Walber de Moura Agra - Direitos Sociais

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DIREITOS SOCIAIS Conceituação dos Direitos Sociais Direitos sociais é a espécie de direitos humanos que apresenta como requisito para sua concretização a exigência da intermediação dos entes estatais, quer na realização de uma prestação fática quer na realização de uma prestação jurídica. Os direitos de liberdade são forcejados no individualismo, posteriormente sendo reestruturados para o consumidor. Já os direitos sociais consideram o homem além de sua condição individualista, abrangendo-os como cidadãos que necessitam de prestações estatais para garantirem condições mínimas de subsistência. A titularidade dos direitos fundamentais sociais é deslocada da esfera exclusiva do indivíduo para incidir na relação cidadão-sociedade. O axioma da liberdade, fundamental na formatação dos direitos individuais, é suplantado pelo axioma da igualdade nos direitos sociais. A luta contra o arbítrio do Estado Leviatã passa a segundo plano diante da exploração e da péssima condição de vida em que se encontram a maioria da população. Os entes estatais deixam de ser vistos apenas como o verdugo que comete arbitrariedades e começa a ser considerado como um ator crucial na superação das deficiências materiais. Walber de Moura Agra. Mestre pela UFPE, Doutor pela UFPE/Universitá degli Studi di Firenze; Pós-Doutor pela Université Montesquieu Bordeaux IV; Visiting Research Scholar of Cardozo Law School. Professor Visitante da Università degli Studi di Lecce; Professor Visitante da Université Montesquieu Bordeaux IV; Diretor do IBEC – Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais; Membro Correspondente do CERDRADI – Centre d’Études et de Recherches sur les Droits Africains et sur le Développement Institutionnel des Pays en Développement. Professor da Universidade Católica de Pernambuco. Procurador do Estado da Pernambuco. Advogado.

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DIREITOS SOCIAIS

Conceituação dos Direitos Sociais

Direitos sociais é a espécie de direitos humanos que apresenta como requisito para sua concretização a exigência da intermediação dos entes estatais, quer na realização de uma prestação fática quer na realização de uma prestação jurídica. Os direitos de liberdade são forcejados no individualismo, posteriormente sendo reestruturados para o consumidor. Já os direitos sociais consideram o homem além de sua condição individualista, abrangendo-os como cidadãos que necessitam de prestações estatais para garantirem condições mínimas de subsistência. A titularidade dos direitos fundamentais sociais é deslocada da esfera exclusiva do indivíduo para incidir na relação cidadão-sociedade.

O axioma da liberdade, fundamental na formatação dos direitos individuais, é suplantado pelo axioma da igualdade nos direitos sociais. A luta contra o arbítrio do Estado Leviatã passa a segundo plano diante da exploração e da péssima condição de vida em que se encontram a maioria da população. Os entes estatais deixam de ser vistos apenas como o verdugo que comete arbitrariedades e começa a ser considerado como um ator crucial na superação das deficiências materiais.

A consolidação das prerrogativas de segunda dimensão ajuda a superar a dicotomia entre o cidadão e os entes estatais, tornando-se estes um instrumento insuperável para o bem-estar social. Ao invés de se configurarem como estorvo e mitigador da autonomia individual, eles se tornam o garantidor de sua realização, pois como defende Cristina Queiroz não são direitos contra o Estado, mas direitos através do Estado.1 A relação deixa de ser antípoda, cristalizando-se como simbiótica, em que a atuação estatal é vista como benfazeja para setores relevantes da população.

A finalidade dos direitos individuais é dotar o cidadão de condições para que ele não tenha sua liberdade cerceada pelo Estado, possibilitando-o de exercer formalmente seu livre-arbítrio. Por sua vez, os

Walber de Moura Agra. Mestre pela UFPE, Doutor pela UFPE/Universitá degli Studi di Firenze; Pós-Doutor pela Université Montesquieu Bordeaux IV; Visiting Research Scholar of Cardozo Law School. Professor Visitante da Università degli Studi di Lecce; Professor Visitante da Université Montesquieu Bordeaux IV; Diretor do IBEC – Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais; Membro Correspondente do CERDRADI – Centre d’Études et de Recherches sur les Droits Africains et sur le Développement Institutionnel des Pays en Développement. Professor da Universidade Católica de Pernambuco. Procurador do Estado da Pernambuco. Advogado.1 QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Coimbra: Coimbra Editores, 2002. P. 148-149.

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direitos sociais tencionam incrementar a qualidade de vida dos cidadãos, munindo-os das condições necessárias para que eles possam livremente desenvolver suas potencialidades.2 Os primeiros almejam garantir a felicidade da coletividade por meio da implementação de políticas que desenvolvam o grau liberdade de todos; os segundos buscam garantir a felicidade coletiva na construção de políticas públicas que igualitárias, tornando o tecido social menos conflituoso.

Essa prestação por parte do Estado não significa uma mitigação da liberdade, num incremento da burocracia ou em uma perda da autonomia individual.3 Eles não são ontologicamente contrários aos direitos individuais. Devem ser concebidos em interação com as prerrogativas de primeira dimensão, em razão de que sem determinados requisitos materiais eles não podem ter uma ampla eficácia empírica. Configura-se como uma evolução dos direitos de primeira dimensão, englobando com os liames da obrigatoriedade os entes estatais.

Não existe uma vinculação entre direito social e estado socialista e direito individual e estado liberal, pois em ambos os tipos de organização política estão presentes estas duas dimensões de prerrogativas. Independentemente dos valores ideológicos, os direitos sociais são reconhecidos pela importância, ao tentar proteger setores sociais sensíveis da sociedade e igualmente formar uma sociedade mais homogênea. A maior parte dos sistemas jurídicos contém direitos sociais. Mesmo Constituições, como a alemã, de 1949, que deixou de tratar sistematicamente desta matéria, não impediu sua existência no ordenamento infraconstitucional através de reiteradas declarações de sua existência por decisões do Tribunal Constitucional alemão.

Do surgimento dos direitos clássicos ao despontar das prerrogativas prestacionais houve toda uma modificação da sociedade, através de muitos fatores, como industrialização, deslocamento da população para as cidades, melhoria no ensino, avanços tecnológicos, crises econômicas etc. Como resultado, ocorreu uma dupla transformação a nível de Estado e de direitos clássicos, que consistiu na modificação de um Estado abstencionista para um intervencionista e a complementação dos direitos individuais pelas prerrogativas sociais.4

De forma bastante genérica, pode-se dizer que o fator teleológico dos direitos sociais é a proteção dos hipossuficientes estatais, a redistribuir

2 E aqui sobressaem, em geral, directamente, as incumbências de promover o aumento do bem-estar social e conómico e da qualidade de vida das pessoas, em especial, das mais desfavorecidas, de operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, de eliminar progressivamente as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo e de eliminar os latifúndios e reordenar o minifúndio.” MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3 ed., Coimbra: Coimbra Editores, 2000. P. 386.3 MORANGE, Jean. Direitos Humanos e Liberdades Públicas. São Paulo: Manole, 1985. P.141.4 DALLA VIA, Alberto Ricardo. Manual de Derecho Constitucional. Buenos Aires: Lexis Nexis, 2004. P. 175.

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dos ativos materiais para que a população possa ter uma vida condigna e de criar um Welfarestate, forcejando a criação de uma justiça equitativa.5

Personificam a principal ferramenta de que dispõe o Estado para a realização da justiça distributiva, em que os entes estatais auxiliam os cidadãos carentes de recursos mínimos para sua subsistência ou que possam cair na marginalidade social ou que não possam obter por conta própria esses bens ou serviços em qualidade razoável. Por essa razão não é possível o retrocesso das normas que os definem, a não ser em virtude da existência de motivos plausíveis.6

Em decorrência de sua importância para a sociedade, os direitos sociais não são passíveis de renúncia nem se demanda contraprestação para sua concessão. Se eles fossem renunciáveis ou se exigisse alguma forma de cobrança por sua prestação não conseguiriam contemplar os seus destinatários, que não podem por suas expensas provém os bens e serviços prestados pelos entes estatais.

Segundo Ingo Sarlet, os direitos sociais têm a função de assegurar uma compensação das desigualdades fáticas entre as pessoas mediante a garantia de determinadas prestações por parte do Estado ou da sociedade.7 Considera-se que sua função seja a de propiciar um núcleo comum para a manutenção da estrutura social, em que os cidadãos, apesar de pertencerem a sociedades hipercomplexas, possuam prerrogativas que os façam reconhecerem-se como membros igualitários de uma mesma organização política.

Mais do que os outros direitos humanos, os direitos sociais refletem marcantemente seus traços historicossociais. Todas as vezes que eles são estabelecidos através de voluntarismos jurídicos, sem se atentar para a realidade imperante, há o ensejo de gap’s normativos com o consequente enfraquecimento dos dispositivos jurídicos. Não se pretende negar a força normativa da Constituição,8 apenas asseverar que ela é melhor potencializada quando há uma simetria entre o fático e o normativo.9

Em sua característica ressalta-se indelevelmente o aspecto fático, pois eles

5 Nesse sentido verificar: JÚNIOR, Dirley da Cunha.“A Efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais e a Reserva do Possível”. In: Leituras Complementares de Constitucional. Direitos Fundamentais. 2 ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2007. P. 413.6 “Não apenas a inconstitucionalidade por omissão é sanção de violação dos direitos sociais, podendo, nestes termos, haver inconstitucionalidade por ação neste âmbito, com as consequências normais destes casos a deverem daí ser extraídas. O critério para a construção mais durável de uma teorização neste âmbito continua a ser o da análise da jurisprudência, que tem tido uma posição de grande equilíbrio nestas como noutras matérias. Sem prejuízo de a doutrina dever continuar a exprimir a sua vária opinião, comentando, construindo e sugerindo”. CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da Constituição. Lisboa: Editora Verbo, tomo II, 2000. P. 293-294.7 SARLET, Ingo Wolfgang. “Direitos Sociais” In: Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional”. São Paulo: Saraiva, 2007. P. 132.8 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 1998. P. 37.9 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Trad. Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre jou, 1968. P. 296.

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são modulados muito mais por fatores materiais do que por formalidades jurídicas.

Assim, a imposição de direitos sociais sem se levar em conta fatores metajurídicos, principalmente as condições econômicas – que não deve ser confundida com a reserva do possível orçamentária – redunda em um fracasso para o sistema constitucional porque essas normas ficarão destituídas de eficácia.

A origem suprajurídica desses direitos são premências que são sentidas pela população e transpõem-se para o campo jurídico na forma de demandas legais. Depois que são incorporadas por setores representativos da sociedade, a próxima fase é sua incorporação ao ordenamento jurídico por intermédio de dispositivo normativo. Mas a canalização dessas necessidades sociais depende de muitos fatores como tradição histórica, valores compartilhados, grau cultural etc. Advém da realidade fática, é não de idiossincrasias jurídicas à diversidade de direitos sociais existentes.

A titularidade dos direitos sociais foge dos esquemas preconcebidos de subsunção normativa, em que o texto normativo é suficiente para realizar essa definição. Ao lado de sujeitos passivos de fácil determinação como a família ou os idosos, encontram-se conceitos indeterminados como assistência aos desamparados,10 que exigem verificação fática, em cada caso concreto, para a visualização de sua esfera de atuação.11

Os destinatários dos direitos sociais são todos os cidadãos, principalmente aqueles mais carentes.12 Genericamente são os hipossuficientes e algumas categorias que necessitam de atenção especial, como os jovens, idosos, portadores de necessidades especiais etc. Os estrangeiros também são seus destinatários, desde que estejam em território nacional, de forma legal, enquadrando-se nas hipóteses descritas nos permissivos legais.

Pela densificação normativa dos direitos sociais, sua incidência abrange não apenas os entes estatais, incidindo nas relações interpessoais, em que predominam os ícones jusprivatísticos, na horizontalização de sua eficácia. Havendo impedimento de realização de seu conteúdo por ação ou omissão de agentes privados, podem eles ser demandados para proteger a fruição dos direitos outorgados. Nesse sentido, essa coercitividade, com

10 “Com certeza a assistência social aos necessitados faz parte dos deveres mais evidentes de um Estado social.” MARTINS, Leonardo (ORG). Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2005. P. 828.11 DIMOULIS, Dimitri & MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. P.91.12 “Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciados em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualdade de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed., São Paulo: Malheiros, 1999. P. 289-290.

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muito menos oposição teórica, vincula entidades privadas que desempenham funções públicas, seja na forma de concessão, seja na forma de permissão.

Hoje não são apenas os pobres e excluídos os sujeitos passivos de prestações estatais porque todos têm necessidade de um padrão condizente de bens e serviços essenciais, como educação e moradia, por exemplo. Todos os cidadãos podem receber essas prestações, desde que se enquadrem na tipologia abstrata descrita, mormente aqueles que podem pagar por esses serviços, mas comprometeriam parte substancial de sua renda, impossibilitando-os de adquirir outros serviços considerados como essenciais. Ressalve-se, porém, que o sistema de acesso aos direitos de segunda dimensão não comporta privilégios de atendimento, devendo os procedimentos imperantes ser extensíveis a coletividade de forma integral.

Mesmo havendo titulares específicos para a concretização de certos direitos sociais, o que somente se justifica pela premência de uma melhor realização da distribuição dos ativos sociais e para assegurar uma vida digna aos mais carentes, o seu acesso tem que ser estendido a todo um segmento, sem incidir em destinatários individuais, impedindo que essas normas sejam fonte de maior desigualdade social. Vincular políticas públicas para setores da população, sem que se preste atenção ao princípio da proporcionalidade, acarreta uma quebra do princípio da isonomia e pode ensejar que tais atos possam ser impugnados através do controle de constitucionalidade.

Caso bastante sintomático de prestação estatal individual é a imposição da distribuição gratuita de remédios, em que decisões judiciais obrigam os entes estatais a gastarem somas consideráveis com poucos pacientes, enquanto que muitos não dispõem nem mesmo de condições financeiras de comprar remédios simples. Para impedir essas distorções, as políticas públicas dessas prestações precisam ser uniformes, contemplando todos os cidadãos que estejam naquelas situações que foram previstas na legislação para serem sujeitos passivos da prestação estatal.

A concretização diferenciada dos direitos sociais de acordo com seus sujeitos passivos enquadra-se perfeitamente com o princípio da igualdade que serviu como standard indelével para a formação de todos os direitos de segunda dimensão. Sua incidência multiforme impede o incremento de desigualdades, atuando nos casos de acordo com a dissimetria entre eles, haja vista que modulações diversas visam diminuir as desequiparações fáticas.

Forcejar uma classificação dos direitos sociais tem a utilidade de tentar reunir estas disposições sistematicamente, levando em conta características que são inerentes ao grupo. Pelas peculiaridades envoltas, uma classificação rígida se configura muito difícil, sendo ainda vantajoso esse esforço devido a facilidades didáticas e pragmáticas no sentido de sua

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densificação normativa. Pelas dissimetrias, optou-se por agrupá-las em classificações calcadas na realidade constitucional brasileira e na realidade estrangeira.

Os direitos sociais nacionais, em sentido amplo, abrangem tanto uma concepção de cunho universal (saúde, moradia, previdência, educação), como de cunho específico (dos portadores de deficiência, da criança e do adolescente); incidindo ainda na seara de direitos culturais (educação, ciência) ou na seara econômica (direitos pecuniários e ao trabalho).

André Ramos Tavares agrupa os direitos sociais nas seguintes categorias: a) direitos sociais dos trabalhadores; b) direitos sociais da seguridade social; c) direitos sociais de natureza econômica; d) direitos sociais da cultura; e) direitos sociais de segurança.13 Por outro lado, o Professor José Afonso da Silva prefere esta classificação: direitos relativos ao trabalhador; direitos relativos à seguridade social; direitos relativos à educação e à cultura; direitos relativos à moradia; direitos relativos à família, criança, adolescente e idoso; direitos relativos ao meio ambiente.14

Os direitos sociais dos trabalhadores podem ser classificados em direitos sociais individuais e direitos sociais coletivos. Os direitos da seguridade social compreendem o direito à saúde, à assistência social e à previdência social. Os direitos da cultura abrangem o direito à educação e o direito à cultura propriamente dita. Os direitos sociais de natureza econômica abrangem: busca do pleno emprego; redução das desigualdades sociais e regionais; erradicação da pobreza e da marginalização; defesa do consumidor e da livre concorrência.

Canotilho classifica os direitos sociais em quatro espécies: normas programáticas, normas de organização, garantias institucionais e direitos subjetivos públicos.15 Normas programática são as definidoras dos fins do Estado, traçando objetivos que devem ser alcançados paulatinamente. Normas de organização atribuem competências impositivamente ao legislador para a realização de prerrogativas sociais, regulamentando a sua realização. Garantias institucionais consistem em mandamentos, atribuídos ao legislador, para a proteção de instituições que asseguram direitos sociais, como a família, os entes coletivos, as associações etc. Por último, os direitos subjetivos públicos em que cristalizam prerrogativas que podem ser utilizadas discricionariamente pelos cidadãos.

Robert Alexy, do ponto de vista teórico-estrutural, classifica os direitos sociais com base em três critérios: direitos objetivos ou subjetivos;

13 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 712.14 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32 ed., São Paulo: Malheiros, 2008. P.287.15 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2 Ed., Coimbra: Almedina, 1998. P. 472-473.

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vinculantes ou não-vinculantes; direitos e deveres definitivos ou prima facie. O primeiro prisma delineia as normas quando elas obrigam o Estado ou fornecem liberalidades aos cidadãos. O segundo critério tem como vetor a possibilidade de haver uma sanção pelo descumprimento ou não do dispositivo no caso de seu inadimplemento. E o terceiro quando sua incidência já está predeterminada ou vem a ser definida em cada caso concreto.16

O núcleo basilar do elenco genérico dos direitos sociais se cristaliza no art. 6º da Constituição, que abrange um núcleo sistêmico de todas as suas espécies. Ele agasalhou as seguintes prestações estatais: direitos a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Não que esse elenco seja exaustivo, ele igualmente contempla princípios implícitos e outros que sejam decorrentes do regime e dos princípios adotados, bem como dos tratados internacionais incorporados. Conforme ensina o Professor Pinto Ferreira, o catálogo dos direitos sociais não é exaustivo, mas apenas exemplificativo, compondo um rol mínimo e irredutível de tais prerrogativas que não podem nem devem ser diminuídos pelo legislador.17

De acordo com a evolução da sociedade novas prerrogativas serão incorporadas ao ordenamento jurídico e haverá um avanço na densidade suficiente de muitas prerrogativas, no que impulsionará um grande esforço teorético e de efetivação desses direitos. O Direito não é uma ciência imutável e constante, as concepções jurídicas necessitam se adequar a evolução dos eventos fáticos, sob pena de propiciar uma lacuna ontológica.18 Por isso, os direitos sociais devem ser concebidos em um living constitution19, como diritto vivente20, algo vivo que tem que acompanhar o desenvolvimento dos atores sociais.

Pelos diversos tipos elencados acima, depreende-se que os direitos sociais não são homogêneos, diferenciando-se em seu elemento estrutural, no tipo de prestação realizada e no fator teleológico almejado. Com relação à estrutura do texto normativo, as prerrogativas podem ser mais vagas ou concretas, impor comportamentos ou organizar entes estatais, direcionar-se aos cidadãos ou aos legisladores. Quanto à prestação, as prerrogativas podem ser self-executing ou no self-executing, exigir maior ou menor dotação orçamentária, ter uma concretização deferida

16 ALEXY, Robert. Teoriaa dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 502-503.17 FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. 1 Volume. São Paulo: Saraiva, 1989. P. 222.18 DINIZ, Maria Helena. Norma constituicional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1992. P. 58.19 SCALIA, Antonin Scalia. A Matter of Interpretation.Federal Courts and The Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997. P. 39.20 CAVINO, Massimo. “Il Precedente tra Certeza del Diritto e Liberta del Giudice: La Sintesi nel Diritto Vivent”. In: Diritto e Società. n. 1 Gennaio-Marzo. Padova: CEDAM, 2001. P. 162.

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no tempo ou ser de realização mediata. Como exemplo desta diversidade, podemos citar a prerrogativa que garante uma jornada semanal de quarenta e quatro horas e aquela que prevê a erradicação da miséria. Concernente ao objetivo acalentado pode se dirigir a incrementar a autonomia privada dos cidadãos ou estimular o desenvolvimento da capacidade do cidadão, solidificando seu elo de ligação com a coletividade.

Além das condicionantes materiais, os direitos sociais são formados por elementos estruturais, que espelham dados normativos-constitucionais. Estes elementos são um constante em todas as normas jurídicas, permeando todas as dimensões de direitos humanos. Por esse prisma não há diferença com relação aos direitos sociais, distinguindo-se das demais prerrogativas pela complexidade de sua concretização. A estrutura normativa, o texto dessas prerrogativas, configura-se como um elemento importante para a definição de sua conceituação, sendo um dado a priori que deve ser levando em consideração como vetor inicial para a determinação de seu campo de incidência.

Em virtude da complexidade das prestações implementadas pelos direitos sociais, muitas exigindo um elastério temporal significativo ou a atuação de vários entes estatais – contudo, alguns têm aplicabilidade imediata como as garantias trabalhistas – para terem uma eficácia satisfatória, precisam ser regulamentas, especificando seu conteúdo e definindo o exato sentido de seu alcance. De maneira geral, mesmo as normas self-executing podem ser disciplinadas, contudo, no caso de alguns direitos sociais esta normatização se mostra como condição sine qua non para sua potencialidade normativa.

O fato de elas precisarem ser regulamentadas não significa cercear sua normatividade ou deixá-las ao talante arbitrário do legislador. Caso sua eficácia seja relegada em razão da ausência de normatização, pode-se acionar o Poder Judiciário que tem a missão constitucional de velar pela sua concretização, exigindo que o Legislativo produza a norma faltante ou regulamentando, de forma suplementar, para que o direito humano não se torne um mero signo retórico.

Outro diferencial em sua prestação refere-se a dispositivos que necessitam de um suporte econômico superior em relação a outros, obrigando os entes estatais a direcionar uma dotação orçamentária maior, no que realiza uma justiça distributiva no senso aristotélico. Os recursos direcionados à educação são característicos do diferencial prestacional porque exige um alto aporte orçamentário e um lapso temporal longo para a produção de seus efeitos.

O fator teleológico dos direitos sociais se difere de forma nítida das normas de primeira dimensão já que ultrapassam o viés de proteção exclusiva do princípio da autonomia da vontade individual, reestruturando-o para submetê-lo ao alvedrio das necessidades sociais, tomadas como

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pressupostos para o desenvolvimento integral da sociedade. O desenvolvimento da personalidade dos cidadãos ultrapassa a perspectiva restritiva do individualismo orgânico, para abranger necessidades coletivas que colocam cada componente da sociedade em ligação com os demais.

Enquadramento dos Direitos Sociais.

Os direitos sociais são heterogêneos porque, em sua maioria, não se situam em uma esfera exclusivamente jurídica ou fática. Para sedimentar sua conceituação, afirma-se que todos ostentam o mesmo fator teleológico, a reverberação do princípio da dignidade humana, pilastra insofismável para o desenvolvimento do multiculturalismo típico das sociedades pós-modernas.21

Parte da doutrina opta por classificar os direitos sociais em direitos negativos, de defesa, e direitos positivos, de atuação, mesmo sabendo que eles possuem uma taxionomia bastante diversificada, sem a existência de parâmetros genéricos para classificá-los de maneira uniforme. São denominados de prerrogativas de defesa aqueles que são concretizados com uma abstenção na atuação do Estado, em que o non fecere estatal é a premissa básica para sua realização. Os intitulados de prerrogativas positivas são aqueles que exigem uma atuação estatal para sua implementação, não bastando uma simples omissão do Estado para sua eficácia. Exemplo da primeira classificação pode ser mencionada a proibição de jornada superior a quarenta e quatro horas semanais ou a garantia à liberdade de cátedra; exemplo da segunda pode ser citado o direito à moradia ou à educação, que exigem atividades governamentais para que a população possa utilizar tais serviços.

Não obstante a classificação anteriormente exposta, a dicotomia entre negativos e positivos se encontra um pouco arrefecida, pois todos eles apresentam um custo, que varia de acordo com dados conjunturais, precisando de regulamentação e demandando atividades efetivas para sua concretização.22 Alguns direitos de defesa, como a proteção a propriedade, por exemplo, exige prestações bem mais intensas do que várias prerrogativas sociais. Se alguns direitos sociais se apresentam como de eficácia imediata, sem necessidade de interferência do legislador, outros, para conseguirem efetividade, precisarão de atividade preponderantemente administrativa dos poderes estabelecidos.23

Classificação que encontra mais respaldo na doutrina, superando muitas dificuldades teoréticas, é a que divide os direitos de segunda

21 LYON, David. Pós-Modernidade. São Paulo: Paulus, 1998. P. 23.22 SUNSTEIN, Cass R. & HOLMES, Stephen. The Cost of Rights. Why Liberty Depends on Taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999. P. 87. 23 QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais. Funções, Âmbito, Conteúdo, Questões Interpretativas e Problemas de Justiciabilidade. Coimbra: Coimbra Editores, 2006. P. 29.

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dimensão de acordo com sua prestação, em fáticos e jurídicos.24 Neste caso, escolheu-se como parâmetro a prestação estatal oferecida porque é através dela que se pode vislumbrar diferenças substanciais entre esses direitos, sem que a incidência de fatores secundários possa obscurecer diferenças marcantes entre eles.

Os primeiros necessitam para sua concretização, da realização de determinadas tarefas ou serviços, com a alocação de recursos por parte da administração pública.25 A simples descrição normativa, com a respectiva subsunção, sem a instrumentalização de medidas para sua concretização não se configura suficiente para fazê-los efetivos. O escopo almejado pela Constituição apenas pode ser concretizado se houver atividade conjunta por parte do Poder Executivo, do Poder Legislativo e, no caso de omissão, do Poder Judiciário. Eles dispõem de um grau de determinação bastante variável. Todavia, mesmo dentre essa seara, existem normas com alto grau de precisão, como é o caso do direito à educação fundamental gratuita e à creche para os filhos e dependentes, até seis anos dos trabalhadores. No intento de evitar a imprecisão normativa destas disposições, a solução encontra-se na fixação de um núcleo essencial, de uma densidade suficiente, que norteará sua aplicação. Exemplo de prestação fática pode ser a disponibilização de determinado tratamento específico aos pacientes ou a distribuição gratuita de remédios.

Os segundos configuram-se quando o objeto da exigência se refere à edição de uma norma, seja de proteção, proibição ou organização. Proteção no sentido de que sua função é a tutela de determinado bem jurídico considerado imprescindível para a sociedade, como o resguardo da infância. Proibição para evitar determinadas práticas que são lesivas ou pouco desejáveis, como impedir trabalho penoso ou insalubre a menor de dezoito anos. Organização na intenção de disciplinar o funcionamento de certas instituições. No sentido jurídico, o escopo é proteger, regulamentar ou coibir determinadas condutas que possam afrontar a integridade física e psíquica dos cidadãos, agasalhando seu sentido positivo e negativo. Como exemplo, pode-se mencionar a obrigação que têm as empresas de proteger seus funcionários de atividades insalubres ou impedir a instalação de indústrias que comprometam o meio ambiente.

Quanto a sua origem, os direitos sociais são divididos em originários e derivados. Os primeiros decorrem de sua positivação nas leis, constitucionais e infraconstitucionais, adquirindo força normativa e certeza de sua pertinência ao ordenamento jurídico. Os segundos têm sua origem

24 “se trata de um conjunto de direitos que exigem a realização de autênticas prestações por parte do Estado. Surgem de forma isolada ao largo do século XIX, com o intento de realizar o princípio da igualdade”. CONDE, Enrique Alvarez. Curso de Derecho Constitucional. 3. ed. Madrid: Tecnos, 1999, vol. 1. P. 446.25 “Sob as condições da moderna sociedade industrial, a liberdade fática de um grande número de titulares de direitos fundamentais não encontra substrato material em um âmbito vital, mas depende essencialmente de atividades estatais.” ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales. 1993. P. 487.

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na consolidação de certas prestações que se incorporam ao patrimônio dos cidadãos, sem que necessariamente provenham de lei. Sua origem pode ser a realização de políticas públicas, que com o decorrer do tempo foraam incorporadas ao patrimônio da coletividade.

A diferença é que os primeiros são expressamente determinados em lei, enquanto os segundo ostentam sua proteção através do princípio do entrenchment das prestações consolidadas na sociedade. Teoricamente, a primeira proteção apresenta uma maior eficácia do que a segunda porque sua especificação expressa permite uma melhor proteção. Na realidade, a melhor proteção será aquela que for absorvida pela maioria da população como valor pertinente a todos.

Com relação ao âmbito de incidência dos direitos sociais, Robert Alexy os classifica em conteúdo minimalista e maximalista. O primeiro tem o objetivo de garantir ao cidadão um espaço vital mínimo, sendo protegidos apenas “pequenos direitos sociais”. No segundo, a intenção é alcançar um nível de proteção mais elastecido, englobando bastantes aspectos vida social porque sem essa atuação não se pode garantir uma plena emancipação da personalidade.26 Esta última classificação, independe, de forma apriorística, de uma análise jurídica dos direitos fundamentais, estando mais adstrita à concepção ideológica da organização política vigente. Um Estado liberal tende a privilegiar a concepção minimalista, enquanto um Estado Social tende a privilegiar uma concepção maximalista.

Coercitividade dos Direitos Sociais

Na declaração de independência dos Estados Unidos, em 1776, Thomas Jefferson escreveu: “Consideramos estas verdades autoevidentes; que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca de felicidade.”27 Pode-se, atualmente, assinalar que os direitos humanos representam “verdades auto-evidentes”, que ocupam um lugar de destaque na maioria dos ordenamentos jurídicos.28 Contudo, essas verdades auto-evidentes sofrem bastante contestação, principalmente quando se referem à efetivação dos direitos sociais.

O principal argumento em favor da eficácia vinculante dos direitos sociais é que eles são requisitos essenciais para que os direitos de primeira

26 ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales. 1993. P. 487. 27 “…We hold these truths to be self-evident, that all Men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the Pursuit of Happiness…” DERSHOWITZ, Alan. America Declares Independence. New Jersey: Wiley, 2003. P. 169.28 MIRKINE-GUETZÉVITCH, Boris. Evolução Constitucional Européia. Trad. Marina de Godoy Bezerra. Rio Janeiro: José Konfino Editor, 1957. P. 157.

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dimensão tenham uma real concretização. Não se pode conceber uma realização fática das liberdades clássicas se estas prerrogativas não forem acompanhadas de elementos materiais que as façam efetivas, possibilitando sua translação da esfera abstrato-dogmática. Nesta perspectiva, inexiste colisão entre direitos individuais e sociais, funcionando um como requisito para a efetivação do outro.29

Em uma sociedade complexa como a atual, em que pululam litigiosidades sociais, para que o cidadão possa expandir seu potencial, desenvolvendo sua personalidade, defluência de seu direito a autodeterminação, os entes estatais têm que oferecer determinadas prestações que se não forem materializadas o colocarão à margem da sociedade, podendo ele se tornar uma ameaça social, com custos muito mais relevantes do que os direitos sociais negligenciados.

Concorda-se com José Carlos Vieira de Andrade quando ele planteia que os mandamentos relativos aos direitos sociais a prestações não detêm caráter meramente declaratório, constituindo-se em mandamentos coercitivos, que outorgam aos cidadãos posições jurídicas subjetivas e asseguram garantias institucionais, impondo ao poderes estabelecidos a obrigação de tentar efetivá-los.30 Ostentando igual hierarquia e estrutura que os demais direitos humanos, sua não implementação pode sujeitar o órgão estatal infrator a sofrer as sanções previstas em lei.31

A afirmação que as mencionadas normas apresentam apenas valor político, destituído de eficácia, padece de razoabilidade porque todos os dispositivos jurídicos têm coercitividade, do contrário não estariam agasalhados em dispositivos normativos. Classificar as normas jurídicas, principalmente as constitucionais, em normativas ou não-normativas, mitiga a estruturação sistêmica e retira-lhes a potencialidade de produção de efeitos. A alegação de que são normas incompletas em razão de exigirem complementação do legislador se mostra infundada devido a eficácia imediata dos direitos humanos, de acordo com o art. 5º,§ 1º, o que permite que suas prerrogativas possam ser implementadas sem que tenham de esperar por regulamentação do Poder Legislativo.

Essa discussão centralizada na temática de que os direitos sociais não ostentam eficácia, sendo classificadas como normas políticas ou morais, sob o prisma dogmático-jurídico, encontra-se totalmente superada, principalmente depois do crash econômico de 2008 em que as grandes

29 “... a permissão jurídica de se fazer ou deixar de fazer algo, não tem valor sem uma liberdade fática (real), isto é, a possibilidade fática de escolher entre as alternativas permitidas” ALEXY, Robert. Teoriaa dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 503.

30 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.2 ed., Coimbra: Almedina, 2001. P. 378.31 RUIZ, Alicia E.C. “La Realización de Los Derechos Sociales en um Estado de Derecho.”. In: Constituição e Estado Social. Os Obstáculos à Concretização da Constituição. Coimbra: Editora Coimbra, 2008. P. 44.

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economias capitalistas tiveram que intervir no mercado para garantir um mínimo de solvabilidade ao sistema econômico, assegurando um padrão mínimo de empregabilidade, isto é, houve um alto nível de intervenção estatal para, dentre outros motivos, zelar por um direito social. Alçada a Constituição ao patamar de pacto vivencial da sociedade, as prerrogativas de segunda dimensão precisam ser concretizadas porque se configura com um mínimo comum de integração social, ferramenta em que cada um dos cidadãos se reconhece como componente da sociedade. Portanto, eles ostentam eficácia, dependendo de fatores outros a determinação do grau dessa produção de efeitos.

Essas prerrogativas não apresentam uma estrutura normativa diferente dos direitos individuais ou coletivos.32 Eles são considerados como normas jurídicas, apresentando a mesma coercitividade. O problema é que os direitos sociais interferem na seara privada, especialmente na economia, com o escopo de dividir os ativos sociais e amparar a população mais carente. Em decorrência, essa atuação afronta vários interesses, mormente em um país periférico em que o espaço público fora apropriado por uma elite que tem verdadeira aversão a qualquer tipo de política redistributiva.

Com o escopo de garantir essa densificação dos direitos humanos, principalmente dos direitos sociais, o axioma da separação dos poderes sofreu uma reestruturação completa. Ele deixa de ser alicerçado com base em sua funcionalidade e passa a se fundamentar teleologicamente, no cumprimento dos mandamentos constitucionais. Assim, não há mais função típica ou atípica, mas uma atuação para estabelecer os freios e contrapesos, no sentido de que os mandamentos constitucionais possam ser cumpridos.

Dessa forma, quando os direitos sociais são descumpridos, qualquer um dos poderes estabelecidos deve atuar para sanar o acinte. As hipóteses mais comuns de máculas encontradas na atualidade são quando essas prerrogativas não podem ser efetivadas por falta de regulamentação ou quando a administração pública não assegura determinado serviço ou prestação material em uma intensidade suficiente. No escopo de garantir efetividade aos direitos sociais, o Poder Judiciário assume um papel muito relevante. Quando houver uma omissão de regulamentação por parte do Legislativo ou a inexecução de serviços ou prestações materiais por parte do Executivo, ele pode legislar de forma supletiva ou forçar a implementação da prestação não executada, desde que se atendo a densidade suficiente do direito pleiteado.

Não se deve esperar que o Poder Judiciário funcione como uma panacéia para a resolução dos problemas de eficácia dos direitos sociais. O motor de sua força normativa se encontra no grau de legitimidade que ele

32 QUEIROZ, Cristina. O Princípio da Não Reversibilidade dos Direitos Fundamentais Sociais. Princípios Dogmáticos e Prática Jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editores, 2006. P.17.

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aufere da sociedade, tornando essa demanda um valor que obtenha consentimento dos mais expressivos setores. Dentro da sistemática dos freios e contrapesos o Poder Executivo também deve pressionar os entes estatais infratores, bem como o Poder Legislativo, que deveria ser a caixa de ressonância da sociedade.

Inexiste razoabilidade para se defender que os direitos sociais não são justiciáveis, em razão de que eles apresentam a mesma taxionomia que os outros, estando protegidos pela mesma intensidade de força normativa. Nem o fato de que eles necessitam de prestações materiais, ao encargo da administração pública, serve para retirar a veracidade da afirmação primeira. Argumentação ainda mais débil se configura na afirmação de que exigem regulamentação para sua subsunção. A falta de regulamentação normativa pode ser suprida supletivamente pelo Judiciário ao permitir a utilização de disposição análoga para a realização de seu conteúdo.

Eles são justiciáveis como as demais normas, apenas seu âmbito de incidência não pode ser determinado a priori, prima facie, demandando maior elaboração dogmática para indicação de sua densidade suficiente. Afora essa circunstância, inexiste justificação para a diferenciação entre as dimensões dos direitos humanos.33 Havendo um afronta ao seu cumprimento, o Poder Judiciário tem a obrigação de garantir a tutela prestacional dessa prerrogativa, assegurando a prestação da densidade suficiente da demanda.

Dificuldade de Eficácia dos Direitos Sociais

De forma equivocada, alguns doutrinadores afirmam que a maior parte dos direitos sociais tem apenas eficácia quando forem regulamentados, sem nenhum tipo de eficácia imediata. Na realidade, todas as normas jurídicas, mesmo as programáticas, ostentam possibilidade de produção de consequências de forma imediatas e mediatas. Efeitos imediatos são os instantâneos, auto-executáveis sem depender da criação de nenhuma outra norma ou realização de serviço. Efeitos mediatos são aqueles que produzem todas as suas consequências apenas quando forem regulamentadas. Em decorrência do exposto, até as normas programáticas produzem efeitos imediatos, no sentido de que não pode haver normatizações que violem seu conteúdo e têm assegurada a eficácia de seu núcleo essencial.

As obrigações decorrentes da cominação dos direitos sociais são exigíveis e não dependem da discricionariedade da administração ou do

33 Esse é o posicionamento de Jorge Miranda, para quem não há necessidade teórica de se diferenciar entre os direitos sociais e os direitos à liberdade. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3 ed., Coimbra: Coimbra Editores, 2000. P. 384.

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legislador.34 Elas têm como fato gerador a mesma gênese das outras normas constitucionais, o Poder Constituinte, possuem taxionomia jurídica e sua inaplicação acarreta iguais sanções jurídicas previstas aos demais dispositivos.

Existem várias matizes doutrinárias que levantam barreiras contra a eficácia imediata dos direitos sociais.35 A argumentação clássica é que essas prerrogativas representam uma justificação razoável para que o Estado intervenha na sociedade podando a liberdade do cidadão. A atuação intervencionista dos entes estatais suprimiria o livre arbítrio, marcando sua atuação por arbitrariedades aos direitos individuais, no que estimularia um retorno ao Estado absolutista. Esta linha argumentativa clássica se mostra desarrazoada porque parte da falsa premissa de que a intervenção estatal suprimiria as liberdades clássicas. Toda é qualquer prerrogativa humana necessita de intervenção estatal, constituindo mesmo um requisito para sua concretização, pois sem esses requisitos materiais sua efetivação seria impossível.

A segunda linha argumentativa é que essas normatizações não possuem uma conotação universalista, sendo próprias de cada sociedade em razão de suas idiossincrasias. Planteia José Adércio que o particularismo dos que advogam esta tese estaria tanto no fato de não serem sempre aplicáveis a cada um e a todos os membros da sociedade, em decorrência da posição ocupada por cada membro, quanto de serem apenas perifericamente garantias da dignidade humana.36 A conceituação dessas prerrogativas é universal, o que sofre modificação é sua incidência em cada realidade concreta, em que as condicionantes fáticas desempenham uma função premente. Não há grandes discussões no concernente ao direito à educação ou à saúde, a problemática fulcral se configura na discussão da determinação dessas duas prerrogativas, mesurando o exato conteúdo da incidência normativa.

A terceira frente contrária aos direitos humanos propugna que eles não são dispositivos jurídicos, mas são cominações morais, apresentando caminhos genéricos aos poderes constituídos. Seriam exortações aos cidadãos, sem que sua demanda de inexecução possa ser apreciada pelo Poder Judiciário. Todavia, para se concordar com essa afirmação precisa-se responder essas indagações: se são normatizações morais, então por que foram positivadas no Texto Constitucional? Por que são justiciáveis pelo Poder Judiciário? Há alguma diferença estrutural que as façam perder sua taxionomia jurídica? Portanto, como são normas constitucionais, dotadas de supralegalidade, podendo ser tuteladas por

34 RUIZ, Alicia E.C. “La Realización de Los Derechos Sociales en um Estado de Derecho.”. In: Constituição e Estado Social. Os Obstáculos à Concretização da Constituição. Coimbra: Editora Coimbra, 2008. P. 44.35 Tratar-se-á apenas das impugnações principais.36 LEITE SAMPAIO, José Adércio. Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. P.269-270.

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instrumentos jurídicos, possuindo a mesma estrutura dos demais mandamentos, inexiste razoabilidade teórica para asseverar que são disposições morais.

Por último, a impugnação democrática, que propugna que os direitos sociais são normatizações arbitrárias porque retiram dos representantes da soberania popular, os parlamentares e a administração pública, a possibilidade de escolherem como esses mandamentos são realizados.37 Em virtude dessas prerrogativas serem efetivadas através de políticas públicas, que possuem nítido caráter discricionário, seu direcionamento deveria ocorrer exclusivamente por decisões políticas, proferidas pelos representantes populares que detém legitimidade para tanto, sem que os membros do Poder Judiciário pudessem intervir por não possuírem autorização nem o conhecimento necessário para a realização da tarefa. A intervenção do judiciário seria ato completamente antidemocrático, adentrando em uma esfera que fora reservada à atuação dos poderes políticos constituídos.

Pela importância desempenhada pelas prerrogativas ora analisadas, constituindo-se no núcleo valorativo do Welfarestate, a sua construção não pode ficar ao talante de maiorias parlamentares esporádicas. A personificação da soberania popular é cristalizada na política constitucional, higher lawmaking track, contando com uma carga elevada de legitimidade. A produção legislativa ordinária, lower lawmaking track, não carrega a legitimidade suficiente para descumprir mandamentos constitucionais, impedindo comparações entre a força normativa dos representantes ordinários e a ostentada pelos legisladores constituintes.38

Assim, conclui-se que a acusação dos direitos sociais serem antidemocráticos não é valida porque maior grau de legitimidade popular dispõe as normas constitucionais que foram feitas pelos legisladores constituintes.

Canotilho elenca três perspectivas de argumentações contras a densificação dos direitos fundamentais: plano político-constitucional, em que as suas prestações jurídicas são claudicantes devido pressupor sempre a necessidade de dispor de uma reserva econômica; plano jurídico-dogmático porque ao contrário dos direitos clássicos, que exigem uma omissão do Estado, as prerrogativas de segunda dimensão demandam uma intervenção ativa no fornecimento de prestações; plano metódico e metodológico devido os direitos de primeira dimensão permitir claramente sua justiciabilidade,

37 “ O objeto desta legitimação democrática se estende a toda legitimação estatal.” BÖCKENFÖRDE, Wolfgang Ernst. Estudios sobre el Estado de Derecho y la Democracia. Madrid: Editorial Trotta, 2000. P. 55.38 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P. 285-290.

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enquanto que os prestacionais, por terem um conteúdo mais abstratos, exigirem procedimento hermenêutico mais específico.39

A não efetividade dos direitos sociais não se deve a características inerentes a sua estrutura normativa, podendo ser imputada essa deficiência a uma ausência de vontade política em sua concretização, pois os principais beneficiados estão excluídos dos processos de decisão política. Inexiste intenção em sua concretização porque há outras finalidades prioritárias para alocação das receitas do Estado, mesmo que esta efetivação seja considerada como essencial para a evolução da sociedade.

Nesse sentido são as palavras de Liana Cirne Lins: “Porém, apesar de reconhecida a abertura e acuidade textual também das normas dos direitos de liberdade, a estes uma muito maior eficácia é de plano reconhecida. O amplo reconhecimento doutrinário de vacuidade e indeterminação textual dos preceitos constitucionais consagradores dos direitos de liberdade permite conduzir à conclusão de que seu tratamento díspar quanto à sua aplicabilidade provém, antes, do fato de os direitos de liberdade já terem ultrapassado seu momento histórico de afirmação, sendo hoje plenamente consagrados no plano político, razão que sobrepuja mesmo a estrutura aberta de seus preceitos. Assim, é sua consagração política – e não jurídica – que lhe permite a dotação de um regime jurídico que consiste na sua plena eficácia imediata e que é tido pela doutrina tradicional como completamente distinto do regime jurídico dos direitos sociais”.40

Por sua efetividade ser complexa, a concretização dos direitos de segunda dimensão deve levar em consideração circunstâncias materiais, observando, diante das conjunturas fáticas, a extensão de sua incidência. Com isso não se defende sua insegurança, variando ao sabor de uma caneta discricionária. Contudo, esses dispositivos não podem ser aferidos de forma voluntária, sem adequação com as condições sociopolíticoeconômicas. Os afãs mais voluntariosos vão sendo aplainados à medida que as decisões sejam proferidas pelas instâncias superiores, até chegar ao Supremo Tribunal Federal que definirá seus contornos.

A densidade suficiente fornece um claro indicador dos contornos de seu conteúdo, impedindo a produção de dessimetrias em sua aplicação. Sua consolidação, aproveitando-se da riqueza auferida na ligação entre a normalidade e a normaticidade, fornece aos operadores jurídicos um vetor

39 CANOTILHO, J. J. Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. P. 52-53.

40,? LINS, Liana Cirne. Exigibilidade dos Direitos Fundamentais Sociais e Tutela Processual Coletiva das Omissões Administrativas. Tese de doutorado apresentada na UFPE, em 27.03.2007, no qual obteve aprovação com distinção. P. 43.

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mais do que suficiente para expungir qualquer alegação de indeterminação em sua aplicação.

Mesmo padecendo de uma alta carga de abstração, os direitos sociais são aptos a produzir efeitos imediatos, dentre os quais se destacam: a) asseguram a eficácia da densidade suficiente de seu conteúdo; b) produzem revogação das normas anteriores; c) vinculam o legislador a produzirem sua regulamentação; d) acionam o controle de constitucionalidade daquelas normas que infligem seu conteúdo, seja por ação ou omissão; e) são parâmetros para a interpretação, integração e aplicação das normas.

A complexidade de efetivação dos direitos sociais pode ser imputada a três fatores e as consequências deles advindas: a necessidade de serem instituídas políticas públicas para sua efetivação; o sentido aberto de seus textos normativos e a vinculação aos poderes estatais.

Os direitos sociais, de forma bem mais incisiva do que as demais prerrogativas, necessitam para sua concretização de pressupostos extrajurídicos para sua realização. Eles são prestações materiais que de alguma maneira se entrelaçam com as condições econômicas vigentes na sociedade, sendo determinados pelo grau de distribuição de bens e riqueza na sociedade. Canotilho denomina de pressupostos de direitos fundamentais, consistindo em uma multiplicidade de fatores como a capacidade econômica, a ética imperante, a distribuição de bens, o nível educacional, as tradições culturais etc., que condicionam, de forma positiva ou negativa, na realização desses direitos.41

Quando as prerrogativas de segunda dimensão são prestacionais, elas envolvem um conteúdo econômico preponderante, por intermédio de políticas públicas, e sua concretização ocorre de forma paulatina, dependendo de conjecturas políticas. Precisa-se da atuação de órgãos administrativos, com o direcionamento de recursos orçamentários e planejamento para que o resultado pleiteado seja atingindo, o que em muitos casos, demora lapso temporal considerável. O aspecto normativo não é suficiente para resolver o problema, pressupondo a interseção da normatividade atrelada a uma decisão política de realizar tais postulações.

Como exige a canalização de vultosas somas econômicas, as políticas públicas mencionadas interferem na distribuição dos ativos sociais, pressionando por uma reelaboração na forma como ela ocorre. A distribuição da riqueza social sofre transformação, atendendo setores da população que não estavam inseridos nesse processo. Esse deslocamento de ativos econômicos, que beneficia os mais necessitados, por outro lado, prejudica aqueles que sempre auferiram benefício das políticas públicas, geralmente concentradoras de renda. Advém dessa constatação fática, a

41 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2 Ed., Coimbra: Almedina, 1998. P. 431.

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oposição que se forma contra as tentativas de concretização dos direitos sociais, geralmente taxando-as, pejorativamente, de assistencialista, de incentivar a desocupação e a corrupção da máquina pública.

A segunda grande complexidade se configura na imprecisão normativoconceitual desses direitos, em que o texto legal não oferece todos os direcionamentos para sua concretização de “forma automática”. Neste caso, os demais elementos para a subsunção advêm do contexto fático, pressupondo claramente um posicionamento não-literalista.42

Apesar da maior parte das estruturas normativas das prerrogativas de segunda dimensão ser formadas de princípios, esse fato não lhes retira a natureza jurídica nem muito menos sua coercitividade. Elas impõem certo conteúdo que deve ser acatado sob pena de imposição de sanção jurídica. Apenas esse dado fático obriga os operadores jurídicos a “exigências metódicas mais elevadas”, na medida em que os elementos gramaticais do texto não mostram um indicador uníssono a sua concretização, o que impede a dedução de “pretensões subjetivas jusfundamentais” de forma generalizada e automática.43

Sua realização depende de circunstâncias metajurídicas, principalmente do estabelecimento de consensos essenciais na definição de seu nível de concretude, por intermédio da consolidação da densidade suficiente de cada um desses direitos. O pretexto de que sua incidência situa-se ao largo da literalidade positivista não serve como argumento para sua debilidade normativa porque, como afirma Oppenheim, as interpretações judiciais não passam de uma máscara para que os juízes possam exercer a função legislativa.44

O último fator de complexidade é que esses dispositivos não podem obter efetivação se não houver uma sincronia de atuação dos poderes estabelecidos. Cabe ao Executivo estruturar os serviços, disponibilizando os recursos para que eles percam o teor abstrato e entrem na realidade fática, tem o Legislativo à obrigação de regulamentá-los para facilitar sua subsunção normativa e incumbe ao Judiciário garantir sua realização, mormente no que afrontar seu conteúdo essencial. Como atos complexos que são, o estorvo é modular essa atuação para impedir omissões e superposições.

Entrenchment dos Direitos Sociais

42 GREY, Thomas C. “Do We Have an Unwritten Constitution.”In: Stanford Law Review. N. 27, 1975. P. 709 -710.43 QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Coimbra: Coimbra Editores, 2002. P. 153.44 OPPENHEIM, Felix E. “The Judge as Legislator”. In: Cognition and Interpretation of Law. Torino: Giappichelli, 1995. P.292.

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Conceito de Entrenchment De maneira bem sucinta pode-se dizer que entrenchment ou

entrincheiramento, também chamado de proibição do retrocesso, princípio do não-retorno da concretização ou princípio da desnaturação do conteúdo da Constituição, é a tutela jurídica da densidade suficiente dos direitos humanos, respaldada em uma legitimação social, evitando que possa haver um retrocesso, seja através de sua supressão normativa ou por intermédio da diminuição de suas prestações à coletividade. Uma maior necessidade de se avolumar sua teorética volta-se principalmente para os direitos sociais, que pela consequencias produzidas na sociedade, sofre uma maior restrição.

Dessa forma, as prerrogativas dos cidadãos são fixadas em uma determinada intensidade e essa intensidade é protegida para que sua eficácia não se torne cambiante de acordo com variáveis sociais, acarretando uma proteção à precisão dos valores constitucionais, o que impede sua modificação para atender a particularidades e, ao mesmo tempo, serve para aumentar a segurança jurídica do conteúdo das normas constitucionais e efetivar a jurisdição constitucional.45

Posner e Adrian definem o entrincheiramento como a promulgação de lei ou outros tipos normativos que obrigam as legislaturas subseqüentes a obedecer ao conteúdo elaborado.46 Ingo Sarlet liga o princípio da proibição ao retrocesso ao princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de que o primeiro é um instrumento de proteção do segundo, e este se configura como a qualidade intrínseca de cada cidadão que o faz merecedor de um amplo leque de direitos e deveres fundamentais, garantindo a todos condições mínimas de bem-estar social para permitir o florescimento de suas qualidades potenciais.47

De acordo com o nível de proteção de seu conteúdo, o professor José Carlos Andrade Vieira divide o entrenchment dos direitos fundamentais em três categorias. Tem uma intensidade máxima quando as concretizações legais forem consideradas materialmente constitucionais. Apresenta grau intermediário quando os seus efeitos forem ligados ao princípio de proteção da confiança ou à necessidade de fundamentação dos atos legislativo que retrocedem. É considerado de grau mínimo quando a proteção se restringir

45 SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules. A Philosofical Examinations of Rule-Based Decision-Making in Law and in Life. New York: Oxford University Press, 1998. P. 42-43. 46 POSNER, Eric A & ADRIAN, Vermeule. “Legislative Entrenchment: A Reappraisal”. In: Yale Law Journal. New Haven: Yale University, n. 111, 2001-2002, P. 1667.47 SARLET, Ingo. “Direitos Fundamentais Sociais e Proibição de Retrocesso: Algumas Notas Sobre o Desafio da Sobrevivência dos Direitos Sociais Num Contexto de Crise”. In: (Neo) Constitucionalismo. Ontem os Códigos. Hoje, as Constituições. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, Vol. 1, n. 2, 2004. P. 127.

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a impedir a destruição do nível essencial dos direitos fundamentais, ligado ao conceito de dignidade da pessoa humana.48

Anupam Chander divide o entrenchment em absoluto, que se configura imutável, sendo infeso a modificações, mesmo se forem realizadas pelo Poder Constituinte;49 e procedimental, que exige que a norma futura que modifique o conteúdo protegido pelo princípio do não-retorno da concretização siga determinadas formas e ritos de modo obrigatório, sob pena de não poderem produzir efeitos.50

O entrenchment do núcleo basilar dos direitos sociais funciona como uma garantia à efetivação dessas prerrogativas, impedindo um retrocesso em sua concretização e, conseqüentemente, aumentando o nível de densidade da Lex Mater.51 O entrincheiramento, como o étimo da palavra já clarifica, configura-se no encastelamento da eficácia suficiente dos direitos sociais dentro do ordenamento jurídico, solidificando este conteúdo no tecido coletivo. Seu escopo é fortalecer a densidade normativa desses direitos, funcionando também como elemento catalizador de legitimidade ao Estado Democrático Social de Direito, realizando o que Canotilho chamou de solidificação da legalidade democrática.52

A finalidade do entrenchment é garantir eficácia ao ordenamento jurídico, dotando-o de segurança jurídica, o que faz com que as normas deixem de ter um papel retórico e possam ter uma concretude prática. Como as normas são cada vez mais principiológicas, a determinação de seu conteúdo eliminaria a insegurança do sistema e igualmente evitaria a proliferação de antinomias.

A concepção de entrincheiramento ou proibição do retrocesso assegura uma proteção ao conteúdo dos direitos humanos em geral, mantendo um nível base de determinada concretude normativa.53 Contudo, o entrenchment não impede a evolução dos direitos, depois de garantir uma intensidade suficiente, reforçando sua legitimidade na sociedade, a

48 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 2 ed., Coimbra: Almedina, 2001. P. 391-392.49 No debate constitucional norte-americano, o entrenchment é analisado como qualidade intrínsica das normas constitucionais que exigem um quorum qualificado para a sua reforma, ou seja, ele é confundido com o conceito que nós temos de imutabilidade relativa. TUSHNET, Mark & JACKSON, Vicki C. Comparative Constitutional Law. New York: Foundation Press, 1999. P. 413-416.50 CHANDER, Anupam. “Sovereignty, Referenda, and the Entrenchment of a United Kingdom Bill of Right”. In: Yale Law Journal. New Haven: Yale University, n. 101, 1991-1992, P. 463.51 “Realmente, aflora no discurso constitucional da atualidade a preocupação em discutir e demarcar a forma de atuação da jurisdição constitucional e, além dela, sua forma de composição. Nessa teorização prepondera uma vertente de preocupação legitimadora, que procura indicar os elementos da Justiça Constitucional a partir de uma abordagem que lhe assegure caráter democrático. TAVARES, André Ramos. Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 492. 52 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998. P. 94.53 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Diregente e Vinculação do Legislador. Contribuição para a Compreensão das Normas Prográticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. P. 374.

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finalidade configura-se em expandir o entrincheiramento mais adiante, propiciando maiores prerrogativas à população.

A incidência do princípio do entrincheiramento não abrange todas as normas da Constituição, mas apenas aquelas consideradas como direitos humanos. Se o seu conceito perpassasse todas as normas constitucionais, o teor de discricionariedade do legislador ordinário seria fortemente mitigado, afetando um dos dogmas do regime democrático. Pela densidade axiológica que essas prerrogativas promanam para a legitimação da Constituição é que o entrenchment se refere de forma exclusiva a essas prerrogativas, que podem ser implícitas ou explícitas.

Seu escopo não é a constitucionalização de todas as normas infraconstitucionais que regulamentam a prestação dos direitos sociais, podendo elas ser revogadas por qualquer outra norma. O objetivo é impedir o esfacelamento do conteúdo basilar dos direitos de segunda dimensão, pois se isto acontecesse significaria relegar a ausência de eficácia importantes mandamentos da Constituição, perpetrando, assim, uma inconstitucionalidade.

O princípio do não-retrocesso também pode assumir um aspecto negativo, no sentido de entrenchment of discrimination, quando decisões do Judiciário servem apenas para manter privilégios, impedindo o avanço de demandas que são anseios da maioria da população.54 Para evitar este perigo, a possibilidade de incidência do princípio do não-retrocesso se limita apenas aos direitos humanos, desde que seu conteúdo suficiente seja garantido. Se por ventura houver a proteção de um direito sem o respeito de seu núcleo basilar, estar-se-á praticando uma crassa inconstitucionalidade, que deve ser reprimida pelos mecanismos de supralegalidade.

Andreas Krell expressa que os defensores da teoria da proibição do retrocesso ainda não se aprofundaram na questão para saber se a manutenção do nível de prestação social alcançado impede reduções do nível de organização fática dos serviços e do volume de prestações materiais, por parte dos poderes Executivo e Legislativo. Não obstante, afirma que a aplicação da teoria da proibição do retrocesso levaria a uma proteção maior dos direitos fundamentais sociais do que dos direitos fundamentais de liberdade.55

O entrenchment dos direitos fundamentais igualmente projeta efeitos prospectivos, ou seja, ao mesmo tempo em que defende os atos já incorporados ao patrimônio dos cidadãos, ele assegura que as próximas gerações irão da mesma forma usufruir igual prerrogativa, se possível, com maior intensidade. Sua função não é apenas impedir atos ou leis retroativas, mas assegurar a eficácia de um conteúdo basilar dos direitos fundamentais

54 SPERLING, Gene B. “Judicial Right Declaration and Entrenchment Discrimination”. In: Yale Law Journal. New Haven: Yale University, n. 94, 1984-1985, P. 1760.55 KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 2002. P. 39-40.

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para a posteridade, esconjurando o perigo de um retrocesso dos direitos sociais.56

O princípio do não-retorno da concretização favorece ainda a evolução dos direitos sociais. Partindo do consenso firmado pelo entrincheiramento dos direitos fundamentais, a negociação para o seu desenvolvimento se torna mais fácil, já que o standard protegido, entrincheiramento, goza de grande grau de normatividade e legitimação social. A sedimentação da carga axiológica do entrincheiramento dos direitos fundamentais no tecido social garante muito mais a densificação de sua eficácia do que medidas de natureza exclusivamente jurídicas.57 A proibição do retrocesso também fortalece a confiança no ordenamento jurídico, favorecendo o desenvolvimento das relações sociais, ao mesmo tempo em que protege a sua estabilidade.

Para o professor Michele Carducci o entrincheiramento exprime o desenvolvimento constitucional de uma comunidade específica porque é perseguida pela coordenação social de todos.58 Afirma o professor leccese que não basta apenas o aparecimento do direito constitucional no texto normativo para ativar o entrenchment, necessitando de uma aprendizagem difusa da prática argumentativa e decisória, com base em argumentos racionais e contra-balanciados.59

No debate doutrinário europeu sobre o princípio do não-retrocesso, a defesa dos direitos sociais ocorre no espaço público, em que as decisões são obtidas através de um consenso realizado por critérios racionais, balanceados no interesse coletivo devido ao diminuto nível de desigualdade existente. A realidade dos países periféricos é bem diferente, devido às desigualdades sociais que pululam na sociedade, o entrincheiramento auferido no espaço público é bem mais difícil; a própria democracia apresenta sérias deficiências. O entrenchment dos direitos

56 “Assim, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, retrocesso também pode ocorrer mediante atos com efeitos prospectivos. Basta lembrar aqui da hipótese – talvez a mais comum em se considerando as referências feitas na doutrina e na jurisprudência – da concretização pelo legislador infraconstitucional do conteúdo e da proteção dos direitos sociais, especialmente (mas não exclusivamente) na sua dimensão positiva, o que nos remete diretamente à noção de que o conteúdo essencial dos direitos sociais deverá ser interpretado (também!) no sentido dos elementos nucleares do nível prestacional legislativamente devinido, o que, por sua vez, desemboca inevitavelmente no já anunciado problema da proibição de um retrocesso social”. SARLET, Ingo. “Direitos Fundamentais Sociais e Proibição de Retrocesso: Algumas Notas Sobre o Desafio da Sobrevivência dos Direitos Sociais Num Contexto de Crise”. In: (Neo) Constitucionalismo. Ontem os Códigos. Hoje, as Constituições. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, Vol. 1, n. 2, 2004. P. 130-131.57 “Naturalmente, a médio ou a longo prazo, o não-retrocesso social não se garante tanto através de medidas jurídicas quanto através da sua sedimentação na consciência social ou no sentimento jurídico colectivo. Mas também não pode invocar-se uma menor sedimentação para negar ou subverter na prática qualquer direito e retirar efectividade a qualquer norma ou instituto constitucional”. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3 ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000. P. 399.58 CARDUCCI, Michele. Tecniche Costituzionali. Di Argomentazione Normazione Comparazione. Lecce: Pensa MultiMedia. 2003. P. 101. 59 CARDUCCI, Michele. Tecniche Costituzionali. Di Argomentazione Normazione Comparazione. Lecce: Pensa MultiMedia. 2003. P. 101.

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fundamentais tem que se alicerçar também nas decisões judiciais, buscando amparo, simultaneamente, na sociedade para o desenvolvimento dos seus preceitos.