Vozes de uma resistencia

15
Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0 306 VOZES DE RESISTÊNCIA EM UMA CIDADE CINZA Sandra Jardim de Menezes Ferreira 1 Sostenes Cezar de Lima 2 Resumo: Este trabalho tem por objetivo problematizar questões relacionadas ao programa “São Paulo Cidade Linda” a partir da perspectiva de poder e resistência em Foucault (1992-1995). Por meio de reportagens em portais de notícias online e Site da Prefeitura de São Paulo, foram analisados enunciados proferidos pelo prefeito que declara guerra às pichações. Também foram analisadas imagens de pichações, o meio que os pichadores utilizaram para resistir ao conceito de beleza que propõe o programa Cidade Limpa, onde as reportagens focaram o conflito entre prefeitura e grupo de pichadores. A partir do conceito de resistência de Foucault em que o poder imposto não impossibilita o sujeito a desobedecê-lo, o que pode provocar resistência, e que o poder está disseminado nas relações sociais tal como existem escapes à essas relações de poder. Porém, a individualidade e a identidade se tornam um instrumento de poder quando relacionado a um grupo como forma de resistência ao poder determinado a um estipulado grupo. Observamos esse fenômeno durante a integração do programa São Paulo Cidade Linda, pois um grupo de pichadores contestam o ato do gestor de cobrir as pichações e alguns grafites com tinta cinza, cor característica da cidade. No entanto, a prefeitura assimila o comportamento dos pichadores como desobediência. Por fim, a percepção de beleza do prefeito vem não só com a pretensão de ter ruas e paredes mais limpas, mas em invisibilizar o discurso de indivíduos que estão expondo as suas realidades e angústias, os quais contestam a autoridade decretada à procura de espaço e voz. Palavras-chave: Poder. Resistência. Pichações. VOICES OF RESISTANCE IN A GRAY CITY Abstract: This paper aims to problematize from the perspective of power and resistance in Foucault (1992-1995) themes related to the political campaign "São Paulo Cidade Linda". Through reports on online news portals, and site of the city of São Paulo, statements made by the mayor of the city of São Paulo were analyzed, which declares graffiti war. Graffiti images were also analyzed, which the scavengers used to resist the concept of beauty proposed by the Clean City political campaign, reports where the focus was the war between city hall and group of graffiti artists. From Foucault's concept of resistance in which the imposed power does not stop the subject from disobeying it, which can provoke resistance, and that power is 1 Mestranda no Programa de Pós-graduação IELT/UEG. Email: [email protected] . 2Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (UNB). Email: [email protected] .

Transcript of Vozes de uma resistencia

Page 1: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

306

VOZES DE RESISTÊNCIA EM UMA CIDADE CINZA

Sandra Jardim de Menezes Ferreira 1 Sostenes Cezar de Lima 2

Resumo: Este trabalho tem por objetivo problematizar questões relacionadas ao programa “São Paulo Cidade Linda” a partir da perspectiva de poder e resistência em Foucault (1992-1995). Por meio de reportagens em portais de notícias online e Site da Prefeitura de São Paulo, foram analisados enunciados proferidos pelo prefeito que declara guerra às pichações. Também foram analisadas imagens de pichações, o meio que os pichadores utilizaram para resistir ao conceito de beleza que propõe o programa Cidade Limpa, onde as reportagens focaram o conflito entre prefeitura e grupo de pichadores. A partir do conceito de resistência de Foucault em que o poder imposto não impossibilita o sujeito a desobedecê-lo, o que pode provocar resistência, e que o poder está disseminado nas relações sociais tal como existem escapes à essas relações de poder. Porém, a individualidade e a identidade se tornam um instrumento de poder quando relacionado a um grupo como forma de resistência ao poder determinado a um estipulado grupo. Observamos esse fenômeno durante a integração do programa São Paulo Cidade Linda, pois um grupo de pichadores contestam o ato do gestor de cobrir as pichações e alguns grafites com tinta cinza, cor característica da cidade. No entanto, a prefeitura assimila o comportamento dos pichadores como desobediência. Por fim, a percepção de beleza do prefeito vem não só com a pretensão de ter ruas e paredes mais limpas, mas em invisibilizar o discurso de indivíduos que estão expondo as suas realidades e angústias, os quais contestam a autoridade decretada à procura de espaço e voz. Palavras-chave: Poder. Resistência. Pichações.

VOICES OF RESISTANCE IN A GRAY CITY

Abstract: This paper aims to problematize from the perspective of power and resistance in Foucault (1992-1995) themes related to the political campaign "São Paulo Cidade Linda". Through reports on online news portals, and site of the city of São Paulo, statements made by the mayor of the city of São Paulo were analyzed, which declares graffiti war. Graffiti images were also analyzed, which the scavengers used to resist the concept of beauty proposed by the Clean City political campaign, reports where the focus was the war between city hall and group of graffiti artists. From Foucault's concept of resistance in which the imposed power does not stop the subject from disobeying it, which can provoke resistance, and that power is

1Mestranda no Programa de Pós-graduação IELT/UEG. Email: [email protected]. 2Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília (UNB). Email: [email protected].

Page 2: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

307

disseminated in social relations as there are escapes to these relations of power. However, individuality, identity becomes an instrument of power when related to a group as a form of resistance to power determined to a stipulated group. We observed this phenomenon during the integration of the São Paulo Cidade Linda, since a group of slickers disputed the manager's act of covering the graffiti and some graffiti arts with gray paint, the color of the city, however the city hall assimilates the behavior of the graffiti artists as disobedience and a war begins between city hall and the city of São Paulo. Finally, the mayor's perception of beauty comes not only with the pretension of having cleaner streets and walls, but in making invisible the speech of individuals who are there exposing their realities, anguish, subjects that contest the decreed authority, they are looking for space and voice. Keywords: Power; Resistance; Graffiti.

Apagaram tudo

Pintaram tudo de cinza

A palavra no muro ficou coberta de tinta

Marisa Monte

Introdução

Este trabalho tem por objetivo problematizar questões específicas relacionadas ao

programa “São Paulo Cidade Linda” (SÃO PAULO, 2017a), o qual surgiu sob as influências

de outros projetos, tais como o “Cidade Limpa” que, inclusive, se tornou lei a partir de 2006

(SÃO PAULO, 2017b).

Com base na concepção de que todo exercício de poder está sujeito à desobediência e

resistência e de que as relações sociais estão carregadas de poder e de possibilidades de

resistência, entende-se que os processos de resistir são uma atividade social, não individual

(FOUCAULT, 1992, 1995). Nesse sentido, partimos do pressuposto de que as pichações

urbanas constituem manifestações de resistência frente ao poder exercido pelas instituições do

Estado (FERNANDES, 2011).

O material a ser analisado, neste trabalho, é constituído de um conjunto de

reportagens publicadas em portais de notícia online e no site da prefeitura, que tematizam a

implementação da operação “São Paulo Cidade Linda” por parte da Prefeitura Municipal de

São Paulo. Fazem parte do corpus as seguintes reportagens:

Page 3: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

308

“Prefeitura institui o programa ‘São Paulo Cidade Linda’” (https://goo.gl/aEF1mn);

“‘Todos os pichadores são bandidos’, afirma Doria em entrevista à rádio”

(https://goo.gl/D2qjAX)

“Justiça proíbe Doria de apagar grafite sem aval de conselho do Patrimônio Histórico e

Cultural” (https://goo.gl/Bhre4u);

“Juiz explica diferença entre grafite e pichação ao proibir Doria de pintar muros”

(https://goo.gl/EQQy1W);

“A ‘maré cinza’ de Doria toma São Paulo e revolta grafiteiros e artistas”

(https://goo.gl/nmSvFF);

“Após apagar grafite e pichação, Doria anuncia Museu de Arte de Rua”

(https://goo.gl/1Ghmte);

“Após desenho em mural de Kobra, Doria diz que pichadores 'não terão moleza'”

(https://goo.gl/AmC7xH);

“‘São agressores, são destruidores’, diz Doria sobre pichadores após ataque”

(https://goo.gl/RTwWn2);

“Doria diz que pichadores são possíveis ladrões de celulares e serão vigiados”

(https://goo.gl/uoFAuP).

As referidas reportagens foram extraídas dos seguintes portais de notícias online:

Folha UOL; G1; Estadão; BRASIL; ConJur e Site da Prefeitura de São Paulo. Foram

selecionados, para análise, os enunciados proferidos pelo prefeito, cuja posição é carregada de

poder em relação aos pichadores, declarando guerra às atividades de pichações. Também

foram selecionadas as imagens de pichações apresentadas nas reportagens. As imagens

mostram conteúdos que declararam resistência ao conceito de beleza presente no programa

Cidade Limpa.

Ao analisar o material, percebe-se que o grupo de pichadores contesta as atitudes do

gestor de cobrir suas pichações e alguns grafites com tinta cinza, cor característica da cidade.

Essa resistência é vista pela prefeitura como uma guerra e se dispõe a luta contra as pichações.

O Programa importunou o grupo de pichadores da região que manifesta ter outros

padrões de beleza. Por fim, a percepção de beleza do prefeito não busca apenas promover a

“limpeza” das ruas e paredes, mas também silenciar o discurso de um grupo social que expõe,

Page 4: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

309

ali, as suas realidades e angústias. Esses sujeitos, que contestam a autoridade, estão à procura

de espaço e voz.

1 Relações de poder em Foucault

As relações de poder, para Foucault (1988), não se estabelecem apenas como

mecanismo de força de uma macroestrutura para uma microestrutura; o poder se estabelece

em microrelações, estando presente em todas as áreas estruturais da sociedade: família,

escola, trabalho, igreja. Com isso, na busca para entender melhor as relações de poder,

Foucault (1988), ao estudar as prisões, deparou-se com um estilo de presídio idealizado por

Jeremy Bentham, conhecido por panótipo, no qual, o sujeito poderia ser observado sem ser

visto. Esse tipo de vigilância faz parte da realidade atual por meio das câmeras de vigilância,

por exemplo.

Foucault afirma que o poder se constitui nas relações e não se limita aos poderes

governamentais e/ou de entidades. O poder não está localizado em nenhum ponto específico

da estrutura social, mas circula em todos os espaços; o poder não é arbitrário, mas está

dissolvido dentro da sociedade. Logo, o poder não pode ser entendido “como um sistema

geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outro e cujos os efeitos, por

derivação sucessiva, atravessa o corpo social inteiro (FOUCAULT, 1988, p. 88). O autor

defende que os poderes estão disseminados em todas as esferas sociais. Cappelle (2005)

explica que Foucault procura captar o poder em suas extremidades, essa disseminação confere

que as relações de poder estão divididas em micropoderes.

Prado Filho (2016, p. 14) caracteriza esse fenômeno como “abordagem jurídico-

discursiva, formada por um conjunto de pressupostos e concepções que atravessam toda a

tradição da teoria política moderna”. A intenção de Foucault estava em mostrar que o poder

não está centralizado apenas nas esferas governamentais, mas na multiplicidade das práticas

cotidianas, na rede microfísica de relações que se formam nos movimentos, em um campo em

que forças se enfrentam.

Page 5: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

310

2 Práticas discursivas nas relações de poder

Foucault (1992) apresenta o termo “prática discursiva” para evidenciar a existência

material dos discursos que não se encontram apenas na subjetividade ou entre pesquisadores e

intelectuais, mas sim sobre o mundo físico de livros e bibliotecas e faz-se uma “política do

discurso” na contemporaneidade. O autor aponta para uma suposição de controle e seleção na

produção do discurso em toda a sociedade.

Prado Filho (2006) remete o discurso à prática que permite tirar o foco da

supremacia do sujeito, relacionando-o ao domínio que o sujeito exerce ao longo da história da

humanidade, uma vez que o discurso é uma área que o sujeito domina. “Foucault reforça a

necessidade de deslocar a análise do saber da figura do sujeito, colocando-o em seu devido

lugar” (p. 37).

Sousa (No prelo) faz um levantamento de três domínios, em Foucault, que

personificam a composição das práticas discursivas: eixo do saber, poder e subjetivação. Para

a pesquisadora, o eixo do saber representa as relações de domínio sobre as coisas. O poder

consiste nas relações de ações sobre os outros e a subjetivação é a relação do sujeito consigo

mesmo.

Em 1960, Foucault pesquisou a formulação de um método histórico distinto de

análise de discursos denominado de arqueologia do saber. Em 1970, desenvolveu um método

de estudo das relações e práticas de poder, denominado de genealogia do poder. Já em 1980,

ele traz a análise de subjetivações (PRADO FILHO, 2016), e é nesse cenário que Foucault

“reforça a necessidade de deslocar a análise do saber da figura do sujeito, colocando-o em seu

devido lugar” (PRADO FILHO, 2006, p. 37).

O sujeito está resignado ao discurso, mesmo que não esteja na predominância do

discurso, ele se assujeita ao discurso, assim não está no centro. Porém, em condições variadas,

sendo possível um sujeito ocupar várias posições em um mesmo discurso, todo esse fenômeno

é denominado pelo filósofo de arqueologia do saber.

3 Programa São Paulo Cidade Linda x Pichadores

Page 6: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

311

Em janeiro de 2017, o prefeito da cidade de São Paulo, João Dória, inicia o Programa

São Paulo Cidade Linda. No ato representado na Figura 1, a seguir, o gestor está vestido com

o uniforme dos funcionários da zeladoria, portando um jato de tinta cinza, com o qual encobre

grafites e pichações na Avenida 23 de maio. Essa avenida, até então, era conhecida pelo

colorido dos grafites e escritas de pichadores da cidade. No momento ele diz: “Pintei com

enorme prazer três vezes mais a área que estava prevista para pintar, exatamente para dar a

demonstração de apoio à cidade e repúdio aos pichadores" (figura 1).

Figura 1. Prefeito João Dória pintando pichações no lançamento do projeto São Paulo Cidade Linda.

Fonte: http://g1.globo.com/saopaulo/

Sousa (no prelo) evidencia o interesse de Foucault (1967 [2000]) pela linguagem. A

pesquisadora afirma que o filósofo é instigado por como a língua nos escapa, sem fronteiras,

extrapola o domínio de quem a diz e a riqueza de significações existentes nos discursos.

Nesse cenário, observamos a imagem seguida do enunciado proferido pelo prefeito, o que

demonstra estar em desacordo com os atos de pichações situadas em lugares indesejados, na

concepção do programa Cidade Linda.

Após o ato de “limpeza”, pichadores iniciaram protestos ao prefeito, respondendo

aos pronunciamentos do gestor. Entende-se, aqui, o ato de piches em todo o muro da avenida

23 de maio com o nome do Dória como protesto. Foram registrados ainda ao longo de todo o

viaduto os seguintes enunciados: “Se sua vida não tem cor, não desbote a nossa”, “respeito

dória” (Figura 3).

Page 7: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

312

Nesse momento, faz-se propícia a fala de Foucault de que imposição do poder não

impede a desobediência, a resistência. Há sempre nas relações sociais possibilidades de

escape às determinações de poder (FOUCAULT, 1995). O prefeito exerce o poder garantido

por sua posição nas relações, mas isso não impossibilita a revolta, as manifestações e/ou

desobediências às determinações. Nessa perspectiva, Fernandes (2011, p. 244),

[...] entendemos que o poder se constitui numa fronteira em que não há, especificamente, um dominado que se submete a um dominador. O que ocorre é um jogo de enfrentamentos, um jogo de tensões permanentes de cada parte para sobrepujar a estratégia do outro.

Os atos de protestos, por meio das pichações, são contrários ao pronunciamento do

prefeito em declarar guerra aos pichadores e às práticas de cobrir grafites e pichações.

Identificamos essa queda de braço como resistência a padrões de limpeza e beleza instituídos

pelo projeto São Paulo Cidade Linda. Em conexão com as considerações acima citadas por

Fernandes (2011), notamos um jogo de enfrentamentos, pois, após as pichações em relação ao

ato do gestor, ele se pronuncia: “não terão moleza”3, se referindo aos pichadores em uma

entrevista.

De acordo com o site da prefeitura de São Paulo,

O São Paulo Cidade Linda é um conjunto de serviços para revitalizar áreas em todas as regiões, em uma ação regular e contínua ao longo do mandato. O principal objetivo é a melhora na zeladoria urbana e o resgate da autoestima do paulistano, em ação integrada entre poder público, iniciativa privada, ONGs e cidadãos. (SÃO PAULO, 2017a)

Pautando-se nesse princípio de beleza para a cidade, a Prefeitura começou, assim, a

apagar pichações e alguns grafites ao longo da cidade, cobrindo-os com tinta cinza, cor

característica da cidade, o que irritou pichadores4 e grafiteiros5. Estabeleceu-se, desde então,

3 Prefeito João Dória, em fala pública. Disponível em: <http://g1.globo.com/saopaulo/noticia/aposdesenhoemmuraldekobradoriadizquepichadoresnaoteraomoleza.Ghtml> 4 Pichadores são pessoas que rabiscam símbolos, escrevem frases em espaços públicos e privados na cidade. 5 Grafiteiros são artistas de rua, que utilizam de espaço público para produzir sua arte, por meio de desenhos, imagens e cores.

Page 8: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

313

uma “guerra” entre prefeitura e “artistas de rua não autorizados”6: os funcionários da

prefeitura cobrem de cinza e os pichadores reescrevem. O estouro se deu a partir da ordem do

prefeito para apagar os grafites da Avenida 23 de Maio, já tradicionais para a região. A

resposta veio em seguida com frases pichadas direcionadas ao prefeito e pintadas logo em

seguida.

Figura 2. Funcionário apaga pichação contra Dória em São Paulo

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/24

Neste ponto, é importante observar que um projeto, como o Cidade Limpa, é uma

proposta de imposição de poder que se estabelece a partir de um interesse do Estado que

busca inviabilizar discursos e ações de grupos que vivem à margem da sociedade. Em partes,

o programa não está necessariamente buscando uma melhor aparência da cidade, mas uma

imposição de padrões culturais pertencentes a grupos hegemônicos que se impõem via relação

de poder. Esses grupos defendem interesses de uma classe que não é a maioria; porém, o seu

poder de influência é um instrumento estratégico que rege o cotidiano das desigualdades

sociais no Brasil.

6 ALESSI, GIL. A ‘maré cinza’ de Doria toma São Paulo e revolta grafiteiros e artistas. Brasil - EL PAÍS. São Paulo - 25 JAN 2017. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/24/politica/1485280199_418307.html 1/

Page 9: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

314

É interessante indagar: O Programa Cidade Linda atende os interesses de quem? A

proposta da zeladoria é investir na revitalização das áreas. Infere-se disso que pichações e

alguns grafites tornam a cidade suja. As manifestações dos pichadores e grafiteiros se

mostram como resistências e críticas a um sistema de poder. Na figura 3, vemos o seguinte

enunciado de resistência: “se sua vida não tem cor, não desbote a nossa”. Inferimos, desse

enunciado, o seguinte posicionamento dos pichadores dirigido ao prefeito: Se sua vida está

constituída de padrões que não nos representam, sequer alcança o entendimento de quem

somos e o que significam as nossas grafias e múltiplas cores de um grafite, então não

imponha a nós o cinza, o padronizado, não exclua a forma de expressão e arte com um

discurso de ‘limpeza’ que reforça poder e dominação.

Figura 3. Manifestação contra Dória no muro da Avenida 23 de Maio.

Fonte: http://g1.globo.com/saopaulo/noticia

As relações de poder que circulam entre os espaços políticos representados por um

determinado grupo, neste contexto a equipe gestora da cidade de São Paulo, têm seus

interesses voltados a inviabilizar o cotidiano de outros grupos que necessitam do aparelho

estatal para sua permanência na cidade. Nesse sentido, um grupo de pessoas, que são atores da

constituição e da organização espacial das cidades, influenciam totalmente nos padrões de

beleza que se espera para as nossas cidades. Esses atores investem em projetos que constituam

e hegemonizem as classes privilegiadas no Brasil.

Page 10: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

315

Por outro ângulo, a pichação para os grupos sociais subalternizados vai de uma

expressão cultural e artística; constitui um instrumento político (figura 4) que possibilita

visibilizar seus discursos que nem sempre são ouvidos e vistos.

Figura 4. Manifestação contra Dória, depois de pintar de cinza grafites na cidade de São Paulo.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02

Essa guerra põe em cena um sistema de forças para justificar a invisibilização do

sujeito, apagando da paisagem urbana as memórias de processos de gentrificação urbana,

favelização e também de segregação, conforme nos mostram os estudos de França (2010) e

Marques (2014). Ademais, os pesquisadores apontam para os diversos desafios que sujeitos

invisibilizados têm frente às desigualdades vividas em São Paulo, principalmente pelas

comunidades que vivem em favelas, as quais, na sua grande maioria, constituídas por negros.

As desigualdades sociais nas cidades brasileiras formam o extrato de um sistema

capitalista e colonialista que se reproduz a partir de suas diferenças no urbano. Os indivíduos

sujeitos ao processo de subordinação em relação aos sujeitos de classe, de classe média-alta

ou alta, estão sempre vivendo em processos de intensa reprodução dos processos urbanos

como: segregação, diferenciação, racismo e outros. Esses fatos são extratos que se exprimem

no espaço urbano, cujo esse espaço se torna palco de conflitos sociais onde os atores

encontram na pichação um lugar para expor suas indignações e opiniões.

Page 11: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

316

A grande São Paulo é um exemplo de representação dessas desigualdades que se

caracterizam pela dificuldade de acesso à infraestrutura urbana. Grande parte da população

vive em favelas, morros, áreas de risco, diferente daqueles que coordenam todo este processo

de diferenciação urbana. Santos (1997) comenta que os sujeitos que vivem nessas condições

acabam tendo sua cidadania mutilada, a localização residencial da maior parte dessa

população se concentra em áreas periféricas, implicando na lógica de circulação e

deslocamento para o trabalho e para espaços educacionais.

Percebemos, a partir dessa realidade, que as pichações, enquanto movimento de

resistência, é o palco em que coexistem interesses diferentes dos grupos que sempre tiveram a

cidade enquanto monopólio e patrimônio privado de seus interesses e privilégios. O estado,

consequentemente, é um dos grandes agentes que viabiliza essas possibilidades, a exemplo da

capital paulista.

Então, as desigualdades sociais, que aqui apontamos, são desigualdades que estão

além de um debate de classe social. A questão, antes de tudo, é racial, espacial, o que

contribui para a reprodução de espaços segregados na cidade, e marginalizado. Portanto, são

esses fatores que influenciam para que os sujeitos pichadores saiam dos seus espaços e

territórios para darem visibilidade às condições a que suas famílias estão condicionadas a

viver. Nesse caso, com racismos velados, com condições precárias e que impossibilitam o

cotidiano.

Temos que deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ‘ele exclui’, ele ‘reprime’ ele ‘recalca’, ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’. Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (FOUCAULT, 2002, p. 161).

A relação de poder da efetivação do projeto produziu realidade, evidenciando que as

pichações são movimentos de resistência, vozes que ecoam de grupos subalternizados que são

contra os sistemas de poder e dominação que fundamentam o Projeto Cidade Limpa, o qual

não traz cor nem vida à cidade. As vozes, tal como percebemos, são contrárias a esse projeto

imposto a partir de um poder e de um discurso dominante.

Page 12: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

317

O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles (FOUCAULT, 1992, p. 246).

O jogo se deu, forças estão sendo medidas, cada uma buscando se estabelecer e se

sustentar, defendendo sua causa; de um lado o gestor; de outro, pichadores.

Para Foucault, o enunciado é o objeto manipulado para construir o discurso. Partindo

desse pressuposto, observamos, nas entrevistas feitas com o prefeito João Dória, sobre as

pichações, sua decisão é prezar por uma cidade limpa e sem pichações.

Nos deparamos com as seguintes afirmações do gestor: “Comigo não vão ter moleza.

Eu sou prefeito da cidade para defender a cidade, e o interesse da cidade é sem pichação”,

“Eles terão a resposta7”. Nesses enunciados, ele se reporta a sua autoridade. Podemos

observar as relações de poder que estão impregnadas a esse contexto de gestor municipal,

numa preocupação em regular o que é escrito e pintado na sua cidade.

Sob essa ótica, “a necessidade de um controle regulamenta as atividades produtivas e

pratica ações coercitivas para neutralizar as relações de força” (FERNANDES, 2011, p. 244).

A constituição prevê uma pena para os infratores que praticam pichações. Eles estão presentes

nas cidades brasileiras, assim como em São Paulo, em vários locais, muros, construções,

viadutos, em patrimônios privados e públicos. De acordo com Fernandes (2011, p. 241),

“essas inscrições são denominadas pichações que invadem locais de visibilidade e agridem a

visão do transeunte urbano. Vistas como uma invasão [...]”, tais práticas são definidas por

agressão, já que infringem o Art. 65, da Lei de Crimes Ambientais - Lei 9605/98

Lei nº 9.605 de 12 de Fevereiro de 1998 Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011) Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011) § 1o Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1

7 Prefeito João Dória, em fala pública. Disponível em: <http://g1.globo.com/saopaulo/noticia/aposdesenhoemmuraldekobradoriadizquepichadoresnaoteraomoleza.Ghtml>.

Page 13: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

318

(um) ano de detenção e multa. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 12.408, de 2011)

Diante da lei 9605/98, o ato de pichar é uma infração, pois mesmo os pichadores

estando cientes, escolhem continuar efetuando tal ação, resistindo à lei que proíbe e prevê

pena para tais práticas. Eles continuam resistindo a duros padrões de exclusão. O prefeito que

possui uma relação de poder sobre esses infratores quer fazer cumprir tal lei, desempenhando

mecanismos de dominação.

Considerações Finais

Este trabalho buscou analisar a consequência do projeto São Paulo Cidade Linda que

culminou em vozes de resistência dos pichadores e grafiteiros que não concordaram com tal.

Na perspectiva Foucaultina de relações de poder, observamos a produção de verdade, fruto de

uma imposição de poder, numa tentativa de regulamentação e imposição de um conceito

único de beleza e limpeza.

Observamos que discursos são invisibilizados sem nenhuma reflexão do sujeito e de

suas intenções por trás das inscrições. Levando em consideração que um padrão de beleza foi

imposto, o mesmo que representa apenas uma parte da sociedade. E a outra parte?

“Os discursos de resistência se caracterizam por apresentar novos modos de

construção e representação das identidades e das relações sociais, abertamente dissidentes do

padrão hegemônico” (LIMA et al, 2016, p. 923). As pichações representam discursos de

resistência a esse padrão de beleza e limpeza que encarcera vozes de uma outra sociedade que

divide o mesmo espaço, essa outra sociedade que luta por direitos iguais.

Referências

CAPPELLE, Mônica Carvalho Alves; MELO, Marlene Catarina de Oliveira Lopes; DE BRITO, Mozar José. Relações de poder segundo Bourdieu e Foucault: uma proposta de articulação teórica para a análise das organizações. Organizações Rurais & Agroindustriais, v. 7, n. 3, 2011.

Page 14: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

319

FERNANDES, Eliane Marquez da Fonseca. Pichações: discursos de resistência conforme Foucault-doi: 10.4025/actascilangcult. v33i2. 13864. Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 33, n. 2, p. 241-249, 2011. FOUCAULT, M. História da sexualidade; a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. ______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. (Ed.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução V. P. Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249. ______. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. São Paulo: Ática, 2002. ______. Microfísica do poder. 23. ed. São Paulo: Graal, 1992. FRANÇA, Danilo Sales do Nascimento. Raça, classe e segregação residencial no município de São Paulo. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. LIMA, Sostenes Cezar de; LIMA, Priscilla Melo Ribeiro de; COROA, Maria Luiza Monteiro Sales. Identidade de velhos: modos de identificação e discursos de resistência na velhice. Domínios de Lingu@ gem, v. 10, n. 3, p. 903-926. 2016. MARQUES, Eduardo. Estrutura social e segregação em São Paulo: transformações na década de 2000. Revista Dados, v. 57, n. 3, 2014. PRADO FILHO, K. Michel Foucault: uma história política da verdade. Rio de janeiro: achiamé/Insular, 2006. ______. A genealogia como método histórico de análise de práticas e relações de poder. 2016 SANTOS, Milton. Cidadanias mutiladas. In: CARDOSO, Ruth; KEHL, Maria Rita; BUCCI, Eugênio; DINES, Alberto; OLIVEIRA, Rosiska Darcy de; TELLES, Lygia Fagundes; PIÑON, Nélida; CHAUÍ, Marilena; DALLARI, Dalmo; SANTOS, Milton; KOVADLOFF, Santiago. O Preconceito. São Paulo: IMESP, 1996/1997. P. 33 – 44. SÃO PAULO. Prefeitura de São Paulo. Disponível em: < http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/regionais/zeladoria/index.php?p=228033> Acesso em: 03 de abril de 2017a. SÃO PAULO. Cidade limpa. Disponível em: < http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidadelimpa/home/default.html> Acesso em: 03 de abril de 2017b.

Page 15: Vozes de uma resistencia

Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol. 23, p. 306 - 320, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

320

SOUSA, Katia Menezes de. Das condições de possibilidade dos discursos em Michel Foucault: uma breve análise do presente. (No prelo).