te, em bora houvesse determinado exibir todo gênero de liberali­dade. Então, diz ele, um rei se porá com um semblante feroz. O restante, porém, deixaremos para amanhã.

ORAÇÃO

Onipotente Deus, uma vez que temos contemplado tua Igreja ao lon­go de todas as eras sendo exercitada de diversas maneiras pela cruz, e com constante sofrimento, que também estejamos preparados para enfrentar tudo quanto puseres diante de nós. Aprendamos também a

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42 * EXPOSIÇÃO

atentar bem para nossos pecados como sendo a causa de toda adver­sidade que nos tem sobrevindo; consideremos bem que tu és não ape­nas fie l em todas tuas promessas, mas também um Pai amantíssimo - que amaina a miséria daqueles que suplicantemente fogem para ti em busca do perdão. Quando formos humilhados sob tua poderosa mão, sejamos soerguidos pela esperança da salvação eterna que está preparada para nós. E assim miremos aquela felicidade com alegre determinação em todos nossos anseios, até que desfrutemos o fruto de nossa vitória em teu reino celestial, o qual fo i obtido para nós pelo sangue de teu unigénito Filho. Amém.

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43a•

í / jepois de haver o anjo explanado sobre a monarquia grega, o - c /e le aponta para a futura origem de um rei que seria de du ro sem blante . Sem a menor sombra de dúvida, o que ele tem em mente com esta frase é a iniqüidade de Antíoco. Ele era notoria­mente destituído de qualquer nobreza mental e notável por sua vil astúcia, e a essa disposição foi adicionada um a impudência que a ninguém devia nada. Esse é o sentido no qual tomo as pala­vras de duro semblante. A frase seguinte assevera sua astúcia, quando diz que ele será habilidoso em enigm as. Equivale dizer que ele excelia em astúcia e não se deixava enganar facilmente. Por meio desses dois epítetos ele não felicita, mas, ao contrário, difam a Antíoco Epífanes, descrevendo-o como tão empedernido quanto é possível ao mais empedernido dos homens, sem a m e­nor partícula nem de razão nem de eqüidade nem de vergonha. Ele em seguida reprova sua astúcia e fraude, declarando que ele seria habilidoso em enigmas. Em seguida acrescenta: seu poder será engrandecido , m as não p o r sua p ró p ria força. Há quem endossa a opinião de que Antíoco Epífanes é aqui comparado a Alexandre, como afirmara previamente o anjo, dizendo que os quatro reis seriam inferiores ao primeiro; pois foram prefigura­dos por quatro pequenos chifres. Porquanto o mais poderoso de todos eles não reinaria sobre uma quinta parte dos domínios que Alexandre adquirira para si por meio de violência e guerra. Ou­tros ainda explicam esta passagem como se o poder de Antíoco fosse grande, mas ainda assim muito diferente ao de Alexandre e

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4 3 ' EXPOSIÇÃO [8.24, 25]

muito inferior ao dele, segundo o sentido: não em sua própria fo rça , ou, seja, a de Alexandre. Entretanto, muitos aplicam isso a Antíoco, embora não concordem entre si. H á quem também pre­tende um tipo de correção, como se o anjo quisesse dizer que o poder de Antíoco seria grande, mas não tão visivelmente assim. Daí, seu valor será fortalecido, por ‘valor’ não significando aquele espírito heróico com que os reis são geralmente dotados, nem qualquer crescente magnanimidade; nem ainda que Antíoco imi­taria tais monarcas como esses, mas sua força permaneceria oculta. Ele se moveria clandestinamente e não contenderia em luta aber­ta, segundo a prática daqueles que excelem em coragem; secreta­mente experimentaria muitos esquemas e assim imperceptivel- mente expandiria seu império. Isso dá um sentido tolerável. Ou­tros ainda crêem que isso deve ser atribuído a Deus, visto que a força de Antíoco não era o resultado de sua própria indústria ou valor, mas do juízo de Deus, que assim o armou, porque queria usá-lo como um azorrague a fim de exercer seus juízos sobre os judeus. Portanto, sua fortaleza será engrandecida, todavia não por seu próprio valor, visto que este depende inteiramente dos justos desígnios e vingança de Deus. Ainda que este último sentido seja mais proveitoso, e contenha muita instrução útil, todavia receio que a mesma seja distorcida. E assim a últim a sentença ou é uma correção das palavras precedentes, significando “porque ele não progredirá com ingênua sinceridade” , ou, mais, o anjo está ainda comparando sua força com o poder de Alexandre. Portanto, seu poder será engrandecido, mas não pelos hábitos de guerra nem por meio da magnanimidade pública, senão que ele crescerá gran­demente através de artes fraudulentas e clandestinas; porque ele era, por um lado, muitíssimo impiedoso; e, por outro, de disposi­ção servil, como já dissemos anteriormente.

Então continua: Ele fa rá dano prodigioso e prosperará e pros­seguirá , ou, seja, executará e destruirá o fo rte e o povo dos san­tos. PorD'OIXU, gnetzumim, entendo não só os judeus, mas tam-

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[8.24, 25] DANIEL

bém outras nações vizinhas; como se o anjo dissesse: Antíoco será vencedor onde quer que estenda seus braços, até ao ponto de subjugar a Judéia e afligir miseravelmente o povo de Deus. Ra­zão por que ele diz que ele [Antíoco] golpeará ou destruirá o bravo e o povo dos santos, ou, seja, o povo santo, como já vimos. E, segundo seu entetidimento, sua astúcia prosperará em sua mão. É possível que a conjunção ‘e ’ seja aqui supérflua; nesse sentido a passagem é geralmente aceita, prosseguindo a leitura num só contexto; segundo seu entendimento, ele prosperará, em bora haja a conjunção ‘e’ no meio, porém isso, em hebraico, é amiúde su­pérfluo. Significa: o engano prosperará em sua mão. Aqui o anjo confirm a a prim eira asserção em referência à astúcia servil de Antíoco, visto não agir com humildade sincera, mas com sua audácia e atrevimento ele uniu as artes maliciosas e a astúcia indignas de um rei. Portanto, a astúcia prosperará em sua mão, e isso até onde ele compreende. Há quem supõe que aqui o que se nota é a esperteza de Antíoco, como se o anjo dissesse: a astúcia prosperará em sua mão em decorrência de sua habilidade e pers­picácia superiores. A passagem, porém, pode ser adequadamente explicada desta forma: Antíoco agirá prosperamente segundo sua percepção mental, e será tão assistido por sua astúcia, ao ponto de tomar posse de tudo quanto agarrar.

E prossegue: E le se m agnificará em seu coração, ou se exal­tará e se fará magnificente; posto que esta expressão im plica os­tentação e soberba e é tomada num sentido desvantajoso. Portan­to, será insolente em seu coração. O anjo parece distinguir aqui entre as intrigas e perspicácia de Antíoco e a soberba de seu cora­ção; pois ainda que ele obtenha grandes vitórias e subjugue mui­tas nações segundo seus desejos, todavia oprime os judeus e em seguida se engrandece em seu coração ; ou, seja, ele se encheria com soberba ainda maior do que antes, movido por seus contínu­os sucessos. E em paz destruirá a muitos, ou o bravo ; pois a palavra D'D1, rabbim, significa ambas as coisas. Há quem traduz

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43” EXPOSIÇÃO [8.24, 25]

assim: por causa de sua prosperidade, porque o Senhor queria afrouxar as rédeas para que ele se visse desimpedido no curso de suas vitórias. Em virtude, pois, desse sucesso, ele destruiria a muitos. Aliás, os homens profanos, que nada entendem da Provi­dência de Deus, têm afirmado que a fortuna e o acaso prevale­cem mais na guerra que a habilidade ou as armas; mas o êxito dos generais não provém nem do acaso nem da fortuna; mas, um a vez que Deus queira conduzir as atividades do mundo de várias maneiras, assim em alguns casos os guerreiros maus e des­tituídos de habilidade são bem sucedidos, enquanto outros em ­preendem muitos esforços e tentativas infrutíferos, ainda que se­jam superiores em conselho e sejam providos com equipamentos muito melhores. Eu, porém, me inclino mais para outro sentido que os intérpretes não mencionam; a saber, Antíoco destruiria e devastaria muitas nações sem qualquer dificuldade, com a maior facilidade e como se fosse um esporte. Razão por que o profeta tem em mente ou o anjo que fala ao profeta que Antíoco seria o conquistador de muitas nações, não só porque seria dotado de grande astúcia e promoveria guerra mais por traição do que por violência aberta, mas como está registrado acerca de Timotheus, o general ateniense: ele tomará cidades e terras e as submeterá a si, ao estender-lhe a fortuna sua rede enquanto ele se entrega ao sono. O anjo, pois, parece realçar essa apatia, predizendo muita devastação pela mão de Antíoco, com aparente facilidade e cal­ma. Outros o explicam assim: nações serão devastadas por aque­le assaltante que nunca teve motivo algum para atacá-las, visto que jam ais cultivaram qualquer hostilidade contra ele; quando, porém, tentaram cultivar a paz, ele as fustigou sem o mais leve pretexto. Mas, a meu ver, esta interpretação é forçada.

Em seguida, ele acrescenta: E ele se po rá , ou se erguerá, con­t r a o P ríncipe dos príncipes, e será d estru ído sem [auxílio de] m ãos, ou se rá a rru in ad o . 0 1, vau, é expresso adversativamen- te; todavia será destruído sem [auxílio de] mãos. Predizer o anjo

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[8.24, 25] DANIEL

as contendas de Antíoco, não só com os mortais, mas com o pró­prio Deus, constituía algo em extremo pungente para o profeta e para todo o povo. H á quem entende sar-sarim, comouma referência ao sumo sacerdote; isso, porém, é por demais ta­canho e deprimente. Não tenho a menor dúvida de que Deus aqui está implícito no Príncipe dos príncipes. Por isso o sentido com ­pleto é: Antíoco seria não só ousado, cruel e orgulhoso em rela­ção aos homens, mas essa demência e fúria continuariam até o levar a atacar e resistir a Deus mesmo. Esse é o sentido pleno. U m a consolação, porém, é logo acrescentada, quando o anjo diz: ele será destruído sem [auxílio de] mãos. Aliás, teria sido quase intolerável para os judeus só ouvir a insolência de Antíoco con­tendendo com Deus, a menos que se acrescentasse esta correção: o fim da contenda seria a autodestruição de Antíoco proveniente de sua própria impiedade. Então ele será destruído. Mas, como? Sem [o auxílio de] mãos, diz ele. Porque, depois de subjugar tantas nações, e depois de obter tudo quanto desejava, o que mais se esperaria no que diz respeito ao homem? Quem ousaria er­guer-se contra ele? Mui evidentemente, se os reis da Síria esti­vessem em disputa por suas próprias fronteiras, não careciam de temer a ninguém, pois nenhum inimigo os teria molestado; mas provocaram o ataque dos romanos, e quando quiseram invadir o Egito, suas tentativas foram frustradas. Qualquer que seja o sig­nificado, o anjo aqui anuncia a suficiência do poder divino sem qualquer participação humana na destruição e ruína de Antíoco. H á quem acredita que esta profecia aponta para o Anticristo, e assim ignoram completamente a Antíoco e nos descrevem o sur­gim ento do Anticristo, como se o anjo houvera mostrado a D ani­el o que aconteceria depois da segunda renovação da Igreja. A prim eira restauração ocorreu quando ao povo foi restaurada a li­berdade e regressaram do exílio para sua terra natal; e a segunda ocorreu no advento de Cristo. Esses intérpretes presumem que esta passagem revela aquela devastação da Igreja, a qual ocorreu depois da vinda de Cristo e a promulgação do evangelho. Mas,

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como vimos previamente, esse não é um sentido adequado, e não me surpreende que homens versados nas Escrituras cubram de nuvens a clara luz. Pois, como disse na preleção anterior, nada pode ser mais claro ou mais penetrante, ou mesmo mais familiar do que esta profecia. E que tendência é essa de atribuir tão vio­lentamente ao Anticristo o que mesmo uma m era criança clara­mente veria ser expresso em referência a Antíoco, a não ser para privar a Escritura de toda sua autoridade? Outros falam mais modestamente e com mais consideração, quando presumem que o anjo está tratando de Antíoco com o propósito de retratar em sua pessoa a figura do Anticristo. Quanto a mim, porém, creio ser esse raciocínio suficientemente sólido. Desejo que os orácu­los sacros sejam tratados com tanta reverência, que ninguém in­troduza nenhuma variedade segundo o bel-prazer humano, mas simplesmente mantenha o que é positivamente certo. Agradar- m e-ia mais ver alguém querendo adaptar esta profecia ao presen­te uso da Igreja e aplicar ao Anticristo, por analogia, o que se diz de Antíoco. Sabemos que tudo quanto aconteceu à Igreja de ou- trora também nos pertence a nós, porque já alcançamos a pleni­tude dos tempos.

Sem dúvida o Espírito Santo quis ensinar-nos como levar a cruz fazendo uso deste exemplo; mas, como eu já disse, parece- me frívolo demais sair em busca de alegorias. Devemos conten- tar-nos com a verdadeira simplicidade e transferir a nós tudo quan­to ocorreu ao povo antigo [ 1 Co 10.11], Com quanta razão diz o apóstolo que haveria falsos mestres no reino de Cristo, como outrora houve falsos profetas! [2Pe 2.1]. Assim devemos deter­m inar que o diabo, que foi homicida desde o princípio, sempre achará a quem ele inspire e impila a perseguir a Igreja. O diabo, nos dias atuais, não só contende por doutrinas falazes e erros ímpios e imposturas mil, mas também por tirania cruel, visto que ele inflama muitos ímpios à demência, e com isso acossa os fi­lhos de Deus. Como os judeus não deviam intimidar-se ante as

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[8.24, 25] DANIEL

calamidades que os oprimiam, mediante as predições de Daniel concernente a Antíoco, assim a mesma doutrina deve, em nossos próprios dias, fortificar-nos, para que o eco de nossas calam ida­des não nos amedronte, quando a Igreja for oprimida por fardos pesados e por tempestades e ódio provenientes dos déspotas, com fogo e espada [Rm 8.28]. Pois os pais experimentaram prova­ções similares, para quem Cristo não havia sido ainda designado como o caminho da vida e os quais não haviam ainda com preen­dido tão claramente nosso dever de conformar-nos ao unigénito Filho de Deus, visto ser ele o primogênito da Igreja; ele é nossa Cabeça e somos seus membros. Isso não havia sido ainda plena­mente desvendado para aqueles santos varões, os quais ainda suportavam tão terríveis aflições, quando presumiam estar a Igreja completamente sepultada, porquanto é certamente surpreenden­te com o não se entregaram centenas de vezes a tantas e tão terrí­veis calamidades. Portanto, esta doutrina será melhor acomoda­da a nossa instrução, se nos convencermos de que a justiça de nossa condição não é melhor que a dos pais. O que, pois, lhes aconteceu ? Esses ímpios serão destruídos, a saber, os judeus que se confessavam ser o povo eleito de Deus e a santa família de Abraão, e que de inúmeras maneiras provocaram obstinadamen­te a ira divina; assim a Igreja foi miseravelmente acossada. Antí­oco, especialmente, como uma tempestade avassaladora, reduziu todas as coisas a ruína, até que o povo se sentisse completamente arrasado e todo o aspecto humano ficasse destituído da mais leve esperança. Visto que Deus castigou tão severamente a impiedade de seu antigo povo, não nos surpreende quando sentimos sua dis­ciplina atual, visto que nestes dias a terra está cheia de impureza e não cessamos de provocar perpétua e propositadamente a ira divina [lT s 3.3]. Por último, para evitar a pena devida a nossos pecados, consideremos o fim de nossa vocação, a sujeição de toda nossa vida à cruz. Essa é a guerra à qual nos destina nosso Pai celestial. Visto ser esse nosso quinhão, devemos mirar bem

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esse espelho e ali contemplar a perpétua condição da Igreja. Não surpreende, pois, se, em vez de um Antíoco, Deus suscitasse mui­tos que são empedernidos e invencíveis em sua obstinação, e em sua crueldade fizessem inúmeras tentativas com artes clandestinas e arquitetassem a destruição da Igreja. Se os pais experimentaram isso, não nos surpreende se nós, nestes dias, enfrentássemos sofri­mentos semelhantes. Esta, digo, é uma analogia útil e não distorce o sentido simples da Escritura. Agora vamos em frente:

26 E a visão da tarde e da m anhã que foi 26 E t visio m atutina e t vespertina qusefaiada é verdadeira. T u, porém , encerra a pronuntiata fuit, veritas est. T u ergo ob-visão; porque e la ind ica dias ainda dis- signa, vel daude, v isionem , qu ia ad diestantes. m uitos protenditur.

O anjo novamente confirma a afirmação de que nenhuma parte desta visão fora mostrada ao profeta sem algum propósito, por­que nem ainda a mais leve porção dela ficaria sem efeito. E notó­ria a necessidade desse método de confirm ar nossa fé, porque, em bora os eventos nos venham a ser bem conhecidos, todavia não podemos aquiescer na palavra de Deus, a menos que ele tes­tifique reiteradamente a veracidade de suas asseverações, e com tal reiteração sancione ele tudo quanto nos pareça ambíguo. Quan­do se torna perfeitamente óbvio que o anjo discursa sobre even­tos obscuros, e como tais eram completamente incríveis naquele tempo, não nos surpreende quando ele anuncia um a vez mais que o profeta nada vira que Deus não concretizasse. Portanto, esta visão, diz ele, é veríd ica. Ele a denomina “a visão da tarde e da manhã” [vespertina e matutina], porque, enquanto o anjo estava tratando dos seis anos e quase meio, ele usou essa forma de lin­guagem. E dissemos que isso foi expresso de form a apropriada, para que ninguém o estendesse a anos ou a meses, como alguns o fazem; como se o anjo dissesse: Eis que, calculando dias simples elevados a seis anos e meio, a completação desta profecia, quan­do o templo for purificado, será acuradamente descoberta. Uma vez mais se assevera que a visão é incerta, porque Deus com pu­

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[8.27] DANIEL

tou dia a dia o tempo da profanação do templo até o período de sua purificação. Portanto, diz ele, sela ou en ce rra a visão, p o r ­que ela vem a lum e depois de m uitos dias. É possível que nos sintamos surpresos por que Deus quis que aquilo que ele expli­cou a seu servo permanece velado. Pois Daniel não foi instruído quanto ao futuro para seu proveito pessoal, mas para o proveito com um de todo o povo. Portanto, parece contrário a seu ofício receber a ordem de encerrar a visão e mantê-la em com pleta obs­curidade. O anjo, porém, tem em mente que, se a maioria do povo rejeitasse esta profecia, isso não constituía motivo para que D a­niel se mostrasse hesitante. T\i, pois, sê o guard ião d esta p ro fe ­cia, como se Deus houvera depositado um tesouro nas mãos de seu servo, e dissesse: “Não tenhas nenhum respeito por quem desprezar esta profecia; é possível que muitos escarneçam de ti, e outros concluam que estás a narrar fábulas e bem poucos te­nham em ti confiança. Não te deixes vencer por isso, porém guarda fielmente este tesouro”: visto que ele épara daqui a muitos dias', ou, seja, em bora seu efeito não seja imediatamente evidente, vis­to que Deus sustará por algum tempo o castigo de que ela trata, e não restaurará o templo prontamente, nem livrará seu povo ime­diatamente da mão do tirano. Portanto, em decorrência de deferir ele seus juízos, usará de compaixão por muitos dias, q u an to a ti, e n c e rra esta visão, ou, seja, conserva-a para ti mesmo, como se estivesses sozinho. Assim Deus não ordena simplesmente que seu profeta guarde silêncio, ou que oculte o que aprendera, mas, antes, o confirma em sua consistência, para que ele não avaliasse esta profecia segundo as opiniões ordinárias de seus com patrio­tas. E ao mesmo tempo ele m ostra que, ainda que os judeus não prestassem atenção ao que Daniel lhes anunciava, todavia nada seria debalde. E prossegue:

27 E cu . D aniel, desfaleci, e fiquei doen- 27 El ego Daniel deliquium passus sum ,te alguns dias; depois me levantei e c u i - vel, fractus sum, e t sg ro tav i d ies ,7’ et sur-

” Ou, seja. por um tempo.

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43* EXPOSIÇÃO [8-27]

dei dos negócios do rei; senti-m e atônito rexi,74 feci opus regis,75 e t obstupui prop- acerca da visão, e não havia quem a en- ter visionem : neque intelligens.76 tendesse.

Uma vez mais, Daniel se mostra profundamente atingido pelo instinto secreto de Deus, porquanto ele sabia que esta visão lhe havia sido divinamente apresentada. Porque Deus queria com isso afetar seu servo a fim de que ele abraçasse com mais intensa reverência o que ouvira e vira. Já fiz referência a nossa falta de atenção em ouvir a palavra de Deus segundo ela merece, a não ser que algum tipo de temor a preceda, para que de alguma forma nossas mentes se despertem de seu torpor; esta profecia, porém, tinha uma intenção especial. Em um caso ordinário, Deus não teria humilhado a seu servo; mas, pela enfermidade aqui menci­onada, ele desejava mostrar como esta predição se relacionava com algum evento de séria magnitude. Daniel, pois, declara que se sentira atônito, como que sofrendo de alguma deficiência e fo sse afligido por alguma doença. Tal enfermidade naturalmente não jazia no profeta, mas que ela lhe sobreviera em decorrência de ser ele repentinamente terrificado. E em seguida ele mostra isso, dizendo que ninguém conseguiu entender a predição. Aqui, pois, ele admoesta a todos os santos que não ouçam nem leiam esta narrativa com displicência, mas que concentrem sua máxi­ma atenção e percebam que Deus aqui lhes mostra coisas da má­xima importância e que vitalmente diz respeito a sua salvação. Isso dá a razão por que Daniel teria que sofrer desalento e ser afligido por enfermidade. Em seguida ele diz: re to rne i aos n e­gócios do rei, significando sua ocupação ordinária. Dessa ex­pressão inferimos o grave erro daqueles que pensam estar ele, naquele período, na Pérsia, porque não poderia ter retornado a seus deveres se não estivesse presente no palácio real. No entan­to, por que se acrescenta isso? Para assegurar-nos que o profeta

14 Ou, seja. depois levantei-me.,s O u, seja. cumpri meus deveres para os quais o rei me designara.* Ou. seja. não há ninguém que entenda.

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[9.1, 2] DANIEL

não se afastara dos deveres que o rei lhe designara, ainda que Deus o escolhera para exercer o ofício peculiar de profeta e mes­tre de sua Igreja. Esse é um raro exemplo, e não deve ser confun­dido com o precedente, segundo a frase usual. Qual de nós, por exemplo, seria suficiente para aqueles deveres do governo políti­co designados a Daniel e também aqueles que estão a cargo do pastor ou do professor? Deus, porém, fez uso de seu servo Daniel de uma forma extraordinária, porque ele tinha sobejas razões para querê-lo ocupado no palácio real. Já vimos previamente como a glória de Deus foi ilustrada por essa posição, pois Daniel avisou Belsazar de sua morte iminente, quando seus inimigos já haviam parcialmente capturado a cidade. E a utilidade disso foi provada ao serem os judeus poupados por Ciro e Dario. Enquanto os cal­deus mantinham o poder supremo, Daniel não foi de nenhum proveito para aqueles miseráveis exilados; pois ainda quando vi­vesse sob tiranos cruéis, todavia tinha algum resto de autoridade, e isso o possibilitava a aliviar bastante os sofrimentos de sua na­ção. Deus, portanto, estava tirando proveito de todo o povo, quan­do quis que Daniel prosseguisse no curso de seus deveres costu­meiros. Além disso, ele queria conferir-lhe o extraordinário dom de profecia, um dote, como eu já disse, peculiar a Daniel. Prossi­gamos agora:

1 N o prim eiro ano de D ario, filho de As- suero, da linhagem dos m edos, o qual foi constitu ído rei sobre o reino dos caldeus;2 N o prim eiro ano de seu reinado, eu, Daniel, entendi pelos livros que o núm e­ro d os anos, de que falara o Senhor ao profeta Jerem ias, em que haviam de cum-

1 Anno uno, id esl, primo, Darii filii As- sueri e sem ine M edorum , qui rex fuit constitu tus,” in regno Chaldaico.2 In anno prim o, inquam,n regni illius, ego Daniel intellexi in libris num erum an- norum , de quibus fuerat serm o Jehovse ad Jerem iam prophetam ,7' ad im plendum de-

r Lileralmente. foi coroado, isto é. feito rei.75 Ele repete as palavras, o primeiro ano.w Aiguns traduzem a palavra 'n j '2 , binihi, eu estava atento, considerava diligentemente.

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43* EXPOSIÇÃO [9.1-3]

prir-se as desolações de Jerusalém , era de solationem Jen isa lem annos septuaginta. setenta anos.3 E eu dirig i m eu rosto para o Senhor 3 E t levavi factem m eam ad Dom inum Deus. para o buscar em oração e súpli- D eum , ut qusererem oratione et precatio- cas, com je jum , cilício e cinzas. nibus,*0 cum je jun io , sacco, e i cinere.

Neste capítulo Daniel nos explicará duas coisas. Primeiro, quão ardentemente ele costumava orar quando o tempo da reden­ção, especificada por Jeremias, se avizinhava; e em seguida ele relatará a resposta que recebera de Deus a suas ardentes súplicas. Estas são as duas divisões deste capítulo: Primeiro, Daniel nos informa como ele orou assim que entendeu, pelos livros, o núme­ro dos anos. D aí deduzirmos que Deus aqui não promete a seus filhos bênçãos terrenas, mas vida eterna, e em bora se fizessem estúpidos e destituídos de todo cuidado e interesse espirituais, ele insiste com eles a orarem mais solicitamente. Pois que bene­fício as promessas de Deus nos conferem se não as abraçarmos pela fé? A oração, pois, é o principal exercício da fé. Esta obser­vação de Daniel é digna de nota: ele fo i estimulado a orar, por­que sabia, à luz dos livros, o número dos anos. M as deferirei o restante para amanhã.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que nestes dias nos chamaste a uma sorte se­melhante àquela que os pais sob a lei antigamente experimentaram, e visto que os confirmaste na paciência e os armaste para a constância na luta e os tornaste superiores em todos os conflitos deflagrados por Satanás e o mundo, fa z com que, a ti oramos, como em nossos dias quiseste unir-nos a eles, sejamos proficientes em tua palavra. Que bus­quemos carregar, por antecipação, a cruz por toda nossa vida. Que estejamos preparados para a luta e preferir à miserável aflição sob a bandeira da cruz a levar uma vida de segurança e luxo em nossos próprios deleites, e assim vivermos privados daquela esperança de vitória que nos prometeste e cujo fruto depositaste para nós no céu, por intermédio de Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

mas isso é de pouca importância para o sentido.8,1 Alguns tomam "orações c súplicas” pela caso acusativo.

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44a• **

( J / l a preleção anterior começamos dizendo que os fiéis não ^ ! í aquiescem nas promessas de Deus ao ponto de se torna­rem estúpidos, ociosos e indolentes, movidos pela persuasão de que ele cumprirá suas promessas; mas, ao contrário, se estimu­lam à oração. Pois a prova genuína de fé é a certeza de que, quan­do oramos, Deus realmente faz o que ele nos prometeu. Daniel aqui é posto diante de nós como um exemplo disso. Pois quando ele compreendeu que o dia da vingança estava próximo, essa in­formação se lhe transformou num estímulo à oração mais ardo­rosamente do que costumava fazer. É evidente, pois, como já dis­semos, que o profeta era diligente e ansiava por esse particular. Ele não desistiu de seu hábito cotidiano ao ver-se ante um risco maior de se ver exposto à morte. Pois quando o édito do rei proi­biu que cada um orasse a Deus, ele continuou a volver seu rosto para Jerusalém. Esse era o hábito diário do profeta. Mas percebe­remos a extraordinária natureza de sua presente oração, ao dizer ele que orava no pó e na cinza. Disto transparece - visto haver Deus prometido estimulá-lo à súplica, e daí deduzimos o que re­centemente mencionamos de leve - que a fé não é um a especula­ção imprudente, que se satisfaz simplesmente por concordar com Deus. Embora o estúpido pareça assentir pelo mero ouvir exter­no, para a fé genuína é algo muito mais sério. Quando alegre­mente abraçamos a graça de Deus, a qual nos oferece, ele nos satisfaz e nos precede com sua bondade, e assim respondemos a tempo a sua oferta e passamos a testificar de nossa expectativa

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4 4 ' EXPOSIÇÃO [9.1-3]

de suas promessas. Portanto, nada pode ser melhor para nós do que pedir o que ele já nos prometeu. E assim nas orações dos santos tais sentimentos se congraçam, quando eles confessam as promessas de Deus à luz das quais eles lhe suplicam. E possivel­mente não conseguimos exercer a confiança genuína em oração, a menos que descansemos firmemente na palavra de Deus. Um exem plo desse tipo nos é aqui apresentado no caso de Daniel. Quando ele entendeu que expirava o número de anos, de que Deus fa lara pelos lábios de Jeremias, então aplicou sua mente à súplica. Vale a pena atentar para o que já mencionei: Daniel não está aqui tratando de suas orações diárias. Podemos facilmente fazer um apanhado de toda sua vida, de como ele se exercitava em oração, mesmo antes de Jeremias haver falado dos setenta anos. Quando ele percebeu que o tempo da redenção estava pró­ximo, então passou a estimular-se à prática de súplicas com mais instância do que seu costume. Ele expressa isso ao dizer: em je ­jum , cilício e cinzas. Pois os santos não costumavam lançar cin­zas sobre suas cabeças todos os dias, nem ainda a afastar-se para suas orações, seja para jejuar ou para vestir-se de cilício. Tal ati­tude era rara, só própria para quando Deus manifestava algum sinal de sua ira, ou quando ele retinha algum benefício raro e singular. A presente oração de Daniel não resultou de hábito usu­al, mas quando se vestiu de cilício e se aspergiu com cinzas e suportou jejum , então prostrou-se diante de Deus e apresentou suas súplicas. Ele também implorava o perdão divino, como ve­remos mais adiante, e rogava pela concretização do que o Todo- Poderoso havia seguramente prometido.

À luz desse fato aprendemos duas lições: Primeiro, devemos exercer com perseverança nossa fé em meio a orações; segundo, quando Deus nos promete algo notável e valioso, devemos então deixar-nos estimular mais e nutrir expectativa como um estímulo mais agudo. Com referência ao jejum , cilício e cinzas, podemos observar sucintamente como os santos pais, sob a Lei, cultiva­

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(9.1-3] DANIEL

vam o hábito de acrescentar a suas orações cerimônias extras, especialmente quando desejavam confessar seus pecados a Deus e precipitar-se diante dele como plenamente culpados e convic­tos, lançando nele toda sua esperança e suas súplicas por miseri­córdia. Atualmente os fiéis são justificados em acrescentar a suas orações certos ritos externos; ainda que, neste caso, estes não carecem, nem podem, nem devem ser estabelecidos. Também sabemos que os orientais se devotavam m ais a cerimônias do que nós. E deve-se observar essa diferença entre o povo antigo e a nova igreja, visto que Cristo, com seu advento, aboliu muitas cerimônias. Pois os pais eram, sob a Lei, nesse sentido, como crianças, no dizer de Paulo [G1 4.3], A disciplina que Deus ou- trora instituíra envolvia o uso de mais cerimônias do que se pra­ticou mais tarde. Uma vez que existe essa importante diferença entre nossa posição e a deles, quem quiser copiar deles todas suas práticas se converterá antes em símio do que em im itador de antigüidade. Entrementes, devemos observar que a realidade per­manece para nós, em bora os ritos externos já estejam abolidos. Portanto, existem dois tipos de oração: um que devemos praticar diariamente, de manhã, à tarde e, se possível, a todo momento; pois vemos que a constância em oração nos é recom endada na Escritura [Lc 18.1; Rm 12.12; lTs 5.17]. O segundo tip o é usado quando Deus anuncia sua ira contra nós, ou quando temos neces­sidade de seu socorro especial, ou quando buscamos dele algum favor inusitado. Esse foi o método de oração praticado por Dani­el: vestia-se de cilício e se aspergia com cinzas. Mas, como já tratamos desse tema em outro lugar, então passo a exercer mais brevidade.

Quando Daniel percebeu que o período do livramento estava próximo, não só orava segundo seu costume, mas abandonou to­das suas demais ocupações com o propósito ficar quieto em sos­sego e livre de ocupação, e assim aplicou sua mente intensamen­te à oração, e fez uso de outros auxílios devocionais. Pois o cilí­

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44* EXPOSIÇÃO [9.1-3]

cio e as cinzas eram de muito mais proveito do que o mero teste­munho externo. São auxílios para intensificar nosso ardor em oração, quando quem ora se sente apático e esmorecido. De fato é verdade que quando os pais sob a Lei oravam vestidos de cilí­cio e se aspergiam com cinzas, essa aparência era útil como uma marca externa de sua profissão [religiosa]. Atestava diante dos homens como eles se achegavam a Deus na qualidade de supli­cantes culpados e depositavam toda sua esperança de salvação unicamente no perdão. Essa conduta era ainda útil de outra for­ma, a saber: despertava neles um desejo ainda mais ardente de orar. E é preciso que se observe ambos esses pontos no caso de Daniel. Pois se o profeta se sentia tão necessitado dessa assistên­cia, o que dizer, pois, de nossas necessidades? Cada um de nós deve seguramente com preender quão embotado e frio é no exer­cício desse sacro dever. Portanto, nada mais resta senão que cada um se torne cônscio de sua enfermidade, reúna todos os auxílios possíveis para a correção de sua apatia, e assim se estimule à súplica ardente. Pois quando Daniel, segundo seu costume diá­rio, orava correndo o risco de ser morto por essa conta, devemos deduzir disso quão naturalmente alerta ele estava enquanto orava a Deus. Ele era cônscio da carência de suficiência em si mesmo, e por isso adiciona o uso de cilício, cinzas e jejum.

Passo por alto o que poderia ser tratado mais difusamente - como o jejum é amiúde associado às orações extraordinárias. Também concluímos que as obras em si mesmas falham em apra­zer o Onipotente, segundo as ficções dos papistas de nossos dias, bem como as tolas imaginações de tantos outros. Pois acreditam ser o jejum um a parte do culto divino, ainda que as Escrituras sempre no-lo recomendem para outro propósito. Ele por si só é de nenhum valor, a não ser quando associado às orações, com exortações ao arrependimento e com a confissão de nossa peca- minosidade, então se torna aceitável, mas não de outra forma. Assim observamos como Daniel fez um uso correto do jejum,

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[9 .1 -3 ] DANIEL

não com o intuito de agradar a Deus com tal disciplina, mas para torná-lo mais obsequioso em suas orações.

Em seguida precisamos observar outro ponto. Em bora Dani­el fosse intérprete de sonhos, ele não era tão imbuído de confian­ça e soberba ao ponto de desprezar o ensino ministrado por ou­tros profetas. Jeremias estava então em Jerusalém quando Daniel foi arrastado para o exílio, onde ocupou o ofício de mestre por um longo período, de modo que Babilônia veio a ser seu púlpi­to.81 E Ezequiel o chama o terceiro entre os mais excelentes ser­vos de Deus [14.14], em virtude de a piedade, integridade e san­tidade da vida de Daniel serem ainda então celebradas. Quanto a Jeremias, sabemos que ele ou já havia falecido no Egito ou, tal­vez, estivesse ainda vivo quando esta visão foi apresentada a Daniel, que já havia compendiado suas profecias antes dessa oca­sião. Observamos ainda a grande modéstia desse santo varão, visto que se empenhava em ler os escritos de Jeremias e não se sentia envergonhado de pessoalmente extrair proveito delas. Pois ele sabia que esse profeta fora designado para instruir a ele e ao restante dos fiéis. Assim ele de bom grado submeteu-se à instru­ção de Jeremias e enfileirou-se por entre seus discípulos. E se ele não se dignara ler aquelas profecias, não teria sido digno de par­tilhar do livramento prometido. Visto ser ele um membro da Igreja, então teria de ser um discípulo de Jeremias, como igualmente Jeremias não teria feito objeção em tirar proveito de seu regres­so, se alguma profecia de Daniel lhe houvera sido apresentada. Esse espírito de modéstia deve expandir-se entre os servos de Deus, ainda quando excelam no dom de profecia, induzindo-os a aprenderem uns dos outros, enquanto nenhum deles deve erguer- se acim a do nível comum de todos. Ainda que sejamos mestres, ao mesmo tempo é nosso dever continuar como aprendizes. E Daniel nos ensina isso, ao lermos: ele entendeu pelos livros o

81 Uma mudança de expressão um tanto inesperada. O texto latino é quasi suggeslus', e ambas as edições francesas traduzem cnmmt une chaire pourprescher.

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44a EXPOSIÇÃO [9.1-3]

número de anos, e o número era segundo a palavra de Jehovah através do profeta Jeremias. Ele mostra por que se exercitara nos escritos de Jeremias: porque se convencera de que Deus falara por meio de sua voz. E assim não lhe constituiu problema algum ler aquilo que ele bem sabia haver procedido de Deus.

É preciso que observemos agora o tempo desta profecia: o p rim eiro ano de D ario. Não nos demoraremos neste ponto aqui, porque já discuti bastante sobre os anos ao chegarmos à segunda parte do capítulo. N a preleção anterior declarei que este capítulo abrange duas divisões principais. Daniel primeiro registra sua própria oração, e em seguida adiciona a predição que lhe fora entregue pela mão do anjo. Em seguida falaremos dos setenta anos, porque a discussão então se provará bastante longa. Agora tocarei apenas de leve num único ponto - o tempo da redenção estava chegando, assim que a monarquia babilónica fosse muda­da e transferida para os medos e persas. Com o fim de tornar a redenção de seu povo ainda mais proeminente, Deus quis desper­tar todo o oriente depois que os medos e persas tivessem con­quistado os babilônios. Ciro e Dario publicaram seu édito mais ou menos ao mesmo tempo, por meio do qual aos judeus se per­mitiu regressarem a sua pátria natal. Portanto, naquele ano sig­nifica o ano em que Dario começou seu reinado. Aqui alguém poderia perguntar: Por que ele menciona somente Dario, quando Ciro lhe era muito superior em poderio militar, prudência e ou­tros dotes? A resposta imediata é que Ciro partira imediatamente em outras expedições, porquanto sabemos que se apoderara dele uma ambição insaciável. Ele não foi estimulado pela avareza, mas por um a insaciável ambição, ao ponto de não poder ficar quieto em um único lugar. E assim, ao tomar posse de Babilônia e de toda aquela monarquia, ele fíxou-se na Ásia M enor e a acos­sou até quase à morte, de forma contínua e incansável. H á quem afirma que ele foi morto em batalha, enquanto Xenofonte descre- ve sua morte com o que se reclinando em seu leito, e conforta-

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[9.1-3] DANIEL

velmente a instruir seus filhos acerca do que ele queria que fosse feito. Mas, seja qual for o verdadeiro relato, toda a história testi­fica de sua incessante movimentação de um lugar a outro. Daí não surpreende ouvir o profeta falar aqui apenas de Dario, o qual era mais avançado em idade e mais lerdo em seus movimentos ao longo de sua vida. É suficientemente certificado que ele não era amante da guerra; Xenofonte o cham a Cyaxares, e afirma ter sido ele filho de Astyages. Sabemos também que Astyages era o avô materno de Ciro, visto a mãe de Ciro ser sua irmã. Quando o profeta cham a seu pai de Assuero, isso não deve constituir-nos um problema, visto que os nomes variam muito quando compa­ramos o grego com o hebraico. Sem a mais leve dúvida, Astya­ges era chamado Assuero, ou, pelo menos, seu nome era um e seu sobrenome, outro. Toda dúvida é removida pela expressão: D ario e ra d a linhagem dos m edos. Ele distingue aqui entre os medos e os persas, visto que os medos se assenhorearam de ricos e esplêndidos territórios, estendendo-os mais e mais amplamente em todos os lados, enquanto que os persas se encerravam dentro de suas montanhas e eram mais austeros em sua form a de vida. O profeta, porém, declara aqui a origem meda desse Dario, e acres­centa outra circunstância, a saber: ele apoderou*se do reino dos caldeus. Pois Ciro admitia que ele [Dario] fosse chamado rei, não só em virtude de sua idade e de ser seu tio e seu sogro, mas também porque ele não intentava nada contra sua autoridade. Ele sabia que Dario não tinha nenhum herdeiro que viesse no futuro a trazer-lhe aborrecimentos. Ciro, pois, entregara a seu sogro um título vazio, enquanto que todo o poder e influência permaneci­am completamente dentro de seu domínio.

Então o profeta afirma: Q uando pelos livros en tend i o n ú ­m ero dos anos p a ra o cum prim en to d a desolação de J e ru s a ­lém , ou, seja, se ten ta anos. Esta profecia se encontra no capítulo 25 de Jeremias, e é reiterada no capítulo 29. Deus fixara de ante­mão setenta anos para o cativeiro de seu povo, visto que fora

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um a grave provação serem eles lançados fora da terra de Canaã, a qual lhes fora concedida como uma herança perpétua. Vieram- lhes à mente aquelas célebres sentenças: “Este será meu repouso para sempre” , e: “Possuireis a terra para sempre” [SI 132.14], Quando foram lançados fora e dispersos por vários países da ter­ra, era como se o pacto divino fora abolido, e como se não hou­vesse qualquer vantagem em sua origem provir daqueles santos pais a quem sua terra fora prometida. Com o propósito de satisfa­zer essas tentações, Deus fixara de antemão um determinado tem­po para seu exílio, e Daniel agora recorre a essa predição. Ele acrescenta: E n tão e rgu i m eu rosto. Propriamente dito, é iTínX, ath-neh, coloquei; visto, porém, que alguns intérpretes parecem receber esta palavra de uma forma tão fantasiosa, como se Daniel estivesse então olhando para o santuário, prefiro traduzi-la: E r­gui meu rosto para Deus. É plenamente certo que enquanto o altar esteve de pé, e a arca do concerto esteve no santuário, o rosto de Deus estava ali, para o qual os fiéis deveriam dirigir seus votos e orações; mas agora as circunstâncias eram diferentes, porquanto o templo estava em ruínas. Lemos previamente de Daniel orando e volvendo seus olhos naquela direção e para a Judéia; seu objetivo, porém, não era o desejo de orar em confor­midade com o costume de seus pais. Pois então não havia em existência nem santuário e nem arca do concerto [Dn 6.10]. Seu objetivo em volver o rosto para Jerusalém era para publicamente demonstrar sua confissão de ainda mentalmente permanecer na­quela terra que Deus havia destinado à raça de Abraão. Por meio desse gesto e cerimônia externos, o profeta reivindicava a posse da Terra Santa, a despeito de estar ainda em cativeiro e exílio. Com respeito à presente passagem, simplesmente a entendo no sentido em que ele ergueu seu rosto para Deus. Diz ele: p a ra que eu pudesse in q u ir ir p o r m eio de súplica e orações. U m a e ou­tra são igualmente adequadas ao sentido, mas a prim eira versão é menos forçada, porque o profeta buscava a Deus através de sú-

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[9 .4 ] DAN IEL

plica e orações. E essa form a de linguagem é bastante com um na Escritura, quando lemos para buscarmos a Deus quando testifi­camos de nossa esperança de que ele fará o que prometeu. Agora prosseguimos:

4 E orei ao Senhor m eu Deus. e fiz m inha confissão, e disse: Ó Senhor, Deus gran­de e tem ível, que guardas a aliança e a m ise ricó rd ia para com aqueles q u e te am am , e para com aqueles que guardam teus m andam entos.

Aqui Daniel relata a substância de sua oração. Diz ele: O rei, e confessei d ian te de Deus. A maior parte dessa oração consiste num a súplica para que Deus perdoasse a seu povo. Sempre que rogamos por perdão, o testemunho de arrependimento deve pre­ceder nossa súplica. Pois Deus anuncia que será propício e aten­derá prontamente a súplica quando os homens se mostrarem sé­ria e sinceramente arrependidos [Is 58.9]. Daí a confissão de cul­pa ser um método de obter-se o perdão; e por essa razão Daniel preenche a maior parte de sua oração com a confissão de sua pecaminosidade. Ele nos lembra esse fato não movido de van­glória, mas para instruir-nos por meio de seu próprio exemplo, para que oremos como devamos. Diz ele, pois: orei e f i z confis­são. A adição de “meu Deus” ao título Jehovah é de modo algum supérflua. Orei, diz ele, a meu Deus. Ele aqui mostra que não enunciava suas orações com vacilação, como tão amiúde ocorre com os homens, pois os incrédulos amiúde fogem para Deus, porém sem qualquer confiança. Disputam consigo mesmos se porventura suas orações produzirão algum efeito; Daniel, pois, nos mostra duas coisas franca e distintamente, visto que ele ora­va com fé e arrependimento. Pela palavra confissão ele tem em mente seu arrependimento; e ao dizer, orei a Deus, ele expressa

82 A mesma palavra em Hiphil significa celebrar os louvores de Deus; aqui. porém, ela é tomada para confessar uma culpa.

4 E t ora vi Jehovam D eum m eum , e t con- fessus sum,8! e t dixi, Q u a so D om ine D eus m agne e t terrib ilis, custodiens foedus et m isericordiam diiigentibus ipsum , e t cus- todientibus p rsc ep ta ejus.

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fé e a ausência de toda e qualquer temeridade de porventura estar jogando fora suas orações, como fazem os incrédulos quando oram a Deus confusamente, e todo o tempo se deixam distrair por enor­me variedade de pensamentos intrusos. Orei, diz ele, a meu Deus. Ninguém pode usar essa linguagem sem um a inabalável confian­ça nas promessas de Deus e sem presumir que ele provará estar disposto a ouvir a súplica. Então acrescenta: rogo-te, ó Senhor. A partícula N3N, ana, é traduzida variadamente; mas é apropria­damente, na linguagem dos gramáticos, a partícula de súplica. O S enhor Deus, diz ele, g ran d e e temível. Ao usar tal linguagem, é como se Daniel pusesse um obstáculo a sua própria oração; pois tal é a santidade de Deus que, tão logo a concebemos em nossa mente, ela nos repele para longe; razão por que esse terror parece ser removido quando buscamos um acesso familiar ao Todo-Poderoso. É possível que alguém presuma ser esse método de oração de modo algum adequado, visto Daniel pôr Deus dian­te de seus olhos como grande e terrível. Para ele é como algo assustador; todavia o profeta merece uma oportuna moderação: enquanto de um lado ele reconhece ser Deus grande e terrível, do outro admite que ele g u a rd a sua a liança p a ra com aqueles que o am am e obedecem a seus estatu tos. Em seguida veremos o terceiro ponto adicionado: Deus receberá os ingratos e todos quan­tos se apartam de sua aliança. O profeta enfeixa essas duas coisas.

Com respeito aos epítetos, grande e temível, devemos manter o que já declaramos, a saber: a impossibilidade de nossa oração ser correta, a menos que nos humilhemos diante de Deus; e essa humildade é um a preparação para o arrependimento. Portanto, Daniel se põe diante da majestade de Deus, instando consigo mesmo e com outros a lançarem-se diante do Todo-Poderoso para que, em concordância com seu próprio exemplo, sintam-se ver­dadeiramente arrependidos diante dele. Portanto, diz ele, Deus é grande e temível. Jamais atribuiremos justa honra a Deus, a me­nos que nos lancemos, como se estivéssemos mortos, diante dele.

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[9.4] DANIEL

E é preciso que observemos isso com diligência, porque somos por demais displicentes em nossa oração a Deus, e a tratamos como uma mera matéria de observância externa. Devemos saber quão impossível é a obtenção de algo da parte de Deus, a não ser que compareçamos diante dele com temor e tremor, e nos porte­mos com genuína humildade em sua presença. Esse é o primeiro ponto a ser observado.

Então Daniel mitiga a aspereza de sua declaração, acrescen­tando: que g u ardas tu a a liança e usas de com paixão p a ra com aqueles que te am am . Aqui temos uma mudança de pessoa: a terceira é substituída pela segunda, porém não há obscuridade no sentido; como se ele quisesse dizer: Tu guardas tua aliança para com aqueles que te amam e observam teus estatutos. Aqui Daniel ainda não explica plenamente o tema, pois essa afirmação é fraca demais para granjear a confiança do povo; este se havia revolta­do perfidamente contra Deus, e até onde se relacionavam com ele, seu acordo havia chegado ao fim. Daniel, porém, desce cada degrau e passo a passo vai ao fundamento com o intuito de inspi­rar no povo um a sólida confiança na longanimidade de Deus. Dois pontos estão envolvidos nesta sentença: primeiro, demons- tra-se-nos que não há razão alguma para os judeus discutirem com Deus ou de se queixarem de ser tratados por ele com extre­m a severidade. Daniel, pois, silencia todas as expressões de re­belião, dizendo: Tu, ó Deus, guardas tua aliança. Devemos ver aqui a real condição do povo: os israelitas estavam no exílio; sabemos quão dura era essa tirania - como eram oprimidos pelos mais cruéis opróbrios e desgraças e como eram brutalmente tra­tados por seus conquistadores. Isso poderia impelir muitos de clamarem, como indubitavelmente faziam: “O que Deus quer de nós? H á alguma vantagem em sermos escolhidos como seu povo peculiar? Qual é a vantagem de nossa adoção, se ainda somos os mais miseráveis de todas as nações?” Assim os judeus poderiam queixar-se sentindo a mais amarga tristeza e exaustão sob o peso

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do castigo que Deus lhes havia infligido. Daniel, porém, aqui declara que apresentou-se diante de Deus, não para contestar e murmurar, mas apenas para implorar seu perdão. Portanto, por essa razão, ele primeiramente diz: Deus guarda sua aliança para com aqueles que o amam-, mas, ao mesmo tempo, ele passa a orar por perdão, como veremos mais adiante. Trataremos dessa alian­ça e da longanimidade do Todo-Poderoso na próxima preleção.

ORAÇÃODeus Todo-Poderoso, já que no presente tempo merecidamente nos punes em razão de nossos pecados, segundo o exemplo de teu antigo povo, a fim de volvermos nosso rosto para ti com real arrependimen­to e humildade, permite que nos lancemos diante de ti com súplica e prostração; e, sem qualquer esperança posta em nós mesmos, depo­sitemos toda nossa esperança em tua compaixão, a qual nos prome­teste. Que confiemos naquela adoção que se fundamenta em e é san­cionada por teu unigénito Filho, e que jam ais hesitemos em chegar- nos a ti como que diante de um pai que está sempre pronto a receber o filho que foge para seus braços. Entrementes, que afetes tão com­pletamente nossas mentes, ao ponto de não só orarmos a ti como uma questão de dever, mas também de genuína e seriamente fug ir­mos para ti em busca de proteção, e deixarmo-nos tocar pelo senso de nossos pecados, e de jamais duvidarmos de tua disposição propí­cia para conosco. No nome de teu próprio Filho, nosso Senhor. Amém.

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í j / j a última preleção, Daniel disse que orou e confessou. Ago- ^ 9 iv a , ao narrar a forma de sua oração, ele começa com con­fissão. E mister que notemos isso, a fim de capacitarmo-nos a entender o desígnio que Daniel tinha em vista, bem como o obje­tivo especial de sua oração. Esse é o tipo de abertura que ele faz - o povo é culpado diante de Deus e ora humildemente por per­dão; mas antes de o profeta chegar a essa súplica, ele confessa como o povo fora mui severamente, e com justiça, castigado pelo Senhor, visto que tão grave e variadamente haviam provocado sua ira. Primeiramente, ele qualifica Deus de temível, pois tenho recitado e traduzido suas palavras. Quando o profeta deseja atrair o favor divino para si, ele começa apelando para sua majestade. Com essas palavras ele se estimula à reverência, a si e ao restante dos fiéis, instando com eles a se chegarem à presença de Deus com submissão, para que se reconheçam totalmente condenados e privados de toda esperança, exceto na misericórdia de Deus. Portanto, ele o denom ina de grande e temível, com o fim de hu­milhar diante de Deus as mentes de todos os santos e impedir que aspirem alguma vanglória ou se encham com alguma autoconfi­ança. Porque, como já dissemos noutro lugar, os títulos de Deus algumas vezes são perpétuos, e outras, variáveis, segundo as cir­cunstâncias do tema em mãos. Deus pode ser sempre chamado grande e temível; Daniel, porém, o chama assim aqui para, como já observei previamente, estimular a si e a todos os demais à reve­rência e à humildade. Então acrescenta: Ele é fiel em manter sua

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aliança e em revelar compaixão para com todos seus verdadeiros adoradores. Já me referi a um a mudança de pessoa nesta senten­ça; ela, porém, não obscurece o sentido nem se tom a de forma alguma duvidosa. lá expliquei como essas palavras também tes­tificam da ausência de toda e qualquer causa pela qual o povo murmure ou se queixe de estar sendo tratado tão duramente. Pois onde a fidelidade de Deus a suas promessas já foi uma vez esta­belecida, os homens não têm a mais leve razão de queixar-se ao serem tratados por ele com menos clemência, ou se sentirem frus­trados só porque eles mesmos são achados falazes e pérfidos; porquanto Deus sempre permanece veraz a suas palavras [ICo 1.9; 10.13; 2Ts 3.3], Nesse sentido Daniel anuncia que D eus con­serva sua aliança para com todos os que o amam. Em seguida temos de notar como ele adiciona a palavra ‘com paixão’ em vir­tude de sua ‘aliança’. Ele não expressa essas palavras com o que diferindo um a da outra, H '13, brith, e 1DH, chesed , mas as enfei­xa, e a sentença deve ser entendida por meio de uma figura co­mum de linguagem, implicando que Deus fez um a graciosa ali­ança que emana da fonte de sua compaixão. Portanto, o que é esse acordo ou aliança e compaixão de Deus? A aliança emana da misericórdia de Deus; não em ana nem da dignidade, nem dos méritos humanos; é unicamente na graça de Deus que ela tem sua causa, estabilidade, efeito e completação. Temos de atentar para isso, porque os que não são bem versados nas Escrituras poderiam perguntar por que Daniel distingue misericórdia de ali­ança, como se aí existisse uma mútua estipulação, quando Deus entra em aliança com o homem, e assim o pacto divino depende­ria simplesmente da obediência humana. Essa questão é solucio­nada quando entendemos a form a de expressão aqui usada, uma vez ser esse tipo de frase freqüente nas Escrituras. Pois sempre que se menciona o pacto de Deus, adiciona-se também sua cle­mência, ou bondade, ou inclinação para amar. Portanto, Daniel confessa, em primeiro lugar, a natureza gratuita do pacto de Deus

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[9.4] DANIEL

com Israel, asseverando que ele não tem nenhum a outra causa ou origem além da bondade graciosa de Deus. Em seguida testifica da fidelidade de Deus, pois ele nunca viola seu acordo nem se afasta dele, um a vez que em muitos outros lugares a verdade e fidelidade de Deus se acham jungidas a sua clemência [SI 36.6, e outros lugares]. É indispensável que confiemos na mera bondade de Deus, já que nossa salvação repousa inteiramente nele, e as­sim rendamos-lhe a glória devida a sua compaixão, e por isso se nos torna indispensável, em segundo lugar, obter um a nítida apre­ensão da clemência divina. A linguagem do profeta expressa ambos esses pontos, ao mostrar-nos ele como o pacto divino de­pende e em ana de sua graça, e também quando ele adiciona a fidelidade do Todo-Poderoso em manter seu compromisso.

Ele acrescenta: p a ra com os que o am am e g u a rd am seus m andam entos. Devemos diligentemente notar esse fator, por­que Daniel aqui convence todo o povo da defesa que muitos po­deriam propor, já que os hipócritas instintivamente acendem sua ira contra Deus; mais ainda, ousadamente o recriminam, porque ele ou não os perdoa, ou não os favorece. Daniel, pois, para refre­ar essa soberba e para eliminar todo e qualquer pretexto de dis­córdia por parte dos ímpios, diz: Deus é f ie l para com os que o amam. Ele assim nos admoesta: Deus nunca é severo, a não ser quando provocado pelos pecados humanos; como se quisesse dizer: a aliança de Deus é por si só inabalável; quando os homens a violam, não surpreende se Deus subtrai suas promessas e re­nuncia seu acordo, ao perceber estar sendo tratado com perfídia e desconfiança. Portanto, o povo é aqui diretamente condenado, enquanto Daniel testifica da constância divina em m anter suas promessas, caso os homens, de sua parte, ajam de boa fé para com ele. No todo, ele mostra como o povo era culpado quando Deus alterou seu curso usual de tratamento bondoso e beneficen­te e pôs em ação sua mais severa vingança, fazendo com que o povo fosse expulso da terra de Canaã, a qual era sua perpétua

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herança. Daniel aqui explica como toda culpa deve ser eliminada de Deus, um a vez que o povo se revoltou contra ele e por sua perfídia violou seu compromisso. Vemos, pois, como Daniel lan­ça toda a culpa das calamidades do povo sobre eles mesmos, e assim ele isenta a Deus de toda e qualquer culpa e responsabiliza o povo por todas as queixas injustas. Além disso, o profeta m os­tra como o objetivo especial do culto divino consiste em induzir- nos a amá-lo. Porque muitos observam a lei de Deus segundo a maneira dos escravos; porém precisamos lembrar-nos sempre desta passagem: Deus ama o alegre doador [2Co 9.7], Quando, pois, os hipócritas são violentamente atraídos à obediência, o pro­feta aqui distingue entre os verdadeiros adoradores de Deus e os que se desincumbem de seu dever apenas de um a m aneira mecâ­nica, e não de coração. Ele assevera que o princípio que rege o culto devido a Deus consiste em um amor diligente por ele, e tal sentimento ocorre com freqüência nos escritos de Moisés [Dt 10.12). Portanto, temos de manter a impossibilidade de se agra­dar a Deus pela obediência, a menos que ela proceda de uma afeição sincera e espontânea da mente. Aqui está a primeira regra do culto divino. E preciso que o amemos; é preciso que nos pre­paremos para devotar-nos inteiramente a obedecê-lo e a cumprir espontaneamente tudo quanto ele requer de nós. Segundo lemos nos Salmos [SI 119.24]: “Tua lei é todo meu prazer.” E nova­mente, no mesmo Salmo, Davi declara ser a lei de Deus, para seu coração, mais preciosa que o ouro e a prata; sim, mais agradável e mais doce que o próprio mel [vv. 72, 103]. A menos que ame­mos a Deus, não teremos razão alguma para concluir que ele apro­vará alguma de nossas ações; todos nossos deveres virão a ser corruptos a seus olhos, a menos que procedam da fonte do afeto liberal para com ele. D aí o profeta acrescentar: p a ra com os que g u a rd am seus estatu tos. A observância externa jam ais nos be­neficiará, a menos que o amor a Deus a preceda. Mas temos que observar isso também, por seu turno: Deus não pode ser sincera-

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[9.5-7] DANIEL

mente amado por nós, a menos que todos nossos membros exter­nos sigam essa afeição da alma. Nossas mãos e tudo o que nos pertence estarão em prontidão para cumprir seu dever, caso esse amor espontâneo viceje nos recessos de nossos corações. Pois se alguém asseverar seu amor a Deus milhares de vezes, ainda as­sim se descobrirá ser fútil e falaz, a menos que toda sua vida a isso corresponda. Nunca poderemos separar amor e obediência. Agora daremos seqüência:

5 Temos pecado, e tem os com etido iniqüi­dade, e tem os procedido perversam ente, e nos tem os rebelado, inclusive apartando- nos d e teus preceitos e de teus juízos:6 N em dem os atenção a teus servos, os profetas, que falaram em teu nom e a n os­sos reis, a nossos príncipes e a nossos pais e a todo o povo da terra.7 A ti. ó Senhor, pertence a justiça; a nós, porém, a confusão do rosto, com o neste d ia: aos hom ens de Judá, e aos habitantes de Jerusalém , e a todo o Israel, aos de per­to e aos de ionge, em todos os pafses por onde os tens lançado, por causa de suas transgressões que com eteram contra ti.

Daniel aqui continua sua confissão de pecado. Como já afir­mamos, ele deve começar aqui, porque devemos observar em geral a impossibilidade de agradarmos a Deus com nossas ora­ções, a menos que nos aproximemos dele como criminosos, e depositemos toda nossa esperança em sua misericórdia. Mas ha­via um a razão especial para a natureza extraordinária das ora­ções do profeta, bem como seu uso do jejum , cilício e cinzas. Esse era o método usual de confissão pelo qual Daniel se unia ao restante do povo, com o propósito de testificar a todas as eras da

*' Ou, temos nos revoltados contra teus preceitos e teus juízos. “ Literalmente, de faces.115 Ou seja. a todos os judeus.* Ou. por conta das transgressões.

5 Peccavim us, et inique egim us e t im pro­be nos gessim us, e t rebellavim us, e t re- cessim us a præceptis tuis, e t jud ic iis tuis.”

6 E t non auscultavim us servis tuis pro- phetis, qui loquuti sunt in nom ine tuo ad reges nostros, principes nostros, e t patres nostros, et ad populum terræ.7 T ib i dom ine justitia , e t n o b isp u d o rv u l- tus,*4 sicuti hodie viro Jehudah,*5 et inco­lis Jerusalem , et toti Israeli, propinquis, e t longinquis, in om nibus terris, quo ex- puüsti eos, ob transgressiones,5" quibus transgressi sunt con tra te.

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justiça dos juízos que Deus exercera expulsando os israelitas da terra prometida e deserdando-os totalmente. Daniel, pois, insiste neste ponto. Aqui podemos notar, em primeiro lugar, como as orações não serão formuladas corretamente, a menos que sejam fundadas na fé e no arrependimento, e assim, não se conforman­do com a lei, não podem achar nem graça nem favor diante de Deus. Grande peso, porém, deve ser agregado às frases nas quais Daniel usa mais que um a simples palavra, ao dizer que o povo agia impiamente. Ele usa 13KD11, chetcinu, tem os pecado, em pri­meiro lugar, visto que a palavra não implica algum tipo de falta, mas, antes, um sério crime ou ofensa. Temos, pois, pecado; então tem os procedido perversam en te; em seguida, tem os agido im ­piam ente; pois S7Un, reshegn, é mais forte que KDF1 cheta. Te­mos procedido perversamente, temos sido rebeldes, diz ele, ao tran sg red ir teus estatu tos e m andam entos. Donde procede essa profusão de expressões, senão do anseio de Daniel de incitar a si e a todo seu povo ao arrependimento? Pois ainda que sejamos facilmente induzidos aconfessar nossa própria culpa perante Deus, todavia raramente um em cem é afetado com sério remorso; e os que suplantam aos outros, e profunda e reverentemente temem a Deus, são ainda muito apáticos e frios em computar seus peca­dos. Antes de tudo, raramente um em cem reconhece; segundo, dos que se conscientizam, poucos avaliam plenamente sua tre­menda culpa; ao contrário, atenuam sua magnitude; e, embora percebam ser dignos de cem mortes, todavia não se deixam tocar por sua amargura e temem humilhar-se como deveriam; sim, ra­ramente se desgostam de si próprios e não abominam suas pró­prias iniqüidades. Daniel, pois, não acumula em demasia pala­vras inúteis ao desejar confessar seus pecados pessoais e os do povo. Aprendamos, pois, quão longe estamos do arrependimento enquanto só reconhecermos verbalmente nossa culpa; em segui­da, percebamos a necessidade que temos de muitos incentivos para despertar-nos de nossa indolência; pois ainda que alguém

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venha a sentir grande terror e tremer dos juízos divinos, todavia todo esse senso de medo tão depressa se desvanece. Portanto, faz-se necessário fixar o temor de Deus em nossos corações com algum grau de violência.

Daniel nos mostra isso ao usar a frase: O povo tem pecado; ele tem agido injustamente; tem se conduzido perversamente e se rebelado e se declinado dos estatutos e mandamentos de Deus. Esta doutrina, portanto, deve receber diligente atenção, porque, como eu já disse, todos os homens pensam que já se desincumbi- ram de seu dever para com Deus só porque brandamente se con­fessam culpados a seus olhos e reconhecem sua falta numa única palavra. Mas, como o arrependimento real é algo sacro, é uma questão de muito mais importância do que um a m era ficção. Embora a multidão não perceba, quando confessa um erro, que está enganando a si própria, todavia, ao mesmo tempo, está ape­nas desperdiçando palavras com Deus, como se fossem seus fi­lhos, em bora alguns digam que não passam de homens, e outros se refugiam na multidão de ofensores. “O que posso fazer? não passo de ser humano; tenho apenas seguido o exemplo de mui­tos." Por fim, se examinarmos cuidadosamente as confissões dos homens em geral, descobriremos sempre alguma hipocrisia la­tente, e que existem bem poucos que se prostram diante de Deus como deveriam fazê-lo. Portanto, é preciso entender esta confis­são de Daniel como sendo um estimulante, para si e para outros, ao temor de Deus, e como uma forte ênfase sobre os pecados do povo, a fim de que cada um sinta nascer em si mesmo um sério e real alarma.

Então ele mostra quão impiamente, quão perversamente, quão perfidamente os israelitas haviam se rebelado, e como se havi­am declinado dos estatutos e dos mandamentos de Deus. Daniel discorre amplamente sobre os erros do povo, visto que não ti­nham qualquer pretexto em defesa de sua ignorância depois que foram instruídos na lei de Deus. Eram semelhantes a um homem

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que tropeça em plena luz do dia. Seguramente, o povo está desti­tuído de justificativa para erguer seus olhos ao céu ou para fechá- los enquanto anda, ou para precipitar-se adiante em obediência a um cego impulso, porque se cair descobrirá que há adiante de si um a funda vala. Assim Daniel aqui discorre amplamente sobre o crime do povo, porquanto a lei de Deus se assemelha a um a lâm­pada a alumiar sua vereda com tanta claridade que se revelavam espontânea e maliciosamente cegos [SI 119.105], A não ser que fechassem seus olhos, não podiam errar enquanto Deus fielmen­te apontava para o caminho que deviam seguir e nele perseverar. Esse é o primeiro ponto. Devemos, porém, deduzir desta passa­gem outra doutrina, a saber: não há razão alguma para os homens se desviarem totalmente de Deus, mesmo quando tenham trans­gredido seus mandamentos, porque, em bora agradem a si e aos outros, e pensem que granjearam a boa opinião do mundo intei­ro, todavia isso de nada vale aos homens caso rejeitem eles os mandamentos e os estatutos de Deus. Portanto, seja quem for que tenha a lei em suas mãos e se afaste em outra direção, ainda que faça uso da eloqüência e de toda retórica, contudo nenhuma defesa surtirá efeito algum. Tal perfídia seguramente é destituída de justificativa - desobedecer ao Todo-Poderoso quando ele nos indica o que aprova e o que ele requer de nós. Então, quando ele proíbe algo, se nos afastarmos de seus ensinos, ainda que seja bem pouco, somos pérfidos e ímpios, rebeldes e apóstatas. Por fim, esta passagem prova que não há norma de viver santo, pio e sóbrio, a não ser que resolvamos palmilhar estritamente os m an­damentos de Deus. Por essa razão ele exibe estatutos e manda­mentos com o fim de mostrar que o povo não pecou por ignorân­cia. Ele poderia ter concluído a sentença numa única expressão: temos nos afastado de teus mandamentos; no entanto ele associa ju ízo a mandamentos. Por quê? Com o fim de realçar quão fácil, clara e suficientemente familiar era a instituição divina, se os israelitas simplesmente se deixassem instruir. Aqui é possível

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notar a freqüente recorrência dessa reiteração. É estultícia imagi­nar que esses sinônimos são aqui amontoados sem qualquer ob­jetividade, ao usar o profeta os conceitos estatutos, juízos, leis e preceitos; todavia, o Espírito Santo os usa com o fim de assegu­rar-nos que nada nos faltará se indagarmos dos lábios de Deus. Ele nos instrui perfeitamente como regularmos todo o curso de nossa vida, e assim nossos erros se convertem em conhecimento e disposição, pondo Deus sua lei diante de nós com toda clareza, a qual contém inerentemente um a norma perfeita de doutrina para nossa orientação.

Em seguida, ele acrescenta: Não tem os obedecido a teus se r­vos, os profetas, os quais nos têm falado em teu nom e. É pre­ciso que também notemos diligentemente esse fator, porque os ímpios amiúde perversamente deixam de discernir a presença de Deus, toda vez que publicamente anjos descem do céu para lhes falar; e assim sua impiedade se torna imensurável ao longo das eras. Por isso, em nossos dias, muitos acreditam que podem es­capar, vangloriando-se na ausência de alguma revelação proce­dente do céu. Afirmam que toda a questão está saturada de con­trovérsia; o mundo inteiro jaz num estado de confusão; e o que os mestres da Igreja pretendem ao promoverem tais disputas entre si? Então se vangloriam e pensam segundo lhes apetece, e são cegos porque assim o querem. Daniel, porém, aqui mostra como nenhum a conversão a Deus é do mínimo valor, a não ser que ele seja atendido quando seus profetas nos ensinam, visto que todos quantos desprezam tais profetas, os quais fa lam em nome do Se­nhor, são pérfidos e apóstatas, perversos e rebeldes.

Vemos, pois, a adequação dessa linguagem de Daniel e a ne­cessidade da seguinte explicação: O povo era perverso, injusto, rebelde e ímpio, porque não obedecia aos profetas. Ele não asse­vera que esse caráter perverso, ímpio, contumaz e pérfido do povo era oriundo de não ouvir ele a Deus trovejando do céu, ou a seus anjos quando lhos enviava, mas porque não obedeciam a seus

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profetas. Além disso, ele cham a os profetas servos de Deus, que falam em seu nome. Ele faz distinção entre verdadeiros e falsos profetas; pois sabemos quantos impostores outrora abusaram desse título na Igreja antiga, como em nossos dias os perturbadores de nossas igrejas falsamente se valem do nome de Deus, e através de tal audácia muitos dentre os símplices se deixam enganar. Daniel, pois, aqui faz distinção entre os verdadeiros e os falsos profetas, que por toda parte se gabam de sua divina eleição para o ofício de mestres. Ele fala aqui do efeito, acusando a todos esses megalomaníacos como sendo fúteis e loucos, porquanto não so­mos ignorantes da forma como os ministros de Satanás se trans­formam em anjos de luz [2Co 11.14]. E assim tanto o mau quan­to o bom falam em nome de Deus; ou, seja, o mestre ímpio, não menos que o mestre justo, proclama o nome de Deus; aqui, po­rém, como já dissemos, Daniel faz referência ao efeito e à pró­pria matéria, como a frase é. Assim quando Cristo diz: Quando dois ou três se congregarem em meu nome [Mt 18.20], isso não deve aplicar-se a imposturas tais como se observa no papado, quando soberbamente usam o nome de Deus para aprovarem cer­tas assembléias suas. E não é algo novo, pois, que uma igreja pratique fraude com o fim de ocultar suas mazelas sob essa más­cara. Mas quando Cristo diz: Onde dois ou três se congregarem em meu nome, isso se refere à afeição genuína e sincera. Assim também Daniel, nesta passagem, diz: Os verdadeiros profetas falam em nome de Deus; não só porque se refugiavam sob esse título em prol de sua autoridade, mas porque tinham sólidas pro­vas do exercício da autoridade de Deus e estavam realmente côns­cios de sua genuína vocação.

Em seguida, ele diz: a nossos reis, a nossos nobres, a nossos pais e a todo o povo d a te rra . Aqui Daniel lança por terra toda coisa elevada neste mundo com vistas a enaltecer tão-somente a Deus e prevenir qualquer laivo de orgulho que porventura surja no mundo com o fim de obscurecer sua glória, como, do contrá­

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rio, ocorreria. Aqui, pois, ele envolve reis, príncipes e pais na mesma culpa; como se quisesse dizer: todos devem ser condena­dos diante de Deus, sem exceção. Uma vez mais, isso precisa ser diligentemente observado. Pois vemos como a plebe crê que tudo lhes é permitido, uma vez seja aprovado por seus reis e conse­lheiros. Pois na opinião comum dos homens, em que repousa todo fundamento do certo e errado senão na vontade e desejo arbitrários dos reis? O que agrada aos reis e a seus conselheiros é estimado como lícito, sacro e acima de qualquer controvérsia. E assim Deus é excluído de seu supremo domínio. Portanto, como os homens assim se vestem de fumaça, e de bom grado se envol­vem em trevas, e evitam seu acesso à presença de Deus, Daniel aqui expressa quão inescusáveis são todos os homens que não obedecem aos profetas, ainda quando milhares de reis os obstru­am e o esplendor do mundo inteiro os ofusque. A majestade de Deus jam ais poderia ser obscurecida por tais nevoeiros; mais ain­da, isso não pode oferecer o mais leve impedimento ao domínio de Deus, nem obstruir o curso de sua doutrina. Esses pontos po­deriam ser discutidos com mais amplitude; mas estou explicando em termos breves a intenção do profeta e o tipo de fruto que se deve colher de suas palavras. Finalmente, é um notável testemu­nho em favor da doutrina do profeta, quando os reis e seus conse­lheiros são compelidos a se submeterem, e toda a altivez do mundo é trazida em sujeição aos profetas, como diz Deus em Jeremias: “Olha que hoje te constituo sobre as nações e sobre os reinos, para arrancares e derribares, para destruíres e arruinares e tam­bém para edificares e para plantares” [Jr 1.10]. Aí Deus assevera a autoridade de seu ensino e mostra sua superioridade a tudo quan­to existe no mundo; de modo que todos os que desejam viver livres dela, como que dotados com algum privilégio especial, são tanto loucos quanto ridículos. Isso, pois, se deve observar nas palavras do profeta, quando ele diz: Deus falou aos reis, aos prín­cipes e aos pais por meio de seus profetas. No tocante aos ‘pais’,

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vemos quão frívola é a escusa dos que usam seus pais como um escudo em oposição a Deus. Pois aqui Daniel une pais e filhos na mesma culpa, e mostra como todos, sem exceção, merecem con­denação, ao deixarem de dar ouvidos aos profetas de Deus, ou, antes, a Deus mesmo que fala por meio de seus profetas.

Em seguida ele junta: A ti, ó Deus, pertence a ju s tiça , e a nós [pertence] a confusão do rosto, como se d á neste dia. O significado é que a ira de Deus, a qual ele manifesta contra seu povo, é justa, e nada mais resta senão que o povo seja imerso em confusão e humildemente reconheça ser merecedor de condena­ção. Mas é preciso que se note também este contraste que une sentenças opostas, porquanto deduzimos das palavras do profeta que Deus não pode ser estimado como sendo justo, nem sua eqüi­dade é suficientemente proeminente, a não ser quando a boca dos homens se feche e todos se cubram e mergulhem em desgraça e confessem que são passíveis de justa acusação, como Paulo tam­bém diz: Que Deus seja justo, e que a boca dos homens se feche [Rm 3.4, 26]; ou, seja, que os homens cessem suas cavilações e não mais busquem algum alívio de sua culpa em seus próprios subterfúgios. Portanto, enquanto os homens são assim humilha­dos e prostrados, a genuína glória de Deus é enaltecida. O profeta agora pronuncia a mesma instrução, juntando essas sentenças de significados opostos: a ti pertence a justiça, porém a nós perten­ce o opróbrio. Assim não podemos louvar a Deus, especialmente enquanto ele nos disciplina e nos pune em decorrência de nossos pecados, a menos que nos envergonhemos de nossos pecados e nos sintamos destituídos de toda e qualquer justiça.

Finalmente, quando sentimos e confessamos a eqüidade de nossa condenação, e quando esse opróbrio se assenhoreia de nos­sas mentes, então começamos a confessar a justiça divina; pois quem quer que não suporte essa autocondenação manifesta sua disposição em polemizar com Deus. Ainda que os hipócritas apa­rentemente dêem testemunho da justiça de Deus, todavia sempre

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estão a reivindicar alguma coisa em prol de sua própria dignida­de, enquanto que, ao mesmo tempo, detraem o mérito de seu ar­bítrio, porque é evidente que a justiça de Deus não pode resplan­decer, a menos que mergulhemos em opróbrio e confusão. Como se dá neste dia, diz Daniel. Ele adiciona isso para confirm ar seu ensino; como se quisesse dizer: a impiedade do povo é suficien­temente compatível com seu castigo. Entrementes, ele sustenta o princípio de que o povo era merecidamente castigado; pois os hipócritas, quando compelidos a reconhecerem o pode de Deus, ainda gritam contra sua eqüidade. Daniel enfeixa ambos os pon­tos; assim Deus tem afligido a seu povo, e esse mesmo fato prova que são perversos e pérfidos, ímpios e rebeldes. Como se dá nes­te dia significa: eu não me queixo de qualquer rigor imoderado; não direi que tens tratado cruelmente a meu povo; pois ainda quando os castigos que nos tens infligido sejam por demais seve­ros, contudo tua justiça resplandece neles. Portanto confesso quão plenamente merecemos todos eles.

A um hom em de Ju d á , diz ele. Aqui Daniel parece querer propositadamente arrancar a máscara dos israelitas, por detrás da qual criam poder ocultar-se. Pois era um título honroso ser cha­mado judeu, um habitante de Jerusalém, um israelita. Era uma raça sacra, e Jerusalém era um tipo de santuário e reino de Deus. M as agora, diz ele, ainda que tenhamos sido até aqui elevados às alturas ao ponto de ficarmos acima do resto do mundo, e ainda que Deus se tenha dignado outorgar-nos infindáveis favores e benefícios, todavia a confusão do rosto toma conta de nós: que Deus seja justo. Entrementes, que cessem todas as vanglorias fúteis, tais como merecermos nós nossa origem dos santos pais e de habitarmos numa terra santa; que não mais nos apeguemos a essas coisas, diz ele, porque de nada nos aproveitarão diante de Deus. Percebo, porém, que estou sendo um tanto prolixo.

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ORAÇÃO

Deus Todo-Poderoso, visto que nenhum outro caminho de acesso a ti se nos abre senão através da humildade sem fingimento, que apren­damos, com freqüência, a aviltar-nos com o senso de genuíno arre­pendimento. Que aprendamos a viver tão descontentes conosco mes­mos, que não fiquemos satisfeitos com sequer uma das confissões de nossas iniqüidades; senão que continuemos no mesmo estado de meditação, e sejamos mais e mais compenetrados com real tristeza. Então poderemos fug ir para tua misericórdia, prostrando-nos diante de tua face em silêncio, e nenhuma outra esperança reconheçamos senão tua compaixão e a intercessão de teu unigénito Filho. Que assim sejamos reconciliados contigo, não só sendo absolvidos de nossos pecados, mas também governados, ao longo de todo o curso de nossa vida, por teu Santo Espírito, até ao ponto de podermos des­frutar a vitória em todo gênero de luta e podermos chegar àquele bem-aventurado descanso que para nós preparaste por meio do mes­mo Senhor nosso, Jesus Cristo. Amém.

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8 Ó Senhor, a nós pertence a confusão do 8 Jehovah, nobis p u d o r faciei, regibus rosto, nossos reis, nossos príncipes e nos- nostris, princip ibus nostris, ei patribussos pais, porque tem os pecado contra ti. nostris, quia peccavim us in te.

Neste versículo Daniel completa sua confissão pessoal. Já declaramos ser este o começo de sua oração: ele se lançou diante de Deus como um criminoso, com todo o povo, e orou ardente­mente por perdão. Era seu dever começar dessa forma; ele previ­amente apontara para todo o povo; agora fala de reis, príncipes e pais, e assim compreende o povo em geral. Além disso, os reis costumavam absolver de todas as leis ordinárias a si e aos que se chegavam a sua presença. Daí usar Daniel a frase: reis, príncipes e pais. Enquanto tratava do povo, ele mostrou como os de longe e os de perto eram igualmente sujeitos à ira de Deus, porque, houvera ele executado sua vingança com absoluta eqüidade, e ninguém estaria isento de perversidade ao ponto de ficar livre do castigo. Não houvera Deus levado todos os judeus ou para a Cal- déia ou para a Assíria, e muitos teriam permanecido nas nações vizinhas. Daniel, todavia, nega-lhes qualquer lenitivo de sua cul­pa, ainda que tivessem sido tratados por Deus de forma mais hu­mana, o que lhes pouparia um pouco de seu sofrimento. Somos instruídos por esta passagem que os crimes ou culpa dos homens nem sempre serão estimados pelo volume de seu castigo. Pois Deus age mui brandamente com alguns que merecem ainda mai­or severidade; e se ele não nos poupa inteiramente, parcialmente remite seu rigor para conosco, seja para conduzir-nos ao arrepen-

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dimento, ou por alguma razão até então a nós desconhecida. Se­jam quais forem as razões, ainda quando Deus não pune publica­mente a todos nós, isso não deve levar-nos a autojustificativa nem a qualquer auto-indulgência, porque nem sempre experimen­tamos a mesma severidade de Deus. A conclusão a que se deve chegar é esta: todos os israelitas são afligidos com justiça, por­que, desde o primeiro até o último, todos têm se conduzido impi­amente. Pois Daniel reitera a palavra que não significa meramen­te desvio, mas o agir com grosseira perversidade; como se qui­sesse dizer: os israelitas não mereciam um castigo corriqueiro, e assim não nos deve surpreender que Deus lhes aplicasse uma vingança tão terrível. Vamos em frente:

9 A o Senhor nosso D eus pertence as mi- 9 D om ino D eo nostro m iserationes, et sericórdias e o perdão, ainda que nos te- veniae,*7quam vis rebelles fuerim us in ip- nham os rebelado contra ele. sum.*“

Aqui Daniel se vale da misericórdia de Deus como se fosse um asilo sagrado; pois não é suficiente reconhecer e confessar os pecados, a menos que sejamos fortalecidos pela confiança de obtermos o perdão na misericórdia divina. Vemos tantos que usam de grande prolixidade a fim de dar testemunho da verdade, di­zendo que são sobejamente merecedores de todos os tipos de cas­tigo; porém nenhum resultado positivo procede disso, visto que o desespero os esmaga e os imerge num profundo abismo. O mero reconhecimento do erro é uma verdade sem o mínimo proveito, a menos que lhe seja adicionada a esperança do perdão. Daniel, pois, depois de sinceramente confessar que o tratamento que todo o povo recebeu de Deus fora bem merecido, em bora demasiada­mente severo e escabroso, todavia envolve sua compaixão. Se­gundo o provérbio popular, isso é como o náufrago que se depara

87 n^O. selech, significa "perdoar". É traduzido “propiciações” . mas não há dúvida sobre o sentido.

“ Ou, porque sâo rebeldes; pois a partícula *3, jti, é propriamente causal; mas parece, à luz dc muitas passagens da Escritura, ser tomada no sentido adversativo. o que parece adequar-se melhor à passagem.

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com uma oportunidade. Observamos também como ele faz uso do mesmo princípio: “Mas contigo está o perdão, para que sejas temido” [SI 130.4], E essa moderação deve ser diligentemente determinada, porque Satanás ou nos acalma com letárgica segu­rança, ou então nos agita tão completamente ao ponto de impreg­nar nossas mentes com angústia. Esses dois artifícios de Satanás são sobejamente conhecidos por nós. Daí a necessidade de se manter a moderação que ora mencionamos, para que não desen­volvamos a letargia em meio a nossos vícios, e assim incorramos no desprezo de Deus, levando-nos também a esquecê-lo. Então, em contrapartida, não devemos ficar apavorados, e assim nos encerremos fora dos portões da esperança e do perdão. Daniel, pois, aqui segue o melhor arranjo e nos prescreve a mesma nor­ma. Porque, ao confessar a perversidade do povo, ele não expul­sa inteiramente a esperança e o perdão, mas busca apoio para si e para os outros com esta consolação: Deus é misericordioso. Ele deposita esta esperança de perdão na própria natureza de Deus; como se dissesse: não há nada tão peculiar a Deus quanto a com­paixão, e por isso nunca devemos desesperar-nos. A Deus, diz ele, pertence as m isericórdias e o perdão . Sem dúvida Daniel tomou esta frase de Moisés, especialmente daquela notável e memorável passagem onde Deus se anuncia como severo vinga­dor, ainda que cheio de misericórdia e inclinado à clemência e ao perdão, exercendo infinita longanimidade [Êx 34.6]. Visto, pois, Daniel sustentar a impossibilidade de Deus obliterar seus afetuo­sos sentimentos de compaixão, ele toma isto como o ponto prin­cipal deste ensino, e o faz o principal fundamento de suas espe­ranças e de sua petição por perdão. Ele argumenta assim: A Deus pertence a benignidade; portanto, visto que ele nunca pode ne- gar-se a si mesmo, então será sempre misericordioso. Este atri­buto é inseparável de sua eterna essência; e por mais que nos tenhamos rebelado contra ele, todavia jam ais nos repelirá nem fará pouco de nossas orações.

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46* EXPOSIÇÃO [9.10]

Podemos concluir, à luz desta passagem, que nenhuma ora­ção é lícita nem corretamente composta, a menos que consista desses dois elementos. Primeiro, todos quantos se achegam a Deus devem lançar-se a seus pés e reconhecer que são merecedores de mil mortes; segundo, devem ter condição de emergir do abismo do desespero e despertar-se cheios de esperança e perdão, invo­cando a Deus sem medo e isentos de dúvidas e revestidos de firme e serena confiança. Tal confiança em Deus não pode ter nenhum outro apoio além da natureza de Deus mesmo, e para isso ele dá amplo testemunho. Com respeito ao final do versícu­lo, o mesmo pode ser explicado de duas maneiras: Visto que, ou ainda que, sejamos rebeldes contra ele. Já declarei que aprovo mais tomar a partícula 'D, ki, no sentido de oposição. Ainda que tenhamos nos rebelado contra Deus, todavia ele receberá nossa súplica e jam ais negligenciará sua compaixão. Se alguém prefe­rir tomá-la no sentido causal, ela se adequará toleravelmente bem; como se Daniel dissesse: o povo não tem outra esperança senão a misericórdia de Deus, ao deixarem-se dominar paulatinamente pela convicção de pecado. Visto que temos agido perversamente para com ele, o que nos é deixado senão lançar-nos com toda nossa confiança sobre a clemência e benevolência de Deus, já que ele tem testificado ser propício para com os pecadores que verdadeira e sinceramente imploram seu favor? Vamos em frente:

10 E não obedecem os à voz do Senhor. 10 E t non auscultavim us voei J e h o v s Deinosso D eus, para andarm os em suas leis, nostri, ui am bularem us in legibus ejus,as quais pôs d ianle de nós pela instrum en- quas proposuil coram facie nosira pe r ma-lalidade d e seus servos, os profetas. num servorum suorum prophetarum .

Aqui, uma vez mais, Daniel mostra como os israelitas provo­caram a ira divina contra si pela perversidade de sua conduta. Ele realça um tipo especial de pecado e método de agir perversamen­te, a saber: desprezando o ensino que procedia de Deus como seu Autor, e o qual lhes fora ministrado por seus profetas. Devemos diligentemente observar isso, como previamente já notificamos;

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[9 .10] DANIEL

pois ainda que ninguém é justificável diante de Deus a pretexto de ignorância, todavia percebemos como nossa perversidade é agravada quando consciente e voluntariamente chegamos ao ponto de rejeitar o que Deus ordena e ensina. Daniel, pois, agrava o crim e do povo acrescentando a circunstância: não d e ram ouvi­dos aos profetas. Tudo quanto constituía culpa no caso dos cal­deus ou dos assírios veio a ser a mais grave perversidade no povo eleito. Sua obstinação era a mais provocante, porque, enquanto Deus apontava o caminho pela instrumentalidade de seus profe­tas, lhe voltavam suas costas. Não demos ouvidos. Evidentem en­te bastaria adicionar este versículo à guisa de explicação, quando Daniel poderia expressar a razão para sua perversidade. Portan­to, ele denomina as leis de Deus de ‘doutrina’, a qual consiste em muitas partes; pois é indubitável que nada fora omitido por Deus que fosse útil conhecer, e assim ele abrangeu em seu discurso toda a perfeição da justiça. Ele está tratando aqui não só da lei de Moisés, mas também do ensino dos profetas, como as palavras claramente o realçam; e o substantivo m i n , torah, ‘lei’, deve ser tomado por ‘doutrina’. É justamente como se Daniel dissesse: Deus foi rejeitado quando desejava governar seu povo através de seus profetas. Mas o plural parece denotar o que eu afirmei, a saber: que a perfeição da doutrina estava compreendida nos pro­fetas; pois Deus nada omitiu enquanto completava a revelação de tudo quanto se fazia necessário para a diretriz da vida. Toda­via isso se tornara totalmente inútil em virtude da perversidade da natureza do povo, evidenciada em sua rejeição de todas as leis divinas.

Daniel confirma esse sentimento, acrescentando: A quelas leis fo ram postas d ian te do povo. Isso mostra como o povo foi su­prido em tudo, visto que Deus familiarmente lhes entregara tudo quanto era necessário para o supremo grau de piedade e justiça. Pois esta frase: pôr tudo diante da fa ce de alguém significa m i­nistrar todo conhecimento útil pública, perspícua e lucidamente,

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46s EXPOSIÇÃO [9.11]

e com grande familiaridade e habilidade. E assim nada é deixado em dúvida nem embaralhado; nada permanece obscuro, desco­nexo ou confuso. Como, pois, Deus desvendara todo o escopo da justiça pela instrumentalidade de sua lei, a impiedade do povo tom ara-se ainda mais grave e detestável, porquanto não receberi­am nenhum benefício dessa instrução familiar. A intenção do profeta, com essas palavras, é mostrar como esses pecadores vo­luntários eram dignos de duplicado castigo. São primeiramente convencidos de contumácia, porquanto não tinham nenhum pre­texto a apresentar em prol de sua ignorância; fizeram um público e furioso assalto contra Deus, pois ainda que o caminho lhes ha­via sido apontado, todavia se desviaram em todas as direções e se precipitaram de ponta cabeça. Devemos recordar o que previa­mente já toquei de leve, a saber: o valor de um ministério exter­no, porque somos cônscios de como o povo antigo, quando se rebelava contra os profetas, costumava pretender que na realida­de não estavam desprezando a Deus. Como, pois, os hipócritas pensam que seus pecados estão velados por um véu desse gêne­ro, Daniel claramente expressa que Deus é desprezado em seus profetas, embora ele não desça do céu nem envie abaixo seus anjos. E este é o significado da expressão; os profetas eram os servos de Deus\ declara como nada ensinaram temerariamente nem em seu próprio nome nem seguindo seus próprios impulsos, mas fielmente executaram as ordens do Todo-Poderoso. Vamos em frente:

11 Sim . todo o Israel transgrediu tua lei, desviando-se para não obedecer a tua voz; po r isso a m ald ição é derram ada sobre nós, e o ju ram en to que está escrito na lei d e M oisés, servo d e D eus; porque peca­m os con tra ele.

” Literalmente, recuaram ou declinaram.™ A cópula aqui tem uma força inferenrial.*' Ou, destilou; pois pH2, neihak. tem ambos os sentidos. w Há quem traduza: “execração".

11 E t totus Israel transgress! sum legem tuam . e t defecerunt,M ne auscultarem vo­ei tu æ . I d e o .^ e f f u s a e st su p e r n o s,sl m aled ic tio ^e t jusju randum . quo d scrip­tum est in lege M osis servi D ei. qu ia pec- cavim us contra ipsum .

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[9.11] DANIEL

Daniel uma vez mais confirma o que previamente eu disse sobre ser o castigo aplicado sobre o povo de forma justa. Eles não tinham o mais leve motivo de queixar-se de algum excesso de severidade da parte de Deus. Ele agora diz: todo o Israel tra n s ­grediu . Ele não enumera as classes separadas do povo, como fizera antes, mas declara serem todos eles transgressores, usando um a palavra singular, ao quebrarem a lei de Deus, desde o menor até o maior deles. Ele usa às vezes a segunda pessoa, e às vezes a terceira, como um a característica de sua veemência e ardor, visto que Daniel agora fala a todo o mundo, e então se prostra diante de Deus e prepara o acesso a seu tribunal. É como se a um só tempo ele se confessasse culpado diante de Deus e dos anjos, e em seguida subisse a um palanque para testificar de sua própria infâmia e a de todo o povo ante os olhos de toda a humanidade. Ao revoltar-se, diz ele, p a ra não d a r ouvidos. Com essas pala­vras Daniel expressa a obstinação determinada do povo, queren­do dizer: isso não foi ocasionado por erro nem por ignorância; ao contrário, nem mesmo a indolência foi a causa da cegueira e de­satenção voluntárias de Israel para com os preceitos de Deus, mas foi simplesmente o princípio desse ato de rebelião. Portanto, ao revoltar-se para não dar ouvidos a tua voz. Agora entende­mos a intenção do profeta. Ele não estava contente com a mera condenação do povo, senão que desejava caracterizar distinta­mente as várias formas de rebelião, visando a conscientizar os israelitas com um senso mais profundo da forma grave com que provaram a ira divina. Não só tinham se desviado do curso reto através de negligência ou de estultícia, mas tinham consciente­mente transgredido a lei divina. É indispensável que observemos bem esse fato. Embora os hipócritas declarassem que estavam preparados para a obediência, bastando que estivessem plena­mente certos de que Deus lhes estava falando, todavia com certe­za recuaram para que alguma depravação secreta não viesse cla­ramente à luz. E sempre que a Palavra de Deus é posta diante de

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46a EXPOSIÇÃO [9.11]

nós, mente todo aquele que não se deixa confirm ar por uma dis­posição dócil, mesmo que jure centenas de vezes de estar perple­xo e disposto a abraçar o ensino a ele proposto, porque ele nutre dúvida se Deus está ou não lhe falando. E a veracidade da asse­veração de Daniel se fará muitíssimo clara, pois todos os que não ouvem a Deus quando ele lhes fala são apóstatas e interiormente perversos, e pela depravação de sua natureza põem um véu em seus olhos o qual obscurece suas percepções, e então suas própri­as mentes os impedem de tom ar-se obedientes a Deus.

Em seguida acrescenta: P o r essa causa a m aldição sobre a qual M oisés escrevera é d e rra m a d a sobre nós. Por meio desta circunstância, ele avoluma o crime do povo, porque desde muito foram advertidos acerca dos juízos pendentes sobre suas cabe­ças, e no entanto fecharam os olhos e desprezaram ao mesmo tempo as ameaças e a instrução. Esse foi o clímax da perversida­de; pois os israelitas eram intratáveis, não obstante Deus esten­der-lhes suas mãos, apontando o caminho seguro e ensinando- lhes com toda paciência, por mais que isso fosse inútil; isso, con­tudo, só serviu para aumentar sua perversidade, enquanto trata­vam as ameaças divinas como algo completamente sem valor. Além disso, acrescentaram o desdém contra sua instrução, ridi­cularizando suas ameaças, pensando ou que Deus os iludia quan­do anunciou por meio de M oisés a vinda da vingança caso não obedecessem a sua lei, ou imaginavam que tudo não passava de invencionice de Moisés, e não havia como Deus pudesse execu­tar suas ameaças. E assim as pessoas são condenadas por sua desesperada impiedade quando ou não atentam para a instrução do Todo-Poderoso ou não crêem na autoridade de suas ameaças. Se um pai ameaça a seu filho, ou um senhor a seu servo, a vin­gança será justa, como disse o poeta cômico: Não diga que não foi avisado (Terence Andria, Ato I, Cena 2). Como Deus predisse desde os tempos remotos que os israelitas não ficariam impunes se transgredissem a lei, isso prova quão completamente irracio-

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[ 9 . 11] DANIEL

nais eram eles [Lv 26; Dt 28]. E quando diz que a maldição seria derramada ou destilada, ele confessa como a ira de Deus inun­dou todo o povo como um dilúvio, em bora estivesse com pleta­mente sob controle. Porquanto Deus predissera o que ele preten­dia fazer pelos lábios de Moisés, e todos quantos lêem aquelas maldições que M oisés proferiu contra os transgressores da lei confessarão que elas não eram de modo algum imoderadas. Quan­do, pois, a execução realmente ocorre, não deveríamos reconhe­cer o fulgir da justiça divina sem a mais leve possibilidade de recriminação? Já afirmei que a palavra n y o itf , shebugneh, é ex­plicada por alguns como um ‘juram ento’; e outros, como ‘maldi­ção’. Ela significa propriamente um a maldição, e é deduzida da palavra VDW, shebugn , que parece ser tomada num sentido ex­traordinário, porque esta palavra significa propriamente sete, e a palavra derivada dela significa ‘ju ra r’, através da prática de apre­sentar um certo número de testemunhas; e daí o substantivo sig­nificar um juramento. Visto, porém, que uma maldição é às ve­zes interposta, e quem ju ra invoca a Deus como testemunha con­tra si mesmo se deixar de cumprir seu compromisso verbal, al­guns intérpretes deduzem o sentido de um a maldição sendo der­ramada. M as pode haver alguma mudança de construção aqui, e assim a interpreto de bom grado. A maldição e o juramento, pois, são derramados; ou, seja, a maldição que Deus sancionou por meio de um juram ento, por meio de uma figura de linguagem conhecida pelos gramáticos sob o nome de hipálage.9i A maldi­ção, pois, era pronunciada em forma de juram ento pelos lábios de Deus, pessoalmente; e sabemos como as ameaças causam mais terror por serem confirmadas por um juramento, assim como Deus, em contrapartida, acrescenta força às promessas de seu favor.

” "Figura com que parece atribuir-se a certas palavras de uma frase o que pertence a outras da mesma frase: enterrar o chapéu na cabeça por enterrar a cabeça no chapéu." (Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, 11‘ edição. 13' impressão. Editora Nacional). - Nota do tradutor.

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46a EXPOSIÇÃO [9.12]

Em seguida acrescenta: P orque tem os agido p e rv ersam en ­te co n tra ele. Com esta expressão Daniel sucintamente, porém claramente, afirma que o povo não tem nenhum motivo de quei­xa, como se suas calamidades fossem o resultado ou de acidente ou do acaso. Poderiam contemplar a própria fonte de seus males na lei de Deus. Não houvera nenhuma predição desse tipo, os israelitas poderiam nutrir dúvidas e mesmo questionar consigo mesmos quanto à origem e causa de serem eles escravizados por seus inimigos e de serem eles expulsos com o máximo desprezo e crueldade para terras distantes. Poderiam então ter inquirido sobre as causas de seus males, como se as mesmas fosse total­mente desconhecidas. Mas quando a lei de M oisés se achava di­ante de seus olhos, e Deus tinha ali jurado que cum priria as mes­mas ameaças justam ente como ocorreu, não seria possível restar ainda alguma dúvida sobre isso. Este, pois, é o sumário da inten­ção de Daniel; a própria denúncia desses castigos era suficiente para condenar os israelitas, porquanto seus pecados lhes eram trazidos a lume cada vez mais, quando Deus cumpriu contra eles o que havia anteriormente predito pela instrumentalidade de seu servo Moisés. Vamos em frente:

12 E ele confirm ou sua palavra, a qual 12 E t stab iliv it serraonem suum , quemfalou contra nós e contra nossos ju izes que loquutus fueral super nos, e t super judi-nos ju lg av am , trazendo so b re nós um ces nostros, qui nos jud icarun t,1“ u t addu-grande m al; porquanto debaixo de todo o ceret super nos m alum m agnum quod noncéu nunca se fez com o se tem feito em factum est sub coto ccelo, sicut factum est95Jerusalém . in Jerusalém .

Daniel segue o mesmo diapasão, mostrando como os israeli­tas não tinham motivo para discutir com Deus sobre a razão de serem tão severamente afligidos, e não tinham razão alguma para nutrir dúvida sobre sua origem ou intenção. Pois agora tudo ocorria exatamente como há muito fora predito. D eus, pois, instigava

** Ou seja. contra nossos juizes e governantes que nos governavam; pois para os hebreus ju lg a r ' significa 'governar'.

M Ou seja, como aconteceu.

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[9.12] DANIEL

sua palavra contra nós; como se quisesse dizer: não há razão por que lutar contra Deus, pois vemos sua fidelidade nos castigos que nos tem infligido, e suas ameaças não são mais fúteis espan­talhos nem fabulosas invenções manufaturadas para am edronta­rem crianças. Deus agora realmente prova quão seriamente havia falado. Qual, pois, é a utilidade de nosso costume de voltar-lhe as costas, ou por que buscamos debalde justificativas quando a fi­delidade de Deus refulge esplendorosamente em nossa destrui­ção? Porventura pretendemos privar Deus de sua fidelidade? Se­guramente, por mais que sejamos solícitos, jam ais teremos êxito. Portanto, isto é suficiente para condenar-nos: Deus predisse tudo quanto ocorre, e assim eficaz e experimentalmente prova ser vin­gador. Portanto, Deus ratificou sua palavra; ou, seja, a palavra de Deus teria permanecido sem a mais leve eficácia e vigor, a menos que essa maldição permanecesse suspensa acima de nos­sas cabeças. Mas enquanto estamos prostrados e quase sepulta­dos sob nossas calamidades, a palavra de Deus se mantém sus­pensa; isto é. Deus faz sua fidelidade copiosamente visível, a qual, do contrário, dificilmente seria perceptível. A menos que Deus castigue a perversidade dos homens, quem não trataria as ameaças de sua lei como infantilidade? Mas quando ele dem ons­tra, por meio de certas provas, as muitas razões para terrificar a humanidade, a eficácia e o vigor são imediatamente comunica­dos a suas palavras. Além disso, Daniel aqui tenciona desfazer todos os subterfúgios e levar o povo a sinceramente reconhecer e realmente sentir que é afligido com justiça.

Diz ele: co n tra nós e co n tra os ju izes que nos ju lgavam . Uma vez mais Daniel humilha toda a arrogância da carne, com vistas a exaltar a Deus somente e a impedir qualquer esplendor moral de obscurecer a autoridade da Lei. Pois sabemos como as pessoas comuns imaginam que possuem um escudo para sua de­fesa contra todos os crimes, quando podem citar o exem plo de reis e juizes. Em nossos dias, sempre que argumentamos contra

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46a EXPOSIÇÃO [9.12]

as superstições do papado, eles dizem: “M uito bem, se com ete­mos algum equívoco. Deus ainda tem estabelecido reis e bispos que nos governam segundo seu método; por que, pois, devamos ser responsabilizados quando temos o mandamento de Deus de seguir os que estão investidos de poder e dignidade?” Visto, pois, forjar o vulgo, geralmente, um subterfúgio com o este, Daniel novamente afirma que, em bora os que transgridem a lei de Deus sejam investidos com grande autoridade profana, não estão isen­tos nem de culpa nem de castigo, tampouco pode a multidão or­dinária ser justificada caso sigam seu exemplo. Portanto, como ele fa lara pelos lábios de M oisés contra nossos ju izes que nos julgavam , diz ele, ou, seja: embora lhes fosse conferido poder para nos governar, todavia toda sua ordenação provém de Deus. Todavia, depois que abusaram totalmente de seu govem o e vio­laram a justiça de Deus, e assim empreenderam derrubar Deus, caso fosse possível, de sua posição celestial, Daniel assevera que sua altivez de modo algum os livraria das conseqüências da trans­gressão.

Em seguida acrescenta: trazendo sobre nós um grande m al; p o rq u an to debaixo de todo o céu nunca se fez com o agora ocorreu em Jerusa lém . Aqui Daniel predisse um a objeção que aparentava possuir alguma força. Ainda que Deus houvesse me- recidamente castigado os israelitas, todavia, ao exibir ele sua ira contra eles, mais severamente do que contra outras nações, apa­rentemente se esquecia de sua eqüidade. Daniel aqui remove toda e qualquer aparência de incongruência, mesmo que Deus seja mais severo contra seu povo eleito do que contra as nações pro­fanas, porque a impiedade desse povo era muito m aior do que a de todas as outras nações em razão de sua ingratidão, contumácia e implacável obstinação, como já vimos. Visto que os israelitas excederam a todas as nações em malícia, ingratidão e todo gêne­ro de iniqüidade, Daniel aqui declara como suas desastrosas afli­ções eram totalmente merecidas. Além disso, somos aqui lem-

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[9.13] DANIEL

brados de que, sempre que Deus severamente disciplina sua Igre­ja , aquele princípio ao qual voltaremos, a saber, nossa impiedade é ainda mais detestável a Deus à medida que nos aproximamos dele; e quanto mais bondoso ele se nos torna, mais responsáveis somos, a menos que, por nossa vez, provemos ser gratos e obedi­entes. Este estado de coisas não deve parecer-nos perturbador, um a vez que a vingança começa na casa de Deus e ele exibe exem plos de sua ira contra seu próprio povo de uma forma muito mais trem enda do que contra os demais. Digo que não devemos levar isso a mal, como já expliquei a razão. Não nos surpreende encontrar os gentios tateando nas trevas, mas quando Deus res­plandece sobre nós e o resistimos com determinação voluntária, na verdade somos ímpios. Esta comparação, pois, precisa ser ponderada, ou, seja, como o mal foi derramado sobre Jerusalém; não significando que nenhum castigo semelhante fora infligido sobre outras nações, pois o que aconteceu ci Jerusalém, diz Dani­el, nunca ocorrera debaixo de todo o céu. Vamos em frente:

13 C om o está escrito na lei de M oisés, 13 Sicuti scriptum est in lege M osis, to-todo este m al nos sobreveio; todavia não tum m alum hoc venit super nos, e t nonfizem os nossa oração d iante do Senhor deprecati sum us faciem J e h o v s D ei nos- nosso Deus para nos converterm os de nos- tri, u i reverterem ur ab iniquitatibus nos­sas in iqü idades e com preenderm os tua tris, e t attenti essem us ad veriíatem tuam.verdade.

Ele reitera o que dissera antes, sem qualquer superfluidade, demonstrando como os juízos de Deus são provados por seus efeitos, como a lei de Moisés contém em si todas as penalidades que os israelitas suportaram. Como, pois, uma concordância tão manifesta existia entre a lei de Deus e a experiência do povo, não deviam tornar-se rebeldes, buscando todo tipo de subterfúgio sem qualquer proveito. Só por isso Deus provou sobejamente ser um justo vingador de seus crimes, porque predissera muitas eras an­tes o que depois cumpre plenamente. Este é o objetivo da repeti­ção, quando Daniel diz que o povo sentiu a justiça das penas denunciadas contra eles na lei de Moisés, pois entrementes ele

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46* EXPOSIÇÃO [9.13]

acrescenta: não desaprovamos a fa ce de Deus. Ele aqui severa­mente responsabiliza a dureza do povo, porque, ainda quando golpeados por açoites, nunca chegaram a ser sábios. Lem os que os tolos têm que sofrer calamidades a fim de aprender a sabedo­ria. Portanto, este foi o cúm ulo da demência em o povo permane­cer assim irredutível sob a vara do Todo-Poderoso, mesmo quan­do ele lhes infligia os mais severos golpes. Como o povo se tor­nara tão obstinado em sua perversidade, quem não perceberia quão sinceramente tal conduta tinha de ser deplorada?

Portanto, não desaprovam os a face de nosso Deus. Esta passagem nos ensina como o Senhor exerce seus juízos, não des­truindo completamente os homens, mas mantendo sua sentença final suspensa, como se por esse meio ele quisesse impelir os homens ao arrependimento. Primeiro, ele amável e com passiva­mente convida maus e bons, por meio de sua Palavra, e acrescen­ta também promessas, com o propósito de atraí-los; e então, quan­do os observa ou morosos ou refratários, ele usa ameaças com o intuito de despertá-los de sua sonolência. E se as ameaças não produzem nenhum efeito, ele sai com varas e azorragues para castigar a letargia da humanidade. Se tais açoites não produzirem nenhum melhoramento, o caráter obstinado do povo se tom a evi­dente. E assim Deus, em Isaías, se queixa de sua falta de honesti­dade; toda a corporação do povo está tomada por úlceras, da ca­beça à planta de seus pés [Is 1.6]. E todavia ele não perde todo seu trabalho a despeito de o povo ser totalmente ingovernável. Daniel então assevera a existência do mesmo sentimento no povo, enquanto declara que os israelitas eram intocáveis pelo senso de suas calamidades, de modo a nunca suplicar por perdão. Não posso completar o pensamento hoje.

ORAÇÃODeus Todo-Poderoso, permite que aprendamos seriamente a consi­derar de quantas maneiras nos tornamos culpados a teus olhos, es­pecialmente quando diariamente continuamos a provocar tua ira

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DANIEL

contra nós. Que sejamos humilhados com genuíno e sério arrependi­mento e corramos solicitamente para ti, quando nada nos é deixado senão unicamente tua compaixão. Quando humilhados e confusos, reduzidos a nada em nós mesmos, que possamos correr para essa sacra âncora, uma vez que tu facilmente te deixas enternecer e pro­meteste agir como Pai de misericórdias, favorecendo a todos os pe­cadores que te buscam. Que assim nos aproximemos de ti com genuí­no arrependimento, em plena confiança de que tua munificência ja ­mais deixará de atender nossas súplicas; e sendo libertados por tua mercê da tirania de Satanás e do pecado, sejamos governados por teu Espírito Santo e assim dirigidos na vereda da justiça para glori­fica r teu nome ao longo de nossas vidas, até chegarmos àquela feliz e imortal vida que sabemos estar estabelecida no céu para nós, por Cristo nosso Senhor. Amém.

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f j / l a preleção de ontem demoramos nos crimes do povo de- v t nunciados amplamente pelo profeta, ao resistirem eles a

impressão feita pelos castigos divinos. Agora, porém, ele demons­tra mais claramente o tipo de obstinação que foi exibida. Por­quanto eles não se converteram de suas iniqüidades, e não aten­taram para a verdade de Deus. Ele dissera antes para não repro­varmos a ira de Deus. Aqui, porém, ele expressa algo mais, a saber: admitindo a existência de algum pretexto na oração, não houve real sinceridade. Sabemos quão impiamente os hipócritas abusam do nome de Deus e se escondem na forma externa da oração, e ainda simulam o mais intenso fervor, todavia não há nenhum a realidade em suas orações. Assim o profeta tem boas razões para unir o que nunca deveria separar-se, e então conven­ce os israelitas de obstinação, porque não fugiam humildemente para Deus em busca de sua misericórdia com arrependimento e fé. Indubitavelmente, havia alguma form a de piedade deixada entre o povo; Daniel, porém, aqui avalia a oração segundo a Pa­lavra de Deus, e assim põe estas duas coisas diante de nós: arre­pendimento e /e . E devemos observar isso com diligência. Pois nada é mais comum do que uma ardente súplica por perdão quando se evidenciam os sinais da ira de Deus; isso foi sempre costum ei­ro entre todas as nações e em todos os tempos; todavia não exis­tia ali nem arrependimento nem fé. D aí suas orações se tornarem mera falsidade e vacuidade. Esse é o sentido da linguagem do profeta quando diz: não buscamos a fa ce de Jeová nosso Deus,

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[9.13] DANIEL

convertendo-nos de nossas iniqüidades (ou para que nos conver­têssemos) e deixando-nos instruir em tua verdade. Finalmente, podemos deduzir desta passagem qual a regra da oração real­mente pia e aceitável. Primeiro, temos de sentir-nos desgostosos conosco mesmos em virtude de nossos pecados; segundo, deve­mos levar em conta as ameaças e promessas do Todo-Poderoso. Quanto ao primeiro membro da sentença, a experiência nos ensi­na quão temerariamente muitos se prorrompem em oração, m es­mo quando sua m á conduta se insurge francamente contra Deus. De um lado, se sentem tão exasperados que não hesitam em de­clarar guerra contra Deus, e no entanto oram a ele, porque o ter­ror se apodera de suas mentes e os compele a submeter-se a Deus. O profeta, pois, aqui mostra a com pleta inutilidade dessa exibi­ção externa e perversa mistura de ruídos e bajulação, porque Deus não pode aprovar semelhantes orações, a menos que emanem igualmente do arrependimento e fé. Quando ele diz: o povo não atentou para a verdade de Deus, em minha opinião isso se esten­de igualmente às ameaças e promessas, e a fé apreende tanto a compaixão de Deus quanto seus juízos. Pois, seguramente, não pode ser diferente quando o terror incita os pios a buscarem asilo na m isericórdia de Deus. Como, pois. Deus abarca cada qualida­de descrita em sua Palavra; como ele cita todos os que pecaram a comparecerem diante de seu tribunal, e então lhes dá a esperança de reconciliação, se o pecador realmente se converte a ele, assim também Daniel, ao dizer: os israelitas não atentaram para a ver­dade de Deus, indubitavelmente linha em mente ambos os obje­tos, a saber: sua falta de suficiente consideração dos juízos divi­nos e, em seguida, sua estupidez em desprezar sua compaixão quando claramente posta diante deles. Como um todo, esta pas­sagem nos mostra a impossibilidade de nossas orações serem agradáveis a Deus, am enos que fluam do genuíno arrependimento e fé; ou, seja, quando sinceramente sentimos nossa perversidade, e então buscamos asilo na misericórdia de Deus depositando nossa

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47* EXPOSIÇÃO [9.14]

confiança em suas promessas. Daí descobrimos três coisas que se fazem necessárias para tom ar Deus propício a nós: primeiro, insatisfação conosco mesmos, a qual ocasiona tristeza em decor­rência de nossa conscientização do pecado que habita em nós e de havermos provocado a ira divina. Este é o primeiro ponto. O segundo é que a fé deve necessariamente ser adicionada. Em úl­timo lugar, a oração deve seguir como um a prova de nosso arre­pendimento e fé. Quando os homens permanecem sem arrepen­dimento e fé, observamos como o nome de Deus é profanado, ainda que formulemos e pronunciemos muitas orações, ao m es­mo tempo em que duas disposições primordiais estão totalmente ausentes. Agora podemos prosseguir:

14 P or isso o Senhor velou sobre o mal e 14 El vigilavit Jehovah super m alum . eto trouxe sobre nós; porque o S enhor nos- im m isit illud'* super nos: qu ia ju stu s estso D eus é ju s to era todas suas obras que Jehovah D eus noster in om m ibus operi-e le fez. pois não obedecem os a sua voz. bus suis, quse fecit, hoc est, facii, et non

ausculiavim us voei ejus.

Daniel confirm a o que dissera anteriormente a respeito do morticínio que afligiu os israelitas, não provindo o mesmo do acaso, mas do infalível e extraordinário ju ízo divino. D aí ele usar a palavra Ipli?, seked, que significa vigiar e aplicar a mente, aten­tando para tudo. É propriamente usada em referência aos guardas das cidades, os quais mantêm vigilância dia e noite. Esta frase não me parece implicar pressa, mas, antes, desvelo contínuo. Deus amiúde usa esta metáfora para expressar sua vigilância para dis­ciplinar os homens que se acham ávidos demais para lançar-se ao pecado. Estamos familiarizados com a grande intemperança da raça humana e seu desregramento de toda moderação sempre que os desejos da carne se assenhoreiam deles. Deus, em contraparti­da, diz que não será indolente nem negligente em corrigir tal in­temperança. A razão que justifica esta parábola é expressa no capítulo 44 de Jeremias, onde somos informados que os homens

* Fê-la vir.

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[9.14] DANIEL

se precipitam e se deixam levar por seus apetites, e então Deus se põe em contínua vigilância até chegar o tempo de sua vingança. Eu já mencionei como esta palavra denota diligência contínua, e não rapidez impetuosa; e o profeta aqui parece significar que, em bora Deus tenha suportado a perversidade do povo, todavia por fim realmente concretizará suas ameaças previamente anun­ciadas; e que estava sempre em guarda e impossibilitando que o povo escapasse de seus juízos derramados sobre a perversidade a que se entregaram.

Portanto, Jehovah aten tou detidam en te p a ra a ca lam ida­de e a fez v ir sobre nós, diz ele. Com o intuito de com preender a intenção do profeta mais plenamente, devemos observar o que Deus pronuncia pelos lábios de Jeremias em Lamentações [3.38], onde ele acusa o povo de indolência, porque não reconheceram a justiça dos castigos que sofriam; ele os culpa nestes termos: “Por­ventura da boca do Altíssimo não sai tanto o mal como o bem ?” Como se ele fosse pronunciar uma maldição contra os que são ignorantes da origem das calamidades de Deus, quando ele casti­ga o povo. Tal sentimento não se confina a um a única passagem. Pois Deus amiúde investe contra aquela estupidez que nasceu no seio da raça humana e a leva a atribuir cada evento à sorte e a ignorar a mão daquele que faz a ferida [Is 9.13]. Esse tipo de ensino é encontrado em toda parte nos profetas, os quais mos­tram como nada pode ser pior do que tratar os juízos divinos com o se fossem acidentes sob a influência do acaso. Eis a razão por que Daniel insiste tanto sobre este ponto. Sabemos também o que Deus denuncia em sua lei: Se andardes contrariamente a mim, eu também andarei contrariamente a vós [Lv 26.27,28]; ou, seja, se não cessardes de atribuir à sorte todo o mal que sofreis, eu me lançarei contra vós de olhos fechados e tudo farei para que so­frais as conseqüências. Como se quisesse dizer: Se não podeis distinguir entre o acaso e meus juízos, então vos afligirei de to­dos os lados, pela direita e pela esquerda, sem a mais leve com-

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paixão; como se eu fosse um ébrio, de acordo com a expressão: com o perverso eu serei perverso. Por essa razão Daniel agora confessa: Deus velava sobre a calamidade para trazer todas es­sas aflições por meio das quais o povo era oprimido.

N esta passagem somos ensinados a reconhecer a Providência de Deus tanto na prosperidade quanto na adversidade, com o pro­pósito de despertar-nos à gratidão por seus benefícios, enquanto seus castigos têm o propósito de produzir humildade. Pois quan­do alguém explica essas coisas como oriundas da sorte e do aca­so, tal pessoa com isso prova sua ignorância da existência de Deus, ou, pelo menos, do caráter da Deidade a quem adoramos. Pois o que é deixado a Deus se o roubamos de sua Providência? E suficiente aqui tocar apenas de leve nesses pontos que estão ocorrendo amiúde e sobre os quais costumeiramente ouvimos algo todos os dias. E suficiente para a exposição desta passagem ob­servar como o profeta eventualmente contrastou o ju ízo e a Pro­vidência de Deus com todas as noções de acaso.

Em seguida ele acrescenta: Jehovah nosso D eus é ju s to em todas suas obras. Nesta sentença o profeta confirm a seu ensino anterior; e a frase, Deus é justo , aparece como que apresentando a razão para suas atividades. Porque a natureza de Deus supre a razão por que se torna impossível que algo aconteça mediante o cego impulso do destino. Deus se assenta no céu com o juiz; daí essas duas idéias são diretamente contrárias um a à outra. E assim se uma das seguintes afirmações for feita, a outra é ao mesmo tempo negada. Se Deus é o ju iz do mundo, o destino não tem lugar em seu governo; e tudo quanto for atribuído ao destino es­tará dissociado da justiça de Deus. Assim temos um a confirm a­ção de nossa sentença anterior pelo uso de contrários ou opostos. Porquanto devemos necessariamente atribuir ao juízo de Deus tanto o bem quanto o mal; tanto a adversidade quanto a prosperi­dade, se porventura ele governa o mundo pela instrumentalidade de sua Providência e exerce o ofício de Juiz. E se nos incJinar-

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mos sequer um mínimo grau para o destino, então o Governo e a Providência de Deus cessarão de ser reconhecidos. Entrementes, Daniel não só atribui poder a Deus, mas também celebra sua ju s ­tiça; como se quisesse dizer: ele não governa o mundo arbitrari­amente sem qualquer norma de justiça ou eqüidade, porém ele é justo . Não devemos pressupor a existência de alguma lei superi­or que obrigue o Onipotente; ele é um a lei em si e para si mesmo, e sua vontade é a norma de toda justiça. Todavia devemos esta­belecer este ponto: Deus não reina sobre o mundo como tirano, em bora na perfeição de sua eqüidade ele realize algumas coisas que nos parecem absurdas, simplesmente porque nossas mentes não podem ascender à altura suficiente para captar a razão evi­dente pelo menos em parte, e quase inteiramente oculta e incom­preensível, dos juízos de Deus. Daniel, pois, desejava expressar esse fato com estas palavras: Jehovah nosso Deus, diz ele, é ju s to em todas as ob ras que realiza. Eis o significado: o povo não teria sido tão severamente castigado e afligido com calam i­dades tantas e tão miseráveis, se não houvera provocado a ira de Deus. Isso poderia ser facilmente coligido das ameaças que Deus denunciara de antemão desde os tempos mais remotos, e que ele naquele tempo provou que a verdade genuína não é frívola se­quer um mínimo grau. Em seguida, ele acrescenta uma segunda parte, a saber: não só o poder de Deus, mas também sua justiça, se manifestam na matança do povo. E tenho tocado superficial­mente em cada um desses pontos, até onde se fez necessária uma explanação. Devemos notar, porém, a alusão do profeta, nessas palavras, sobre os fiéis, com o propósito de provar sua fé. Eles percebiam que eram os mais desprezados e miseráveis dentre os mortais. O povo peculiar e sagrado de Deus estava sofrendo sob o mais intenso opróbrio e ódio, em bora Deus os houvera adotado por meio de sua lei, com a intenção de o enaltecer acima de todos os demais povos. Portanto, enquanto percebiam que eram traga­dos por aquele profundo torvelinho de calamidades e desgraça, o

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que mais supunham senão que Deus os enganara ou que seu pacto fora totalmente aniquilado? Daniel, pois, estabelece a justiça de Deus em todas suas obras com o propósito de acalmar tal tentação e de confirm ar os santos em sua confiança, bem como induzi-los a buscarem asilo em Deus no extremo de suas calamidades.

Ele acrescenta, como razão: Porque não deram ouvidos a sua voz. Aqui, uma vez mais, ele realça o crime do povo que não trans­gredira movido por ignorância ou erro, mas propositadamente deu o grito de guerra contra Deus. Sempre que a vontade de Deus uma vez se nos torna conhecida, não mais temos justificativa alguma para a ignorância; pois nosso franco desafio ao Todo-Poderoso pro­vém de sermos desviados pelos desejos da carne. E daí deduzir­mos quão detestável é a culpa de todos quantos não obedecem à voz de Deus sempre que ele se digna ensinar-nos, e que aquiesce­mos imediatamente em sua palavra. Agora podemos prosseguir:

15 E agora, ó Senhor nosso D eus, trou- 15 E t nunc D om ine D eus noster, qui edu-xeste leu povo da terra do E gito com m ão xisti populum tuum e terra /E gypti cumpoderosa e ad q u iris te p a ra ti renom e, m anu forti, e t fecisti, com parasti, tibicom o neste d ia [se vê]; tem os pecado, te- nom en secundum diem hanc,97 peccavi-m os procedido im piam ente. m us. im pie egim us.16 R ogam os-te, ó Senhor, segundo todas 16 Dom ine secundum om nesjustitias tuastuas ju stiças, que apartes d e tu ac id ad e de avertatur, q u a so , ira tua, e t excandescen-Jerusalém , teu santo m onte, tua ira e teu tia tua ab urbe tua Jerusalem , m onte sanc-furor; porque, por causa de nossos peca- titatis tu a : quoniam ob peccata nostra, etd os e po r causa das iniqüidades d e nos- ob iniquitates9* patrum nostrorum , Jeru-sos pais, Jerusalém e teu povo se tom a- sa lem , e t popu lus tuus e st in probrumram opróbrio a todos quantos nos cercam . cunctis v icinis” circuitibus nostris .'0017 A gora, pois, ó nosso Deus, ouve a ora- 17 E t nunc audias. D eus noster, precatio-çâo de teu servo e suas súplicas, e faz res- nem servi tui, et orationem ejus atque illu-p landecerteu ro s to so b re teu san tu á rio q u e m ina faciem tu am 101 super sanctuarium está desolado, p o r am or do Senhor. tuum, quod vastatum est, vel, desolatum,

propter Dom inum.

” Ou, seja, como o próprio acontecimento realçado.* Ou, em nossos pecados e iniqüidades.w Literalmente, "todos” .100 Ou, seja, os que e stio em nosso circuito.101 Ou, seja, faz teu rosto resplandecer.

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[9.15-17] DANIEL

Depois que Daniet confessou suficientemente a justiça da­queles juízos que Deus infligira sobre o povo, novamente volta a rogar por perdão. Primeiro, ele conquista favor para si mesmo; em seguida, ele incita as mentes dos pios àconfiança, e assim ele põe diante deles aquela prova da graça que deve servir para sus­tentar as mentes dos pios até o fim do mundo. Pois quando Deus tirou seu povo do Egito, ele não pôs diante deles algum benefício meramente momentâneo, porém testificou da adoção da raça de Abraão na condição de ser seu Salvador perpétuo. Portanto, sem­pre que Deus deseja congregar os que se acham dispersos, e des­pertar suas mentes do estado de desespero ao de jubilosa espe­rança, os lembra que é ele seu Redentor. Diz ele: Eu sou o Deus que vos tirou do Egito [Lv 11.45, e amiúde em outros lugares]. Deus não só enaltece seu próprio poder em tais passagens, porém insinua o objeto de sua redenção; pois ele então recebia seu povo sob seu cuidado sobre a mesma base de nunca cessar de agir em seu favor, com o am or e a solicitude de um pai. E quando em seu turno tal solicitude se apoderava dos fiéis, ao ponto de levá-los à consciência de sua própria e total deserção de Deus, tinham o hábito de sobraçar este escudo: não foi em vão que Deus tirou nossos pais do Egito. Daniel agora desenvolve este raciocínio: Tü, ó S enho r nosso Deus, diz ele, que guiaste teu povo. Como se quisesse dizer: ele invocou a Deus porque, por uma única pro­va, testificou a todas as eras o sacro caráter da raça de Abraão. Observamos, pois, como ele estimula a si e a todo o restante dos santos a orarem, porque, ao lançar este fundamento, ele podia queixar-se de forma familiar, e destemidamente suplicar que Deus usasse de compaixão para com seu povo, e pôr um basta a suas calamidades. Agora entendemos a intenção do profeta, quando ele diz: o povo foi tirad o do Egito.

Em seguida acrescenta outra causa: Deus en tão g ran jeou p a ra si renom e, como o acontecim ento evidentem ente dem ons­trou . Ele aqui associa o poder de Deus com sua compaixão, signi-

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ficando que, quando o povo foi guiado, isso não foi apenas um exemplo de favor paternal em prol da família de Abraão, mas também um a exibição do poder divino. Donde se segue que seu povo não podia ser execrado sem também destruir a memória daquele portentoso poder pelo qual Deus granjeou para si reno­me. E o mesmo sentimento amiúde ocorre nos profetas quando usam o argumento: Se este povo perecesse, o que impediria a extinção de tua glória, e assim tudo quanto conferiste a este povo de ser sepultado no esquecimento? Assim, pois, Daniel agora diz: Ao trazer teu povo da terra do Egito, tu fizeste para ti mesmo uni nome\ ou, seja, granjeaste glória para ti mesmo, a qual deve ex- pandir-se por todos os séculos até o fim do mundo. O que, pois, sucederá se todo teu povo for agora destruído? Em seguida acres­centa: Procedem os im piam ente, e agim os perversam ente. Nes­tas palavras Daniel declara como nada foi deixado senão que Deus ponderasse para si mesmo, mais do que para o povo, quando, ao olhar para eles, nada visse senão motivo para vingança. O povo necessariamente pereceria se Deus o tratasse segundo merecia. Mas aqui Daniel desvia o rosto de Deus, por assim dizer, dos pecados do povo, com o intuito de fixar sua atenção somente em si mesmo e na compaixão divina, bem como em sua consistente fidelidade àquele perpétuo pacto que fora feito com seus pais.

Por fim, ele não permitiria que a redenção fracassasse, a qual era um a prova eminente e eterna de sua virtude, favor e benevo­lência. D aí ele agregar: O Senhor, que tu a ira e tu a a rd en te có lera sejam desviadas de tu a cidade Je ru sa lém e do m onte de tu a san tidade. Observamos como Daniel aqui exclui todo e qualquer mérito que pudesse haver no povo. N a realidade não o possuíam, porém fala segundo aquela tola imaginação que os ho­mens cultivam. Sempre tomam crédito para si, ainda que estejam centenas de vezes convencidos de seus pecados, e ainda desejem conciliar o favor divino pleiteando algum mérito diante de Deus. Aqui, porém, Daniel exclui todas essas considerações ao supli-

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[9.15-17] DANIEL

car a Deus que lhe conceda sua justiça, e usa a expressão forte: segundo toda tua justiça. Os que tomam esta palavra ‘justiça’ no sentido de ‘ju ízo ’ caem em erro e são inexperientes na interpreta­ção das Escrituras; porque supõem que a justiça de Deus seja oposta a sua piedade. Mas nos familiarizamos com a justiça de Deus quando se manifesta especialmente nos benefícios que ele nos confere. É justamente como se Daniel dissesse que a única esperança do povo consistia em Deus ter respeito unicamente por si próprio e de form a alguma pela conduta deles. Daí ele to­m ar a justiça de Deus em lugar de sua liberalidade, o gracioso favor, consistente com sua fidelidade e proteção, o que ele pro­meteu a seus servos: Portanto, ó Deus, diz ele, segundo todas tuas misericórdias que prometeste; isto é, tu não falhas para com aqueles que confiam em ti; nada prometeste precipitadamente; e não costumas abandonar os que fogem para ti. Oh, por tua pró­pria justiça, socorre-nos em nossa tribulação. É preciso também que notemos bem a partícula universal ‘todas’, pois quando D a­niel une tantos pecados que pudessem precipitar o povo em um abismo mil vezes profundo, ele opõe a isso todas as misericórdi­as que Deus havia prometido. Como se houvera dito: ainda que o número de nossas iniqüidades seja tão imenso que pereçamos centenas de vezes, todavia tuas misericórdias prometidas são ainda mais numerosas, significando: tua justiça excede ao que existe de maior em nós: o mais profundo abismo de nossas culpas.

Ele diz ainda: Q ue tu a ira re troceda e tu a ira a b ra sa d o ra se ja a fas tad a de tu a cidade Je ru sa lém e de teu san to m onte. Ao enfeixar ira e cólera ardente, o profeta não insinua qualquer excesso por parte de Deus, como se vingasse os pecados do povo com demasiada severidade, mas novamente apresenta a gravida­de de sua perversidade, levando-o a enfurecer-se contra eles ao ponto de abandonar seu caráter costumeiro e tratar sua adoção como se fosse vã e infrutífera. Daniel não se queixa, neste caso, da severidade do castigo, mas, antes, condena a si e ao resto do

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povo por provocarem a necessidade de medidas tão drásticas. Uma vez mais, ele põe diante de Deus o monte santo que havia escolhido, e dessa forma desvia a sombra do juízo, para que não lhes fosse computado tantos pecados, pelos quais Deus estava merecidamente enfurecido. Aqui, pois, a eleição divina é inter­posta, porque ele consagrara para si o monte Sião e queria ser cultuado ali, onde também seu nome seria celebrado e sacrifícios lhe seriam oferecidos. Neste respeito, pois, Daniel obtém favor para si diante de Deus e, como eu já disse, exclui todas as demais considerações.

Em seguida acrescenta: P o r causa de nossos pecados e das in iqü idades de nossos pais, Je ru sa lém e teu povo são vilipen­diados p o r todos nossos vizinhos. Lançando mão de outro argu­mento, o profeta deseja mover Deus à compaixão; porquanto Je­rusalém e todo o povo se tornaram um a desgraça aos olhos das nações; todavia isso fez com que igual desgraça recaísse sobre o próprio Deus. Como, pois, os gentios fizeram dos judeus um alvo de chacota, não pouparam nem mesmo o sacro nome de Deus; mais ainda, os judeus se tornaram tão desprezíveis, que os gen­tios raramente se dignavam falar neles, e o Deus de Israel era desdenhosamente traduzido, como se fora completamente venci­do, visto que havia tolerado ver seu templo ser destruído e toda a cidade de Jerusalém ser consumida pelo fogo e por cruel matan­ça. O profeta, pois. agora elabora seu argumento, e, ao falar da cidade santa, indubitavelmente faz referência à sacralidade do nome de Deus. Sua linguagem subentende: Tu escolheste Jerusa­lém como uma espécie de residência régia; e tu desejavas ser cultuado ali, porém agora esta cidade se tornou objeto do mais execrando escárnio nos lábios de nossos vizinhos. Assim ele de­clara como o nome de Deus fora exposto às blasfêmias dos gen­tios. Em seguida ele atribui o mesmo ao povo de Deus, não à guisa de queixa, quando os judeus sofriam tais escárnios porque os mereciam, em decorrência de seus pecados, mas a linguagem

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é enfática: a despeito de tudo, ele era ainda o povo de Deus. O nome de Deus era enfeixado estreitamente com o de seu povo, e toda infâmia que os profanos lançavam sobre ele refletia princi­palmente no próprio Deus. Aqui Daniel põe diante do Onipoten­te seu próprio nome; como se quisesse dizer: Ó Senhor, sê tu o vingador de tua própria glória; certa vez nos adotaste sobre esta condição: que a memória de teu nome esteja sempre gravada em nós. Tens permitido que sejamos massacrados de forma tão des­prezível; não permitas que os gentios te insultem por essa conta. E no entanto ele diz que isso ocorreu por causa das iniqüidades do povo e as de seus pais. Com essa expressão ele remove toda e qualquer possibilidade de dúvida. Oh, como foi possível aconte­cer que Deus prostrasse seu povo dessa forma? Por que ele não poupou pelo menos seu próprio nome? Daniel, pois, aqui testifi­ca que Deus é justo, porque a iniqüidade do povo e a de seus pais se erguera num montão tão alto, que Deus se vira com pelido a exercer sua vingança contra eles.

Eis sua próxima oração: Tb, que és nosso Deus, ouve a o ra ­ção e as súplicas de teu servo, e faz teu rosto resp landecer. Nestas palavras, Daniel se digladia com a desconfiança, não por sua própria causa, mas por causa de toda a Igreja em prol da qual ele apresenta o verdadeiro método de oração. E a experiência ensina a todos os pios quão necessário é este remédio contra aque­las dúvidas que interrompem todas nossas orações e fazem com que nossa solicitude e ardor na oração dêem lugar ao torpor e tibiez de nossa alma, ou pelo menos oramos sem qualquer con­fiança serena e tranqüila; e tal hesitação vicia a tudo quanto ante­riormente concebemos. Como, pois, isso sucede diariamente a todos os crentes pios quando abrem mão do dever de orar, pelo menos por um breve período, e alguma dúvida sorrateiramente os atrai e fecha a porta do acesso familiar a Deus. Eis a razão por que Daniel tão amiúde reitera a sentença: Tu, ó Senhor, ouve a oração de teu servo. Davi também inculca tais sentimentos em

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suas orações, e tem toda razão de agir assim. E os que são real­mente experientes no campo da oração sentem com o os servos de Deus têm boas razões para usar tal linguagem sempre que oram a ele. Deixemos, porém, para amanhã a conclusão do resto.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, como designaste que nos reuníssemos entre teu povo e quiseste também que demos testemunho de teu nome e da glória de teu unigénito Filho, ainda que tão amiúde provoquemos tua ira com nossos pecados e nunca cessamos de amontoar mal sobre mal. con­cede que jam ais sejamos expostos como alvo de zombaria e espetá­culo, fazendo com que teu santo nome seja denegrido. Como, pois, agora viste os ímpios lançando mão de todas as ocasiões para gros­seiramente te difamarem, de teu santo evangelho e do nome de teu unigénito Filho, não lhes permitas, rogo-te, que petulantemente te insultem. Que teu Espírito assim nos governe para que desejemos glorificar teu santo nome. Que o mesmo seja glorificado, a despeito de Satanás e de todos os ímpios, até que sejamos congregados na­quele reino celestial, o qual nos prometeste no mesmo Cristo nosso Senhor. Amém.

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/ f i n t e m começamos nosso comentário sobre a passagem na W q u a l Daniel pede ao Todo-Poderoso que fizesse seu rosto resplandecer sobre seu próprio santuário. Estamos bem cientes de quão amiúde esta expressão ocorre nas Escrituras, quando le­mos que Deus manifesta sua oposição ocultando seu rosto, quan­do ele não mais assiste seu povo, porém se oculta como se não mais se lembrasse deles. As Escrituras por toda parte comparam nossas calamidades e adversidades a trevas; por isso se diz que Deus, em cujo favor nossa felicidade é posta, oculta seu rosto quando não nos socorre. E novamente se diz que ele faz brilhar seu rosto quando nos propicia algum sinal de seu favor paternal. Era como se por muito tempo Deus houvera abandonado seu san­tuário, e por isso o profeta ora para que ele fizesse resplandecer seu rosto. Devemos notar bem sua expressão: sobre teu santuá­rio que ja z em ruína. Deduzimos disso que, em bora o profeta visse todas as coisas perdidas no sentido carnal, todavia ele não se desesperou nem desistiu de suas orações. E esta regra precisa ser anotada: a graça de Deus não deve ser estimada pelo presente aspecto das coisas, porque ele amiúde se revela irado conosco. Nossa razão cama! precisa ser vencida, caso desejemos orar a Deus na adversidade, como o profeta aqui nos ensina por meio de seu exemplo pessoal. Pois o santuário estava suprimido; sua própria devastação poderia ter propiciado um a escusa a Daniel e a todos os santos para não mais oferecerem suas orações. Que sucesso se podia esperar num estado tão deplorável de ocorrênci-

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as? Daniel, através de tais circunstâncias, m ostra como se esfor­çava para não admitir que algum obstáculo interrompesse o cur­so de suas orações. Ele acrescenta: p o r am o r do S enhor. Todos os doutores hebreus concordam que a palavra ' JTN, Ac/ow, quan­do escrita com o grande ponto kam etz, é tom ada unicamente para Deus. Mas em certas passagens da Escritura é mui claramente usada também para o Mediador. É bem provável que ela tenha este sentido aqui; ainda que os hebreus usem esta form a por amor a D eus ou por tua causa quando fazem um apelo direto à Deida­de. Eu, contudo, confesso que às vezes é usada a terceira pessoa. Que necessidade, porém, há para evitar esta forma de linguagem mais abrupta, quando o outro sentido parece ser mais apropriado à passagem? M ais adiante ele dirá: por tua causa, ó meu Deus; aqui, porém, ele diz: por am or do Senhor. Entretanto, se eu tives­se contendido com um a pessoa de disposição capciosa, confesso que não poderia convencê-la à luz desta passagem; mas se pesar­mos as palavras do profeta sem o espírito de contenda, nos incli­naremos, antes, para este ponto de vista do tema. Aqui, pois, ele põe diante de Deus o M ediador por cujo favor espera obter seu pedido. Todavia, se alguém preferir aplicar isto a Deus, que tal pessoa retenha sua opinião. Vamos em frente:

18 Inclina, ó meu D eus. teus ouvidos e 18 Inclina D eus m i, aurem tuam , e t audi:ouve; abre teus o lhos e contem pla nossas aperi oculos tuos, e t respice desolationesdesolações, e a cidade que é cham ado por nostras,102 e t c iv itatem super quam invo-leu n o m e . Porque não apresentam os nos- ca tu m estn o m en tuum , super eam ,linquiasas súplicas diante d e ti com base em nos- non propter ju stitias nostras nos proster-sa ju stiça , m as com base em tuas grandes nim us preces nostras coram facie tua, sedm isericórdias. propter m isericórdias tu as l(“ m ultas, vel,

magnas.

Esta breve sentença bafeja um maravilhoso fervor e veemên­cia em oração; pois Daniel derrama suas palavras de form a tor­

Ou, devastações.105 As palavras super eam. “ sobre ela", são redundantes. 1(u Ou, por conta de tuas compaixões.

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[9.18] DANIEL

rencial como se fosse desfalecer. Os filhos de Deus amiúde caem em êxtase durante a oração; gemem e suplicam a Deus; usam vários modos de expressão e m uita tautologia; e não podem sa- tisfazer-se. Aliás, em formas de linguagem os hipócritas são às vezes superiores; não só rivalizam os sinceros adoradores de Deus, mas são totalmente afeiçoados a pompas externas e a um vasto amontoado de palavras em suas orações; chegam com muita ele­gância e esplendor e inclusive se revelam grandes oradores. Mas Daniel aqui apenas exibe alguma porção de seus sentimentos; não há dúvida de que desejava dar testemunho a toda a Igreja de quão veemente e fervorosamente ele orava com o intuito de in­flam ar outros com semelhante ardor.

Neste versículo, ele diz: Inclina, ó m eu Deus, teus ouvidos e ouve. Teria sido suficiente simplesmente ter dito: escuta! Mas, como Deus parecia permanecer surdo a despeito de tantas ora­ções e súplicas, o profeta roga-lhe a inclinar seus ouvidos. Há um a silenciosa antítese aqui, porque os fiéis pareciam estar pro­nunciando palavras a surdo, enquanto seus gemidos eram conti­nuamente elevados aos céus durante setenta anos sem o mais leve efeito. Em seguida ele acrescenta: ab re teus olhos e vê. Pois a indiferença de Deus em responder teria descoroçoado as espe­ranças dos santos, já que os israelitas estavam sendo tratados tão indignamente. Eram oprimidos de todas as formas possíveis pelo opróbrio e sofriam o mais grave molestamento em seus bens e em tudo mais. Contudo Deus passou por sobre todas essas cala­midades de seu povo como se seus olhos estivessem fechados; e por essa razão Daniel agora ora pedindo que ele abrisse seus olhos. Vale a pena notar essas circunstâncias com diligência, com o pro­pósito de aprender como orar a Deus. Primeiro, quando em paz e capazes de pronunciar nossas petições sem a mais leve inquietu­de; e, segundo, quando a tristeza e a ansiedade se apoderam de todos nossos sentidos e tudo em nossa volta escurece; mesmo então nossas orações devem prosseguir livremente envoltas por

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48* EXPOSIÇÃO [9.18]

esses grandes obstáculos. E deduzimos, ao mesmo tempo, en­quanto Deus nos compele aos próprios extremos de nossas vidas, como devemos ser ainda mais importunos, porque o próprio ob­jetivo dessa nossa aflição é despertar-nos de nossa indolência. E assim lemos nos Salmos: “Por isso, todo aquele que é santo orará a ti, a tempo de poder encontrar-te” [Sl 32.6]. Nossa oportunida­de surge quando as extremas necessidades nos esmagam, porque Deus, então, nos incita, como eu já disse, para corrigir nossa len­tidão. Que aprendamos, pois, habituar-nos a orar com veemên­cia, sempre que Deus nos impelir e nos incitar com estímulos desse gênero.

Em seguida ele diz: contem pla nossas desolações - disto já falamos bastante - e a c idade sobre a q ual puseste teu nom e.Uma vez mais Daniel põe diante de si o sólido fundamento de sua confiança: Jerusalém tinha sido escolhida como o santuário de Deus. Sabemos que a adoção divina é sem arrependimento, no dizer de Paulo [Rm 11.29]. Daniel, pois, aqui toma o mesmo método mais forte de apelar para a honra de Deus, insistindo que a vontade de Deus era que ele fosse cultuado no Monte Sião e designar Jerusalém para si como a sede real. A frase ser chamada pelo nome de Deus significa reconhecer o lugar ou a nação como pertencente a Deus. Pois lemos que o nome de Deus é invocado sobre nós quando professamos ser seu povo, e ele nos distingue por sua marca, como se publicamente demonstrasse, aos olhos da humanidade, seu apreço por nossa confissão. E assim o nome de Deus foi invocado sobre Jerusalém, porque sua eleição fora celebrada há muitos séculos, e também havia congregado um povo peculiar e designara um lugar onde queria que se oferecem sacri­fícios.

Em seguida, acrescenta: P orque não d e rram am o s nossas orações d ian te de tu a face fiados em nossa p ró p ria ju s tiça (*D, ki, ‘mas’, em minha opinião é expresso adversativamente aqui), m as em v irtu d e de tuas m uitas ou g randes m isericórd i-

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[9.18] DANIEL

as. Daniel confirma mais claramente ainda o que foi dito ontem, mostrando como sua esperança se fundara unicamente na mercê divina. M as já afirmei como ele expressa seu significado mais claramente, opondo dois membros de uma sentença naturalmen­te contrários um ao outro. Não em nossa própria justiça , diz ele, mas em tuas compaixões. Ainda que esta com paração nem sem ­pre seja expressa tão distintamente, todavia esta regra deve ser mantida - sempre que os santos confiam na graça de Deus, re­nunciam ao mesmo tempo todos seus méritos [pessoais] e nada encontram em si mesmos que propicie a Deus. Esta passagem, porém, deve ser diligentemente notada, onde Daniel cuidadosa­mente exclui tudo quanto se opõe à bondade graciosa de Deus; e em seguida mostra como, ao apresentar alguma coisa como sen­do propriamente sua, como se os homens pudessem merecer a graça de Deus, eles diminuem um degrau da mercê divina. As palavras de Daniel também contêm outra verdade, manifestando a impossibilidade de conciliar duas coisas opostas, e vice-versa, a saber: buscar os fiéis refúgio na mercê divina e todavia fazer tudo para si mesmos e descansar em seus próprios méritos. Como, pois, existe uma profunda repugnância entre a graciosa benevo­lência divina e todos os méritos humanos, quão estúpidos são os que se esforçam em combiná-los segundo a prática usual do pa­pado! E mesmo agora os que não se refugiam espontaneamente em Deus e em sua Palavra pretendem lançar um véu sobre seus erros, atribuindo metade do louvor à misericórdia divina e reten­do o resto como que pertencendo ao homem. Toda dúvida, po­rém, é removida quando Daniel põe esses dois princípios em opo­sição um ao outro, segundo minha observação anterior - a justiça humana e a mercê divina. Nossos méritos, na verdade, não se fundirão com a graça de Deus mais que a tentativa de misturar o fogo e a água na vã esperança de achar alguma concordância en­tre elementos tão opostos. Em seguida ele chama essas mercês de ‘grandes’, como previamente observamos o uso de uma gran-

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4 8 ' EXPOSIÇÃO [9.18]

de variedade de palavras para expressar os vários modos nos quais o povo se dispunha a receber seu juízo. Aqui, pois, ele im plora as misericórdias de Deus como sendo muitas e grandes, visto que a perversidade do povo havia chegado a seu ponto máximo.

Quanto à expressão seguinte: O povo d e rra m o u suas o ra ­ções d ian te de Deus, a Escritura parece em alguma medida dis- crepar-se em seu conteúdo, mediante o freqüente uso de uma metáfora diferente, representando as orações com o sendo ergui­das aos céus. Esta frase ocorre com freqüência: Elevamos ou apre­sentamos a ti nossas orações. Aqui também, como em outros lu­gares, o Espírito dita um a forma diferente de expressão, repre­sentando os fiéis como que lançando no chão seus votos e ora­ções. Cada uma dessas expressões é igualmente adequada por­que, como dissemos ontem, tanto o arrependimento quanto a fé devem estar bem associados em nossas orações. O arrependimen­to, porém, arremessa os homens para baixo, enquanto a fé os soergue e os impele para cima novamente. À prim eira vista, es­sas duas idéias não parecem facilmente conciliáveis; mas, ao exa­minar esses dois membros de um a forma de expressão verdadei­ra e lógica, não acharemos possível erguer nossas orações e vo­tos ao céu sem calcá-las, por assim dizer, nas profundezas mais baixas. Porque, de um lado, quando o pecador entra na presença de Deus, necessariamente ele tem que prostrar-se completamen­te; mais ainda, se dilui diante dele como se fosse destituído de vida. Este é o genuíno efeito do arrependimento. E assim os san­tos se prostram em todas suas orações, sempre que humildemen­te se reconhecem indignos da atenção do Todo-Poderoso. Cristo põe diante de nós um quadro desse tipo no caráter do publicano que bate em seu peito e suplica perdão com um semblante de alguém aterrado [Lc 18.13]. Assim também os filhos de Deus se prostram em suas orações naquele espírito de humildade que em ana do arrependimento. Então se erguem de suas orações mo­vidos pela fé, pois quando Deus os convida a si e lhes dá teste-

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[9.19] DANIEL

munho de ser-lhes propícios, erguem-se e sobem às nuvens, sim, ao próprio céu. Razão por que esta doutrina também resplandece com esta promessa: Tu és o Deus que ouve as orações - como lemos nos Salmos [Sl 65.2]. Em decorrência do fato de que os fiéis se convencem de que Deus é fiel, ousadamente se chegam a sua presença e oram com mentes soerguidas, em plena convicção de que Deus se agrada dos sacrifícios que oferecem. Prossigamos:

19 Ó Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; 6 19 D om ine audi. D om ine propitius esto,Senhor, a ten ta e age; não te delongues, D om ine a ttende, vel, animadverie, e t facp or am or de ti, ó meu D eus; porque tua ne m oreris p ropter te. D eus m i. quia no-cidade e teu povo sâo cham ados por teu m en tuum invocatum est su p e r urbemnom e. tuam , et supr populum tuum.

Aqui a veemência é melhor expressa, como observei previa­mente. Pois Daniel não exibe sua eloqüência, como geralmente agem os hipócritas, mas simplesmente ensina por m eio de seu exemplo a verdadeira lei e método da oração. Sem dúvida, ele fora impelido por zelo singular com o propósito de juntar outros a si. Deus, pois, operou no profeta por meio de seu Espírito, para fazer dele um guia para todo o restante, e sua oração como um tipo de forma comum para toda a Igreja. Com essa intenção, D a­niel agora relata suas concepções pessoais. Ele tinha orado sem qualquer testemunha, mas agora convoca toda a Igreja e quer que ela venha a ser um a testemunha de seu zelo e fervor, e convida todos os homens a que seguissem esta prescrição, procedente não dele, mas de Deus. O Senhor, ouve, diz ele; e em seguida: Ó Senhor, sê propício. Com esta segunda expressão ele insinua a surdez contínua e intencional do Todo-Poderoso, porque era com razão que ele estava irado contra o povo. E devemos observar este fato, porque nesciamente ficamos surpresos de Deus não ouvir nossas orações tão logo quanto desejamos, assim que elas pro­manam de nossos lábios. É preciso que notemos também a razão. A lentidão de Deus promana de nossa frieza e embotamento, en­quanto nossas iniqüidades interpõem um obstáculo entre nós e seus ouvidos. Portanto, sê tu propício, ó Senhor, para que possas

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ouvir. E assim que a frase deve ser entendida. Em seguida ele acrescenta: O Senhor, atende. Com esta expressão Daniel pre­tende com unicar isto: enquanto o povo tinha de várias maneiras e por muito tempo provocado a ira de Deus, eram indignamente oprimidos por ímpios e cruéis inimigos, e que essa severa cala­midade deveria inclinar Deus à compaixão para com eles. Por­tanto, diz ele, ó Senhor atende e não te delongues. Deus havia destituído seu povo já por setenta anos, e suportara vê-los opri­midos por seus inimigos, levando os fiéis ao clímax do desânimo mental. E assim percebemos como nesta passagem o santo profe­ta lutou ousadamente contra a mais severa tentação. Ele suplica que Deus não mais se delongue ou adie. Setenta anos já havia passado desde que Deus formalmente destituíra seu povo por re­jeitarem cada emblema de sua boa vontade para com eles.

A inferência prática desta passagem é a impossibilidade de orarmos de modo aceitável, a menos que nos ponhamos acima de tudo quanto nos sobrevem; e se avaliarmos o favor divino pelo prisma de nossa própria condição, perderemos o próprio desejo de orar; mais ainda, passaremos centenas de vezes por entre nos­sas calamidades e seremos totalmente incapazes de soerguer nos­sas mentes na presença de Deus. Finalmente, sempre que Deus parecer delongar-se por tempo sem fim, devemos repetir cons­tantemente a súplica: não te delongues. E ele acrescenta: p o r am o r de ti m esm o, ó m eu Deus. U m a vez mais Daniel reduz a nada aquelas fontes de confiança pelas quais os hipócritas imagi­nam ser capazes de obter o favor de Deus. Ainda quando uma parte da sentença não seja realmente o oposto da outra, como foi o caso antes, todavia, quando ele diz, por am or de ti, podemos entender qual a inferência: logo, não por amor de nós mesmos. Ele confirma este ponto de vista pelo restante do contexto: p o r am o r de ti, ó m eu Deus, p o rque teu nom e tem sido invocado sobre tu a cidade, diz ele, e sobre teu povo. Observamos, pois, como Daniel não deixou nenhum meio sem experimentar a fim

48* EXPOSIÇÃO [9.19]

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[9.20, 21] DANIEL

de obter seu pedido, embora confiasse em sua graciosa adoção e jam ais duvidasse dos sentimentos propícios de Deus para com seu próprio povo. Na verdade ele não acha nenhum a causa neles, nem nos mortais, nem em seus méritos, mas deseja que a huma­nidade perpetuamente contemple os benefícios divinos e prossi­ga firm e até o fim. Continuemos:

20 E enquanto eu falava e orava, e con­fessava m eu pecado, e o pecado de m eu povo Israel, e apresentava m inha súplica d ian te do Senhor m eu Deus em favor do m onte santo de meu Deus,21 S im , estando eu ainda faiando em ora­ção. o hom em G abriel, a quem eu vira na v isão no princípio, sendo levado a voar com rapidez, tocou-m e. à hora d a obla­ção vespertina.

Quanto à tradução, alguns a tomam como eu faço; outros di­zem “voando rapidamente”, subentendendo fadiga e alacridade. Alguns derivam a palavra ‘voando’ de gnof, a qual significa voar, e juntam -na com seu particípio próprio, o qual é com um no hebraico; outros ainda pensam que a mesma derivou-se de yegnef, significando fadiga, e então a explicam metaforicamente, como voando apressadamente.108

Aqui Daniel começa mostrando-nos que suas orações de modo algum foram inúteis, nem ainda destituídas de seus frutos, já que Gabriel foi enviado para elevar sua mente em confiança e ilumi­nar sua tristeza com consolação. Em seguida ele o apresenta como ministro da graça de Deus a toda a Igreja, com o fim de inspirar os fiéis com a esperança de breve regresso a seu país e encorajá- los a suportarem as aflições até que Deus abrisse um caminho para seu regresso. Quanto a nós, não carece admiração se Deus

lns Ou, seja. enquanto eu estava ainda falando."* Ou, fez cair; a m esma palavra de antes.,07 Ou, seja. por conta de, por causa de. o monte."* Ver a nota clara e compreensível de W intie in loco.

20 E t adhuc ego loquens,I0S e t precarer. e t confiterer peccatum m eum , e t pecca- tum populi mei Israel, e t p rostem erem ,'“ p recationem m eam coram Jehova Deo m eo, super m ontem 107 sanctuarii Dei mei.21 C um , inquam , loquerer in precatione m ea, tunc vir G abriel quem videram in v isione principio volantem volatu, tetigit mc circa tem pus oblationis vespertinae.

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48* EXPOSIÇÃO [9.20, 21]

às vezes se recusa a responder nossas orações, porque aqueles que parecem orar muito melhor que os demais, raramente possu­em uma centésima parte do zelo e fervor requeridos. Ao com pa­rarmos nosso método de oração com essa veemência do profeta, seguramente estamos muitíssimo atrás dele; e de forma alguma surpreende se, enquanto a diferença é tão grande, o sucesso tem de ser por demais dessemelhante. E ainda podemos assegurar- nos de que nossas orações jam ais serão em vão, se seguirmos o santo profeta ainda por um longo intervalo. Se o volume limitado de nossa fé impede nossas orações de com petir com o zelo do profeta, Deus, não obstante, ainda as ouvirá, contanto que este­jam fundamentadas na fé e no arrependimento.

Portanto, diz Daniel: E n q u an to eu a in d a falava, e o rav a , e confessava m eu pecado e o pecado de m eu povo Israel. Antes de tudo, devemos observar como o Espírito Santo aqui proposi­tadamente ditou ao profeta como a graça de Deus seria preparada para e estendida a todos os desafortunados que fugissem para ela e a implorassem. O profeta, pois, mostra por que somos tão des­tituídos de auxílio, pois se a dor ocasiona tanto gemido, contudo nunca respeitamos a Deus, em quem a consolação deve ser sem ­pre buscada em todos os males. Ele assim nos concita a formar­mos o hábito da oração, dizendo que seus pedidos eram ouvidos. Ele não apresenta nenhum exemplo singular, mas, como eu já disse, declara em termos gerais que as orações dos que buscam a Deus como libertador jam ais serão vãs nem infrutíferas. Tenho mostrado como nossas súplicas nem sempre contam ou com a mesma ou com igual atenção, visto que nosso torpor requer que Deus diferencie o auxílio que ele oferece. Mas dessa form a o profeta nos ensina como os que possuem fé e arrependimento genuínos, mesmo que sejam frágeis, jam ais oferecerão suas ora­ções a Deus em vão.

Em seguida ele acrescenta o que é necessário para conciliar o favor divino, ou, seja, que os homens antecipem o juízo divino

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[9.20, 21] DANIEL

condenando-se. Então ele assevera: confessei meu pecado e o pecado de meu povo. Ele não fala aqui de um tipo de pecado, mas sob a palavra U7UFI, cheta, ele compreende todos os tipos de per­versidade; é como se ele dissesse: enquanto me confessava im­pregnado de pecados e mergulhado em iniqüidade, fiz a mesma confissão em favor de meu povo. Devemos notar também a fra­se: o pecado de meu povo Israel. Ele poderia ter omitido este substantivo, porém desejava testificar diante de Deus que a Igre­ja era culpada e sem a mais leve esperança de absolvição, a m e­nos que Deus, a quem ela havia ofendido de forma tão grave, se dignasse graciosamente a reconciliá-la consigo. A prim eira sen­tença, porém, é mais digna de nota, na qual Daniel relata a con­fissão de seus pecados pessoais diante de Deus. Conhecemos o que Ezequiel diz, ou, antes, o Espírito falando através de sua boca [Ez 14.14], Porque Deus nomeia os três personagens mais per­feitos que então existiram no mundo, e inclui Daniel entre eles, ainda que ele, então, estivesse vivo. Embora Daniel fosse um exemplo de justiça angelical, e seja celebrado por tão eminência e honra, todavia, se mesmo ele estivesse diante de mim, e a mim suplicasse em prol desta situação, eu não o ouviria, porém livra­ria somente a ele em virtude de sua justiça pessoal. Como, pois, Deus assim enaltece seu próprio profeta e o eleva às alturas como se estivesse além de toda e qualquer poluição e vícios do mundo, onde acharemos um homem sobre a terra que possa gabar-se de ser isento de toda mácula e falha? Que os caracteres mais perfei­tos sejam trazidos a nossa presença - que diferença entre eles e Daniel! Todavia ele mesmo se confessa pecador diante de Deus e renuncia completamente sua justiça pessoal e publicamente dá testemunho de que sua única esperança de salvação está posta exclusivamente na mercê divina. Daí Agostinho, com muita sa­bedoria, cita com freqüência esta passagem contra os seguidores de Pelágio e Celéstio. Estamos bem cientes com que capciosas pretensões esses hereges obscureceram a graça de Deus, quando

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48* EXPOSIÇÃO [9.20, 21]

argumentavam dizendo que os filhos de Deus não devem perm a­necer sempre na prisão, mas devem atingir o alvo. A doutrina é de fato bastante corrente, a saber, que os filhos de Deus devem estar sempre isentos de toda falha; mas onde tal integridade é realmente encontrada? Agostinho, pois, com a máxima proprie­dade, sempre respondeu a esses palradores frívolos mostrando que jam ais existiu alguém neste mundo que fosse tão justo que não carecesse da misericórdia de Deus. Porque, se tal pessoa exis­tisse, seguramente o Senhor, que é o único ju iz competente, o poderia ter encontrado. Ele, porém, assevera que seu servo Dani­el estava entre os mais perfeitos, se apenas três fossem tomados desde o princípio do mundo. Mas, visto que Daniel se considera parte do rebanho de pecadores, não usando do expediente de fin­gido pretexto ou de humildade, porém exprimindo a plenitude de sua mente diante de Deus, quem agora reivindicaria para si mai­or santidade do que esta? E nq u an to , pois, eu confessava m eus pecados d ian te d a face de m eu Deus. Aqui seguramente não há ficção, do que se deduz que os que pretendem esta imaginária perfeição são demônios em forma humana, como Castélio e ou­tros cínicos, ou, melhor, cães como ele.

Devemos, pois, aderir a este princípio: ninguém, mesmo que fosse semi-angelical, pode aproximar-se de Deus, a menos que conquiste o favor divino através de sincera e franca confissão de seus pecados; aliás, na realidade um criminoso diante de Deus. Esta, pois, é nossa justiça: confessando que somos culpados, a fim de que Deus nos absolva graciosamente. Estas observações, que são a respeito dos israelitas, também nos dizem respeito, como observamos à luz da diretriz que Cristo nos deu, ao dizer: Perdoa nossas transgressões [Mt 6.12; Lc 11.4]. Por quem Cristo quis usar esta petição? Seguramente por todos seus discípulos. Se al­guém se imagina como não carente dessa forma de oração e des­sa confissão de pecado, que o mesmo saia da escola de Cristo e se matricule numa vara de suínos.

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[9.20, 21] OANIEL

Ele então acrescenta: Sobre o m onte do san tu á rio de m eu Deus. Aqui o profeta sugere outra razão para ser ouvido, a saber: sua ansiedade pelo comum bem-estar e segurança da Igreja. Pois sempre que alguém busca seus próprios interesses pessoais e ne­gligencia os benefícios de seu próximo, tal é indigno de obter algo diante de Deus. Se, pois, desejamos que nossas próprias ora­ções sejam agradáveis a Deus e produzam fruto proveitoso, en­tão aprendamos a associar a nós todo o corpo da Igreja, não con­siderando apenas o que nos é conveniente, mas o que prim ará para o bem -estar comum de todo o povo eleito.

Diz ele: E nquan to , pois, eu falava a inda , e no m eio de m i­n h a oração . Tudo indica que Daniel orava não só em seu íntimo, mas se expressava com alguma verbalização externa. E bem ver­dade que esta palavra às vezes se restringe à verbalização men­tal; pois mesmo quando uma pessoa não use sua língua, ela pode falar enquanto pensa mentalmente em seu íntimo. Visto, porém, que Daniel diz: Enquanto eu ainda fa lava em minha oração, tudo indica que ele se expressava de alguma form a também verbal­mente; pois ainda que os santos não pretendam pronunciar algo oralmente, todavia o zelo se apodera deles e as palavras às vezes escapam de seus lábios. Há ainda outra razão para isso: somos por natureza lentos, e então a língua auxilia os pensamentos. Por essas razões, Daniel fora capaz não só de conceber suas orações silenciosa e mentalmente, mas também de pronunciá-las verbal e oralmente.

Em seguida ele acrescenta: veio G abriel. Porém não posso completar hoje meus comentários sobre esta ocorrência.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, fa z com que aprendamos mais e mais plenamente a provar-nos e a descobrir as falhas das quais somos culpados. Mais ainda, que pesemos seriamente nossa perversidade nos humilhando realmente quando chegarmos ante teu semblante e te invocarmos mesmo em nossas profundezas mais escuras. Que jam ais cessemos

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48* EXPOSIÇÃO

de esperar por tua graça; que sejamos elevados por essa esperança aos mais altos céus e a estar sempre seguros de que tu sempre prova­rás ser-nos um Pai propício. E como nos concedeste um Mediador para angariar-nos teu favor, que jam ais nos hesitemos em aproxi­mar-nos de ti de maneira familiar, pela confiança em t i Sempre que nossas misérias nos induzirem ao desespero, que jam ais nos sucum­bamos a ele; mas, com invencível fortaleza mental, perseveremos em invocar teu nome e implorar tua piedade, até que recebamos o fruto de nossas orações; e depois de sermos isentados de toda luta, por fim cheguemos àquele bem-aventurado descanso que está preparado para nós no céu. Em nome de Cristo, nosso Senhor. Amém.

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osição

( ] / } a última preleção explicamos o aparecimento do anjo a V t Daniel, o qual satisfez o ardor de seus desejos. Pois ele

orou com grande ansiedade quando percebeu que havia passado o tempo que Deus fixara de antemão pela boca de Jeremias, quan­do o povo ainda permanecia no cativeiro [Jr 25.11], Já mostra­mos com o o anjo fora enviado por Deus ao santo profeta com o intuito de aliviar sua tristeza e remover a pressão de sua ansieda­de. Ele chamou o anjo de homem , porque ele tinha a aparência de homem, como já declaramos. Resta apenas um a coisa: a visão lhe foi oferecida p o r ocasião do sacrifício vespertino. Setenta anos já haviam transcorridos, durante os quais Daniel nunca ti­nha observado qualquer oferecimento de sacrifício. E todavia ele ainda menciona sacrifícios como se cultivasse o hábito de assis­tir diariamente no templo, o qual realmente não mais existia. Do que transparece como os servos de Deus, ainda que privados dos meios externos da graça no atual momento, são ainda capazes de tomá-los praticamente úteis por meio da meditação em Deus, bem como dos sacrifícios, e outros ritos e cerimônias de sua institui­ção. Se alguém nestes dias foi lançado em prisão, e até mesmo proibido de desfrutar da Ceia do Senhor até o fim de sua vida, todavia não deve com isso eliminar a memória daquele sacro sím­bolo; deve, porém, considerar em seu íntimo, todos os dias, por que essa Ceia nos foi concedida por Cristo e quais as vantagens que ele quer que derivemos dela. Percebemos, pois, que estes foram os sentimentos do santo profeta, porque ele fala desses

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49* EXPOSIÇÃO (9.22)

sacrifícios diários como se estivessem em uso real. Todavia sa­bemos que haviam sido abolidos, e ele não poderia ter estado presente neles por muitos anos, embora durante tal período o tem­plo estava ainda de pé. Agora avancemos mais:

22 E ele m e inform ou, e falou com igo, e 22 E t docuit m e, e t loquutus est mecum , disse: Ó Daniel, eu cheguei agora para e t dixit, Daniel, nunc exivi ut te intellige- dar-te capacidade e com preensão. re facerem intel!igerUiam.l£B

Aqui o anjo prepara a mente do profeta, dizendo: acabei de chegar do céu p a ra in stru ir-te . E u saí, diz ele, p a ra fazer-te en tender. Pois Daniel deve entender, à luz deste exercício do anjo, o que ele mesmo deve fazer. Como Deus se dignara honrá- lo tão sublimemente, pondo diante dele um de seus anjos como seu senhor e mestre, o profeta não deve negligenciar tão singular favor, para que não se mostre ingrato a Deus. Ele agora entende por que o anjo testifica de sua vinda para ensinar o profeta. E nós também devemos refletir sobre isso sempre que entrarmos no templo de Deus, ou lermos alguma passagem da Santa Escri­tura, reconhecendo que os mestres nos são enviados de Deus a nos assistirem em nossa ignorância e a interpretarem para nós as Escrituras. Devemos também admitir que a Escritura nos é dada com o fim de capacitar-nos a encontrarmos ali tudo quanto de outra forma nos seria oculto. Pois Deus abre, por assim dizer, seu próprio coração para nós, quando ele nos faz conhecer seus se­gredos por meio da Lei e dos Profetas, bem como de seus Após­tolos. Assim, Paulo mostra que o evangelho deve ser pregado para a obediência da fé [Rm 1.5]; como se quisesse dizer que não escaparemos impunemente, a menos que obedientemente abra­cemos a doutrina do evangelho; do contrário, estaremos fazendo nosso máximo para frustrar os desígnios de Deus e evitar seus conselhos, a menos que fielmente obedeçamos a sua Palavra. Si­gamos em frente:

Ou. seja. para que le ensine o que é necessário saber.

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[9.23] DANIEL

23 N o princípio de tuas súplicas saiu a 23 Principio precationum tuarum exivitordem , e eu vim para m ostrar-te; pois tu verbum , e t ego veni ut annuntiarem , quiaés g randem ente am ado. Portanto, enten- tu desideriorum v ir,"“ itaque intellige inde o assunto e considera a visão. serm one, e t intellige in visione.

Aqui o anjo não só arranca docilidade do profeta, mas tam­bém o exorta a um a maior atenção. M ais adiante perceberemos que esta singular e extraordinária profecia exige não estudo ordi­nário. Eis a razão por que o anjo não só ordena a Daniel que receba sua mensagem com a obediência da fé, mas também a prestar mais detida atenção do que a usual, porque este era um importante e singular mistério. Ele declara, primeiramente: a palavra foi publicada desde o tempo em que o profeta com e­çou a orar. Não demorarei recitando a opinião de outros, porque creio entender o genuíno sentido da passagem; ou, seja, Deus ouvira as orações de seu servo, e então promulgou o que já havia decretado. Porque com a expressão, ‘publicou’, ele fala da publi­cação de um decreto que anteriormente fora formulado; ele foi então emitido justam ente como os decretos dos príncipes são proclamados e publicamente divulgados. Deus determinara o que faria; Daniel diretamente se interrompeu, pois o conselho de Deus jam ais falha em seu cumprimento; aqui, porém, ele realça a im ­possibilidade de as orações de seus santos caírem no vazio, só porque ele lhes concede as mesmas coisas que concederia aos que não oram por elas, como se aquiescesse nos desejos deles e aprovasse sua conduta. É bastante evidente que nada podemos obter por meio de nossa oração sem a prévia determinação divina de concedê-lo; todavia esses pontos não são opostos entre si; pois Deus atende nossas orações, como está expresso nos Salmos: Ele satisfaz nossos desejos, e todavia executa o que já havia determ i­nado antes da criação do mundo [SI 145.19]. Ele predissera por boca de Jeremias [25.11], como já observamos antes, o término do exilo do povo em setenta anos; Daniel já sabia disso, como

"°O u , seja. tu és um homem desejável.

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49* EXPOSIÇÃO [9.23]

relatou no início do capítulo; todavia não relaxa em suas orações, pois sabia que as promessas de Deus não nos propiciam motivo ou ocasião de indolência ou apatia. O profeta, pois, orava, e Deus mostra como seus desejos não foram de modo nenhum infrutífe­ros, já que os mesmos visavam ao bem-estar de toda a Igreja. Em seguida ele afirma: a p a lav ra sa iu assim que D aniel com eçou a o ra r; ou, seja, assim que ele abriu seus lábios foi divinamente atendido. Em seguida acrescenta: eu vim p a ra m o stra r-te , p o r­que, diz ele, tu és u m hom em im ensam ente am ado. H á quem tom a a palavra ‘desejável’ [imensamente amado] ativamente, como se Daniel se inflamasse com intenso zelo; mas isso é força­do e contrário ao uso da linguagem. Sem dúvida, o profeta usa a palavra no sentido de aceitação por parte de Deus, e a maioria dos intérpretes concorda plenamente comigo. O anjo, pois, anun­cia sua chegada a favor de Daniel, porque ele estava no desfruto do favor divino. E isso é digno de nota, pois deduzimos da passa­gem a impossibilidade de nossos votos e orações nos granjearem favor diante de Deus, a menos que já tenhamos sido alcançados por seus afetos; pois de nenhuma outra form a fazemos Deus pro­pício senão quando fugimos, pela fé, para o refúgio de sua benig­nidade. Então, na confiança em Cristo como nosso M ediador e Advogado, ousamos aproximar-nos dele como os filhos de seu pai. Por essas razões nossas orações seriam de nenhum valor di­ante de Deus, a menos que as mesmas estejam em alguma medi­da fundadas na fé, que é o único meio de reconciliar-nos com Deus, visto que jam ais podemos agradá-lo sem perdão e remis­são de pecados. Observamos também o sentido em que os santos devem agradar a Deus, às vezes não recebendo consoante seus pedidos. Pois Daniel esteve sujeito a contínuos gemidos ao lon­go de muitos anos, e fora afligido por m uita tristeza; e todavia nunca chegou a perceber estar realizando algo digno de seus la­bores: ele poderia de fato concluir que todo seu labor era total­mente perdido, depois de orar com tanta freqüência e tão perse-

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[9.24] DANIEL

verantemente sem qualquer efeito. 0 anjo, porém, o satisfaz fran­camente e testifica de sua aceitação por parte de Deus, e o capa­cita a reconhecer que ele não sofria nenhuma rejeição, ainda que não houvesse alcançado o objeto de seus ardentes desejos. Daí, quando nos tomamos ansiosos em nossos pensamentos, e somos induzidos ao desespero em decorrência da ausência de todo apa­rente proveito ou fruto de nossas orações, e pela falta de uma resposta franca e imediata, devemos extrair do ensino do anjo esta instrução: Daniel, que foi muitíssimo aceito por Deus, foi ouvido extensamente, sem lhe ser permitido ver o objeto de seus desejos com seus olhos físicos. Ele morreu no exílio, e jamais contemplou o cumprimento de suas próprias profecias concer­nentes ao feliz estado da Igreja, como a preparar-se im ediata­mente para celebrar seus triunfos. E no final do versículo, como já fiz menção, o anjo estimula Daniel a um zelo mais intenso e insiste com ele a aplicar sua mente e todos seus sentidos a atenta­mente entender a profecia que o anjo ordenara fosse posta diante dele. Vamos em frente:

24 Setenta sem anas estão determ inadas 24 Septuaginta hebdom ades f in itx suntsobre teu povo e sohre tua santa cidade, super populum tuum , e t super urbem tuampara finalizar a transgressão e p ô r term o sanctam ,’" ad claudendum scelus, e t ob-aos pecados, fazer reconciliação pela ini- signandum peccatum .etexpiandam iniqui-qtlidadc e trazer a ju stiça e tem a, e se iar a tatem, e t adducendam justitiam s tem am ,visão e a profecia, e para ungir o Santís- e t absignandam v isionem ,"2 e t propheti-sim o. am . e t ungendum sanctum sanctorum .113

Esta passagem tem sido tratada de modo variado, e portanto confundida e quase rasgada aos pedaços pelas várias opiniões dos intérpretes, ao ponto de ser considerada quase inútil por con­ta de sua obscuridade. Mas, na certeza de que nenhuma predição é realmente vã, podemos esperar discernir esta profecia, contan­to que pelo menos estejamos atentos e abertos à instrução segun-

111 Literalmente, sobre a cidade de tua santidade.A palavra Dnn. chethem. ‘selar’ é reiterada duas vezes.

113 Ou. santidade de santidade, aludindo ao templo.

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494 EXPOSIÇÃO [9.24]

do a admoestação do anjo e o exemplo do profeta. Geralmente não faço referência a opiniões conflitantes, porque não nutro pra­zer em refutá-las, e o método simples que adoto me agrada mais, a saber, expor o que creio ter sido dado pelo Espírito de Deus. Não posso, porém, deixar escapar a oportunidade de rebater vári­os pontos de vista em tom o da presente passagem.

Começarei com os judeus, porquanto não só pervertem seu sentido em decorrência de sua ignorância, mas também em de­corrência de deprimente impudência. Sempre que se vêem ex­postos à luz que irradia de Cristo, instantaneamente voltam suas costas em total irresponsabilidade, e exibem um a com pleta au­sência de talento. São como cães que se contentam em ladrar. Nesta passagem, especialmente, deixam escapar sua petulância, porquanto com testa de bronze tergiversam o sentido que o pro­feta quis dar. Observemos, pois, o que eles pensam, porque é preciso condená-los por ausência de propósito, a menos que con­sigamos convencê-los por razões igualmente firm es e certas. Quando Jerônimo discorreu sobre o ensino dos judeus que vive­ram antes de seus próprios dias, ele lhes atribui mais modéstia e discrição do que exibiram seus descendentes mais recentes. Ele registra sua confissão de que esta passagem não pode ser enten­dida de outra forma senão em referência ao advento do Messias. É provável, porém, que Jerônimo estivesse indisposto a enfren- tá-los em conflito franco, visto não estar plenamente persuadido de sua necessidade, e por isso assumiu mais do que teria admiti­do. Creio ser isso bem provável, porque ele não deixou cair uma única palavra sobre qual interpretação ele aprovava, e se escusa por trazer a lume todos os tipos de opiniões sem qualquer pre­conceito de sua parte. Daí, ele não ousa pronunciar se os intér­pretes judeus estão ou não mais certos do que os gregos ou lati­nos, porém deixa seus leitores totalmente em suspenso. Além disso, é bem claro que todos os rabinos expuseram esta profecia de Daniel como uma declaração do contínuo castigo que Deus

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[9.24] DANIEL

estava para infligir sobre seu povo depois de seu regresso do ca­tiveiro. E assim excluíram inteiramente a graça de Deus, e culpa­ram o profeta, como se ele houvera cometido o erro de pensar que Deus seria propício a esses míseros exilados, restaurando-os em seus lares e reconstruindo seu templo. Segundo seu ponto de vista, as setenta semanas começaram na destruição do primeiro templo e terminaram na ruína do segundo. Em um ponto eles concordam conosco: em considerar o profeta a com putar as se­manas não como dias, mas como anos, como está em Levítico [25.8], Não há diferença entre nós e os judeus na enumeração dos anos: confessam que o número de anos é 490, mas discor­dam inteiramente de nós no tocante ao término da profecia. Di­zem - como eu já pressupus - que as calamidades contínuas que oprimiram o povo são aqui preditas. O profeta esperava que o fim de suas tribulações estivesse se aproximando depressa, visto que Deus testificara por meio de Jeremias sua plena satisfação com os setenta anos de cativeiro. Dizem também que o povo foi miseravelm ente atormentado por seus inimigos quando da des­truição do segundo templo; e assim se viram privados de seus lares e a cidade, feita em ruínas, tornou-se um horrendo espetá­culo de devastação e desolação. Dessa forma mostrei como ex­cluíram a graça de Deus; e para sumariar seu ensino em termos breves, eis aqui sua substância: o profeta está enganado em pen­sar que o estado da Igreja melhoraria no final dos setenta anos, porque restavam ainda setenta semanas; ou, seja, Deus multipli­cou o número desta maneira com o propósito de castigá-los, até que, por fim, abolisse a cidade e o templo, dispersasse sua nação sobre toda a terra e destruísse seu próprio nome, até que, por fim, chegasse o M essias, a quem esperavam. Esta é sua interpretação, porém toda a história refuta tanto sua ignorância quanto sua te­meridade. Porque, como observaremos em seguida, todos quan­tos são dotados de são ju ízo dificilmente aprovariam tal coisa, porque todos os historiadores relatam o lapso de um período mais

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longo entre a monarquia de Ciro e a dos persas e a vinda de Cristo que aquele que Daniel computa aqui. Os judeus novamente inclu­em os anos que transcorreram desde a ruína do primeiro templo até o advento de Cristo e a destruição final de sua cidade. Daí, segun­do a opinião comumente aceita, eles computaram cerca de seis­centos anos. M ais adiante direi quanto aprovo desta computação e quanto difiro dela. Entretanto, com bastante evidência, os ju ­deus são deploravelmente enganados e ainda enganam a outros, quando computam períodos diferentes sem qualquer critério.

Uma refutação positiva deste erro se deriva claramente da profecia de Jeremias, à luz do início deste capítulo e à luz da opinião de Esdras. Barbinel, aquele enganador e im postor que se ju lga o mais perspicaz dos rabinos, acredita que tem aqui um modo conveniente de escape, visto tergiversar o tema com uma única palavra, e responder a uma só objeção. Em breve, porém, mostrarei como ele brinca com bagatelas frívolas. Ao rejeitar Josefo, ele se gloria de um a vitória fácil. Candidamente confesso que não posso depositar confiança em Josefo, quer de vez em quanto ou sem exceção. Mas que conclusões Barbinel e seus se­guidores extraem desta passagem? A proxim em o-nos daquela profecia de Jeremias que já mencionei, e na qual ele busca refú­gio. Diz ele: os cristãos fazem Nabucodonosor reinar quarenta e cinco anos, porém ele não chegou a completar esse número. E assim ele corta metade de um ano, ou, talvez, um completo da­quelas monarquias. Mas ele faz isso com que propósito, visto que restam ainda duzentos anos, e a contenda entre nós diz res­peito a esse período? Percebemos, pois, quão infantilmente ele tergiversa, deduzindo cinco ou seis anos de um número tão gran­de, e ainda há o peso de duzentos anos que ele deixa de remover. Como já afirmei, porém, aquela profecia de Jeremias concernen­te a setenta anos permanece inamovível. Quando, porém, eles começam? Desde a destruição do templo? Isso de forma alguma se adequa bem.

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[9.24] DANIEL

Barbinel faz com que o número dos anos seja quarenta e nove ou em torno disso, desde a destruição do templo até o reinado de Ciro. Percebemos previamente, porém, que o profeta é então ins­truído acerca do término do cativeiro. Ora, aquele impudente in­divíduo e seus seguidores não se envergonharam de asseverar que Daniel foi um mal intérprete dessa parte da profecia de Jere­mias, visto que imaginava haver completado o castigo, em bora restasse ainda algum tempo. Alguns dos rabinos fazem essa as­severação, porém seu caráter frívolo surge disto: Daniel, aqui, não confessa qualquer erro, senão que, confiadamente, afirma que sua oração foi em decorrência de haver aprendido no livro de Jeremias a completação do tempo do cativeiro. Então Esdras usa as seguintes palavras: Quando os setenta anos se completaram, segundo Deus predissera por boca de Jeremias, ele incitou o es­pírito de Ciro, rei da Pérsia, a libertar o povo no primeiro ano de sua monarquia [Ed 1.1]. Aqui Esdras francamente declara que Ciro deu ao povo liberdade movido pelo secreto impulso do Es­pírito. Teria o Espírito de Deus feito ouvido mouco quando apres­sou o regresso do povo? Porque então teremos necessariamente que convencer Jeremias de fraude e falsidade, quando Esdras vê o regresso do povo como um a resposta à profecia. Em contrapar­tida, eles citam um a passagem do primeiro capítulo de Zacarias [v. 12]: “Então o anjo do Senhor respondeu, e disse: Ó Senhor dos Exércitos, até quando não terás compaixão de Jerusalém, e das cidades de Judá, contra as quais estiveste irado estes setenta anos?” Aqui, porém, o Profeta não põe em relevo o momento em que os setenta anos expiraram, mas quando alguma porção do povo havia regressado a seu país mediante a permissão de Ciro e a construção do templo era ainda impedida, depois de um lapso de vinte ou trinta anos, ele se queixa por Deus não haver liberta­do seu povo completa e plenamente. Se esse é ou não o caso, os judeus devem explicar o com eço dos setenta anos, desde o pri­meiro exílio antes da destruição do templo; do contrário as pas-

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sagens citadas de Daniel e Esdras não se harmonizariam. Somos assim compelidos a concluir esses setenta anos antes do reinado de Ciro; como Deus dissera, ele então poria um fim ao cativeiro de seu povo, e o período foi completado nesse ponto.

Além disso, quase todos os escritores profanos computam 550 anos, desde o reinado de Ciro até o advento de Cristo.

Não hesito em pressupor algum erro aqui, porquanto não nos fica a mais leve dificuldade sobre este cálculo, porém mais adi­ante expressarei o método correto de calcular o número de anos. Entrementes, percebemos como os judeus de todas as formas exageram o número de 600 anos, compreendendo o cativeiro de setenta anos sob essas setenta semanas; e então adicionam o tem­po que transcorreu da morte de Cristo ao reinado de Vespasiano. Mas os próprios fatos são sua melhor refutação. Pois o anjo diz: a s se ten ta sem anas se ex tinguiram . Barbinel tom a a palavra ■jnn, chetek, como ‘elim inar’, e pretende que caracterizemos as misérias contínuas pelas quais o povo foi afligido; como se o anjo houvera dito que o tempo de redenção não havia ainda che­gado, visto que o povo vivia continuamente em estado de m isé­ria, até que Deus infligisse sobre ele aquele golpe final que equi­valia a um horrível morticínio. Quando, porém, a palavra é tom a­da no sentido de ‘term inar” ou ‘findar’, o anjo evidentemente anuncia a conclusão das setenta semanas aqui. Aquele impostor contende, usando este argumento: semanas de anos são usadas aqui em vão, exceto em referência ao cativeiro. Isso é em parte procedente, porém os alarga muito mais do que devia. Nosso pro­feta faz alusão aos setenta anos de Jeremias, e fico surpreso que os advogados de nosso lado não tenham considerado isso, visto que ninguém sugere qualquer razão pela qual Daniel computa anos por semanas. Todavia sabemos que essa figura foi usada propositadamente, porque ele queria com parar setenta semanas de anos com os setenta anos. E quem quer que se dê ao trabalho de considerar esta semelhança ou analogia, descobrirá que os ju-

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deus se matam com sua própria espada. Porque o profeta aqui com para a graça de Deus com seu juízo; como se quisesse dizer que o povo foi castigado com exílio ao longo de setenta anos, mas que agora seu tempo da graça chegou; mais ainda, o dia de sua redenção raiou, e que ele brilha com fulgor contínuo; escure­cido, aliás, com umas poucas nuvens, por 490 anos, até o adven­to de Cristo. A linguagem do profeta deve ser interpretada assim; Dolorosas trevas vos envolveram por setenta anos; Deus, porém, secundou esse período por um de favor, de sétupla duração, por­que, ao iluminar vosso caminho e moderar vosso sofrimento, ele não deixou de provar ser-vos propício até o advento de Cristo. Esse advento era notoriamente a principal esperança dos santos que aguardavam o aparecimento do Redentor.

Agora entendemos por que o anjo não usa a computação de anos, ou meses, ou dias, mas semanas de anos, porque isso tem uma tácita referência à pena que o povo teve que suportar segun­do a profecia de Jeremias. Em contrapartida, isso revela a grande benignidade de Deus, visto ele manifestar consideração para com seu povo naquele período do assentamento da promessa de sal­vação em seu Cristo. S e ten ta sem anas, pois, diz ele, se consu­m a ra m sob re teu povo e sobre tu a san ta cidade. Não aprovo o ponto de vista de Jerônimo, que pensa ser esta um a alusão à re­jeição do povo; como se quisesse dizer que o povo é teu, e não meu. Sinto-me seguro em dizer que isso é totalmente contrário à intenção do profeta. Ele assevera que o povo e a cidade devem ser aqui chamados de Daniel [e não de Deus], porque Deus havia se divorciado de seu povo e rejeitado sua cidade. Mas, como eu disse antes. Deus queria ministrar alguma consolação a seu servo e a todos os santos e sustentá-los injetando-lhes essa confiança durante sua opressão provinda de seus inimigos. Pois Deus já havia fixado o tempo de enviar o Redentor. Diz-se que o povo e a cidade pertencem a Daniel porque, como dissemos antes, o pro­feta estava ansioso pela com um segurança de sua nação, bem

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como pela restauração da cidade e do templo. Por último, o anjo confirma sua expressão prévia - Deus ouviu a oração de seu ser­vo, e promulgou a profecia de futura redenção. A sentença que vem a seguir convence os judeus de corromperem propositada­mente as palavras e a intenção de Daniel, porque o anjo diz: com ­ple tou o tem po d e p ô r fim à perversidade, p a ra la c ra r os pe­cados e p a ra ex p ia r a in iqüidade. Deduzimos desta sentença os sentimentos de compaixão de Deus por seu povo depois que pas­saram essas setenta semanas. Com que propósito Deus determi­nou esse tem po? Seguramente para obstar o pecado, curar a perversidade e expiar a iniqüidade. Observamos que não há con­tinuação do castigo aqui, como os judeus futilmente imaginam; porque pensam de Deus como sendo sempre hostil a seu povo, e reconhecem um sinal da mais grave ofensa na total destruição do templo. O profeta, ou, melhor, o anjo nos dá visão totalmente oposta do caso, explicando como Deus queria terminar e encer­rar seu pecado e expiar sua iniqüidade. Em seguida ele acrescen­ta: p a ra tra z e r em ju s tiça eterna . Primeiramente percebemos quão jubilosa mensagem vem a lume concernente à reconcilia­ção do povo com Deus; e, em seguida, algo é prometido, muito melhor e mais excelente do que qualquer coisa que fosse conce­dido sob a lei, e mesmo sob os florescentes tempos dos judeus sob Davi e Salomão. O anjo aqui encoraja os fiéis a esperar algo melhor que o que experimentaram seus pais, a quem Deus adota­ra. H á um tipo de contraste entre as expiações sob a lei e esta que o anjo anuncia, e também entre o perdão aqui prometido e aquele que Deus sempre deu a seu antigo povo; e há também o mesmo contraste entre a justiça eterna e aquela que floresceu sob a lei.

Em seguida ele acrescenta: P a ra se lar a visão e a profecia. Aqui o verbo ‘selar’ pode ser tomado em dois sentidos. Ou que o advento de Cristo sancionaria tudo quanto fora anteriormente predito - e a metáfora implicitará isso sobejamente ou pode­mos tomá-lo diversamente, a saber: a visão será selada, e assim

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[9.24] DANIEL

finalmente ele concluiu que todas as profecias cessariam. Barbi- nel pensa que o mesmo realça uma grande obscuridade aqui, afir­mando que de modo algum o mesmo está em harmonia com o caráter de Deus, ao privar sua Igreja da extraordinária bênção da profecia. Aquele cego homem, porém, nem mesmo compreende a força da profecia, porque não compreende nada sobre Cristo. Sabemos que a lei é distinta do evangelho por esta peculiaridade: Antigamente tiveram um longo curso de profecia segundo a lin­guagem do Apóstolo [Hb 1.1 ]. Antigamente Deus falou de várias maneiras, pelos profetas; nestes últimos dias, porém, ele falou por meio de seu Filho Unigénito. Além disso, a lei e os profetas duraram até João, diz Cristo [Mt 11.11-13; Lc 16.16; 7.28], Bar- binel não percebe essa diferença, e, como eu disse antes, eie crê que havia descoberto um argumento contra nós, asseverando que o dom de profecia não pode ser removido. E, realmente, não de­vemos ser privados desse dom, a menos que Deus quisesse au­mentar o privilégio do novo povo, porque o m enor no reino do céu é superior em privilégio a todos os profetas, como Cristo declara em outro lugar.

Em seguida ele acrescenta: p a ra que o San to dos Santos seja ungido. Aqui, uma vez mais, temos um tácito contraste en­tre as unções da lei e a últim a que ocorreria. O que se oferece aqui a todos os santos não é só consolação, visto que Deus estava para mitigar o castigo que havia infligido, mas porque desejava derramar a plenitude de toda sua mercê sobre a nova Igreja. Por­que, como eu já disse, os judeus não podem escapar desta com ­paração, por parte do anjo, entre o estado da Igreja sob o pacto legal e o novo; porque os últimos privilégios haveriam de ser muitíssimo melhores, mais excelentes e mais desejáveis do que aqueles extintos na antiga Igreja desde seus primórdios. O res­tante virá amanhã.

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49a EXPOSIÇÃO

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que através de nossa extrema cegueira não podemos vislumbrar o pleno dia, fa z com que sejamos iluminados por teu Espírito. Faz com que tiremos proveito de todas tuas profeci­as por meio das quais quiseste guiar-nos a teu Unigénito Filho; queo abracemos com f é verdadeira e infalível e permaneçamos obedien­tes a ele como nosso Líder e Guia; e depois que tivermos completado nossa jornada através deste mundo, que por fim cheguemos àquele repouso celestial que obtiveste para nós através do sangue de teu mesmo Filho. Amém.

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50i ag.xposição

/^ a m e ç a m o s ontem a mostrar quão estultamente os rabinos cor- \ s rompem, com seus comentários, esta profecia da qual ora estamos tratando; pois presumem que o anjo estivesse tratando da ira contínua de Deus, a qual o povo hebreu havia em parte experimentado e a qual teria ainda uma longa duração e seria em extremo severa, de acordo com sua suposição. Já explicamos quão agudamente isso se opõe às palavras de Daniel, o qual aqui pro­mete a volta do favor divino para seu povo, e então mostra o objetivo e intenção do Espírito Santo. Por meio desta consola­ção, ele queria aliviar o sofrimento do santo homem, o qual, como já vimos, estava extremamente ansioso acerca do estado da Igre­ja , o qual, percebia ele, era então muitíssimo deplorável. A frase sobre a qual já comentamos confirma o mesmo ponto, pois o anjo promete, com a chegada do período predito: se porá um fim ao pecado e à perversidade e à iniqüidade, porque a iniqüidade será então expiada. Em seguida ele promete a chegada da justiça eterna; e, por fim, acrescenta: sela a visão e a profecia, ju n ta ­mente com a unção espiritual do Santo dos Santos. Cada um de­les admite ser esta uma promessa de uma bênção ainda mais ex­celente do que tudo quanto existia sob a lei. N enhum a outra in­terpretação é possível ser aceita além daquela que se refere ao advento de Cristo e à total restauração da Igreja de Deus. Se- guem-se outros argumentos. Pois o profeta acrescenta o que eu reiterarei uma vez mais, porque deverei explicar mais plenam en­te o que agora só casualmente examino por alto.

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50* EXPOSIÇÃO [9.25]

25 Sabe, pois, c entende que desde a saí- 25 C ognosces ergo e t in te lliges,114 ab exi-da da ordem para restaurar e edificar Je- tu verbi de reditu ,u5et de aedificanda Je­rusalém , até ao M essias, o Príncipe, ha- rosolym a usque ad C hristum ducem heb-verá sete sem anas, e sessenta e duas se- dom adas septem , e t hebdom adas sexagin-m anas; as ruas se r io constru ídas nova- ta duas, e t reducetur,"6 e re -sd ificab itu r mente, bem com o o m uro, porém em tem - p latea,’l7et m urus, idque in angustia tem ­pos angustiantes. porum.

Daniel aqui reitera as divisões de tempo já mencionadas. Ele afirmara previamente setenta semanas; agora, porém, faz duas porções: um a de sete semanas e a outra de sessenta e duas. Há claramente outra razão pela qual ele desejava dividir em duas partes o número usado pelo anjo. Os judeus rejeitam sete sema­nas desde o governo de Herodes ao de Vespasiano. Confesso que isso está de acordo com o método judaico de se expressar; em vez de sessenta e duas e sete, eles dirão sete e sessenta e duas; pondo assim o número menor primeiro. Os anos do homem (diz Moisés) serão de vinte e um cento (Gn 6.3); os gregos e os lati­nos diriam: serão de cento e vinte anos. Confesso que esta seria a fraseologia comum entre os hebreus. Aqui, porém, o profeta não está relacionando a continuação de qualquer série de anos, como se estivesse tratando da vida de um único homem, mas ele pri­meiro marca o espaço de sete semanas e então elim ina outro pe­ríodo de sessenta e duas semanas. As sete semanas precedem claramente na ordem do tempo, do contrário não poderia expli­car suficientemente o significado pleno do anjo.

Agora trataremos do sentido em que a saída do édito deve ser entendida. Entrementes, não se pode negar que o anjo pronuncia isto em relação ao édito que fora promulgado acerca do regresso do povo e a restauração da cidade. Portanto, seria tolice aplicá-lo a um período em que a cidade não fora ainda restaurada e ne­nhum decreto como tal tinha sido pronunciado ou publicado. Antes

114 Ou, sabe e entende.115 Ou. concernente ao regresso do povo. "* Ou, o povo regressará.111 Um plano, à luz da palavra difundir.

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[9.25] DANIEL

de tudo, porém, devemos tratar do que o anjo diz: até que Cristo, o Messias. Há quem deseja dar a este substantivo singular um sentido plural, como se o Cristo do Senhor significasse seus sa­cerdotes; enquanto outros o atribuem a Zorobabel; e outros, a Josué. Mas, com bastante clareza, o anjo fala de Cristo, de quem tanto os reis quanto os sacerdotes sob a lei eram tipo e figura. Alguns ainda pensam na dignidade de Cristo reduzida pelo uso da palavra T33,/iegi<i, ‘príncipe’ ou ‘líder’, como se em sua lide­rança ali não existisse nem realeza, nem cetro, nem diadema. Essa observação é totalmente destituída de razão; pois Davi é cham a­do líder do povo; e Ezequias, quando usava um diadema e estava assentado em seu trono, é também chamado líder [2Sm 5.2; 2Rs 20.5], Sem dúvida, a palavra aqui implica excelência superior. Todos os reis eram governantes sobre o povo de Deus, e os sacer­dotes eram dotados com um certo grau de honra e autoridade. Aqui, pois, o anjo denomina Cristo de líder, visto que ele se so­bressaía a todos os demais, sejam reis ou sacerdotes. E se o leitor não for capcioso, este contraste será prontamente admitido.

Em seguida ele acrescenta: O povo reg ressa rá ou será t r a ­zido de volta, e as ru as serão constru ídas, bem com o o m uro , e isso tam bém num estreito lim ite de tem po. Deduz-se outro argumento, a saber: depois de sessenta e duas semanas, Cristo será subtraído. Os judeus entendem que isso se refere a Agripa, o qual certamente foi eliminado quando Augusto conquistou o im­pério. Nisso, eles simplesmente buscam o que dizer; porque to­dos os leitores equilibrados e sensatos ficarão perfeitamente sa­tisfeitos, percebendo que eles [os judeus] agem sem critério ou sem pudor, e vomitam tudo quanto entra em seus pensamentos. Ficam totalmente satisfeitos quando acham algo plausível para dizer. Aquele sofista, Barbinel, de quem já fiz menção prévia, pensa que Agripa tem todo o direito de ser chamado um Cristo, como foi Ciro; ele admite sua deserção para os romanos, mas declara que isso se deu contra sua vontade, como se o mesmo

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fosse ainda um adorador de Deus. Ainda que, com toda evidên­cia, ele fosse um apóstata, todavia ele (Barbinelj o trata [Agripa] como de forma alguma sendo pior que todos os demais, e por essa razão ele deseja que o mesmo seja chamado o Cristo. Mas, antes de tudo, sabemos que Agripa não foi legitimamente rei, e que sua tirania era diretamente contrária ao oráculo de Jacó, vis­to que o cetro tinha de sair da tribo de Judá [Gn 49.10]. Ele não pode de form a alguma ser chamado Cristo, ainda quando tivesse suplantado a todos os anjos em sabedoria, em virtude, em poder e em tudo mais. Aqui se trata do governo legítimo do povo, e isso não se enquadra na pessoa de Agripa. Daí serem os argumentos judaicos totalmente fúteis. Em seguida, acrescenta-se outra afir­mação: ele co n firm ará o pacto com m uitos. Os judeus tentam enfumaçar a força desta expressão de um modo muitíssimo deso­nesto e sem o menor laivo de pudor. Desviam-no para Vespasia- no e Tito. Vespasiano fora enviado por Nero à Síria e ao Oriente. E perfeitamente procedente que, com o desejo de evitar um seve­ro morticínio de seus soldados, ele tentasse todas as condições de paz e atraísse os judeus por meio de uma sedução muito plausí­vel a entregar-se a ele em vez de usar a força como um recurso extremo e final. Na verdade, Vespasiano insistiu muito com os judeus a aceitarem a paz; e Tito, depois de seu pai, passou para a Itália e seguiu a mesma política; isso, porém, porventura confir­ma o pacto? Quando o anjo de Deus está tratando de eventos da m áxim a importância e envolvendo toda a condição da Igreja, sua explicação é um motejo de quem o atribui aos líderes romanos que desejavam tomar parte no tratado com o povo. Tentaram ou obter a posse de todo o império do Oriente por meio de um pacto, ou determinar o uso da força máxima para capturar a cidade. Tal explicação, pois, é totalmente absurda. É plenamente claro que os judeus são não só destituídos de toda razão quando explicam esta passagem relacionando-a com a ira contínua de Deus e excluindo seu favor e reconciliação com o povo; porém são totalmente de­

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sonestos e pronunciam palavras despudoradas e lançam obscuri­dade sobre a passagem. Ao mesmo tempo, sua vaidade é expos­ta, visto que não têm justificativa alguma para seus comentários.

E agora passo aos escritores antigos. Jerônimo, como afirmei sucintamente ontem, recita várias opiniões. Antes, porém, de dis­cuti-las individualmente, preciso responder sucintamente à calú­nia daquele rabino impuro e obstinado, Barbinel. Com o intuito de privar os cristãos de toda confiança e autoridade, ele levanta objeções acerca de suas diferenças mútuas; como se as diferen­ças entre os homens não exercidas suficientemente nas Escritu­ras pudessem sublevar inteiramente a verdade. Suponha-se, por exemplo, que eu estivesse argumentando contra ele sobre a au­sência de consenso entre os próprios judeus. Se alguém se sente solícito em coletar suas diferentes opiniões, então que se alegre como vencedor neste aspecto, porquanto não existe nenhum acor­do entre os rabinos. Ao contrário, ele não realça a plena extensão das diferenças que ocorrem entre os cristãos, porque estou dis­posto a conceder-lhe muito mais do que ele requer. Pois esse ri- xento era ignorante em todas as coisas, e denuncia somente petu­lância e loquacidade. Seus livros são sem dúvida muito plausí­veis entre os judeus que buscam nulidade. Ele, porém, equipara a nós autoridades como Africanus e Nicolaus de Lyra, Burgensis e um certo mestre chamado Remond. Ele ignora nomes como Eu- sébio,118 Orígenes, Tertuliano, Hipólito, Apolinário, Jerônimo. Agostinho e outros escritores afins. Aqui percebemos quão im­pudente é esse palrador, que ousa tartamudear sobre questões que se acham totalmente além de seu conhecimento. Mas, como eu já declarei, admito haver muitas diferenças entre os cristãos. Eusé- bio mesmo concorda com os judeus ao atribuir a palavra ‘Cristo’ aos sacerdotes, e quando o anjo fala da morte de Cristo, ele pensa que o que se pretende aqui é a morte de Aristóbulo, o qual foi assassinado. M as isso é completa estultícia. M as você dirá: Ele é

"* Ver este versículo citado em Eusébio, História Eclesiástica, livro I. cap. 6.

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cristão. Sim, porém caiu em ignorância e erro. A opinião de Afri- canus é mais digna de menção, porém o tempo de modo algum concorda com o de Dario, filho de Histaspes, como se mostrará mais adiante. Ele erra novamente em outro capítulo, tomando os anos como sendo lunares, como faz Lyranus. Sem dúvida, isso não passa de um a de suas cavilações; não achando seus próprios anos adequados, ele pensava que se podia inventar todo e qual­quer número, usando os anos intercalados juntamente com os 490. Pois antes que o ano fosse ajustado ao curso do sol, os antigos costumavam computar doze meses lunares, e em seguida acres­centavam outro. O número total de anos podia ser inventado se­gundo o impulso de sua imaginação, se acrescentarmos aqueles períodos adicionais aos anos aqui enumerados pelo profeta. Eu, porém, rejeito isso sumariamente. Hipólito também erra em ou­tra direção; pois considera as sete semanas como sendo o lapso de tempo entre a morte e a ressurreição de Cristo, e nisso eie concorda com os judeus. Apolinário também se equivoca, pois crê que devemos começar com o nascimento de Cristo e então estender a profecia até o final do mundo. Também Eusébio, que contende com ele em determinada passagem, tom a a últim a se­mana como equivalente a todo o período que deve transcorrer até o fim do mundo chegar. Portanto, estou disposto a reconhecer como falsas todas essas interpretações, e todavia não admito que a verdade de Deus tenha falhado.

Como, pois, chegaremos a uma conclusão certa? Não é sufi­ciente refutar a ignorância de outros, a menos que possamos pôr a verdade em evidência, e provar isso com razões claras e satisfa­tórias. Estou disposto a poupar os nomes de comentaristas ainda vivos e os daqueles que morreram durante nossos próprios dias, todavia devo dizer o que provará ser útil a meus leitores; entre­mentes, falarei cautelosamente, porque nutro um forte desejo de manter silêncio sobre todos os pontos, exceto aqueles que são úteis e necessários ao conhecimento de todos. Se porventura al-

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guém nutre o gosto e tempo necessário para inquirir diligente­mente sobre o tempo aqui mencionado, Cecolampadius correta e prudentemente nos admoesta, dizendo que devemos fazer a com ­putação partindo do princípio do mundo. Pois até a ruína do tem ­plo e a destruição da cidade, podemos certamente juntar o núm e­ro de anos que transcorreram desde a criação do mundo; aqui não há lugar a erro. A série é bastante clara nas Escrituras. Depois disso, porém, deixamos o leitor buscar outras fontes de informa­ção, visto que a computação da destruição do templo é descone­xa e imprecisa, segundo Eusébio e outros. E assim, desde o re­gresso do povo até o advento de Cristo, descobrir-se-á que trans­correram 540 anos. E assim vemos quão impossível é satisfazer a leitores sensatos, se simplesmente considerarmos os anos da for­m a como procede Cecolampadius.119 Philip Melancthon, que ex­cele em gênio e erudição, e felizmente é versado nos estudos da história, faz um a dupla computação. Ele começa um plano a par­tir do segundo ano de Ciro, ou, seja, desde o começo da m onar­quia persa; porém considera as setenta semanas como que term i­nando com a morte de Augusto, que é o período do nascimento de Cristo. Quando chega ao batismo de Cristo, ele acrescenta outro método de contagem, que começa nos dias de Dario; e quan­to ao édito aqui mencionado, ele o entende como tendo sido pro­mulgado por Dario, filho de Hystaspes, visto que a construção do templo foi interrompida por cerca de sessenta e seis anos. Quan­to a esta computação, não posso de modo algum aprová-la. E todavia confesso a impossibilidade de achar-se alguma outra ex­plicação além do que o anjo diz; até Cristo, o Líder, a menos que seja uma referência ao batismo de Cristo.

Esses dois pontos, pois, segundo meu critério, devem ser mantidos como fixos: primeiro, as setentas semanas começam

1,9 Veja-se sua Cronologia completa em seu comentário sobre este versículo, lib. ii. p. 99. Edil. foi. 1567. O editor se aventura a recomendar aos leitores de Danie! de Calvino que compulsem os judiciosos comentários de Cecolampadius. S3o dignos de mais atenção do que têm recebido em nosso idioma.

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com a monarquia persa, visto que um livre regresso foi então concedido ao povo; e, segundo, não terminaram ainda no batis­mo de Cristo, quando publicamente começou sua obra de satisfa­ção dos requerimentos do ofício que lhe fora designado por seu Pai. Mas devemos agora ver como isso concordará com o núme­ro de anos. Confesso aqui a existência de tão grandes diferenças entre os escritores antigos, que temos de usar conjetura, porque não temos nenhuma explicação definida a apresentar, a qual pos­samos realçar como sendo a única que satisfaz. Estou ciente das várias calúnias daqueles que desejam tom ar todas as coisas obs­curas e derramar trevas espessas sobre a mais radiante luz. Pois os profanos e cépticos logo lançam mão disso, pois assim que percebem alguma diferença de opinião, desejam demonstrar a incerteza de todo nosso ensino. Portanto, se percebem qualquer diferença nos pontos de vista dos vários intérpretes, mesmo nas questões da menor importância, concluem que todas as coisas se acham envoltas nas mais densas trevas. Sua perversidade, po­rém, não deve atemorizar-nos, porque, quando algumas discre- pâncias ocorrem nas narrativas dos historiadores profanos, não concluímos que toda a história não passa de fábula. Tomemos a história grega: quão infinitamente os gregos diferem entre si! Se alguém fizer disso um pretexto para rejeitar a todos eles, e asse­verar que todas suas narrativas são falsas, não deveríamos con­denar tal pessoa como sendo singularmente impudente? Ora, se as Escrituras não são em si mesmas contraditórias, senão que manifestam ligeiras diversidades ou em anos ou em lugares, ou­saríamos declará-las como sendo inteiramente destituídas de cré­dito? Temos ciência da existência de algumas diferenças em to­das as histórias, e todavia isso não as faz perder sua autoridade; são ainda citadas e ainda se deposita confiança nelas.

Com respeito à presente passagem, confesso-me incapaz de negar a existência de muita controvérsia concernente a esses anos entre todos os escritores gregos e latinos. Isso é certo, porém,

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entrementes, sepultaríamos tudo o que já passou e concebería­mos um mundo interrompido em seu curso? Depois que Ciro transferiu para os persas o poder do Oriente, alguns reis o teriam evidentemente seguido, ainda que não seja evidente que o fize­ram, e os escritores também diferem acerca do período e do rei­nado de cada um deles, e todavia, quanto aos pontos principais, há concordância geral. Porque alguns enumeram cerca de 200 anos; outros, 125 anos; e alguns se põem numa posição intermé­dia, com putando 140 anos. Qualquer que seja a afirmação corre­ta, houve claramente alguma sucessão dos reis persas, e muitos anos adicionais transcorreram antes que Alexandre, o macedô- nio, conquistasse a monarquia de todo o Oriente. Isso é plena­mente claro. Ora, desde a morte de Alexandre, o número de anos é bem conhecido. Philip Melancthon cita um a passagem de Pto- lomeu, na qual perfazem 292; e muitos testemunhos podem ser aduzidos, os quais confirmam aquele período de tempo. Se al­guém objeta, dizendo que o número de anos pode ser considera­do um período de cinco anos, como comumente o fazem os ro­manos, ou pelas olimpíadas dos gregos, confesso que a com puta­ção com base nas olimpíadas remove toda fonte de erro. Os gre­gos usavam grande diligência em minudências e eram ávidos por glória. Não podemos dizer o mesmo do império persa, pois so­mos incapazes de, acuradamente, determinar sob que olimpíada viveu cada rei, bem como o ano em que começou seu reinado e em qual ele morreu. Seja qual for a conclusão que adotemos, minha afirmação prévia é perfeitamente procedente, ou, seja, se os homens capciosos se rebelam e entenebrecem a clara luz da história, todavia não podem torcer esta passagem de seu real signi­ficado, porque podemos deduzir tanto dos historiadores gregos quanto dos latinos toda a soma dos tempos que se adequarão cla­ramente a esta profecia de Daniel. Quem quer que compare todo o testemunho histórico com o desejo de aprender e, sem qualquer contenção, cuidadosamente numerar os anos, ele descobrirá ser

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impossível expressá-los melhor que pela declaração do anjo - setenta semanas. Por exemplo, qualquer pessoa estudiosa, reves­tida de agudeza, experiência e habilidade, descobre tudo quanto foi escrito em grego e latim, e distingue o testemunho de cada escritor sob temas distintos, e em seguida compara os escritores juntos e determina a credibilidade de cada um e quão longe cada um está de um a autoridade adequada e clássica, então descobrirá o mesmo resultado quanto ao que aqui apresenta o profeta. Isso deve ser-nos suficiente. Mas, entrementes, devemos lembrar-nos de como nossa ignorância em ana principalmente desse costume persa: qualquer um que empreendesse um a expedição de guerra, designava a seu filho como seu vice-rei. Assim, Cambyses rei­nou, segundo alguns, vinte anos; e, segundo outros, apenas sete. Porque a coroa foi posta em sua cabeça durante a vida de seu pai. Além disso, houve outra razão. O povo do Oriente é notoriamen­te muito insatisfeito, facilmente excitável e sempre querendo uma mudança de governo. Daí, as contendas sempre explodiam entre os parentes próximos, das quais temos narrativas amplas nas obras de Heródoto. Faço menção dele entre outros por ser o fato sufici­entemente notório. Quando os pais viam o perigo de seus filhos naturalmente destruírem uns aos outros, geralmente de um deles criavam um rei; e se desejavam preferir o irmão mais jovem ao mais velho, chamavam-no ‘rei’ com a anuência de seu concílio. Daí, os anos de seu reinado se tomavam intermináveis, sem qual­quer possibilidade de um método fixo para computá-los. E as­sim, digo eu, mesmo que as olimpíadas nunca nos confundissem, isso não pode ser dito do império persa. Enquanto admitimos m uita diversidade e contradição associadas a grande obscurida­de, ainda assim devemos sempre voltar ao mesmo ponto: pode- se chegar a alguma conclusão que concorde com esta predição do profeta. Portanto, não computarei esses anos um a um, mas apenas admoestarei a cada um dos leitores que pese para si mes­mo, segundo sua capacidade, o que lê na história. E assim todos

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os homens sensatos e moderados aquiescerão quando percebe­rem quão bem esta profecia de Daniel se harmoniza com o teste­munho dos escritores profanos, em seu escopo geral, segundo minhas explicações prévias.

Declarei que devemos começar com a monarquia de Ciro; isso deve ser claramente deduzido das palavras do anjo, e especi­almente da divisão das semanas. Pois ele diz: As sete sem anas têm referência à rep aração d a cidade e do tem plo. Nenhum sofisma pode de forma alguma privar a expressão do profeta de sua verdadeira força: desde a saída do éd ito concernen te ao regresso do povo e à reconstrução d a cidade, até o M essias, o L íder, se rão sete sem anas; e en tão , sessenta e duas sem anas. Em seguida ele acrescenta: D epois das sessenta e duas sem a­nas, C risto se rá elim inado. Quando, pois, ele põe as sete sem a­nas em primeiro lugar, e claramente expressa sua computação começando desse período da promulgação do édito, a que pode­mos atribuir essas sete semanas senão aos tempos da monarquia de Ciro e a de Dario, filho de Hystaspes? Isso é evidente à luz da história dos Macabeus tanto quanto do testemunho do evangelis­ta João; e podemos chegar à mesma conclusão à luz das profeci­as de Ageu e Zacarias, quando a construção do templo foi inter­rompida durante quarenta e seis anos. Ciro permitiu ao povo edi­ficar o templo; os fundamentos foram lançados quando Ciro saiu a guerrear contra a Cítia; os judeus foram então compelidos a cessar seus trabalhos, e seu sucessor, Cambyses, se mostrou hos­til para com esse povo. Daí os judeus questionarem: Este templo esteve em construção quarenta e seis anos, e tu o edificarás em três dias? [Jo 2.20], Empenhavam-se em m ofar de Cristo por ele haver dito: Destruirei este templo e o reconstruirei em três dias, visto ser esta então uma expressão comum, e havia sido usada por seus pais, isto é, que o templo abrangera esse período em sua construção. Se o leitor acrescentar os três anos durante os quais os fundamentos foram lançados, teremos então quarenta e nove

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anos, ou sete semanas. Como o evento claramente mostra a com- pletação do que o anjo havia predito a Daniel, quem quiser torcer o significado da passagem simplesmente exibe sua própria audá­cia. E não devemos rejeitar toda e qualquer interpretação quando a mesma obscurece um significado tão claro e óbvio? Devemos em seguida ter em mente o que eu disse previamente. Na prele- ção de ontem dissemos que as setentas semanas foram intercep­tadas pelo povo; o anjo havia também declarado a saída do édito, pelo qual Daniel havia orado. Que necessidade, pois, existe para tratar uma certeza como duvidosa? e por que questionar o ponto quando Deus pronuncia que o começo desse período seria o tér­mino dos setenta anos proclamados por Jeremias? E plenamente certo que esses setenta anos e setenta semanas devam ser manti­dos juntos. Portanto, visto que esses períodos são contínuos, seja quem for que atribua esta passagem ao tempo de Dario Hystas- pes, antes de tudo quebra os elos da cadeia de todos os eventos que se acham conectados, e então perverte todo o espírito da pas­sagem; pois, como vimos ontem, o objetivo do anjo era ministrar consolação às mentes atribuladas. Por setenta anos o povo fora miseravelmente afligido no exílio, e pareciam totalmente aban­donados, como se Deus não mais reconhecesse esses filhos de Abraão como sendo seu povo e herança. Como essa era a inten­ção do Todo-Poderoso, é plenamente evidente que o com eço das setenta semanas não pode ser interpretado de outra forma, senão em referência à m onarquia de Ciro. Este é o primeiro ponto.

É preciso que agora nos volvamos às sessenta e duas sem a­nas; e se não posso satisfazer a todos, todavia me contentarei com grande simplicidade e confiarei que todos os discípulos de Cristo, íntegros e humildes, facilmente se aquiescerão nesta ex­posição. Se computarmos os anos desde o reinado de Dario até o batismo de Cristo, descobrir-se-á que transcorreram sessenta e duas semanas ou mais ou menos. Como previamente observei, não nutro escrúpulo por uns poucos dias ou meses, nem mesmo

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por um ano; pois quão grande é a perversidade que nos faria re­je itar o que os historiadores relatam só porque nem todos concor­dem com a diferença de um ano! Seja qual for a conclusão corre­ta, acharemos cerca de 480 anos entre o tempo de Dario e a morte de Cristo. Daí, faz-se necessário prolongar esses anos até o batis­mo de Cristo, porque, quando o anjo fala da última semana, cla­ramente afirma: O pacto se rá confirm ado naquele tem po, e então o M essias será elim inado. Como isso deveria ser feito na últim a semana, devemos necessariamente estender o tempo até a pregação do evangelho. E por essa razão Cristo é chamado ‘Lí­der’, porque, em sua concepção, ele se destinava a ser Rei do céu e da terra, ainda que não tenha iniciado seu reinado enquanto não fosse publicamente ordenado Mestre e Redentor de seu povo. A palavra ‘L íder’ está implícita como um nome antes que o ofício fosse assumido; como se anjo dissesse: o fim das setenta sema­nas ocorrerá quando Cristo publicamente assumir o ofício de Rei sobre seu povo, congregando-os daquela miserável e horrível dis­persão sob a qual tinham sido por tanto tempo humilhados. Dei­xaremos o restante para amanhã.

ORAÇÃO

Deus T odo-P oderoso, v is to que teus senos, antes da manifestação da glória de teu unigénito Filho, foram sustentados por esses orácu­los que até então não tinham sido concretizados, concede que neste dia possamos aprender a depositar nossa confiança em nosso Se­nhor, que tão claramente se nos revelou por meio do evangelho. Que nos mantenhamos tão firm es e constantes na fé desse evangelho, que jamais sejamos assenhoreados pelas perturbações e tumultos deste mundo. Que prossigamos sempre no curso de tua santa vocação, até que, porfim , sejamos libertados de todas as oposições e alcancemos aquele bem-aventurado repouso que está preparado para nós no céu, peto mesmo nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

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í j / l a preleção de ontem expus meus pontos de vista concer- V t nentes às setenta semanas. Agora me volvo às palavras do profeta, sobre as quais toquei bem de leve. Ele primeiramente diz: Setenta semanas transcorreram sobre teu povo e sobre a cidade santa. Com essas palavras, ele primeiramente insinua que os israelitas estariam sob o cuidado e proteção de Deus até a che­gada de Cristo; e, em seguida, que Cristo viria antes da comple- tação das setenta semanas. O anjo anuncia estes dois pontos; as- segurar-lhes do fiel e perpétuo cumprimento do pacto divino e sustentá-los no meio de todas suas ansiedades e angústias. Agora vem a lume uma notável passagem concernente ao ofício de Cristo. O anjo prediz o que eles esperavam de Cristo. Antes de tudo, ele anuncia a remissão de pecados; pois ele realça isso pelo uso de um a forma de expressão: proibir ou encerrar a perversidade, se­lar a pecaminosidade e expiar a iniqüidade. Não nos surpreende encontrar o anjo usando muitas frases numa questão de tanta im ­portância. Tal repetição na linguagem parece-nos supérflua; to­davia o conhecimento da salvação é compreendido sob este tópi­co. Somos assim informados como Deus se reconcilia conosco mediante o perdão gratuito, e essa é a razão por que o anjo insiste sobre este tema pelo uso de tantas palavras [Lc 1.77]. Mas deve­mos lembrar o que eu disse anteontem - há um tácito contraste entre a remissão ora oferecida a nós sob o evangelho e aquela previamente oferecida aos pais sob a lei. Desde a criação do mundo ninguém pôde invocar a Deus com uma mente tranqüila e com

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firme confiança, a não ser pela confiança na esperança de per­dão. Pois sabemos que a porta da misericórdia está fechada con­tra todos nós pelo fato de estarmos merecidamente debaixo da ira divina. Daí, a menos que a doutrina da remissão gratuita dos pe­cados se manifeste, não desfrutaremos a liberdade de invocar a Deus, e toda esperança de salvação seria ao mesmo tempo extin­ta. Segue-se, pois, que os pais sob a lei desfrutavam esse mesmo benefício que ora desfrutamos, a saber: uma persuasão definida de ser-lhes Deus propício, bem como de perdoar-lhes suas trans­gressões. Qual, pois, é o significado da frase: Cristo, em seu ad­vento, selará os pecados e expiará as iniqüidades? Aqui, como eu disse, é mostrada um a diferença entre a condição da antiga e da nova Igreja. Os pais deveras tinham esperança de remissão de seus pecados, porém sua condição era inferior à nossa em dois aspectos. Seu ensino não era tão claro como o nosso, nem suas promessas tão plenas e estáveis. Excedemo-los também em ou­tro aspecto. Deus nos dá testemunho de ser ele nosso Pai, e assim fugimos para ele em plena liberdade e destemor; e, em adição a esse fato. Cristo já nos reconciliou com o Pai por intermédio de seu sangue [Rm 8.15; Gl 4.6]. Assim somos superiores a eles, não só em nossa instrução, mas em efeito e completude, visto que neste dia Deus não só nos promete o perdão de nossos peca­dos, mas testifica e afirma que os apagou totalmente e foram abo­lidos pelo sacrifício de Cristo, seu Filho. Essa diferença é franca­mente denotada pelo anjo quando ele diz: Os pecados serão en­cerrados e selados, e as iniqüidades também serão expiadas na vinda de Cristo. Daí declararmos previamente como algo fora prometido, o qual é melhor do que aquilo que os pais experimen­taram antes da manifestação de Cristo.

Aqui percebemos o sentido no qual Cristo encerrou os peca­dos, selou a perversidade e expiou a iniqüidade. Pois ele não só introduziu a doutrina do perdão gratuito e prometeu que Deus seria invocado pelo povo mediante seu desejo de perdoar a ini-

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qüidade deles, mas realmente realizou tudo quanto se fazia ne­cessário para reconciliar os homens com Deus. Ele derramou seu sangue pelo qual apagou nossos pecados; ele também se ofere­ceu como vítim a expiatória e satisfez a Deus pelo sacrifício de sua morte, ao ponto de absolver-nos totalmente da culpa. Moisés usa com freqüência a palavra KDfl, cheta , ao falar de sacrifícios; o anjo, porém, aqui nos ensina figuradamente como todas as ex­piações sob a lei eram meramente figura, e nada mais senão som­bra do futuro; porque, se de fato os pecados tivessem sido expia­dos, não teria havido nenhuma necessidade da vinda de Cristo. Como, pois, a expiação foi suspensa até a manifestação de Cris­to, nunca houve qualquer expiação legítima sob a lei, mas que todas suas cerimônias não passaram de representações envoltas em sombras. Ele em seguida acrescenta: Para trazer a justiça eterna. Essa justiça depende da expiação. Pois, como poderia Deus considerar justos os fiéis, ou imputar-lhes a justiça, como Paulo nos informa, a menos que cobrisse e sepultasse seus peca­dos, ou os expurgasse no sangue de Cristo? [Rm 4.11]. Deus mesmo não foi apaziguado pelo sacrifício de seu Filho? Estas frases, pois, devem estar enfeixadas: as iniqüidades serão expi­adas e a justiça eterna, manifestamente apresentada. Nenhu­ma justiça jam ais se verá num homem mortal, a menos que ele a obtenha de Cristo; e se usarmos grande precisão de expressão, a justiça não pode existir em nós a não ser através do perdão gra­tuito que logramos no sacrifício de Cristo. Entrementes, a Escri­tura propositadamente enfeixa remissão de pecados e justiça, como também Paulo diz: Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação [Rm 4.25]. Sua morte logrou satisfação para nós a fim de não mais permanecermos culpados nem mais estarmos sujeitos à condenação de morte eterna, e en­tão por meio de sua ressurreição logrou justiça e assim adquiriu para nós a vida eterna. A razão por que o profeta aqui trata a justiça como perpétua ou “das eras” é esta: os pais sob a lei eram

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compelidos a agradar a Deus por meio de sacrifícios diários. Não teria havido necessidade de repetir os sacrifícios, segundo o após­tolo nos admoesta, se houvesse alguma virtude inerente num único sacrifício para aplacar o Todo-Poderoso [Hb 10.1], Visto, porém, que todos os ritos da lei tendiam para o mesmo propósito de prefi­gurar a Cristo, como a vítima única e perpétua, para reconciliar os homens com Deus, foi mister que se oferecessem sacrifícios diari­amente. Daí, como dissemos antes, essas satisfações eram eviden­temente insuficientes para lograr justiça. Portanto, somente Cristo pôde trazer justiça eterna - somente sua morte foi suficiente para expiar todas as transgressões. Porque Cristo sofreu não só com o intuito de oferecer satisfação por nossos pecados, mas também para pôr diante de nós sua própria morte, na qual aquiescêssemos com ele. Daí, essa justiça eterna depende do duradouro efeito da morte de Cristo, visto que seu sangue jorrou na presença de Deus, e en­quanto somos diariamente purgados e purificados de nossa conta­minação, Deus é também diariamente apaziguado em nosso favor. Observamos, pois, como a justiça não foi plenamente revelada sob a lei, senão que é agora posta diante de nós sob o evangelho.

Então prossegue: Sela a visão e a profecia. Esta sentença poderia ter dois sentidos, porque, como eu disse atrás, Cristo se­lou todas as visões e as profecias, para que todas elas fossem o sim e o amém nele, como diz Paulo [2Co 1.20]. Como, pois, as promessas de Deus foram todas satisfeitas e cumpridas em Cris­to para a salvação dos fiéis, assim com propriedade o anjo decla­ra seu advento: Ele selará a visão e a profecia. Este é um sentido. O outro é que a visão será selada no sentido de sua cessação, como se o anjo dissesse: Cristo porá term o final às profecias, porque nossa posição espiritual difere daquela dos pais. Pois Deus antigamente falou de muitas maneiras sobre a forma como a Igreja haveria de enfrentar um a variedade de situações e circunstâncias conflitantes. Mas quando Cristo se manifestou, chegamos ao ponto máximo dos tempos proféticos. D aí seu advento ser chamado a

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plenitude dos tempos [G14.4; Hb 1.1]; e em outra parte Paulo diz que chegamos aos fins dos tempos [IC o 10.11], visto estarmos esperando pela segunda vinda de Cristo, e não termos necessida­de de novas profecias como antigamente. Então todas as coisas eram muito obscuras, e Deus governava seu povo sob as escuras sombras de um nuvem. Nossa condição, em nossos dias, é dife­rente. Daí não haver necessidade de nos admirarmos ante o anún­cio do anjo; todas as visões e profecias serão seladas. Porque a lei e os profetas duraram até João, mas desse tempo para cá o reino de Deus começou a ser promulgado; ou, seja, Deus apare­ceu muito mais claramente do que outrora [Mt 11.13; Lc 16.16]. O próprio título visão implica algo obscuro e duvidoso. Mas ago­ra Cristo, o Sol da Justiça, brilhou sobre nós, e desfrutamos o brilho meridiano; a lei aparece apenas como uma vela no gover­no de nossa vida, porque Cristo nos indica em pleno esplendor o caminho da salvação. Sem dúvida, o anjo aqui queria que distin­guíssemos entre o ensino obscuro da lei, com suas figuras, e a luz pública do evangelho. Além disso, o título ‘profecia’ é tomado tanto para o ofício profético quanto para as predições enunciadas.

Em seguida, ele acrescenta: P a ra u n g ir o San to dos Santos. O anjo aqui faz alusão ao rito da consagração que era observada sob a lei; pois o tabernáculo, com seus apêndices, foi consagrado por meio de unção. Aqui se m ostra como a unção perfeita e ver­dadeiramente espiritual foi protelada até o advento de Cristo. Ele mesmo é apropriada e merecidamente chamado o Santo dos San­tos, ou o Tabernáculo de Deus, em virtude de seu corpo ser real­mente o templo da Deidade, e a santidade ter de ser buscada nele [Cl 2.9]. O profeta aqui nos lembra a unção do santuário sob a lei como sendo simplesmente uma figura; mas em Cristo temos a genuína exibição da realidade, em bora ele não fosse visivelmen­te ungido com óleo, e, sim, espiritualmente, quando o Espírito de Deus pousou sobre ele com todos seus dons. Por isso ele diz: Por causa deles é que eu me santifico [Jo 17.19].

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E agora prossegue: I \ i saberás e en tenderás, desde a saída d e u m a p a lav ra [ou decreto], p a ra o regresso do povo e a ed i­ficação de Jeru sa lém , a té C risto , o L íder, serão sete sem anas, e sessenta e duas sem anas, e o povo reg ressa rá [ou será trazido de volta], e as ru a s serão constru ídas, bem com o os m uros [ou valas], e isso em bem pouco espaço de tem po (pois é assim que eu ponho a cópula). Como já dissemos, divide-se o tempo que foi fixado de antemão para o perfeito estado da Igreja. Em primeiro lugar, ele põe sete semanas; e então acrescenta sessenta e duas semanas, e deixa uma, da qual falaremos mais adiante. Ele ime­diatamente explica por que separa as sete semanas do resto, tor­nando desnecessário qualquer outra tradução. Em seguida, quan­to à saída do édito, já declaramos quão inadmissível é qualquer interpretação exceto o primeiro decreto de Ciro, o qual permitiu que o povo livremente regressasse a seu país. Pois as sete sema­nas que perfazem quarenta e nove anos claramente provam esta asseveração. Desde o início da monarquia persa até o reinado de Dario filho de Hystaspes, é notória a hostilidade de todas as na­ções ao redor dos judeus, especialmente ao interromper a edifi­cação de seu templo e cidade. Embora o povo tivesse livre per­missão de regressar a seu país, todavia eram ali acossados pelas hostilidades, e eram quase induzidos queixar-se desse sinal do favor divino. Uma grande parte deles preferiu seu exílio anterior a um a vida de opressão e perplexidade gasta entre seus mais cru­éis inimigos. Essa é a razão por que o anjo os informa sobre as sete semanas transcorridas depois que o povo regressou, pois não deviam esperar gastar suas vidas em plena paz e construir sua cidade e o templo sem qualquer inconveniência; pois ele anuncia a ocorrência desse evento na estreiteza do tempo. Pela palavra pIX, tzok, ele não quer dizer ‘brevidade’, mas, antes, significa a natureza angustiante dos tempos, em decorrência das numerosas dificuldades que todos seus vizinhos trariam ao povo desafortu­nado. Valeu a pena apoiar os piedosos com essa admoestação prévia, para que seu desejo de construir o templo não desvane-

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cesse, ou se tomassem totalmente decepcionados sob o peso das aflições que teriam que suportar. Conhecemos quais as predições candentes que os profetas enunciavam concernentes ao feliz es­tado da Igreja depois de seu regresso; porém a realidade era bem diferente disso, e os fiéis poderiam ter sido totalmente domina­dos pelo desespero, a menos que o anjo soerguesse seu espírito com esta profecia. Assim percebemos a grande utilidade desta admoestação, e ao mesmo tempo pode ser aplicada a si mesmos como um exemplo prático. Embora a benignidade de Deus para conosco fosse maravilhosa, quando o puro evangelho emergiu dessas trevas medonhas nas quais ele estivera sepultado por tan­tas eras, todavia ainda experimentaremos o aflitivo aspecto das atividades. Não obstante, os ímpios incessante e furiosamente se opõem à Igreja envolta em miséria tanto pela espada quanto pela virulência de suas línguas. Os inimigos domésticos usam artes clandestinas em seus esquemas para subverterem nossa constru­ção; os perversos destroem toda ordem e interpõem muitos obs­táculos para obstruírem nosso progresso. Deus, porém, ainda de­seja, nestes dias, edificar seu templo espiritual em meio às ansie­dades dos tempos; os fiéis têm ainda que sustentar numa das mãos a colher de pedreiro e na outra a espada, segundo lemos no livro de Neemias [4.17], porque a construção da Igreja deve ainda con­tinuar associada a muitas controvérsias. Vamos em frente:

26 B depois das sessenta e duas sem anas 26 E t post hebdom adas sexaginta duasserá cortado o M essias, m as não p o r si e x c id en tu rC h ris tu s ,e tn ih ile rit,e tu rb e mm esm o; e o povo do príncipe que há de e t sanctuarium perdet populus ducis ve-v ir destru irá a c idade e o santuário; e seu n ien tis ,e t finis e ju scu m in u n d a tio n e erit,tim será com o um a inundação; e até o fim vel, in diluvio, e t ad finem belli definitioda guerra, desolações são determ inadas. desolationum .

Aqui Daniel trata das sessenta e duas semanas que transcor­reram entre o sexto ano de Dario e o batismo de Cristo, quando o evangelho começou a ser promulgado, mas ao mesmo tempo ele não negligencia as sete semanas das quais esteve falando. Porque elas compreendem o espaço de tempo que form a o intervalo en-

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tre a monarquia persa e o segundo édito que um a vez mais conce­dia liberdade ao povo depois da morte de Cambyses. Depois das sessenta e duas sem anas que sucederiam as sete anteriores, o M essias será co rtado , diz ele. Aqui o anjo prediz a morte de Cristo. Os judeus atribuem isto a Agripa, mas tal idéia, como já observamos, é totalmente frívola e néscia. Eusébio e outros o atribuem a Aristóbulo, mas isso é igualmente destituído de ra­zão. Portanto, o anjo fala do único Mediador, como no versículo anterior ele dissera: até [a vinda de] o Cristo, o Líder. A exten­são disto a todo o sacerdócio é tanto forçada quanto absurda. O anjo, ao contrário, tinha isto em mente: Cristo então se manifes­taria para empreender o governo de seu povo; ou, em outros ter­mos, até que o Messias aparecesse e começasse seu reinado. Já observamos acerca daqueles que errônea e infantilmente expli­cam o título ‘L íder’ como se fosse inferior em dignidade ao de rei. Como o anjo usara o título ‘Cristo’ no mesmo sentido de Mediador, assim ele o reitera nesta passagem no mesmo sentido. E, seguramente, como anteriormente tratara dessas marcas sin­gulares do favor divino, pelas quais a nova Igreja devia exceder à antiga, não podemos entender a passagem de outra form a senão em relação unicamente a Cristo, de quem os sacerdotes e reis sob a lei eram igualmente um tipo. O anjo, pois, aqui assevera que Cristo morreria, e ao mesmo tempo especifica o tipo de morte, dizendo que nada lhe restaria. Esta expressão breve pode ser tom ada em vários sentidos, todavia não hesito em tom ar o anjo como que dizendo: Cristo morreria de tal sorte que seria inteira­mente reduzido a nada. Há quem a explica assim: a cidade ou o povo será como se nada fosse para ele; significando: ele será di­vorciado do povo, e sua adoção cessará, pois sabemos que os judeus apostataram de tal sorte da genuína piedade que sua perfí­dia os fizera totalmente alienados de Deus, ao ponto de perderem o nome de Igreja. Mas isso é muito forçado. Outros pensam que significa que não seria nem hostil nem favorável. A inda outros.

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que nada restaria para ele no sentido de ser destituído de todo auxí­lio. Todavia, todos esses comentários me parecem um tanto frígi­dos. Não tenho dúvida de que o sentido genuíno é este: a morte de Cristo seria sem qualquer atrativo ou beleza, como diz Isaías [53.2]. Na verdade o anjo nos informa do caráter ignominioso da morte de Cristo, como se ele se desvanecesse da vista dos homens pela au­sência de beleza. Portanto, nada lhe restará, diz ele; e a razão ób­via é porque os homens o considerariam totalmente abolido.

Agora acrescenta: O líder do povo v indouro d e s tru irá a cidade e o san tuário . Aqui o anjo insere o que diz respeito ao fim do capítulo, visto que em seguida ele voltará a Cristo. Ele aqui menciona o que aconteceria na morte de Cristo, e proposita­damente interrompe a ordem da narrativa para mostrar que a im­piedade deles não escaparia à punição, visto que não só rejeita­ram o Cristo de Deus, mas o mataram e tudo fizeram para que sua memória fosse de todo apagada do mundo. E em bora o anjo fizesse referência especial somente aos fiéis, todavia requerer- se-ia que os incrédulos fossem admoestados para que ficassem sem justificativa. Estamos bem cientes da inércia e brutalidade desse povo, como exibido no ato de levar Cristo à morte; pois esse evento ocasionou um triunfo para os sacerdotes e todo o povo. Daí, esses pontos devem ser enfeixados. O anjo, porém, consultou os interesses dos fiéis, visto que seriam profundamen­te chocados com a morte de Cristo, à qual já fizemos alusão, e também com sua ignomínia e rejeição. Como este foi um método de sucumbir tão horrível na opinião da humanidade, a mente de todos os homens pios poderia ser totalmente dominada pela frus­tração, a menos que o anjo viesse para injetar-lhe ânimo. Daí ele propor um remédio eficaz: O líder do povo vindouro destruirá a cidade e o santuário ; como se quisesse dizer: não há razão para que os incrédulos se sintam bem e se gabem, porque Cristo foi reduzido a nada segundo o sentido camal; a vingança lhes so­brevirá instantaneamente; o líder do povo vindouro destruirá tanto

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a cidade quanto o santuário. Ele o chama um líder vindouro , para evitar que os incrédulos repousem seguros em sua própria vanglória, como se Deus não estendesse instantaneamente sua mão para vingar-se deles. Embora o exército romano que des­truiria a cidade e o santuário não surgisse imediatamente, todavia o profeta lhes assegura a chegada do líder com um exército que ocasionaria a destruição de ambos: a cidade e o santuário. Sem a m enor sombra de dúvida, ele aqui tem em mente que Deus infli­giria terrível vingança contra os judeus pelo assassinato de seu Cristo. Aquele sofista, Barbinel, ao sentir-se desejoso de refutar os cristãos, diz que transcorreram mais de duzentos anos entre a destruição do templo e a morte de Cristo. Quão ignorante era ele! M esmo que nos víssemos privados de toda confiança nos evan­gelistas e apóstolos, todavia os escritores profanos prontamente o convenceriam de estultícia. Tal, porém, é a barbaridade de sua nação, e tão enorme é sua obstinação, que não se envergonham de nada. No que nos diz respeito, deduzimos com suficiente cla­reza, da passagem, como o anjo fez breve menção da futura mor­tandade da cidade e da destruição do templo, para que os fiéis não se vissem esmagados com angústias em decorrência da m or­te de Cristo, e para que os incrédulos não se tom assem ainda mais empedernidos em face dessa ocorrência. A interpretação de alguns escritores acerca do povo do futuro líder, como se Tito quisesse poupar a maravilhosa cidade e preservá-la intocada, pa- rece-me por demais refinada. Tomo-o simplesmente como um líder que estava para vir com seu exército com o fim de destruir a cidade e subverter completamente o templo.

Em seguida ele acrescenta: seu fim será num dilúvio. Aqui o anjo remove toda esperança para os judeus, cuja obstinação poderia levá-los a esperar alguma vantagem em seu favor, pois já estamos cientes de sua grande estupidez quando em estado de desespero. Para que os fiéis não condescendessem nos mesmos sentimentos com os apóstatas e rebeldes, ele diz: O fim do líder.

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a saber, Tito, seria num dilúvio: significando: ele subverteria a cidade e a política nacional, e daria um fim sumário no sacerdó­cio e na raça, enquanto que todos os favores divinos ao mesmo tempo seriam subtraídos. Neste sentido, seu fim seria num dilú­vio. Finalmente, no fim d a g u e rra , u m a desolação m uitíssim o decisiva. A palavra flS~\Ul,nech-retzeth, “um a com pletação” di­ficilmente pode ser tomada de outra form a que não sejaum subs­tantivo. Segue um substantivo plural, mflüti), shemmoth, ‘deso­lações’ ou ‘devastações’; e tomado literalmente significa “ruína definitiva ou consumada”. Os gramáticos muito habilidosos ad­mitem que a primeira dessas palavras pode ser tomada como subs­tantivo para ‘térm ino’, como se o anjo dissesse: Ainda quando os judeus experimentem uma variedade de sucesso na batalha, e te­nham esperança de ser superiores a seus inimigos, de sair e proi­bir seus inimigos de entrarem na cidade ou, mais ainda, até m es­mo de repeli-los, todavia o fim da guerra resultará em total de­vastação, e sua destruição é claramente definida. Dois pontos, pois, devem ser notados aqui: primeiro, deve-se elim inar toda e qualquer esperança para os judeus, quando devem ser instruídos ser necessário que pereçam; e, segundo, um a razão é atribuída a isso, a saber: a determinação do Todo-Poderoso e seu decreto inviolável. Vamos em frente:

27 E e le confirm ará o pacto com m uitos po r um a sem ana; e na m etade da sem ana ele fa rá cessar o sacrifício e a oblação, e pelo transbordam ento das abom inações ele o fará um erm o, e isso até a consum a­ção, e o que e stá determ inado será derra­m ado sobre o assolador.

O anjo agora se volve a Cristo. Já explicamos por que ele fez

IBI Confirmará.111 Fará cessar.132 Ou. expansão, literalmente asa.1,3 Ou, entorpecerá, porque há quem o toma transitivamente.

27 Et roborabit130fa d u s m ultis, hebdom a- de una: et dim idia hebdom ade quiescere facie t121 sacrificium , et oblationem : e t su ­per ex tensionem l22abom inationum obs- tupesce t,l23e t ad finem , e t ad determ ina- tionem stillabit super stupentem .

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menção da matança futura: primeiro, para mostrar aos fiéis que não têm razão para permanecerem na corporação da nação em preferência a serem eliminados dela. E, em seguida, para preve­nir os incrédulos de nutrirem prazer com sua obstinação e seu desdém pelas inestimáveis bênçãos divinas, rejeitando a pessoa de Cristo. Assim esta sentença foi interposta com respeito ã de­vastação futura da cidade e do templo. O anjo agora prossegue seu discurso concernente a Cristo, dizendo: ele co n firm ará o tra ta d o com m uitos p o r um a sem ana. Esta sentença corres­ponde à primeira, na qual Cristo é chamado Líder. Cristo assu­miu sobre si o caráter de líder, ou assumiu o ofício régio, quando promulgou a graça de Deus. Esta é a confirmação do pacto do qual o anjo ora fala. Como já afirmamos, a expiação legal de outras cerimônias rituais que Deus se dignou conferir aos pais é contrastada com as bênçãos derivadas de Cristo; e agora deduzi­mos da frase a m esm a idéia: a confirmação do pacto. Sabemos quão infalível e estável era o pacto de Deus sob a lei; ele foi desde o princípio sempre veraz e fiel e consistente consigo mes­mo. No que diz respeito ao homem, porém, o pacto da lei era débil, como aprendemos de Jeremias. “Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei uma aliança nova com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porque eles invalidaram minha aliança apesar de eu os haver desposado, diz o Senhor” [Jr 31.31, 32], Assim o pacto divino é estabelecido conosco, porque já fomos reconciliados por meio da morte de Cristo; e ao mesmo tempo acrescenta-se o efei­to do Espírito Santo, porque Deus escreve sua lei em nossos co­rações; e assim seu pacto não é gravado em pedras, mas em nos­sos corações de cam e, segundo o ensino do profeta Ezequiel [11.19]. Agora, pois, entendemos por que o anjo diz: Cristo con­

firm ará o pacto por uma semana, e por que essa semana foi pos­ta, pela ordem, no fim. Nesta semana ele confirmará o pacto com muitos. Porém não posso concluir esta exposição hoje.

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ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que todos os tesouros de tua benevolência e indulgência foram tão liberalmente difundidos quando teu unigénito Filho apareceu, e nos são agora diariamente oferecidos através do evangelho, concede que não nos privemos de tão importantes bên­çãos em face de nossa ingratidão. Que abracemos teu Filho com fé genuína; e desfrutemos dos benefícios da redenção que ele granjeou para nós. Sendo purificados e purgados por seu sangue, sejamos aceitos diante de tua face e nos aventuremos, em plena e infalível confiança, a chamar-te de Pai. Que aprendamos a fu g ir para tua mercê e assistência em todas nossas misérias e tributações, a té que, por fim, nos reunamos naquele eterno descanso que adquiriste para nós através do sangue de teu unigénito Filho. Amém.

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wição

í j / l a últim a preleção explicamos como Cristo confirmou o ^ f L pacto com muitos durante a última sem ana; pois ele con­gregou os filhos de Deus de seu estado de dispersão, quando a devastação da Igreja assumiu um caráter extremamente terrível e miserável. Embora o evangelho não fosse instantaneamente pro­mulgado entre as nações estrangeiras, todavia somos corretamente informados que Cristo confirmou o pacto com muitos, visto que as nações foram diretamente chamadas à esperança da salvação [Mt 10.5]. Embora ele proibisse os discípulos de pregarem então o evangelho aos gentios ou aos samaritanos, contudo os instruiu dizendo que muitas ovelhas viviam dispersas pelo mundo fora, e que estava próximo o dia em que Deus construiria um só aprisco [Jo 10.16]. Isso se cumpriu após sua ressurreição. Durante sua vida terrena, ele começou a antecipar levemente a vocação dos gentios, e assim interpreto estas palavras do profeta: ele confir­mará o pacto com muitos. Pois tomo a palavra ‘m uitos’, aqui, D ^ l , rebim, comparativamente em referência aos gentios fiéis unidos aos judeus. É muitíssimo notório que o pacto divino este­ve depositado por um tipo de direito hereditário com os israelitas até que o mesmo favor se estendesse também aos gentios. Por­tanto diz-se que Cristo renovou o pacto de Deus não só com uma nação, mas em termos gerais com o mundo como um todo. Aliás, admito o uso da palavra muitos como sendo para todos, como no quinto capítulo da Epístola aos Romanos e em outras partes [v. 19], mas ali parece haver um contraste entre a Igreja antiga, in­

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crustada dentro de estreitas fronteiras, e a Igreja nova, a qual se estende ao mundo inteiro. Sabemos que muitos, outrora estran­geiros, têm sido chamados das regiões longínquas da terra por meio do evangelho, e assim reunidos aos judeus por meio de ali­ança, ao ponto de todos desfrutarem da mesma comunhão e to­dos reconhecidos como igualmente filhos de Deus.

O profeta agora adiciona: E le fa rá cessar o sacrifício e a oblação d u ran te m etade de um a sem ana. Devemos relacionar isso com o tempo da ressurreição. Pois enquanto Cristo atraves­sava o período de sua vida terrena, ele não pôs termo aos sacrifí­cios; mas depois de oferecer-se como vítima, então todos os ritos da lei chegaram ao termo final. Pelas palavras “sacrifício e obla­ção” o profeta aponta para todas as cerimônias, sendo um a parte expressa pelo todo; como se ele dissesse: depois que Cristo se ofereceu em sacrifício etemo, todas as cerimônias costumeiras da lei foram abolidas; pois de outra forma a morte de Cristo teria sido supérflua, caso ele não pusesse fim a todas as velhas som­bras da lei. Embora os sacrifícios continuassem por muitos anos depois da morte de Cristo, todavia não podemos mais chamá-los ‘legítimos’, pois não se pode apresentar nenhuma razão para que os sacrifícios da lei ainda agradassem a Deus, exceto sua referên­cia àquele modelo celestial que M oisés viu no monte [Ex 25.40]. Daí, depois que Cristo se manifestou e expiou todos os pecados do mundo, fez-se necessário que todos os sacrifícios cessassem [Hb 8.5]. Essa é a intenção do profeta quando diz que Cristo

faria cessar os sacrifícios durante metade de uma semana. Ele abarca dois pontos ao mesmo tempo: primeiro, Cristo real e efi­cientemente pôs fim aos sacrifícios da lei; e, segundo, ele provou isso ao mundo através da pregação do evangelho por seus após­tolos. Observamos, pois, o sentido no qual Deus testificou por meio de seu profeta a cessação dos sacrifícios depois da ressur­reição de Cristo. O véu do templo então se rasgou em duas par­tes; foi proclamada a verdadeira liberdade; os fiéis, pois, podiam

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[9.27] DANIEL

sentir-se homens plenamente amadurecidos, e não mais sujeitos àquele governo infantil ao qual se sujeitaram sob a lei.

Agora vem a lume a segunda sentença do versículo: já a le­mos antes, mas agora a repetimos para renovar a memória. E sob re a extensão ou expansão das abom inações ele cau sa rá espanto , ou estupefação; e isso até a consum ação e d e te rm in a ­ção, ele se d e rra m a rá sobre o assolador. Alguns traduzem: ela será derramada ou destilada. Discutiremos as palavras mais adi­ante. A passagem é obscura, e poderia ser traduzida numa varie­dade de formas, e por conseguinte os intérpretes diferem muito entre si. Alguns tomam ^]D, knaph, “um a asa” , por um ‘queru­bim ’; então mudam os números do singular para o plural, e crê­em que o profeta está falando de querubim alado. Isso propicia aos que adotam tal tradução um duplo método de explicá-la. Al­guns dizem que a abominação estará acima das asas, ou, seja, a arca do concerto, porque o templo foi profanado e a abominação foi tão desastrosa que destruiu até mesmo o próprio querubim. Outros o tom a no sentido causal - as abominações serão por cau­sa do querubim. Eu, porém, ignoro essas sutilezas, um a vez que não me comunicam qualquer solidez. Outros seguem também a versão grega, como citada por Cristo no capítulo 24 de M ateus e outros lugares. Embora Cristo pareça antes fazer menção da m es­m a abominação, não insistirei neste ponto; apenas farei observa­ção sobre a tradução de um a palavra. Aqueles que traduzem “as abominações da desolação" tratam as palavras de Daniel de for­m a demasiadamente displicente, como se não houvesse nenhu­m a dependência gramatical de uma palavra com a outra, ou, tec­nicamente falando, nenhum estado de regime. A opinião preferí­vel é aquela que considera a palavra ‘asa’ no sentido de extrem i­dade ou extensão. Outros, ainda, tratam ‘extrem o’ como se sig­nificasse um estado de desespero; como se o anjo dissesse: por conta da extremidade das abominações, enquanto males se acu­mulam sobre males, sem fim, até que os problemas chegaram ao

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52* EXPOSIÇÃO [9.27]

ponto extremo de desespero. Outros explicam ainda “a asa das abominações” mais simplesmente pela expansão propriamente dita, como se o anjo declarasse que o templo seria publicamente profanado, e a impureza seria muito mais evidente.

Os intérpretes diferem uma vez mais sobre as palavras ÜÜÍ1?D, mesmen, e DDÜ, sem-em, geralmente traduzidas ‘tom ar-se deso­lado’ e ‘desolação’. Há quem tom a a prim eira transitivamente; e outros, como neutra; a segunda significando destruir e devastar, e também admirar e ficar atônito. Penso que essas duas palavras devem ser usadas no mesmo sentido; com se o profeta dissesse que todos ficarão atônitos na mesma extensão das abominações; quando perceberem o culto do templo sendo varrido por um dilú­vio, então ficarão profundamente atônitos. Em seguida ele acres­centa a calamidade que começou quando Deus mostrou que a contaminação do templo se destilaria ou se derram aria sobre aquele que se sentisse atônito. Discutiremos a própria ocorrência para capacitar-nos a entender melhor o sentido das palavras. Não hesito declarar que o intuito de Deus era subtrair dos judeus toda esperança de restauração, os quais, bem o sabemos, foram cega­dos por um a insensata confiança, pressupondo que a presença de Deus se confinaria ao templo visível. Enquanto eram assim ina­balavelmente convencidos da impossibilidade de Deus jam ais afastar-se deles, seriam privados de sua falsa confiança e não mais se iludiriam por essas promissoras e ilusórias esperanças. E assim a contaminação temporária do templo foi mostrada por Ezequiel [10.18], Pois quando os profetas proclamavam incessan­temente a aproximação dos inimigos com o fim de destruir a am­bos, cidade e templo, a maioria do povo escarnecia deles. Em sua opinião, isso subverteria toda sua confiança em Deus, como se considerasse falsa sua palavra, ao prometer-lhes descanso perpé­tuo no Monte Sião [SI 132.14], Aqui Ezequiel relata sua visão de Deus assentado no templo - ele, pois, desapareceu e o templo foi privado de toda sua glória. Mas isso foi apenas temporariamente.

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[9.27] DANIEL

Agora, porém, passamos a tratar da profanação do templo, o que deve provar se eu posso usar a frase eterno e irreparável. Sem a mais leve dúvida, esta profecia cumpriu-se quando a cida­de foi capturada e subvertida e o templo totalmente destruído por Tito, filho de Vespasiano. Isso explica satisfatoriamente os acon­tecimentos aqui preditos. Alguns consideram a palavra ‘abom i­nação’ como sendo usada metaforicamente e para significar a subversão da cidade; mas isso me parece muito forçado. Outros a explicam como indicando a estátua de Calígula erigida no tem­plo; e outros, ainda, como indicativo da bandeira de Tibério, o qual ordenou que as águias [romanas] fossem colocadas no piná­culo do templo. Eu, porém, a interpreto simplesmente como in­dicativo da profanação que ocorreu depois que o evangelho co­meçou a ser promulgado e do castigo infligido sobre os judeus quando perceberam que seu templo ficou sujeito às mais grossei­ras formas de desconsagração, visto que não se dispuseram a ad­mitir o unigénito Filho de Deus como sua verdadeira glória. Ou­tros, ainda, como sendo as doutrinas e superstições ímpias, bem como os perversivos erros com que os sacerdotes se imbuíram. Eu, porém, penso que a passagem marca a mudança geral que ocorreu diretamente depois da ressurreição de Cristo, quando a obstinada impiedade do povo foi plenamente detectada. Foram, pois, convocados ao arrependimento; ainda que tivessem se esfor­çado em extinguir toda esperança de salvação radicada em Cristo, todavia Deus estendeu-lhes a mão e testou se sua perversidade era ou não passível de cura. Depois que a graça de Cristo foi obstina­damente rejeitada, então seguiu-se a extensão das abominações; ou, seja, Deus subverteu o templo em total ruína, e fez com que sua santidade e glória se desvanecessem totalmente. Embora essa vingança não ocorresse imediatamente depois de expirar a últi­m a semana, todavia Deus vingou-se suficientemente de seu ím­pio desprezo por seu evangelho; e, além disso, ele m ostra como não mais carecia de algum templo visível, um a vez que agora ele dedicou a si o mundo inteiro, desde o oriente até o ocidente.

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52* EXPOSIÇÃO [9.27]

Agora volto uma vez mais à explanação das palavras em se­parado. D iz o anjo: Sobre a extensão das abominações, espanto ou espantoso; pois alguns acreditam ser a palavra um adjetivo, e outros, um substantivo; mas o significado é este: todos ficariam estupefatos, ou atônitos. Eu não faço nenhum a objeção ao signi­ficado já indicado, ou, seja, traduzir a palavra ‘asa’ por ‘extre­m o’; pois o sentido então será: quando as abominações chega­rem a seu auge ou extremo; e o sentido será o mesmo se usarmos a palavra ‘expansão’. A intenção de Deus é mostrar-nos a situa­ção extensa da contaminação - para cima, para baixo, de todos os lados, haviam obscurecido e sepultado a glória do templo. Daí, por conta do extremo ou expansão das abominações haveriam de fica r atônitos, pois todos ficariam admirados. O anjo parece contrapor tal estupor à soberba; pois os judeus estavam total­mente persuadidos de Deus estar estritamente em obrigação para com eles e da impossibilidade de serem eles separados de seu próprio templo onde Deus fixara sua eterna habitação. Ele prediz a aproximação desse espanto em lugar de sua letárgica segurança.

Em seguida ele acrescenta: E até a consum ação. n^D, keleh, significando ‘fim ’ e ‘perfeição’, tanto quanto ‘destruição’. Tomo a expressão aqui como equivalente a consumação ou destruição. Inundará ao ponto de causar perplexidade. Já observei que as palavras implicam esse assombro; matança, ou algo similar, deve ser subentendido antes do verbo. Não há dúvida alguma sobre a intenção do profeta. Ele diz que essa matança seria como um aguaceiro contínuo, consumindo todo o povo. Ele fala do povo como que pasmo ante suas calamidades e privado de toda e qual­quer esperança de se escapar delas; pois a matança jorrará [como água] sobre o povo estarrecido. Entrementes, ele m ostra quão loucamente os judeus se deixaram dominar pela soberba e quão ilusoriamente se enganavam supondo que o Todo-Poderoso se comprometera protegê-los permanentemente, a eles e a seu tem­plo visível. A m atança jo r r a r á até a consum ação significa até

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[10.1] DANIEL

que todo o povo perecesse. Ele acrescenta ainda outro substanti­vo: a té a um determ inado fim. Já desvendamos o significado deste substantivo. Aqui o profeta explica a causa daquela eterna distinção que o Onipotente determinara e decretara ser irrevogável.

(Z a p ítu ú o 1 0Agora vem o capítulo dez, o qual Daniel introduz como um

prefácio aos capítulos onze e doze. Ele relata a maneira como foi afetado, quando a últim a visão surgiu ante seus olhos. Isso ele sucintamente explica como sendo um a referência aos aconteci­mentos que estavam para ocorrer até o advento de Cristo; e então ele o estende ao dia final da ressurreição. Deus previamente pre­dissera a seu profeta a futura condição da Igreja desde o regresso de Babilônia até o advento de Cristo; no capítulo onze, porém, ele mais distinta e claramente aponta com o dedo para cada um dos acontecimentos, como perceberemos à medida que nossos comentários avançam. Neste capítulo, Daniel nos assegura que as profecias que ele estava para discutir são dignas de uma atenção mais que a ordinária; quando o anjo apareceu, ele foi imediata­mente afetado com dor e tristeza; então enfrentou um momento de perplexidade, e em seguida foi dominado pelo secreto instinto do Espírito; ele se assemelhava a um homem morto, até que fosse restaurado paulatinamente pelo anjo de Deus. Observaremos esses pontos à medida que avançarmos. Em primeiro lugar, ele diz:

I N o terceiro ano de C iro, rei da Pérsia. 1 Anno tertio C yri reg is Persarum serm ofoi rev elad a um a co isa a D aniel, cu jo revelatus fuií D anieü. cujus nom en Beit-nom e e ra Beltessazar: e a palavra era ver- sazar, et veritas serm o,1« e( tem pus m ag-dadeira, porém o tem po designado era n u m .'“ e t intellexit serm onem , e t im elli-longo: e ele entendeu a palavra, e teve gentia ei fuit in visione,discernim ento da visão.

1M Ou. seja, a própria palavra era muito verdadeira.111 Ou, seja. embora o tempo de seu cumprimerno fosse longo.

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52* EXPOSIÇÃO [10.1]

Observamos que o profeta de modo algum está contente com o método usual de discurso, com o propósito de cham ar a aten­ção dos homens piedosos e de assegurar-lhes quão dignas de nota especial são as profecias que vêm em seguida. Ele observa o tem­po, o terceiro ano do rei Ciro, quando os judeus foram então proi­bidos por um novo édito de construir seu templo, em bora lhes fosse previamente concedida liberdade para fazê-lo. Diz ele: “um a p a lav ra” se lhe fez conhecer, e acrescenta: a p a lav ra e ra ver­d ad e ira , em bora o tempo fosse longo. O tempo será tratado mais extensamente no próximo versículo. Ao dizer: uma palavra se lhe manifestou, sua intenção é distinguir esta profecia das outras, quando ela não lhe fora oferecida por meio de sonho nem por meio de visão. Ele usa a palavra HNID, merah, uma ‘visão’, no fim deste versículo, mas não vejo por que o substantivo ‘palavra’ deva ser tomado num sentido tão restrito. Os intérpretes, além disso, buscam um a razão por que ele menciona seu próprio nome como Beltessazar. Há quem pensa estar ele celebrando alguma honra a que fora soerguido; outros o tratam como que enaltecen­do a superioridade de suas habilidades, como o nome o implica: descido do céu. Enquanto outros apresentam várias conjeturas. Não hesito em afirmar que o desejo de Daniel era criar um m o­mento que ilustrasse sua vocação entre os medos, persas e cal­deus. Mui provavelmente ele ali fosse geralmente chamado Bel­tessazar, e que o nome Daniel estivesse quase sepultado no olvi­do. e assim ele desejava testificar não ser o mesmo estranho ao povo de Deus, em bora experimentasse o fato de um nome estran­geiro lhe ser imposto; pois já vimos a impossibilidade de evitá- lo. Portanto, penso que o profeta não tinha outra razão senão tor­nar esta profecia notória por todas as regiões nas quais ele era bem conhecido sob o nome de Beltessazar. Além disso, ele dese­java testificar a seus compatrícios que não queria ser totalmente eliminado da Igreja por ser chamado Beltessazar pelos caldeus; pois ele era sempre o mesmo; e ainda que banido de seu país, ele

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[10.1] DANIEL

era revestido com o Espírito de profecia, como já vimos previa­mente. Como o nome Daniel era quase desconhecido na Caldéia, ele desejava fazer conhecida a existência de ambos seus nomes.

Vamos em frente: E a palavra é verdadeira. Daniel aqui realça a infalibilidade da profecia, como se quisesse dizer: Nada ponho diante de ti, senão o que é firme e estável, e cujo real cum ­primento os fiéis devem confiadamente esperar. A palavra é ver­dadeira ., diz ele, significando que não havia lugar a dúvidas quanto a suas afirmações, pois ele fora divinamente instruído sobre acon­tecimentos que seriam cumpridos em seu próprio tempo. Enten­do o que segue neste sentido: embora o tempo seja longo. Alguns dos rabinos tomam tzeba, pelas hostes angelicais, o que é totalmente absurdo neste lugar. A palavra significa ‘exército’, bem como um tempo designado, mas a explicação que impõem à passagem não pode lograr êxito. A partícula ‘e \ segundo penso, deve aqui ser tomada adeversativamente, no sentido de ‘em bo­ra’. Assim o profeta proclama nossa necessidade de uma mente tranqüila e alma paciente, até que Deus realmente complete e concretize o que verbalmente anunciou. Esse sentimento deve estender-se a todas as profecias. Sabemos quão ardentes são as disposições dos homens e quão precipitadamente se deixam ar­rebatar por seus próprios desejos. Somos compelidos, pois, a re­frear nossa impetuosidade, caso desejemos fazer progresso na escola de Deus, e devemos admitir este princípio geral: Se uma promessa tardar, continuemos a esperar por ela; pois ela segura­mente virá e não delongará [Hc 2.3]. Aqui Daniel afirma, em um sentido especial, que o tempo será longo. Isso deve refrear os fiéis de lançar-se de ponta cabeça em pressa tresloucada. Devem controlar seus sentimentos e permanecer tranqüilos até que che­gue a plena maturidade do tempo.

Em seguida, ele acrescenta: Ele entendeu a visão. Com esta afirmação ele confirma a profecia que está para explicar, e assim nos assegura que não está enunciando nada de perplexivo nem de

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52* EXPOSIÇÃO [10.2, 3]

obscuro. Ele também induz todos os piedosos a esperarem pelo exercício da m esm a compreensão que ele mesmo havia atingido, como se quisesse dizer: Sei o que Deus queria; ele me explicou, por meio de seu anjo, vários acontecimentos que agora apresen­tarei em sua própria ordem: que cada um examine essas profeci­as atenta e reverentemente, e que Deus lhe conceda o mesmo dom do discernimento e o guie a um conhecimento definido. A informação com unicada pelo profeta pertence a todos os piedo­sos, para estancar sua indolência e seu desespero. No primeiro relance, este ensino pode parecer muito obscuro, porém devem buscar no Senhor aquela luz de manifestação que ele se dignou conceder ao próprio profeta. Vamos em frente:

2 N aqueles dias eu, D aniel, pranteei por 2 D iebus illis ego Daniel dedi m e luctuitrês sem anas com pletas. tribus hebdom adibus dierum .3 N ão com i pão apetecível, não levei a 3 P an em delic ia rum l2Snon com edi: e t carom inha boca nem carne nem vinho, nem e t v inum non intravit in os m eum : e t un- m e ungi absolutam ente, até que se cum - guendo non fui unctus donec im p le ts sunt priram todas as três sem anas. tres hebdom ades dierum .

Deduzimos desta passagem por que o anjo apareceu ao profe­ta no terceiro ano de Ciro. Diz ele: E u estava, en tão , n a m ais p ro fu n d a tristeza. E qual foi a causa disso? Sabemos que na­quele período houve uma interrupção da obra de reconstrução do templo e da cidade. Ciro se pusera a uma distância; deixara a Ásia M enor e fora empreender guerra com os citas. Seu filho Cambyses foi corrompido por seus palacianos e proibiu os ju ­deus de prosseguirem com a reconstrução de sua cidade e seu templo. A liberdade do povo poderia então parecer infrutífera. Pois Deus prometera aos judeus em linguagem candente um re­gresso a seu país com seus estandartes desfraldados. Além disso, conhecemos a esplêndida linguagem dos profetas no tocante à glória do segundo templo [ls 52.12; Ag 2.9; e outros lugares]. Ao se virem privados de toda e qualquer oportunidade para a re­

'* “Delicado"; literalmente, "de desejos".

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110.2, 3] DANIEL

construção de seu templo, o que os judeus poderiam concluir se­não que haviam sido enganados depois de regressarem a seu país, e que Deus fizera um a exibição de expectativas frustrantes que se converteram em mera pedra de tropeço e decepção? Esta foi a causa da tristeza e angústia que oprimia o santo profeta. Agora entendemos por que ele faz menção do terceiro ano de Ciro, quan­do as circunstâncias daquele período, ainda em nossos dias, real­çam a razão de sua abstinência de todos os manjares.

Diz ele: Estive em aflição p o r trê s sem anas de dias. Os hebreus amiúde usam a frase semanas ou tempos de dias para um período completo. Mui provavelmente, Daniel usa a palavra ‘dias’ aqui para coibir equívocos que pudessem facilmente ocorrer em decorrência de recentemente falar tanto em semanas de anos. A distinção é assim mais claramente marcante entre as setenta se­manas de anos previamente explicadas e estas três semanas de dias aqui mencionadas. E o anjo parece ter se alongado proposi­tadamente na completação dessas três semanas, visto que esse era o terceiro ano do reinado do rei Ciro. Diz ele: não com i pão delicado e m e abstive de carne e vinho, implicando sua prática de juntar jejum e pranto. O santo profeta é aqui representado como que usando livremente carne em outras refeições enquanto a Igreja de Deus permanecia em estado de tranqüilidade; mas quando ron­dava o perigo, para que os poucos que regressaram ao lar não diminuíssem e muitos estivessem ainda sofrendo em Babilônia as graves calamidades a que estavam sujeitos durante seu exílio dos inimigos vizinhos, então o profeta abstinha de todos os m an­jares. N o início deste livro, ele declarou seu contentamento e o de seus companheiros em comer pão, legumes e água em vez de carne e bebida. Essa declaração não contraria a presente passa­gem. Não há necessidade de fugir a essa declaração, a qual admi­te que um homem idoso use vinho, o qual ele jam ais tocara em sua juventude e na flor de sua idade. Este comentário é por de­mais frígido. Já mostramos como no início de seu exílio a única

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52a EXPOSIÇÃO [10.2, 3]

razão para a abstenção do profeta de manjares palacianos era o desejo de manter-se livre de toda corrupção. Pois qual era o obje­tivo da perspicácia do rei em ordenar que Daniel e seus com pa­nheiros fossem tratados assim deliciosa e luxuosamente? Seu intuito era que esquecessem sua nação gradativamente e adotas­sem os hábitos dos caldeus e se deixassem desviar, por tais sedu­ções, da observância da lei, do culto devido a Deus e dos exercí­cios da piedade. Quando Daniel percebeu a astuta maneira em que ele e seus companheiros eram tratados, então solicitou que fossem alimentados com legumes e recusou-se provar o vinho do rei e desprezou todas suas guloseimas. Portanto, sua razão con­cernia às exigências dos tempos, como então realcei bem exten­samente. Entrementes, não carece que nos hesitemos supondo que, depois de dar esta prova de sua constância e de escapar de tais armadilhas do diabo e do monarca caldeu, ele passou a viver de forma mais espontânea do que frugalmente, e passou a fazer uso de pão, de carne e de vinho mais excelentes que antes. Esta passagem, pois, embora assevere a abstinência de carne e de vi­nho por parte do profeta, não implica necessariamente um jejum real. O método de vida de Daniel era claramente segundo a práti­ca comum dos caldeus, e de forma alguma implica a rejeição de vinho, ou carne, ou viandas de qualquer tipo. Ao dizer: não comi pão delicado, esse era um símbolo de dor e pranto, com absti­nência de carne e vinho. O objetivo de Daniel ao rejeitar pão e vinho delicados durante essas três semanas era não meramente a promoção da temperança, mas para que pudesse suplicemente implorar ao Todo-Poderoso que não permitisse a sua Igreja a rei­teração daqueles sofrimentos sob os quais ela havia previamente labutado. Mas não posso aqui tratar mais extensamente do obje­tivo e uso do jejum. Já fiz isso em outra parte; ainda que o quises­se fazer, não teria tempo agora. Amanhã, talvez, direi umas pou­cas palavras sobre o tema, e então prosseguirei com o restante de minhas observações.

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DANIEL

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que puseste diante de nós tão notável exem­plo em teu santo profeta, a quem adornaste de tantas maneiras para que ele lutasse até sua idade extrema com várias e quase inumerá­veis provações, e contudo nunca se deixou abater mentalmente, faz com que sejamos revestidos com a mesma infatigável fortaleza. Faz- nos prosseguir no curso de nossa santa vocação sem o mais leve abatimento em meio a tudo quanto vier a suceder-nos. Quando vir­mos tua Igreja submersa pelas ruínas e seus inimigos tramando de­sesperadamente sua destruição, que busquemos constantemente aque­la liberdade que prometeste desde os tempos antigos. Que lutemos com coragem inquebrantável até que, por fim, nos desvencilhemos de nossa guerra e nos reunamos naquele bem-aventurado descanso que, bem sabemos, fo i preparado para nós no céu por Cristo nosso Senhor. Amém.

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53a

fexposição

/£ 7 )n tem declaramos a razão por que Daniel se absteve de car- ne e vinho durante três semanas. Foi o sofrimento e a con­

dição deprimente da Igreja ante a proibição aos judeus de cons­truir seu templo. Já declaramos os pontos de vista falazes daque­les que acreditam fosse ele sempre abstêmio desde a flor de sua idade. Embora vivesse de pão e legumes, isso foi apenas com o propósito de permanecer puro sem qualquer propensão para os hábitos dos caldeus, visto que o desígnio do rei era subtraí-lo, bem como a seus companheiros, do povo de Deus, como se ori­ginariamente procedessem da Caldéia. Portanto, essa foi um a ra­zão apenas temporária. Agora, porém, ele declara: não provei pão delicado, ou, seja, feito de flor de farinha; e não provei nem vinho nem carne , durante o tempo em que foi impedida a cons­trução do templo. É mister que notemos diligentemente esse fato; pois muitos celebram o jejum como se ele fosse a principal parte do culto divino. Pensam nele como um ato de obediência ineren­temente aprazível a Deus. M as isso é um erro grosseiro, visto que o jejum, em si mesmo, deve ser tratado como um a questão sem importância e indiferente. Ele não merece nenhum enalteci- mento, exceto em referência a seu objetivo. Ora, os objetivos do jejum são vários; o principal deles é este: capacitar o fiel a devo­tamente aplacar a ira de Deus com o solene testemunho de seu arrependimento e estimular uns aos outros a um fervor mais in­tenso em suas orações. As orações diárias e ordinárias não reque­rem jejum ; mas quando uma grande necessidade nos oprime, esse

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[10.2, 3] DANIEL

exercício é adicionado à guisa de auxílio, visando a aumentar a vigilância e fervor de nossas mentes em seu modo de apresentar a oração. Por essa razão as Escrituras amiúde conectam jejum com dor, e Daniel aqui segue a prática usual. Percebemos, pois, a razão de rejeitar ele todas as delícias de com ida e bebida, através de seu desejo de evitar totalmente todos os obstáculos e tornar-se mais atento em suas orações. Agora toco de leve na questão do jejum , porque não posso deter-me em passagens casuais como estas. Devemos notar, contudo, quão tola e absurdamente o je ­jum é observado nestes dias entre os papistas, os quais crêem que já cumpriram esse dever comendo apenas um a vez ao dia e abs- tendo-se de cam e. A norma do jejum entre os papistas consiste em evitar cam e e não participar da ceia ou jantar. O jejum real, porém, requer algo bem mais distinto que isso, a saber: perfeita abstinência de toda e qualquer iguaria. Pois Daniel estende este jejum até mesmo ao pão. Diz ele: não provei vinho, significando que ele se absteve de todo vinho. Então, quanto à palavra ‘carne’, o que ele tem em mente não é só bois, vitelos, cordeiros, galinhas ou aves em geral, mas todo alimento, com exceção do pão, está incluído sob o termo cam e. Pois Daniel não se divertia infantil­mente com Deus, como fazem os papistas em nossos dias, os quais comem sem qualquer escrúpulo religioso de todas as me­lhores e exóticas viandas, enquanto que evitam carne. Isso vem a lume mais claramente da afirmação: não comi pão delicado, ou, seja, feito de flor de farinha ou do melhor produto do trigo. Ele se contentava com o simples pão para a satisfação de suas necessi­dades. Isso prova sobejamente a superstição daqueles que distin­guem entre carne, ovos e peixe. Ora, o jejum consiste nisto: a imposição de um freio nas luxúrias humanas, comendo apenas frugal e levemente o que é absolutamente necessário e conten- tando-se com o pão comum e água. Agora discernimos com o o jejum, nestae em passagens semelhantes, não é tomado por aquela temperança que Deus nos recomenda ao longo de todo o curso de nossa vida. Os fiéis devem ser habitualmente equilibrados, e por

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53* EXPOSIÇÃO [10.4]

meio da frugalidade observar um jejum contínuo; não devem entregar-se a com ida e bebida imoderadamente, bem como a há­bitos exuberantes, a fim de não debilitar a mente e o corpo com tais indulgências. Como um sinal de tristeza e um exercício de humildade, os fiéis podem impor a si a lei do jejum além de seus hábitos ordinários de sobriedade, quando sentirem algum sinal da ira de Deus e desejarem estimular em sua alma o fervor na oração, segundo nossas afirmações anteriores, e confessar-se cul­pados na presença do mundo inteiro e perante o tribunal de Deus. Tal era a intenção de Davi em não permitir-se provar o pão deli­cado, nem beber vinho, nem comer carne. Vamos em frente:

4 E no d ia v in te e quatro do prim eiro m ês. 4 D ie v icessim a quarta m ensis prim i, ego eu e stav aàm arg em d o g ran d e rio Hidekel. fui super ripam fluvii m gni. nem pe Hi-

d ekcl.117

Daniel então narra a aceitação de suas orações, porque o anjo apareceu e o instruiu sobre a futura condição da Igreja. Sem a mais leve dúvida, o jejum já descrito foi um a preparação para a oração, como já afirmamos antes, e como podemos deduzir de muitas passagens da Escritura, especialmente da afirmação de Cristo, onde ele diz que os demônios não podem ser expulsos senão por meio de oração e jejum [Mt 17.21]. Daniel, pois, não se absteve de todo alimento e vinho e faustos com vistas a produ­zir alguma obediência a Deus, mas para testificar de sua própria tristeza; então sentiu-se ansioso em estimular-se à oração e por essa marca de humildade preparar-se bem mais adequadamente para o arrependimento. Diz ele então: E no d ia v inte e q u a tro do p rim eiro m ês - significando março, o primeiro mês do ano judaico - , eu estava à margem do grande rio, a saber, o Tigre. A palavra T ',y id , é metaforicamente usada para margem, e os intér­pretes concordam em identificar Hidekel com o Tigre. Os geó­grafos afirmam que o nome desse rio se deve a alguns lugares,

l!’ O pronome demonstrativo é aqui usado na função de explicação.

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[10.5, 6] DANIEL

especialmente perto de suas fontes, Digliton, que corresponde ao nome hebraico comum Hidekel. Sem dúvida, esse rio é chamado Pison, por Moisés, visto o Tigre ter três nomes entre as nações profanas. Seu nome usual é Tigre, e numa parte de seu curso ele veio a ser o Hidekel, e recebe também os nomes de Pasitigris e Phasis, os quais são equivalentes a Pison. O profeta relata que fico u em p é na margem desse grande rio. É incerto se ele estava então naquela parte do mundo, ou se Deus pôs diante dele o pros­pecto do rio, como já vimos em outra parte. Sinto-me muito in­clinado à opinião de que ele foi arrebatado no espírito profético, obtendo assim a visão do rio, e não que ele estivesse realmente ali. Possivelmente, aquela província fora posta sob seu governo no curso das grandes mudanças que ocorreram naqueles tempos. Enquanto Belsazar ainda vivia, ele não poderia ter estado em Susã, e assim fomos compelidos a explicar sua linguagem anterior no sentido de êxtase profético. E quanto à presente passagem, não questionarei com a opinião de alguém que porventura suponha que Daniel estava residindo naquele distrito; porém, como afir­mei antes, penso ser mais provável que esse espetáculo fosse ofe­recido ao santo profeta quando se achava distante da margem do rio, e só foi capaz de vê-lo em espírito. E bem provável que no início desse mês ele tenha conectado sua abstinência de carne, de refeição e todas as viandas aprazíveis, e então relaxou seu jejum por três semanas, visto ele aqui marcar a data no dia vinte e qua­tro. Deixo, porém, isso suspenso ante a impossibilidade de averi­guar o ponto com precisão. Vamos em frente agora:

5 Então ergui m eus olhos, e olhei, e eis 5 E t levavi ocu los m eos, e t vidi, e t eccecerto hom em vestido de linho, cujos lom- vir unus índutus lineis, vestibus scilicei,bos eram cingidos com ouro fino de Ufaz; e t lumbí ejus accincti auro Uphaz.6 Seu corpo tam bém era com o o berilo, e 6 E t corpus ejus sicut tharsis, e t fcies ejusseu rosto tinha a aparência de relâm pago. quasi aspectus fulguris, e t oculi e ju s qua-e seus o lhos com o tochas de fogo, e seus si lam pades ignis: e t brachia ejus, e t pe-b ra ço se seus pés brilhavam com o bronze des ejus quasi conspectus * r is politi,1”

' Alguns traduzem bronze ardente.

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53* EXPOSIÇÃO [10.5, 6]

polido, e a voz dc suas palavras com o a e t vox srm onum e jus quasi vox m ultitu- voz de um a m ultidão. d in is .lív

Quanto à palavra Ufaz, há quem pensa ser um a pérola ou pe­dra preciosa, e tomam a palavra OrD, kethem, que a precede, por ouro puro. Outros tomam ufaz adjetivamente por ouro puro. Não creio ser ela um epíteto; antes, porém, subscrevo o ponto de vista dos que a entendem como sendo o nome próprio de um lugar, porque este ponto de vista está em harmonia com a fraseologia do décimo capítulo de Jeremias. H á outra opinião que é impró­pria. Diz-se que Ufaz deriva-se do substantivo Phas, e é denom i­nado ‘puro’, sendo a letra a le f redundante. A passagem supraci­tada de Jeremias é suficiente para provar minha afirmação de que ela significa certa região; e assim alguns a têm traduzido por ofir. Imagina-se que a palavra UTUHn, tharsis, significa crisólito. Al­guns crêem que ela denota a cor do mar, e então, por meio de uma figura de linguagem, tomam-na geralmente por qualquer mar. Diz-se também que a mesma significa céu colorido.

Daniel então passa a relatar a maneira como a visão lhe foi apresentada. Diz ele que, quando ficou em pé na margem do rio, um homem lhe apareceu, diferente da ordem comum dos homens. Ele o chama um homem, porém o retrata como vestido ou ador­nado com atributos que inspiram plena confiança em sua glória celestial. Em outro lugar declaramos como os anjos são chama­dos homens sempre que Deus queria apresentá-los nesta forma externa. O título homens é, portanto, usado metaforicamente sem­pre que eles assumiam essa forma em obediência à ordem divina, e agora Daniel fala segundo o modo costumeiro. Entrementes, há quem absurdamente imagina os anjos como sendo realmente ho­mens, posto que assumiam essa aparência, e eram vestidos com um corpo humano. Não precisamos crer que fossem realmente homens, só porque apareciam sob uma forma humana. Aliás,

líu Alguns tomam yw n. chemon, por ruído ou tumulto.

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Cristo era realmente homem em conseqüência de sua origem da semente de Abraão, Davi e Adão. Mas com respeito aos anjos, Deus os veste com corpos por um único dia ou um curto período, com um propósito distinto e um uso específico. Portanto acuso o erro grosseiro daqueles que supõem que os anjos se transformam em homens, ao ponto de se tornarem fisicamente visíveis numa forma humana. Todavia podem ser denominados homens, por­que as Escrituras se acomodam a nossos sentidos, como o sabe­mos suficientemente bem. Portanto, Daniel afirma: eu vi um ho- mem\ e em seguida o distingue da raça humana, e mostra marcas fixas e conspícuas inscritas nele, as quais o identificam como sendo um anjo enviado do céu e não um mero mortal terreno. Alguns filosofam com sutileza sobre a palavra ergueu, como se Daniel erguesse assim seus olhos para o alto em um ato de im- percepção de todos os objetos terrenos; mas isso não me parece suficientemente certo. O profeta deseja imprimir a infalibilidade da visão; sua mente estava não só calm a e recolhida, mas aplica­va todos seus sentidos ao único objeto diante de si - a obtenção de alguma consolação proveniente de Deus. O profeta, pois, de­nota a sinceridade de seu desejo, pois, quando olhou ao redor, percebeu estar sujeito a muitos cuidados e ansiedades. Além dis­so, com referência às marcas pelas quais Daniel poderia inferir que o objeto de sua visão não era nem terreno nem mortal, pri­meiro ele diz: estava vestido de linho. Esse tipo de vestimenta era bastante comum entre o povo oriental. Essas regiões são no­tavelmente quentes, e seus habitantes não necessitam de prote­ger-se contra o frio, como somos necessariamente compelidos a assim agir. Raramente usavam roupas de lã. Mas, em ocasiões especiais, quando queriam usar roupas mais esplêndidas, vesti­am túnicas de linho, como descobrimos não só à luz de muitas passagens da Escritura, mas também de escritores profanos. Daí tomar eu esta passagem como se Daniel dissesse: o homem me apareceu com aparência esplêndida. Pois supõe-se que □ '1 3 , be-

[10.5, 6] DANIEL

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53a EXPOSIÇÃO [10.5, 6]

dim, não significa linho comum, mas um tipo de produto mais requintado. Este é um ponto.

Em seguida, ele diz: Ele estava cingido com ou ro puro ; ou, seja, com um cinto de ouro. Os orientais antigamente costuma­vam cingir-se com cintos ou faixas, quando seus vestidos eram longos e chegavam aos pés. Daí tornar-se necessário, para quem quisesse mover-se diligentemente, o uso de cintos. Quando o anjo apareceu com atavios desse gênero, o profeta vê exibida diante de seus olhos a diferença entre o anjo e os demais homens. Há quem vê na roupa de linho o sacerdócio de Cristo, e trata o cinto como um emblema de vigor. Tais idéias, porém, são meros refi­namentos, e parecem-me destituídas de toda realidade. Portanto, contento-me com a simples opinião sobre a qual tenho feito men­ção, a saber, essa form a de roupa distinguia o anjo dos mortais ordinários. Mas isso parecerá mais claro à luz do versículo se­guinte. Pois Daniel diz: Seu corpo tin h a as cores do céu, ou como a pedra preciosa cham ada berilo, de um matiz dourado. Sem dúvida, o profeta via algo diferente de um a forma humana, com vistas a averiguar claramente que a visão não era de um homem, mas de um anjo na forma humana. Deixo a alegoria nes­te ponto, ainda que ela prossiga através de todo o versículo. Es­tou ciente da natureza plausível das alegorias, mas quando reve­rentemente comparamos os ensinos do Espírito Santo, essas es­peculações que a princípio nos agradavam excessivamente à vis­ta se desvanecem diante de nossos olhos. Não me deixo cativar por essas seduções, e gostaria que todos meus ouvintes se dei­xassem persuadir deste fato: não há nada melhor do que um tra­tamento sóbrio da Escritura. Não devemos jam ais esboçar à dis­tância explicações sutis, porquanto o sentido genuíno, como pre­viamente expressamos, flui naturalmente de uma passagem quan­do ela é pesada com deliberação mais madura. Diz ele: Seu rosto tin h a a ap a rên c ia de relâm pago. Uma vez mais isso elucidava ao profeta que o anjo era mais que um mero mortal terreno. Seus

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olhos levam à mesma conclusão: eram com o tochas de fogo; então, seus b raços e seus pés b rilhavam com o bronze polido ou a rd en te ; por último, a voz de suas p a lav ras e ra a voz de umtum ulto , ou estrondo, ou multidão. A suma de tudo isso é: o anjo, ainda que revestido da forma humana, possuía certas mar­cas conspícuas pelas quais Deus o separou da multidão comum dos homens. Assim Daniel claramente percebeu a missão divina do anjo, e Deus quis estabelecer a fidedignidade e infalibilidade das profecias que mais tarde virão a lume no capítulo 11. Vamos em frente:

7 E eu, Daniel, fu i o único a ver a visão; 7 E t vidi ego D aniel solus visionem , e tporque os hom ens que estavam com igo viri qui eram m ecum , non v id e ru n t visio-não viram a visão; porém lh es so b rev e io nem, im o linte !T o rm ag n u sirru it super eos.um grande trem o r, de tal m aneira que fu- e t fugerunt in iatebras.1”giram c se esconderam .

Ele dá seqüência a sua própria narrativa na qual aparenta pro­lixidade, mas não propositadamente. Esta profecia demandava todos os tipos de sanção com o propósito de inspirar inabalável confiança nela, não só por parte dos judeus daquela geração, mas por parte de toda sua posteridade. Embora as predições do capí­tulo 11 já houvessem se cumprido, todavia sua utilidade nos é manifesta, como segue: primeiro, divisamos nelas o perpétuo cuidado de Deus por sua Igreja; segundo, observamos que os san­tos nunca são deixados ao léu sem suficiente consolação; e, ter­ceiro, percebemos, como num espelho ou num quadro vivo, o Espírito de Deus falando nos profetas, como j á observei anterior­mente, e teremos ocasião de notar isso novamente. Daniel, pois, tem boas razões para impressionar-nos com a infalibilidade da visão e com tudo quanto tende a comprovar sua realidade.

Diz ele: E u, D aniel, fui o único a ver a visão; m as os ho-

(10.7) DANIEL

13(1 A palavra b3N, abei. “porém” é expressa de modo adversalivo; não è uma simples afirmação.

Literalmente, se esconderam.

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53* EXPOSIÇÃO [10.7]

m ens que estavam com igo não a viram . Justamente como os companheiros de Paulo não ouviram a voz de Cristo, mas apenas um som confuso. Não entenderam sua linguagem, quando unica­mente a Paulo foi permitido compreendê-la [At 9.7]. Isso é rela­tado com o fim de prom over a confiança na profecia. O poder que Daniel recebeu para ouvir não era superior ao de seus com ­panheiros, porém Deus tencionava dirigir-se somente a ele. As­sim a voz, ainda que semelhante à voz de um a multidão, não penetrou nos ouvidos daqueles que estavam com ele. Tão-somente ele foi o receptor destas profecias, como também somente ele foi revestido com o poder de predizer eventos futuros e de consolar e exortar os santos, dando-lhes o conhecimento do que sucederá no último dia. A qualquer um que inquirir como ele levou consi­go seus companheiros enquanto provavelmente estava deitado em seu leito a longa distância da margem do rio, a resposta não é difícil. Ele tinha seus domésticos a seu lado; a margem do rio só existia na visão; ele estava completamente fora de si, e assim sua família estaria familiarizada com o êxtase sem estar ciente da causa. Daniel, pois, continuou em seu próprio lar, e visitou sozi­nho a margem do rio durante a visão; embora muitas testemu­nhas estivessem presentes, Deus chocou a todos com profunda perplexidade, enquanto Daniel sozinho percebeu o que mais tar­de narrou. Deus o considerou digno dessa honra singular, capaci­tando-o a tornar-se mestre e instrutor de outros. O s hom ens que estavam comigo, diz ele, não v iram a visão; po rém apoderou- se deles u m g ran d e te rro r . Esta distinção, com o já afirmei, mostra que Daniel fora escolhido como o único ouvinte da voz do anjo e como receptor da informação que mais tarde foi trans­mitida a outros. Entrementes, a intenção divina era que muitas testemunhas notassem em Daniel a total isenção de qualquer frau­de, seja por meio de sonho ou por meio de imaginação mom entâ­nea. Seus companheiros, pois, ficaram apavorados. Tal terror prova que o profeta fora divinamente instruído e que não havia

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[10.8] DANIEL

laborado sob algum delírio. Portanto, fug iram em busca d e es­conderijo . Sigamos em frente:

8 Portanto, fui deixado sozinho a contem - 8 E t ego relictus fui soius, e t vidi visio-plar esta grande visão, e ali fiquei sem nem m agnam hanc, e t non fuit residuumforça em mim; pois m inha aparência trans- in m e robur,l5! atque etiam d eco r1” meusm udou-se em corrupção, e não retive ne- eversus fuit super m e, in me, ad corrupti-nhum a força. onem ,1“ e t non retinui vigorem .

Toda esta linguagem pende para o mesmo propósito - asse- gurar-nos de que Daniel não escreveu seus próprios comentários com precipitação, mas que fora verdadeira e claramente instruí­do pelo anjo sobre todos os pontos que lhe foram confiados a escrever, e assim toda hesitação é removida ao ponto de abraçar­mos aquilo que mais tarde perceberemos, sendo ele um fiel intér­prete de Deus. Primeiro ele declara: vi um a visão. Ele havia ex­presso assim antes, mas o reitera com o intuito de produzir uma adequada impressão; cham a a visão g ran d e a fim de despertar nossa atenção para sua importância. E acrescenta: vi-m e p riv a ­do d e todo vigor; como se o sopro do Espírito lhe restituísse a vida que havia expirada. Assim deduzimos o objetivo da exibi­ção de todos esses sinais externos: não só põem Deus diante de nós falando pela boca de seu anjo, mas prepararam o próprio pro­feta e o treinaram para a reverência. Deus, contudo, não terrifica seus filhos, com o se nossa inquietação fosse para ele um objeto de deleite, mas unicamente porque isso nos é proveitoso; pois a menos que nossos sentimentos carnais sejam totalmente subju­gados, jam ais nos tom amos aptos a receber melhoramento. Isso necessariamente requer violência, em virtude de nossa inerente perversidade; e esta é a razão por que o profeta ficou reduzido a este estado de desfalecimento. Até mesmo minha fisionom ia, ou beleza, ou aparência foi transmudada em corrupção; significan­do: m inha deformidade era semelhante àquela induzida pela

112 Ou, nenhum vigor foi deixado em mim.1,1 Literalmente, e aparência.IU Ou, seja. em desvanecimento.

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53® EXPOSIÇÃO [10.8]

morte. Finalmente, ele acrescenta: não retive m eu vigor. Ele usa um a variedade de frases com o fim de mostrar-se deprim ido pelo sopro celestial, pois lhe restara apenas um a leve porção de vitali­dade, e por muito pouco fora preservado de morte real. Devemos aprender a transferir esta instrução para nós mesmos, não pelo desvanecimento de nosso vigor ou pela mudança de nossa apa­rência sempre que se nos dirige, mas mediante o desvanecimento de toda nossa resistência e de todo nosso orgulho e altivez, lance­mo-nos prostrados aos pés de Deus. Finalmente, nossa disposi­ção carnal deve ser completamente reduzida a nada, visto que real docilidade jam ais se verá em nós até que todos nossos senti­dos sejam completamente mortificados; pois nos é mister ter sem­pre em mente quão hostis à vontade de Deus são todos nossos pensamentos naturais. Deveríamos seguir em frente, porém não posso avançar mais hoje. Adiarei para amanhã meus com entári­os aos próximos versículos.

ORAÇÃO

Deus Todo-Poderoso, como outrora apareceste a Daniel, teu santo servo, e aos profetas, e por sua doutrina tornaram esplendente tua glória a nós nestes dias, concede-nos que reverentemente nos apro­ximemos e a vejamos. Quando tivermos nos devotado inteiramente a ti, que todos esses mistérios, os quais te agradaste oferecer por meio de suas mãos e labores, recebam de nós sua devida estima. Que nós mesmos nos prostremos e sejamos erguidos ao céu pela esperança e fé; quando nos prostrarmos diante de tua face, poderemos então con- duzir-nos no mundo como num intervalo para tomar-nos livres de todos os desejos e paixões depravados de nossa carne, e mentalmen­te habitarmos o próprio céu. Então, por fim , sejamos arrebatados desta guerra terrena e cheguemos ao descanso celestial que para nós preparaste, através do mesmo Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

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9 T odavia ouvi o so m d c suas palavras; e 9 E ta u d iv i v o cem se rm o n u m eju s .e tcu mquando ouvi o som de suas palavras, en- audirem vocem serm onum ejus, tunc ego

10 E eis que certa m ão m e tocou, a qual 10 Et ecce m anus tetigit m e,13'1 e t m overem e pôs sob re m eu s jo e ih o se sobre as pai- m e fecit su p e rg en u a m ea. e t palm as, aut

N a exposição de ontem Daniel confessou-se atônito à vista do anjo, e sentiu-se destituído de toda sua força. Em seguida ele acrescenta: Ao ouv ir o som de suas palav ras, a rro je i-m e ao chão. Pois este é o sentido do nono versículo, como acabamos de ler. Ele se descreve como estando num estado de síncope e de inconsciência, o que geralmente ocorre quando nossos sentidos são paralisados por excesso de medo. Enquanto permanecia as­sim no chão, inconsciente, ele acrescenta: E is que um as m ãos m e tocaram e m e pu seram sobre m eus joelhos e as pa lm as de m inhas mãos. Ele faz menção de ser parcialmente erguido pelo anjo, não só através do som de sua voz, mas também pelo toque de sua mão. Sua intenção é dizer que não estava ainda totalmente erguido, nem em pé e nem assentado; simplesmente fora posto sobre seus joelhos e suas mãos, apoiados no chão, sendo tal pos­tura sinal de seu abatimento. E assim parcialmente sentiu alento em si e já o medo não se apoderava de sua mente nem de seus

1,5 Ou. seja. caí sobre meu rosto como que adormecido.156 Tocou em mim; mas a □, beth, é supérflua.

tão ca í sobre m eu rosto em profundo sono, com m eu rosto em terra.

fui sopitus super faciem m eam .1” e t fáci­es m ea in terram , projecta fu ii scilicel.

m as de m inhas mãos. volas, m anuum m earum.

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54* EXPOSIÇÃO [10.11]

lombos. À luz desta passagem é bom aprendermos que, quando somos prostrados pela voz de Deus, não há como sermos restau­rados senão por sua própria força. A menos que Deus mesmo nos estenda sua mão, sempre havemos de manter a aparência de m or­tos. Esta é uma lição. Em seguida o profeta adiciona o discurso do anjo dirigido a ele:

1 1 E ele m e disse: Ó D aniel, hom em m ui- 11 E t loquutus est ad m e. Daniel vir dsi-tíssim o am ado, entende as palavras que denorum intellige. aiienius sis, ad verbaeu te falo. e põe-te ereto, porque a ti sou q u * loquor tecum e t esta super staretuum ;enviado. E assim que e le m e falou essas qu ia nunc m issus sum ad te. E t cum lo-palavras, levantei-m e trem endo. quereturm ecum sem ionem hunc, steti tre-

m ens, vel, trepidus.

Ele aqui relata como fora fortalecido pela exortação do anjo. Então com eça a erguer-se de sua posição anterior, e o anjo então lhe ordena que recobrasse o ânimo, e o cham a hom em m uitíssi­m o am ado. Já discutimos previamente sobre esta expressão, a qual é atribuída por alguns ao zelo de Daniel e a tomam passiva­mente, porque ele foi inspirado por um ardor mui invencível de­vido sua ansiedade pelo bem-estar comum da Igreja. Sou mais inclinado ao ponto de vista oposto, crendo que ele foi assim cha­mado pelo vigor de seus desejos, porquanto era mui querido e precioso a Deus. Por esse epíteto o anjo desejava animar o santo profeta e acalmar e aquietar sua mente, levando-o a ouvir aquilo que tão ardentemente esperava. Portanto, en tende, diz ele, ou atenta para as p a lav ras que te falarei, e põe-te ereto. Alguns o traduzem em tua posição, porém 'posição’ não se refere à posi­ção do corpo. Eu já mostrei como o profeta não estava agora totalmente prostrado; seu rosto estava voltado para o chão, en­quanto se apoiava em suas mãos e joelhos; e então percebemos que ele passa a outro estágio.

Esta doutrina nos é proveitosa, porque muitos pensam em si como sendo completamente negligenciados e abandonados por Deus, a não ser que imediatamente recubram seu vigor mental. Deus, porém, nem sempre restaura imediatamente à vida aqueles

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[10.12] DANIEL

a quem reduziu totalmente à inércia, mas lhes com unica nova vida gradualmente, e inspira os mortos com ânimo fresco. Perce­bemos que esse foi precisamente o caso de Daniel. Portanto, nunca fico surpreso quando Deus nos soergue gradualmente por meio de passos lentos e distintos, e cura nossa enfermidade aos pou­cos; mas se ainda quando um a única gota de sua virtude nos é concedida, então que nos contentemos com essa consolação até que ele complete em nós o que havia começado. Finalmente, esta passagem nos revela como Deus opera em seus servos, não os tom ando perfeitos de uma só vez, mas permitindo que alguma debilidade permaneça até que sua própria obra esteja completa.

Em seguida Daniel acrescenta: Q uando ouvi esse d iscurso , pus-m e de pé. Aqui observamos o efeito e fruto da exortação angélica, visto que Daniel não mais carecia de apoiar-se em suas mãos e joelhos. Ele pôde ficar ereto, embora acrescente: p e rm a ­neci trem endo . Embora assim ereto no corpo, não estava inteira­mente isento dos sentimentos íntimos de terror; e, ainda que se firmasse sobre seus pés, ele ainda não se sentia isento de toda perturbação, mesmo ante a ordem angelical. Isso confirma mi­nha observação prévia - Deus deixa em seus servos alguns sinais de temor com o fim de cientificá-los de sua debilidade; aventu- ram-se a pôr-se de pé acima do mundo, movidos pela esperança, porém não olvidam que não passam de pó e cinza, e assim se conservam dentro dos limites da humildade e da modéstia. Siga­mos em frente:

12 E n tâ o e le m e disse: Não tem as. Dam - 1 2 E td ix it ad m e, N e tim eas D aniel, quiacl; porque desde o prim eiro d ia em que a d ie prim o quo adjecisti co r tuum ad in-aplicaste teu coração a com preender, e te telligendum . e t affligendum te. vei, humi-hum ilhasie diam e de teu D eus, tuas pala- liandum, co ram facie Dei tu i, exauditav ras foram ouvidas, e eu vim por causa sunt verba tua: et ego veni in verbis tuis,de tuas palavras. hoc esl, propler verba tua.

À luz da ordem do anjo para que o profeta recobrasse a sere­nidade e tranqüilidade da alma, deduzimos que o terror e o senso o faziam ainda incapaz de ouvir com equilíbrio. E não obstante

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54* EXPOSIÇÃO [10.12]

esse tremor desenvolveu seu aprendizado. Sem a m ais leve dúvi­da, Deus queria preparar seu servo e assim torná-lo mais atento a suas disciplinas, e contudo esse mesmo terror impedia Daniel de concentrar todos seus sentidos para ouvir o discurso do anjo. O remédio é exibido nestes termos: Ó D aniel, n ão tem as. O intuito do anjo não era remover da mente de Daniel todo temor, mas, antes, acalmá-la a fim de que seu tremor não o impedisse de pres­tar a devida atenção às profecias que logo discutiremos. Eu já disse bastante sobre o tema desse discurso. Visto Deus saber que o temor nos é proveitoso, ele não quer que vivamos totalmente livres dele, porquanto demasiada autoconfiança produziria ime­diatas indolência e soberba. Deus, pois, quer que nosso temor seja restringido como que por um freio, mas, entrementes, mode­ra esse temor em seus servos para que suas mentes não permane­çam estremecidas e perturbadas, e assim incapacitadas de ter-lhe acesso com tranqüilidade.

O anjo acrescenta: Desde o p rim eiro d ia em que com eçaste a ap lica r tu a m ente a com preender, e a aflig ir-te d ian te de Deus, tuas orações fo ram ouvidas. Esta razão m ostra suficien­temente em que sentido e com que intenção o anjo vetou os te­mores do profeta: porque , diz ele, tuas orações foram ouvidas. Ele não pretendia banir todo o temor, mas lhe ofereceu alguma esperança e consolação; e confiando nessa expectativa ele pode­ria esperar pela revelação que tão ansiosamente desejara. Ele de­clara que suas orações foram ouvidas desde o momento em que aplicara sua mente a compreender, e desde que se afligira diante de Deus. É preciso observar estes dois pontos: primeiro, pela palavra ‘com preender’ o anjo nos informa que Deus se fez propí­cio às orações de seu servo, porque eram sinceras e legítimas. Que espetáculo Daniel contemplava! Ele via a condição da Igreja que era totalmente confusa, e anelava pela comunicação de al­gum sinal de favor que lhe assegurasse que Deus de fato ainda não invalidara seu pacto e que não havia ainda desprezado aque-

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[ 10 . 12] DANIEL

les desventurados israelitas que outrora adotara. Visto que este era o objetivo da oração do profeta, ele então foi atendido em sua súplica e o anjo testifica de sua oração diante de Deus. Somos instruídos, pois, por esta passagem a não ficarmos ansiosos de ver nossas súplicas sendo ouvidas e aprovadas por Deus, a não dar vazão aos apetites e desejos tolos, os quais nos atraem e nos seduzem. Devemos observar a regra aqui prescrita pelo anjo e elaborar nossas súplicas de acordo com a vontade de Deus. Sabe­mos, diz João, que se pedirmos alguma coisa segundo sua vonta­de, ele nos ouvirá [ lJo 5.14], Este é o primeiro ponto. O segundo é a adição de penitência fervorosa e devota, quando o anjo diz: e te afligiste ou te humilhaste diante de Deus. Uma segunda condi­ção da oração genuína é aqui posta diante de nós, a saber, quando os fiéis se humilham diante de Deus e, sendo tocados de genuína penitência, derramam seus gemidos diante dele. O anjo, pois, m ostra como Daniel foi atendido em suas súplicas, afligindo-se profundamente diante de Deus. Ele não formulara orações em favor da Igreja de uma maneira meramente formal, mas, como já vimos previamente, associou jejum e súplica e se absteve de to­dos os manjares. Por essa razão Deus não rejeitou suas petições. Diz ele: diante de teu Deus. Esta expressão do anjo implica que a súplica do profeta fluiu de fé genuína. As orações dos ímpios, em contrapartida, sempre repelem o Todo-Poderoso, e jam ais lhes asseguram de ser-lhes ele propício. Em decorrência da hesitação e vacilação dos incrédulos, é posto diante de Daniel este teste­munho da verdadeira fé: ele orou a seu próprio Deus. Quem quer que se aproxime de Deus, diz o apóstolo [Hb 11.6], é preciso reconhecer sua existência e de que ele é achado por todos quan­tos o buscam e o invocam. Devemos diligentemente notar isto, um a vez que esta falha se manifesta sobejamente em todas as épocas - os homens amiúde oram a Deus, mas devido a sua hesi­tação derramam suas petições no vazio. Não apreendem a Deus como seu Pai. Outra passagem que também nos lembra quão inú­

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54" EXPOSIÇÃO [10.13]

teis é a esperança de se obter algo por meio da oração é quando nos agitamos e gravitamos em nossas emoções [Tg 1.6, 7]. A menos que a fé prevaleça, não nos surpreende se porventura os que invocam a Deus percam todo seu labor pela profanação de seu nome. Finalmente, com esta expressão o anjo nos mostra como a oração de Daniel estava fundada na fé; ele não buscou a Deus temerariamente, mas estava claramente persuadido de estar arro­lado entre os filhos de Deus. Ele orou, pois, a seu próprio Deus, e por essa razão suas petições foram ouvidas. Então se acrescen­ta que o anjo veio por causa das palavras de D aniel; como está registrado nos Salmos [SI 145.19], Deus se inclina obsequioso por atender os que o temem; e nesse sentido o anjo visita Daniel. Sigamos em frente:

13 M as o príncipe do reino da Pérsia m e 13 E t Princeps regni Persarum stetit co-resistiu vinte e um dias; contudo eis que ram m e, vel, e regione, viginti diebus etM iguel, um dos p rim eiros príncipes, veio uno. E t ecce M ichael unus precipum pri-ajudar-m e; e eu perm aneci ali com os reis m orum ’” venit ad opem ferendam m ihi,1“da Pérsia. e t ego residuus159 fui apud reges Persa­

rum , vet, Persidis.

Então o anjo assinala um a razão por que não apareceu repen­tina e imediatamente ao profeta, que poderia queixar-se assim: “Que tratamento é esse que tenho de enfrentar, fazendo-me con­sum ir de tristeza por um período tão longo?" Porquanto Daniel havia permanecido durante três semanas sucessivas na mais se­vera aflição. N a verdade Deus o ouvira desde o primeiro dia; como, pois, era possível que ele ainda ficasse a olhar para esse desventurado homem assim prostrado de modo tão soturno? Por que Deus não apareceu aberta e realmente para que sua oração não fosse sem efeito? O anjo então satisfaz essa objeção, e m os­tra como estivera ocupado em promover o bem-estar do profeta. E preciso notar esse fato com muito critério, porque a delonga

m Ou, seja, um dos principais líderes.Ou, fortalecer-me.

159 Ou, seja, fui deixado.

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[10.13J DANIEL

amiúde nos perturba, quando Deus não estende seu socorro im e­diatamente, e por um longo tempo oculta de nós o fruto de nossas orações. Sempre que nossas paixões explodem com forte impe­tuosidade, e facilmente manifestamos sinais de impaciência, de­vemos notar esta expressão do anjo, porque nossas orações po­deriam ser prontamente ouvidas, enquanto o favor e a mercê di­vinos continuam ocultos de nós. A experiência de Daniel é ple­namente concretizada em cada membro da Igreja, e sem a mais leve dúvida a mesma disciplina é exercida na vida de todos os santos. Esta é nossa reflexão prática. Em segundo lugar devemos notar a condescendência divina em dignar-se a explicar a seu pró­prio profeta pelos lábios do anjo. Ele oferece uma razão para a delonga do regresso do anjo, e a causa desse obstáculo consistiu, como já declarei, em levar ele em conta a segurança de seu povo eleito. A maravilhosa clemência do Todo-Poderoso é aqui prova­da por tão graciosamente oferecer justificativa a seu profeta, por­que ele se revela diariamente disposto a receber as orações que lhe são oferecidas. Devemos, porém, extrair da passagem um benefício prático: Deus não cessa de olhar com favor mesmo quando ele não se agrade de tornar-nos cônscios dele, pois nem sempre ele o põe diante de nossos olhos; antes, às vezes o m an­tém oculto de nossa vista. Inferimos disto a constante preocupa­ção de Deus por nossa segurança, ainda que não a exiba exata­mente da maneira que nossas mentes possam conceber e com ­preender. Deus excede toda nossa compreensão na maneira como ele provê nossa segurança, visto que o anjo aqui relata sua m is­são em muitas outras direções, e todavia sempre no serviço da Igreja. E agora se mostra como Daniel obteve resposta a suas orações desde o primeiro dia de seu oferecimento, e todavia per­maneceu inconsciente dela até que Deus lhe enviou alguma con­solação em meio a suas tribulações. Tem-se proposto um a inter­pretação muito difícil deste versículo, pois alguns expositores pensam que o anjo foi enviado à Pérsia para proteger aquele rei-

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54* EXPOSIÇÃO [10.13]

no. Existe alguma probabilidade nessa explicação, e Deus pode­ria ter fornecido alguma assistência aos reis da Pérsia por amor a seu próprio povo. Penso, porém, que o anjo se pôs em direto conflito e oposição a Cambyses com o intuito de impedi-lo de insurgir-se com mais ferocidade contra o povo de Deus. Ele pro­mulgara um édito cruel, impedindo os judeus de edificar seu tem­plo e manifestando plena hostilidade a sua restauração. Por certo não teria ele ficado satisfeito com esse rigoroso tratamento, não houvera Deus restringido sua crueldade pela instrumentalidade e mão do anjo.

Se pesarmos essas palavras judiciosam ente, concluiremos prontamente que o anjo lutou mais contra o rei dos persas do que em seu favor. O príncipe, diz ele, do reino dos persas, signifi­cando Cambyses, com Ciro seu pai, que cruzou o mar e conten­deu com os citas, bem como com a Ásia Menor. O príncipe do reino da Pérsia estava furioso contra ele, como havia dito: Ele me deteve de chegar a ti, porém foi para o bem de tua raça; pois não houvera Deus me usado para dar-te assistência, e sua crueldade se teria agravado e tua condição teria sido totalmente irremediá­vel. Deves perceber, pois, que não houve de minha parte carência de zelo, porque Deus nunca se fez surdo a tuas súplicas. O prín­cipe do reino dos persas se pôs contra mim por vinte e um dias, significando: desde o período em que começaste a apresentar tuas orações diante de Deus, nunca recuei de nenhum ataque ou assal­to com o fim de defender teu povo. O príncipe do reino dos per­sas se pôs contra mim\ significando que irou-se de tal form a con­tra os israelitas ao ponto de derramar a própria borra incandes­cente de sua ira, a menos que eu interferisse com o auxílio divino que vim oferecer-te.

Ele acrescenta: Eis que M iguel, um dos p rincipais líderes ou príncipes, veio fortalecer-m e. Há quem pensa que a palavra M iguel representa Cristo, e não faço objeção a essa opinião. Evi­dentemente, é suficiente que todos os anjos mantenham vigilân­

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[10.13] DANIEL

cia sobre os fiéis e eleitos, em bora Cristo mantenha a prim eira posição entre eles, uma vez que ele é seu chefe e usa seu ministé­rio e assistência em defesa de todo seu povo. Visto, porém, que isso não é geralmente admitido, deixo-o em suspenso por en­quanto, e direi algo mais sobre o assunto no capítulo 12. À luz dessa passagem podemos deduzir claramente a seguinte conclu­são: os anjos lutam pela Igreja de Deus, tanto de forma geral quanto em favor de membros particulares, sempre que seu auxí­lio se faça necessário. Sabemos ser esta uma parte da ocupação dos anjos, que protegem os fiéis segundo o Salmo 34 [v. 8]. Eles demarcam seu acampamento ao redor destes. Deus, pois, estabe­lece seus anjos contra todas as atividades de Satanás e contra toda a fúria dos ímpios que desejam destruir-nos e estão sempre tramando nossa completa ruína. Se Deus não nos protegesse des­sa maneira, seríamos totalmente destruídos. Estamos cientes do horrível ódio que Satanás nutre por nós e da poderosa fúria com que ele nos assalta; sabemos quão hábil e variadamente são seus artifícios; o conhecemos como o príncipe deste mundo, arrastan­do e precipitando a maior parte do gênero humano consigo, en­quanto impiamente derrama suas ameaças contra nós. O que im­pede a Satanás de diariamente sorver centenas de vezes toda a Igreja, quer coletivamente, quer individualmente? É óbvio que se faz necessário que Deus se oponha a sua fúria, e isso ele faz pela instrumentalidade dos anjos. Enquanto se põem a contender por nós e em prol de nossa segurança, não percebemos essa m a­lícia secreta, porque eles a escondem de nós.

Agora podemos analisar esta passagem um pouco mais deta­lhadamente. O anjo se estabelecera na Pérsia com o fim de repri­m ir a audácia e crueldade de Cambyses, o qual não se contentara com um único édito, mas teria violentamente arrastado um a vez mais os desventurados israelitas a um novo exílio. E teria tido êxito, se antes disso um anjo, e então outro, não o tivessem en­frentado. O anjo então nos informa como Miguel, um dos princi-

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pais líderes, veio com os recursos necessários. A defesa de um anjo poderia ter sido suficiente, pois os anjos não têm mais poder além daquele que lhes é conferido. Deus, porém, não se obriga ao uso de nenhum meio particular; ele nunca está limitado a um ou a mi); quando Josafá fala de um pequeno exército, então de­clara: não importa diante de Deus se temos poucos ou muitos [2Cr 14.11; ISm 14.6]. Porquanto Deus pode salvar seu povo com um a pequena ou com um a poderosa força; e o mesmo vale também no tocante aos anjos. Deus, porém, está ansioso por atestar o cuidado que ele dispensa em benefício de seu povo, bem como sua singular benignidade para com os israelitas exibida na mis­são de um segundo anjo. Ele duplicou seu empenho em dar teste­munho de seu amor por estes miseráveis e inocentes, os quais eram oprimidos pelas calamidades provenientes de seus inimi­gos e pela tirania daquele rei ímpio. Finalmente, o anjo diz que foi deixado entre os reis persas, com o expresso propósito de remover os numerosos obstáculos postos no caminho do povo escolhido; pois, a menos que Deus repelisse aquele arsenal de armas com seu próprio escudo, os judeus teriam sido sepultados ali mesmo. Vamos em frente:

14 A gora vim para fazer-te entender o que 14 E t veni u t tibi patefacerem l40q u o d o c - sobrevirá a teu povo nos ú ltim os dias; cu rre ip o p u lo tu o 111 inextrem ita tedierum , porque a visão é ainda para m uitos dias. diebus postremis, quia adhuc visio ad dies.

O anjo persiste no mesmo diapasão. Declara que sua chegada tinha o propósito de predizer a Daniel acontecimentos futuros, bem como aqueles que tinham um longo período de tempo pela frente. Ele prova ainda que as orações de Daniel não tinham caí­do no vazio nem sido infrutíferas, uma vez que produziram este conflito com os reis da Pérsia, tanto com o pai quanto com o filho. Ele agora apresenta outra prova desse fato, porque Deus queria que seu profeta fosse instruído a aguardar pacientemente a

140 Para fazer-te entender.141 Ou, seja. o que acontecerá a teu povo.

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chegada dos acontecimentos, depois de estar plenamente ciente de que o povo eleito estaria sob o cuidado e proteção de Deus. Isso ele de bom grado reconheceria à luz das profecias do próxi­mo capítulo. Em seguida acrescenta: no fim dos dias. Com esta expressão o anjo enaltece a graça de Deus em favor do profeta, já que ele era seu ministro especial. Sua missão era não só anunci- ar-lhe as ocorrências de três ou quatro anos, ou de algum outro breve período, mas estendera suas predições para muitos anos distantes, sim, até as extremidades dos dias. De bom grado atri­buo este período à renovação da Igreja que aconteceu no advento de Cristo. As Escrituras, ao usarem a frase últimos dias, ou tem­pos, sempre apontam para a manifestação de Cristo, por meio da qual a face do mundo seria renovada. E exatamente como se o anjo dissesse que faria Daniel plenamente familiarizado com to­dos os eventos futuros, até a redenção final do povo, quando Cristo fosse exibido para a salvação de sua Igreja. D aí o anjo abranger os 490 anos dos quais se referiu. Pois o advento de Cristo deter­minou a plenitude dos tempos, e a razão anexada adequa a passa­gem muitíssimo bem. A visão é ainda para dias, diz e l e - é assim que alguns expositores tomam essas palavras. Sinto-me persua­dido de que a intenção do anjo era mostrar como Deus está agora publicando a seu servo eventos futuros, e assim essas profecias se tom am como lâmpada a iluminar a Igreja. Os fiéis se queixam no Salmo 74 [v. 9] da ausência de todos os sinais, porquanto não foi deixado um profeta sequer. Não vemos sinais, dizem eles, nenhum profeta existe entre nós. Essa era um a indicação de os haver Deus rejeitado e abandonado. Por mais esmaecida seja a luz de sua doutrina a brilhar sobre nós, o mais leve lampejo deve ser suficiente para produzir paciência e repouso. M as quando toda a luz da Palavra se extingue, é como se fôssemos completamente envolvidos por trevas tartáreas. Visto que os israelitas sofreram tantas aflições por quase 500 anos, este remédio deveria restau- rá-los completamente; pois quando o anjo testifica: a visão éain-

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da para dias, sua intenção é dizer que, em bora Deus permita que seu povo seja miseravelmente afligido, todavia por esta mesma prova ele mostra que não desistira deles de um a vez por todas. Restou alguma visão, ou, seja: mediante a luz da profecia, ele sempre manifestará seu cuidado por seu povo eleito, e podem ainda antecipar um feliz resultado de todos seus sofrimentos. Agora entendemos a intenção do anjo, quando diz: a visão é ain­da para dias. Aliás, as profecias cessaram logo depois, e Deus não mais enviou outros profetas a seu povo; todavia seu ensino sempre permaneceu perenemente como um dedo em riste, pois nele estava completa toda a série de tempos até ao advento de Cristo. Seus filhos nunca foram destituídos de toda consolação necessária; pois embora não houvesse profetas sobreviventes que pudessem instruir o povo nos mandamentos de Deus, a viva voz, todavia o ensino de Daniel vicejou por quase 500 anos depois de sua morte. Ele também cumpriu sua parte em nutrir a coragem dos santos e mostrar-lhes a sólida firmeza do pacto divino não obstante toda oposição. Embora a Igreja fosse agitada de inúme­ras maneiras, todavia Deus é consistente em todas suas promes­sas, até que a redenção de seu povo esteja com pletada com Õ advento de seu Filho Unigénito.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto a fragilidade de nossa f é ser de tal vulto que quase se desvanece em ocasião mais insignificante, concede-nos que não hesitemos extrair apoio deste extraordinário e memorável exem­plo, o qual desejas propor-nos na pessoa de Daniel, ainda que por um tempo ocultaste de nós tua face e nos puseste prostrados em den­sas trevas. Não obstante, permaneces jun to a nós; e com indubitável esperança podemos ser constantes em nossas orações e gemidos, até que, por fim, o fru to de nossas orações esteja sazonado. E assim podemos manter guerra constante com todos os tipos de provações e persistir invencíveis até que nos estendas do céu tua mão e nos rece­bas naquele bendito descanso que fo i estabelecido para nós por Cristo nosso Senhor. Amém.

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a

15 E quando ele m e falou essas palavras. 15 E t cum loqueretur m ecum secundumvoitei meu rosto para o chão, e em udeci. verba haec, posui faciem m eam in terram,

e to b m u tu i.

Com estas palavras, a intenção de Daniel é que ele se vira tão inspirado pela reverência diante do anjo, que fora incapaz de per­manecer ereto. Isso tende a recomendar a profecia a nossa obser­vação: mostrar-nos como o santo profeta foi não só instruído pelo anjo, mas também confirmar o que logo em seguida registrará no capítulo 11, bem como isentá-lo de toda dúvida. Por Fim, ele nos capacita a confiar nas palavras do anjo, as quais não foram pro­nunciadas de um a forma ordinária, mas que eram tão divinas ao ponto de lançar Daniel de ponta cabeça ao chão. Em meu juízo, os expositores da frase emudeci estão equivocados quando a en­tendem no sentido em que o profeta se arrependeu de seu ofício profético, ao supor que suas orações não haviam sido levadas em conta. Isso é demasiadamente forçado, porque o profeta não ex­pressa nada mais senão que fora tomado de medo, impedindo tanto seus pés quanto sua língua de exercerem suas funções usu­ais. E assim ele se sentiu como que fora de si. Ao lançar-se ao chão, manifestou sua reverência; e ao emudecer, exibiu seu es­panto. Já expliquei brevemente o objetivo de todas essas afirm a­ções: provar-nos como o anjo estava adornado com seus atribu­tos próprios e que se deve atribuir plena autoridade a suas pala­vras. Prossigamos:

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55* EXPOSIÇÃO [10.16-18]

16 E eis que alguém , sem elhante aos fi- 16 E t ecce secundum sim ilitudinem filio-lhos dos hom ens, tocou m eus lábios. En- rum hom in is,142 tetig it labia m ea, e t ape-tão abri m inha boca, e falei, e disse ao rui os m eum , et loquutus sum: et dixi adque se achava em pé diante de mim: Se- eum qui stabat ad conspecium m eum ,145nhor m eu, por causa da visão sobrevie- D om ine, in visione conversi sunt doloresram -m e dores, e não ficou nenhum a for- mei super m e. e t non continui robur.ça em mim.17 C om o, pois, pode o servo deste m eu 17 Et quom odo poterit servus Domini meisenhor fa lar com este meu senhor? Por- hujus loqui cum D om ino m eo hoc? Elque, quanto a m im , desde agora não res- exinde non stetit in m e1*4 robur; E t ani­lou nenhum a força em m im , e nem fôle- m a, húlitus, non fuil residuus im me.go restou em m im .18 E nião aquele que tinha aparência de 18 E t addidit, hoc est, secundo, tetig it m ehom em , veio e tocou-m e outra vez, e m e secundum sim ilitudinem 14* hom inis, e t re­fortaleceu. boravit me.

Aqui Daniel narra como o anjo que causou a ferida ao mesmo tempo trouxe o remédio. Embora estivesse aterrado pelo medo, todavia o toque do anjo o soergueu, não porque houvesse alguma virtude no mero toque, mas sabemos que o uso de símbolos era sobejamente estimulado por Deus, como já observamos previa­mente. Assim o anjo ergueu o profeta não só por sua voz, mas também por seu toque. D aí deduzirmos a natureza opressiva do terror proveniente da dificuldade com que foi despertado nele. Isso se deve atribuir a seu próprio fim, que era selar a profecia com o timbre da autoridade e publicamente proclamar a missão divina a Daniel. Estamos cientes também como Satanás se trans­forma em anjo de luz [2Co 11.14]; e daí Deus distinguir esta predição, por meio de marcas fixas, de todas as falácias de Sata­nás. Finalmente, através de todas essas circunstâncias o profeta mostra ser Deus o Autor da profecia a ser enunciada mais adian­te, visto que o anjo trouxera consigo credenciais fidedignas, por meio das quais ele granjeou para si favor e publicamente autenti­cou sua missão a Daniel. Ele diz que o anjo apareceu na form a de

l4! Ou, seja. alguém vestido à moda dos filhos dos homens.141 Ou. seja. que ficou do lado oposto ou distante de mim.144 Há no original pleonasmo das palavras “e eu", o que o idioma latino não admite.145 Ou, seja, alguém que assumiu uma aparência humana.

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[10-16-18] DANIEL

homem, ou dos filhos do homem. Tudo indica que aqui eie está falando de outro anjo; mas à medida que avançarmos percebere­mos ser este anjo aquele mesmo que apareceu primeiro. Ante­riormente ele dera a si o nome de homem-, agora, para distingui- lo dos homens, e para provar que ele apareceu na form a e não na natureza humana, diz que ele portava a semelhança dos filhos de um homem. Há quem restringe isso a Cristo, porém temo que isso também seja forçado; e quando todos os pontos estiverem mais acuradamente discutidos e eu tiver prontamente antecipado o resultado, veremos ser mais provável que o anjo aqui designa­do seja o mesmo de quem Daniel até aqui falou. Já declaramos que ele não deve ser Cristo, porque esta interpretação m elhor se adequa à pessoa de Miguel, o qual já fora mencionado, e que surgirá novamente no final deste capítulo. D aí ser mais simples aceitar a questão assim: o anjo fortaleceu Daniel tocando seus lábios; e o anjo, anteriormente chamado homem, era apenas na aparência, empregando figura e imagem humanas, todavia sem participar de nossa natureza. Porque, admitir que amiúde Deus enviava seus anjos revestidos de corpos humanos não significa que ele os tenha criado homens no sentido em que Cristo se fez homem; pois esta é uma diferença especial entre os anjos e Cris­to. Afirmamos anteriormente como Cristo nos foi descrito sob esta figura. E não há nada de surpreendente nisso, porque Cristo assumiu alguma forma da natureza humana antes que se mani­festasse em carne, e os próprios anjos às vezes se vestem de apa­rência humana. Em seguida ele diz: ele a b riu sua boca e falou. Com estas palavras ele explica mais plenamente o que previa­mente afirmou, porquanto sentiu-se totalmente estupefato de ter­ror e aparentemente estava morto. Então começou a abrir sua boca e sentiu-se reanimado em sua confiança. Não admira, pois, se os homens caem e desmaiam quando Deus revela tais sinais de sua glória; pois quando Deus resolve manifestar sua força con­tra nós, o que somos? Basta sua aparência para que as montanhas

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se derretam, e sua voz para que a terra se abale [SI 104.32], Como, pois, podem os homens manter-se de pé assim que Deus aparece em sua glória, quando não passam de pó e cinza? Daniel, pois, estava prostrado, porém em seguida recobrou suas forças assim que Deus também recobrou sua coragem. Devemos com preen­der a certeza de sermos compelidos a desvanecer-nos em nada sempre que Deus põe diante de nós algum sina! de seu poder e majestade; e contudo ele nos restaura outra vez e demonstra ser nosso Pai e testifica de seu favor para conosco tanto verbalmente quanto por meio de sinais. A linguagem desta sentença poderia ser supérflua - ele abriu sua boca e fa lou e disse; mas por meio dessa repetição ele queria, como já afirmei, expressar claramente sua própria recuperação do uso da linguagem depois de ser refri­gerado pelo toque do anjo.

Ele diz que falou àquele que estava em pé d ian te de mim. Esta frase nos capacita a concluir que o anjo aqui enviado era o mesmo que veio antes; e isso aparecerá ainda mais claramente no final do capítulo e quando avançarmos com nosso tema. Então ele diz: Ó m eu Senhor, p o r causa d a visão sobrevieram -m e dores e eu não pude re te r m inhas forças. Aqui ele cham a o anjo ‘meu Senhor’, segundo o costume hebreu. A afirmação de Paulo era legítima sob a lei - não há senão um só Senhor [IC o 8.6] - , os hebreus, porém, usam a palavra indiferentemente quando se dirigem uns aos outros como um título de respeito. Para eles o uso desta frase não era menos um costume do que para nós, em casos especiais. Confesso que esta posição é muito inconsisten­te; mas, como era um a forma comum de expressão, o profeta não usa cerimônia ao chamar os anjos de ‘senhores’. O anjo, pois, é chamado senhor simplesmente por causa do respeito, assim como o título se aplica aos homens elevados em dignidade. N a p ró ­p r ia visão, ou, seja, antes que começaste a falar, eu estava mer­gulhado em tristeza e privado de todo vigor. Como, pois, diz ele, sou capaz de falar agora? Tu, com teu aparecimento, me deixaste

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[10.16-18] DANIEL

deprimido; não surpreende que eu esteja totalmente emudecido; e agora, se eu abro minha boca, não sei o que dizer, visto que o pavor que tua presença ocasionou manteve todos meus sentidos completamente atordoados. Percebemos que o profeta está ereto só em parte, estando ainda dominado por algum grau de assom­bro, e por isso incapaz de expressar verbal e livremente os pensa­mentos de sua mente. Portanto, acrescenta: E agora o servo des­te meu senhor será capaz de fa la r com meu senhor? O dem ons­trativo m , zeh, parece ser usado à guisa de ampliação, segundo a frase bastante comum em nossos dias, com tal gente. Daniel não realça simplesmente a presença do anjo, mas tenciona expressar sua rara e singular excelência. Uma disputa seria supérflua e fora de lugar, ou, seja, que alguém assevere a ilegitimidade de se atri­buir tal autoridade ao anjo. Porque, segundo m inha observação prévia, o profeta usa a linguagem comum de seu tempo. Ele de form a alguma tencionava detrair absolutamente o mínimo grau da monarquia de Deus. Ele conhecia a existência de um único Deus, e que Cristo era o único príncipe da Igreja; entrementes, ele espontaneamente se permitiu seguir a form a comum e popu­lar de falar. E de fato somos também aptos ou a evitar ou a negli­genciar a cerimônia religiosa no uso das palavras. Em bora m an­tenhamos que o profeta seguiu as formas cerimoniais de expres­são, ele em nada detraiu algo de Deus transferindo-o para o anjo, como os papistas quando manufaturam inúmeros santos patro­nos e despojam Cristo de sua justa honra. Daniel não sancionaria isso, porém tratou o anjo com honra, como se fora ele algum mortal notável e ilustre, segundo minha observação prévia. Ele sabia muito bem ser um anjo, porém em seu discurso não cedeu a quaisquer fúteis escrúpulos. Já que o vira na form a humana, en­tão dialogou com ele como tal; e com referência à infalibilidade da profecia, ele claramente se persuadira da missão do anjo como um preceptor celestial.

Em seguida, acrescenta: E n tão não restou fo rça algum a em

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55* EXPOSIÇÃO [10.16-18]

m im , e m eu fôlego esvaiu-se. Há quem traduz esta sentença no tempo futuro - não restará; e certamente o verbo 1 Ü P \ ignemed , ‘restará’ está no tempo futuro; porém em seguida vem o pretéri­to, quando ele diz: m eu fô lego esvaiu-se. Sem dúvida, isso é ape­nas um a repetição do que observamos antes; pois Daniel sentiu- se apoderado não só de medo, mas também de estupor à vista do anjo. Daí a impressão de estar totalmente destituído tanto do in­telecto quanto da língua; tanto para entender quanto para expres- sar-se em resposta ao anjo. Eis o sentido pleno das palavras. Em segundo lugar, ele acrescenta: senti-m e fortalecido pelo toque daquele que se vestia com o hom em ; pois ele m e tocou e m e falou. Com tais palavras Daniel explica mais claramente como não conseguiu recobrar suas energias no primeiro toque, mas que aos poucos foi reanimado e a princípio só pôde pronunciar três ou quatro palavras. Percebemos, pois, quão impossível é para aqueles que se vêem prostrados por Deus reunir suas energias no primeiro momento, e como é parcial e gradativamente que reco­bram as faculdades que haviam perdido. D aí a necessidade de um segundo toque para que Daniel fosse capacitado a ouvir diri- gir-se-lhe a palavra com uma mente em perfeito estado. E aqui novamente ele nos inspira fé na profecia, visto que não estava de modo algum em êxtase enquanto o anjo lhe dirigia a palavra acerca de eventos futuros. Se permanecesse sempre prostrado, sua aten­ção poderia jam ais captar a mensagem do anjo e jam ais teria de­sempenhado a tarefa de profeta e mestre em nosso favor. Assim Deus associou essas duas condições - terror e renovação das ener­gias - para tornar possível a Daniel receber com serenidade o ensino do anjo e nos entregar fielmente o que recebera de Deus pelas mãos do anjo. Vamos em frente:

19 E disse: N ão tem as, 6 hom em m uito 19 E t dixit, N e tim eas v ir desideriorum ,1“ am ado; paz seja contigo: sê forte. sim . sê Pax tibi, confortare, e t conforta re.147 El

146 O u, seja. desejar, como dissemos antes.1,1 Há quem traduz: “Age como homem e sê forte." Ambas as palavras são as mesn as no

original.

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[10.19] DANIEL

fone. E quando e le falou com igo, fiquei cum loquereturm ecum , roboravi me: tunc fortalecido e disse: Fala, meu senhor, por- d ixi, L oquatur D om inus m eus, qu ia ro ­que m e fortaleceste. borasti mc.

Primeiro ele explica como recobrou suas energias em resulta­do da exortação do anjo; pois ele se refere a este encorajamento como um a ordem para revestir-se de bom ânimo. Portanto, não tem as, ó hom em m uito am ado. Aqui o anjo se dirige a Daniel com m uita brandura, procurando acalmar seus temores, pois ele carecia de algum estímulo ao se ver oprimido pelo pavor oriundo das palavras e do aspecto do anjo. Eis a razão por que [o anjo] o denom ina de homem muito amado. E acrescenta: paz seja con ti­go, saudação costum eira entre os hebreus, frase cujo significado é o mesmo que daquela [palavra] latina: que o bem seja contigo. Paz, como os judeus a usavam, significa um estado de prosperi­dade, felicidade e quietude e coisas desse gênero. Portanto, paz seja contigo significa: Que sejas próspero. Com esta saudação, o anjo declara sua chegada para favorecer o profeta e dar testemu­nho dos sentimentos de Deus repassados de m isericórdia para com os israelitas e da recepção de suas próprias orações. É preci­so observar com diligência esse fato, porque, como eu já obser­vei, sempre que Deus manifesta algum sinal de sua majestade, inevitavelmente somos apavorados. Não há outro remédio que se iguale ao favor de Deus plenamente manifesto a nós, e seu teste­munho de sua aproximação de nós na qualidade de Pai. O anjo expressa esse sentimento mediante a frase que usa, demonstran­do com que justiça Daniel caiu inânime movido de reverência pela presença de Deus e a necessidade de ser tranqüilizado e re­cuperado ao saber que o mesmo fora enviado para dar testemu­nho do favor divino. Portanto, paz seja contigo.

Em seguida acrescenta: Sê fo rte , sim , sê forte. Com essa re­petição, o anjo ensina quão extremo esforço se requeria do profe­ta para que se despertasse; se houvera sido terrificado apenas su­perficialmente, teria bastado uma palavra para sua recuperação.

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55* EXPOSIÇÃO [ 10 . 20 ]

Mas como fora transportado para além de si mesmo, e todos seus sentidos se desvaneceram nele, o anjo inculca duas vezes a m es­m a exortação: sê forte! Daí, sê forte, sim, sê forte \ ou, seja, recu­pera tuas energias. E caso não possas fazer isso prontamente, continua recobrando aquela alacridade que pode tornar-te um dis­cípulo apto. Pois enquanto permaneces assim atônito, minha pa­lavra [dirigida] a ti será sem fruto. H á duas razões pelas quais devemos notar o profeta nos informando novamente quão desco- roçoado ele ficara. Primeiro, prova-se quão livre de ambigüidade realmente era esta revelação, e quão claramente ela foi estampa­da com marcas de genuinidade. Em segundo lugar, devemos aprender quão terrível nos é a presença de Deus, a não ser que sejamos persuadidos do exercício de seu paternal amor para co­nosco. Finalmente, devemos observar como, assim que nos vir­mos abalados, podemos imediata e completamente recobrar nos­sas energias, porém devemos ficar satisfeitos se Deus gradual e sucessivamente nos inspirar com energia renovada.

Daniel prossegue, dizendo: F u i fo rtalecido , e disse: Q ue fales, m eu senhor, p o rque me sin to fortalecido. Com essas pa­lavras ele indica sua paz mental depois que o anjo o reanimara tocando-lhe duas vezes, e ao incutir-lhe ânimo através de sua exortação. É-nos muitíssimo proveitoso tomarmos a devida nota dessa tranqüilidade mental, porque o profeta deve, antes, conver­ter-se num diligente estudante para em seguida capacitar-se ao desempenho, em nosso favor, do ofício de mestre fiel. Com a maior propriedade, ele reitera sua ordem para que ele recobrasse sua energia, o que o capacitou a dirigir-se ao anjo com facilidade. Vamos em frente:

20 E ntão ele disse: Sabes por que eu vim 20 Et dixit, An cognoscis, scisne, quarea t i? A gora, pois, tom arei a pelejar com o venerim ad te, et nunc revertar ad pug-príncipe d a Pérsia; e, ao sair, e is que o nandum cum príncipe Persarum : e t egopríncipe da G récia virá. egred iens, hoc est, ubi egressus fuero,

lunc ecce princeps Javan, hoc est. G rxco- rum. veniet.

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[ 10.20] DANIEL

Aqui é como se o anjo conduzisse debalde o profeta através de um curso sinuoso; porque poderia direta e simplesmente ter- lhe dito por que viera. Era necessário restaurar o profeta em seus sentidos, visto que num dado momento ele deixara de ser senhor de suas ações. N a verdade ele não ficara permanentemente preju­dicado em suas faculdades mentais, mas o distúrbio das emo­ções, pelo qual passara, tinha temporariamente desequilibrado a serenidade de seus pensamentos. Esse fato realmente ocorreu e foi narrado para nosso proveito. Eis a razão por que o anjo nova­mente usa este prefácio: Tu sabes? como se quisesse reorganizar os sentidos do profeta que um pouco antes se tom aram oscilantes e dispersos. Ele insiste com o profeta a que prestasse muita aten­ção. E agora , diz ele, voltarei; ou, seja, depois que eu tiver ex­plicado o que em seguida ouvirás: vo ltarei novam ente p a ra p e le ja r co n tra o p rínc ipe dos persas. Aqui o anjo indica a ra­zão para a delonga de sua missão, não porque Deus negligenciara os gemidos e orações de seu profeta, mas porque o tempo oportu­no ainda não havia chegado. O anjo anteriormente declarara como o príncipe persa se lhe opusera, significando que o deteve, e que o anjo fora obrigado a entrar em conflito com ele, porque sua crueldade para com o povo eleito se tom ara muito mais terrível e insolente. Este é o relato que ele dá de sua ocupação. Mas então acrescenta: Voltarei para pelejar contra o príncipe dos persas. significando que Deus o enviara com o expresso propósito de desvendar a Daniel as ocorrências futuras, mas agora este sabia quão longe estava o anjo de descansar daqui em diante. Diz ele: Agora venho para ser testemunha e arauto de Deus, de seu bene­plácito para contigo e teu povo. Na realidade, sou o defensor de tua segurança, visto que tenho de constantemente pelejar por ti contra o príncipe dos persas. Sua menção é a Cambyses. Sigo minha interpretação anterior de um confronto entre o anjo e o rei da Pérsia, a quem homens perversos estimularam à crueldade; porquanto revogara o édito de seu pai. O anjo resistira a fúria do

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55* EXPOSIÇÃO [ 10 . 21 ]

rei, o qual era naturalmente em extremo turbulento, e os escrito­res profanos têm descrito seu caráter de um a maneira semelhante.

Ele agora acrescenta: Irei pelejar contra o príncipe dos per­sas. Pois a palavra DP, gnem, tem a função de ‘contra’, aqui e em muitas outras passagens. Em seguida acrescenta: E q u an d o p a r ­tir , isto é, quando tiver ido, en tão o p ríncipe d a G récia v irá , diz ele. Ou, seja, Deus o usará de outra maneira. Com isso ele não quer dizer Cambyses, mas outros reis persas, como explicaremos no devido lugar. É plenamente correto supor que o rei da Mace- dônia está chegando com a permissão de Deus; o anjo, porém, simplesmente quer afirmar a existência de vários métodos pelos quais Deus refreia a crueldade dos reis, sempre que tentam preju­dicar seu povo. Enviará o príncipe dos gregos, diz ele. Portanto, Deus assim restringe Cambyses pela assistência do anjo, e então protegeu seu povo da crueldade exercida por Alexandre, rei da Macedonia. Deus está sempre providenciando a segurança de seu povo e tem sempre um a grande variedade de métodos em opera­ção. O anjo queria ensinar-nos isso com toda simplicidade. Por fim, ele acrescenta:

21 M ostrar-te-ei. porém , o que e stá ano- 21 Veruin indicabo libi quod exaratum est tado na escritura da verdade: e ninguém in Scrip tu ra veraci: e l non unus qui se há que m e sustente nessas coisas, exceto roboret, vel, qui viriliter agat. m ecum inM iguel, vosso príncipe. his, nisi M ichael princeps vester.

Omito a interpretação daqueles que dizem que, após a partida do anjo, o príncipe dos gregos avançou, porque Deus cessou de prestar assistência ao reino dos persas. Isso é totalmente diferen­te da intenção do profeta, e devemos manter a explicação que tenho adotado. O anjo agora acrescenta o objetivo de sua missão- fazer Daniel fámiliarizar-se com o que ele mais adiante relata­rá. Novamente granjeia nossa confiança para sua mensagem, não só por causa particularmente do profeta, mas para assegurar a todos os santos quão isentos eram os escritos de Daniel de qual­quer fraude ou invenção humana, e quão plenamente receberam

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[ 10 . 21 ] DANIEL

a inspiração do alto. Portanto, anunciare i o que foi g ravado ou esculpido n a e sc ritu ra d a verdade. Com esta frase, “a escritura da verdade”, indubitavelmente ele indica o decreto eterno e invi­olável do próprio Deus. Deus não carece de livros; papel e livros não passam de auxílios para a memória, o que de outra form a as coisas facilmente cairiam no esquecimento. Visto, porém, que ele [Deus] jam ais sofre de amnésia, daí não carecer de nenhum livro. Estamos cientes de quão amiúde a Sagrada Escritura adota formas de expressão segundo os costumes humanos. Esta sen­tença insinua como se o anjo dissesse que nada trouxe senão o que Deus já havia determinado outrora, e assim o profeta deve aguardar uma plena e completa concretização.

Em seguida acrescenta: N inguém há que m e susten te neste dever, exceto M iguel, a quem ele cham a o príncipe do povo elei­to. É surpreendente que o anjo e Miguel sozinhos lutassem pela segurança do povo. Está escrito: Os anjos acampam em derredor dos que temem a Deus [Sl 34.7]; e então só existia uma Igreja no mundo. Por que, pois, Deus não confiou esse encargo a mais de um anjo? Por que não enviou exércitos poderosos? Reconhece­mos que Deus não se limita a alguma regra fixa; ele pode ajudar- nos tão bem com muitas forças como também com um único anjo ou com mais. E ele não faz uso de anjos porque nada pudes­se fazer sem eles. Eis a razão daquela variedade que observamos: ele primeiro se contenta com o uso de um anjo, e então associa outros com ele. Ele dá a um homem um grande exército, como lemos de Eliseu, e como outras passagens da Escritura nos ofere­cem exem plos [2R 6.17], O servo de Eliseu viu o céu cheio de anjos. Assim também Cristo afirmou: Não posso pedir a meu Pai, e ele me enviaria, não apenas um anjo, mas um a legião? [Mt 26.53]. Além disso, o Espírito de Deus designa muitos anjos para cada um dos fiéis [Sl 91.11]. Portanto, agora entendemos porque Deus envia mais anjos, nem sempre com o mesmo propósito ou intenção, para informar-nos que ele nos é suficiente para propici-

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55a EXPOSIÇÃO [ 11 . 1]

ar proteção, mesmo quando nenhum outro auxílio nos seja provi­denciado. Ele provê para nossas enfermidades, trazendo-nos au­xílio por meio de seus anjos, os quais agem como mãos a execu­tarem suas ordens. M as já observei previamente que esta não é uma prática invariável, e não devemos obrigá-lo, por quaisquer condições fixas, a suprir nossas necessidades sempre da mesma maneira. Parecia que Deus, pelo menos por certo tempo, havia deixado seu povo sem qualquer auxílio, e depois dois anjos fo­ram enviados para pelejarem por eles: primeiro, um só foi envia­do a Daniel; e então Miguel, que alguns pensam ser Cristo. Não faço objeção a este ponto de vista, porque ele o cham a príncipe da Igreja , e esse título não parece de form a alguma pertencer a qualquer outro anjo, porém é peculiar a Cristo. Em suma, o anjo quer dizer que Deus não exibe sua própria força em pelejar por sua Igreja, mas revela ser um servo a promover sua segurança até manifestar-se o tempo do livramento. Em seguida acrescenta - pois o próximo versículo pode ser tratado de form a breve e deve ser conectado com este a um só contexto.

d iip ítu ú o 111 A lém disso, no prim eiro ano de D ario, 1 E t ego anno prim o Darii M edi steti in o m edo, m e levantei para confirm á-lo e roboratorem , e t auxilium illi.l4S fortalecê-lo.

Os intérpretes explicam este versículo de formas variadas. Alguns pensam que o anjo pelejou em prol do rei persa, e refor­çam sua opinião dizendo que ele não fez da primeira vez o que começa agora a fazer, ou, seja; defender aquele m onarca em fa­vor do povo eleito, mas que agira assim desde o início. Outros atribuem isso a Miguel, já que o anjo declara que introduziu a assistência de Miguel. Mas isso é forçado e insípido. Não hesito em expor o argumento que parte do maior para o menor, e temos

148 Ou. seja. com o intuito de fortalecê-lo e dar-lhe assistência.

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[ 11 . 1 ] DANIEL

um exem plo disso numa tragédia de Ovídio. Fui capaz de preser- vá-lo; tu perguntas se posso destruí-lo? Assim diz o anjo: Erigi a monarquia persa; não tenho a mais leve dúvida de poder agora restringir esses reis para que não derramem sua fúria sobre o povo. O significado pleno é este: o rei dos persas é uma nulidade, e nada pode fazer a não ser por meu intermédio. Sou servo de Deus para transferir a monarquia dos medos e caldeus para os persas, tanto quanto a dos babilônios para os medos. Deus, diz ele, me confiou essa função, e por isso pus Dario no trono. Tu podes ver agora como o tenho plenamente em meu poder e como posso impedi-lo de prejudicar meu povo, caso fosse essa sua intenção. Ao gloriar-se o anjo de fica r para ajudar Dario, ele nada reivin­dica para si, porém fala como se estivesse na pessoa de Deus. Porque os anjos não têm poder distinto do poder de Deus quando ele usa a agência e assistência deles. Não há razão para alguém inquirir se o anjo deve ou não usar essa linguagem ostensiva e reivindicar algo para si mesmo. Porquanto ele não reivindica algo realmente seu. porém demonstra ser o agente na transferência de dinastia quando Babilônia foi subjugada pelos medos e o impé­rio foi transferido para Dario. Como já demonstrei previamente, ainda que Ciro obtivera a vitória, não obstante transferiu as hon­ras do governo para seu tio Cyaxares. Os hebreus costumavam considerá-lo rei nos dois primeiros anos; Ciro começou a reinar depois desse período. E agora, ao aparecer o anjo a Daniel, já havia entrado o terceiro ano, como vimos no início do capítulo.

ORAÇÃO

Deus Onipotente, visto que diária e familiarmente te dignas conce­der-nos a luz da doutrina celestial, que nos acheguemos a tua escola com genuína humildade e modéstia. Seja nossa docilidade de fato evidente; que recebamos com reverência tudo quanto proceda de teus lábios, e que tua majestade seja preeminente entre nós. Possamos provar dessa benignidade que tu sempre nos manifestas em tua Pala­vra e sejamos capacitados a triunfar em ti como nosso Pai. Que tua presença não nos aterrorize tanto, mas que desfrutemos do suave

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testemunho de tua graça e favor paternais. Que tua Palavra nos seja mais preciosa que o ouro e todos os tesouros terrenos; e, entremen­tes. nos nutramos de sua doçura, até que alcancemos aquela plena saciedade que está a nossa espera no céu, pela mediação de Cristo nosso Senhor. Amém.

55* EXPOSIÇÃO

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56ag.xposição

2 E agora te m ostrarei a verdade. E is que 2 E t nunc veritatem annuntio tibi: Ecceainda restarão três reis na P é rs ia ;e o q u a r- adhuc tres reges stabun t in Perside, etto será m ais rico do que todos eles: e po r quarlus d itab itu r op ibus m agn is,1*' p r ssua força, a través de suas riquezas, e le om nibus e t secundum fottudinem suam,instigará a todos contra o reino da G récia. in. inquam. opibus su is ,isn excitab it om-

nes contra regnum G raco m m .

Devemos agora discernir a intenção de Deus em assim infor­mar a seu servo Danie! sobre eventos futuros. Evidentemente, ete estava disposto a satisfazer uma vã curiosidade, e discorreu sobre acontecimentos cujo conhecimento se fazia necessário, capacitando assim o Profeta a não só privativamente confiar na graça de Deus, através desta manifestação de seu desvelo por sua Igreja, mas também exortar outros a perseverarem na fé. Este capítulo se assemelha a um a narrativa histórica sob a forma de um a descrição enigmática de acontecimentos futuros. O anjo re­lata e põe diante de seus olhos ocorrências que ainda estavam por vir. Deduzimos disto mui claramente como Deus falava através de seus profetas; e assim Daniel, unicamente em seu caráter pro­fético, nos é uma clara prova do peculiar favor de Deus para com os israelitas. Aqui o anjo discute, não o estado geral do mundo, mas primeiramente o reino persa, então a monarquia de Alexan­dre, e, por fim, os dois reinos da Síria e do Egito. A luz disto, percebemos claramente como todo o discurso foi direcionado aos

1411 Ou, ele será rico com grande opulência.150 Ou, com suas riquezas, ou, seja. quando ele prevalecer.

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56a EXPOSIÇÃO [ 11 . 2]

fiéis. Deus não levava em conta o bem-estar de outras nações, mas queria beneficiar sua Igreja, e principalmente sustentar os fiéis em suas próximas tribulações. Visava a assegurar-lhes que Deus jam ais se esquece de seu pacto e de moderar, assim, as con­vulsões que estavam acontecendo por todo o mundo, de modo a proteger sempre seu povo com sua assistência. Mas teremos de repetir isso novamente, e ainda mais uma vez, à medida que pros­seguirmos.

Antes de tudo, o anjo declara: L evan tar-se-ão trê s reis na Pérsia . Com respeito à frase: Eis que te anuncio a verdade, ex­pliquei na preleção de ontem quão amiúde ele confirmava sua profecia sempre que tratasse de eventos da maior importância, o que parecia quase inacreditável. D ir-te-ei a verdade real; três reis se levan tarão . Os judeus são não só ignorantes acerca de tudo, mas também excessivamente estúpidos. E assim não têm nenhum senso de pudor, e se revestem de perversa audácia; pois pensam que houve apenas três reis na Pérsia, e negligenciam toda a história e mesclam e confundem as coisas perfeitamente claras e sobejamente distintas. Houve oito reis na Pérsia dos quais não se faz nenhuma menção aqui. Por que, pois, o anjo diz: levantar- se-ão três reis? Este era o primeiro ano de Dario, como vimos antes. Daí, em seu número de reis, inclui-se Ciro, o primeiro monarca, juntam ente com seu filho Cambises. Quando esses dois reis tiverem sido determinados, suscitar-se-á novamente uma nova dúvida; pois alguns acrescentam Smerdis a Cambises, embora não passasse de impostor; pois os magos falsamente o apresenta­ram como filho de Dario, com o propósito de adquirir para si a soberania. Assim ele foi reconhecido como rei por sete meses; mas, quando a fraude foi descoberta, ele foi morto por sete dos nobres, entre os quais estava Dario filho de Hystaspes, e este, segundo a narrativa popular, foi feito rei pelo consenso dos de­mais com base no relincho de seu cavalo. As variações dos intér­pretes costumam dificultar-nos de lê-los, e por isso devemos dedu-

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[ 11 . 2] DANIEL

zir a verdade do próprio acontecimento. Pois Smerdis, como eu já afirmei, não pode ser computado entre os reis da Pérsia, visto que não passou de um impostor. Portanto, eu o excluo, seguindo a prudência de outros que têm considerado o ponto com atenção.

Então devemos observar por que Daniel menciona quatro reis, dos quais o q u a rto , diz ele, seria m uito rico. Cambises sucedeu a Ciro, que estava reinando quando a profecia foi enunciada. Ele vivia sempre se movendo para lugares distantes; raram ente se perm itia descansar por um só ano; era excessivamente cobiçoso de glória, insaciável em sua ambição e sempre a instigar novas guerras. Cambises, seu filho, que assassinara seu irmão, morreu no Egito e ainda adicionou este país ao império persa. Dario, filho de Hystaspes, prosperou, e Xerxes o seguiu. Está enganado quem pensa que Dario, filho de Hystaspes, foi o quarto rei; sem dúvida o Profeta quis dizer Xerxes, que cruzou o mar com um poderoso exército. Ele levou consigo 900.000 homens; e por mais inacreditável que isso nos pareça, todos os historiadores o afir­mam constantemente. Sua soberba dominou seu íntimo a tal ponto que disse ter vindo pôr grilhões no Helesponto, enquanto seu exér­cito cobria todo os países circunvizinhos. Este é um ponto; os quatro reis eram Ciro, Cambises, Dario, filho de Hystaspes, e Xerxes, omitindo Smerdis. Podemos agora inquirir por que o anjo limita o número a quatro, visto que o sucessor de Xerxes foi Ar- taxerxes, ou Dario Longímano, “mãos alongadas” , e alguns ou­tros depois dele. Esta dificuldade é dissolvida pelo seguinte mé­todo provável - Xerxes destruiu o poder do império persa através de sua temeridade; escapou coberto de infortúnio e foi salvo qua­se só pela ignomínia de sua fuga. Levou consigo apenas uns pou­cos companheiros, às pressas, num pequeno bote, e não conse­guiu um único transporte, não obstante o Helesponto fosse previ­amente coberto por seus navios. Quase todo seu exército foi frag­mentado, primeiramente em Termopile, e então em Leuctra, e mais tarde em outros lugares. Desde aquele período o império

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56* EXPOSIÇÃO [ 11 . 2]

persa se declinou, porque, quando sua glória bélica foi aniquila­da, o povo se entregou à indolência e ociosidade, segundo o tes­temunho de Xenofonte. Alguns intérpretes explicam a frase, le- vantar-se-ão três reis, como significando o período florescente da monarquia persa. Tomam as palavras ‘levantar-se-ão’ enfati­camente, visto que, desde aquele período, o poder da nação co­meçou a declinar-se. Porquanto Xerxes, em seu regresso, passou a ser odiado por todo o povo, primeiramente por sua insensatez; em seguida, por mandar executar seu próprio irmão, por sua des­ditosa conduta em relação a sua irmã e por seus demais crimes. E visto que se viu tão sobrecarregado de infâmia à vista de seu próprio povo, foi assassinado por Artabano, o qual reinou sete meses. Visto que o poder da Pérsia foi então quase totalmente destruído, ou, pelo menos, começou a declinar-se, alguns intér­pretes afirmam que esses três reis vieram à existência, e então acrescentam que Xerxes foi o quarto e o mais opulento. Tome­mos, porém, o termo ‘levantar-se-ão’ relativamente, com respei­to à Igreja. Pois o anjo declara que o príncipe persa, Cambises, levantou-se diante dele, numa atitude de hostilidade e conflito. O anjo parece, antes, sugerir o soerguimento de quatro reis da Pér­sia , com o propósito de lembrar os judeus dos sérios males e das graves tribulações que sofreriam sob seu domínio. Neste sentido, interpreto o verbo ‘levantar’ como uma referência às pelejas pe­las quais Deus molestou a Igreja até a morte de Xerxes. Pois na­quele período, quando o poder dos persas eclipsou-se, um perío­do mais longo de repouso e relaxamento foi propiciado ao povo de Deus. Eis a razão por que o anjo omite e transcorre em silên­cio todos os reis desde Artabano até Dario, filho de Arsaces. Por­que Arsaces foi o último rei exceto um, e ainda que Ochus rei­nasse antes dele, sabemos de historiadores profanos como sua posteridade foi reduzida à mais vil condição sob o último Dario, a quem Alexandre venceu, como logo veremos. Por essa razão creio ser este o sentido genuíno da passagem: desde Ciro a Xerxes,

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[11.2] DANIEL

reis da Pérsia se levantariam contra os israelitas, e durante todo aquele período as pelejas seriam renovadas, e os judeus quase pereceriam pelo desespero sob aquela série contínua de males. Alguns dizem que quatro reis se levantariam até que todos os judeus fossem retirados; e sabemos que isso nunca foi com pleta­do, pois apenas um a pequena porção regressou. Em m inha opi­nião, não me sinto disposto a poleminizar com outros, todavia não hesito em reforçar o desejo do anjo de exortar todos os san­tos à paciência, pois ele anunciou o soerguimento desses quatro reis, os quais lhes trariam graves tribulações. Quanto ao quarto rei, a afirmação desta passagem se adequa perfeitamente a Xerxes. O quarto, diz ele, será enriquecido com riquezas', pois o substan­tivo é de significado semelhante ao verbo, visto que ambos pro­vêm da m esm a raiz. Na verdade Dario, filho de Hystaspes, deter­minou empreender guerra contra a Grécia; ele fez tentativas, po­rém sem sucesso, especialmente na batalha de M aratona. Ele foi eliminado por morte súbita, quando seus tesouros estavam pre­parados e muitas forças eram arregimentadas. Ele assim deixou o material de guerra para seu filho. Xerxes, na flor de sua idade, viu toda a preparação para a guerra posta em suas mãos; avida­mente aproveitou a ocasião e não deu atenção alguma aos conse­lhos sábios. Porque, como já afirmamos, ele se destruiu, bem como a toda a monarquia, não por um único massacre, mas por quatro. E esse poder de suscitar um exército de 900.000 homens não foi um a ocorrência corriqueira. Se tivesse levado consigo, e cruzado o mar com apenas 100.000 homens, isso teria sido uma grande força. M as seus recursos para alimentar tão grandes for­ças, e então fazê-las atravessar o mar, excede os limites ordinári­os de nosso raciocínio. Não nos surpreende, pois, que o anjo te­nha predito a extrema riqueza desse rei.

E acrescenta: E m sua fo rtaleza e suas riquezas ele instiga­r á a todos co n tra o reino dos gregos. Isso não foi realizado por Dario, filho de Hystaspes. Segundo minha declaração anterior,

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56* EXPOSIÇÃO [11.31

ele atacou algumas cidades gregas, porém sem produzir confu­são por todo o Oriente, como fez Xerxes seu sucessor. Quanto à frase, o reino de Javã, subscrevo de bom grado a opinião dos que crêem ser a palavra equivalente à palavra grega Iônia. Porque Javã saiu naquela direção e habitou ali com sua posteridade no território grego, donde quase toda a Grécia adquiriu seu nome atual. Toda a nação grega é às vezes cham ada ‘C itim ’, e alguns vêem boas razões para a mesma ser cham ada ‘Machetae’, de Ci­tim, filho de Javã, e assim com a adição de um a letra chegamos aos macedônios. Pois há probabilidade na conjetura de que esse povo foi primeiramente chamado Maketae e mais tarde, macedô­nios. Sem dúvida, nesta passagem, e em muitas outras, Javã é expresso por toda a Grécia, visto que Iônia era a porção do país muitíssimo celebrada na Judéia e por todo o Oriente em geral. Xerxes, pois, instigou contra o reino de Javã - significando a Grécia - todo o povo do Oriente; pois é sobejamente notório como seu império expandiu-se em todas as direções. Vamos em frente;

3 E se levan tará u m rei poderoso, que 3 Et stabit rex fortis, e t dom inabitur do- govem ará com grande dom ínio e ag irá m inatione m agna, e t faciet secundum vo- segundo sua vontade. luntatem suam .151

Essa é um a referência a Alexandre da Macedônia. Já declarei brevemente a razão por que o anjo passou por todos os reis per­sas, de Artabano ao último Dario - não se envolveram em quais­quer pelejas com os judeus até Xerxes. Mas quando Alexandre invadiu a Ásia, ele chocou os judeus com profundo terror, bem como todas as nações. Ele veio como relâmpago, e de modo al­gum causa surpresa que os judeus tenham se apavorado com sua chegada, porque, como anteriormente o expressamos, ele voou com espantosa rapidez. Alexandre, pois, rebelou-se, não só por meio das riquezas e poderio de suas preparações bélicas, mas necessariamente inspirou os judeus com perturbação quando per­

151 Ou. seja, como ele deseja, ou segundo sua cobiça.

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[ 11 .4 ] DANIEL

ceberam sua incapacidade para resisti-lo, e assim foi merecida- mente hostil com eles, porque, desde o início, haviam desdenha­do seu império. Josefo também nos informa como ele se com o­veu à vista do sumo sacerdote e como determinou mitigar seu furor contra os judeus. Pois quando estava em casa, antes de pas­sar para a Ásia, foi-lhe propiciada a visão do sumo sacerdote, porquanto Deus enviara seu anjo sob esse disfarce.152 Alexandre creu ser ele alguma divindade; mas quando o sumo sacerdote o encontrou em procissão, a visão veio novamente a sua lembran­ça, e sentiu-se chocado como se visse Deus vindo-lhe do céu. Seja qual for o objetivo dessa ocorrência, Alexandre evidente­mente entrou na Judéia com a intenção de destruir de vez toda a nação. Eis a razão por que o anjo cuidadosamente prediz essa mudança. Portanto, se lev an ta rá u m rei valente e governará com extenso dom ínio, e fa rá segundo seu bel-p razer; ou, seja, ele avançará como se tivesse todos os acontecimentos da guerra em sua própria mão e segundo sua própria vontade, como o pró­prio acontecimento provou sobejamente. Vamos em frente:

4 E quando ele levantar-se, seu reino será 4 E t ubi constiterit, frangetur. vel, conte- quebrado, e será div id ido para os quatro retur, regunum ejus, e t d iv ide tu r in qua- ventos do céu; m as não para sua posteri- tuor ventos c a lo n im , hoc e u , in quaiuor dade, nem segundo seu dom ínio que e le p la g a s m undi, e t non posteritati e ju s, et governou: porque seu re ino será arranca- non secundum dom inationem ejus, qua do. e passará a outros além daqueles. dom inatus fuerit: qu ia extirpabitur, radi-

c iius evelletur, regnum e jus. e t aliis abs- que illis.

Esta linguagem é concisa, porém não há ambigüidade no sen­tido. Antes de tudo o anjo diz: Depois que aquele rei valente tiver se levantado, seu império será feito em pedaços. Pois quando Alexandre atingiu seu apogeu, subitamente caiu enfermo e em curto tempo morreu em Babilônia. Embaixadores se reuniram

IS! Há vários erros menores na edição de 1617, os quais s io corrigidos na edição de 1671. Por exemplo, no fólio 94, verso 3, violavitem vez de volavir, e no fólio 95, verso 3, começa- se a frase com non, em vez de nam.

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em tom o dele vindo de cada região. Ele ficou completamente intoxicado pela prosperidade, e mui provavelmente envenenou- se. Os historiadores, contudo, o têm considerado como um notá­vel exemplo de valor singular, e assim têm pretendido e relatado porque pelo menos assim pensavam que ele fora fraudulentamente envenenado por Cassander. Todos nós, porém, sabemos quão in- temperada e imoderadamente ele se entregara à bebedice. Quase sepultou-se no vinho, e a perturbação se assenhoreou dele em meio a suas taças, e mergulhou nela, visto que nenhum remédio havia para ele. Esse, pois, foi o veneno de Alexandre. Seja qual for a m aneira de o entendermos, o fato é que ele caiu de repente, quase tão logo começou a pôr-se de pé. Depois de conquistar quase todo o Oriente, chegou a Babilônia e vacilou em seus pla­nos quanto ao emprego de suas forças, depois de obter a paz por todo o Oriente. Então foi tomado de ansiedade sobre a transfe­rência de seus exércitos, se para a Europa, ou para a África. Diz o anjo: Depois que ele se erguesse, significando depois que ele adquirisse a monarquia de todo o Oriente, seu reino seria que­brado. Ele usa esse símile em virtude de todo o poder de Alexan­dre vir a extinguir-se de tal forma que fragmentou-se em partes. Sabemos como seus doze generais dividiram entre si os espólios; cada um tomou um a porção, e assim o dividiram entre si, como já afirmamos previamente, como se ele fosse rasgado do corpo de seu senhor. Todos consentiram em erguer seu irmão Aridaeus à dignidade real e o chamaram Filipe, com vista a que, enquanto seus filhos fossem ainda jovens, a memória de seu pai os recomen­dasse aos olhos do mundo. Mas quatro reinos por fim emergiu da monarquia de Alexandre. É desnecessário aqui referir o que pode­mos ler, em nosso lazer, nos escritos de seus historiadores.

O Profeta apenas toca de leve sobre os pontos que se relacio­nam com a instrução da Igreja; ele não relata em ordem nem com detalhes os eventos narrados na história; simplesmente diz: Seu im pério será quebrado e será disperso, diz ele, para os qua-

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tro ventos do céu. O anjo omite aquela partilha que destinou o tesouro a um e deu a função de conselheiro a Filipe; Perdiccas foi o guardião de seu filho, e ele juntam ente com outros granjearam um a porção de seus domínios. Seleuco ficou com a Síria, a quem sucedeu seu filho Antíoco; Antígono veio a ser o prefeito da Asia M enor; Cassander, pai de Antipater, tomou para si o reino da M acedônia; Ptolomeu, filho de Lago, que não passara de um sol­dado comum, possuiu o Egito. Esses são os quatro reinos de que o anjo ora trata. Pois o Egito ficava situado ao sul da Judéia e a Síria, ao norte, como mais adiante teremos ocasião de observar. M acedônia veio em seguida, e então Ásia M enor, o Oriente e o Ocidente. O anjo, porém, não entra em detalhes complicados, mas brevemente enum era o que se fazia necessário para a instru­ção com um do povo eleito. O consenso geral de todos os escrito­res tem transmitido estes fatos: quatro reinos, finalmente, foram constituídos de muitas porções, depois que os líderes mataram mutuamente uns aos outros, somente os quatro sobreviveram, a saber: Ptolomeu, Seleuco, Antígono e Cassander. M ais tarde o reino de Antíoco aumentou suas fronteiras com a derrota de An­tígono; pois Antíoco acresceu a Ásia M enor ao reino da Síria. Antíoco, porém, esteve de pé só por pouco tempo, e daí o anjo real e apropriadamente afirmar que esse império foi dividido em quatro partes.

Em seguida ele acrescenta: e não p assa rá a sua p o ste rid a­de. Ninguém poderia ter imaginado o que o anjo predizia tantos anos antes do nascimento de Alexandre; pois ele só veio a nascer cem anos depois desse período. Todos quantos conhecem a ousa­dia de seus esquemas bélicos, a rapidez de seus movimentos e o sucesso de suas medidas, jam ais se persuadiriam de tal resultado- a com pleta destruição de toda sua posteridade e total extinção de sua raça.

Houvera Alexandre vivido tranqüilamente em casa, e ter-se- ia casado e se tom ado pai de filhos que teriam sido seus sucesso­

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res sem disputa. Ele morreu jovem , logo depois de atingir os trin­ta anos. Poderia ter se casado e tido herdeiros para seu trono. Ele tinha um irmão, Aridaeus, e outros parentes, entre os quais se achava seu tio Pirro, rei de Epiro» e uma prole régia podia assim ter sido preservada e um sucessor preparado para ele. Depois de haver subjugado a Ásia superior e inferior, ele veio a ser o senhor da Síria, Egito e Judéia, e estendeu seu domínio ao mar persa, enquanto sua fama se estendia para além da Á frica e Europa. U m a vez que ninguém ousava erguer um dedo contra ele, visto que possuía um exército muitíssimo magnificente, e todos seus generais estavam jungidos a ele por benefícios muito importan­tes e muitos de seus prefeitos se enriqueceram em virtude de sua extrem a liberalidade, quem teria imaginado que toda sua posteri­dade e parentes seriam assim extintos? Ele deixou dois filhos, porém foram assassinados como o foi seu irmão Aridaeus, en­quanto suas viúvas e sua mãe, com a idade de oitenta anos, parti­lharam da mesma sorte. Tampouco Cassander poupou a sua, por­quanto tecera intrigas contra ele. Por fim, se Deus quisesse punir tantos morticínios cometidos por Alexandre, então teria que co­meçar extinguindo toda sua posteridade. E todavia, como já afir­mei, nenhum inimigo estrangeiro foi o agente na aplicação de tão pesados castigos. Ele subjugara todo Oriente, e seu procedimen­to era tal como se toda a monarquia daquela parte do mundo lhe tivesse vindo de seus ancestrais por direito hereditário. Já que o mundo não continha nenhum inimigo para ele, seus inimigos pro­cederam de seu próprio lar; mataram sua mãe, suas viúvas, seus filhos e todos seus parentes, e erradicaram totalmente toda sua raça. Observamos, pois, com que clareza e certeza o anjo prediz eventos inteiramente ocultos daquela época e para cem anos de­pois, e tais como jam ais a humanidade poderia crer. Aí parece haver um grande contraste na linguagem; seu reino será quebra­do e será disperso para os quatro ventos do céu, e não passará a sua posteridade, ou, seja, em bora os quatro reinos procedessem

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dos quatro cantos do mundo, todavia ninguém de sua posterida­de restaria num único lugar, nem obteria mesmo a mínima por­ção de seus domínios. Essa foi uma prova notável da ira de Deus contra a crueldade de Alexandre; não que ele fosse selvagem por natureza, mas a ambição apoderou-se dele e o fez sanguinário e o indispôs a desejar pôr cobro a suas campanhas militares. Deus, pois. vingou-se daquela disposição gananciosa de Alexandre, per­mitindo que toda sua raça perecesse assim com desgraça e horrí­vel crueldade. D aí sua soberba de querer ser considerado filho de Júpiter, condenando à morte todos seus amigos e seguidores que não se prostrassem a seus pés como que diante de um deus - soberba que, repito, nunca poderia assegurar-lhe que um único descendente reinasse em seu lugar, ou mesmo lhe garantisse uma única satrapia. Não passará a sua posteridade, diz ele, nem se­gundo seu dom ínio.

Ele passa aos quatro reis, dos quais havia dito: Não procede­rá, diz ele; ou, seja, dos quatro reis. Ele já falou de sua estranha procedência, não de alguma forma oriundo da fam ília daquele rei; pois nenhum dos quatro se igualaria em poder, porque seu reino seria extirpado. Aqui o anjo parece omitir eventos interve­nientes, e fala de uma destruição final. Sabemos como o último rei, Perseu, foi vencido pelos romanos, e como o reino de Antío- co foi parcialmente destruído por guerra e parcialmente oprimi­do por fraude. E o anjo parece apontar para esse fato. Podemos interpretá-lo mais pertinentemente, considerando a cessação do império de Alexandre, com referência a sua raça, como se o anjo houvera declarado que nenhum de seus sucessores granjearia para si igual poder. E por quê? Nenhum deles o poderia realizar. Ale­xandre adquiriria um nome tão poderoso, que todo o povo sub­meteria de bom grado a sua autoridade, e nenhum sucessor pode­ria sustentar esse peso em sua totalidade. Daí seu reino, até onde se relaciona a ele e a sua posteridade, ser dividido, e ninguém atingiu seu poder e sua opulência. E será dado a outros. Aqui, o

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anjo explica seu significado. A destruição do reino não deve ser explicada particularmente como sendo partes isoladas, pois cada um se apoderou de sua própria porção para si, e seus sucessores eram todos estrangeiros. E a outros além daqueles; significando que seu reino será tomado por outros que não fazem parte de sua posteridade; ou, seja, estrangeiros assumirão o lugar de Alexan­dre, e não se erguerá nenhum sucessor de sua própria parentela. Vamos em frente:

5 E o rei do sul será forte, e um de seus S E t roborabitur rex austri, e t ex principi-príncipes será m ais forte que ele, e terá bus ejus, et roborabitur adversus eum , etdom ínio; seu dom ínio será um grande do- dom inabitur; dom inatio m agna, dom ina-m ínio. tio ejus.

Aqui o anjo começa a apresentar os reis do Egito e da Síria. A inda não faz menção do rei da Síria, mas fará isso no próximo versículo; porém começa com o rei do Egito, a vizinha monar­quia de Israel. Diz ele que o rei do sul, significando o rei do Egi­to, seria valente. Em seguida diz: e u m de seus príncipes. M ui­tos tomam isso num único contexto; eu, porém, penso que o anjo transfere seu discurso para Antíoco, filho de Seleuco. E um de seus príncipes, diz ele, significando os príncipes de Alexandre, se fortalecerá contra ele. Pois a letra 1, vau, é tomada no sentido de oposição, e implica um a oposição entre Ptolomeu, filho de Lago, e Antíoco, rei da Síria. Daí o rei do sul crescerá em força- outros líderes de Alexandre se tornarão fortes contra ele, e as* sumirão o domínio. Sabemos quão maior e mais sólido o rei da Síria foi que o do Egito, especialmente quando a Ásia M enor lhe foi acrescida. Sem dúvida, o anjo estava familiarizado com a fu­tura superioridade de Antíoco sobre Ptolomeu, quando esses dois reis são mutuamente comparados. Deixemos, porém, o restante para amanhã.

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ORAÇÃO

Onipotente Deus, visto que não só designaste desvendar a teu servo Daniel os eventos futuros, bem como aos piedosos que esperavam pelo advento de teu unigénito Filho, para que estivessem bem prepa­rados para todos os sofrimentos, e pudessem perceber que a Igreja repousa sob teu cuidado e proteção, mas também quiseste que essas profecias nos fossem proveitosas hoje, bem como confirmar-nos na mesma doutrina, sim, permite que aprendamos como lançar de nós todas as preocupações e ansiedades em tua providência paternal. Que jam ais duvidemos de tua supervisão sobre os cuidados de tua Igreja nestes dias, bem como tua proteção contra a fúria dos ímpios que tentam por todos os meios destruí-la. Mas que repousemos em paz sob aquela vigilância que nos tens prometido e lutemos sob a bandeira da cruz; e possuamos nossas almas em paciência, até que, por fim , te manifestes como nosso Redentor com mãos estendidas, na manifestação de teu Filho, quando regressar em seu ofício de Juiz do mundo. Amém.

DANIEL

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57afexposição

6 E no fim de anos, eles se aliarão; por- 6 E t in fine annom m sociabuntur, conve-que a filha do rei do sul virá ao rei do nient inter se, e t filia regis austri venietnorte com o intuito de fazer um tratado; ad regem aquklonis u t faciat recta; et nonm as e la não reterá o poder de seu braço; retinebit v ires braehii, e t non stabit ipse,nem eie persistirá , nem seu braço; e la , neque sem en ejus, e t d ab itu r ipsa, e t quiporém , será entregue, e os que a tiverem adduxerit eam , et qui genuerit ipsam , ettrazido, e seu progenitor, e o q ue a forta- roborabit eam lem poribus illis, vel, robo-lec ia naqueles tem pos. raerit.

Quanto à explicação das palavras, o rei do sul, j á declaramos ser ele o rei do Egito, e não o do norte, a saber, a Síria. Fazer as coisas certas significa promover a paz mútua; ele não reterá a fo rça de seu braço significa que seu braço não reterá sua força; ele não permanecerá é uma referência a seu pai Ptolomeu, ou Antíoco Theos, como veremos mais adiante. E então devemos tomar a \ vau, negativamente, e ler: nem seu descendente, o que alguns traduzem por seu braço. Ela será entregue implica ser entregue à morte, enquanto alguns entendem seu pai como sendo sua mãe ou sua governanta. Aqui, pois, o anjo profetiza o estado dos reinos do Egito e Síria. E ele está ainda olhando para a Igreja de Deus, como afirmamos ontem, a qual foi posta no seio dessas duas nações. Devemos sempre tentar averiguar a intenção do Espírito Santo. Ele queria sustentar os santos sob aquelas con­vulsões pelas quais seriam agitados e afligidos. Sua confiança poderia ter sido totalmente subvertida, a não ser que fossem per­suadidos de que nada acontece ao acaso, visto que todos esses acontecimentos foram proclamados de antemão. Além disso, Deus

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[ 11 . 6 ] DANIEL

enviara seu anjo a Daniel para que ele provasse tanto seu poder quanto sua determinação em defender sua Igreja, e realizaria isso porque queria que os fiéis fossem admoestados de antemão, não temerariamente nem ainda sem proveito. Mas devemos, prim ei­ramente, relacionar a história - diz o anjo: No fim dos tem pos, dois reis se a lia rão e fa rão am izade. Ele anunciou a superiori­dade do rei da Síria; pois quando Antígono foi vencido, e seu filho foi morto, Seleuco, o primeiro rei da Síria, suplantou Ptolo- meu em seu poder e na magnitude de seu domínio. Mas suscita­ria uma rivalidade entre eles, e haveria algumas escaramuças de ambos os lados, até que a condição de Ptolomeu viesse a enfra- quecer-se, e então Seleuco se precipitou tumultuosamente, com a ferocidade de um assaltante, mais que a magnanimidade de um rei. Depois de prosseguir por algum tempo com a peleja. Bereni­ce, filha do segundo Ptolomeu, chamado Filadelfo, foi dada em casamento a Antíoco Theos. Ela também é cham ada Beronice e Bernice. Ele estava tão cego pelo orgulho que chegou ao ponto de dar a si o nome de Theos, que significa Deus. Foi o terceiro com esse nome, sendo o primeiro chamado Soter, que significa preservador. Visto, pois, como Seleuco adquiriu tantas e tão po­derosas possessões, seus filhos não consideraram sua autoridade plenamente estabelecida, e assim assumiram esses títulos magni- ficentes com o intuito de inspirar todas as nações com o terror de seus nomes. D aí o primeiro Antíoco ser chamado Soter e o se­gundo, Theos. Ora, o segundo Ptolomeu, chamado Filadelfo, deu sua filha em casamento a Antíoco Theos. Com esse vínculo, es- tabeleceram-se entre eles a paz e a amizade, justam ente como em Roma Pompeu casou-se com Júlia, filha de César. E diariamente observamos semelhantes ocorrências, pois quando um rei tem em seu poder um a filha, ou sobrinha, ou outras parentas, o outro rei se acha de posse de relações masculinas ou femininas, por cujas relações interconjugais confirmam um tratado de paz. Foi assim neste caso, ainda que os historiadores atribuam a Ptolo-

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57* EXPOSIÇÃO [11.61

meu algum grau de capciosidade, ao conceder sua filha a Antío- co Theos. Ele presumiu ser esse um meio de, finalmente, adqui­rir o domínio sobre toda a Síria e sobre as demais províncias sob o domínio de Antíoco. Se esse realmente foi ou não o caso, os historiadores profanos provam o cumprimento da predição do anjo. Sem a mais leve dúvida, Deus, em seus prodigiosos conse­lhos, ditou a esses historiadores o que lemos na atualidade, e fez deles testemunhas de sua própria verdade. Aliás, tal pensamento jam ais entrou em suas mentes, porém, quando Deus governa as mentes e as línguas dos homens, sua vontade é estabelecer evi­dente e convincente testemunho de sua profecia, com o propósi­to de mostrar a real predição de cada ocorrência. No fim dos anos, diz ele, eles se aliarão.

E em seguida declara: E a filha do rei do sul, significando Berenice, de quem já fizemos menção, v irá ao rei do norte , sig­nificando o rei da Síria, Antíoco Theos. Essa aliança foi firmada em oposição à justiça. Pois Antíoco repudiou sua esposa Laodi- ce, que era a mãe de seus dois filhos, os quais gerara de Antíoco, a saber: Seleuco Calínico e Antíoco, o mais jovem , chamado Hierax, falcão, em virtude de sua rapacidade. Percebemos, pois, como ele firmou um segundo matrimônio, depois de divorciar-se injusta e ilegalmente de sua primeira esposa. Daí não causar sur­presa que tal aliança tenha sido amaldiçoada pelo Todo-Podero- so. Ela se reverteu em infelicidade para ambos os reis, Egito e Síria. Ptolomeu não deveria ter precipitado sua filha nos braços de Antíoco, que já era casado, nem ainda ter permitido que ela viesse a ser sua segunda esposa, em bora a verdadeira esposa do rei se divorciasse. Percebemos, pois, como Deus veio a ser o vin­gador desses crimes, enquanto os planos de Antíoco e Filadelfo se convertiam num grande mal. Há quem pensa que Antíoco foi fraudulentamente envenenado por sua prim eira esposa; visto, porém, ser tal ponto duvidoso, não emito nenhum a opinião. Se tal foi ou não o caso, Antíoco veio a ter um filho por meio de

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[ 11 . 6] DANIEL

Berenice e morreu imediatamente depois de reconciliar-se com sua prim eira esposa. Alguns historiadores afirmam que, depois de recobrar sua dignidade e posição de rainha, tendo uma vez experimentado a leviandade e perfídia de seu esposo, ela tomou certas medidas para prevenir-se de outro repúdio. Quando Antío- co foi morto, essa mulher inflamou-se com o ímpeto da vingan­ça, e na perseverança de sua disposição, impeliu seu filho a as­sassinar sua rival, especialmente estimulando Seleuco Calínico que sucedeu a seu pai no trono. Hierax foi então prefeito da Ásia Menor; daí estimular ela, furiosamente, seu filho a assassinar sua rival. Porque, embora AntíocoTheos houvera se reconciliado com ela, todavia ainda algum grau de posição e honra pertencia a Be­renice, filha de Ptolomeu. E seu filho perpetuou esse homicídio com a maior obstinação e com a mais abjeta crueldade e perfídia; pois ele a persuadiu a confiar-se a seu cuidado, e então a assassi­nou, a ela e a seu filho.

O anjo então diz: Q uando a filha do rei do sul v ie r ao rei do no rte , seu b raço não re te rá sua força. A linguagem é metafóri­ca, como se aquele casamento fosse um braço comum a ambos os lados; pois o rei do Egito estendeu sua mão ao rei da Síria para proteção mútua. Aquele braço, pois, não reteve sua força i pois Berenice foi assassinada de forma muitíssimo perversa por seu próprio enteado, Seleuco Calínico, como já vimos. Diz ele ainda que ela v irá p a ra fazer alianças. Aqui, à guisa de concessão, o anjo chama àquele laço conjugal □"HUTE, misrim, “rectitudines” , “condições de contrato” , porque a princípio todas as partes pen­savam que ele viria a ter tal resultado. Antíoco, porém, já havia violado seu juram ento conjugal, e renunciara a sua aliança legíti­ma. Portanto, nada estava certo de sua parte. Sem a mais leve dúvida, ele tirara alguma vantagem do piano, como os reis sem ­pre costumam fazer. E com respeito a Ptolomeu, muitos historia­dores, como já mencionamos, presumem que ele almejara arden­temente o reino da Síria. Se esse foi ou não o caso, suas transa­

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57a EXPOSIÇÃO [ 11 . 6 ]

ções mútuas não eram sinceras, e assim é usada a palavra “reti­dão”, como dissemos, apenas por concessão. O anjo não fala em louvor deles, nem para justificar a perfídia de ambos, mas, ao contrário, agrava seu crime; e disso deduzimos o quanto abusa­ram da santidade tanto do matrimônio quanto dos tratados, os quais Deus queria que fossem mantidos sacros por toda a huma­nidade. Daí, ainda que a palavra seja por si só honrada, todavia é usada num sentido deplorável, para mostrar-nos com o o anjo condenou o rei Ptolomeu por essa vil prostituição de sua filha, e Antíoco por rejeitar sua esposa e casar-se com outra que não era sua esposa real, mas uma mera concubina. E é provável que Deus quisesse usar os lábios de seu anjo para realçar a tendência de todos os tratados monárquicos. Eles mantêm sempre as mais en­ganadoras aparências - a nível nacional, serena paz pública e objetivos similares que podem chegar a ser jeitosam ente proem i­nentes. Pois os reis sempre detêm favor e louvor para si, oriun­dos da insensatez vulgar, sempre que fazem tratados de paz. As­sim todas essas alianças não têm outra tendência além de produ­zir o ludíbrio social e por fim se degeneram em perfídia mútua, quando um a parte trama insidiosa e impiamente contra a outra.

Em seguida o anjo acrescenta: E le não p erm anecerá ; usan­do o gênero masculino, e mui provavelmente se referindo a Antí­oco, tanto quanto a Ptolomeu, seu avô. Nem ele nem seu descen­dente permanecerá, significando seu filho por meio de Berenice, filha de Ptolomeu. Não ouso traduzi-lo por ‘braço’, porque, em minha opinião, a letra 1, vau, é indispensável na palavra ‘braço’; e assim a tomo no sentido de ‘descendente’. Em seguida ele acres­centa: E ela se rá en tregue - volvendo assim para Berenice - ou por meio de traição ou de morte; e os que a levaram - signifi­cando seus companheiros. Sempre que algum casamento inces­tuoso é consumado, algumas pessoas de caráter desditoso se as­seguram de ser usadas na condução da nova esposa ao rei. E mui provavelmente houve facções no palácio de Antíoco; um partido

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111.7] DANIEL

sendo mais ligado a Seleuco, seu irmão e sua mãe Berenice; en­quanto outros almejavam mudança de governo, segundo o esta­do costumeiro dos negócios. Os conselheiros do casamento entre Antíoco e Berenice foram enviados como guardas de honra para acompanhá-lo à Síria, e o anjo declara que todos estes foram en­tregues juntam ente com a rainha. Em seguida, acrescenta: e os que e ram seus paren tes. A partir da ausência de um ponto gra­matical sob a letra n , he, há quem pensa que o substantivo deva ser do gênero feminino. E visto que o mesmo pode significar mãe, o tratam como a referir-se à governanta; porém deixo a ques­tão em suspenso. Ele então acrescenta: e os que a fo rta leceram naqueles dias. Indubitavelmente, sua intenção era designar to­dos os que desejavam bajular o rei, e assim tomaram parte no casamento entre ele e a filha do rei do Egito. Toda essa facção pereceu, quando Berenice foi assassinada por Seleuco Calínico. Se, pois, ele não poupou sua própria madrasta, muito menos pou­paria a facção por meio da qual ele foi privado de sua esperança de obter o reino, e da parte de quem sua mãe Laodice havia sofri­do a vergonha do divórcio. Vamos em frente:

7 M as de um ram o d e suas raízes um se 7 E t stabit ex grm ine, vel, surcuio, radi-levan tará em seu lugar, o qual v irá com cum ejus. nempe Berenice.™ in graduum exérc ito e en trará na fo rtaleza do rei suo,154 et veniet cum ex erc itu ,'“ e t venietdo norte, e agirá con tra e les. e prevale- in m unitionem regis A quilonis, e t facietcerá. in il!is.15fle t prsevalebit.

O anjo trata aqui de Ptolomeu Evergete, o terceiro rei do Egi­to que sucedeu a seu pai Filadelfo. Ele reuniu grandes forças para vingar-se do insulto sofrido por sua irmã, e assim travou guerra com Seleuco Calínico, o qual veio a ser rei depois da morte de seu pai. O anjo, pois, agora toca de leve sobre essa guerra, dizen-

155 O artigo relativo está no gênero feminino.IM Alguns traduzem: “em seu grau"; porém não vejo razão para isso.

"tk, al. usado aqui no sentido de 'com '; todavia alguns o traduzem literalmente, para seu exército; mas a primeira exposição é preferível.

Ou. seja, entre as fortificações, ou entre o povo. O número é trocado, e só pode referir- se ao povo.

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57» EXPOSIÇÃO 111.7]

do: Brotará um renovo da raiz dessa rainha. Mui provavelm en­te, ele era mais jovem que sua irmã Berenice. Diz ele: Ele perm a­necerá em seu próprio grau, significando na posição régia. É forçada a tradução dos que traduzem: Ele permanecerá em sua posição de pai. Então, qual deve ser? Ele permanecerá em sua própria posição; ou, seja, ele chegará a sua própria posição atra­vés do direito hereditário. Portanto, em bora a princípio todos pensassem que a morte de Berenice ficaria sem vingança por parte de seu pai, porque este morreu, aqui o anjo anuncia que seu ir­mão seria semelhante a um ramo, e veio a ser o vingador dessa grande perversidade. Ele permanecerá, pois, em sua posição, sig­nificando que chegará ao trono real, vindo do ramo ou do gérmen de sua raiz, ou, seja, Berenice. Ele virá com um exército contra Calínico. Escritores profanos testificam desse fato. E virá às pró­p r i a s fortificações do rei do norte. Ele entrou na Síria e causou um tão grande terror que muitas cidades fortificadas foram por ele cercadas. Durante essa guerra, ele tomou para si muitas cidades que pareciam inexpugnáveis; daí não causar surpresa encontrar­mos o anjo declarando sua chegada às fortificações. Alguns o tra­duzem ‘habitações', porém sem razão, e assim prejudicam a inten­ção do Profeta. Ele virá às próprias fortificações, significando que ele chegaria à Síria e possuiria muitas cidades fortificadas.

Em seguida, acrescenta: E operará sobre elas, significando que prosperaria; pois esta palavra, quando usada sem qualquer adição, em hebraico implica a realização de grandes façanhas. Ele prosseguirá e adquirirá poder sobre a maior parte da Síria, e prevalecerá. Com esta últim a palavra ele explica quão superior ele seria a Calínico. Pois este rei foi enviado por seu irmão mais jovem , de cuja fidelidade ele suspeitava, e imaginava ser esse um curso mais seguro para tratar com seu inimigo. Mas o jovem Hie- rax, o falcão, determinou usar essa expedição para proveito pes­soal. Ele não ficara contente com sua própria província da Asia Menor, mas antecipou ser herdeiro exclusivo de seu pai, especi-

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[11.8] DANIEL

almente ao alugar algumas tropas dos gauleses, com as quais in­vadira a Ásia Menor, Bitfnia e outras províncias. Ele tornou-se muito enfatuado e foi traído por sua própria cobiça. Seleuco Ca- línico preferiu fazer as pazes com seu inimigo e fortalecer os recursos de seu irmão. Por fim Hierax desenvolveu mais e mais a perversidade de sua mente. Pois publicamente declarou guerra a seu irmão, por cuja assistência pretendia ter vindo, depois de ter sido enviado para firmar acordo. Seu irmão Seleuco havia lhe prometido uma porção da Ásia até o Monte Taurus; e quando se viu vítima de suas ímpias e desgraçadas armadilhas, abertamente declarou guerra contra seu irmão. Mas por fim foi vencido, e assim recebeu o salário de sua impiedade. E assim prevaleceu Ptolomeu Evergete, enquanto partia da Síria depois de espoliar seu inimigo, segundo o que vem a seguir:

8 Tam bém seus deuses levará cativos para 8 A tque etiam deos ipsorum eum confla- o Egito, com seus príncipes e com seus tilib u s ip so ru m , e t cum v asis pe tio sis preciosos vasos de prata e de ouro; e con- ipsorum ,137 auri e t argenti in captivitatem tinuará mais tem po que o rei do norte. du cen t in /£ g y p tu m ,l5‘ e t ipse pluribus

annis stabit quam rex aquilonis.

O anjo explica mais plenamente o que já havia declarado em termos breves, a saber: Ptolomeu seria o vencedor, e espoliaria quase toda a Síria segundo seu desejo. Escritores profanos tam­bém nos mostram o grande número de imagens que foram toma­das, e como o Egito cobriu seus deuses de prata e ouro, os quais estiveram perdidos por longo tempo. E assim o evento provou a veracidade da profecia do anjo. A partícula DJ, gem, é interposta com o intuito de ampliar o tema e informar-nos da condição desi­gual da paz e como Ptolomeu exerceu os direitos de vencedor ao espoliar toda a Síria segundo sua ambição. Acrescenta-se: Ele p erm an ecerá m ais tem po que o re i do norte . Alguns restrin­gem isso à duração da vida de cada rei, e outros a estendem mais.

117 Ou. seja, com vasos desejáveis, como anteriormente declarei sobre esta palavra.1,8 Ou. levarão cativos para o Egito seus deuses, juntamente com suas imagens e seus

vasos desejáveis, de prata e de ouro.

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57* EXPOSIÇÃO [11.9-11]

O anjo, provavelmente, fala de Ptolomeu Evergete, o qual reinou quarenta e seis anos. Visto haver Deus estendido sua vida por tanto tempo, não nos surpreende que o anjo tenha dito que sua duração era maior que a do rei da Síria. Esta explicação é aplicá­vel ao presente caso, pois se tivesse morrido antes, Calínico po­deria ter recuperado os resultados da guerra; visto, porém, que Ptolomeu sobreviveu, ele não ousou tentar coisa alguma, estan­do certo da total inutilidade de qualquer esforço contra o rei queo vencera. Prossigamos:

9 Então o rei do sul en trará em seu reino 9 E t veniet in regnum rex austri, e t redi-e regressará para sua própria terra. bit in terram suam.

Esta sentença pertence ao versículo anterior; como se ele dis­sesse: Ptolomeu regressará em marcha pacífica depois dessa hos­til invasão da Síria. Porque ele poderia nutrir receio de seu inimi­go não ser completamente derrotado. M as como ele partiu como vencedor, o anjo anuncia sua chegada tranqüila a seu próprio país. As palavras ‘veio’ e ‘regressou’ são usadas enfaticamente, deno­tando ausência de toda e qualquer importunação, medo e risco.'59 Ele regressou a seu reino e a sua própria terra, visto não poder confiar na calma de seus inimigos a quem deixara prostrados. Prossigamos:

10 Seus ftihos, porém , se instigarão e reu- 10 E t filii ejus provocabuntur. e t congre-nirão um a m ultidão de grandes forças; e gabunt m ultitudinem copiarum m agna-um certam ente v irá e inundará e passará rum: e t veniendo veniet, inundabit et tran-adiante; e então regressará e se instigará sibit: reverte tu r e t incitab itu r usque adaté chegar a sua fortaleza. m unitionem ejus.11 E o rei do sul se exasperará, e sairá, e 11 Tum exacerbab itu rrex austri, e teg res-pelejará con tra ele, sim, con tra o rei do sus pugnabit adversus eum . adversus re-norte; este porá em cam po grande m ulti- gem aquilon is.e t stare faciet, siatuet, mui-dão; m as a m ultidão será entregue em sua titudinem m agnam , tradeturque m ultitu-m ão, do illa in m anum ejus.

IW A edição de 1617 traz modéstia incorretamente em vez de moléstia. O erro é corrigido em edições subseqüentes. O leitor do original deve estar preparado para m uitas inexatidões nesta edição.

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[11.9-11] DANIEL

Aqui o anjo passa à terceira guerra, a saber, aquela que o filho de Calínico instigou contra Ptolomeu Filopator. Depois da morte de Evergete, os dois filhos de Calínico uniram suas forças e em ­preenderam recuperar a Síria, especialmente aquela parte dela da qual haviam perdido. Quando já se viam em sua expedição, e suas forças já estavam em marcha, morreu o Seleuco mais velho e seu irmão sobrevivente era Antíoco, chamado o Grande. Ptolo­meu, chamado Filopater, que significa amante de seu pai, era então vivo. Ele era assim chamado em conseqüência do parricídio do qual era culpado, tendo engendrado a morte de seus pais, junta­mente com seu irmão. A palavra é aqui usada à guisa de ridículo, e um sentido oposto ao já expresso está implícito neste epíteto, o qual tem sua própria honra, e expressa a virtude de piedade fam i­liar. Ele, porém, matara seu pai, mãe e irmão, e em razão de todos esses ímpios homicídios o nome de Filopater lhe foi aplicado como um estigma de desgraça. Portanto, como ele veio a ser to­talmente odiado por seu próprio povo, os filhos de Calínico, a saber, Seleuco Gerauno, mais velho, e Antíoco o Grande, pensa­ram haver chegado o tempo de reaver as cidades da Síria que haviam perdido. Pois ele era detestado e desprezado em conse­qüência de seus numerosos crimes. Portanto anteciparam um pe­queno problem a na recuperação de suas possessões, quando seu inimigo era assim estigmatizado com tal infâmia e granjearam muitos inimigos domésticos. Eis a razão por que o anjo diz dos filhos de Calínico: Serão provocados e levarão uma multidão de grandes exércitos. Poderia significar “grandes forças” , visto que alguns historiadores relacionam a coligação de dois exércitos muitíssimo fortes. A menos que eu esteja equivocado, Antíoco o Grande teve 70.000 a pé e 5.000 cavaleiros. Ptolomeu excedia em cavalaria, visto que tinha 6.000 cavaleiros, porém só 62.000 a pé, como Políbio nos informa em seu quinto livro.160 Eram quase

Calvino. citando de memória, não expressou os números com exatidão. Ver Potibio. lib. v. p. 421, editado porCasaubon. Paris.

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57® EXPOSIÇÃO [11.9-11)

iguais em forças, porém a confiança dos dois filhos de Calínico, unicamente de quem o anjo então fala, foi crescendo quando di­visaram seu perverso inimigo tão profundamente detestado em conseqüência de seu parricídio. Em seguida ele diz: Ele virá. Ele muda o número, já que o irmão mais velho, sendo o primeiro filho de Calínico, a saber, Seleuco Cerauno, morrera enquanto se preparava para a guerra, e dizem que foi morto por seu assistente ao passar pela Ásia Menor. Se esse foi ou não o caso, todos os historiadores são unânimes em afirmar que Antíoco o Grande, sozinho, levou a cabo a guerra contra Filopater. Ele virá como um dilúvio que passa adiante. Recuperou aquela parte da Síria que perdera, e quando aproximou-se do Egito, então Filopater veio a seu encontro. Historiadores profanos afirmam que ele era covar­de, e jam ais obteve poder por bravura franca, mas tão-somente por meio de fraude. Foi também tardo na preparação de suas for­ças para resistir seu inimigo.

Eis a razão por que o anjo diz: O rei da Síria, ou do norte, virá até as cidadelas, ou fortificações; porque finalmente Filopa­ter se despertou de sua modorra, porquanto jam ais havia tomado suas armas para repelir um inimigo exceto quando compelido por premente necessidade. D aí acrescentar o anjo: O rei do sul será irritado, ou exasperado. Ele usa o term o ‘exasperado’ por­que, como eu já disse, não teriajam ais feito oposição a seu inimi­go Antíoco não percebera ele que seu reino estava à mercê de um grande perigo. Poderia ter assumido pacientemente a perda da Síria, contanto que o Egito estivesse a salvo; quando, porém, sua vida e todas suas possessões corriam risco, ficou suficientemente exasperado para desferir o ataque a seu inimigo; e todavia preva­leceu, como veremos a seguir. Não posso completar este tema hoje, e por isso corro para o fim. Filopater chegou a ser vitorioso, e todavia a apatia o dominou de tal sorte que passou a nutrir des­confiança de seus amigos e igualmente de seus inimigos, e se viu forçado por esse mesmo medo a fazer as pazes com seu inimigo,

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[11.9-11] DANIEL

ainda que fosse realmente o vencedor. Poderia não só ter recha­çado seu inimigo a quem havia vencido; mas poderia ter tomado posse de seus territórios; porém não ousou fazer isso: era cônscio de ser um parricida, e também sabia que por essa conta seu nome veio a ser odioso entre todos os homens. Daí, ainda que superior em força, e realmente o vencedor de seu inimigo em campo de batalha, não ousou avançar mais. M as deixarei o restante para explicar noutra ocasião.

ORAÇÃODeus Todo-Poderoso, visto que designaste pôr ante nossos olhos, como num espelho, aquela tua providência peculiar por meio da qual defendeste tua Igreja, concede-nos a bênção de sermos confirmados por meio desses exemplos, a fim de que aprendamos a descansar inteiramente em ti. Em meio a numerosas perturbações, por meio das quais o mundo é hoje tão agitado, que permaneçamos calmos sob tua proteção. E assim confiemos a ti nossa segurança para ja ­mais nos hesitarmos, seja o que fo r que nos aconteça quanto a nossa futura segurança e tranquilidade. O que quer que soframos, que tudo resulte em nossa salvação, enquanto form os protegidos por tua mão; e assim invoquemos teu nome com sinceridade mental, e que te apraz, em troca, revelar-te como nosso Pai, em teu Unigénito Filho. Amém.

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58a

m nossa últim a preleção, explicamos por que o anjo men-1 ciona a exasperação do rei Ptolomeu. A não ser que fosse

arrastado à guerra, sua disposição era tão apática que preferia que muitas cidades lhe fossem tomadas, do que mover sequer um dedo para impedir seja o infortúnio ou a perda. Mas Finalmente tomou as armas, ao perceber quão sério e ousado inimigo tinha que enfrentar. Então ele acrescenta: Sairá ao campo de batalha contra o rei do norte, significando Antíoco, rei da Síria. E porá em ordem de batalha uma grande multidão. A referência pode ser a ambos os lados, porquanto Antíoco então trouxe ao campo de batalha um numeroso exército; tinha 5.000 cavaleiros e 70.000 a pé. Ptolomeu era superior em sua cavalaria, equivalente a 6.000 homens. Esta frase se adapta bem ao caso de Antíoco. Ele trará ao campo de batalha uma grande multidão, e a multidão será entregue a suas mãos, significando mãos de Ptolomeu. O con­texto parece assim fluir mais facilmente; mas se alguém preferir considerá-lo como que aplicável ao próprio Ptolomeu, não dis­cutirei a questão. Ela não é de grande importância, porque o anjo simplesmente apresenta a superioridade de Ptolomeu naquela batalha, quando venceu Antíoco o Grande. Além disso, devemos notar que ele não o venceu por sua própria iniciativa nem cora­gem nem conselho nem habilidade militar; mas porque o Senhor, que regula os eventos das batalhas, queria, naquela época, desco- roçoar a soberba de Antíoco o Grande. Agora podemos ir em frente:

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[11.12, 13] DANIEL

12 E quando ele tiver rem ovido a m uiti- 12 Et to lle tur m ultitudo illa, hoc est, sesedão. seu coração se ensoberbecerá; e de- atlollei, e t e levabitur co r ejus, e t dejicie!sencorajará muitos dez m ilhares; porém m yriades, hoc est, magnas copias, e t nonnão será fortalecido com isso. roborabitur.

O anjo aqui marca o término da guerra. Tivera a coragem de Ptolomeu corroborado sua boa estrela, e poderia facilmente asse­nhorear-se de todo o reino da Síria, como relatam os historiado­res. Todavia entregou-se de tal modo a suas próprias luxurias, que de bom grado firmou um pacto com seu inimigo. Em seu regresso a seu reino, mandou matar sua esposa Eurídice e se fez culpado de outras monstruosidades; permitiu que uma mulher perversa, irmã de Agatocle, vítima de suas paixões, governasse seu reino e, por fim, veio a ser um péssimo exemplo como ho­mem em extremo cruel e degradado. Portanto, o anjo diz no iní­cio que seu exército se elevaria às alturas, e seu coração se en­soberbeceria, em conseqüência de sua prosperidade. Ele não só causou terror a Antíoco, mas também a todas as regiões circunvi­zinhas. Quando poderia ter assumido todo o domínio sobre o Oriente, em vez disso declinou-se de seu curso. Subjugou, aliás, um exército hostil e, nessa proeza, não foi um mínimo sequer assistido por sua irmã Arsinoe, como relatam os historiadores, mas, depois de grandes morticínios, não reteve sua posição. E qual foi o obstáculo? Sua ociosidade e bebedice, e de nada cuidar senão de banquetes e orgias, bem como dos mais obscenos pra- zeres. Isso causou sua queda, depois de ter sido elevado às mais altas nuvens por suas vitórias. Vamos em frente:

13 Porque o rei do norte voltará, e porá 13 E t redibit rex aquilonis, rex Syrice, etem cam po um a m ultidão ainda m aio rq u e statuet m ultitudinem m agnam p rx u t an-a prim eira, e depois de a lguns anos certa- tea ,141 e t c irc iter finem 1“ tem porum an-m enie virá com um grande exército e com nonim , ad verbum, veniendo veniet cumm uitas riquezas. exercilu m agno, e t cum opibus m agnis.,',:'

11,1 Ou, seja. reunirá um exército m aior que o de anles.143 Ou. seja, no término, como um tempo fixo. no fim.

Ou. ‘m uitos', porquanto há duas palavras no original, “grande e muito”.

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58a EXPOSIÇÃO [11.13, 14]

14 E naqueles tem pos m uitos se levanta- 14 Et tem poribus illis m ulti stabunt con-rão con tra o rei do sul; tam bém os assai- tra regem /Egypti, e t filii d issipatores po-tantes de teu povo se exaltarão para esta- puli tui sese attollent, ad stabiliendam vi-belecer a visão; eles, porém , cairão. sionem . e t corruenc.

Aqui o anjo profetiza acerca de outras guerras. Pois primeira­mente descreve a guerra que foi empreendida por Antíoco contra os egípcios, depois da morte de Filopater, que deixou como seu herdeiro um filho pequeno chamado Ptolomeu Epifanes. Quan­do, pois, percebeu que a terra estava privada de seu rei, formou um exército e invadiu o Egito. Visto que os egípcios não tinham força para resisti-lo, um embaixador foi enviado a Roma; e sabe­mos quão ávidos eram os romanos em envolver-se em todos os negócios do mundo. Com vistas a estender seu império de forma ainda mais ampla, enviaram imediatamente [um mensageiro] a Antíoco o Grande e lhe ordenaram que desistisse da guerra; po­rém depois de dificuldades ele conheceu o insucesso, até que engajou-se numa batalha mui temerária com Scopas, e por fim obteve a vitória. Entrementes, os egípcios estavam muito longe do ócio; ainda que esperassem poder subjugar o império de Antí­oco, com a assistência do senado, todavia prepararam cuidadosa­mente um a força armada propriamente sua, sob o com ando do general Scopas, o qual foi bem sucedido em muitos de seus pla­nos, porém foi finalmente derrotado nas fronteiras da Judéia.

O anjo agora descreve essa guerra. O rei da Síria voltará, diz ele; significando que, depois da morte de Ptolomeu Filopater, ele descansou por algum tempo, visto não ter tido êxito com suas for­ças, que ficaram tão totalmente desorganizadas que não consegui­am confiar no sucesso de qualquer expedição. Porém cria que o Egito não lhe seria problema, já que perdera sua cabeça e jazia como um cadáver inânime. Então sentiu-se reanimado com nova confiança, e voltou ao Egito. E arregimentará uma multidão mai­or que a primeira. Ele tinha um grande e poderoso exército, como já dissemos, e uma nobre força armada de cavalaria: tinha 70.000 a pé e ainda reuniu forças mais numerosas. O anjo tem em mente a

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(11.14] DANIEL

futura chegada do rei da Síria, após um intervalo de certo tempo. No fim dos tempos dos anos, ele certamente virá, ou, seja, irrom­perá. E como se anjo usasse essa expressão com o intuito de au­mentar a infalibilidade do evento; porque a princípio ele despre­zou os romanos em conseqüência da grande distância que ficavam dele, e não arreceava o que pudesse ocorrer depois. Ele nunca su­pôs que tivessem tal ousadia ao ponto de cruzar o mar contra ele.

Em seguida, acrescenta: E naqueles tempos muitos se levan­tarão contra o rei do sul, ou Egito. O anjo insinua que Antíoco o Grande não seria seu único inimigo; e historiadores nos infor­mam de seu acordo e aliança com Filipe, rei de M acedônia, para levar a bom termo essa guerra. Sem dúvida, os dois reis instiga­ram toda a Ásia Menor, e se tom aram tão irmanadamente pode­rosos, que muitos se sentiram estimulados a tom ar seu partido. É como se todos estivessem contra o reino do Egito, e por isso o anjo diz: muitos se levantarão contra o rei do sul. E acrescenta: e seus filhos dissipadores. Os hebreus chamam ‘assaltantes’ pheritzim. A raiz desta palavra é y~\D, pheretz, que significa que­brar ou dissipar, e às vezes destruir. Sem dúvida, o anjo aqui usa a palavra para denotar homens facciosos, porque o povo não ti­nha nenhum a outra chance de erguer-se, exceto permanecendo quieto e unido. A palavra, pois, se aplica aos que violavam essa unidade; pois quando alguém aderia a monarcas estrangeiros, a Judéia ficava exposta como presa ou dos sírios ou dos egípcios.

Alguns intérpretes aplicam esta passagem ao jovem Onias, o qual apoderou-se de Heliópolis e arrastou alguns exilados com ele, e ali construiu um templo, como aprendemos de Josefo e do livro de Macabeus. Pois pretendia ter a profecia de Isaías, capítu­lo 19, em seu favor, onde lemos: E haverá um altar [dedicado] a Deus no meio do Egito [v. 19]. Sem dúvida, o Profeta aqui prediz o alargamento do reino de Deus através da propagação de sua religião por todo o mundo. Como o Egito ao grau máximo se devotara à idolatria, Isaías aqui mostra como o culto puro e per-

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58* EXPOSIÇÃO [11.141

feito, oferecido a Deus, prevaleceria no Egito. Como se quisesse dizer: Ainda os egípcios, que até aqui têm feito tudo para abolir a genuína e sincera piedade, serão congregados ao povo de Deus e o cultuarão aceitavelmente. Sabemos que o Profeta está aqui tra­tando, figuradamente, do reinado espiritual de Cristo, e está sem­pre transportando as sombras de seu próprio tempo. Com a pala­vra ‘altar’ ele simplesmente tem em mente o culto divino. Aque­le impostor, Onias, quando erigiu seu templo profano e poluiu o altar sagrado, gabou-se de estar cumprindo essa profecia de Isaías.

Este, pois, é o significado da passagem: Os filhos - dissipa­dores de teu povo - se exaltarão para estabelecer a visâo\ ou, seja, sob um pretexto falaz de cumprir a predição de Isaías, e todavia fracassarão. É possível também que tenha um sentido indefinido, como se o anjo declarasse que essas multidões não apareceriam, a não ser mediante o conselho secreto de Deus. Sa­bemos quanto este pensamento tende a clarear o sofrimento dos santos e quanta consolação ele traz quando reconhecemos que todos os tumultos do mundo emanam do conselho estabelecido de Deus. Nada. pois, parece acontecer ao sabor da sorte, senão que os mortais são agitados porque Deus deseja infligir-lhes seus castigos e a Igreja é amiúde abalada porque Deus deseja provar e exam inar a paciência de seu povo. Portanto, podemos tom ar esta profecia em sentido absoluto; como se o anjo dissesse: Esses após­tatas e dissipadores nunca propuseram cumprir esta profecia de Isaías, e todavia nada houve de confuso ou fora de ordem em todos esses eventos, visto que Deus estava cumprindo o que ha­via testificado através de seus próprios profetas. Razão por que podemos receber esta predição simplesmente como fazemos com outras semelhantes esparsas por todos os profetas. Já ouvimos como o Profeta estava avisando de antemão sobre as muitas an­gústias da Igreja, com o propósito de levar os fiéis a aquiescerem na Providência de Deus, quando vissem as coisas por demais con­turbadas por todo o mundo. Vamos em frente:

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[11.15, 16] DANIEL

15 Então o rei do norte virá, e subirá a 15 E t veniel rex aquilonis e t fundei agge-um m onte e tom ará as cidades m ais forti- rem ,1“ e t capiet urbem m unitionum ; etficadas; e os braços do sul não resistirão, brachia austri, hoc est, AUgypií, non sta-nem seu povo escolhido, nem haverá for- bunt, neque populus electorum ejus, ne-ça alguma que resista. que virtus erit ad standum .

O anjo avança no mesmo sentimento. Diz ele: Quando Antío- co o Grande avançar com ímpeto, não haverá coragem nos egíp­cios que possa resisti-lo, porque ele tomará um a cidade fortifica­da. H á uma mudança de número aqui, pois ele quer dizer cidades fortificadas. Porque recuperaria as cidades que anteriormente havia perdido, e chegaria à cidade de Raphia, no Egito. Segue-se a explicação: Os braços do Egito não resistirão, nem o povo de seus tributos. Isso se relaciona com Scopas, que foi enviado com grandes forças; a princípio ele prosperou, porém foi em seguida vencido no conflito, e não teve coragem de perseverar em sua resistência. Vamos em frente:

16 M as aquele que vem contra e le fará o 16 Et faciet veniens ad eum pro benepia-que bem entender, e ninguém poderá re- cito suo, hoc est, pro suo libidine, et nullussistif d iante dele; e estará na terra glorio- stabit coram facie ejus, e t stabit in terrasa. a qual. por sua m ão. se rá consum ida. desiderab ili, e t consum etur, alii nomen

esse volunt, consumpiio, in m anu ejus.

O anjo prossegue com o mesmo discurso. Diz ele: Antíoco o Grande satisfará seus desejos e espalhará o terror de seus braços em todas as direções e assim ninguém ousaria opor-se-lhe. Por­tanto, fa rá o que bem entender, diz ele, e ninguém resistirá dian­te dele; e estará na terra desejável; significando que ele traria seu exército vitorioso à Judéia, e haverá uma grande devastação debaixo de sua mão; ou a Judéia será consumida e arruinada sob sua mão. Originalmente declaramos que a missão do anjo não o autorizava a tratar esses eventos como as façanhas militares cos­tumam ser narradas pelos historiadores. O que está revelado é bastante para levar os fiéis ao reconhecimento da contínua consi­deração divina por sua segurança. A experiência também nos asse-

‘ Ou. seja. ele edificará sobre um monte e fará subir pedras, madeira e terra.

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58* EXPOSIÇÃO (11.16]

gura que cada ocorrência é do pleno conhecimento de Deus, e assim devem reconhecer como tudo tendia a promover seu bem- estar. As predições divinas de eventos futuros nunca foram sem propósito, e o anjo agora declara a vinda futura de Antíoco à terra desejável. Apresentamos previamente a razão para o uso desse epíteto como aplicado à Judéia - não através de alguma excelência natural acima das demais terras, mas porque Deus a escolhera para si como a sede de sua habitação. A excelência dessa terra dependia inteiramente da graciosa beneficência divi­na. Pode parecer inconsistente outorgar tal licença a um tirano e ladrão tão ímpio e permitir-lhe arruinar a Judéia, a qual Deus distinguira com um a honra tão peculiar, adotando-a como sede de sua habitação e chamando-a sua residência [Sl 132.14]. Sabe­mos, porém, que a Igreja, enquanto prossegue em sua peregrina­ção neste mundo, não desfruta da isenção de inúmeros sofrimen­tos; porquanto é proveitoso para os filhos de Deus que sejam humilhados sob a cruz, a fim de que não cresçam em rebeldia neste mundo, renunciem às luxurias e arrefeçam os desejos da carne. O anjo deveras omite a razão pela qual Deus permitiu que Antíoco assim cruelmente oprimisse a terra santa; os fiéis, po­rém, tinham sido instruídos pela Lei e pelos Profetas como a Igreja estava sujeita a várias tribulações. É suficiente, pois, relacionar o evento com a simplicidade: e a terra aprazível será consumida sob sua mão, ou haverá um a devastação. Pouco importa de que maneira lemos no que diz respeito ao sentido. O anjo aqui enco­raja a Daniel e aos demais ao exercício da paciência, para que não desmaiassem sob o azorrague divino. Pois Deus permitiu a Antíoco perambular como um ladrão e a exercer severa tirania e crueldade contra os judeus. Não carece discutirmos esses even­tos em maior extensão, como se encontram nos livros dos Maca- beus. Apenas tocarei de leve num ponto: não foi de iniciativa própria que Antíoco apoderou-se dos judeus guiando seu exérci­to a seu país, mas foi fomentado pelos sacerdotes ímpios. Tão

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[11.17] DANIEL

grande foi sua perfídia e barbarismo que espontaneamente traí­ram o templo divino e expuseram a nação às mais angustiantes calamidades. Essa foi uma provação demasiadamente severa; daí Deus consultar os interesses de seus próprios adoradores, predi­zendo eventos que pudessem enfraquecer sua confiança e levá- los aced er ao desespero. Prossigamos:

17 E tam bém dirig irá seu rosto para v ir 1 7 E tp o n e t fac iem su am '“ ad veniendumcom a potência de todo seu reino, e com cum potentia to tius regni. ec rectiiudinese le os retos; e assim ele fará; e lhe dará cum eo :1“ e t faciet, e t filiam m ulierum da-um a filha d e m ulheres, para corrom pê-la; bit illi ad perdendum eam . sed non stabile la , porém , não ficará a seu lado nem será ipsa, e t non e rit ipsa e i.167para ele.

Ele aqui descreve a segunda guerra de Antíoco contra Epifa- nes, o qual então fazia aniversário; e assim lhe deu sua filha Cle- ópatra em matrimônio, esperando com isso, por meio de maqui­nações sutis, subjugar o reino do Egito. Porque pensava que sua filha permaneceria fiel a seus interesses; ela, porém, ao contrá­rio, preservou sua fidelidade conjugal a seu esposo e não hesitou em esposar os conflitos de seu esposo contra seu pai. Ela fiel­mente aderiu aos interesses de seu esposo, segundo seu dever, e nunca deu ouvidos aos astutos desígnios de Antíoco. E assim ele se viu privado de sua expectativa, e sua filha nunca chegou a ser instrumento para a aquisição de sua autoridade sobre o Egito. Antes das núpcias de sua filha com Ptolomeu, ele havia experi­mentado os efeitos da guerra, mas nisso fracassara; e quando per­cebeu a interposição dos romanos, desistiu de futuras hostilida­des, e consolou-se com o pensamento que já expressamos, a sa­ber, de receber assistência imediata contra o Egito pela instru- mentalidade de sua filha. Portanto, ele torna a vir com todo o

145 Ou. seja, ele volverá para si mesmo.lw Alguns traduzem: “os retos”, plurai (recti). “com ele”. A cópula pode ser supérflua,

como amiúde a encontramos nas Escrituras. Devemos lê-la num só contexto - ele fará aliança com ele. como vimos antes.

I6? Ou. seja, não obedecerão a sua vontade, nem ficarão com ele.

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58* EXPOSIÇÃO [11.17]

poder de todo seu reino] significando que ele arregimenta todas suas forças para esmagar Ptolomeu Epifanes, que era então ainda jovem e não havia obtido nenhuma grande autoridade, nem che­gado à sólida sabedoria e discrição. Quando percebeu sua falta de êxito na fortuna da guerra, ele lhe deu a filha das mulheres, se referindo a sua beleza. Essa é a explicação dos intérpretes, os quais presumem estar im plícita nesta frase sua extraordinária beleza.

Quanto à próxim a sentença, os que a traduzem e com ele os retos pensam que os judeus estão subentendidos, pois Antíoco os havia recebido em rendição e houve muitos que esposaram pu­blicamente sua causa. Pensam que os judeus eram assim cham a­dos como um sinal de honra e como retos em relação ao culto divino. Mas isso me parece forçado demais. Não hesito em supor que o anjo esteja magnificando o caráter superior do acordo entre Antíoco e Ptolomeu, quando o primeiro descobriu a impossibili­dade de obter o reino de seu adversário através da guerra franca. Embora os romanos não tivessem ainda enviado algum regim en­to, contudo Antíoco começou a temê-los e a preferir o uso da astúcia em prol de seus próprios interesses. Além disso, como mencionei há pouco, ele estava ávido noutra presa, pois im edia­tamente transferiu a guerra para a Grécia, como o anjo nos infor­mará. Mas primeiro anuncia: a doação de sua filh a redundará na destruição dela. Ele aqui reprova o artifício de Antíoco o Grande em vender assim sua Filha, como se ela fosse um a meretriz. Até onde lhe foi possível, ele a induziu a assassinar seu esposo, quer por meio de envenenamento ou outros artifícios. Daí, ele lhe deu a filha para destruí-la, mas ela não permaneceu de seu lado nem fico u a seu favor. Quer dizer, ela não assentiu com os ímpios desejos de seu pai e se indispôs a favorecer um a perversidade tão monstruosa. Lemos nos escritores profanos o cumprimento des­tas predições do anjo, e assim mais claramente transparece como Deus pôs diante dos olhos dos santos um espelho no qual pudes­

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[11.18] DANIEL

sem visualizar sua Providência em governar e preservar sua Igre­ja . Agora podemos prosseguir:

18 D epois d isso ele voltará seu rosto para 18 E t vertet faciem suam ad insulas, etas ilhas, e tom ará m uitas; mas um prínci- capiet m ultas, e t quiescere faciet, hoc est,pe fará cessar seu opróbrio con tra ele, e retorquebit, p rinceps o p p robrium ejusainda fará recair sobre ele seu opróbrio. apud ipsum . Ideo non to rquebil oppro­

brium suum in ipsum.

Há um a certa obscuridade nestas palavras, mas a história pos­terior determinará a intenção do anjo. Primeiro, quanto à palavra ‘ilhas’, indubitavelmente tem em mente a Á sia M enor e as costas marítimas; também a Grécia, Chipre e todas as ilhas do Mar Mediterrâneo. Era costume judaico chamar de ‘ilhas’ todos os lugares de além mar, visto não terem qualquer habilidade com navegação. Portanto ele diz: voltará seu rosto para as ilhas: ou, seja, ele se volverá para as regiões opostas do mundo. Sabe-se muito bem que o M ar Mediterrâneo se interpunha entre a Síria e a Ásia Menor; também a Cilicia fica entre elas, as quais estavam também sob o domínio de Antíoco, em bora a sede de seu poder fosse a Síria. Daí chamar de ilhas a Ásia Menor, Grécia e o M edi­terrâneo, todas as ‘ilhas’, com respeito à Síria e à Judéia. Isso ocorreu quando os etolianos renovaram a guerra depois da derro­ta de Filipe. Os romanos foram os originadores dessa guerra na Grécia, e tiveram o honroso pretexto de libertar toda a Grécia depois que Filipe M acedônio se assenhoreou de muitas cidades mui habilmente fortificadas. Os etolianos, porém, foram domi­nados pela soberba e se inflaram com o desejo de superioridade, como finalmente o provou o próprio acontecimento. Gabaram-se de ser os libertadores da Grécia; usaram o auxílio dos romanos, mas declararam ser os principais líderes na guerra, e quando vi­ram a Chalcis e outras cidades apoderadas pelos romanos, o espí­rito de inveja tomou posse deles. Tito Flamínio retirou suas guar­nições de suas cidades, porém os etolianos ainda não ficaram satisfeitos, porque queriam a preeminência unicamente para si e a partida definitiva dos romanos, Com isso em vista, enviaram

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58a EXPOSIÇÃO [11.18]

seus embaixadores a Nabis, tirano dos lacedemôníos, ao rei Fili­pe e também a Antíoco. Thoas foi o principal autor dessa conten­da, porque, depois de instigar as nações vizinhas, aliou-se a A n­tíoco. Quando os etolianos se envaideceram ante as grandes pro­messas que ele havia feito, esperavam produzir a paz por toda a G récia sem a mais leve dificuldade. Entrementes, A ntíoco só avançou até a Á sia Menor, e apenas com um pequeno regimento. Levou com ele Haníba!. cuja fama por si só inspirava medo nos romanos; e tivera aceito seu conselho, certamente não teria tido dificuldade alguma em repelir os romanos. Mas os bajuladores de sua corte não admitiram os conselhos de Haníbal para persua­dir esse rei insano. Então Villius tam bém sagazm ente tornou Antíoco suspeito de seu conselho; por ter sido enviado como em baixador à Ásia Menor, ter-se insinuado em seu favor e adqui­rido sua amizade e assim engajado em confabulação diária com ele, que Antíoco suspeitou da fidelidade de Haníbal a seus inte­resses. Daí ele levar a cabo aquela guerra inteiramente sem méto­do nem plano nem perseverança. Assim que chegou em Chalcis, se viu golpeado pela paixão por uma donzela, fazendo celebrar um néscio casamento com ela, como se estivesse em tempo de plena paz. E assim ele teve um cidadão de Chalcis por seu sogro, enquanto ele mesmo era o poderoso monarca, inigualável no mun­do inteiro. Embora se conduzisse assim inconsideradamente, to­davia a celebridade de sua fama, mais que suas ações pessoais, o capacitou a princípio a tom ar muitas cidades, não só na Ásia M enor e na costa do Mar Mediterrâneo, mas também na própria Grécia. Ele recobrou Chalcis e outras cidades tomadas pelos ro­manos. O anjo relata isso como se o evento já tivesse ocorrido, e no entanto somos informados que todos eles teriam lugar ainda no futuro.

E le volverá seu rosto p a ra as ilhas e to m ará m uitas, e um general o fa rá cessar e volverá seu o p rób rio co n tra ele m es­m o. Antíoco lutou contra os romanos com muita freqüência, e

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(11.18] DANIEL

sempre sem êxito, ainda que, às vezes, pensasse ser superior; mas desde o tempo em que Atílio, prefeito das frotas, interceptava seus suprimentos, e assim interrompeu seu progresso, o cônsul M. Acílio começou a granjear o senhorio da terra, então seu po­der veio a ser gradualmente mais e mais debilitado. Quando ven­cido num a batalha naval por Lívio, o pretor, ele sofreu uma seve­ra perda, e então, quando tarde demais reconheceu seu erro em não obedecer aos conselhos de Haníbal, já tinha perdido a opor­tunidade de prorrogar a guerra. Daí o anjo dizer aqui: Um líder fa ria seu opróbrio reverter-se contra ele mesmo. Isso significa o quanto Antíoco se encheria de tola soberba, e como suas insanas vanglorias ricocheteariam sobre sua própria cabeça, um a vez que as havia vomitado com boca escancarada contra os romanos. Ao falarmos aqui de sua desgraça, interpreto isso em termos ativos, significando que seu opróbrio permaneceria; pois a palavra nD in, chereptheth, significa opróbrio, porém há duas formas de inter- pretá-la, ativa e passivamente. Mas, como eu já disse, o anjo mais provavelmente fala de sua louca vanglória, porquanto desprezou os romanos com desdém e insulto. Sabemos quão loucamente os insultara através de seus embaixadores em todas as assembléias da Grécia. Um líder, pois, seja Acílio ou Lúcio Scípio, que os levou para além do Monte Tauro,/<?z sua desgraça pairar sobre si, e ele não evitou sua própria desgraça ; ou, seja, Antíoco vo­mitou seus reproches contra os romanos com repulsiva soberba, porém com total futilidade. Toda essa desditosa gabolice se con­verteu em nada, e jam ais injuriou os romanos um mínimo se­quer; mas aquele líder, seja Lúcio Scípio ou Acílio, segundo m i­nha afirmação, reverteu tais reproches contra ele mesmo, pelos quais esperava pôr os romanos prostrados, mas não viraram nada, senão vento. O anjo, pois, desdenha do orgulho de Antíoco, di­zendo: Um líder virá que devolverá esses reproches a seu autor, e os impedirá de prejudicar tal líder ou os romanos. Ele tom a a cabeça como representante de todo o corpo.

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58* EXPOSIÇÃO

ORAÇÃO

Deus Todo-Poderoso, visto que te agradas exercitar nossa confian­ça, não nos permitindo nenhum descanso fixo ou estável sobre a ter­ra, fa z com que aprendamos a descansar em ti enquanto o mundo gire em torno de si mesmo vezes sem f im Faz com que jam ais duvide­mos de nossa proteção sob tua mão ou da perpétua cooperação de todas as coisas para nosso bem. Embora não estejamos além do al­cance dos dardos, porém dá-nos consciência da impossibilidade de sofrermos qualquer ferida letal enquanto estendes tua mão a prote- ger-nos. Que tenhamos plena confiança em ti e jam ais cessemos de marchar sob teu estandarte com coragem constante e invencível, até que, por fim, sejamos congregados naquele ditoso descanso que pre­paraste para nós no céu, por Cristo nosso Senhor. Amém.

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59a4

19 V irará então seu rosto para as fortale- 19 E t vertei facíem suam ad m unitiones zas de sua própria terra, m as tropeçará e te r ra suse, e t im pinget, e t cadet, neque in- cairá, e n ão será achado. venietur.

Aqui se denota ou o vil fim de Antíoco, que foi morto num tumulto popular enquanto espoliava o templo de Belus, ou se descreve outro evento da guerra entre ele e os romanos. Essa guerra foi conduzida sob os auspícios de Lúcio Scípio, porque Cneio Scípio, o conquistador da África, se oferecera para ser general- de-divisão de seu irmão, e depois de sua morte aquela província lhe foi confiada. Mas, como já dissemos, os recursos de Antíoco tinham sido suprimidos antes disso. Ele havia perdido as cidades da Ásia, e se as tivesse cedido no princípio poderia ter tranqüila­mente retido a maior parte da Ásia Menor. Mas, como estendeu suas asas sobre a Grécia, e esperava por esse meio tornar-se to­talmente senhor de toda a Grécia e Macedônia, não pôde induzir- se a retirar suas guarnições daquelas cidades, mas por fim foi compelido a desistir da Ásia Menor. Dessa forma, pois, o anjo descreve o progresso da guerra, dizendo: Ele volverá seu rosto para as fortificações de sua própria terra ; ou, seja, quando com ­pelido a abandonar a Grécia, ele recorre aos lugares fortificados. Sentia-se bem seguro ali, e numa região que desfruta de paz sufi­ciente; ele contava com cidades quase inexpugnáveis de todos os lados e pareciam estar livres de guerra. Os historiadores relatam isso como tendo sido feito pela habilidade de Cneio Scípio. Pois seu filho era então um cativo sob Antíoco, e ele sabia possuir

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59* EXPOSIÇÃO [11.19]

maior autoridade que seu irmão, em bora só possuísse o título de general-de-divisão. Registram a persuasão de Antíoco de não ten­tar sua sorte por algum envolvimento decisivo. Por mais que seja assim, é evidente que ele delongou a luta até que fosse com peli­do pelo senso de humilhação, visto que todos os homens o acusa­vam de covardia em não ousar tentar a saída de um envolvimento quando possuía um exército tão numeroso. Os romanos raramen­te tinham tomado o campo contra um regimento tão forte, e no entanto, segundo a narrativa de Tito Lívio, nunca demonstraram menos terror ou preocupação. A extensão das forças de Antíoco é realmente aparente à luz do morticínio que ocorreu; num só dia 50.000 homens pereceram; e isso seria quase incrível não fosse os testemunhos numerosos e fidedignos. Dessa forma o anjo dis­se: Antíoco voltaria, visto que ele não saiu a encontrar Lúcio Scípio, mas suportou sua passagem. Tivera ele dado o menor si­nal de resistência, sem dúvida Filipe teria em sua mão e poder toda a força dos romanos. De fato muitos declararam ser precipi­tada a conduta de Lúcio Scípio, ao ousar perm itir a Filipe tal licença, visto que recentemente tinha sido vencido e ainda estava exasperado em conseqüência da perda e o infortúnio que havia sofrido. Pois se Antíoco tivera ficado em alerta para rechaçar o inimigo, teria acabado com o exército romano naqueles desfila­deiros estreitos e escarpados; mas, como já dissemos, ele m ante­ve seu exército no ócio e na luxúria entre as cidades fortificadas. Se porventura se preferir outro e mais provável sentido, a senten­ça se aplica a sua humilhante retirada para a Ásia distante, onde caiu assassinado pela população rústica. Ele cairá e não será achado. De fato Antíoco continuou a reinar desde o período da destruição de seu exército e de sua aceitação das condições que os romanos lhe impuseram. Obteve paz, porém não sem o paga­mento de um a pesada multa enquanto retinha o título de rei. Em­bora se unisse aos romanos num honroso tratado, todavia foi for­çado a retirar-se para além do Monte Tauro, a pagar um a grande

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[11.19] DAN IEL

soma em dinheiro por conta das despesas da guerra, a dar garan­tias e a dividir os navios em partes iguais com os romanos. Neste último caso, ele foi grosseira e fraudulentamente enganado, pois Lúcio Scípio ordenou que todos os navios fossem feitos em pe­daços e os materiais entregues a Antíoco, para quem eram total­m ente sem o mínimo valor. Ele bem sabia ser o homem fraudu­lento e incansável, e assim o tratou com barbarismo, segundo seus méritos. No que diz respeito aos reféns, achamos Antíoco e Demétrio, seus filhos, como reféns em Rom a até depois de sua morte. D e fato ele foi deixado em paz, mas foi privado das cida­des da Ásia Menor, a dirigir-se para além do Monte Tauro. Aque­les desfiladeiros foram os limites de seu império; um a parte da Ásia foi designada a Eumenes, e muitas cidades se tornaram in­dependentes. Antíoco, com o fim de ocultar sua desgraça, fez troça dela, dizendo que havia administrado habilmente, pois o governo da Ásia M enor lhe constituía um grande problema. Ele tinha outro reino, amplo e opulento, com o qual poderia muito bem contentar-se. Até aqui não passei de um administrador da Ásia, costumava dizer, e os romanos me têm aliviado dessa in­cumbência.

Quando, pois, o anjo diz; Depois de sua queda n ão m ais se rá rei, isso pode ser entendido como sendo um a referência a sua morte ignominiosa que se seguiu pouco tempo depois. Sua avareza era insaciável, e quando compelido a pagar um grande tributo aos romanos, pretendeu estar reduzido a extrem a pobre­za; então quis espoliar o templo de Júpiter Dodoneus, e foi morto ali durante um tumulto. Esta última frase deve referir-se propria­mente a esse evento, pois o rei Antíoco não foi encontrado, por­que esses rústicos o mataram no tumulto que surgiu. Então vem a seguir Seleuco, que foi seu primeiro sucessor. Ele tinha três fi­lhos: Seleuco, a quem muitos chamam Cerauno, então Antíoco Epifanes e Demétrio. Concernente a Seleuco, o anjo prossegue falando:

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59“ EXPOSIÇÃO [11.20]

20 E ntão em seu lugar se levantará quem 20 Et stabit super locum ejus transire fa-fará passar um arrecadador de im postos ciens exactorem in honore regni,164 et d i-na g lória do reino; porém dentro de pou- ebus paucis conteretur, idque non ira, ne-cos d ias e le se rá destruído, e isso sem ira que in prselio.e sem batalha.

Seleuco, sabe-se muito bem, não sobreviveu a seu pai por muito tempo, pois ele foi assassinado ou por veneno ou por seus domésticos. A suspeita recaiu sobre seu irmão Antíoco, que foi enviado de volta a seu país depois que se soube da morte de seu pai. Demétrio foi retido sozinho, que depois escapou, fugindo, pois deixou a cidade sob a pretensão de caçar, e seguiu à margem do Tigre até Óstia, onde embarcou num pequeno navio, preferin­do correr todos os riscos a permanecer em perpétuo banimento. Concernente a Seleuco, diz o anjo: em seu lugar se levantará, significando que ele sucederá por direito hereditário ao ofício de Antíoco o Grande. E assim ele fa rá passar um exator. Há quem traduz: ele levou em bora o exator; pois o verbo "QP, gneber, em hifil, significa levar embora. Os hebreus usam o verbo desta clá­usula no sentido de excluir. Alguns intérpretes pensam que essa linguagem implica elogio a Seleuco por ele ter reduzido os tribu­tos impostos por seu pai; os historiadores, porém, mostram que esse ponto de vista é falso, e condenam sua avareza e rapacidade. Em alguns pontos, ele era superior a seu irmão Antíoco; embora fossem tanto concupiscentes quanto cruéis para com os que os cercavam. Em virtude de despesas exorbitantes, ele não pôde ser moderado e tolerante para com seus súditos; pois a luxúria e pro­digalidade sempre arrastam consigo a crueldade na exação de tributo. Pois aquele que é assim pródigo deve necessariamente extrair de seu povo o próprio sangue. Como Seleuco havia assim se devotado à vida perdulária, este sentido é muito apropriado - ele fe z passar um exator, significando que ele estabeleceu novos e vigorosos impostos sobre todos seus súditos. Nada, senão isso,

,w Alguns traduzem esta palavra como se estivesse em oposição à última: “a honra ou glória do reino.”

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[11.21] DANIEL

se diz dele, já que imediatamente foi morto, como a segunda clá­usula do versículo nos informa. Se preferirmos tomar as palavras - a glória do reino - à guisa de oposição, Seleuco será elogiado como uma honra e um ornamento. Eu, porém, penso que deve­mos suplem entar a letra b, l , e entender a passagem assim: A que­le que fize r o exaíor passar [pela terra] ficará em seu lugar e será destruído em poucos dias. Pelo verbo ‘destruído’ ele quer dizer um a morte sangrenta. Mas não em ira, diz ele. Pergunto- me por que alguns o traduzem “em conflito mútuo” ; porque, por essa palavra, os hebreus entendem ‘ira’ ; significando que ele não pereceria em guerra aberta, nem no curso de um a batalha, mas pelas mãos de seus domésticos. Os historiadores diferem quanto ao tipo de morte que ele sofreu, dizendo alguns que ele foi enve­nenado; e outros, que foi morto à espada. Essa diferença, porém, não é de nenhuma importância. Antíoco Epifanes em seguida o sucede.

21 E em seu lugar se levantará um a pes- 21 Et stabit super locum ejus probrosus,soa vil. a quem lhe clarão a honra do rei- e t non dabunl e i ,M decorem reg n i,1’“ etno; m as e le v irá pacificam ente e obterá o veniet cum pace. et apprehendet regnumreino por m eio de adulações. per blanditias.

Os historiadores concordam em representar Antíoco Epifa­nes como alguém de uma disposição muito capciosa, e há quem declara que sua partida de Roma foi motivada por questão escu­sa. Mui provavelmente foi ele dispensado pelos romanos diante das notícias da morte de seu pai, um a vez que estavam contentes com seu irmão Demétrio. Contavam com outros reféns além des­se, que eram dentre os chefes mais nobres da terra, bem como esse terceiro filho do rei. Por mais que isso fosse assim, todos concordam em discorrer sobre sua astúcia. Ele era tão cruel e feroz, que Políbio diz ser ele chamado Epimanes à guisa de alcu­nha, e visto que assumira nome tão ilustre, passou a ser chamado

169 Ou, seja, não confiarão nele.in Ou, seja, não lhe conferirão a glória do reino.

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59* EXPOSIÇÃO [11.21]

o Louco, em razão de sua disposição turbulenta. Era um monstro entumecido com vários vícios; sendo de um temperamento servil e bajulador, tudo fazia para adquirir o favor de Rom a por meio de artifício, como mais adiante descobriremos. Mas quando não es­tava sob o efeito do medo, sua crueldade e ferocidade eram além de todos os limites. Por essa razão ele é chamado desprezível. Era tido em certa estima em Roma, e foi recebido por uma por­ção de seu povo com estrondoso aplauso. Ele, porém, nunca se viu revestido com qualidades heróicas nem ainda régias, porque foi sempre bajulador dos romanos e dos cidadãos granjeava seu favor da mesma forma, até que veio a seu reino na qualidade de suplicante. E então o anjo o cham a um ser desprezível ou vil. É possível apresentar outra razão igualmente provável, a saber: apoderar-se ele do trono por meio de fraude e atos de perversida­de, após haver-se descartado do herdeiro legítimo. Pois Seleuco deixou um sucessor a quem esse pérfido conspirador privou de seus direitos, e assim fraudulentamente adquiriu para si o reino. Sabemos com que importância Deus cham a a cada um, e como ele restringe os homens de precipitadamente arrogar algo para si, visto que devem estar sempre satisfeitos com aquela posição que lhes é designada por Deus. Visto, pois, que Antíoco assenhoreou do reino sem qualquer direito a ele, e expulso o herdeiro legíti­mo, ele se tom ou desprezível aos olhos de Deus, e jam ais teria sido rei exceto por m eio de violência e tirania de sua parte, bem como por meio de artifícios enganosos e astutos. Não hesito em declarar que o anjo aqui censura a conduta perversa de Antíoco, chamando-o desprezível em decorrência da ausência de toda e qualquer nobreza de sentimento.

Em seguida ele acrescenta: Não lhe conferirão a honra da realeza. Com estas palavras ele anuncia a injustiça de seu reina­do por não haver sido escolhido mediante os votos do povo. Já declaramos que o filho de Seleuco teria reinado sem qualquer disputa, porém a mesma pessoa que deveria ter sido o guardião

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[11.22] DANIEL

de seu sobrinho, perversamente privou seu protetor de sua heran­ça patema. Daí o anjo falar dele antes como um ladrão, e não como um rei, porquanto se apossara do reino sem ser eleito pelo voto popular. Prossegue: virá em paz e se apoderará do reino por m eio de adulações. Esta é a explicação da últim a cláusula. Pode-se perguntar: de que forma ele privou seu sobrinho de seu reino? A resposta é: ele virá pacificam ente , significando que ele refrearia tudo quanto estivesse agitando sua mente e não se van­gloriaria publicamente de ser rei, porém agiria fraudulentamente no caráter de guardião até que tivesse o poder de destruir seu protetor. Ele virá, pois, pacificamente, e se apossará do reino por meio de adulações. E assim vemos a intenção do anjo nestas palavras. Além disso, em bora Daniel não visse todas essas coi­sas, nem ainda muitos dentre o povo eleito, todavia tiveram so­bejas experiências do conforto provindo dessas profecias, banin­do de suas mentes toda ansiedade. Foi-lhes permitido perceber Deus falando através de seu anjo, e a experiência lhes ensinou a veracidade de tudo o que se acha contido aqui, ainda quando muitos eventos lhes estivessem ocultos. Mas era o objetivo de Deus sustentar os espíritos dos piedosos, ainda até o advento de Cristo, e reter-lhes sua tranqüilidade em meio às mais profundas conturbações. E assim reconheceriam o valor da promessa do Redentor, segundo fora descrito, como se mencionará no final do capítulo. Agora continuarei com as próximas palavras:

22 E com os braços de um a inundação 22 Et brachia m undatione obruentur, ad serâo subm ersos d ian te dele; e serão que- verbum, inundabuntur, a conspectu ejus, brantados; sim , tam bém o príncipe da ali- e t conterentur, atque etiam duz fcederis. ança.

Poderíamos naturalmente conjeturar que os domínios de An- tíoco não estiveram imediatamente em paz, porque uma porção de sua corte favorecia o herdeiro legítimo. Como sempre sucede em cada mudança de governo, houve muitos tumultos na Síria antes que Antíoco pudesse afastar seus adversários de seu cami-

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59* EXPOSIÇÃO [11.22]

nho. Pois embora o reino do Egito estivesse então destituído de um líder, visto que Ptolomeu, chamado Filometor, era então ape­nas um menino, seus conselheiros eram favoráveis ao filho de Seleuco, e assim, por meio de suprimentos secretos, ofereceram seus préstimos à facção oposta a Antíoco. Ele teve muito proble­ma não só com seu próprio povo, mas também com as nações adjacentes. Todos lamentaram a sorte de seu protetor e de ser ele totalmente indigno de tal sorte, e assim com ovendo a muitos a prestar-lhe o máximo possível de auxílio. O menino foi auxilia­do pelo favor do Egito e de outras nações. E assim Antíoco se viu sujeito a muitas graves comoções, porém o anjo anuncia sua con­quista final. Os braços, diz ele, serão inundados. Esta é uma ex­pressão metafórica; porque todo auxílio que porventura adquiriu o filho de Seleuco não foi devido a seu próprio esforço, porquan­to ele não poderia usar nenhum, mas pelo de seus amigos. Os braços, pois, significando todos os auxiliares que dariam assis­tência na restauração do filho de Seleuco, seriam esmagados por uma inundação. Aqui temos outra metáfora, significando que seriam tragados por um dilúvio; e por meio de tal figura o anjo insinua não só a vitória de Antíoco, mas também sua grande faci­lidade. Foi como um dilúvio, não por sua própria força, mas por­que Deus queria usar a mão desse tirano para afligir os israelitas, como veremos mais adiante, e também para perturbar tanto o Egito quanto a Síria. N a verdade Antíoco não passava de azorra- gue nas mãos de Deus, e é assim comparado a um dilúvio. Daí ele dizer: diante dele. Ele mostra que o terror de Antíoco seria tão grande, que com seu mero aparecimento ele descoroçoaria e prostraria seus inimigos, ainda que fosse destituído de forças, não sendo um guerreiro nem ousado e nem perseverante.

E serão q u eb ran tados, diz ele, e tam bém o líder d a a lian ­ça. Significando que Ptolomeu em vão tomaria o partido de seu parente. Porquanto o filho de Seleuco era primo de Ptolomeu Filometor, visto que, como já dissemos, Cleópatra se casara com

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Ptolomeu Filopator, de quem era procedente este Filometor, e Seleuco era irmão de Cleópatra. Ele, pois, era o líder da aliança. Aliás, Ptolomeu, que não passava de um a criança, não podia em ­preender nem concretizar coisa alguma por seu próprio conse­lho, porém tal era sua dignidade no reino do Egito, que foi mere- cidamente chamado líder da aliança, visto que todos os demais seguiam o poder daquele rei. O evento provou sobejamente que mal sucesso provinha do fato de que todos os que procuraram desapossar Antfoco de suas possessões tinham tudo contra si. Vamos em frente:

23 E depois do pacto fe ito com ele, agirá 23 El a conjunctione cum eo fciet dolum , fraudulentam ente; pois e le subirá e se tor- e t ascendet, e t p ravaleb it cum exigua gen- nará forte com pouca genie. te. vel, manu.

O anjo aponta para alguma interrupção nas guerras, um a vez que Antíoco ficaria contente, por algum tempo, com a Síria e não faria tentativa contra o Egito. Era uma grande chance para repelir as tentativas de todos aqueles que queriam recorrer aos direitos de seu sobrinho. Não há dúvida de que todo o país ficou em po­brecido e exausto com as contínuas despesas dessas guerras; pois sempre que novas comoções surgiam, era necessário arrecadar novas taxas dessas províncias, e isso acarretava grandes despe­sas. Não surpreende, pois, que Antíoco, que era de disposição astuta, negociasse uma paz temporária com seu sobrinho Ptolo­meu Filometor, rei do Egito. Sua irmã Cleópatra ainda era viva, e essa foi um a justificativa honrosa. O anjo, pois, declara, prim ei­ramente, a proposta de um armistício conduzindo à paz fixada entre os dois soberanos. Entretanto, ele acrescenta a pérfida con­duta de Antíoco em suas amizades. Durante esses acordos, ou depois deles, ele o tratará traiçoeiramente. Portanto, em bora pretendesse ser amigo e aliado de seu sobrinho, todavia condu- ziu-se fraudulentamente em relação a ele. E subirá e prevalecerá com um pequeno bando-, significando que atacaria o menino de forma súbita. Pois quando Ptolomeu antecipava a recente amiza­

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de com seu tio, Antíoco aproveitou a oportunidade para fraudu­lentamente atacar algumas cidades com uma pequena força. Ele assim enganou seu inimigo, o qual imaginava que todas as coisas estivessem tranqüilas para seu lado; e assim, quando Ptolomeu não nutria por seu tio nenhum medo, de súbito perdeu algumas cidades. Eis o que o anjo tinha em mente: ele surgirá através do engano, e prevalecerá sem grandes forças, porque não atrairia sobre si nenhuma suspeita de guerra. É muito fácil oprimir um inimigo num estado de tranqüilidade e na ausência do medo. Em seguida ele acrescenta:

24 E!c en trará pacificam ente m esm o nos 24 In pace, e t in pinguedinibus regionis.lugares m ais férteis da província; e fará aut provincia:, veniet, hoc est, in deliciis,aquilo que seus pais nunca fizeram , nem e t faciet q u s non fecerunt patres ejus, etos pais de seus pais; repartirá entre e les a patres patrum ejus; spolia e t p rsd a m , etpresa e os despojos e as riquezas; sim, e substantiam illis dispertiet.17' e t super mu-calcu lará seus projetos contra as fortale- niliones cogitabit cogitationes suas, idquezas, m as po r certo tem po. ad tempus.

Aqui a história tem seguimento: O anjo mostra como Antío­co, num curto tempo, e com um pequeno bando, adquirirá muitas cidades, visto que ele viria em paz sobre a fartura da província , subentendendo que ele os oprimiria enquanto dormiam em segu­rança. Ele m ostra também como ele viria a ser vencedor, não por meio de alguma invasão hostil do Egito, mas por meio de astúcia e intenção secreta ele privaria o rei Ptolomeu de suas cidades quando menos o esperava. Não haveria nenhuma aparência de guerra; daí ele dizer: virá em paz sobre a fartura da terra. A palavra ‘fartura’ é usada metaforicamente para ‘riquezas’. En­quanto os egípcios supunham que todo perigo fora removido para bem longe, e se persuadiam da amizade de Antíoco para com eles, e confiavam nele como um aliado a aparecer em qualquer adversidade, entregaram-se aos prazeres, até que Antíoco surgiu de repente e os subjugou. Em seguida ele acrescenta: Ele des­

171 Ou. ele dspersará suas propriedades.

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prezará o despojo, a presa e os bens, os quais lhes pertenciam. Alguns tomam as palavras para despojo e presa no sentido de ‘soldados’, e a jun tam com o verbo “ÍTO’, ibzor, “ele dispersa­rá”, significando que ele distribuirá suas possessões entre seus soldados, com o intuito de conciliar sua boa vontade e prepará- los para novas guerras, visto sabermos quão facilmente os solda­dos se deixam atrair quando recebem a remuneração por seus serviços; pois são movidos unicamente por cobiça e avareza. Alguns escritores o explicam assim: Antíoco dividirá a presa en­tre seus soldados: eu, porém, prefiro o outro sentido: ele disper­sará a presa e o despojo e os bens dos egípcios. Depois de opri­mir repentinamente os egípcios, ele procederá a despojá-los como um salteador.

Em seguida ele acrescenta: E co n tra as fortificações engen­d r a r á m aquinações. Significando que ele executará seus planos de apoderar-se de cidades fortificadas. Pois a princípio ele pene­trou até onde pôde em certas cidades e ocupou primeiramente Ccelo-Syria, e depois Phcenice, porém não pôde possuir im edia­tamente as cidades fortificadas; daí deferir ele a execução de seus planos para o tempo mais oportuno. Portanto, o anjo diz que ele poria em ordem seus planos contra as cidades fortificadas, mas somente por algum tempo. Significando que ele não manifestaria suas intenções imediatamente, esperando oprimir seu sobrinho quando baixasse sua guarda. E assim, sob o disfarce da paz, o acesso a essas cidades lhe estaria sempre aberto, e reconciliaria consigo todos quantos pudesse corromper ou por meio de pre­sentes, ou por meio de truques. Percebemos, pois, que aqui se nos apresenta um sumário das artes e estratagemas por meio dos quais Antíoco privaria seu sobrinho de um a porção de seu terri­tório e suas cidades, como subitamente ele invadiria algumas dentre as mais fracas, num estado de insuspeita tranqüilidade; e como gradativãmente ele inventaria maquinações para apoderar- se de cidades mais fortes, quanto estivesse a seu alcance. Ele diz

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59* EXPOSIÇÃO [11.25]

também: por certo tempo. A astúcia e a malícia de Antíoco fo­ram sempre veladas em todas essas transações. Ele não se envol­via em guerra aberta, mas sempre tudo fazia para aumentar suas possessões por meio de fraudes indiretas - um a trajetória que nunca ficou sem êxito.

Quando se diz: E le fa rá o que não fizeram seus pais, nem os pais d e seus pais, isso deve restringir-se somente ao Egito. Pois Seleuco, o primeiro rei da Síria, desfrutou de um a ampla extensão de domínio; então prosperou na guerra e sua fama flo­resceu mesmo quando idoso, e em bora não fosse bem sucedido nas batalhas, todavia em geral foi um guerreiro superior e cele­brado. Além disso, sabemos que ele foi um dos principais gene­rais de Alexandre o Grande. Quanto a seu filho Antíoco, já ob­servamos previamente a ampla extensão de seu domínio, e como foi nobremente estimado por sua prudência e coragem. O anjo não compara Antíoco Epifanes geralmente com seu pai, ou avô, ou bisavô, mas somente com respeito ao Egito. Pois seus ances­trais sempre almejaram o Egito, porém seus desígnios contra ele foram inteiramente frustrados; ele, contudo, foi mais bem suce­dido em sua agressão onde seus ancestrais fracassaram em suas tentativas. Daí tornar-se manifesto como Deus controla os even­tos da guerra, de modo que o vencedor e o herói triunfante não é o homem que excede em conselho ou em prudência ou em cora­gem, mas aquele que luta sob o líder celestial. A Deus apraz a um só tempo afligir as nações e a estabelecer sobre elas reis que se­jam realmente seus servos. Assim ele desejava castigar o Egito pelas mãos desse vilão salteador. Vamos em frente:

25 E instigará seu poder e sua coragem 25 E t excitabit robur suum , e t co r suumcontra o rei do sul com um grande exérci- adversus regem austri, cum exercitu mag-to; e o rei do sul será instigado a batalhar no: e t rex austri irritabitur ad p ra liu m cumcom um exército m uito grande e podero- exercitu m agno, e t robusto valde: e t nonso; m as não subsistirá; porque m aquina- stabit, qu ia cogitabunt con tra eum cogi-rão projetos contra ele. tationes.172

1 Ou, seja, agitarão contra ele conselhos pérfidos.

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[11.251 DANIEL

O anjo aqui anuncia como Antíoco Epifanes, depois de pre­valecer por meio de fraude, se tom aria mais audacioso em sua ousadia. Aventurar-se-ia a recrutar um exército hostil e a invadir o Egito abertamente, sem qualquer dissimulação. Portanto, diz ele: p o r fim susc ita rá su a fo rça e sua coragem . Havia anterior­mente se arrastado por lugares escusos e libertinos, e não desper­tou-se sua força nem sua coragem enquanto permanecia em casa. Entrementes, obteve a posse de várias cidades por meio de trai­ção e outros artifícios. Isso só se deu por rastejamento entre fen­das subterrâneas. Mas agora abertamente declara guerra e con­duz suas forças ao campo de batalha, e assim instiga sua força e sua coragem. Como eu já disse, seu novo método de guerra é aqui descrito como sendo-lhe inusitado, visto que sua audácia, intrepidez, gradualmente crescem através de um a série de suces­so que desfrutara e pelo qual se tornara mais poderoso do que seu sobrinho, pela prática de fraude. Em seguida ele acrescenta: com um grande exército. Ele havia mencionado um pequeno bando; agora lhe contrapõe um grande exército; pois se lhe requeria um longo espaço de tempo para a coleta de vastos recursos pecuniá­rios para levar avante a guerra, e também para alargar e estender suas próprias fronteiras. Ele foi assim capaz de alistar novos re­crutamentos, enquanto sua prosperidade induziu a muitos a tor- nar-se seus auxiliares. Visto que ele se achava em muitos aspec­tos superior a seu sobrinho, ele recrutou um grande exército. O rei do sul também ficará irritado; ou, seja, ele não ousará moles­tar a seu próprio tio Antíoco, mas se verá forçado a declarar guer­ra franca. Ele virá, pois, com um grande exército , muito grande, forte e poderoso, diz ele, m as não subsistirá, porque engendra­rão artifícios contra ele. Significando que ele será vencido por meio de traição. Aqui o anjo tem em mente que Ptolomeu teria coragem suficiente para resistir, não houvera ele sido traído por seus adeptos. Perceberemos isso mais claramente no próximo versículo amanhã.

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59* EXPOSIÇÃO

ORAÇÃO

Deus Onipotente, faz com que permaneçamos quietos em teu refugio e proteção, em meio àquelas numerosas perturbações, as quais sem­pre puseste diante de nossos alhos neste mundo. Que jam ais perca­mos nossa coragem quando a Satanás e a nossos inimigos fo r dada ocasião de oprimir-nos; mas que permaneçamos seguros sob tua pro­teção, e que na hora e momento oportunos fujam os para teu porto. Confiando em teu invencível poder, que jam ais hesitemos ao passar­mos por todas as comoções, tranqüilizando nossas mentes em tua graça, a té que, por fim , nos vejamos reunidos naquele fe liz e eterno descanso que preparaste para nós no céu, por Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

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60a• ^

26 Sim , os que com erem seus alim entos 26 E t qui com edent portionem cibi ejus, o destruirão, e seu exército será arrazado; com erent eum , e t exercitus ejus obruetur, e m uitos cairão m ortos. ei cadent vuJnerati multi.

Vimos ontem que o anjo predisse que Ptolomeu não subsisti­ria na batalha em decorrência da traição de seus próprios adep­tos. Ele agora expressa o gênero de traição, pois seus principais cortesãos ou conselheiros seriam os autores dessa perfídia. Pois ele distingue os soldados comuns de seus líderes, pois na segun­da sentença, ele mostra como os soldados cumpririam seu dever sem poupar nem sua vida nem seu sangue. Agora entendemos a intenção do Espírito Santo neste versículo, pois eie diz que os autores dessa perfídia não seriam homens comuns, mas os prin­cipais dentre os conselheiros. Somos informados que eles com i­am na mesa do rei, como vimos no primeiro capítulo que foi dada a Daniel e a seus companheiros um a porção do alimento régio da mesa do rei. Assim ele mostra quão desonrosa era essa perfídia, visto que comiam de sua mesa e eram seus companhei­ros íntimos. E les o d estru irão , diz ele, e seu exército se rá es­m agado. Ele mostra que muitos estavam preparados para esse dever, os quais, ousada e livremente, exporiam suas vidas ao pe­rigo para a segurança de seu rei e em defesa de seu país, po rém m uitos ca irão feridos. Ele quer dizer que haveria de ser grande a mortandade em seu exército, e o resultado da batalha não seria segundo seu desejo, porque seus generais não preservariam sua fidelidade a seu soberano. Com esse exemplo, o anjo nos descre-

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60a EXPOSIÇÃO [11.27]

ve a situação ordinária dos reis. Escolhem seus conselheiros não por sua honestidade, mas pela mera aparência da congenialidade em suas afeições e gostos. Se um rei é avaro, ou astuto, ou cruel, ou sensual, ele deseja ter amigos e assistentes que não obstruam nem sua avareza, nem sua astúcia; nem sua crueldade, nem sua luxúria. D aí merecerem a conduta que recebem e experimentam a traição daqueles que não deviam ser tratados com mínima hon­ra, se eles se sentissem obrigados em relação a Deus e a seu povo. A gora prosseguimos:

27 E os corações de am bos esses reis es- 27 Et duom m regum co r ipsorum , hoc esl. tarão atentos para fazerem o ma), e a um a et cor his duobus regibus, in m alum : et in m esm a m esa falarão m entiras; porém isso m nsa eadem , una , m endacium ioquentur, nào prosperará, porque ainda verá o fim e t non prospere eveniet, qu ia adhuc fimis no tem po designado. ad tem pus statutum .

Aqui o anjo narra que o término dessa guerra seria por meio de tratados e um a vã pretensão de paz depois da matança que Ptolomeu sustentara. Embora Antíoco pudesse ter seguido sua própria boa fortuna, todavia não ousou aventurar-se a levar sua vantagem a extremo, mas segundo sua disposição concluiu ser- lhe interessante fazer as pazes com seu inimigo. Já fizemos alu­são a sua astúcia e a sua falta de lhaneza e integridade. O anjo prediz a existência de má fé em ambos esses reis; o tio e o sobri­nho se encontrarão, diz ele, e cearão juntos, insinuando a maior amizade, porém falarão mentiras, diz ele, à mesma mesa', signi­ficando que tramarão um contra o outro, e cada um agirá fraudu­lentamente visando a seus próprios fins. Esta profecia de fato parece ser de pouca importância para os fiéis; mas era necessário mostrar que num estado tal de confusão não podiam manter-se sem se munir de todos os tipos de apoio. Se o anjo tivesse falado apenas em termos gerais, primeiro que haveria guerra e então uma paz temporária, isso não teria sido suficiente para sustentar a mente dos santos; mas quando os detalhes se revelam tão clara­mente realçados, lhes é oferecida um a notável confirmação. E assim os fiéis não têm razão para duvidar de que Deus realmente

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[11.28] DAN IEL

tem falado, quando o anjo prediz o futuro de forma tão exata e tão abertamente o narra como um assunto da história.

Em seguida ele acrescenta: E isso não p ro sp e ra rá , po rque a in d a v irá o fim no tem po designado. O anjo traz à lembrança dos fiéis a providência de Deus, visto que nossa mente sempre descansa naturalmente nos recursos das coisas terrenas. Apreen­demos com nossa mente só até onde nossos olhos vêem. Sempre indagamos sobre as razões “por que isso acontece” e “por que esse modo de proceder não resulta bem”, omitindo inteiramente a vontade de Deus. D aí o anjo encontrar essa falha e estupidez nos homens, dizendo que tudo quanto esses reis estavam traman­do não teria êxito: visto que o fim é questão de tempo; significan­do que Deus manteria muitas ocorrências em suspenso. Portanto, enquanto estamos considerando apenas as causas secundárias, percebemos como o poder supremo reside somente em Deus, e que ele governa, por sua vontade, as transações mútuas da huma­nidade. Nem a mais leve vantagem resultaria desta instrução para os fiéis, porque, enquanto os reis vivem engendrando muitos pla­nos e usando de grande astúcia em todos os artifícios perversos da diplomacia, Deus ainda restringe a mente deles. Ele mantém os acontecimentos com seu freio secreto e nada permite ocorrer fora de seu decreto celestial. Embora possamos deduzir desta pas­sagem esta instrução geral, todavia o anjo sem dúvida restringe o que já dissemos aos eventos históricos imediatamente diante de nós. O fim ainda não chegou, mas o tempo oportuno foi fixado de antemão pelo conselho secreto de Deus, de modo que Antíoco vence num período e recua noutro, como veremos. Vamos em frente:

28 E ntão ele regressará a sua terra com 28 Et revertetur in len a m suam cum opi- g randcs riquezas; e seu coração será con- bus m gnis, et cor e jus ad fcedus sanctita- tra a aliança santa; e fará proezas e re- tis. et faciet. e t revertetur in terram suam. g ressará a sua própria terra.

Aqui o anjo prediz a calamitosa natureza daquela paz para o

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povo de Deus, porque Antíoco volveria seus braços contra Jeru­salém e todo o povo hebreu. Diz: Ele regressará a sua própria terra, porque não possuirá o Egito. Esse regresso implica a vitó­ria de Antíoco, e todavia se retira para dentro das fronteiras de seu próprio reino. Ao acrescentar: com grande pompa ou gran­des riquezas, ele mostra a fonte donde proveio aquela riqueza: seu coração será co n tra a san ta aliança. Ele parcialmente des­truiu Jerusalém e o templo de Deus. Foi compelido a deixar o templo e muitos tesouros, quer movido pela culpa ou pela reve­rência ou por um milagre, como lemos no segundo livro de Ma- cabeus [5.2], De bom grado teria despojado todo o templo, po­rém Deus então o restringiu, embora houvesse cumulado para si grande riqueza. Daí o anjo associar os dois eventos: ele regressa­ria à Síria com grande riqueza e seu coração seria contra a santa aliança. Alguns entendem isso como uma referência a pessoas, como se o anjo estivesse pensando no povo que firm ara aliança com Deus. Mas o sentido mais simples me agrada mais: ele de­flagraria guerra contra Deus em razão de não haver se enriqueci­do com espólio do templo como esperara. Já mencionei a paz que ele fez com seu inimigo. Portanto, para que essa expedição não fosse infrutífera, ele despojou o templo de Deus. E assim seu coração se exaltou contra Deus e contra sua santa aliança. A outra explicação é um tanto frígida e forçada demais.

E ele fa rá isso e reg ressa rá a sua p ró p ria te rra . Este re­gressar no final do versículo é tomado num sentido distinto da­quele no início, como agora ele faria sua própria vontade como vencedor, e ninguém se oporia a sua chegada em seus próprios territórios. Essas duas expressões devem ser lidas juntas: ele fa rá isso e regressará a seus próprios domínios. O significado do ter­mo ‘fazer’ já foi explicado. O anjo tem em mente a ausência de todo e qualquer obstáculo que obstruísse Antíoco de destruir a cidade e o templo. Essa foi uma provação muito severa, e levaria a mente dos fiéis à conturbação e impaciência acerca do fato de

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[11.29, 30] DANIEL

Deus haver entregue o templo a esse cruel tirano e permitido que os vasos sagrados e os tesouros secretos fossem arrebatados com a mais intensa ignomínia. Era necessário, pois, informar de ante­mão aos fiéis dessa terrível matança, a fim de que a notícia ines­perada não os deixasse perplexos e destroçasse a constância de sua fé. D aí deduzirmos esta lição prática: Deus às vezes prediz muitos acontecimentos dolorosos sobre nós, e contudo essa ins­trução não deve amargurar nossos sentimentos; pois ele deseja fortalecer-nos contra as provações, as quais a notícia da ocorrên­cia ocasionaria. E assim o anjo, enquanto tratava de ocorrências de modo algum agradáveis, foi um arauto útil de todas as calam i­dades que se concretizariam, a fim de que nada que fosse inusita­do ou inesperado caísse sobre os santos. E assim reconheceriam que a aflição era procedente das mãos de Deus; e em bora estives­sem expostos à avidez de Antíoco, todavia Deus, por meio de seu conselho infalível e compreensível, permitiu muita liberdade a esse ímpio tirano. Vamos em frente:

29 No tem po designado ele voltará, e virá 29 A d tem pus re v e rte tu r e t v e n ie t inao sul; porém não será a últim a vez com o /Egyptum : e t non erit ut prius, it poste-t'oi a prim eira. riu s.1’33 0 Porque virão contra ele os navios d e 30 E t venient contra eum naves Cithim , Q uitim ; portanto, e le se sentirá am argu- e td eb ilitab itu r,1Met revertetu, e t indigna- rado e vo ltará e nutrirá indignação contra b itu r adversus fcedus sanctitatis, e t faciet,a santa aliança; assim fará. e ainda volta- e t revertetur, e tin te llig e t,l,5ad desertoresrá, e a tenderá aos q ue tiverem abandona- fcederis sanctitatis.do a santa aliança.

Antes de tudo, o anjo diz que Antíoco voltaria em pouco tem­po e tomaria posse do Egito. Esse foi o fruto daquela pretensa paz e pérfida amizade que já foram mencionadas. Pois o tio e o sobrinho banquetearam juntos em meio a mútua desconfiança, segundo o anjo já afirmara, e como encontramos no versículo 27

1.3 Ou, seja. o resultado seria diferente, pois a última expedição não seria bem sucedida como o foi a primeira.

1.4 Ou. se entristecerá, sentido que para mim é preferível.Ou. seja, aplicará sua mente.

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60a EXPOSIÇÃO [11.29, 30]

deste capítulo. Essa impostura foi logo depois desfeita, quando Antíoco, sem qualquer impulso racional, voltou ao Egito. Dessa forma ele mostrou que nada queria senão a oportunidade de rom ­per a trégua, e só a prorrogou por certo tempo, porque não queria oprim ir seu sobrinho às pressas. Este, pois, é um ponto. Podemos tomar a palavra mogned, ‘tem po ', como um período divi­namente predeterminado; mas como essa explicação poderia ser forçada demais, contento-me com a [explicação] comum. Ele voltará , pois, por certo tempo, e virá, diz ele, ao Egito\ mas a última expedição não será como a primeira. Porque toda a pre­paração para a guerra, a qual golpeou o Egito com tanto terror, perderia seu efeito. Ele assenhoreou-se de uma porção do reino, e o rei Ptolomeu Filom etor se viu sitiado com a chegada de Pú- blio Pupílio, de quem o anjo falará agora. Em virtude de sua che­gada, acrescenta-se: navios virão de Quitim. Já explicamos essa palavra em outro lugar. Fazendo um a com paração de todas as passagens bíblicas nas quais esse term o ocorre, descobriremos que nele se acham implícitos todos os gentios, desde a M acedo­nia por toda a Grécia, até o Ilírico e a Itália. Os antigos usavam outro termo para os macedônios; chamavam-nos Maketce, e há quem pensa que a letra M é um a adição inútil. Mas, se esse é ou não o caso, as circunstâncias mostram que os macedônios e os gregos, bem como outras nações ultramarinas, eram chamados Quitim. Se alguém ainda discute sobre esta palavra, que de nossa parte desistamos de toda contenda; todavia, não podemos deixar de observar qual o teor perpétuo da Escritura que nos capacita a descobrir isto: que os macedônios, os gregos e os italianos estão incluídos nesse termo. Esta passagem está isenta de toda dúvida, porque Antíoco foi refreado não pelos gregos, mas pelos roma­nos. Os embaixadores foram enviados por eles, não com esse único propósito, mas para investigar todo o estado da Grécia e da Ásia Menor. As atividades da Grécia eram então instáveis, e os romanos foram volvendo sua atenção para a Acaia, pois criam que a liga acadiana viria a ser muito poderosa. Entre esses em ­

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[11.29, 30] DANIEL

baixadores estava Púbiio Pupílio, homem inflexível, como pode­mos aventurar-nos a conjeturar, porém austero e bárbaro. Quan­do encontrou-se com Antíoco, o qual então estava sitiando A le­xandria e mantinha o rei infante em cativeiro, dirigiu-se a ele segundo sua própria maneira. O rei Antíoco o recebeu graciosa e brandamente, e mesmo gentilmente, e deseja ainda saudá-lo, pois, como já afirmamos, sua disposição era naturalmente servil. Pu­pílio rejeitou todos esses artifícios e ordenou-lhe que reservasse suas familiaridades para relações privativas; pois Antíoco e ele foram íntimos quando era refém em Roma, enquanto seu pai ain­da vivia. Ele rejeitou todos esses atos de cortesia e expôs-lhe as ordens do Senado e ordenou-lhe que deixasse o Egito im ediata­mente. O rei disse que consultaria seus amigos. Mas foi incapaz de dissimular sua costum eira aspereza; traçou um círculo com o bastão que tinha em mãos, e ordenou que o rei convocasse seus conselheiros e a deliberar no lugar marcado, do contrário decla­raria guerra no ato. Ao notar o rei a ação tão decisiva desse bár­baro, não ousou continuar hesitante ou a dissimular, porém anuiu imediatamente ao poder do Senado e retirou-se repentinamente do país. Essa história é agora descrita pelo anjo. Todos esses even­tos estavam ainda por realizar-se, porém Deus os pôs diante dos olhos dos santos o que então estava inteiramente oculto e contrá­rio à expectativa do gênero humano. O anjo, pois, declara a razão por que aquela expedição de Antíoco seria completamente dife­rente da primeira. Diz ele: Virão ali contra ele navios de Quitim, significando Itália, e ele se sentirá amargurado e regressará; ou, seja, ele obedecerá, ainda que sentindo-se indignado ante trata­mento tão imperioso, e será compelido a retirar-se mesmo com o estigma da desgraça. Era algo indigno de um rei aviltar-se tão humilhantemente à mera palavra de seu adversário.

Isto explica sua indignação: M as voltará e se mostrará indig­nado contra a santa aliança; significando que ele volveria seu furor contra o templo e a cidade de Deus. Essa segunda volta

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60* EXPOSIÇÃO [11.29, 30]

envolveria os judeus num período ainda de maior morticínio do que o primeiro. Antíoco não estava então disposto a regressar à pátria, a não ser que voltasse carregado de despojo, depois de pretender estabelecer a paz; porém agora foi com pelido a retirar- se com profunda desgraça, e isso apenas o exasperou e o enfure­ceu ainda mais. Daí agir ele de form a ainda mais ultrajante con­tra o povo e o templo de Deus. E assim o anjo diz: Será movido de indignação contra a santa aliança, e por isso voltará. Ele reitera duas vezes a mesma linguagem; como se quisesse dizer: Antíoco regressará à Síria sem concretizar seu objetivo, obede­cendo ao Senado romano, ou, antes, a seu velho amigo que co­nhecera em Roma. Já declaramos a razão, a qual mais adiante explicaremos mais plenamente, por que o anjo predisse a fúria do rei, volvendo-se contra a santa aliança. Eis a razão: a con­fiança dos santos naturalmente seria prejudicada ao observar a divina permissão outorgada ao tirano para despojar o templo.

E então acrescenta: E ag irá com inteligência em pro l dos que ab an d o n arem a san ta aliança. O anjo aqui realça a manei­ra na qual os acordos secretos forem feitos entre Antíoco e os apóstatas que se desertariam da santa aliança de Deus. E bem sobejamente claro que ele foi convocado a Jerusalém, primeiro por Jason, e então por Menelau [2 Macabeus 4.19-23]. Tocarei apenas de leve nas ocorrências registradas na história. Autores profanos nos informam acuradamente sobre essas ocorrências, e, além disso, todo o livro dos Macabeus nos fornece informação semelhante e claramente põe diante de nós o que o anjo aqui prediz. Quem quiser ler estas profecias com proveito deve fami- liarizar-se com esses livros, bem como deve tentar recapitular toda a história. O ancião Onias era um santo varão; seu filho já foi mencionado previamente [2 M acabeus 3.1]. Pois, com vistas a escapar das tramas, fugiu para o Egito e construiu um templo, como Josefo nos informa, e pretendia ser o cumprimento daque­la profecia de Isaías que diz: Haverá um altar de Deus no Egito.

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O ancião Onias, porém, que cumpriu fiel e sacramente o ofício de sumo sacerdote, foi posto em fuga e eventualmente foi morto. Então Jason, que fora enviado a apaziguar Antíoco, assumiu o sumo sacerdócio e profanou o templo, toda a nação e inclusive o culto divino [2 M acabeus 4.35-37; também v. 7], Ele mais tarde teve a recompensa que mereceu, porquanto foi assassinado, e então Menelau o sucedeu e conciliou o favor de Antíoco [2 Macabeus 5.9; 4.27]. A autoridade do sacerdócio prevaleceu enquanto foi capaz de atrair a si uma grande porção do povo. Aqui, pois, o anjo prediz como Antíoco, ao aproximar-se da cidade, teria como seus companheiros desertores e apóstatas. As palavras são: Ele aplica­rá a mente a quem abandonar a santa aliança, e o sentido não é de forma alguma obscuro. Antíoco não haveria deflagrado guerra contra os judeus, se uma facção não saísse a encontrá-lo e se con- graçado com ele. Percorri esses eventos bem sucintamente, porque quando chegar ao sumário geral me será bem mais conveniente realçar o desenvolvimento geral. Em seguida o anjo afirma:

31 E os braços se estenderão sobre eie, e 31 Et brachia ab ipso stabunt, e t profana-profanarão o santuário da fortaleza, e e l t- bunt sanctuarium roboris, aut virtuti, etm inarão o sacrifício diário, e porão a abo- abolebunt juge, sacrificium scilicet, e t po-m inação q ue causa desolação. nent abom inationem q u s obstupefaciet.17632 E os q ue se põem im piam ente contra a 32 E t im pie agents contra fcedus abducetaliança, e le corrom perá por m eio de H- in errarem b)anditiis .l7’ et populus inte-sonjas; m as o povo que conhece seu D eus lligen tes17® Deum suum roborabuntur etserá forte e fará proezas. facient.

Aqui o anjo descreve os males internos da Igreja, e explica mais detidamente o que havia levemente tocado no último versí­culo. Diz ele: Os braços se estenderão sobre ele [Antíoco]. Al­guns explicam isso como sendo a guarnição que aquele tirano impôs a Jerusalém. Mas isso parece forçado demais. Não hesito em presumir que o anjo aqui faz referência aos apóstatas que

[11.31-32] DANIEL

IM Já tratamos desta palavra antes.177 Isto é, os perverterá m ais e mais por m eio de lisonjaas.I7* isto é. todo o povo que reconhece.

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60* EXPOSiÇÀO [11.31, 32]

abandonaram a lei. Então, a sentença, braços que se estenderão sobre ele, significa que ele não se manterá em sua própria força, mas confiará na assistência do povo. Muitos se ofereceriam a obedecê-lo, e assim Antíoco encontraria um partido que se devo­taria a sua vontade. E depois adiciona: Profanarão o santuário da fortaleza. Aqui o anjo associa Antíoco a esses apóstatas ím ­pios [2 M acabeus 6.2]. Com o intuito de favorecê-lo, lemos que o templo seria profanado, e isso se cumpriu quando a estátua de Júpiter Olimpo foi erigida ali. A tirania e violência de Antíoco continuou até bem depois, como veremos em seu lugar próprio. Ele trouxe a estátua do Olímpio Jove para o templo, com o pro­pósito de destruir o culto de Deus, e então introduziu outras cor­rupções, as quais violaram a pureza do serviço divino. Ele pode­ria num só instante ter destruído toda a lei, porém antes de tudo ele tentou mesclar a lei divina com muitas superstições, e assim alienar os judeus gradativamente de sua piedade genuína e since­ra. O anjo fala do santuário da fortaleza, para mostrar aos fiéis que Antíoco não é vencedor de Deus, o qual jam ais foi privado de seu poder, mas continuava sendo o guardião e mantenedor de seu templo até o fim. Ele usa este epíteto para o templo para assegurar aos piedosos que Deus não tinha aberto o caminho para a violência e o tirano. Sua autoridade ficou intocada e imaculada, ainda que seu templo se visse exposto a essa brutal profanação.

Por fim, ele queria que os fiéis, com este ensino, retivesse o senso do poder invencível de Deus em escolher esse templo como sua habitação, ainda que por algum tempo fora dado a Antíoco insultá-lo, e lhe fora permitido profaná-lo com sua guarnição. Esta instrução impelia os piedosos a buscarem o poder de Deus com os olhos da fé, em bora ele estivesse então oculto de sua vista, e fosse tripudiado pelos pés dos ímpios em seu desbragado orgulho e audácia. Doloroso era deveras o espetáculo dessa está­tua erigida dentro do templo; porque Deus, segundo nossa afir­mação prévia, prometera ser o defensor desse sacro monte. Quan-

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[11.31, 32] DANIEL

do os ímpios ficaram assim insultuosamente furiosos, quem não teria imaginado que Deus se deixara vencer e não mais era capaz de defender sua residência? O anjo, pois, aqui reanim a os fiéis a cultivarem pensamentos muito diferentes daqueles sugeridos pelo prospecto que estava diante de seus olhos. O templo, pois, pare­cia enfraquecido e destituído de toda proteção, e todavia com respeito a Deus ele era ainda o santuário da fortaleza. Em segui­da ele acrescenta: E abo lirão o sacrifício contínuo, o que real­mente ocorreu: agora, porém, abordo este fato de form a breve, visto que terei outra oportunidade de abordá-lo mais adequada e plenamente. E colocarão, ou estabelecerão, aquela abom ina­ção que causa espanto. Pois quem não teria ficado assombrado contemplando o templo abandonado pelo Todo-Poderoso? Pois se Deus se preocupava com os serviços do templo, por que ele não resistiu um a fúria tão selvagem? Por que tolerou sujeitar-se a uma indignidade tão desditosa? O anjo responde a tentações como essas, dizendo que nem que o m elhor dos homens se sentisse espantado com tal desgraça, todavia nada acontece por acaso; pois Deus já havia visualizado e decretado todas as coisas. Eles não teriam sido preditos, a não ser que Deus quisesse provar a fé do povo e exigir a punição por sua ingratidão. Não posso, porém, concluir hoje a exposição do tema.

ORAÇÃODeus Todo-Poderoso, uma vez que somos instruídos pelo Espírito e estamos revestidos com o sacro ensino, fa z com que enfrentemos a guerra com bravura contra os inimigos francos e contra tudo quanto ousadamente se opõe à verdadeira religião. Faz com que também desprezemos todos os inimigos e apóstatas domésticos, e os resista­mos de maneira varonil. Que jam ais nos sintamos perturbados mes­mo quando vários tumultos surgirem no seio de tua Igreja. Que nos­sos olhos estejamfixos em ti, e esperemos sempre o mais ditoso resul­tado, mesmo que parecer impossível, até que, por fim , tu cumpras tuas promessas. E que todos os acontecimentos que ora nos pareçam contrários resultem em nossa salvação, quando teu Filho, nosso Sal­vador. manifestar-se. Amém.

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61a g.xposição

/^T ^eclaram os na última preleção a seriedade da prova pela qual c sZ /D eu s testou a fidelidade de seu povo, permitindo a Antíoco uma liberdade tão ilim itada para profanar o templo e abolir, por certo tempo, todos os sacrifícios e liturgia. Em seguida ele esta­beleceu no meio do templo aquela abominação que humilhou profundamente os espíritos dos piedosos; pois tal prodígio não podia ser testemunhada sem o mais profundo espanto. Ninguém jam ais poderia supor ser possível que Deus expusesse seu pró­prio santuário a tal desonra, visto que ele foi o único que Deus escolhera no mundo inteiro.

E então diz: E ele e n g an a rá os transg resso res d a a liança com adu lação , m as um povo que conhece seu Deus a re te rá com firm eza e a p ra tica rá . Aqui Daniel expressa mais clara­mente o que dissera previamente da corrupção e subversão do culto divino, como Antíoco sedutoramente persuadiria e atrairia a si uma pérfida porção daqueles que eram nominalmente, pelo menos, povo de Deus. E assim ele reitera o que já observamos. Esses hipócritas eram como os braços de Antíoco; pois ele cap­turara a cidade pela força de braços, e não teria ousado expressar esses insultos ao templo de Deus, a menos que recebesse assis­tência daqueles apóstatas que desprezaram todo e qualquer te­m or do Todo-Poderoso, e a quem tão-somente a ambição e a ava­reza os haviam impelido a unir-se àquele ímpio tirano, o qual era o inimigo devotado e confesso de sua religião. O anjo, pois, aqui

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111.31, 32] DANIEL

confirm a o que previamente dissera, mostrando como os perver­sos e ímpios zombadores da aliança seriam instrumentos nas mãos desse ladrão. Pois a prim eira palavra do versículo 32 deriva-se de PUn, reshegn, “proceder perversamente” , e se refere àquele ato especial de pecaminosidade, seu desprezo para com a aliança de Deus. Isso tem referência aos inimigos domésticos que previ­amente se gabaram de ser filhos de Abraão, e que foram marca­dos pela circuncisão, que era o sinal daquele pacto. Ele aqui não realça alguns do mero refugo do povo, mas os sacerdotes ímpios, Menelau, Jason e outros como eles, segundo a explicação já feita à passagem. Ele diz, pois: esses serão enganados pelas b a ju la ­ções de Antíoco. Com certeza ele ofereceu aos sacerdotes e aos demais o que pensava mais valessem: um ele pôs no templo; ou­tro ele enganou com promessas vãs e falazes por certo tempo, distribuindo entre eles uma variedade de presentes. E assim ele a todos corrompeu com suas bajulações. O profeta confronta esses com os sinceros adoradores de Deus; e a cópula hebraica deve ser entendida aqui como a subentender esse contraste. Ele já ha­via falado de muitos como sendo enganados por promessas vãs, e os chamara transgressores da aliança; ele agora acrescenta: M as o povo que conhece a Deus se fo rta lecerá e prevalecerá. A intenção do anjo é que a perfídia daqueles de quem falara não prevaleceria contra os piedosos levando-os à m esm a aliança com a perversidade e precipitando-os de ponta cabeça nas mesmas armadilhas. Embora tal fosse a perfídia desses revoltosos, toda­via todos quantos conhecem a Deus, diz ele, se fortalecerão.

Esta passagem é especialmente digna de nota, como a experi­ência ensina quão poucos ficam de pé quando muitos fogem. O exemplo de um às vezes conduz cem à mesma ruína; mas a cons­tância de cem raramente é suficiente para manter um em sua po­sição. Neste caso, olhemos bem para os recônditos de nossa de­pravação natural. Pois somos não apenas movidos, mas até m es­mo abalados pelas mais leves brisas, e inclusive quando Deus

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61* EXPOSIÇÃO [11.31,32]

põe diante de nós um firme refúgio, até que nossa vacilação seja curada. Quando o Apóstolo põe diante de nós o exemplo dos santos, ele diz que uma nuvem de testemunhas está sempre nos encarando, com vistas a conservar-nos no temor de Deus e na pura confissão de nossa fé [Hb 12.1], Mas essa nuvem se dissipa muito depressa de nossa vista. Entrementes, se alguma pessoa tagarela a quem sabemos não ser de nenhuma im portância e a quem nós mesmos temos condenado - se tal pessoa se declinar ainda que bem pouco do caminho reto, cremos que tal exemplo é suficiente para nos justificar. Por isso tive boas razões para de­clarar como esta passagem descerra diante de nós nossa disposi­ção perversa e maligna. Dificilmente somos atraídos para Deus em decorrência de uma multiplicidade de dispositivos, porém somos facilmente arrastados rumo ao diabo para nossa própria destruição. Daí a necessidade de diligentemente meditarmos nesta passagem e refletir continuamente sobre a linguagem do profeta. A despeito de os apóstatas se deixarem enganar por bajulações e rejeitarem o culto divino, traindo a Igreja e destruindo em si toda sombra de piedade, todavia todos os santos se manterão firmes na fé. Portanto, que ninguém cite o exemplo dos imponderados quando justificam seu erro, se o mesmo im ita os pérfidos, os le­vianos e os hipócritas. O anjo aqui nos pinta um quadro da Igreja, mostrando como tantos provam ser apóstatas; mas tal levianda­de, inconsistência e perfídia não deve jam ais ser um obstáculo usado pelos inimigos de Deus a impedir o progresso dos santos na fé e na piedade.

Devemos notar ainda o epíteto que designa os santos. Eles são cham ados um povo que conhece o seu Deus. E possível supor que povo, aqui, signifique a classe ordinária, mas isso é forçado. Também é possível supor esteja ele representando os gentios profanos; eu, porém, creio haver aqui um contraste im­plícito entre os verdadeiros e genuínos filhos de Abraão e os fal­sos israelitas, que se vangloriavam em ser membros da Igreja,

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[11.31, 32] DANIEL

quando nada mais tinham senão um mero título sem conteúdo. Pois nos profetas e nos escritos de M oisés a designação ‘povo’ é às vezes usada num sentido favorável para aquela nação eleita que Deus havia adotado como peculiarmente sua. Todos os isra­elitas que eram descendentes de Abraão segundo a cam e costu­mavam gabar-se orgulhosamente de ser o povo eleito, e assim a palavra estava sempre em seus lábios. Por isso o profeta reprova a tola vanglória daqueles que costumavam esconder-se debaixo do nome de Deus sem ter nada de real em si mesmos. Daí o povo, significando o povo de Deus, se fortalecerá ; mas, à guisa de cor­reção de algum conceito errôneo, ele adiciona: que conhecerá a Deus, como no Salmo 73 [v. 1]: Quão bom é o Deus de Israel para com os de coração reto! Aqui o profeta restringe o título Israel aos filhos eleitos de Abraão que cultivavam a piedade sé­ria e sinceramente, como se tornara um hábito prevalecente m e­dir cuidadosamente esse nome de Deus. Assim aqui, o povo que conhecerá seu Deus significa seu povo genuíno - aqueles a quem ele reconhece como seus eleitos. O anjo aqui faz uma distinção entre os filhos piedosos de Abraão e os adoradores piedosos de Deus. E digno de cuidadosa observação que o anjo assinala seu conhecimento de Deus como a causa e fundamento de sua cons­tância. Como, pois, podemos perguntar, é possível que alguns poucos sejam deixados, enquanto os apóstatas continuam a pros­tituir-se? Porque seu conhecimento de Deus prevalecerá e os ca­pacita a vencer esses ataques e bravamente os repelem e se tor­nam superiores a qualquer tentação. Vemos, pois, a fonte donde em ana nossa própria fortaleza - o conhecimento de Deus. Tal reconhecimento não é uma imaginação fútil e fria, senão que flui daquela fé que finca bem fundo suas raízes em nossos corações. Donde se segue que não reconheceremos realmente a Deus a não ser que ousadamente encaremos com otimismo o teste e perm a­neçamos firmes e resolutos, embora Satanás tudo faça, usando infindas maquinações para minar nossa fidelidade. E a menos

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61* EXPOSIÇÃO [11.31, 32]

que persistamos naquela firmeza que é aqui descrita, é por de­mais evidente que Deus jam ais será verdadeira e realmente reco­nhecido por nós. A relação também não é destituída de peso na frase: o povo que conhecerá seu Deus. Aqui está um a reprovação silenciosa, visto que Deus se revelou aos israelitas o quanto lhes era suficiente para reterem seu compromisso de fidelidade. Nin­guém, pois, poderia oferecer qualquer justificativa sem se fazer culpado de impiedade, sacrilégio e perfídia, depois de ser tão ple­namente instruído pela lei e pelos profetas.

Essa instrução deve agora aplicar-se a nosso próprio tempo. Observamos em nossos dias quantos abandonam a Igreja. A perse­guição peneira todos os que professam pertencer a Cristo, e assim muitos são joeirados como palha, e apenas um a pequena porção permanece inabalável. Sua apostasia não deve subverter nossa fi­delidade quando tão displicentemente abandonam toda piedade, ou quando se vêem atraídos pelos entretenimentos de Satanás, ou quando enganados pela conduta dos ímpios. M antenhamos em mente a declaração do anjo, e assim o verdadeiro conhecimento de Deus reinará supremamente em nossos corações, e ainda avança­remos no curso que já começamos e cujo alvo perseguimos. E para mostrar quão consistentemente os fiéis progridem na instrução da lei e do evangelho, ele diz: eles se fortalecerão e o farão . Aqui o verbo “fazer’ é tomado no sentido de ‘executar’ - ‘exploicter’, como dizemos em francês. Significando: eles concentrarão sua coragem no cumprimento de seu dever; pois o verbo ‘fazer’ ou ‘executar’ aponta para a vocação dos piedosos; eles não seriam lerdos nem indolentes no cumprimento de seu dever, diz o profeta, mas reuniriam coragem para essa peleja. E o que dizer do reconhe­cimento de Deus? Observamos também que a fé não é um senti­mento ocioso nem uma imaginação fria, permanecendo sufocada em nossa mente, mas um princípio energizante. Pois podemos afir­mar que da fé emana a força; e da força, a execução; e assim evita­mos toda indolência em nossa vocação. Prossegue-se:

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33 E aqueles do povo que entendem ins- 33 E t intelligentes populi docebunt mul-truirão a m uitos; todavia cairão pela es- tos, et cadent in gladio , e t flam m a, e t exi- pada, pelo fogo, peto cativeiro e pelo es- lio, vel, capiivitate, et direptione, diebus pólio , po r m uitos dias. rnultis.

3 4 O ra. quando caírem , serão a judados 3 4 E tin c a d e n d o ,l79ju v ab u n tu rau x ilio 1“com p eq ueno socorro ; m uitos, porém , m o d ico :e tad ju n g en tse ilI ism u ltiin b lan - aderirão a eles com lisonjas. ditiis.

Com referência às palavras, elas significam aqueles que se­rão ensinados entre o povo fa rão com que muitos entendam. A l­guns tomam a primeira palavra do versículo transitivamente, como “aqueles que instruirão”, porém estão equivocados. E revelam sua ignorância ao presumirem que o pronome relativo vem antes do próximo verbo, por exemplo: “e aqueles que ensinarão” . O sentido simples é este: “Aqueles que serão sábios entre o povo ensinarão a muitos.” Aqui o profeta, sob a diretriz do anjo, prediz a multidão de apóstatas, bem como a existência de alguns de um caráter contrário, que conservariam o povo dentro do culto puro e do temor de Deus. Sem dúvida, ele fala especialmente dos sa­cerdotes. A grande maioria era contumaz, e envolvia o vulgo in­sensato em sua perversidade. Observamos os efeitos similares, em nossos dias, no papado, como corrompem o mundo inteiro com seus sacrifícios. Naquele tempo, os sacerdotes armavam re­des para o povo e arrastavam consigo quase todos para a mesma impiedade. Aqui o anjo admite a existência de alguns sábios en­tre o povo; não restrinjo isso inteiramente aos sacerdotes, ainda que entendo o anjo como que começando com eles. Uma peque­na porção deles ensinava a verdade, e Deus uniu com eles uma parte, mas ainda o anjo prediz a existência de outro remanescen­te. Contudo depois, em segundo lugar, ele envolve os outros que eram realmente proficientes na lei de Deus, e em bora as obriga­ções do sacerdócio não os obrigassem, todavia labutavam para convocar os peregrinos ao caminho da salvação. Diz ele, pois:

Quando caírem.'* Essas duas palavras procedem da mesma raiz; como “serão fortificados” é oriundo de

‘fortaleza’; assim "eles serão assistidos”, de assistência."

111.33,34] DANIEL

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61* EXPOSIÇÃO [11.33, 34]

Quem fosse habilidoso deveria ensinar a muitos. Há também aqui um tácito contraste entre os honestos servos de Deus e os mestres de ficção que se orgulhavam de seus títulos; como observamos o mesmo exemplo disso no papado de nossos dias. Pois os bispos e cardeais, os abades e pretendentes desse gênero se pavoneiam com insolência e imbecilizam o vulgo miserável. Porventura não representamos a Igreja? Não nos compete julgar e interpretar a Lei e as Escrituras? Portanto, como é possível que nestes tempos tais impostores arroguem para si todo conhecimento e preten­dam ser vistos como em pé de igualdade com os anjos, quando sabemos que o mesmo se deu entre o povo antigo! O profeta, pois, aqui castiga a confiança estúpida, dizendo: Aqueles que serão entendidos entre o povo, significando os que eram realmente sá­bios. Como se ele dissesse: os hipócritas mascarados adquirem reputação para si, porém sem a mínim a sombra de razão. Deus considera somente os inteligentes que permanecem na pura dou­trina de sua lei e praticam a piedade com simplicidade e sinceri­dade. D aí ele os chamar de os inteligentes dentre o povo. Ele reitera a palavra ‘povo’ no mesmo sentido de antes, significando que nem todos os que usam este nome são de fato israelitas dian­te de Deus, quando se requer verdadeiro conhecimento dele. Que tipo de conhecimento ou habilidade está implícito facilmente apreendemos do próxim o versículo. Pois todo conhecimento que os homens imaginam possuir sem essa familiaridade com Deus nada mais é do que vaidade. Portanto, esses ensinarão a muitos. Esta predição angelical não só assevera a existência de alguns dentre o povo que permaneceriam firmemente no meio de tão graves assaltos, e preservariam a integridade de sua fé, mas diz que eles seriam diretores de outros; como se dissesse: Deus ou­torgará a cada um de seus eleitos não só o poder de resistência ousada e perseverança pura e incontaminada no meio de toda corrupção, mas, ao mesmo tempo, ele converterá esses bons ho­mens em suportes para outros, seja impedindo-os de se declina­rem, ou de apostatarem, reconduzindo-os à reta vereda.

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[11.33, 34] DANIEL

Finalmente, o anjo tenciona dizer quão pequena semente Deus preservaria em sua Igreja como mestres e líderes de outros, não passando de um pequeno número; como diz Isaías: Deus consu­m iria seu povo, porém, no meio da destruição, ficaria um rema­nescente que se converteria [Is 10.22], A idéia desta passagem é a mesma; mesmo que muitos se degenerassem e se apartassem da fé, e esse espírito se estendessem a todo o povo, todavia al­guns poucos ficariam firmes - talvez dez em mil - e esses seriam ministros de Deus na ação de congregar um a nova Igreja; e assim a terra outrora estéril se tom aria fértil com essa irrigação e pro­duziria nova semente. Portanto, esses que seriam sábios no seio do povo ensinariam a muitos. Enquanto o anjo está aqui predi­zendo o futuro, devemos levar a sério esta admoestação: quanto mais cada um de nós tomar-se proficiente na fé, mais deve ele esforçar-se ao máximo por ministrar o ensino aos amigos rudes e ignorantes segundo esta exortação do anjo. Deus não nos estende sua mão para conduzir a cada um de nós em seu próprio curso, mas para dar assistência a outros e buscar seu avanço e progresso espirituais. Portanto, lemos aqui a condenação da indolência da­queles a quem Deus tem concedido muito conhecimento e fé, quando falham em usar aquela confiança que lhes foi entregue para a edificação de seus irmãos. Esta predição angelical deveria influenciar a cada um de nós, como um a lei e norma, na busca do proveito de seus irmãos segundo a medida de sua inteligência.

O anjo acrescenta que esses não seriam mestres de sombras, os quais prescrevem os deveres dos homens em sua comodidade, e impugnam sem aborrecimento, perigo ou preocupação pessoal o que em si mesmo é certo e agradável a Deus, senão que seriam incansáveis guerreiros em prol da verdade. Aqui, pois, o anjo junta instrução com fortaleza, como se com esta m edida fosse possível vencer todos os perigos, ansiedades e terrores. A passa­gem se nos tom a, dessa forma, mais útil em nossos dias, se ape­nas aprendermos a refletir sobre o que Deus nos entrega pela

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instrumentalidade de seu anjo através de seu profeta. Em conclu­são, pois, o anjo demonstra como Deus jam ais aprovará quais­quer mestres como verdadeiros e legítimos, a menos que procla­m em sua mensagem e se prontifiquem a defendê-la, bem como estejam preparados a selá-la com seu próprio sangue sempre que for necessário.

Devemos ler as duas sentenças juntas: A queles que ensinam a m uitos a ad o ra rem a Deus ca irão pela espada e pelo fogo; significando que preferirão cair ou perecer cem vezes pela espa­da e pelo fogo antes que desistir de seu ofício de ensinar. Além disso, o anjo aqui menciona os vários tipos de morte, à guisa de exortação. Pois houvera ele mencionado apenas a espada, e não teria expresso plenamente a utilidade desta instrução. Sejam quais forem os mestres que Deus envie a sua Igreja, não serão plena­mente aprovados no cumprimento de seu dever recebendo uma única form a de tentação, mas terão que contender com inimigos que se postam a sua direita e a sua esquerda, e não deverão per­mitir que a variedade de perigos debilite ou sua constância ou sua coragem. Se a espada os ameaça de um lado, e o fogo do outro - se sofrerem o espólio de seus bens e o banimento de seus lares, não obstante esses mestres irão perseverar e prosseguir em seu curso. Observamos, pois, a multiplicidade de conflitos aqui enumerados pelo anjo, com vistas a ensinar-nos sobre a força da graça do Espírito em apoiar os mestres e líderes da Igreja e a impedi-los de ceder a qualquer tentação, ainda que estejam a con­tender com a espada, o fogo, o exílio e o espólio de seus bens.

Ele acrescenta: E isso tam bém p o r m uitos dias. Esta cir­cunstância possui grande peso, quando observamos muitos su­portando por algum tempo com coragem varonil e intrépida, mais tarde se debilitam e então desaparecem e chegam a ser totalm en­te diferentes do que eram antes. O anjo, contudo, aqui promete aos que forem sustentados pelo Espírito de Deus um a constância invencível. Eles devem reunir nova coragem para novos confli­

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tos, não só por um único dia, ou mês, ou ano, mas que jam ais fracassem diante deles. Em seguida acrescenta: E q u an d o caí­rem , ou se caírem, se rão fortalecidos, ou assistidos, com p e­queno socorro . Sem a mais leve dúvida, o anjo aqui fala dos M acabeus, por meio de cuja assistência os fiéis foram congrega­dos e completamente separados daqueles apóstatas que haviam profanado o templo e o culto de Deus. Ele qualifica o socorro de pequeno, e realmente assim foi. Pois seria possível que os M aca­beus resistissem a Antíoco? A poderosa influência desse rei é bem notória; e o que era a Judéia com parada com a Síria? Os judeus de fato tinham destruído seu próprio poder; já vimos como violaram os tratados e corromperam a maioria de seu próprio povo: não restou entre eles nem habilidade, nem plano, nem concerto. O socorro , pois, enviado por Deus a eles era pequeno. M as então o anjo mostra como Deus providenciou socorro para seu povo quando em angústia, e lhes permitiu algum alívio da crueldade do tirano.

Em seguida ele acrescenta: M uitos se ju n ta rã o a eles p o r m eio de lisonjas. Desse pequeno número o anjo ainda elimina a maioria, e lhes informa sobre a miserável condição da Igreja, porque bem poucos ousariam opor-se à dem ência do tirano, e desses poucos muitos seriam hipócritas. A totalidade deste capí­tulo deve ser interpretada como que apontando para Antíoco, e no entanto sem dúvida Deus deseja promover nosso melhora­mento através dessas profecias. Elas nos pertencem igualmente; pois como Deus governa a Igreja numa variedade de formas, as­sim ele sempre a sustenta sob grande variedade de cruzes e pro­vações. Além disso, o velho inimigo, o diabo, que desde outrora é opositor da Igreja, nos é igualmente impertinente. Ele nos as­salta em parte por meio de inimigos externos e em parte por meio de inimigos internos. Um ensino como este era útil, não só aos antigos, mas também a nós nestes tempos. Antes de tudo, o anjo prediz que a assistência que os fiéis receberiam seria pequena.

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Aprendamos, pois, quando Deus quer socorrer-nos e ajudar-nos, ele nem sempre exerce a plenitude de seu poder. Ele não usa o trovão do céu nem subjuga nossos inimigos golpeando-os com seu relâmpago; mas nos capacita a enfrentar vitoriosamente nos­sa cruz, e assim ele nos faz ainda mais separados dos réprobos através de nossa firmeza e resistência. Além disso, à luz da se­gunda sentença observamos com a absoluta certeza que muitos hipócritas se infiltram no meio dos filhos de Deus; e quando Deus purifica sua Igreja, apenas um a pequena porção dela permanece sincera, justam ente como nestes dias a mesma reprodução desta profecia é exibida ante nossos olhos. Todo o papado é chamado a Igreja de Deus; somos apenas um pequeno número; e no entanto que m escla ainda existe entre nós! Quantos nestes dias profes­sam fidelidade ao evangelho, em quem nada existe de sólido ou de sincero! Se Deus fizer uma busca bem detida nas pequenas igrejas, ainda entre esses poucos alguns seriam achados engana­dores. N unca foi diferente, tampouco será diferente quando o fim do mundo chegar. Aqui, pois, somos admoestados a desejar, quan­to estiver em nosso poder, a pureza da Igreja e evitar toda e qual­quer impureza; porque, ao desejarmos auxiliares tão ávidos pela compulsão de alguma necessidade urgente, estejamos certos de ser manchados com muitas nódoas que poderão, por fim, cobrir- nos de confusão. O anjo, sem dúvida, aqui reprova a falha na conduta dos Macabeus. Embora Deus os incitasse a propiciar al­gum a consolação a sua Igreja, seu procedimento não deveria ser reprovado; pois não se deduz que todas suas ações fossem louvá­veis, porque sua causa era pia e santa, mas preciso prorrogar para amanhã a discussão deste tema.

ORAÇÃO

Deus Todo-Poderoso, visto que neste dia tu provaste a f é de teu povo com muitos testes, fa z com que eles obtenham força daquela invencí­vel coragem oriunda de teu Espírito Santo. Que marchem constante­mente sob teu estandarte, até o fim , e que jam ais sucumbam ante

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qualquer tentação. Que a i juntemos inteligência e zelo na edificação de tua Igreja. Que cada um de nós seja dotado com dons superiores, e assim lutemos pela edificação de seus irmãos com mais ousadia, varonilidade e fervor, enquanto ele busque aumentar o número para tua causa. E enquanto o número dos que são meros membros profes­sos de tua Igreja diminui, mas que alguma semente dela sempre per­maneça, até que abundante produção flua dela e uma fertilidade tal surja que faça com que teu nome seja glorificado pelo mundo inteiro. Em Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

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/ / fe m e ç a m o s ontem explicando o que o anjo disse sobre a fu- O tura perseguição da Igreja e sua subseqüente consolação. Ele primeiramente mostrou como todos os inteligentes dentre o povo se sujeitariam à crueldade de seus inimigos, em conseqüência de sua varonil perseverança em instruir a outros. Já mostramos quão ineficientes seriam aqueles mestres a quem Deus poria sobre sua Igreja, caso cumprissem seus deveres no ócio e à sombra e sem preparado para enfrentar todos os embates e a intrepidamente expor sua vida a uma variedade tão grande de perigos. Este, pois, é o método de ensino vivo e eficaz, a saber: quando não cessa­mos de cumprir nossos deveres por entre a espada e as chamas. Mas, em contrapartida, é preciso notar por quantos essa instru­ção é buscada quando surgem esses conflitos fatais. M uitos em nossos dias ouvem nossa instrução concernente a Cristo; somen­te eles continuariam sem injúria ou aborrecimento. Observamos muitos avidamente bebendo as doutrinas evangélicas; mesmo assim, quando algo dispersa a multidão, fogem imediatamente, e com menos consideração ainda de quando se uniram antes à as­sembléia. Tal conduta que diariamente observamos era igualmente com um nos primeiros tempos. Evidentemente basta essa falha que tanto prevaleceu ao longo de todas as eras, e é inato nos ho­mens não só escapar da cruz e de todas as coisas vexatórias, mas especialmente exibir suas próprias fraquezas, visto que se indis­põem a enfrentar qualquer risco pelo culto divino e pela livre confissão da verdade.

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Esta passagem, pois, merece ser bem analisada, visto que o profeta não só exorta que os eruditos e os sábios instruam a ou­tros, mas prescreve um a regra para o leviano e iletrado, insistin­do que se fortaleçam contra todas as tentações quando virem to­das as coisas em confusão e Satanás tramando a com pleta aniqui­lação da piedade. Como esta é a linguagem do anjo, devemos observar diligentemente as circunstâncias dos tempos, pois ele aqui não estava instituindo um a escola pacífica e discursando como fazem os filósofos em sua comodidade acerca da virtude sem qualquer contestação prática; porém reforça o dever de apren­der e de ensinar, ainda quando uma variedade de mortes for posta diante de nossos olhos. Em seguida ele usa, como já afirmei, a linguagem de consolação. Deus mostra como providenciaria au­xílio para seus eleitos, em bora possivelmente não lhes parecesse de nenhuma conseqüência. Pois ele insiste sobre a pequenez da assistência - a qual literalmente se concretizou. Sem dúvida o anjo se referia a M atatias e seus filhos, geralmente chamados os M acabeus [1 Macabeus 2.1]. A restrição imposta a esse auxílio consiste na alusão aos membros daquele pequeno grupo que pro­variam ser hipócritas. Estamos plenamente cientes como a Igreja seria reduzida em sua extensão, pois nem todos provariam ser sadios na fé, senão que a maioria seria desviada por aquelas falá­cias que aqui o anjo denomina de bajulações. Isso constituiu uma provação muito grave para os fiéis, ao perceberem seu número tão exíguo e sua força tão pouca para enfrentar seus inimigos. Além disso, não ousavam confiar naqueles aliados que lhes ti­nham penhorado sua fé e feito maravilhosas promessas, já que muitos foram enganados por suas lisonjas e abandonaram a cau­sa pela falta de sinceridade mental.

Jácham am os a atenção para a inutilidade de tal instrução para nossos dias; pois devemos aplicá-la pessoalmente a nós mesmos, visto que nossas circunstâncias se assemelham às dos antigos. D a grande multidão dos que desejam ser considerados cristãos,

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observamos quão poucos retêm o culto divino em sua pureza e integridade. Os papistas tratam sua própria comunidade, que está maculada com todo gênero de corrupção, como se fosse a única igreja; ali a piedade é totalmente subvertida ou contam inada com incomensurável acúmulo de superstições. E mesmo naquela pe­quena companhia que se tem afastado das idolatrias papais, a maioria está saturada de perfídia e fraude. Pretendem um zelo extremado, porém se você os examinar detidamente, descobrirá que estão cheios de falsidade. Pois se Deus esquadrinhar sua Igreja em seu âmago, como fez alguns anos atrás na Alemanha, e como pode fazer brevemente em nosso próprio caso, em todos esses graves conflitos e em meio a essas perseguições, muitos que se vangloriam da bravura de sua companhia, e todavia seu zelo se evaporará imediatamente. Quando o Senhor, pois, exercitar-nos por meio de métodos semelhantes àqueles por meio dos quais provou a Igreja antiga, essa instrução deve sempre vir a nossa memória, para que nossa mente não se tom e obtusa e lânguida.

Esta passagem pode levar-nos a inquirir se o anjo aprovou todas as lutas dos Macabeus. Podemos responder à pergunta de duas maneiras. Em primeiro lugar, se alguém persistir em argu­mentar com base nas palavras do anjo em prol da aprovação divi­na da própria ação dos Macabeus, tal ponto de vista de forma alguma é correto. Deus poderia usar os Macabeus para socorrer os desditosos israelitas, e contudo não se segue que conduzissem a boa causa com propriedade e licitude. Com m uita freqüência ocorre que os fiéis oferecem seus serviços a Deus sem terem um objetivo definido diante dos olhos, de modo que falham ou por inconsiderado zelo ou por ignorância parcial. Se assumirmos ou não esse ponto de vista, nosso objetivo é às vezes bom quando nosso modo de proceder é passível de objeção. E assim se deu com os Macabeus; Deus, sem dúvida, incitou M atatias a reunir o remanescente disperso do povo para restaurar seu culto e expur­gar seu templo das abominações que Antíoco ali estabelecera.

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Todavia nos tempos turbulentos que transcorriam, seus filhos, sem dúvida, fracassaram em seus deveres em muitos aspectos. A causa que defendiam era justa, enquanto os detalhes de suas ações não podem ser aprovados por nós. Então prossegue:

35 E alguns d os entendidos cairão , para 35 E t ex inteüigentibus cadent ad proban- serem provados e purificados e em bran- dum 1’1 tn ipsis,l!J e t m undandos.1*’ e t de- quecidos, até aquele tem po do fim ; por- a lbandos usque ad tem pus finis, id est, f i ­que será ainda para o tem po determ inado. nitum, quoniam adhuc usque ad prsefixum

tempus.

O anjo persegue a mesma idéia de antes; ele nos mostra como os filhos de Deus, em sua ânsia por defenderem a causa da pieda­de, seriam objetos de muitas e graves perseguições. A lguns dos en tendidos cairão . Significando que a calamidade não sobrevi­rá apenas por um momento; pois os que avidamente desejavam defender o verdadeiro culto de Deus pereceriam pela espada e pelo fogo e por outros métodos de destruição, e seus sucessores também sofreriam as mesmas calamidades. A frase os entendi­dos cairão implica o perecimento da própria flor da Igreja. Have­rá sempre muito refugo entre um povo, e a maior parte dele foge e se revolta quando sua religião requer deles o sacrifício de sua própria vida. Uns poucos ficam, aqui chamados inteligentes, os quais, como declaramos ontem, não são os sábios segundo a car­ne. Fazer provisão para a carne significa cuidar de si mesmo e de seus próprios interesses, não correndo riscos e evitando todo e qualquer problema; enquanto que os assim chamados inteligen­tes, os quais, esquecendo duas próprias vidas, se oferecem em sacrifício a Deus. Estes não hesitam em incorrer no ódio univer­sal e estão preparados para encontrar a morte com coragem. O anjo, pois, prediz o perecimento da flor da Igreja. Pois quem po­deria ter esperado que o nome de Deus continuasse a existir so­

181 Ou. para ser tentado; a palavra significa propriamente derramar. 142 Isto é, purificá-los.

Ou, purificá-los novamente.

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bre a terra quando todos seus sinceros adoradores fossem assim impunemente assassinados? A severidade do despotismo de An- tíoco é notória. Ninguém ousava pronunciar um a palavra. Todos os livros sacros eram queimados, e ele cria que o culto divino tinha sido totalmente abolido. As mulheres com seus filhos eram promiscuamente levados para a fogueira, e os líderes desse tira­no não poupavam nem as mães com seus pequeninos que pendi­am de seus peitos [ 1 M acabeus 1 ]. Durante o progresso de cruel­dade tão atroz, quem não teria imaginado que toda a semente de Deus tinha sido extinta? Mas o anjo aqui mostra que o verdadei­ro resultado seria diferente, isto é, os filhos de Deus seriam pu­rificados e embranquecidos. Sua intenção era dizer que todos os acontecimentos não se provariam destrutivos, mas, antes, pro­moveriam sua salvação. Esta passagem nos revela a natureza da verdadeira prudência aos olhos de Deus; pois devemos estar pre­parados para a morte, em vez de renunciar a espontânea e corajo­sa profissão da doutrina celestial e do verdadeiro culto de Deus. Pois isso necessariamente está imposto aos filhos de Deus - ou caírem pela espada ou pelo fogo, ou sofrerem o espólio de seus bens e serem banidos de seus lares. O anjo realça à luz do resul­tado como as perseguições que parecem resultar na destruição da Igreja na verdade são proveitosas e salutares para os filhos de Deus, sendo este o método usado para que sejam purificados, lavados e embranquecidos. Mas devemos ter sempre em mente como algumas borras viciosas precisam ser extraídas, as quais permanecem nos eleitos; sim, até mesmo entre os santos márti­res. O anjo aqui não trata de hipócritas nem de crentes comuns, mas de tudo quanto é mais conspícuo e mais eminente no seio da Igreja, e não obstante assevera sua necessidade de purificação. Ninguém, pois, conclui ele, possui tal santidade e pureza que o isentem de algum resto de poluição que reclama remoção. Daí tornar-se necessário que passem pela fom alha e sejam purifica­dos à semelhança do ouro e prata. Isso se estende a todos os már­tires de Deus.

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Isso nos lembra a grande estupidez dos papistas que imagi­nam que os méritos dos santos são transferidos em nosso favor, como se nada mais lhes fosse requerido. As indulgências, como as chamam, dependem desse erro, de conformidade com o se­guinte raciocínio: se Pedro tivesse vivido o período ordinário da vida humana, ele teria provado ser fiel até o fim, e então teria merecido a coroa do reino celestial; mas, ao ir além disso, e der­ramado seu sangue em martírio, alguns méritos foram supera­bundantes; esses não podem ser perdidos, e daí o sangue de Pe­dro e de Paulo nos é proveitoso hoje para a remissão dos peca­dos. Essa é a teologia dos papistas, e esses sofistas miseráveis não se envergonham de tão grosseiras blasfêmias, enquanto vo­mitam tão torpe sacrilégio - os próprios mártires são beneficia­dos ao enfrentarem a morte por causa de sua adesão à verdade, porque Deus os purga e lava e os refina e os embranquece. O anjo não teria dito isso se não restasse nos santos alguma mistura de escória que ainda os macula. Mas esta doutrina deve ser mais que suficiente para animar-nos a enfrentar todos os perigos, quan­do nos virmos manchados e contaminados com escória secreta; além disso, devemos certamente determinar que a morte seria proveitosa nesse sentido, como Deus então nos purgará daqueles vícios pelos quais somos tanto infectados quanto manchados. Daí o valor da repetição aqui; o anjo não diz simplesmente que serão purificados, mas acrescenta: lavados e embranquecidos. Seja qual for a santidade que se manifeste no melhor dos homens, todavia muitas manchas e muita poluição permanecem escondidas em seu íntimo; e assim, em conseqüência de suas muitas falhas, a perseguição sempre lhes será proveitosa.

O anjo m itiga tudo quanto possa parecer excessivam ente amargo, dizendo: a té o tem po do fim , significando um tempo fixo e definido. Essas palavras implicam o caráter misericordio­so de Deus, não insistindo que seu povo vá além de sua força, como Paulo também declara sua fidelidade em conceder-lhes um

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resultado feliz de suas provações, e em não pressionar-nos além da medida daquela força e coragem que ele nos tem conferido [IC o 10.13]. O anjo prediz um término desses males, e confirma essa opinião, dizendo: até um tempo determinado. N a últim a sen­tença, ele expressou a natureza temporária das perseguições de que falara; pois não cessariam diretamente, nem ainda por dois ou três anos. Com as palavras: até um tempo determinado, ele insiste com os filhos de Deus que se preparem para novas lutas, visto que ainda não alcançariam o alvo pelo espaço de um ano. Mas se Deus os quisesse humilhar por três ou dez ou cem anos, não dependeriam de apenas esperar pelo tempo divinamente pre­determinado, sem depender de sua própria vontade. Essa é a subs­tância da instrução comunicada. Agora ele prossegue:

36 E o rei fa rá conform e sua vonlade; e 36 E t faciet secundum voiuntatem suam ,se exaltará e se m agnificará acim a de todo vel, libidinem, rex: e t ex to lle t se, e t mag-deus, e falará coisas m aravilhosas contra nificabit se supra om nem D eum , e t con-o D eus dos deuses, e prosperará até se r tra D eum deorum lo q u eiu r m irbilia , e tconsum ada a indignação; porque aquilo prospere aget usque ad consum m ationemque está determ inado se fará. i r a , quoniam decisio facta est, vel decisa

esl, nempe consumptio.

Esta passagem é muito obscura, e conseqüentemente tem sido explicada pelos intérpretes de muitas formas opostas. E tudo quan­to é obscuro é geralmente duvidoso, e haveria pouca utilidade e nenhuma conclusão se eu fosse narrar as opiniões de todos eles. Portanto, seguirei outro método; e, omitindo todo labor supér­fluo, simplesmente buscarei a intenção do anjo. Entretanto, devo referir-me sucintamente às opiniões aceitas pelo consenso da maioria, porque elas ocupam as mentes de muitos, e assim fecha­rei aporta em prol da interpretação correta. Os judeus, por exem ­plo, não concordam entre si, e sua diferença de opinião só serve para produzir e perpetrar as trevas, em vez de difundir a clara luz. Há quem o aplique a Antíoco, e outros aos romanos, mas de uma maneira diferente daquela que eu apresentarei depois. Os exposi­tores cristãos apresentam grande variedade, mas a maioria se incli­

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na para o Anticristo como cumprimento da profecia. Outros, ain­da, usam mais moderação, supondo ser Antíoco um tipo e im a­gem do Anticristo. Esta última opinião tem grande probabilida­de, porém eu não a aprovo, e posso refutá-la com facilidade. Antíoco não sobreviveu muito à profanação do templo, e então os acontecimentos que seguiram de modo algum se adequam às ocorrências de seu tempo. Tampouco seus filhos podem honesta­mente ocupar seu lugar, e daí devemos buscar algum outro rei, distinto de Antíoco e seus herdeiros. Como já afirmei, alguns dos rabinos aplicam isso aos romanos, mas sem razão, porque pri­meiramente aplicam a passagem a Vespasiano e a Tito, seu filho, e então a estendem aos tempos atuais, o que é totalmente sem razão, quando tagarelam tolamente, segundo seu habitual costu­me. Os que a aplicam ao Anticristo têm algum laivo de razão em prol de seu ponto de vista, porém não há solidez em sua conclu­são, e perceberemos isso melhor no progresso de nossa exposi­ção. Devemos agora descobrir que rei o anjo aqui designa. Em primeiro lugar, a aplico inteiramente ao império romano, porém não o considero como iniciando-se com o reinado dos Césares, pois isso seria inadequado e fora de data, como veremos. Pela palavra ‘rei’ não creio estar indicada uma só pessoa, mas um império, tudo o que envolve seu governo, seja através do senado ou dos cônsules ou dos procônsules. Isso não precisa parecer abrupto ou absurdo, quando o profeta esteve previamente discu­tindo as quatro monarquias, e quando ao tratar dos romanos ele denomina seu poder de reino, como se tivessem sobre si apenas um único governante. E quando falou da monarquia persa, ele não se referiu a um único governante, mas incluiu todos eles, desde Ciro até o último, Dario, que foi vencido por Alexandre. Esse método de linguagem já nos é bastante familiar, quando a palavra ‘rei’ às vezes significa ‘reino’. O anjo, pois, ao dizer um rei fa rá tudo, a alusão não é a Antíoco, pois toda a história refuta tal idéia. Além disso, ele não tem em mente um único indivíduo, pois onde acharemos um que se exaltasse acima de todos os deu-

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ses? Quem oprimiu a Igreja de Deus e fixou seu palácio entre dois mares e se assenhoreou de todo o Oriente? Tão-somente os romanos fizeram isso. Pretendo mostrar mais claramente ama­nhã quão bela e pertinentemente tudo o que o anjo relatou se aplica ao império romano; e se tudo parecer ou obscuro ou duvi­doso, uma interpretação contínua o trará à luz e o confirmará.

Estabeleçamos isso um a vez por todas; a profecia do anjo não aponta para Antíoco. nem para um único monarca, mas para um novo império, ou, seja, o romano. Temos em mãos a razão por que o anjo passa diretamente de Antíoco para os romanos. Deus queria dar suporte aos espíritos dos santos, para que não se sen­tissem esmagados pelo número e peso dos massacres que eles e toda a Igreja aguardavam ainda no advento de Cristo. Não era suficiente predizer as ocorrências sob a tirania de Antíoco; por­que depois desse tempo a religião judaica foi mais e mais injuri­ada, não só por inimigos estrangeiros, mas por seu próprio sacer­dócio. Nada ficou sem ser profanado, um a vez que sua avareza e ambição chegaram a tal ponto que pisaram sob seus pés toda a glória de Deus e a própria lei. Demandou-se dos fiéis que se for­talecessem contra tão numerosas tentações, até que Cristo viesse e então Deus renovasse a condição de sua Igreja. O tempo, pois, intercalado entre os Macabeus e a manifestação de Cristo não deve ser omitido. A razão é agora bastante clara por que o anjo passa imediatamente de Antíoco para os romanos.

Em seguida devemos averiguar como os romanos se conecta­ram com o povo eleito de Deus. Seu domínio se limitava apenas à Europa, e a alusão a eles teria sido inútil e fora de lugar. Mas desde o período em que os reis da Síria se viram oprimidos por muitas e constantes devastações oriundas da guerra, tanto inter­nas quanto externas, se viram incapacitados para prejudicar os judeus como havia feito anteriormente. Então novos problemas provinham dos romanos. Sabemos, aliás, quando muitos dos reis da Síria se deixaram dominar pela arrogância, os romanos impu-

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seram sua autoridade e isso também com má fé, com o propósito de sujeitar a si o oriente. E quando Átalo fez o povo romano seu herdeiro, toda a Á sia M enor veio a ser absorvida por eles. Con- verteram-se em senhores da Síria pela vontade desse rei insano, o qual defraudou seus herdeiros legais, pensando que com essa conduta adquiriria algum respeito a sua memória depois de sua morte. Desde aquele período em que os romanos primeiro adqui­riram uma prova da riqueza dessas regiões, nunca mais deixaram de achar alguma causa para guerra. Por fim Pompeu subjugou a Síria, e Luculo. que anteriormente declarou guerra contra Mitri- dates, restaurou o reino para Tigranes. Pompeu, como já obser­vei, subjugou a Síria aos romanos. N a verdade ele deixou o tem­plo intocado, mas podemos conjeturar a crueldade que ele teria exercido sobre os judeus em virtude da prática usual desse povo. A clemência dos romanos para com as nações que subjugavam é bastante notória. Depois que Crasso, o mais rapace de todos os homens, ouviu falar da riqueza dos judeus, ele desejou aquela província para si. Sabemos também como Pompeu e César, en­quanto eram amigos, partilharam o mundo inteiro entre si. A Gália e a Itália foram designadas inteiramente a César; Pompeu obteve a Espanha e parte da África e Sicília; enquanto Crasso obteve a Síria e as regiões orientais, onde miseravelmente pereceu, e sua cabeça, coberta de ouro, foi carregada com motejo de um lugar a outro. Uma segunda calamidade ocorreu durante aquela incursão de Crasso, e desde esse tempo os judeus foram acossados por muitas e contínuas guerras. Antes desse período, tinham entrado em aliança com os romanos, como somos informados pelos li­vros dos Macabeus, bem como por escritores profanos. Portanto, quando concederam liberdade aos judeus [1 Macabeus 8 e 14], difundiu-se184 que eram generosos à expensa de outros. Era sua prática ordinária e usual; a princípio recebiam com amizade a

1810 latim é “ille d ic e b a to francês tem “un quidam sidoiC - uma curiosa m istura queimplica incerteza. Seria Crasso?

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quantos buscassem sua aliança por meio de tratado, e então os tratavam com extrema crueldade. Os desditosos judeus foram tra­tados dessa forma. O anjo, pois, os menciona primeiro, e depois fala de Antíoco. Todos esses pontos, assim brevemente mencio­nados, devem ser mantidos na mente, para capacitar-nos a enten­der o contexto e mostrar a impossibilidade de interpretar a profe­cia de outra forma que exclua os romanos.

E agora tomo as palavras: O rei fa rá segundo sua vontade. Já declarei que não precisamos restringir esta expressão a uma única pessoa, visto que o anjo profetiza sobre o curso contínuo da monarquia romana. E le se ex a lta rá e se m agnificará , diz ele, acim a de todo deus. Isso será explicado passo a passo, onde lemos que o rei desprezava todas as divindades. Mas, com refe­rência à presente passagem, em bora a impiedade e o menosprezo por Deus se difundissem por toda parte do mundo, sabemos como peculiarmente isso se pode dizer dos romanos, porque sua sober­ba os levou a em itir a opinião sobre o direito de cada divindade de ser adorada. E, portanto, o anjo usará um epíteto para Deus, significando força moral e provisões, □'tUD, megnezim, como no versículo 38. Essa mensagem, mostrarei amanhã, tem sido muito mal explicada; pois os intérpretes, como descobriremos, estão totalmente “à deriva” quanto a seu sentido. M as aqui o anjo, ao atribuir aos romanos desprezo por Deus e por todas as divin­dades, subentende seu intenso orgulho e arrogância, no quê su­plantaram a todas as nações profanas. E na verdade não preserva­ram nem mesmo um temor supersticioso por Deus; e enquanto jactanciosamente ostentavam a piedade superior de seus ances­trais e de si próprios, todavia uma acurada leitura de seus escritos revelará o que realmente pensavam. Faziam de todas as divinda­des alvo de zombaria e ridicularizavam a própria palavra e a apa­rência de piedade, e só a usavam com o propósito de m anter seus súditos em obediência.

O anjo então fala desse império em termos mais reais: se

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m agnificará co n tra todas as divindades; e fa la rá coisas m a­rav ilhosas co n tra o Deus dos deuses, pelo quê subentende a religião judaica. Pois antes de haver passado para a Ásia M enor e penetrado além do Tauro, eles eram ignorantes quanto à lei de Deus e jam ais ouviram falar do nome de Moisés. Então começa­ram a ter notícias do culto a algum deus peculiar daquela nação e da forma de sua piedade como distinta daquela de todos os de­mais povos. A partir do período em que o conhecimento das pe­culiaridades da religião judaica passou a difundir-se entre os ro­manos, começaram a vomitar suas blasfêmias contra o D eus dos deuses. Não precisamos reunir provas deste fato de suas históri­as; porém Cícero, em sua oração a Flacus [sec. 28], rasga desde­nhosamente em mil pedaços o nome do verdadeiro Deus; e esse imundo blasfemo - porquanto ele merece tal título - assim vomi­ta suas calúnias, como se o Deus que se revelou a seu povo eleito por meio de sua lei fosse indigno de ser posto lado a lado com Venus ou Baco, ou seus demais ídolos. Finalmente, ele trata os numerosos massacres aos quais os judeus foram expostos como um a prova de que sua religião era odiada por todas as divinda­des; e ele crê que isso era um sinal suficiente do caráter detestá­vel de sua religião. O anjo, pois, tem muita razão em declarar que os romanos se entumeciam de soberba e arrogância como se não hesitassem em tratar o nome do verdadeiro Deus com tão m ar­cante desprezo.

D iz ele: Ele p ro n u n c ia rá coisas ex trao rd in á ria s co n tra o Deus dos deuses. O anjo parece indicar um único indivíduo, mas já declaramos que sua referência é a esse império. Ele então acres­centa: E p ro sp e ra rá a té a consum ação ou conclusão ou térm i­no d a indignação, já que a determ inação já estava decre tada. Aqui o anjo também trata de uma longa sucessão e série de vitó­rias, as quais impedem a aplicação da passagem a Antíoco. Pois ele morreu imediatamente depois de haver saqueado o templo; toda sua prole pereceu uns nas mãos dos outros; e os romanos,

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para sua grande desgraça, adquiriram a posse da Síria e aquela porção do Oriente. Temos de necessariamente explicar isso como aplicando-se aos romanos, como notoriamente prosperaram em suas guerras, especialmente no continente asiático. E se às vezes se viram em dificuldades, como veremos am anhã ao tratarmos das palavras que o anjo então usará, logo recuperavam seu habi­tual sucesso. O anjo aqui diz: Este re i p ro sp e ra rá a té o fim da indignação; significando que, até Deus haver castigado os hipó­critas e assim humilhado sua Igreja. Atribuo isso a Deus, como explicarei com mais detalhes amanhã.

ORAÇÃODeus Todo-Poderoso, visto que nestes dias as atividades do mundo se encontram em estado de conturbação e para onde volvamos nos­sos olhos nada mais vemos senão horrível confusão, rogo-te que nos concedas a bênção de podermos atentar bem para teu ensino. Que jam ais divaguemos seguindo nossas próprias imaginações, jamais nos desviando pela vereda das preocupações, perdendo os rumos de nosso curso predeterminado por ti. Que perseveremos firm es em tua palavra, te buscando sempre e sempre confiando em tua providên­cia. Que jam ais nos hesitemos no que diz respeito a nossa seguran­ça, já que te dispuseste a ser o guardião de nossa salvação; que te invoquemos sempre no sacrossanto nome de teu Filho unigénito. Amém.

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63a♦

/ \ j jntem começamos uma exposição da profecia, na qual o anjo \ __' começa tratando do império romano. Mostrei então a im­possibilidade de aplicar qualquer outra exposição à passagem, quando teria sido absurdo fugir do ponto mais necessário a ser conhecido. Bem no início declaramos que Deus não informou a Daniel outras ocorrências com propósito de despertar a tola e vã curiosidade de muitos, mas de fortificar seus servos e evitar que apostatassem no meio das mais graves lutas. Depois da morte de Antíoco, porém, sabemos por que várias e terríveis maquinações Satanás empreendeu subverter a fé de todos os santos. Por essa razão sua coragem demandava apoio. Se todo esse período tives­se passado em silêncio, pareceria que Deus houvera negligencia­do seus servos. Portanto, ou nosso tema iniciado ontem teria sido inútil, ou esta sentença deve ser acrescida, para que a profecia não parecesse nem defectiva nem mutilada. E observamos previ­am ente que, enquanto o anjo estava predizendo mudanças futu­ras, não houve nenhuma omissão do império romano que seja novamente introduzida aqui. Lembremo-nos, pois, que o anjo não está agora falando de Antíoco, nem está fazendo um salto para o tempo do Anticristo, como pensam alguns, mas ele tem em m en­te um a série perpétua. E assim os fiéis seriam preparados para todos os assaltos que porventura fossem feitos a sua fé, se essa tirania não tivesse sido interposta. Cabe agora explicar o restante do versículo: A té o fim d a ira , po rque a decisão se cum priu . O anjo havia narrado a perversidade desse rei, não poupando nem

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mesmo o Deus vivo, dardejando suas calúnias contra ele. E então ele acrescenta: Ele p ro sp e ra rá até o fim d a ira . Sem dúvida, o anjo aqui responde àquela provação que poderia esmagar com ­pletamente os fiéis, a menos que esperassem que a m esm a che­gasse a um final. Por ira ele não quer dizer a fúria daqueles que foram enviados como procônsules à Ásia e ao Oriente, nem ain­da à amargura e rigor do povo romano e do senado, senão que a palavra se refere a Deus. Devemos lembrar, pois, o que expressei previamente, isto é, os filhos de Deus são convocados a exam i­nar suas faltas, a humilhar-se diante de Deus, sem qualquer mur­muração ou queixa quando castigado por suas varas. Sabemos quão impaciente é a natureza humana ao deparar-se com adversi- dades, e quão de m á vontade os homens se submetem à cruz, não só obstinadamente recusando-a, mas francamente se rebelando contra Deus. Daí os que são oprimidos por sua mão são sempre insultuosos, a menos que ele se manifeste como Juiz. O anjo, pois, aqui nos apresenta a razão por que Deus ousadamente não expôs sua Igreja à sanha dos ímpios; ele apenas desejava aplicar o castigo devido a seus pecados; e o ju ízo terá sempre que com e­çar pela casa de Deus, segundo aprendemos de outro profeta [Is 10.12; Jr 25.29; IPe 4.17].

Em conclusão, pois, o anjo, em primeiro lugar, exorta os san­tos ao arrependimento, e lhes mostra quão merecidamente Deus estendeu sua mão sobre eles, porque isso era absolutamente ne­cessário. Ele, pois, mitiga o que de outra form a teria sido por demais severo, acrescentando: a té o fim , ou consumação. A pa­lavra significa extinção e fim, mas aqui significa fim ou consu­mação. A explicação vem a seguir: j á que a determ inação , ou decisão, foi feita, diz ele. Significa que Deus não conduzirá seus filhos a extremos sem aplicar a moderação, mas levará seu casti­go a um fim depois de se humilharem. Como lemos no capítulo 40 de Isaías, o tempo de seus conflitos estava completado, quan­do Deus se apiedou de sua Igreja e a livrou da tirania de seus

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inimigos [v. 2]. Isaías ali fala na pessoa de Deus; a Igreja recebe­ra duplo castigo, significando que lhe fora aplicado um castigo suficiente. Significa que ele quase se desgostou consigo mesmo por haver sido tão severo contra sua Igreja, quando estamos fa­miliarizados com a indulgência com que ele geralmente trata seus filhos. Portanto, ele diz nesta passagem: A té o fim da ira\ signifi­cando que o castigo seria apenas temporário, visto que Deus pres­crevera um certo término que poria fim a todos seus problemas e ansiedades. E prossegue:

37 E não terá respeito pelo D eus de seus 37 E t ad deos patrum suorum non atten-pais, nem pelo desejo das m ulheres, nem det, e t ad desiderium , vel, amorem , m uli-terá respeito p o r deus algum ; po is ele se e ru m .e tad u llu m D eu m non attendet, quiam agnificará acim a de tudo. super om ne, super omnia, sese m agnifi-

cabit.

Não me admira ver que alguns apliquem esta profecia a Antí- oco, experimentando alguma dificuldade com essas palavras; pois não podem satisfazer-se, uma vez que esta predição do anjo nun­ca se concretizou em Antíoco, que não negligenciou todas as di­vindades, nem o deus de seus pais. Então, com respeito ao amor das mulheres, isso não se adequa a tal pessoa. É fácil, porém, provar, por outras razões já mencionadas, a ausência aqui de toda alusão a Antíoco. Alguns aplicam esta profecia ao papa e a Mao- mé, e a frase, o amor das mulheres, parece conferir probabilidade a este ponto de vista. Pois Maomé permitiu aos homens a brutal liberdade de castigar suas esposas, e assim ele corrompeu aquele amor e fidelidade conjugais que unem o esposo a sua esposa. A menos que o próprio homem esteja satisfeito com um a única es­posa, não pode haver amor, porque não pode haver felicidade conjugal onde quer que exista rivalidade entre as esposas inferi­ores. Como, pois, Maomé permitiu plena expansão a várias luxu­rias, permitindo a um homem ter muitas esposas, isso parece ser uma explicação plausível de seu descaso pelo amor das mulhe­res. Os que pensam estar aqui em pauta a pessoa do papa, nos lembrando que ele impôs o celibato obrigatório, por meio do qual

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a honra matrimonial é tripudiada. Sabemos com que vileza os pontífices romanos vociferam quando o matrimônio lhes é insi­nuado, como podemos ver nos decretos do Papa Sirício, no séti­mo capítulo do primeiro volume dos Concílios.185 Citam a passa­gem: Aqueles que estão na carne não podem agradar a Deus; e assim comparam o matrimônio com a fornicação, e com isso des­ditosa e humilhantemente lançam escárnio sobre um a ordenança sancionada por Deus. Observamos, pois, alguma leve correspon­dência, porém os pontos restantes não se adequarão a esta idéia. Alguns asseveram que, como M aomé inventou um a nova forma de religião, assim também procedeu o papa; é verdade, mas ne­nhum deles está em pauta aqui, e a razão é porque Deus desejava sustentar o espírito de seu povo até a vinda de Cristo. Daí ele predizer, por meio de seu anjo, os sofrimentos que sua Igreja ti­nha de suportar até que Cristo se manifestasse na carne. Deve­mos agora volver-nos para os romanos, acerca dos quais com e­çamos a explicar a passagem.

Diz o anjo: O rei não te rá nenhum respeito pelos deuses de seus pais. A aplicação desta sentença é à prim eira vista obscura; mas se refletirmos sobre o ultrajante orgulho e barbarismo dos romanos, não mais nutriremos dúvida quanto ao significado das palavras do profeta. O anjo declara duas circunstâncias; esse rei seria alguém que desprezava todas as divindades, e todavia cul­tuaria um deus, enquanto a pompa singular e magnificente exibi­da excederia a todas as práticas comuns. Estes dois pontos, tão evidentemente opostos, se acharam unidos nos romanos. Nossa explicação aparecerá mais clara pelo acréscimo dos versículos seguintes:

38 M as em seu lugar ele honrará o deus 38 E t Deum fortitudinum , vel, munilio- das forças; e um deus a quem seus pais num, in loco suo honorabit: e t Deum quem não conheceram ele honrará com ouro e non cognoverunt patres e jus honorabit

185 A edição francesa omite totalmente esta referência à Concilia.

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prata e com pedras preciosas e coisas agra- cum auro, e t argento, e t lapide pretioso,dáveis- et desiderabilibus,18'1 hoc est, rebusomni-

bus pretiosis.39 E assim e le fará com o auxílio de um 39 E t faciet adversus m uniiiones fortitu-deus estranho, a quem ele reconhecerá e dtm im cum D eo alieno, quem agnoverit,cobrirá com glória; e os fará re inar sobre m ultiplicabit gloriam , e t dom inari facietm uitos, e div id irá a terra p o r preço. eos in m ultis. e t terram d iv idet pretio.

Como já sugeri, à primeira vista essas afirmações parecem opostas uma à outra; o rei de quem ora estamos tratando despre­zará todas as divindades, e no entanto adorará um certo deus de um a form a ordinária. Isso concorda muito bem com os romanos, se estudarmos suas disposições e costumes. Como tratavam o culto de suas divindades simplesmente como um a matéria de negócio, evidentemente foram destituídos de qualquer percep­ção da divindade e não passavam de pretensos religiosos. Em bo­ra outras nações profanas em seu cam inho tateassem no escuro, contudo ofereciam um culto supersticioso a algumas divindades. Os romanos, contudo, não se sujeitavam nem ao erro nem à igno­rância, mas manifestavam um grosseiro desdém por Deus, en­quanto mantinham a aparência de piedade. Deduzimos esta opi­nião da visão de toda sua conduta. Pois embora trouxessem mui­tas divindades de todos os quadrantes do mundo, e cultuassem em com um com outras nações a M inerva, Apoio, M ercúrio e outros, todavia observamos como tratavam todos os demais ritos como sendo de nenhum préstimo. Consideravam Júpiter como sendo a divindade suprema. Mas o que para eles Júpiter repre­sentava em seu próprio país? O que tinha mais valor, um a moeda ou a divindade do Olímpio? N a verdade execravam tanto seus adoradores quanto a ela própria. Qual, então, era realmente seu deus supremo? Por que a glória do Capitólio? Sem um título adi­cional de Senhor do Capitólio, ele não valia absolutamente nada. Esse título o distinguia como especialmente limitado a eles pró­prios. Por essa razão o profeta cham a esse Júpiter romano um

111-38, 39] DANIEL

’ Isto é, com iodas as coisas preciosas.

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deus das fortalezas ou de poderes. Os romanos jam ais puderam persuadir-se de que algum outro Júpiter ou Juno fosse digno de culto; confiavam em sua própria força inerente; consideravam-se de mais importância do que os deuses, e consideravam Júpiter como seu deus único. U m a vez que sua sede estava em sua capi­tal, ele lhes era mais que cem reis celestiais, pois sua soberba se centrava totalmente no poder da divindade sediada em sua pró­pria capital. Pensavam em si mesmos como estando além do al­cance de toda e qualquer mudança da fortuna, e tal era sua audá­cia que cada um cunhava novas divindades a seu bel-prazer. Ha­via um templo dedicado à fortuna no dorso dos cavalos, pois isso satisfazia a vaidade do general que fizesse bom uso de sua cava­laria e granjeava vitória por esse meio; e ao construir um templo à fortuna eqüestre, ele desejava, como divindade, granjear uma multidão de estima. Então Júpiter Estator era um deus, e por quê? Porque isso agradava a todo mundo; e assim Rom a ficou repleta de templos. Um erigia um a imagem da fortuna; outro, da virtude; um terceiro, da prudência; e um quarto, de alguma outra divinda­de, e cada um ousava estabelecer seus próprios ídolos segundo sua própria fantasia, até que Roma veio a ficar completamente abarrotada deles. Dessa forma Rômulo foi deificado; e que rei­vindicação tinha ele em sua honra? Se alguém fizer aqui alguma objeção - outras faziam o mesmo - , o admitimos, mas também sabemos em que estado de estultícia, brutalidade e barbarismo continuaram na antigüidade. Os romanos, porém, como já suge­ri, não foram instigados a essa manufatura de ídolos por erro ou superstição, mas por um a arrogante vaidade que os elevava à pri­meira categoria no seio da humanidade e reivindicavam superio­ridade para todas suas divindades. Por exemplo, permitiam que um templo fosse erigido e sacrifícios oferecidos a elas, na Ásia, bem como o nome da divindade ser-lhes aplicado. Quanta sober­ba temos aqui! Seria esta um a prova da crença na existência de outro deus e de muitos? Rom a é seguramente a única divindade - e ela deve ser reverentemente adorada antes que todas as demais!

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Observamos, pois, como a expressão deste versículo é bem aplicável aos romanos; adoravam o deus das fortalezas, ou, seja, reivindicavam um poder divino que se aplicava a si próprios, e só admitiam a seus deuses o que criam ser útil a seus próprios pro­pósitos. Com vistas a reivindicar certas virtudes como inerente­mente suas, inventaram todo gênero de divindades segundo seus gostos. Omito o testemunho de Plutarco como não bem aplicável ao presente tema. Ele diz em seus problemas que era ilícito pro­nunciar o nome de qualquer divindade sob cuja proteção e pater­nidade o estado romano constasse. Ele nos diz como Valério So- rano foi executado por estultamente pronunciar o nome da divin­dade, masculina ou feminina. Essas são suas próprias palavras. E acrescenta como razão sua prática de usar encantamentos mági­cos na adoração de sua divindade desconhecida. Além disso, sa­bemos quão honrosamente estimavam “a boa deusa”. O sexo masculino era inteiramente ignorante quanto a sua natureza e nin­guém senão as mulheres entravam na casa do sumo sacerdote e ali celebravam suas orgias. E com que propósito? O que era essa “boa deusa”? Seguramente sempre existiu ali esse deus das fo r ­talezas, já que os romanos não reconheciam qualquer divindade senão as suas próprias. Erigiam altares para si e sacrificavam todo gênero de vítimas a seu próprio sucesso e boa fortuna; e dessa form a reduziam todas as divindades dentro de seu próprio domí­nio, enquanto lhes ofereciam somente suas pinturas ilusórias e falazes alvos de sua reverência. Não há nada forçado na expres­são do anjo: ele não dará nenhuma atenção aos deuses de seus pais; ou, seja, ele não seguirá o costume habitual de todas as nações em reter as cerimônias supersticiosas com base no erro e ignorância. Pois embora os gregos fossem muito críticos, todavia não ousaram fazer qualquer movimento, nem propuseram qual­quer discussão sobre questões religiosas. Uma coisa sabemos ter- se fixado entre eles: cultuar os deuses que tinham sido estabeleci­dos por seus pais. Os romanos, porém, ousaram insultar todas as

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religiões com liberdade e petulância, e ousaram promover o ateís­mo o quanto puderam. Portanto, o anjo diz: ele não deu atenção ao deus de seus pais. E por quê? Não lhes terão respeito e nem reco­nhecerão qualquer divindade exceto sua própria confiança em sua fortaleza peculiar. Interpreto a frase, o desejo das mulheres, no sen­tido daquela figura de linguagem que põe a parte pelo todo, ou, seja: a barbaridade de seus métodos. O amor das mulheres é uma frase bíblica para a afeição muito peculiar; e Deus instilou essa afeição mútua nos sexos com o fim de mantê-los unidos enquanto retiverem um a fagulha de humanidade. E assim Davi declarou ter amado Jônatas de forma mais extremada que o amor das mulheres [2Sm 1.26]. Não existe falha alguma em tal correspondência, do contrário o amor de Davi para com Jônatas seria estigmatizado como uma desgraça. Sabemos quão sacros eram seus sentimentos para com ele, porém “o amor das mulheres” é aqui usado par exce- llertce, implicitando a excessiva força dessa afeição. Como, pois. Deus designou esse mesmo laço rigoroso de afeição entre os se­xos, como sendo um vínculo natural de união em toda a raça hu­mana, não surpreende se todos os deveres de humanidade estejam compreendidos sob essa palavra por meio de uma figura de lingua­gem. É justamente como se o anjo dissesse: esse rei de quem pro­fetizo será ímpio e sacrílego, ousando assim a desprezar todas as divindades; e então ele será tão mau, ao ponto de despir-se total­mente de todo sentimento de caridade. Observamos, pois, como os romanos eram completamente destituídos de afeição natural, não amando nem a suas esposas e nem o sexo feminino. Não preciso referir-me sequer a uns poucos exemplos por meio dos quais esta afirmação seja provada. Mas essa extrema barbaridade existiu em todas as nações, o que realmente nos enche de horror. Ninguém pode chegar a um a idéia adequada disso se não for bem versado em suas histórias; mas quem quer que estude suas proezas, verá como num espelho o que o anjo queria dizer. Esse rei, pois, não cultivaria nem a piedade e nem o espírito de humanidade.

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E ele não d a rá a tenção a ou tro s deuses, p o rque se m agn i­fica rá co n tra todos eles. A causa é aqui assinada por que esse rei seria um grosseiro menosprezador de todas as divindades e seria feroz e bárbaro contra todos os mortais, porque se magnifi­cará acima de todos eles. Tal soberba cegou os romanos de tal form a que os levou a ignorar a piedade e o espírito de humanida­de; e assim essa sua intolerável autoconfiança era a razão por que não prestaram nenhuma honra a qualquer divindade, e pisaram todos os mortais sob a planta de seus pés. A humildade é certa­mente o princípio de toda a verdadeira piedade; e essa semente da religião é implantada no coração do homem, levando-o, vo­luntariamente ou não, a reconhecer alguma divindade. Os roma­nos, porém, eram tão entumecidos pela visão de sua própria im ­portância, que chegaram a exaltar-se acima de todo e qualquer objeto de culto, e a tratar todas as religiões com desdenhoso es­cárnio; e ao desprezarem assim todos os seres celestiais, neces­sariamente olhavam com desdém para toda a humanidade, o que veio a ser notoriamente um fato inegável. Ora, a segunda senten­ça é oposta a esta: Ele adorará ou honrará o deus das fortalezas. Previamente ele usara esta expressão em referência ao templo, aqui, porém, tal aplicação não parece adequada, porque o anjo expressara antes a unidade de Deus, enquanto agora ele cataloga muitos deuses. O anjo, porém, usa a palavra ‘fortalezas’ ou ma­terial bélico em referência àquela perversa confiança com a qual os romanos se entumeciam e foram induzidos a tratar a Deus e aos homens como se nada fossem em com paração a eles pró­prios. Como, pois, esses dois pontos concordam - o menosprezo por todas as divindades entre os romanos, e não obstante a exis­tência de algum culto? Primeiro, desprezavam toda tradição rela­tiva aos deuses, mas depois se ergueram acima de todo objeto celestial, e vindo a sentir-se envergonhados de sua bárbara im ­piedade, pretenderam honrar suas divindades. Onde, porém, bus­cariam eles tais divindades, como Júpiter, por exemplo, às quais

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toda a multidão deles estava sujeita? E por que em seu próprio capitólio? Suas divindades eram o produto de suas próprias ima­ginações, e nada era estimado divino senão o que lhes agradasse. D aí dizer-se: Ele o honrará em seu próprio lugar. Aqui o anjo remove toda dúvida, mencionando o lugar em que esse deus das fortalezas seria honrado. Os romanos veneravam outras divinda­des sempre que lhes fosse conveniente, mas isso era m era preten­são externa. Sem dúvida limitavam Júpiter a seu próprio capitó­lio e cidade; e o que quer que confessassem respeitar como ou­tras divindades, não havia verdadeira religião neles, porque as adoravam em preferência a esses seres fictícios. D aí ele adoraráo deus das tiranias em seu lugar, e honrará um deus estrangeiro a quem seus pais não conheceram ,187

Além disso, ele o h o n ra rá com ou ro e p ra ta e p ed ras p reci­osas e todas as coisas desejáveis; ou, seja, ele adorará sua pró­pria divindade de form a magnificente e com pom pa extraordiná­ria. E sabemos como as riquezas do mundo inteiro eram amonto­adas com o fim de ornamentar seus templos. Pois tão logo al­guém se propunha erigir algum templo, e se via compelido a apo­derar-se de todas as coisas, vindas de todas as direções, e em seguida a espoliar todas as províncias a fim de enriquecer seus próprios templos. Roma também não originou esse esplendor em virtude da superstição, mas tão-somente para exaltar-se e susci­tar a admiração de todas as nações; e assim observamos quão bem é esta profecia expl icada pelo curso dos acontecimentos sub­seqüentes. É verdade que algumas nações eram supersticiosas no culto de seus ídolos, mas os romanos eram superiores a todas elas. Quando a princípio se tornaram senhores da Sicília, sabe­mos que enorme quantidade de riqueza tomaram de um a única cidade. Pois se alguns templos foram adornados com grande e copioso esplendor e muitas riquezas, seguramente confessariam

,n A palavra ‘Mahuzzim" tem ocasionado uma grande variedade de traduções. Veja Winüe in loco.

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a extrem a excelência daquelas da Sicília. Marcelo, porém, des­piu quase todos os templos para enriquecer Roma e ornamentar os santuários de suas falsas divindades. E por que fizeram isso? Era porque Júpiter, Juno, Apoio e M ercúrio eram melhores em Roma do que em outro lugar? Claro que não; mas porque ele desejava enriquecer a cidade e transformar toda sorte de divinda­des em alvo de zombaria e levá-las em triunfo para mostrar que não havia outra divindade ou excelência exceto em Roma, a se­nhora do mundo.

Depois ele acrescenta: E le realizará . Aqui uma vez mais o anjo parece falar de prosperidade. Sem dúvida ele aqui injeta coragem nos santos, que de outra forma vacilariam e viriam a apostatar quando observassem um sucesso tão contínuo e incrí­vel , numa nação tão impiedosa e sacrílega, e notável por cruelda­de tão bárbara. D aí ele declarar como os romanos obteriam seus Fins em tudo quanto empreendessem, como sua força prevalece­ria, como se ela fosse sua divindade. Embora desprezassem to­das as divindades, e fabricassem somente um deus para si através de um espírito de ambição, não obstante até isso lhes faria bem sucedido. Esta é agora cham ada div indade es tranha . A Escritu­ra usa esta expressão para distinguir entre ídolos fictícios e o Deus verdadeiro. O anjo parece nada dizer que se aplique especial­mente aos romanos. Pois os atenienses e espartanos, os persas e os asiáticos, bem como outras nações, adoravam deuses estra­nhos. Qual, pois, é o significado do título? Pois evidentemente o anjo não falava segundo a maneira ordinária. Ele o denom ina de estranho , visto que o mesmo não procedia de um outro; pois en­quanto se vangloriavam futilmente em sua veneração dos ídolos recebidos de seus ancestrais, juntam ente com todas suas institui­ções sacras e seus ritos invioláveis, contudo intimamente os ridi­cularizavam e não os estimavam com mais valor do que a palha, mas simplesmente desejavam reter alguma forma falaz de reli­gião pelo senso de pudor. Lembramo-nos do dito de Cato con-

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cem ente aos áugures: “Pergunto-me se quando um encontra o outro é possível que consigam refrear uma gargalhada!” Demons­trando assim como ele os ridicularizava. Se alguém perguntasse a Cato, no senado ou privativamente: O que você pensa dos áu­gures e de toda a nossa religião? Ele responderia: “Ah, que todo o mundo pereça diante dos áugures; pois eles constituem a pró­pria segurança do povo e de toda a república; nós os recebemos de nossos ancestrais; portanto, conservemo-los para sempre!” Des­sa form a teria falado aquele astuto homem, e assim também to­dos os demais. Mas enquanto eles assim tagarelavam uns com os outros, não se envergonhavam de negar a existência de um a D ei­dade, e então ridicularizavam a tudo quanto fora alvo da crença comum desde o princípio, com o intuito de reduzir inteiramente a nada as tradições recebidas de seus pais. Não nos surpreende encontrar o anjo falando de um deus estranho, o qual era adorado em Roma; como eu já disse, não através de superstição ou equí­voco, mas tão-somente para evitar que sua barbaridade viesse a tornar-se abominável em todo o mundo. Lemos que ele reconhe­ceu esse deus. Esta palavra recebe grande peso. O que o anjo tem em mente é que toda divindade repousava na opinião e vontade do povo soberano, porque isso concordava com sua inclinação e promovia seus interesses particulares. Como o plano de cultuar quaisquer deuses seria aprovado, e se vangloriavam em seu pró­prio deleite, também se vangloriavam com grande confiança de que não poderia existir qualquer piedade senão em Roma. Mas, por quê? Porque reconhecem deuses estranhos e determinam e decretam a forma do culto que devia ser preservado. O anjo as­sim põe toda a religião de Roma no desejo, e m ostra que eles seriam os imundos desprezadores de Deus.

Em seguida ele afirma: E le m u ltip licará a glória. Possivel­mente isso se refere a Deus, eu, porém, prefiro aprovar um a in­terpretação diferente. Os romanos adquiririam para si grande ri­queza e aumentariam prodigiosamente sua opulência, na mag-

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nitude de seu império e em todas as demais fontes de energia. Portanto, multiplicarão a glória, ou, seja, adquirirão novos terri­tórios e aumentarão seu poder e acumularão um grande volume de tesouros. Esta explicação se adequa muito bem com o final do versículo, onde ele acrescenta: ele os fa rá reis p o r to d a parte . Essa é um a porção daquela glória que esse rei am ontoará sobre si, pois ele será superior aos reis sobre muitas ilhas e distribuirá o despojo que tiver adquirido, e isso também a certo preço. Por­tanto, ele diz que os fará reis sobre muitosi pois o relativo está sem sujeito, o que é uma prática freqüente dos hebreus. Sobre quem, pois, o rei romano ou o império romano chegaria assim a ter domínio? Quem quer que lhes prestasse assistência receberia sua recom pensa de um estrangeiro, como bem sabemos que Eu- menes se enriqueceu com o despojo de Antíoco. As províncias também foram distribuídas conforme seu arbítrio. A ilha foi dada aos rodianos, enquanto um reino foi extorquido de outro, e os etolianos alargaram seus domínios. Como cada parte labutou ar­duamente em prol de seu próprio benefício, e incorreu em gran­des despesas, assim os romanos lhes conferiram riquezas. De­pois de vencer Antíoco, eles se tornaram mais liberais com Átalo e Eumenes, e assim vieram a ser senhores da maior parte da Ásia. Além disso, quando privaram Nabis, o tirano de Esparta, da mai­or parte de seus territórios, aqueles que se preocuparam em agra­dar os romanos foram favorecidos com os despojos que tomaram dele. Temos outro exemplo nos favores conferidos a Massinissa depois de conquistar Cartago; porque depois de ser expulso de seu próprio reino, seu domínio se estendeu amplamente por todo o continente da África; depois de ser privado de sua soberania paterna, ele não teve um lugar no mundo em que pisar até que lhe concederam o que haviam tomado dos espartanos. E como admi­nistraram isso? D ividiram o espólio p o r preço, diz o anjo. Re­provando assim indiretamente a sagacidade do senado e do povo romano, porque não se privaram desses amplos domínios gra­

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tuitamente; voluntariamente teriam devorado tudo quanto havi­am adquirido, porém descobriram que a m elhor política seria vendê-lo em vez de retê-lo. Não venderam a preço fixo - pois a palavra ‘preço’ aqui não carecia de restringir-se a um a soma de­finida de dinheiro mas revelaram sua avareza vendendo-o e distribuindo-o por amor ao lucro, fazendo com que todos esses territórios fossem imediatamente reduzidos em províncias de seu império. Tinham necessidade de grandes recursos; era objetável continuar com sua guarnição perpetuamente nas cidades da Gré­cia, e daí proclamarem plena liberdade através de todas elas. Mas, que sorte de liberdade era essa? Cada estado pode escolher seu senado de acordo com o beneplácito dos romanos, e assim cada um adquiria posição e honra em sua própria nação; tornando-se anexado e escravizado ao povo romano. E então, nesta condição das atividades, se qualquer guerra fosse deflagrada, buscariam ajuda desses amigos e aliados. Pois se tivessem sido apenas con­federados, os romanos jam ais teriam ousado fazer de cada um deles um estado tributário. Tomemos o caso dos cartagineses. Depois de serem reduzidos ao mais baixo nível de pobreza, por meio de tantos tributos, quando os romanos declararam guerra a Filipe da M acedônia e contra Antíoco, exigiram navios daqueles aliados. Exigiram, além disso, como subsídio, um a imensa quan­tidade de ouro, prata, provisões, vestimentas e armaduras, até que, por fim, esses miseráveis cartagineses, cujo próprio sangue os romanos sugaram, por fim enviaram para a guerra todo o ouro que lhes restara, e tudo o que conseguiram juntar com penúria. E assim Filipe, rei da Macedônia, é compelido a destruir-se mergu­lhando sua espada em seu próprio corpo; pois cada estado da Grécia se viu forçado a contribuir com sua própria porção para as despesas da guerra.

Percebemos, pois, como as terras foram divididas por preço, cada um a com respeito a sua própria utilidade, não por fixar um certo valor definido em dinheiro, mas segundo o padrão da conve­

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niência política. E que tipo de barganha depois executaram mu­tuamente? Temos um exemplo disso na prevalecência da pros­crição entre os romanos, por meio do quê volveram sua rapacida­de contra suas próprias partes vitais. Confiscaram previamente os bens de seus inimigos. Filipe, por exemplo, se viu forçado a pagar um a grande soma em dinheiro para readquirir o título de rei e a porção do território que lhe restou. Antíoco e os cartagine­ses se viram sujeitos à mesma dureza. Os romanos, em suma, nunca conquistavam qualquer reino sem exaurir tanto a monar­quia quanto seus domínios para satisfazer sua insaciável avareza e cupidez. Agora percebemos como dividiram as terras por pre­ço, mantendo todos os reis em sujeição a si, e outorgando favores a um à expensa de outro.

Agora percebemos a intenção do anjo em todo o versículo: o rei seria tão poderoso que concederia domínio a quem quer que lhe agradasse em muitos e amplos territórios, porém não gratui­tamente. Já tivemos exemplos de alguns sendo despojados de sua dignidade e poder régios e de outros sendo restaurados à au­toridade da qual tinham sido privados. Lucullus, por exemplo, decide expulsar um rei de seus domínios, enquanto a outro gene­ral ele restaurou suas possessões. Um único cidadão romano po­dia assim criar um a grande monarquia; e era o que acontecia com freqüência. Cláudio propôs ao povo banir o rei de Chipre, embo­ra ele fosse da raça real; seu pai tinha sido amigo e aliado do povo romano; ele não cometera crime algum contra o império romano, e não houve nenhuma razão para declarar guerra contra ele. Entrementes, ele permaneceu em segurança em casa, enquanto não se realizou nenhuma das cerimônias pelas quais a guerra é geralmente deflagrada. Ele foi banido na praça do mercado por uns poucos vagabundos, e Cato é imediatamente enviado para sublevar toda a ilha. Ele tomou posse dela para os romanos, e esse homem miserável se vê obrigado a lançar-se ao m ar em um ato de desespero. Observamos, pois, como esta predição do anjo

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de forma alguma era sem sentido; os procônsules romanos distri­buíram os reinos e as províncias, entretanto por um preço, por­quanto ele se assenhoreou de tudo que havia no mundo e tomou posse de todas as riquezas, de todos os tesouros e de cada partí­cula de valor, impelido pelo redemoinho de sua insaciável avare­za. Prorrogaremos o restante.

ORAÇÃOD eu s Todo-P oderoso, v is to que em todas a s era s a cegue ira d a h u ­m a n id a d e tem sid o tã o im ensa que a tem levado a a d o ra r-te errônea e su perstic io sam en te; e v is to que m an ifes tam ta l du p lic id a d e e so ­b erb a ao p o n to d e d esp reza r teu n o m e e ta m b ém o s p ró p r io s ído los que fo r ja ra m p a ra si, o ra m o s p a ra que no s co n ced a s aq u e la genu ína p ie d a d e que se rad ica n o s recônd itos m ais p ro fu n d o s de n o sso s c o ­rações. Q ue o tem o r d e teu n o m e se ja e scu lp ido em n o sso ín tim o p a ra q u e se ja m o s s incera e incond ic iona lm en te d evo ta d o s a ti. Q ue cada u m d e n ó s s in cera m en te dese jem o s g lo r ifica r teu nom e; que nos esforcem os em g u ia r n o sso s irm ãos na m esm a vereda. E xpurga- nos m a is e m a is d e toda d issim ulação , a té que, p o r fim , a lca n cem o s aq u e la p er fe ita p ureza que no s aguarda n o céu, p e la m ed ia çã o de Jesu s C risto nosso Senhor. A m ém .

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40 E no tem po do fim o rei do sul iu tará 40 E t tn tem pore finis confliget cum eocontra ele, e o rei do norte virá con tra e le rex austri, e t tanquam tu rbo irruet rexcom o um turbilhão, com carros e com ca- aquiionis, cum curru e t equitibus, e t na-valeiros e com m uitos navios; e entrará vibus m ultis: et veniet in terras, e t exun-nos países e os inundará, e passará. dab it, et transibit, pervadet.

Quanto ao tempo aqui mencionado, trata-se de um certo ou determinado período: os reis do sul e os do norte já provamos significar o Egito e a Síria, cada um tendo sua posição em relação à Judéia. A palavra FI3], negech, confliget, é literalmente ele “em ­purrará com os chifres”, enquanto a palavra traduzida “ele se pre­cipitará como um turbilhão” é deduzida de " W , segner, “ser tem­pestivo”. O anjo aqui prediz as numerosas vitórias por meio das quais os romanos estenderiam seu império amplamente, ainda que não sem grandes dificuldades e perigos.

Ele afirma: O rei do sul d e flag ra rá g u e rra co n tra os ro m a­nos p o r um período definido. Não ouso fixar o tempo preciso pretendido pelo anjo. Tão grande era o poder do Egito, que tives­sem os reis daquele país confiado seus recursos naturais e eles poderiam ter reunido coragem para declarar guerra aos romanos. O procônsul Gabínio levou seu exército para lá por causa da res­tauração de Ptolomeu. Ele expulsou Arquelau sem muito proble­ma, e então, como mercenário, ele arriscou sua vida e sua fama ali, bem como seu exército. César estava em perigo ali, depois de vencer Pompeu; então Antônio em seguida fez guerra a Augusto, assistido pelas forças de Cleópatra; então o Egito ofereceu toda

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sua força, e em seu fracasso se viu reduzido a um a província romana. O anjo não se propôs marcar uma série contínua de tem­pos, mas apenas admoestar em termos breves os fiéis a permane­cer firmes em meio às mais graves conturbações que então se aproximavam. Seja qual for o significado preciso, o anjo sem dúvida queria indicar a dificuldade natural da pugna entre os ro­manos e os egípcios. Já apresentei o testemunho da história quanto ao fato de que os egípcios nunca declaravam guerra contra os romanos em seu próprio nome; às vezes os acontecimentos eram tão confusos que os egípcios se uniam aos sírios, e então temos de ler as palavras em conjunção - assim o rei do sul, assistido pelo rei do norte, deflagrariam guerra contra os romanos. O anjo assim nos m ostra como o rei da Síria forneceria maiores forças e suprimentos do que o monarca egípcio, e isso realmente aconte­ceu no início do triunvirato. Em seguida ele afirma: O rei do sul viria com ca rro s e cavalos e m uitos navios. Tampouco é neces­sário aqui indicar o período preciso, já que os romanos empreen­deram muitas guerras no oriente, em cuja ocasião ocuparam a Ásia, enquanto um a parte da Líbia lhes coube pela vontade de seu rei sem armas ou forças de qualquer gênero.

Com referência a esses dois reinos que têm sido tão amiúde mencionados, muitos líderes governaram a Síria dentro de um curto período. Primeiramente um dos nativos foi posto no trono e depois o outro, até que o povo se cansou deles e transferiu a so­berania a estrangeiros. Então Alexandre subiu gradualmente ao poder e finalmente adquiriu mui grande fama. Ele não era nobre de nascença, pois seu pai era de origem obscura. Esse homem procedeu de um a família obscura e em certo período não possuía nem autoridade nem recursos. Ele foi feito rei da Síria, porque pretendia ser filho de Seleuco, e foi imediatamente assassinado, enquanto seu sucessor imediato reinou por um curto período. Assim a Síria passou para os romanos com a morte desse Seleu­co. Tigrane, rei da Armênia, foi então enviado e veio a ser go-

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vernador sobre a Síria até que Lucullus o venceu e a Síria foi reduzida a uma província. O mais vil dos homens reinava sobre o Egito, Fiscon, que foi restringido pelos romanos quando tentava esbulhar a Síria do poder de sua soberania; era excessivamente depravado, tanto no corpo quanto na mente; e daí granjear ele esse desditoso apelido. Pois a palavra vem do grego e equivale ao francês audouille\ pois physce significa aquele intestino mais delgado no qual os outros geralmente se acham inseridos. Essa deformidade deu origem a seu nome usual, significando ‘obeso’, implicando uma deformidade tanto física quanto semelhança com os brutos, enquanto ele não era dotado nem de intelecto nem de engenhosidade. O último rei que fez dos romanos os guardiães de seus filhos recebeu o nome de Auletes, e Cícero usa este epí­teto como procedente de “tocador de flauta” , porque ele era imo­deradamente amante desse instrumento musical. Em cada reino, pois, havia horrível deformidade, visto que todos quantos exerci­am a autoridade real se assemelhavam mais a cães ou suínos do que a seres humanos. Tigranes, sabe-se muito bem, deu muito trabalho aos romanos. Em contrapartida, M itridates ocupou sua atenção por um período bem longo, e com sucessos vários e opos­tos. Os romanos por toda a Ásia viviam um período entregues à espada, e quando terminava um a investida, M itridates às vezes se mostrava superior, e mais tarde uniu suas forças com as de Tigranes, seu padrasto. Quando Tigranes dominou a Armênia, veio a ser um rei de outros reis, e mais tarde adicionou a seus domínios um a porção da Síria. Por fim, quando o último Antíoco foi constituído sobre o reino da Síria por Lucullus, ele foi remo­vido de seu comando pelas ordens de Pompeu, e então, como já afirmamos, a Síria veio a ser província romana. Pompeu cruzou o m ar e subjugou toda a Judéia juntam ente com a Síria; mais tarde entrou no templo e se assenhoreou de um a parte de suas possessões, porém poupou os tesouros sacros. Crasso o sucedeu - um insaciável sorvedouro, o qual desejava essas províncias por

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nenhuma outra razão senão para saciar sua ilimitada sede de ri­quezas. Ele despojou o templo de Jerusalém; e por fim, depois que Cleópatra foi vencida, o Egito perdeu sua estirpe real e pas­sou a ser um a província romana. Se os romanos tivessem con­quistado centenas de outras províncias, o anjo não teria feito menção deles aqui; pois já observei previamente seu respeito es­pecial pelo povo eleito. Portanto, ele se realça somente naquelas matanças que tiveram mais ou menos relação com os judeus des­troçados. Em primeiro lugar, ele prediz a grande disputa que sur­giu entre os reis do Egito e da Síria, que v iria à sem elhança de um torvelinho, enquanto os romanos se p rec ip ita riam sobre as te rra s com o um dilúvio, e passariam . Ele com para o rei da Sí­ria a um torvelinho, pois a princípio ele se precipitaria impetuo­samente, enchendo a terra e o mar com suas forças. E assim ele excita os terrores da carne e no entanto se desvanece rapidamen­te como um tufão que passa. Mas os romanos são comparados a um dilúvio. O novo rei de quem o anjo já falou viria, diz ele, e transbordaria, sepultando todas as forças do Egito e da Síria; denotando que todos os fundamentos de ambos os reinos seriam varridos quando os romanos passassem sobre eles. Ele passará, diz o anjo; ou, seja, por onde passarem, para eles um caminho será aberto e não encontrarão nada fechado. Ele repetirá essa idéia de outra forma. Não fala agora de apenas um a região, porém diz que eles viriam sobre as terras, denotando um a vasta desolação, enquanto ninguém ousaria opor-se-lhes resistindo sua fúria.

41 E le tam bém en trará na terra gloriosa, 41 E t veniet in terram desiderii, e t mult®,e m uitos países serão subvertidos; m as os regiones scilicet, cadent, e l hse evadent em esm os escaparão de sua m ão, inclusive m anu ejus, E dom , M oab, e t principium E dom e M oabe e o príncipe d os filhos de filiorum Am m on.Amon.42 E le estenderá sua m ão tam bém sobre 42 E t m ittet, hoc est, extendet, m anumos países; e a terra do E gito não escapará. suam in terras, et terra /Egypti non erit in

ev asionem .1“

IS* Isto é, “ não escapará”, ou “se emaranhará”.

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[11.41, 42] DANIEL

A terra da Judéia é chamada a terra aprazível ou desejável, porque Deus quis que ela fosse digna de seu favor peculiar. Ele a escolheu para sua habitação, chamou-a de lugar de seu repouso e fez com que sua bênção permanecesse nela. Neste versículo tam ­bém se tratam de regiões, e não meramente de cidades, como as regiões de Edom e de Moabe. Depois de o anjo brevemente pre­dizer a ocorrência das mais graves guerras com os romanos, ele agora acrescenta o que em termos breves começara no último versículo, isto é, eles chegariam a ser os conquistadores de todas as nações. E les v irão, diz o anjo, à te r r a desejável. Eis a razão por que o anjo profetiza sobre o império romano, pois ele não fora enviado a explicar a Daniel a história do mundo inteiro, mas para manter os fiéis em seu compromisso e os persuadir, sob as mais perturbadoras convulsões, a permanecerem sob a proteção e guarda de Deus. Por essa razão ele afirma: eles virão à terra desejável. Esta seria um a terrível tentação e poderia destruir todo sentimento de piedade, visto que os judeus seriam acossados de todos os lados, primeiro pelos sírios e então pelos egípcios. E sabemos com que crueldade Antíoco empreendeu não só a opri­mir, mas também a apagar totalmente do mapa toda a nação. Nem os sírios nem os egípcios os pouparam. Os romanos vieram de quase todos os cantos do globo; a princípio fizeram aliança com esses estados, e então entraram na Judéia como inimigos. Quem suporia que uma região sob a proteção de Deus seria exposta a todos os ataques de pilhagem e opressão? Por isso era necessário admoestar os fiéis a não desmaiarem em meio a essa total confusão.

Eles virão , pois, à terra desejável, e m uitas regiões cairão; ou, seja, não restaria nenhuma esperança para os judeus depois da chegada dos romanos, visto que a vitória já estava preparada em suas mãos. Ao pôr o anjo diante dos fiéis esta visão de deses­pero, provavelmente não os induziria a nutrir confiança e confor­to, mas, como estavam cientes dessas previsões divinas, sabiam também que o remédio estava preparado pelo mesmo Deus que

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64a EXPOSIÇÃO [11.41 , 42]

os admoestava por meio do anjo. Estava em seu poder salvar sua Igreja de centenas de mortes. Esta profecia veio a ser um inesti­mável tesouro, inspirando os fiéis com a esperança do livramen­to prometido. O anjo mais adiante acrescentará a prom essa desti­nada a apoiar, afortalecer e a reavivar seus espíritos desalentados.

Ele aqui, porém, anuncia que o auxílio divino não surgiria imediatamente, porque ele daria aos romanos plena permissão de exercer domínio, tirania e pilhagens cruéis, por todo o mundo da Ásia e do Oriente. Diz ele: As te rra s de E dom , de M oabe e um a porção de A m on escaparão de seu m ortic ín io . Tal prova­ção não afetaria em grau suave as mentes dos santos. O que ele queria dizer? Ele faria com que a terra que havia prometido esta­ria em repouso fosse agora assenhoreada e devastada por seus inim igos! A terra de Moabe está em paz e desfruta de maior tran­qüilidade, e a condição dos filhos de Amon é de prosperidade! Aqui precisamos reter na mente o que os profetas dizem dessas terras: Esaú foi banido para as montanhas escarpadas, e Deus destinou aos moabitas um território fora das fronteiras da terra de bênçãos [MI 1.3]. Tão-somente os judeus tinham algum direito e privilégio peculiares de completo repouso. Ora, quando a Judéia se vê devastada e seus inimigos, a seu bel-prazer, não só se asse­nhoreia de tudo quanto é valioso na cidade e no país, recebendo especial permissão de saquear a terra à vontade, o que os judeus conjeturariam? O anjo, pois, responde a essa objeção e alivia es­ses sentimentos de ansiedade aos quais os fiéis poderiam estar sujeitos diante de tanta mortandade. Ele declara que os territórios de Edom , de M oabe e dos filh o s de Amon permaneceriam em tranqüilidade e segurança, isentos dessas calamidades. Pela ex­pressão, ao início dos filhos de Amon, provavelmente ele se refi­ra àquele refúgio do qual os amonitas se originaram. Pois sem dúvida os romanos não teriam poupado os amonitas, a menos que estivessem escondidos por entre os montes, pois todo o dis­trito na vizinhança da Judéia estava sujeito à mesma aflição. Os

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[11.433 DANIEL

que interpretam esta passagem como uma referência ao Anticris- to presumem que se concedeu segurança somente àquela porção dos fiéis que escaparia do mundo e acharia refúgio nos desertos. Mas não há razão para tal opinião, e é suficiente reter o sentido já proposto como sendo o genuíno.

Em seguida ele acrescenta: Os romanos enviariam seus exér­citos à terra, e inclusive à terra do Egito, e eles não escapariam. O anjo sem dúvida trata aqui das numerosas vitórias que os ro­manos alcançariam em curto tempo. Fariam guerra a M itridates por um longo período, e então a Ásia estava quase perdida; mas logo depois começou a estender seu poder, primeiro sobre toda a A sia Menor, e então sobre a Síria; a Armênia foi em seguida adicionada a seu domínio, e o Egito depois dela. Entrementes, essa foi apenas um a adição moderada, até que, por fim, vieram a governar sobre os persas, e assim seu poder se tornou formidá­vel. Por isso esta profecia se cumpriu quando estenderam seu poder sobre muitas regiões, e a terra do Egito veio a ser uma porção de seu despojo. E prossegue:

43 M as e ie (erá poder sobre os tesouros 43 E t dom inabitur thesauris auri, e t ar­de ouro e de prata, e sobre todas as coisas genti, e t om nibus desiderabilibus18* JEgy-preciosas d o Egito; e os libaneses e os etí- pti, e t Lybiae, e t ^ th io p is e ingressibusopes estarão em seus passos. suis.

Afirmei previamente que, em bora a linguagem se aplique a um único rei, todavia um reino está subentendido, e nossas ob­servações anteriores são aqui confirmadas. Em bora muitas na­ções tudo fariam para resistir os romanos, não obstante seriam completamente vitoriosos, e finalmente adquiririam imenso des­pojo. Sua avareza e cobiça eram profundamente assustadoras; pois ele diz: adquirirão domínio sobre os tesouros de ouro e de prata, e arrastarão após si todas as coisas preciosas do Egito, da Líbia e da Etiópia; e isso também em seus passos. Com essas

189 Isto é, sobre todas as coisas preciosas.

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64* EXPOSIÇÃO [11.44]

palavras ele explica mais claramente nossas preciosas observa­ções sobre o em blema do dilúvio. Todas as terras seriam postas diante deles; em bora as cidades fossem fortificadas, e assim os resistiriam com seus portões fechados, contudo o caminho lhes seria aberto, e ninguém os impediria de irromper-se sobre todo o oriente e de subjugar ao mesmo tempo metrópoles, cidades e vi­las. Sabemos que foi precisamente isso o que aconteceu. Daí não haver em todo este contexto nada forçado, e a profecia é invaria­velmente interpretada pela história. E então ele prossegue:

44 M as as notícias do orien te e do norte o 44 R um ores vero,1* terrebuni eum ab ori- espantarão; por isso ele sairá com grande ente, e t ab aquilone: egred ieturque cum fúria a destruir, e ex tirpará totalm ente a ira m agna, ut perdat et in tem ecione dele-m uitos. a t muitos.

A narrativa do anjo aqui parece diferir um pouco da prece­dente, quando os romanos não conseguiriam tão completamente evitar ser interrompidos no meio de seu curso vitorioso. Diz ele: E les se rão am edron tados p o r rum ores, e os acontecimentos se adequam a este caso, pois em bora os romanos subjugassem todo o oriente com bem pouca dificuldade, e em poucos anos, não obstante mais tarde foram refreados por adversidades. Pois Cras­so pereceu miseravelmente depois de despojar o templo, e des­truiu a si e à flor do exército romano; foi vencido em Carre, nas proximidades de Babilônia, em um importante envolvimento atra­vés da traição de espiões em quem ele pusera toda sua confiança. Antônio, novamente, depois de dividir o mundo em três partes entre si, Otávio e Lépido, sofreu miseravelmente na m esm a vizi­nhança contra os partos. Não nos surpreende o anjo dizer: Os romanos serão amedrontados com notícias do oriente e do nor­te., como de fato aconteceu. Então acrescenta: sa irão com g ra n ­de fu ro r; ou, seja, embora perdessem muitas tropas, contudo esse severo massacre não impressionaria seu espírito. Quando suas circunstâncias ficavam desesperadoras, se deixavam excitar como

lw Provavelmente ‘notícias' ou ‘declarações- que seriam ouvidas.

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bestas selvagens após sua presa, até que se precipitavam em sua própria destruição. Isso aconteceu mais especialmente sob o rei­nado de Augusto; por um curto período, ele contendeu sucessi­vamente com os partos e os compeliu a render-se. Então lhes impuseram condições de paz; e quando as águias romanas entra­ram na Pérsia, para sua própria desgraça, ele compeliu esse povo a retroceder para eles. Por meio dessa compulsão ele apagou a desgraça que sofrera de Antônio. Vemos, pois, quão excessiva­mente bem isso se adequa ao contexto: os romanos virão com grande fu ro r para destruir a m uitos; quando os partos espera­vam desfrutar tranqüilidade por muito tempo e viver perfeita­mente livres de qualquer tentativa ou ataque futuro por parte dos romanos. E prossegue:

45 E p lantará os tabernáculos de seus pa- 45 E t figet tabem acu la palatii sui inierlácios entre os m ares no glorioso e santo m aria ad m ontem desiderii sanctitatis, etm onte; todavia chegará a seu fim e nin- veniet ad finem suum , e t non auxiliatorguém o ajudará. ei.

O anjo por fim conclui com o domínio dos romanos estabele­cido na Ásia M enor e nas regiões do oriente, tanto quanto na Síria, Judéia e Pérsia. Já mostramos como tudo o que é predito aqui é relatado pelos historiadores profanos, e cada evento é bem conhecido de todos os que são moderadamente versados no co­nhecimento daqueles tempos. E preciso agora notar bem a frase: o rei romano fixará as tendas de seu palácio. Esta expressão significa não só a deflagração da guerra pelos romanos no orien­te, mas em se tornarem os senhores de toda aquela região. Quan­do ele disse que fixariam suas tendas segundo a prática usual da guerra, poderia ter se contentado com o método usual de lingua­gem, porém contrasta a palavra ‘palácio’ com as migrações fre­qüentes, e significa que seu acampamento não se mediria segun­do o costume da guerra, mas que ocuparia uma posição fixa para certa permanência. Por que então ele fala de tendas? Porque a Asia não era a sede de seu império; pois eram cuidadosos em não

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64* EXPOSIÇÃO [11.45]

atribuir mais dignidade a algum palácio do que lhes era conveni­ente. Por essa razão, os procônsules lhes proporcionavam nume­rosa assistência para evitar a necessidade de algum palácio fixo. Eles tinham suas próprias tendas e às vezes permaneciam nessas habitações temporárias quando se viam em suas jornadas. Esta linguagem do anjo - fix a ra m as tendas de seu palácio - se ade­quará à excessiva comodidade dos romanos, porque reinaram ali tranqüilamente depois que o oriente foi subjugado; e contudo não tinham habitação fixa, porque não queriam que algum palácio viesse a tornar-se bastante forte ao ponto de rebelar-se contra eles. Ao dizer: en tre os m ares, há quem pensa estar em pauta o M ar Morto e o Lago de Asfalto, como opostos ao M ar M editerrâ­neo. Não hesito em pensar que o que está na mente do anjo é o M ar Pérsico. Ele não diz que os romanos se tornariam senhores de todas as terras subjacentes entre os dois mares, mas apenas diz que fixariam as tendas de seu palácio entre os mares\ e sabe­mos que isso foi feito quando estabeleceram o domínio entre o Euxine e o Golfo Pérsico. É bem conhecido a extensão do domí­nio de Mitridates, pois os historiadores registram vinte e duas nações sujeitas a seu poder. Mais tarde, de um lado ficou a Ásia Menor, que consistia de muitas nações, segundo nossa afirmação em outro lugar, e a Armênia veio a ser sua depois que Tigranes foi vencido, enquanto a Cilicia, ainda que apenas a parte de uma província, era um a região muito extensa e opulenta. Possuía mui­tos desertos e muitas montanhas pedregosas e estéreis, enquanto havia na Cilicia muitas cidades ricas, ainda que não formasse uma única província, como a Síria e a Judéia, de modo que não surpreende quando o anjo diz que os rom anos/ãflnam suas ten­das entre os mares, pois sua habitação ficava além do M ar M edi­terrâneo. Primeiro passaram pela Cilicia, em seguida pela Espa­nha; em terceiro lugar, começaram a estender seu poder sobre a G récia e Ásia Menor, contra Antíoco, e então se apoderaram de todo o oriente. De um lado estava a Ásia M enor e muitas outras

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nações; e do outro lado estava o M ar Sírio, inclusive a Judéia, até o M ar Egípcio. Observamos, pois, a tranqüilidade do império romano entre os mares, e contudo não tinha sede permanente ali, porquanto os procônsules passavam seu tempo como forasteiros no m eio de um país estranho.

Por fim ele acrescenta: Eles v irão ao m onte do anseio de san tidade. Já expressei a razão por que esta profecia foi pronun­ciada, isto é, para impedir que as notícias desses acontecimentos perturbassem as mentes dos santos, quando vissem um a nação tão bárbara e longínqua os tripudiando e governando com sober­ba, insolência e crueldade. Quando, pois, um espetáculo tão do­loroso estivesse diante dos olhos dos santos, demandariam não pouco apoio para que não se rendessem à pressão do desespero. O anjo, pois, prediz acontecimentos futuros para produzir o reco­nhecimento de que nada realmente acontece por acaso. E em se­guida mostrar como todas esses movimentos turbulentos por todo o mundo são governados pelo poder divino.

Segue-se a consolação: p o r fim chegarão a seu fim e n in ­guém os a ju d a rá . Isso não se cumpriu imediatamente, porque depois que Crasso despojou o templo e sofreu um revés contra os partos, os romanos não fracassaram total e repentinamente, po­rém sua monarquia floresceu ainda mais e mais sob Augusto. A cidade foi então arrasada por Tito até o pó, e o próprio nome e existência da nação judaica ficaram quase aniquilados. Então, depois disso, os romanos sofreram derrotas desastrosas; e foram expulsos de quase todo o oriente e compelidos a negociar com os partos, os persas e outras nações, até que seu império ficou total­mente arruinado. Se estudarmos a história dos cem anos seguin­tes, não se encontrará nenhuma nação que sofresse mais severos castigos que os romanos, e nenhuma monarquia jam ais foi sub­vertida com maior desgraça. Deus, pois, derramou tal fúria sobre aquela nação, que a mesma veio a ser o espanto do mundo. As palavras do anjo não são debalde: seu próprio fim virá logo\ de­

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64* EXPOSIÇÃO [12.1]

pois que tinham devastado e despovoado todas as terras, e pene­trado e invadido tudo, e o mundo inteiro se rendeu a seu poder, então os romanos foram totalmente arruinados e varridos. Não terão ninguém que os ajude. Sem dúvida esta profecia poderia estender-se aqui à promulgação do evangelho; pois ainda que Cristo nascesse numa época antes da proclamação do evangelho, não obstante ele verdadeiramente resplandeceu no mundo por meio dessa promulgação. O anjo, pois, conduziu sua profecia àquele ponto do tempo. Ele agora junta isto:

íZ iip ítu ú o 121 E naquele tem po se levantará M iguel, o 1 E t tem pore illo stabit M ichael princeps,grande príncipe que favorecerá os filhos m agnus stans pro filiis populi tu i. e t eritde teu povo; e haverá um tem po de tribu- tem pus afflictionis, qua le non fui abcsselação, tal com o nunca houve desde que gentem , hoc esl, ex quo caperunt esseexiste um a nação até aquele tem po; e na- gentes, ad tem pus illud usque: e t tem porequele tem po teu povo será libertado, todo illo servabitur populus tuus quicunque in-aquele que for achado inscrito no livro. ventus fuerit scriptus in libro.

O anjo não mais relata especialmente ocorrências futuras, mas proclama que Deus é o general e guardião de sua Igreja, para preservá-la maravilhosamente no meio de muitas dificuldades e de terríveis comoções, bem como nas profundas trevas de desas­tres e de morte. Esse é o sentido dessa sentença. Este versículo consiste de duas partes: a prim eira se relaciona com aquele des­ditoso período que seria saturado de várias e quase inumeráveis calamidades; e a segunda nos assegura daquela proteção e a pre­servação infalíveis de Deus em prol de sua Igreja, usando seu próprio e inerente poder. Nesta segunda parte, a promessa se res­tringe aos eleitos, e assim uma terceira sentença pode ser distin­guida, porém é apenas uma adição à segunda supramencionada. N a conclusão do versículo, o anjo nos apresenta uma definição da Igreja: quantos professavam ser o povo de Deus e na realidade não o eram.

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[12.1] DANIEL

Diz ele: M iguel, o príncipe do povo se levantará. Então declara a razão: as calamidades daquele período serão de tal natureza, que nunca foram testemunhadas desde o princípio do mundo. Visto que ele se dirige a Daniel, então diz: filhos de teu povo; porque ele era um dos filhos de Abraão, e a nação da qual Daniel procedia era nesse sentido ‘sua’. D isto se segue que as calamidades de que paulatinamente trata pertencem à verda­deira Igreja, e não às nações profanas. O auxílio singular de M i­guel não teria sido necessário, a menos que a Igreja fosse oprim i­da com as mais desastrosas aflições. Percebemos, pois, que a in­tenção do anjo se harmoniza com minha explicação. A Igreja estaria sujeita às mais numerosas e graves calamidades até o ad­vento de Cristo, não obstante ela sentiria a disposição propícia de Deus assegurando seu próprio bem-estar sob seu auxílio e prote­ção. Por M iguel muitos concordam em interpretar como sendo Cristo a Cabeça da Igreja. Mas se parecer preferível entender M iguel como sendo o arcanjo, este sentido provará ser adequa­do, pois sob Cristo como a Cabeça os anjos são os guardiães da Igreja. Seja qual for o verdadeiro sentido, Deus era o preservador de sua Igreja pelas mãos de seu Filho unigénito; e visto que os anjos estão sob o governo de Cristo, ele poderia confiar tal tarefa a Miguel. Aquele hipócrita imundo chamado Serveto tem ousa­do apropriar-se desta passagem e a aplicar a sua pessoa; porquanto a inscreveu como frontispício em seus horríveis comentários por ser ele também chamado Miguel ! Observamos que fúria diabóli­ca se apoderou dele ao ponto de usar como se aplicando a ele o que aqui se diz do singular auxílio propiciado por Cristo a sua Igreja. Ele era um homem dos mais impuros sentimentos, como já se fez sobejamente notório. Mas essa foi uma prova de sua impudência e sacrílega demência - adornar-se com esse título de Cristo sem o mais leve rubor e assentar-se no lugar de Cristo, gabando-se de ser Miguel, o guardião da Igreja e o poderoso prín­cipe do povo! Este fato é bem notório, porque, tendo o livro em minhas mãos, ninguém precisará pôr em dúvida minha afirmação.

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64 " EXPOSIÇÃO

ORAÇÃOD eus Todo-P oderoso, v is to que estam os p o s to s em estresses se m e ­lh a n tes a o s que tu qu iseste n o s p ro va r p o r m e io do anjo , com o se deu tam bém com teu p o v o antigo , fa z co m q u e tu a luz b rilh e sobre nós p o r m e io d e teu un igén ito F ilho. Q ue nos s in ta m o s sem p re seguros so b teu in ven c íve l poder. Q ue h a b item os seg u ro s sob tua som bra , e lu tem os so líc ita e ousadam en te a té o f im co n tra S a ta n á s e toda sua hoste ím pia . E qu a n d o toda nossa g uerra ch eg a r a o f im , cheguem os p o r f im àq u e le b en d ito desca n so onde o fr u to d e n o ssa v itó ria nos aguarda , n o m esm o C ris to n o sso Senhor. A m ém .

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65a

/ \ j j capítulo 12 começou, como afirmei na preleção de ontem, com a predição angélica quanto ao estado futuro da Igreja

depois da manifestação de Cristo. Teria sido um tem a de muitas misérias, e daí esta passagem ter suavizado a dor de Daniel e a de todos os santos, ao prometer ele ainda a segurança da Igreja atra­vés do socorro divino. Daniel, pois, representou M iguel como o guardião da Igreja, e Deus deu a Cristo a incumbência desse de­ver, como aprendemos do capítulo 10 de João [vv. 28, 29]. Como afirmei ontem, Miguel pode significar um anjo; porém adoto a opinião dos que aplicam isso à pessoa de Cristo, porque se ade- qua melhor ao tema representá-lo como se pondo em defesa de seu povo eleito. Ele é chamado poderoso príncipe, porque natu­ralmente colocou a invencível fortaleza de Deus contra aqueles perigos aos quais o anjo representa a Igreja como estando sujeita. Bem conhecemos as muitas causas superficiais pelas quais o ter­ror às vezes se apodera de nossas mentes, e quando começamos a tremer, nada pode acalmar o tumulto e agitação de nosso íntimo. O anjo, pois, ao tratar de lutas tão graves e do iminente perigo que paira sobre a Igreja, denomina Miguel o príncipe poderoso. Como se dissesse: Miguel seria o guardião e protetor do povo eleito e exerceria imenso poder; e ele sozinho, sem a mais leve dúvida, seria suficiente para propiciar-lhe proteção. Cristo con­firm a a mesma asseveração, como acabamos de dizer, no capítu­lo 10 de João. Diz ele que todos os eleitos lhe foram dados por seu Pai, e nenhum deles pereceria, porque seu Pai era maior que

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65* EXPOSIÇÃO [12.1]

tudo; ninguém, diz ele, arrebatará as ovelhas de minha mão. Meu Pai, que as deu a mim, é maior que tudo; ou, seja, Deus possui poder infinito, e o exibirá para a segurança daqueles a quem ele escolheu antes da fundação do mundo, e as entregou a mim, ou as depositou em minhas mãos. Agora percebemos a razão de tal epíteto, o qual designa M iguel como sendo o grande príncipe. Pois em conseqüência da magnitude da pugna, é preciso que acei­temos a oferta de força insuperável a capacitar-nos para o desfru­to de tranqüilidade no meio das comoções mais graves. Não era de form a alguma supérfluo que o anjo predissesse calamidades de tal vulto pendentes sobre a Igreja, e nos dias atuais as mesmas expressões nos são de muita valia. Percebemos, pois, como os judeus imaginavam um a condição de felicidade sob Cristo, e o mesmo erro foi adotado pelos apóstolos que, quando Cristo dis­correu sobre a destruição do templo e da cidade, pensavam que o fim do mundo estava chegando, e conectaram isso com sua pró­pria glória e triunfo [Mt 24.3]. O profeta, pois, é aqui instruído pelo anjo sobre como Deus dirigiria a trajetória de sua Igreja quan­do lhes manifestasse seu Filho unigénito. Todavia o que aguarda­va todos os santos era tribulação em extremo severa; como se dissesse: O tempo de seu triunfo ainda não chegou; contudo de­vem continuar sua luta, que será de m uita dificuldade e aborreci­mentos. A condição do novo povo é aqui com parada àquela do antigo povo que sofreu muitos perigos e aflições nas mãos de Deus. O anjo, pois, diz que, ainda quando os fiéis sofressem com extrem a severidade sob a lei e os profetas, não obstante um tem­po ainda m ais opressivo está por vir, durante o qual Deus trataria sua Igreja mais estritamente do que antes, e a submeteria a pro­vações ainda mais execrandas. Esse é o significado da passagem: está para surgir um tempo de muitas aflições, tais como as na­ções jam ais viram desde que começaram a existir. E possível que esta seja um a referência à criação do mundo, e se a aplicar­mos às próprias pessoas, a exposição se revelará correta; pois

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[12.1] DANIEL

em bora a Igreja fosse miserável nos primeiros períodos, contu­do, depois do aparecimento de Cristo, ela sofreria muito mais calamidades do que antes. Lembremo-nos da linguagem do sal­mista: “Muitas vezes me angustiaram desde minha juventude, diga agora Israel; muitas vezes me angustiaram desde m inha ju ­ventude; todavia não prevaleceram contra mim. Os lavradores araram sobre minhas costas; compridos fizeram seus sulcos” [SI 129.1-3]. Através de todos os tempos, pois, Deus sujeitou sua Igreja a muitos males e desastres. Mas um a comparação é aqui instituída entre dois diferentes estados da Igreja, e o anjo mostra como depois do aparecimento de Cristo ela estaria muito mais longe de tranqüilidade ou felicidade. Como seria oprimida com aflições mais pesadas, não surpreende que os pais quisessem que nos conformássemos à imagem de seu Filho unigénito [Rm 8.29]. Desde o período da ressurreição de Cristo, ainda quando uma guerra angustiante nos aguarde, devemos suportá-la com grande equanimidade, porque a glória do céu é posta diante de nossos olhos muito mais claramente do que o foi para eles.

Por fim, ele acrescenta: N aquele tem po teu povo se rá p re ­servado. Com esta expressão o anjo nos realça a grande im por­tância da proteção de Miguel. Ele promete a seu povo eleito uma salvação infalível, como se dissesse: em bora a Igreja seja expos­ta aos maiores perigos, não obstante, com respeito a Deus m es­mo, ela estaria sempre segura e vitoriosa em todas as lutas, por­que Miguel seria superior a todo inimigo. O anjo, pois, ao exortar assim os fiéis a suportar a cruz, mostra quão livres eles seriam de toda dúvida quanto ao evento e da absoluta certeza de sua vitória. Embora à prim eira vista esta profecia pudesse inspirar-nos temor e desalento, contudo este conforto nos deve ser suficiente: “Sere­mos vitoriosos no meio do fogo e da espada, e no meio de muitas mortes estaremos certos da vida.” Como um a perfeita segurança nos é aqui posta diante dos olhos, devemos sentir-nos seguros e entrar com júbilo em todo empreendimento. Na verdade nos ve­

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65* EXPOSIÇÃO [12.1]

mos obrigados a lutar, porém Cristo já venceu por nós, como ele mesmo diz: “Confiai em mim; eu já venci o mundo” [Jo 16.33]. O anjo, porém, restringe o que disse em termos gerais à guisa de correção. M uitos professavam pertencer ao povo de Deus, e cada um naturalmente oriundo da estirpe de Israel se vangloriava de proceder da semente divina. Como todos indiscriminadamente queriam pertencer ao povo de Deus, o anjo restringe sua expres­são usando uma frase que delimitava: todas as pessoas, diz ele, que estiverem inscritas no livro. Esta sentença não significa todo o Israel segundo “a carne” [Rm 9.6-8], mas as pessoas que Deus estima como sendo realmente israelitas tão-somente segundo a eleição da graça. Ele aqui distingue entre os filhos carnais e os filhos espirituais de Abraão: entre a Igreja externa e a Igreja in­terna, que constitui a verdadeira comunidade que o Onipotente aprova. Então, do que depende a diferença entre os que se glori­am de ser filhos de Abraão, enquanto são rejeitados por Deus, e os que são real e verdadeiramente seus filhos? Depende da mera graça e favor de Deus. Ele declara sua eleição quando regenera seus eleitos pela ação do Espírito Santo e assim os distingue com uma m arca infalível, enquanto provam a realidade dessa filiação ao longo de todo o curso de suas vidas, e confirmam sua própria adoção. Entrementes, somos compelidos a ir imediatamente à fonte: unicamente Deus, por sua eleição gratuita, distingue a Igreja externa, que nada tem senão mero título, da verdadeira Igreja, a qual jam ais pode perecer ou apostatar. E assim observamos em quantas passagens da Escritura os hipócritas são rejeitados no meio de sua entumecida soberba, como nada tendo em comum com os filhos de Deus, senão os símbolos externos de sua profis­são de fé.

Devemos observar essa restrição, a qual nos assegura da total inutilidade da pompa externa e da natureza improfícua inclusive de um a posição elevada na Igreja externa, a menos que estejamos verdadeiramente no seio do povo de Deus. Isso é expresso plena-

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[12.1] DANIEL

mente nos Salmos 15 e 24, enquanto o Salmo 73 confirma a m es­ma idéia. Quão bom é Deus para Israel, especialmente para os de coração íntegro! Nestas passagens dos Salmos a causa não está na eleição secreta de Deus, mas no testemunho extem o da con­duta; e esta, em bora inferior em grau, não é contrária à primeira causa que a produz. Este é seu lugar apropriado, mas a eleição divina é sempre superior. A palavra livro se refere ao eterno con­selho de Deus, por meio do qual ele nos elegeu e nos adotou como seus filhos antes da fundação do mundo, como lemos no primeiro capítulo de Efésios [v. 4], No mesmo sentido, Ezequiel investe contra os falsos profetas que enganavam o povo de Israel [13.9], Minha mão, diz Deus, será contra esses profetas que en­ganam meu povo; portanto, não permanecerão na assembléia se­creta de meu povo, nem serão achados no rol da casa de Israel. A palavra usada aqui significa escrever - não serão escritos nos registros da casa de Israel. A palavra livro é aqui usada no mes­mo sentido, e no entanto não precisamos adotar a idéia grosseira de que o Onipotente tem alguma necessidade de um livro. Seu livro é o eterno conselho que nos predestina para ele mesmo e nos elege para a esperança da salvação eterna. Agora entende­mos o pleno sentido desta instrução, a saber: a Igreja permanece­rá em segurança em meio a muitas mortes; e mesmo no último estágio de desespero, ela escapará através da misericórdia e so­corro de Deus. Devemos também lembrar-nos desta definição de igreja, porque muitos se gloriam de ser filhos de Deus, os quais lhes são totalmente estranhos. Isso nos leva a considerar o tema da eleição, visto que nossa salvação em ana dessa fonte. Nossa vocação, que é seu testemunho extemo, depreende aquela graciosa adoção que se acha escondida em seu íntimo; e assim Deus, quan­do nos regera pela operação de seu Espírito, esculpe em nós suas marcas e sinais para poder reconhecer-nos como seus filhos re­ais. E prossegue:

2 E m uitos dos que dorm em no pó da ter- 2 E l m ulti ex dorm ientibus in lerra pulve-

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65* EXPOSIÇÃO [12.2]

ra acordarão, alguns para a v ida e terna e re, evig ilabunt hi in vitam secuii. ho est, alguns para vergonha e desprezo eternos, perpetuo, hi vero in opprobium e t in abo-

m inationem perpetuam .

Q uanto à tradução das primeiras palavras, literalmente é: muitos que dormem no terra do pó, ou que estão na terra e no pó; pois o genitivo é usado como um epíteto, ainda que possa ser lido como se estivesse em oposição à palavra anterior, dormir, signi­ficando os que são reduzidos à terra e ao pó.

O anjo aqui parece marcar um a transição do com eço da pre­gação do evangelho ao dia final da ressurreição, sem ocasião su­ficiente para ela. Pois, por que ele passa do tempo imediato du­rante o qual muitos acontecimentos poderiam ser o tema da pro­fecia? Ele une esses dois temas com justeza e apropriadamente, conectando a salvação da Igreja com a ressurreição final e com a segunda vinda de Cristo. Por mais que olhemos em nosso redor, jam ais encontraremos qualquer fonte de salvação sobre a terra. O anjo anuncia a salvação de todos os eleitos. Eles são oprimidos miseravelmente de todos os lados, e para onde quer que volvam seus olhos, nada percebem senão confusão. Daí a esperança da salvação prometida não poder ser concebida pelo homem antes que os eleitos ergam suas mentes para a segunda vinda de Cristo. É precisamente como se o anjo dissesse: Deus será o constante preservador de sua Igreja, até o fim. Mas a m aneira como ele a preserva não deve ser tomada em um sentido carnal, como a Igre­ja será semelhante a um corpo morto até que ela ressuscite. Aqui percebemos o anjo ensinando a m esm a verdade que Paulo ex­pressa em outros termos, a saber: estamos mortos, e nossa vida está oculta com Cristo; então ela se manifestará quando ele apa­recer nos céus [Cl 3.3]. Devemos defender esta verdade a todo custo: Deus é suficientemente poderoso para defender-nos, e não precisamos hesitar, se de fato estamos seguros em suas mãos e proteção. Entrementes, é necessário acrescentar este segundo ponto: enquanto tiverm os nossos olhos fixos som ente neste

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[12.21 DANIEL

presente estado de coisas, e nos agarrando ao que o mundo nos oferece, seremos sempre como se estivéssemos mortos. Por quê? Nossa vida deve estar oculta com Cristo em Deus. Nossa salva­ção está segura, porém ainda esperamos por ela, com o Paulo nos diz em outra passagem [Rm 8.23, 24], O que é esperado não é visto, diz ele. Isso nos mostra quão completamente razoável é a transição desta doutrina relativa aos eleitos de Deus e o último advento de Cristo. Isso, pois, é suficiente com respeito ao con­texto. A palavra muitos aqui parece claramente expressar o todo, e isso não deve ser considerado como absolutamente absurdo, pois o anjo não usa a palavra em contraste com todos ou poucos, mas apenas como unidade. Alguns dos judeus forçam esta ex­pressão para significar a restauração da Igreja neste mundo sob eles mesmos, o que é completamente frívolo. Neste caso a se­guinte linguagem não seria correta: A lguns ressusc itarão p a ra a vida, e outros, p a ra a m iséria e desprezo. Daí, se isso não diz respeito a ninguém senão à Igreja de Deus, certamente ninguém ressuscitaria para a miséria e condenação. Isso mostra que o anjo está tratando da ressurreição final, a qual é comum a todos, e não admite exceções. Já expliquei por que ele cham a nossa atenção para o advento de Cristo. Visto que todas as coisas no mundo estarão constantemente em confusão, nossas mentes devem ne­cessariamente elevar-se ao alto e tomar posse da vitória que ob­servamos com nossos olhos, e compreendê-la com nossos senti­dos externos.

O s que dorm em n a te r ra e no pó; ou, seja, sempre que exis­tir terra e pó, não obstante ressuscitarão, significando a esperan­ça de um a ressurreição não fundamentada nas causas naturais, mas dependendo do inestimável poder de Deus, o qual excede a todos nossos sentidos. Daí, embora os eleitos e igualmente os ímpios serem reduzidos à terra e ao pó, isso de form a alguma constitui um obstáculo para Deus os fazer vir novamente à exis­tência. Ele usa a expressão terra e pó. Em meu raciocínio, HD1K,

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65 s EXPOSIÇÃO [12.3]

admeth, ‘da terra’, é o gênero; e IDl?, gnepher, ‘pó ’, é a espécie, ou, seja: em bora não passem de cadáveres putrefatos, contudo serão reduzidos a pó, o qual é constituído por diminutas partícu­las de terra. Deus, pois, é vestido com poder suficiente para cha­mar os mortos à novidade de vida. Esta passagem é digna de especial nota, porque os profetas não contêm algum testemunho mais claro do que este relativo à ressurreição final, particular­mente quando o anjo distintamente assevera a ressurreição futura igualmente de justos e injustos. A eternidade é aqui oposta às misérias temporais a que ora estamos sujeitos. Aqui podemos notar a admoestação de Paulo, que aquelas aflições momentâne­as pelas quais Deus nos prova não podem comparar-se com aquela eterna glória que jam ais cessará [Rm 8.18]. Portanto, esta é a razão por que o anjo tão claramente expressa que a vida eterna está aguardando os eleitos, e a desgraça e condenação eternas serão a sorte dos ímpios. Em seguida ele acrescenta:

3 E os q u e fo rem pruden tes b rilh a rão 3 Ei prudentes fulgebunt quasi fulgor ex -com o esplendor do firm am ento; e os que pansionis,"" et qui justifican t m uitos,1,2a m uitos justificarem , com o as estrelas sicut stellæ in seculum et seculum , id est.sem pre e eternam ente. in perpetuum.

A palavra ‘prudente’ significa revestido com intelecto. Al­guns a tomam transitivamente, e nesta passagem sua opinião pro­vavelmente seja correta, porque o ofício de justificar logo será designado aos prudentes. Mas o prim eiro sentido se adequa me­lhor ao capítulo 11, e no versículo 10 ele será expresso em ter­mos absolutos. Daí significar os que são dotados com inteligên­cia. O anjo aqui confirm a o que acabei de expressar concernente à ressurreição final, e mostra como desfrutaremos de seus frutos, porque a glória eterna está estabelecida para nós no céu. Não devemos queixar-nos de sermos tratados injustamente, sempre que parecermos sofrer abruptamente nas mãos de Deus, porque

1,1 Dos céus. significando o firmamento.195 Isto é. os que justificaram a muitos.

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[12.3] DANIEL

devemos viver satisfeitos com a glória celestial e com perpétua existência daquela vida que nos foi prometida. Ele então diz os m estres, ou aqueles que excelem em entendimento, b rilh a rão com o a luz do céu. Se o termo ‘mestres’ for preferível, então há aqui uma figura de linguagem, um a parte sendo expressa pelo todo, e portanto eu sigo a explicação usual. Ele aplica a frase “dotado com entendimento” aos que não se apartam do verdadei­ro e puro conhecimento de Deus, como a seguir será explicado mais plenamente. Pois o anjo contrasta o profano que soberba e desdenhosamente se enfurece contra Deus e contra os fiéis cuja sabedoria é submeter-se a Deus e ao culto que lhe pertence com a mais pura afeição de suas mentes. Diremos mais sobre este tema amanhã. Agora, porém, ele diz que os que mantinha sincera pie­dade seriam como a luz do firmamento', ou, seja, serão herdeiros do reino do céu, onde desfrutarão daquela glória que excede a todo o esplendor do mundo. Sem dúvida, o anjo aqui usa figuras para explicar o que é incompreensível, significando que nada pode ser encontrado no mundo que corresponda à glória do povo eleito.

E os que ju stifica rem a m uitos serão com o as estrelas, diz ele. Ele repete a mesma coisa em outros termos, e agora fala de estrelas, tendo a princípio usado a frase o b rilho do firm am en to no mesmo sentido; e em vez de “os que são dotados com enten­dim ento” , ele diz: os que a m uitos justificarem . Sem dúvida, o anjo aqui denota especialmente os mestres da verdade, porém em minha opinião ele abarca também todos os pios adoradores de Deus. Nenhum dos filhos de Deus deve confinar sua atenção par­ticularmente em si, mas, o quanto possível, cada um deve inte- ressar-se no bem-estar de seus irmãos. Deus depositou o ensino de sua salvação em nós, não com o propósito de o guardarmos em nosso íntimo, mas para que apontemos o caminho da salva­ção a todo gênero humano. Portanto, este é o dever com um dos filhos de Deus - promover a salvação de seus irmãos. Por esta palavra, ‘justificar’, o anjo pretende não que esteja no poder de

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65a EXPOSIÇÃO [12.3]

um homem justificar outro, mas a propriedade de Deus é aqui transferida para seus ministros. Entrementes, tanto somos clara­mente justificados por qualquer ensino que produza fé dentro de nossa esfera, quanto somos justificados pela fé que procede do ensino. Por que nossa justificação é sempre atribuída à fé? Por­que nossa fé nos conduz a Cristo em quem está a com pleta per­feição da justificação, e assim nossa justificação pode ser atribu­ída igualmente à fé ensinada e à doutrina que a ensina. E os que põem diante de nós este ensino são os ministros de nossa justifi­cação. A afirmação do anjo, em outros termos, é esta: Os filhos de Deus, que se devotam inteiramente a Deus e são governados pelo espírito de prudência, apontam o caminho da vida a outros, não só serão eles mesmos salvos, mas possuirão incomensurável glória muito além de qualquer coisa que exista neste mundo. Esta é a explicação completa. Daí deduzirmos que a natureza da ver­dadeira prudência consiste em nos submetermos a Deus como simples alunos, e em manifestarmos a qualidade adicional de promover cuidadosamente a salvação de nossos irmãos. O efeito desse nosso labor deve aumentar nossa coragem e espírito de jú ­bilo. Pois quão grande é a honra conferida a nós por nosso Pai celestial, quando ele quer que sejamos ministros de sua justiça! Como diz Tiago: “Irmãos, se algum dentre vós se tem desviado da verdade, e alguém o converter, saiba que aquele que fizer con­verter um pecador de seu caminho errado, salvará da morte uma alma e cobrirá uma multidão de pecados” [Tg 5.19, 20]. Tiago nos cham a de preservadores, justam ente como o anjo nos chama de justificadores; nem o anjo nem o apóstolo deseja detrair algo da glória de Deus, mas com esse modo de falar o Espírito nos representa como ministros da justificação e da salvação, quando nos unimos nos mesmos laços a todos quantos necessitam de nossa assistência e esforços. Vamos em frente:

4 Tu, porém , ó Daniel, encerra as pala- 4 E t tu D aniel, claude, vel, obsera verba, vras e se la o livro, até o tem po do fim; sennones, e t obsigna librum ad tem pus

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[12.4] DANIEL

m uitos correrão de um a parte para outra, finis; d iscurrent imilti, e t augeb itu r sci- e o conhecim ento se m ultiplicará. entia.

Já explicamos "o tempo do fim” como sendo um período pre­viamente fixado por Deus e estabelecido por seu próprio conse­lho. A palavra seguinte indica seguir e correr de um lado para o outro, mas não necessariamente em um mal sentido, enquanto significa também investigar. Os intérpretes explicam a intenção do anjo como se muitos fossem indignos de receber esta profecia de Daniel; e daí ter ela que ser encerrada e só enigmaticamente entregue a uns poucos, porque raramente um em cem atenderia ao que ele tinha declarado. Creio que o Espírito Santo tem uma intenção diferente aqui. O conselho do anjo é este: Não há razão por que esta profecia viesse causar desesperança e desânimo, só porque poucos a receberiam. Embora ela fosse universalmente desprezada e ridicularizada, não obstante fo i encerrada como um precioso tesouro. Isaías tem uma passagem quase similar [8.16]: Encerra minha lei, sela o testemunho entre meus discípu­los. O espírito de Isaías seria quebrantado quando percebesse que ele era um objeto da irrisão universal, os oráculos sacros de Deus tripudiados; e assim ele quase perdeu toda coragem e seu ofício de mestre se declinou. Deus, porém, lhe oferece conforto: Encer­ra, diz ele, minha lei entre meus discípulos e não atentes para estirpe profana; embora todos desprezem teu ensino, não presu­mas que tua voz mereça ser ridicularizada; encerra-a, encerra-a entre meus discípulos, diz ele; quão poucos são aqueles que po­dem abraçar teu ensino; não obstante, que ele permaneça sagrado e estabelecido nos corações dos santos. Em seguida o profeta diz: Eis meus filhos comigo. Aqui ele exulta em seu contenta­mento com bem poucos, e assim triunfa sobre os ímpios e a mul­tidão insolente. E assim no tempo atual, no papado e por todo o mundo, a impiedade prevalece tão extensamente que raramente há pelo menos um único canto em que a maioria concorda com a genuína obediência a Deus. Como Deus vislumbrou que bem

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65a EXPOSIÇÃO [12.4]

poucos abraçariam esta profecia com a devida reverência, o anjo desejou animar o profeta para que ele não se sentisse exausto e avaliasse esta profecia como de pouco valor, em conseqüência de seu fracasso em comandar o aplauso do mundo inteiro.

Então, en ce rra o livro! Enfim, o que a frase implica? Não significa ocultá-lo de todos os homens, mas satisfazer o profeta quando viu tão poucos reverentemente abraçando o ensino tão claramente posto pelo anjo diante de seus olhos. Esta não é pro­priamente um a ordem; o anjo simplesmente diz a Daniel que ocul­tasse ou selasse este livro e estas palavras, propiciando-lhe ao mesmo tempo muita consolação. Se todos os homens despreza­rem tua doutrina, e rejeitarem o que puseste diante deles - se a maioria a encarar desdenhosamente, encerra-o e sela-o, não tra­tando-o como algo sem valor, mas preservando-o como um tesou­ro. Deposito-o contigo, coloca-o entre meus discípulos. ’Hi, D ani­el; aqui o nome do profeta é mencionado. Se pensas estar sozinho, mais tarde companheiros te serão acrescentados, os quais tratarão esta profecia com real piedade. Encerra-o, pois, e sela-o, a té o tem po do fim; pois Deus provará pelos próprios fatos que não falou em vão, e a experiência me mostrará ter sido enviado por ele, como cada ocorrência foi previamente predita. Avancemos mais:

M uitos investigarão , e o conhecim ento se m ultip licará . Alguns escritores tomam a segunda sentença em um sentido con­trário, como se muitos espíritos errantes corressem de um lado para o outro com vagas especulações e fugindo da verdade. Mas isso é forçado demais. Não hesito em presumir que o anjo está prometendo a chegada de um período quando Deus juntaria m ui­tos discípulos em torno de si, em bora no início fossem bem pou­cos e insignificantes. M uitos, pois, investigarão', ou, seja, ainda que sejam mui imprudentes e displicentes, enquanto se gabam de ser o povo de Deus, contudo Deus congregaria para si um a gran­de multidão de um quadrante a outro. Pequeno e insignificante deveras é o aparente número dos fiéis que se preocupam com a

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[12.4] DANIEL

verdade de Deus e que mostram alguma solicitude em aprendê- la, mas que isso de forma alguma te impressione. Os filhos de Deus logo virão a ser multiplicados.

M uitos investigarão e o conhecim ento se m ultip licará . Esta profecia nem sempre é sepultada em obscuridade; o Senhor por fim levará muitos a abraçarem-na para sua própria salvação. Este evento realmente se concretizou. Antes da vinda de Cristo esta doutrina não foi valorizada segundo seu real valor. A extrema ignorância e rudeza do povo se fizeram notórias, enquanto sua religião era quase subvertida, até que Deus, por fim, multiplicou sua Igreja. E no tempo presente qualquer um que criteriosamente considerar esta predição experimentará sua utilidade. Isso difi­cilmente poderá ser verbalmente expresso; porque, a menos que esta profecia fosse preservada e depositada como um tesouro ines­timável, muito de nossa fé já teria desaparecido. Esta assistência divina nos propicia resistência e nos capacita a vencer todos os ataques do mundo e do diabo.

ORAÇÃOD eus Todo-P oderoso. um a vez que j á n o s a ch a m o s en g a jados em ba ta lh a a o longo de todo o curso d e n o ssa vida, e n o ssa fo r ç a é p a ss íve l d e queda d e vária s m aneiras, fa z co m que se ja m o s su s ten ta ­do s p o r teu p o d e r e assim p o ssa m o s p e rse v e ra r a té o f im . Q ue ja m a is no s s in ta m o s cansados, m a s aprendam os a v en cer o m undo in te iro e a v isu a liza r aq u e la fe l iz e tern idade p a ra a q u a l no s acenas. Q ue j a ­m a is hesitem os en q u a n to Cristo, teu F ilho, lu ta p o r nós, em cu ja m ão e p o d e r se en co n tra no ssa vitó ria ; e que se ja m o s ad m itid o s naquela a lia n ça co m ele n a conqu is ta que nos tens proporc ionado a té que, p o r fim , nos reunam os no ú ltim o d ia no desfru to d a q u e le tr iun fo parao q u a l fo s te an tes d e nós. A m ém .

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66a ̂xposição

5 E ntão eu , D aniel, o lhei, e eis que esta­vam e m pé outros dois, um deste lado da m argem do rio , e o outro, do outro lado d a m argem do rio.6 E um deles disse ao hom em vestido de linho, o qual e stava sobre as águas do rio: Q uando será o fim d essas m aravilhas?

7 E ouvi o hom em vestido de linho, o qual estava sobre as águas do rio, quando le ­vantou sua m ão direita e sua mão esquer­da para o céu, e jurou por aquele que vive para sem pre, que seria por um tem po, tem­pos e m etade de um tem po; e quando ele tiver terminado de difundir o poder do povo santo, todas essas coisas serão cumpridas.

5 E t aspexi ego D aniel, e t e cce duo alii stantes, unus hac ad ripam flum inis, et unus, id est, alter, illac ad ripam flum i- nis.is”6 E ld ix i ta d v im m q u i indutus eras lineis vestibus subaudiendum est, qui erai su­pra aquas flum inis,w Q uousque finis m i- rabilium ?7 Et audivi virum indutum lineis, qui erat su p ra aquas fluv ii, e t su s tu lit dex tram suam , e t sinistram suam versus c a lo s , et ju rav it per viventem in s te rn u m , quod ad tem pus p rs f ix u m , têm p o ra praefixa, et d im idium ; e t ut consum pserint, vel, com - pleverint, dispersionem , vel contriiionem , m anus popuü sancti, com plebuntur om ­nia h sc .

Aqui Daniel relata sua visão de outros anjos em pé em cada margem do rio. Sua alusão é ao Tigre que previamente m encio­nara, segundo a visão lhe fora apresentada. D iz ele: U m p e rg u n ­tou ao o u tro : Q u an d o será o fim ? O que recebeu a pergunta jurou com as mãos erguidas pada o céu, pelo Deus vivo, que nenhuma predição fora proferida em vão, visto que a verdade se manifestaria em seu próprio período, e os homens deviam espe­rar por um tem po, tem pos e m etade de u m tem po. Esse é o sumário da passagem. Ao dizer eis, ele cham a nossa atenção para

1,3 Isto é, um de um lado e o outro do lado oposto. Isto é . de pé acima da margem.

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[12.5-7] DANIEL

a infalibilidade da visão. A menos que ele atentasse e aplicasse sua mente com toda seriedade a esses mistérios, sua narrativa teria fracasso em produzir confiança. Mas, como sua mente esta­va plenamente calma, e nutria o desejo de receber a instrução com unicada por Deus através do anjo, nem a mais leve dúvida poderia ser lançada ou impedir que ele nos entregasse fielmente o que recebera. Ele fala de anjos como se fossem homens pela razão previamente assinalada. Não implica que fossem realmen­te homens, porém usa essa expressão em decorrência de sua apa­rência externa, pois como tinham um rosto humano, assim foram denominados de homens. Não asseguro que seus corpos fossem meramente imaginários, nem direi que Daniel viu apenas formas e figuras humanas espectrais, porque Deus poderia ter vestidos seus anjos de corpos reais por algum tempo, uma vez que ele se manifestou em carne [ITm 3.16]. M as isto não diz respeito aos anjos, os quais só receberam um corpo temporário enquanto cum­priam os deveres de seu ofício. Não há dúvida quanto a esta asse­veração - o título ‘hom ens’ não pode pertencer propriamente aos anjos, mas se adequa muito bem à forma ou semelhança humana que às vezes usavam.

Não surpreende depararmo-nos com um anjo questionando outro. Quando Paulo louva o mistério da vocação dos gentios, o qual esteve oculto das eras precedentes, ele acrescenta que o mesmo foi objeto do espanto dos anjos, como se jam ais esperas­sem por ele, posto que ele ainda não lhes fora revelado [Ef 3.10], Tão maravilhosamente Deus operou em sua Igreja, que causou admiração entre os anjos celestiais, deixando-lhes muitas coisas desconhecidas, como Cristo testifica acerca do último dia [Mt 24.36], Eis a razão por que o anjo interroga: Quando será o fim dessas maravilhas? Deus, sem dúvida, aqui insistiu com o anjo para inquirir quanto ao fato oculto em obscuridade, com o propó­sito de despertar nossa atenção. Deveras absurdo nos seria deixar que tais coisas passassem sem prestarmos-lhes atenção, quando

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66a EXPOSIÇÃO [12.5-7]

os próprios anjos demostram tal ansiedade por suas perguntas, enquanto percebem indícios do poder secreto de Deus. A menos que sejamos extremamente estúpidos, essa dúvida do anjo deve­ria incitar-nos maior diligência e atenção. Essa é também a força da palavra m íÒ D , phlaoth, “coisas maravilhosas”; pois o anjo denom ina tudo quanto não entendia de maravilhoso. Se a com­paração for admissível, quão grande seria nossa ingratidão não pondo toda nossa atenção em considerar esses mistérios que os anjos são compelidos a confessar estarem os mesmos além de sua compreensão! O anjo, como se sentisse atônito, denomina essas coisas de ‘m aravilhosas’, as quais estiveram ocultas não só das mentes humanas, mas também dele mesmo e de seus compa­nheiros. O o u tro , po rém , responde. Donde existir algum a dife­rença entre os anjos, ainda que não perpétua. Não se deve admitir aqui a filosofia de Dionísio, o qual especula tão astuciosamente, ou, melhor, tão profanamente, ao tratar da ordem angelical. Quanto a mim, simplesmente declaro a existência de alguma diferença, porquanto Deus designa vários deveres a determinados anjos e dispensa a cada um determinada medida de graça e revelação, segundo seu beneplácito. Sabemos que só há um mestre de ho­mens e anjos - o Filho de Deus, que é sua eterna sabedoria e verdade. Esta passagem pode estar apontando para Cristo, porém não posso fazer qualquer asseveração positiva. Contento-me com a mera afirmação já formulada. Ele diz que esses anjos estão vestidos de vestes de linho, implicando esplendor. Vestes de li­nho eram então de grande valor; daí um ornamento ou decoração ser aqui aplicada aos anjos, visto que Deus os distingue da estir­pe comum dos homens. Assim Daniel compreenderia mais facil­mente que tais pessoas não eram dentre os mortais oriundos da terra, mas anjos vestidos por Deus da forma humana por um cur­to período.

Diz ele: E ste an jo ergueu suas m ãos p a ra o céu. Estão equi­vocados os que consideram esta ação como um símbolo de po­

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[12.5-7] DANIEL

der, pois sem dúvida o profeta pretendia manifestar o método usual de juram ento. Costumeiramente erguia-se a mão direita, segundo o testemunho de numerosas passagens da Escritura. Er­gui minha mão para Deus [Gn 14.22], Aqui o anjo ergue ambas as mãos, desejando com este ato expressar a importância do tema. Assim erguer ambas as mãos, como se o juram ento fosse duplo, é m ais forte do que erguer a mão direita segundo o costume ordi­nário. Devemos considerar, pois, o uso de ambas as mãos como tendo o propósito de confirmar o juram ento, visto que o assunto era de grande importância.

E continua: p o r u m tem po, tem pos e m etade de um tem po.Já expressei minha objeção à opinião dos que crêem que o pro­pósito aqui é expressar um ano, dois anos e metade de um ano. Confesso que a passagem deve ser entendida como um a alusão à profanação do templo, a qual o profeta já havia discutido. A his­tória claramente nos assegura que o templo não seria purificado até que se completasse o terceiro ano e sete ou oito meses depois. E possível que essa explicação se adeqúe a sua própria passa­gem; mas, com referência à doutrina aqui enunciada, seu signifi­cado é muito simples: tempo significa um longo período; tem - pos, um período mais longo ainda; e meio significa o fim ou o período final. A soma total é esta: muitos anos devem passar an­tes de Deus cumprir o que seu profeta declarara. Portanto, tempo significa um longo período; tempos, esse período duplicado; como se ele dissesse: Enquanto os filhos de Deus são mantidos em sus­penso por tanto tempo sem obter uma resposta a suas perguntas, o tempo será prolongado; sim, inclusive duplicado. Vemos, pois que um tempo não significa precisamente um ano, nem tempos significam dois anos, mas um período indefinido. Com respeito à metade de um tempo, isso é adicionado para o conforto dos santos, para evitar que desalentassem imaginando que a delonga era porque Deus não atenderia seu anseio. Assim descansam pa­cientemente até que esse ‘tempo’ e ‘tem pos’ passassem. Além

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66* EXPOSIÇÃO [12.5-7]

disso, o resultado é posto diante deles pelas palavras metade de um tempo , para impedi-los de cair em desespero pela excessiva exaustão. Admito a alusão a anos, mas as palavras não devem ser entendidas literalmente, mas metaforicamente, significando, como já afirmei, um período indefinido.

Em seguida ele acrescenta: E no té rm ino ou consumação d a d ispersão ou compunção d a m ão do povo de Deus, todas essas coisas se cum prirão : primeiro, o tempo deve passar; segundo, os tempos devem ser acrescidos; terceiro, a metade de tempo deve vir. Todas essas coisas chegariam a seu cumprimento, e quando fossem plenamente cumpridas, diz ele, então virá a compunção da mão do povo santo. O anjo novamente proclama como a Igre­ja de Deus seria oprimida por muitas calamidades; e assim a tota­lidade deste versículo contém um a exortação à paciência, com vistas a impedir que os fiéis caíssem totalmente em desespero e perder completamente seu alento, em decorrência de o mesmo enfrentar severas e múltiplas preocupações, não meramente por uns poucos meses, mas por uma duração muito extensa. Ele usa esta frase: a exaustão da mão do povo santo - caso o leitor queira ler assim - metaforicamente, significando que o povo santo seria privado da força, justamente como se suas mãos pendessem com­pletamente pelo cansaço. Qualquer agilidade que os homens pos­suam, ela se revela geralmente nas mãos, e estas foram dadas por Deus aos homens com um propósito especial de estenderem-se a todas as partes do corpo e para executarem as operações ordinárias do gênero humano. Esta metáfora é agora bem adequada, quando o povo se via tão mutilado ao ponto de ser privado de toda energia e vigor. Esta é uma ligeira visão do significado da sentença.

Se lermos ‘dispersão’, segundo a significação comum, ela se adequará muito bem, visto que a mão do povo santo seria disper­sada; ou, seja, a Igreja seria algo estranho no mundo, e seria dis­persa por toda parte dele. Isso se cumpriu continuamente desde aquele tempo até agora. Quão triste é a dispersão da Igreja em

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[12.8] OANIEL

nossos dias! N a verdade Deus a defende com seu poder, mas isso está além da expectativa humana. Pois de que form a o corpo da Igreja se nos apresenta agora? De que form a ela tem se m anifes­tado através de todas as eras? Seguramente, sempre se apresenta rasgada em pedaços e dispersa. D aí a predição do anjo não ser para proveito, se adotarmos a interpretação: a mão do povo santo seria dispersa; porém no fim ela seria próspera, como ele previa­mente anunciara ao tratar de sua ressurreição e salvação final. Vamos em frente:

8 E u ouvi. porém não eniendi. E ntão eu 8 E t ego audivi, e t non intellexi: e t dixi, d isse: O h. m eu Senhor, qual será o fim Dom ini m i, quod postrem um horum ?1“ dessas coisas?

Agora Daniel começa a formular perguntas em concordância com o exemplo do anjo. Primeiramente ele ouviu um anjo inqui­rindo do outro [anjo]; em seguida reuniu coragem e quis receber informação, e pergunta qual seria o fim ou resultado. D iz ele: Eu ouvi, po rém não entendi. Pelo verbo ‘ouvir’ ele testifica a au­sência de ignorância, de indolência ou de menosprezo. Muitos divergem sem qualquer percepção de um tema, em bora ele seja muito bem explicado, porquanto não atentam para ele. Aqui, po­rém, o profeta assevera que ouviu; significando que seria culpa de sua diligência se não entendia, porque estava desejoso de apren­der e tinha exercitado todas suas faculdades, como anteriormente sugerimos, e contudo confessa não haver entendido. Daniel não pretende confessar total obtusidade, porém restringe sua igno­rância ao tem a de sua interrogação. Do que Daniel era ignorante? Do resultado final. Ele não podia atentar para o significado des­sas predições, as quais lhe soavam extremamente obscuras, e isso dem andava sua plena e total compreensão. É muito evidente que Deus nunca enuncia sua palavra sem esperar fruto; como diz Isa- ias: “Não falei em segredo, nem em algum lugar escuro da terra;

Isto é. que fim essas coisas terão?

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66* EXPOSIÇÃO [12.9)

não disse à descendência de Jacó: Buscai-me em vão” [Is 45.19]. Deus não queria deixar seu profeta nessa perplexidade de ouvir sem entender, porém estamos cientes dos graus distintos de pro­ficiência na escola de Deus. Além disso, a revelação suficiente era notoriamente conferida aos profetas para o cumprimento de seu ofício, e contudo nenhum deles nunca entendeu perfeitam en­te as predições que enunciavam. Também sabemos o que Pedro diz: “ Aos quais foi revelado que, não para si mesmos, mas para nós, eles ministravam essas coisas que agora vos foram anuncia­das por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pre­garam o evangelho” [IPe 1.12]. Essas coisas de form a alguma foram inúteis para sua própria época, mas quando nossa época é comparada com a deles, certamente a instrução e disciplina dos profetas nos são mais úteis e produzem frutos m ais ricos e mais sazonados em nossa época do que na deles. Não nos deve surpre­ender, pois, que Daniel confesse não entender, se restringirmos as palavras a este caso único. Vamos em frente:

9 E ele disse: Segue leu cam inho, D aniel; 9 E t d ix il, Vade D aniel, qu ia clausi sunt, pois as palavras estão encerradas e sela- e t obsignati serm ones ad tem pus fin is ,196 das até o tem po do fim.

Ainda que Daniel não fosse induzido por alguma tola curiosi­dade a inquirir do anjo o resultado desses acontecimentos mara­vilhosos, todavia seu pedido não é atendido. Deus queria que algumas de suas predições fossem parcialmente entendidas e o resto permanecesse velado até que chegasse o período pleno da revelação completa. Eis a razão por que o anjo não respondeu a Daniel. De fato o desejo era pio, como previamente já afirm a­mos, não contendo nada de ilícito; Deus, porém, sabendo o que lhe era bom, não atende seu pedido. Ele é dissuadido pelo anjo: p o rque as p a lav ras estavam en ce rrad as e seiadas. O anjo usa esta expressão em um sentido diferente do anterior. Pois ele or­

Isto é, o tempo prefixado, como o explicamos anteriormente.

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[12.10] DANIEL

denou que Daniel encerrasse e selasse as palavras como precio­sos tesouros, visto que seriam estimadas em nada por muitos in­crédulos e por quase todo o povo. Aqui, pois, ele diz: as palavras foram encerradas e seladas, visto que não havia um a ocasião oportuna para revelá-las. É como se ele dissesse: nada foi predito vã ou precipitadamente, mas o pleno esplendor da luz ainda não foi projetado sobre a predição: daí term os que esperar até que a própria verdade seja provada pelo acontecimento, e assim a divi­na proclamação do anjo se faça manifesta. Esse é o sumário. Ele, pois, diz: até o tem po do fim. É possível que alguém objete: então, com que propósito esta predição foi enunciada? Pois se Daniel pessoalmente, sendo instruído pelo anjo, não pôde com ­preender plenamente sua própria mensagem, o que dizer do res­tante dos fiéis, ainda que versados nesses estudos proféticos, não se sentiriam mergulhados num labirinto aqui? A resposta está em mãos: até o tempo do fim \ e devemos também recordar que nem Daniel e nem o restante dos Fiéis estava privado de todos os be­nefícios desta profecia, porque Deus lhes explicara tudo quanto lhes era suficiente para as necessidades de sua própria época. Temos que passar por alguns pontos ligeiramente com vistas a encerrar a preleção de hoje. Segue:

10 M uitos serão purificados e em branque- 10 M undabuntur, e t dealbabuntur, e t fun- c idos e provados; m as os ím pios continu- dentur m ulti, e t im pie se gerent im pii; et a r lo agindo im piam ente; e nenhum d os non in telügent om nes im pii, e t prudentes ím pios entenderá; os sábios, porém , en- inteJligent. tenderão.

O anjo novamente menciona as perseguições que estavam próximas com o propósito de armar os fiéis para os conflitos já à vista. Sabemos de outras fontes quão tenras e frágeis são nossas mentes naturalmente, pois tão logo surja alguma causa para te­mores, antes mesmo de soprar os ventos, desmaiamos em desa­lento ante o terror. Portanto, como nossa natural imbecilidade é por demais arraigada, necessariamente demandamos muitos esti­mulantes à paciência e se nos demanda contender com ardor a

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66* EXPOSIÇÃO [12.10]

jam ais nos entregarmos a qualquer tentação. Eis a razão por que o anjo anuncia a necessidade dessas múltiplas purificações: lim- pá-los, como o trigo da palha; embranquecê-los, como a roupa bem alvejada; e fundi-los, como o metal que é separado da escó­ria. Em primeiro lugar, como já expliquei previamente, ele ad­moesta a Daniel e a todos os santos quanto ao estado futuro da Igreja, a fim de levá-los a se prepararem e a se cingirem para a batalha, bem como a reunir sua invencível resistência, visto que a condição de vida posta ante seus olhos é a de forçar passagem pelo meio das dificuldades. Este é um ponto. O anjo novamente mostra a utilidade prática desse tipo de vida, o que de outra for­ma poderia parecer amarga demais. Naturalmente recusamos a cruz só porque sentimos ser a mesma contrária a nossa disposi­ção, enquanto Deus mostra aos santos que nada pode ser-lhes mais proveitoso do que um a variedade de aflições. Este é o se­gundo ponto. Mas as aflições, por si sós, poderiam consumir- nos, e daí sermos lançados num a fomalha. Como, pois, podería­mos esperar que tais sofrimentos promoveriam nossa salvação, a não ser que Deus mudasse sua natureza de alguma m aneira ma­ravilhosa, como se sua tendência natural fosse efetuar nossa des­truição? Mas enquanto somos derretidos e embranquecidos e pu­rificados, percebemos como Deus leva em conta nosso bem-es- tar, pressionando-nos com sua cruz e fazendo-nos submeter à ad­versidade. Agora, em terceiro lugar, o anjo mostra a insuficiência de um único ato de purificação e nossa necessidade de muitos outros. Este é o objetivo desse numeroso acúmulo de palavras: serão purificados, embranquecidos e derretidos ou descarrega­dos. Ele poderia ter abrangido toda a idéia numa única palavra; mas, como ao longo de toda nossa vida Deus nunca cessa de testar-nos de várias maneiras, o anjo acumula estas três palavras para mostrar aos fiéis sua necessidade de purificação contínua enquanto viverem vestidos de carne; justam ente como as vestes que são diariamente usadas necessitam de lavagem contínua. Por

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[12.10] DANIEL

mais alvejada seja uma camisa, ela se torna imediatamente suja quando usada apenas por um dia; demandando constante lava­gem para a restauração de sua pureza original. Assim somos pos­tos em contato com as máculas do pecado; e enquanto formos peregrinos neste mundo, inevitavelmente nos tornamos sujeitos a constante contaminação. E como os fiéis também são infecta­dos com o contágio de numerosas iniqüidades, demandam puri­ficações diárias de diferentes maneiras. Devemos, pois, diligen­temente observar estes três processos distintos.

Em seguida o anjo acrescenta; Os ím pios ag irão im piam en­te , e ja m a is en tenderão algo; m as os p ru d en tes se rão sem pre do tados com inteligência. Aqui ele deseja fortificar os santos contra as pedras de tropeço em seu caminho, quando percebem os profanos desprezadores de Deus exultando em cada direção e desafiando a Deus em sua face. Quando os fiéis vêem o mundo tão saturado de ímpios, é como se eles se entregassem tão livre­mente à luxúria, como se não existisse Deus no céu. D aí serem eles [os santos] naturalmente dominados por graves tristezas e angústias. Para evitar que tal provação agite assim sua mente, o anjo anuncia que os ímpios se conduzirão impiamente; implican­do que não há razão por que tu, ó Daniel, ou os demais justos, dependam do exemplo de outros; Satanás astutamente porá dian­te de ti todos e quaisquer oráculos com o fim de arrastar-te ao desprezo de Deus e ao abismo de impiedade, a menos que sejas em extremo cauteloso; mas que a conduta dos ímpios não leve a ti e ao resto dos santos a tropeçarem. Seja qual for sua conduta, tu deves permanecer invencível.

Em seguida ele assinala a razão para a conduta deles: nada en tendem ; são perfeitamente cegos. Mas, qual é a fonte de tal cegueira? Em ser eles dominados por um senso réprobo. Se al­guém visse um cego cair, e imitasse a esse cego, tal pessoa seria justificada? Seguramente, sua cegueira seria a causa de o mesmo perecer tão miseravelmente; por que, pois, a outra pessoa se

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66a EXPOSIÇÃO [12.11, 12]

destruiria voluntariamente? Sempre que virmos o ímpio se preci­pitando furiosamente em sua destruição, enquanto Deus o admo­esta de que sua cegueira procede de Satanás, e que cure sua men­te réproba, não seríamos duplamente dementes se voluntariamente o seguíssemos? A causa, pois, desse ímpio comportamento por parte dos ímpios é adicionada com boa razão; isto é, nada enten­dem. Entrementes, os fiéis são lembrados do genuíno remédio, e o anjo acrescenta; M as os p ru d en tes en tenderão ; ou, seja, não permitirão que sejam envolvidos nos erros daqueles aquem vêem inteiramente devotados a sua própria destruição. Finalmente, o anjo nos aponta o verdadeiro remédio que obliterará Satanás de arrastar-nos para a impiedade, bem como os ímpios de infectar- nos com seus maus exemplos, se energicamente nos aplicarmos a seguir a doutrina celestial. Se, pois, sinceramente desejarmos ser instruídos por Deus e nos convertermos em genuínos discípu­los, a instrução que derivarmos dele nos arrebatará da destruição. Este é o verdadeiro sentido da passagem. Agora vamos em frente:

U E desde o tem po em que o sacrifício 11 E t a tem pore quo ablatum fuerit juge, d iário fo r tirado, e posta a abom inação nempe sacrificium, e t posita fuerit abo- desoladora, haverá mil duzentos e noventa m inatioobstupefac iens,l,, erunt d ies roil- djas le ducenti e t nonaginta.12 B em -aventurado o que espera e chega 12 B eatus qui experctaverit, e t attigerrit até m il trezentos e trin ta e c inco dias. usque ad dies m ille trecentos et triginta

quinque.

Em decorrência da obscuridade desta passagem, a mesma tem sido torcida de várias formas. No fim do capítulo 9 mostrei a impossibilidade de a mesma referir-se à profanação do templo que ocorreu sob a tirania de Antíoco; nessa ocasião, o anjo testi­ficou que a destruição do templo seria tão com pleta que não fica­ria lugar para a esperança de o mesmo ser reparado ou restaura­do. Então as circunstâncias do tempo nos convencem disto. Pois então ele disse: Cristo confirm ará a aliança com muitos por uma

1,7 Traduzimos a frase assim antes; alguns traduzem assim: “da desolação” . A pilavra significa “ser desolado” , m as o outro sentido se adequa m elhor aqui.

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[12.11, 12J DANIEL

semana, e fará cessar os sacrifícios e as abluções. Depois será acrescentada a abominação que causa perplexidade, e a deso­lação ou estupor, e então a morte destilará, diz ele, sobre aquele que ficar perplexo e aturdido. O anjo, pois, ali trata da devasta­ção perpétua do templo. Então nesta passagem, sem dúvida, ele trata do período após a destruição do templo; não poderia haver esperança de restauração, visto que a lei com todas suas cerimô­nias chegariam então a seu término. Com isto em vista, Cristo cita esta passagem em Mateus 24, onde admoesta seus ouvintes a diligentemente atendê-la. Aquele que lê entenda, diz ele. Já de­claramos que esta profecia é obscura, e por isso ela requer um grau muito elevado da mais estrita atenção. Em primeiro lugar, devemos reter este ponto: o tempo que o anjo agora trata começa na últim a destruição do templo. Aquela devastação aconteceu assim que o evangelho começou a ser promulgado. Deus, pois, tom ou seu templo desolado, porque ele fora fundado por algum tempo, e era um a mera sombra, até que os judeus violassem todo o pacto de forma tão completa, que nenhuma santidade permane­ceria no templo, na nação e na própria terra. Alguns restringem isso àqueles estandartes que Tibério erigiu no pináculo mais alto do templo; e outros, à estátua de Calígula; quanto a mim, porém, já declarei meu ponto de vista sobre essas opiniões, de que são forçadas demais. Não hesito em ligar esta linguagem do anjo àque­la profanação do templo que ocorreu depois da manifestação de Cristo, quando os sacrifícios cessaram e as sombras da lei foram abolidas. Portanto, desde o tempo em que o sacrifício realmente cessou de ser oferecido. Esta é um a referência ao período em que Cristo, com seu advento, aboliria as sombras da lei, fazendo as­sim toda a oferenda de sacrifícios a Deus totalmente sem valor. Portanto, desde o tempo. Em seguida, desde o tempo em que a assustadora abominação fo r estabelecida. A ira divina seguiu à profanação do templo. Os judeus jam ais anteciparam a cessação final de suas cerimônias, e sempre se vangloriaram em seu pecu-

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66* EXPOSIÇÃO {12.11, 12)

liar culto externo, e a não ser que Deus demonstrasse publica­mente, diante de seus olhos, eles jam ais teriam renunciado a seus sacrifícios e ritos como meras representações umbrosas. D aí Je­rusalém e seu templo serem expostos à vingança dos gentios. Portanto, esse era o estabelecimento dessa abominação assusta­dora; era um claro testemunho da ira de Deus que exorta os ju ­deus em sua confusão a não mais se jactarem de seu templo e sua santidade.

Portanto, desde aquele período haveria 1290 dias. Esses dias perfazem três anos e meio. Não hesito em entender o anjo falando em termos metafóricos. Visto que ele anteriormente ex­pressara um ano, ou dois anos, e a metade de um ano, por uma longa duração de tempo e um feliz resultado, então agora expres­sa 1290 dias. E por qual razão? Para mostrar-nos o que deve acontecer quando as ansiedades e trabalhos nos oprimirem. Se um homem caísse doente, ele não diria: Eis que já passou um mês, porém tenho diante de mim ainda um ano - ele não dirá: Eis que já passaram três dias, porém agora me enfraqueço miseravel­mente por trinta ou sessenta dias. O anjo, pois, propositadamente põe dias em lugar de anos, implicando isto: em bora esse tempo pudesse parecer incomensuravelmente prolongado, e pudesse as- sustar-nos com sua duração, e prostrar completamente os ânimos dos santos, todavia chegarão ao fim. O número de dias, pois, é de 1290, contudo não há razão para os filhos de Deus se desespera­rem em conseqüência desse número, porque deverão sempre lem­brar desse princípio: se todas as aflições nos aguardam por um tempo e tempos, a metade de um tempo virá em seguida.

Então acrescenta: Feliz é aquele que tiver esperado e su­portado até os 1335 dias. Não me disponho a dedicar-me a cál­culos numéricos, e os que explicam esta passagem usando de extrem a sutileza apenas se divertem com suas próprias especula­ções e prejudicam a autoridade da profecia. Alguns pensam que os dias devem ser tomados por anos, e fazem com que o número

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[12.13] DANIEL

1260 sejam anos. O tempo que passou desde esta profecia até o advento de Cristo foi cerca de 600 anos. Desde esse advento, já passaram 2000 anos, e crêem que este é o período assinalada até o fim do mundo, visto que a lei também vigorou cerca de 2000 anos desde a data de sua promulgação até seu cumprimento no advento de Cristo. Daí se fixam nesse sentido. M as estão com ­pletamente errados ao separar os 1290 dias dos 1335, pois clara­mente se referem ao mesmo período, com ligeira exceção. É como se o anjo tivesse dito: embora metade do tempo fosse prorroga­da, todavia os fiéis devem constantemente persistir na esperança do livramento. Pois ele acrescenta cerca de dois meses, ou um mês e meio, ou mais ou menos isso. Por metade de um tempo, já dissemos, o resultado foi realçado, como Cristo nos informa em Mateus 24.22. A menos que esses dias fossem abreviados, ne­nhuma carne seria salva. A referência aqui é claramente àquela abreviação do tempo por causa da Igreja. Mas o anjo então acres­centa quarenta e cinco dias, os quais perfazem um mês e meio, implicando que Deus protelará o livramento de sua Igreja além de seis meses, e contudo é preciso ser forte e de bom ânimo e perseverarem vigilância. Deus por fim não nos d esapon ta rá-e le nos socorrerá em todos nossos ais e nos receberá em seu bendito descanso. Daí, a próxim a sentença da profecia é esta:

13 T u, porém , segue teu cam inho até o 13 E t tu vade ad finem , e t quiesces, e t sta- fira; porque descansarás e te levantarás bis in sorte tua ad finem dierum . em Lua sorte [herança] no fim dos dias.

Aqui o anjo reitera o que já havia dito antes, a saber: o tempo completo da luz perfeita ainda não chegara, porque Deus deseja­va conservar a mente de seu povo em suspenso até a manifesta­ção de Cristo. O anjo, pois, despede o profeta, e ao mandá-lo em bora diz: Contenta-te com tua sorte [herança], porque Deus deseja protelar a manifestação completa desta profecia para ou­tro tempo, o qual ele mesmo sabe ser o tempo oportuno. Em se­guida acrescenta: E tu descansarás e te levan tarás. Outros o

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66* EXPOSIÇÃO [12.13]

traduzem assim: descansa e levanta-te; mas não me parece que o anjo esteja ordenando o que deseja fosse feito, mas anuncia acon­tecimentos futuros, como se quisesse dizer: Tu descansarás, ou, seja, tu morrerás e então te levantarás; ou, seja, tua morte não será destruição completa. Pois Deus fará com que te levantes em tua sorte [herança] com os demais eleitos; e que também, no final dos dias, em tua sorte; isto é, depois que Deus tiver provado suficientemente a paciência de seu povo, e por longas e numero­sas lutas, sim, lutas infindas, tem humilhado sua Igreja e a purifi­cado, enquanto não chegar o fim. Naquele período final tu te le­vantarás em tua própria herança, em bora um tempo de repouso deva necessariamente intervir.

ORAÇÃOD eus Todo-P oderoso, v is to que não no s p ro p u se s te nenhum outro f im a lém daquele de constan te luta, d uran te toda nossa vida, e nos subm eteste a m u itas preocupações a té que a lcançássem os o a lvo desta co rr id a tem poral, o ra m o s p a ra que ja m a is n o s s in ta m o s d es fa lec i­dos. F az-nos sem pre a rm a d o s e equ ipados p a ra a batalha, e se jam qua is fo r e m a s p ro va çõ es co m que nos proves, que ja m a is se jam os ach a d o s defic ien tes. Q ue a sp irem os sem pre o céu na co m panh ia da s a lm a s ju s ta s , e no s esforcem os com todo n o sso em p en h o p o r a lc a n ­ç a r aq u e le ben d ito desca n so q u e es tá p rep a ra d o p a ra n ó s n o céu, em J e su s C risto nosso Senhor. A m ém .

JZ o iw aèo safa <̂È íeusí

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ín d ic e de referências 9(9ficas

G ênesis 2 R eis

6 .3 (2 4 3 ) 6 .1 7 (3 1 4 )

9 .6 (2 4 ) 2 0 .5 (2 4 4 )

1 4 .2 2 (4 5 2 )4 9 .1 0 ( 2 4 5 ) 2 C rôn icas

14.11 (3 0 1 )

Ê xodo2 5 .4 0 ( 2 6 9 ) E sdras3 4 .6 ( 1 8 8 ) 1.1 (2 3 6 )

Lev ítico N eem ias11 .4 5 (2 0 8 ) 4 .1 7 (2 6 1 )2 5 .8 (2 3 4 )2 6 (1 9 4 ) Sa lm os2 6 .2 7 . 2 8 (2 0 4 ) 9 .7 (3 8 )

13.1 (3 8 )D euteronôm io 3 2 .6 (2 1 7 )1 0 .1 2 (1 7 5 ) • 3 4 .7 (3 1 4 )2 8 (1 9 4 ) j 3 4 .8 (3 0 0 )

3 6 .6 ( 1 7 4 )Ju izes 6 5 .2 (2 2 0 )8 .3 (1 3 3 ) 6 8 .8 (3 9 )

7 3 .1 (3 8 4 )1 Sa m u e l 7 4 .9 (3 0 2 )14 .6 (3 0 1 ) 7 6 .2 (4 3 )

91 .11 (3 1 4 )

2 S a m u e l 9 5 - 1 0 0 (4 0 )

1 .2 6 (4 1 3 ) 1 0 2 .2 2 (9 1 )

5 .2 (2 4 4 ) 1 0 4 .3 2 (3 0 7 )

110.1 (5 4 )1 1 9 .1 0 3 (1 7 5 )1 1 9 .1 0 5 (1 7 9 )

1 1 9 .2 4 (1 7 5 )

1 1 9 .7 2 (1 7 5 )1 2 9 .1 -3 (4 3 8 ) 1 3 0 .4 (1 8 8 ) 1 3 2 .1 4 ( 1 6 7 .2 7 1 ,3 4 9 )

1 4 5 .1 9 (2 3 0 , 2 9 7 )

Isa íasI .6 ( 1 9 9 )

8 .1 6 ( 4 4 6 )9 .6 ( 1 2 6 )9 .1 3 ( 2 0 4 )

1 0 .1 2 (4 0 7 )

1 0 .2 2 (3 8 8 )

I I .1 (8 9 )1 3 .1 7 (1 6 )

4 3 .3 (8 6 )4 5 .1 9 ( 4 5 5 ) 5 2 .1 0 (1 1 4 ) 5 2 .1 2 ( 1 1 4 , 2 7 7 )

6 0 .6 ( 1 1 4 )

6 0 .1 2 ( 9 1 )

Jerem ias1 .1 0 (1 8 2 )

25 .1 1 (2 2 8 , 2 3 0 )

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DANIEL

2 5 .2 9 (4 0 7 )

3 J .3 1 , 3 2 (2 6 6 )

L a m en ta çõ es 3 .3 8 (2 0 4 )

E ze q u ie l 1 0 .1 8 (2 7 1 )11 .1 9 (2 6 6 )13 .9 (4 4 0 ) 1 4 .1 4 (1 6 4 , 2 2 4 )

D a n ie l7 .1 3 (1 3 2 ) 6 .1 0 ( 1 6 7 )

H a b a cu q u e2 .3 (2 7 6 )

A geu2 .9 (2 7 7 )3 .8 (1 4 0 )

Z a ca ria s1 .1 2 (2 3 6 )

M a ta q u ia s1.3 (4 2 7 )1 .1 2 (1 4 0 )4 .2 (4 3 )

IM a c a b e u s1 (3 9 7 )2.1 (3 9 4 )8, 1 4 ( 4 0 2 )

2 M a cabeus1 .5 7 (1 2 4 )

3.1 (3 7 7 )

4 .7 ( 1 2 1 ) 4 .1 9 -2 3 (3 7 7 )

4 .2 7 (3 7 8 ) 4 .3 5 -3 7 (3 7 8 )

5 .2 (3 7 3 )5 .9 (3 7 8 )

6 .2 ( 1 2 4 )

M ateus6 .1 2 ( 2 2 5 )

10.5 (2 6 8 )11.11 (2 4 0 )

11 .13 (2 4 0 . 2 5 9 )17.21 (2 8 3 )

1 8 .2 0 (1 8 1 )2 3 .8 . 1 0 ( 5 4 )2 4 .3 (4 3 7 )2 4 .6 (8 2 )2 4 .2 2 (4 6 2 )

2 4 .3 6 (4 5 0 )

2 6 .5 3 ( 4 2 ,3 1 4 ) 2 8 .1 8 ( 5 2 , 5 4 )

M arcos13 .7 (8 2 )

L u ca s1 .1 9 (1 3 4 )1 .2 6 (1 3 4 )

1.77 (2 5 5 )7 .2 8 (2 4 0 )

11.4 (2 2 5 )

1 6 .1 6 (2 4 0 , 2 5 9 )18.1 (1 6 2 )18 .1 3 (2 1 9 )2 1 .9 (8 2 )

Jo ã o1 .1 4 (5 0 )

2 .2 0 (2 5 2 ) 10 .2 8 , 2 9 (4 3 6 )

14 .2 8 (5 0 )16 .7 (5 0 )

16 .3 3 (4 3 9 )

1 7 .1 9 (2 5 9 )1 9 .3 6 (9 0 )

A tos9 .7 (2 8 9 )

R o m a n o sI .5 (2 2 9 )

3 .4 ( 1 8 3 )3 .2 6 (1 8 3 )4 .11 (2 5 7 ) 4 .1 3 ( 6 1 )4 .2 5 (2 5 7 )

5 .1 9 (2 6 8 ) 6 .1 0 ( 5 0 )

8 .1 5 (2 5 6 )8 .2 3 , 2 4 (4 4 2 )

8 .2 8 ( 1 5 4 )

8 .2 9 (4 3 8 )I I .2 9 (2 1 7 )

1 2 .1 2 (1 6 2 )

1 C ortn tios 1 .9 (1 7 3 )

4 .1 3 ( 1 1 7 )8 .6 (3 0 7 )

10.11 (1 5 3 , 2 5 9 )1 0 .1 3 (1 7 3 . 3 9 9 )1 4 .2 5 (1 3 6 )

2 C orín tios1 .20 (2 5 8 ) 9 .7 ( 1 7 5 )

1 1 .1 4 ( 1 8 1 ,3 0 5 )

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ÍNDICE DE REFERÊNCIAS BÍBLICAS

Gálatas4 .3 (1 6 2 )4 .4 (4 9 , 2 5 9 )4 .6 (2 5 6 )

E fésios1.21 (5 2 )2 .7 (5 2 ) 3 .1 0 ( 1 2 6 , 4 5 0 )

4 .8 (3 9 )

F ilipenses2 .7 (4 9 , 5 0 , 5 2 )

C olossenses2 .9 (2 5 9 ) 3 .3 ( 4 4 1 )

1 T essa lon icenses

3 .3 (1 5 4 )5 .7 (1 6 2 )

2 Tessalon icenses

3 .3 (1 7 3 )

í T im óteo2 .4 (9 3 )3 .1 6 ( 1 3 3 ,4 5 0 )

H ebreus1.1 (2 4 0 , 2 5 9 )

1.2 (6 1 )I .3 (4 0 )8 .5 (2 6 9 )10.1 (2 5 8 )

I I . 6 (2 9 6 )12.1 (3 8 3 )

Tiago1 .6 ,7 ( 2 9 7 )

5 .1 9 , 2 0 (4 4 5 )

/ P edro1 .12 (4 5 5 ) 4 .1 7 ( 4 0 7 )

2 Pedro2 .1 (1 5 3 )

I Jo ã o3 .2 (4 0 )5 .1 4 (2 9 6 )

A p oca lip se1 3 .5 (8 1 )

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Jhidice de j)a(avras hebraicas

HTIDIK (4 7 ) T I N (1 3 0 )

X IX (1 6 9 ) *?3N (2 8 8 ) 'JN (3 3 6 )

H E IN (4 4 2 ) H3HK (1 6 7 )

'3 1 N (2 1 5 )

3□ (4 8 )17ÜD3 ( 12 1 ) ’m'3(158) n-na (173) 0 H 3 (2 8 6 )

5DJ (3 3 8 )

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DANIEL

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470

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Jlndice de autores sacros e profanos

S acrosA g o s tin h o , adv . P e la g ., (2 2 4 , 2 4 6 )

J e rô n im o (2 4 6 )O r íg e n e s (2 4 6 )T e r tu l ia n o ( 2 4 6 ,4 9 )

I r in e u (4 9 )L u te ro (1 4 1 )H ip ó lito (2 4 6 )N ic o la u d e L ir a (2 4 6 )A p o lin á r io (2 4 6 , 2 4 7 ) C e c o la m p a d iu s (2 4 7 )

E u sé b io (2 4 6 )M c ia n c th o n (2 4 8 , 2 4 9 )

C o n c il ia . (4 0 9 )

P rofanosO v íd io , T ra g é d ia (3 1 6 ) P o lib io , l ib . v. (3 4 0 ) T e re n c e , A n d r ia (1 9 3 ) C íc e ro , p ro F la c u s (4 0 4 )

P lu ta rc o (4 1 2 )

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DANIELDecfaração de João Cafvino:

A respeito de minha doutrina, ensinei fielmente e Deus me deu a graça de escrever. Fiz isso de modo mais fiel possível e nunca corrompi uma só passagem das Escrituras, nem consciente­mente as distorci. Quando fui tentado a requin­tes, resisti à tentação e sem pre estudei a simplici­dade. Nunca escrevi nada com ódio de alguém, m as sempre coloquei fielmente diante de mim o que julguei ser a glória de Deus.

Fides REFORMATA, vol. ÍV, n° 2. p. 155. julho - dezembro de 1999. citado e traduzido pelo

Rev, Hermisten Maia Pereira da Costa.

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