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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS Faculdade de Direito de Recife WALTER NUNES DA SILVA JÚNIOR TEORIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO PROCESSUAL PENAL: limitações fundamentais ao exercício do direito de punir no sistema jurídico brasileiro. Recife 2005

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    Faculdade de Direito de Recife

    WALTER NUNES DA SILVA JNIOR

    TEORIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO PROCESSUAL PENAL: limitaesfundamentais ao exerccio do direito de punir no sistema jurdico brasileiro.

    Recife2005

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    WALTER NUNES DA SILVA JNIOR

    TEORIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO PROCESSUAL PENAL: limitaesfundamentais ao exerccio do direito de punir no sistema jurdico brasileiro

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Direito da Faculdade de Direito de Recife Centro de Cincias Jurdicas /UFPE, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Direito Processual Penal.

    Orientador:Prof. Dr. Francisco de Queiroz Cavalcanti

    Recife2005

  • 4

    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho ao meu pai, no apenas em razo do exemplo de

    homem, pai e jurista, cuja saudade imensa se tem recompensada pelas lies

    fundamentais que me deu e ao conceito de tica e hombridade que semeou perante

    quantos tiveram o privilgio de conhec-lo, como tambm forma de fazer-lhe

    homenagem, ainda que singela, pelos slidos e profundos conhecimentos

    humansticos.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    As minhas primeiras palavras de gratido vo para o Desembargador Federal e

    Professor Francisco Queiroz de Cavalcanti, que, alm de constituir-se no grande

    incentivador e colaborador para que os juzes federais vinculados ao Tribunal

    Federal da Quinta Regio desenvolvam a sua dimenso acadmica, soube, com

    inteligncia e pacincia, na qualidade de professor-orientador, guiar meus passos

    rumo elaborao da tese aqui escrita.

    Ao tempo em que manifesto o meu reconhecimento a todos os professores do Curso

    de Doutorado da Universidade Federal de Pernambuco, expresso a minha gratido

    especial aos Professores Paulo Lobo, Ivo Dantas e Ricardo de Brito.

    Em nome da Desembargadora Federal Margarida Cantarelli, quero agradecer a

    todos os Desembargadores do Tribunal Regional Federal da Quinta Regio pela

    compreenso e facilitao para que fosse possvel a freqncia e concluso do

    Curso de Doutorado, assim como a feitura deste estudo.

    Meu agradecimento minha famlia e a todos os meus amigos, que me

    acompanharam nessa empreitada e deram, cada um a seu modo e possibilidades,

    os estmulos imprescindveis para que o escopo acalentado fosse alcanado.

    A Sheila Guedes, pelas incansveis leituras e releituras da tese, na rdua tarefa de

    correo e adequao do escrito s normas tcnicas.

    A Aline Maia, que chegou no passado recente, quase no final desta tarefa, para me

    dar o conforto emocional indispensvel para o xito das grandes misses e tornar-se

    o meu presente e a perspectiva maior do meu futuro.

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    RESUMO

    O processo penal surgiu como instrumento hbil para limitar o exerccio do

    direito/dever de punir do Estado, o que coincidiu, no por acaso, com o movimento

    iluminista cuja preocupao macro era, do mesmo modo, impor limites ao poder do

    Estado, da por que se observa que as declaraes de direitos do homem, tal como

    elas foram constitucionalizadas pelo primeiro movimento constitucionalista,

    apresentam-se, ainda hoje, como garantias que tm incidncia maior no ambiente

    criminal, as quais servem para estabelecer regras que sinalizam para o respeito a

    direitos pertinentes dignidade da pessoa humana quando do exerccio da

    persecuo criminal, o que evidencia que esse ramo do direito no apareceu tendo

    como escopo armar o Estado para enfrentar a criminalidade, mas sim como

    instrumento hbil e necessrio para que fosse humanizada essa sua atuao,

    caracterstica que, embora com o passar do tempo tenha sido desvirtuada, aps a

    Segunda Guerra Mundial, ao sabor do neoconstitucionalismo ou do Estado

    Constitucional ou do Estado Democrtico-Constitucional, veio a ser resgatada,

    sendo que, no Brasil, esse novo paradigma somente veio a ser ressaltado com a

    promulgao da Constituio de 1988, a qual, ao plasmar os direitos fundamentais

    com fora normativa e na qualidade de normas de hierarquia superior legislao

    infraconstitucional, fez com que essa cateoria de direitos passasse a desempenhar

    funo hegemnica em nosso sistema, e no apenas integrativa das lacunas dos

    Direitos, como era antes, circunstncia que confere azo assertiva de que se

    manifesta mais apropriado falar em teoria constitucional do processo penal do que

    propriamente em teoria do processo penal.

    Palavras-chave: Processo Penalhistria. Punio. Ilumismo. Direitos Humanos.

    Neoconstitucionalismo. Direitos e Garantias Individuais. Fora Normativa. Teoria

    Constitucional do Processo Penal.

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    ABSTRACT

    Criminal proceedings arose as a skilled instrument to restrict the exercise of the

    States punishment rights and duties, what coincided, not by chance, with the Age of

    Enlightenment, whose major concern was to limit the power of the State. Therefore,

    the Declarations of Human Rights, just as they were constitutionalized by the first

    constitutional movement, are still guarantees which have high incidence within

    criminal ambit. They establish rules which signal to the respect of the rights regarding

    human dignity while criminal persecution is being held, what makes evident that this

    ramification of Law has no intention of equipping the State to confront criminality, yet

    it appeared to be an apt and necessary instrument to humanize its performance.

    Although this trait has been depreciated after World War II because of the neo-

    constitutionalism (or Constitutional State or Democratic-Constitutional State), it was

    redeemed. In Brazil, this new paradigm arose with the promulgation of 1988

    Constitution, which modeled the fundamental rights with normative force and as rules

    with superior hierarchy than the infraconstitutional legislation; that proceeded when

    the rights category started to fulfill an uniform function in our system not only as a

    link to legal omissions, like before - a circumstance which provides a pretext to the

    claim that it is more appropriate to talk about Constitutional Theory of Criminal

    proceedings than Criminal Proceeding Theory, properly speaking.

    Key-words: Criminal Proceedings history. Punishment. Age of Enlightenment. The

    Human Rights. Neo-constitutionalism. Personal rights and warranties. Normative

    force. TEORIA Constitutional Theory of Criminal proceedings.

  • 8

    ABSTRACT

    Il processo penale sorse come strumento adatto a limitare l eserczio del

    diritto/dovere di punire dello Stato, il che coincise, non per caso, con il movimento

    illuminista la cui preocupazione macro era, ugualmente, imporre limiti al potere dello

    Stado, per ci si osserva che le dichiarazioni di diritti dell uomo, tale come furono

    costituzionalizzate dal primo movimento costituzionalista, si presentano, ancor oggi,

    come garanzie che hanno incidenza maggiore nell ambiente criminale, le quali

    servono per stabilire regole che riguardano il rispetto ai diritti pertinenti alla dignit

    della persona umana quando dellesercizio della persecuzione criminale, il che

    evidenzia che questo ramo del diritto non apparse avendo come scopo armare lo

    Stato per affrontare la criminalit, ma s come strumento abile e necessario perch

    fosse humanizzata questa sua attuazione, caratteristica che, nonostante con il

    trascorso del tempo sia stata svirtuata, dopo la Seconda Guerra Mondiale, al sapore

    del neocostituzionalismo o dello Stato Costituzionale o dello Stato Democratico-

    Costituzionale, venne ad essere riscattata, essendo che, nel Brasile, questo nuovo

    paradigma soltanto venne a essere risaltato con la promulgazione della

    Constituzione di 1988, la quale, nel plasmare i diritti fondamentali con forza

    normativa e nella qualit di norme di gierarchia superiore alla legislazione

    infraconstituzionale, fece si che questa categoria di diritti passasse a disimpegnare

    funzione egemonica nel nostro sistema, e non appena integrativa delle lacune dei

    Diritti, come era prima, circostanza che conferisce sostegno alla assertiva di che si

    manifesta pi appropriato parlare in teoria costituzionale del processo penale che

    propriamente in teoria del processo penale.

    Parole-chiave: Processo Penalestoria. Punizione. Illumismo. Diritti Umani.

    Neocostituzionalismo. Diritti e Garanzie Individuali. Forza Normativa. Teoria

    Costituzionale del Processo Penale.

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    SUMRIO

    APRESENTAO DA PROBLEMTICA EM TORNO DA TEORIA

    CONSTITUCIONAL DO DIREITO PROCESSUAL PENAL......................................14

    a) Garantismo como corolrio lgico do sistema democrtico-constitucional da

    Constituio de 1988...........................................................................................................19

    b) Metodologia empregada.................................................................................................21

    c) Tratamento dogmtico do assunto................................................................................22

    d) ltimas consideraes guisa de primeiras palavras.................................................30

    PARTE PRIMEIRA

    1. CORRENTES FILOSFICAS NA FORMAO DO DIREITO CRIMINAL E SEUS

    REFLEXOS NO ORDENAMENTO PROCESSUAL PENAL...........................31

    1.1 - Pensamento natural ou primitivo..............................................................................37

    1.1.1 Vindita como idia inicial do poder-dever de punir..................................................38

    1.1.2 Excessos da vingana privada e as preocupaes quanto ao estabelecimento de

    limitaes ao exerccio do direito de punir...........................................................................41

    1.2 Concepo religiosa....................................................................................................44

    1.3 Concepo poltica.....................................................................................................47

    1.3.1 Direito criminal como forma de dominao poltica................................................49

    1.3.2 Primeiros esboos da doutrina criminal....................................................................51

    1.3.3 Escola Clssica..........................................................................................................54

    1.3.3.1 Pensamento beccariano..........................................................................................58

    1.3.3.2 Predominncia dos direitos essenciais do homem sob a modalidade de princpios

    processuais no pensamento de BECCARIA.........................................................................61

  • 10

    1.3.3.3 Repercusses iniciais do pensamento liberal-democrtico do direito de punir de

    BECCARIA...........................................................................................................................65

    1.3.3.4 Fase jurdica da Escola Clssica............................................................................68

    1.3.4 Escola Positiva..........................................................................................................72

    1.3.4.1 Determinismo lombrosiano....................................................................................74

    1.3.4.2 Idia do Direito criminal como estatuto repressivo, conforme a viso de

    FERRI...................................................................................................................................76

    1.3.4.3 Mutao do processo criminal liberal para o processo defensivo-repressivo, na tica

    de GAROFALO...........................................................................................................81

    1.3.4.4 Crtica ao pensamento repressivo do positivismo desfocado dos parmetros

    democrticos.....................................................................................................................................85

    1.3.5 Neoclassicismo..........................................................................................................88

    1.3.6 Neopositivismo.........................................................................................................93

    1.3.7 Escola Moderna Alem.............................................................................................95

    1.3.8 Escola do Tecnicismo Jurdico Penal........................................................................97

    1.3.9 Escola da Nova Defesa Social.................................................................................100

    1.3.9.1- A doutrina da Escola da Nova Defesa Social na perspectiva de MARC

    ANCEL...............................................................................................................................102

    1.3.9.2- Viso crtica da Escola da Nova Defesa Social.....................................................106

    1.3.10 Abolicionismo penal moderno-democrtico.........................................................109

    1.4 - Reflexos das correntes de pensamento na formao do ordenamento processual

    penal brasileiro..................................................................................................................113

    1.4.1 Os reflexos iniciais do pensamento beccariano nas regras processuais aplicadas no

    Brasil...................................................................................................................................117

    1.4.2 Cdigo de processo criminal de 1832.....................................................................121

    1.4.3 Predominncia da filosofia liberal beccariana na feitura do Cdigo de Processo

    Criminal de 1832.................................................................................................................124

    1.4.4 O vis poltico-filosfico-repressivo do Cdigo de Processo Penal de 1941,

    instrumento adequado para o Estado ditatorial forjado com o golpe de 1937....................128

  • 11

    2. O DEBATE DOUTRINRIO ACERCA DO DIREITO DE PUNIR DO

    ESTADO............................................................................................................................134

    2.1 - Origem do Estado.....................................................................................................136

    2.2 - Fundamentos do direito de punir............................................................................141

    2.3 - Teorizao da poltica criminal...............................................................................146

    3. NORMATIZAO DOS DIREITOS DO HOMEM................................................152

    3.1 Primeiros fragmentos normativos dos direitos do homem, como decorrncia das

    declaraes inglesas...........................................................................................................155

    3.2 - Declaraes americanas...........................................................................................162

    3.3 - Declarao dos direitos do homem e do cidado: Revoluo Francesa...............172

    3.4 - Internacionalizao dos direitos fundamentais......................................................175

    3.5 - Constitucionalizao dos direitos do homem.........................................................177

    4. - HISTRICO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS CONSTITUIES

    BRASILEIRAS..................................................................................................................181

    4.1 poca imperial..........................................................................................................181

    4.2 Perodo republicano.................................................................................................187

    4.2.1 Os direitos fundamentais na Constituio de 1891.................................................190

    4.2.2 Os direitos fundamentais na Constituio de 1934.................................................193

    4.2.3 Os direitos fundamentais na Constituio de 1937.................................................194

    4.2.4 Os direitos fundamentais na Constituio de 1946.................................................199

    4.2.5 Os direitos fundamentais na Constituio de 1967.................................................201

    5. TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.......................................204

    5.1 Incompatibilidade dos direitos fundamentais no paradigma do Estado

    democrtico-constitucional com a doutrina juspositivista............................................207

    5.2 Direitos fundamentais na estrutura do Estado Democrtico-Constitucional.....210

    5.3 Natureza jurdica dos direitos fundamentais: regra, princpio ou norma jurdica

    principiolgica?.................................................................................................................212

    5.4 Atipicidade dos direitos fundamentais...................................................................216

  • 12

    5.5 Classificao dos direitos fundamentais.......................................................218

    5.6 Universalidade como caracterstica histrica e nsita aos direitos

    fundamentais.....................................................................................................................221

    5.7 - Relatividade como caracterstica inerente aos direitos fundamentais.................222

    5.8 - Distino entre direitos fundamentais e direitos da personalidade.....................226

    5.9 (Re)umanizao e despatrimonializao do direito infraconstitucional.............229

    PARTE SEGUNDA

    6. TEORIA DO PROCESSO PENAL NA PERSPECTIVA DO ESTADO

    DEMOCRTICO-CONSTITUCIONAL.......................................................................231

    6.1- Neoconstitucionalismo ou Estado constitucional....................................................232

    6.2- O modelo brasileiro: Estado democrtico-constitucional......................................234

    6.3 Dimenso constitucional da teoria do processo penal...........................................237

    6.3.1- Finalidade garantstica dos direitos fundamentais do processo criminal..................242

    6.3.2- Distino ontolgica entre os processos criminal e civil..........................................244

    6.4 Perspectiva democrtica do processo penal...........................................................248

    6.5 Funo poltica do processo.....................................................................................250

    7. HERMENUTICA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO

    PROCESSO PENAL.........................................................................................................254

    7.1- Interpretao das normas e princpios constitucionais..........................................256

    7.2- Regras basilares da hermenutica constitucional e dos direitos

    fundamentais.....................................................................................................................258

    7.2.1 Direitos fundamentais como limitaes ao direito de punir....................................259

    7.2.2 - Relatividade dos direitos fundamentais at mesmo em relao ao direito

    vida......................................................................................................................................262

    7.2.3 Garantia dos direitos fundamentais como regra a ser observada no processo penal,

    somente podendo ser autorizada a supresso temporria quando houver justificativa para a

    determinao.......................................................................................................................267

  • 13

    7.2.3.1 rgos legitimados a decidir sobre a possibilidade de quebra das garantias

    constitucionais consubstanciadas nos direitos fundamentais..............................................271

    7.2.3.1.1 Comisses Parlamentares de Inqurito.............................................................272

    7.2.3.1.2- Reserva de jurisdio quanto flexibilizao de direitos

    fundamentais.......................................................................................................................274

    7.2.3.1.3- Flexibilizao dos direitos fundamentais em decorrncia do exerccio do poder de

    polcia, sem a prvia autorizao judicial...........................................................................278

    7.2.3.1.3.1- Casos expressos na Constituio em que, no exerccio do poder de polcia,

    possvel a flexibilizao de direitos fundamentais, sem a prvia autorizao judicial.......282

    7.2.3.1.3.2- Outras hipteses em que, no exerccio do poder de polcia, possvel a

    flexibilizao de direitos fundamentais, sem a prvia autorizao judicial........................284

    7.2.3.1.3.4- Inidoneidade do Ministrio Pblico para determinar a flexibilizao de direito

    fundamental.........................................................................................................................287

    7.2.3.2- Necessidade de deciso fundamentada, mediante a exposio dos motivos que

    justificam a flexibilizao de direito fundamental..............................................................289

    7.2.3.2.1- Impossibilidade de supresso da exigncia da deciso fundamentada pela realizao

    da diligncia investigatria pelo prprio juiz.....................................................292

    7.2.3.2.2- Malferio ao princpio da imparcialidade do juiz, quando a flexibilizao de direito

    fundamental, ao invs de determinada em deciso judicial, materializada pelo prprio

    julgador, em diligncia por ele comandada............................................................294

    7.2.3.2.3- Inconstitucionalidade do art. 3 da Lei n 9.034, de 1995, ao impor ao juiz que ele,

    sempre que houver a possibilidade de comprometer-se o sigilo constitucional ou legal, realize

    a diligncia de coleta das provas.............................................................................296

    7.2.4 Coliso de direitos e critrio da ponderao como parmetro para a deciso pela

    flexibilizao de direito fundamental..................................................................................298

    7.2.5 Os direitos fundamentais, declarados em forma de princpios constitucionais do

    processo penal, na qualidade de normas que ocupam posio hegemnica no sistema

    jurdico................................................................................................................................304

    7.2.6 Incidncia das declaraes internacionais entre as garantias constitucionais

    mnimas...............................................................................................................................306

  • 14

    8. PREMISSAS INTERPRETATIVAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS...........311

    8.1 - Sistema Democrtico-Constitucional......................................................................313

    8.2 - Fundamentos do sistema Democrtico-Constitucional.........................................317

    8.2.1 Soberania como princpio que determina a extenso da atividade jurisdicional.....318

    8.2.1.1 Natureza jurdica da norma que estabelece os limites da soberania

    jurisdicional.........................................................................................................................321

    8.2.1.2 (Ir)renunciabilidade ao exerccio da jurisdio brasileira...................................322

    8.2.1.3 Tribunal Penal Internacional................................................................................325

    8.2.1.3.1- Organizao, composio e competncia do Tribunal Penal

    Internacional........................................................................................................................327

    8.2.1.3.2- Cooperao jurdica internacional por meio dos rgos jurisdicionais

    internos................................................................................................................................329

    8.2.1.3.2.1- Cooperao jurdica internacional por assistncia direta.................................333

    8.2.1.3.2.2- Competncia e recursos no processo criminal de cooperao jurdica

    internacional........................................................................................................................338

    8.2.2 Cidadania como princpio retor do processo penal.................................................342

    8.2.3 - Dignidade da pessoa humana...................................................................................348

    8.2.3.1- Dignidade humana no tratamento dispensado ao acusado e ao

    condenado...........................................................................................................................352

    8.2.3.2 Medidas alternativas como tratamento mais digno ao condenado.......................357

    8.2.3.3 Linguagem jurdico-penal....................................................................................359

    8.2.4- Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.......................................................361

    8.3- Objetivos fundamentais do sistema Democrtico-Constitucional........................364

    8.3.1- Construo de uma sociedade livre, justa e solidria...............................................364

    8.3.2- Erradicao da pobreza e da marginalizao e reduo das desigualdades sociais e

    regionais..............................................................................................................................366

    8.3.3- Promoo do bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e

    quaisquer outras formas de discriminao..........................................................................369

  • 15

    9. PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO PENAL

    BRASILEIRO....................................................................................................................370

    9.1- Princpio do devido processo legal: origem e definio..........................................373

    9.1.1 - Devido processo legal como garantia de que a persecuo acusatria seja

    processualizada como condio para a busca da responsabilidade penal...........................379

    9.1.2 - Devido processo legal em casos especiais e nas tutelas de urgncia.......................381

    9.1.3 - Devido processo legal no Estado democrtico-constitucional como forma de encontrar

    alternativas para a resposta criminalidade........................................................383

    9.1.3.1- Juizado Especial como funo poltica despenalizante da conduta ilcita, no caso

    concreto...............................................................................................................................384

    9.1.3.1.1- Natureza jurdica despenalizante das medidas alternativas e sua distino das penas

    alternativas...............................................................................................................389

    9.1.3.1.2- Juizado Especial como devido processo legal para os crimes de menor potencial

    ofensivo...............................................................................................................................394

    9.1.3.1.3- Dever do Ministrio Pblico de propor a transao, desde que satisfeitas as

    condies previstas na lei....................................................................................................395

    9.1.3.1.4- Direito subjetivo do autor do fato a ter a sua conduta despenalizada, quando

    satisfeitas as condies previstas na lei...............................................................................397

    9.1.3.1.5- Possibilidade de o juiz deferir o pedido do autor do fato de despenalinalizao da

    conduta por meio do processo, mesmo diante da recusa da transao criminal pelo Ministrio

    Pblico...............................................................................................................400

    9.1.3.1.5.1- Despenalizao da conduta por meio do processo, independentemente da

    transao criminal...............................................................................................................403

    9.1.3.1.5.2- Natureza judicial da fase preliminar do Juizado Especial..............................404

    9.1.3.2- Suspenso condicional do processo como medida descriminalizante...................407

    9.1.4- Celeridade processual como elemento indispensvel para a eficincia do processo

    criminal e como direito do acusado de ser julgado dentro de prazo razovel.....................409

    9.1.5- A publicao dos atos processuais e a motivao das decises judiciais.................415

    9.1.6 - A nulidade das provas obtidas por meio ilcito como conseqncia do devido processo

    legal......................................................................................................................421

    9.1.6.1- Teoria da exclusionary rule...................................................................................425

  • 16

    9.1.6.1.1- A adoo da teoria da exclusionary rule no Direito Comparado........................429

    9.1.6.1.2- A inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilcitos no sistema jurdico

    nacional...............................................................................................................................433

    9.1.6.2- As excees s exclusionary rules.........................................................................442

    9.1.6.2.1- A fonte independente (independent source).......................................................444

    9.1.6.2.2- O descobrimento inevitvel (inevitable discovery)............................................448

    9.1.6.2.3- A boa-f (good faith)..........................................................................................450

    9.1.6.2.4- A doutrina do purged taint ou dos vcios sanados..............................................454

    9.1.6.2.5- A prova benfica em prol do acusado.................................................................455

    9.1.6.2.6- O princpio da proporcionalidade ou balancing test...........................................458

    9.1.6.2.7- A destruio da mentira do imputado.................................................................461

    9.1.6.2.8- A teoria do risco..................................................................................................463

    9.1.6.2.9- A plain view doctrine e os campos abertos.........................................................464

    9.1.6.2.10- A renncia do interessado.................................................................................466

    9.1.6.2.11- A infrao constitucional alheia.......................................................................467

    9.1.6.2.12- A infrao constitucional por pessoas que no fazem parte do rgo

    policial.................................................................................................................................468

    9.2- Princpio da presuno de no-culpabilidade........................................................471

    9.2.1- Posio da doutrina e da jurisprudncia quanto nomenclatura presuno de no-

    culpabilidade ou presuno de inocncia............................................................................474

    9.2.2- Princpio da presuno de no-culpabilidade como expresso mais correta............477

    9.2.3 - A verdade real, in dubio pro reo ou favor rei como decorrncia do princpio da no-

    culpabilidade e seu alcance em relao prova..................................................................482

    9.2.4- O alcance do princpio da presuno de no-culpabilidade e sua inaplicao s atuaes

    da autoridade policial e do Ministrio Pblico.....................................................484

    9.2.5- O princpio da presuno de no-culpabilidade e a sua repercusso no tratamento dado

    s partes na relao processual...................................................................................486

    9.2.6- A presuno de inocncia como garantia contra a instaurao de inqurito ou de

    processo criminal sem justa causa.......................................................................................490

  • 17

    9.3- Princpio acusatrio...................................................................................................492

    9.3.1- Resqucios do sistema misto no Cdigo de Processo Penal.....................................495

    9.3.2- Poderes investigatrios na fase preparatria ao penal, de acordo com o sistema

    acusatrio............................................................................................................................500

    9.3.2.1- Inexistncia de privatividade da polcia judiciria para a investigao dos crimes

    (persecuo criminal extraprocessual)................................................................................502

    9.3.2.2- Os poderes investigatrios do Ministrio Pblico.................................................506

    9.3.2.2.1- Argumentos que confirmam os poderes investigatrios do Ministrio

    Pblico.................................................................................................................................511

    9.3.2.2.2- Poderes investigatrios do Ministrio Pblico no Direito Comparado..............518

    9.3.2.3- Princpio acusatrio e vedao do juzo de instruo............................................520

    9.3.3- Legitimidade para a persecuo criminal perante o Judicirio.................................524

    9.3.3.1- Sistema acusatrio quanto titularidade para o ajuizamento de ao penal.........528

    9.3.3.2- Ao penal como espcie de ao coletiva............................................................530

    9.3.3.3- Incongruncia da ao penal de iniciativa privada com o sistema processual

    democrtico.........................................................................................................................531

    9.3.3.4- Ao penal de iniciativa pblica condicionada representao como forma adequada

    de conciliar os interesses da vtima com o sistema processual

    democrtico.........................................................................................................................534

    9.3.3.5- Participao da vtima no processo como direito de cidadania e de amplo acesso ao

    Poder Judicirio, idia nuclear da justia restaurativa.......................................................536

    9.4 Princpio do direito intimidade em geral............................................................539

    9.4.1 Direito vida privada..............................................................................................546

    9.4.2- Direito imagem......................................................................................................549

    9.4.3. Garantia do sigilo bancrio....................................................................................552

    9.4.3.1- Dever de perquirir a origem dos recursos e de dar informaes............................554

    9.4.3.2- Hipteses de prestao de informaes bancrias independentemente de autorizao

    judicial, previstas na Lei Complementar n 105, de 2001...............................556

    9.4.3.3- Quebra do sigilo bancrio por determinao de Comisso Parlamentar de

    Inqurito..............................................................................................................................559

  • 18

    9.4.4 Garantia do sigilo fiscal..........................................................................................561

    9.4.5 Inviolabilidade do domiclio...................................................................................563

    9.4.5.1- Garantia da inviolabilidade do domiclio na Constituio de 1988.......................565

    9.4.5.2- Conceito constitucional da expresso casa............................................................567

    9.4.5.3- O alcance da expresso morador...........................................................................571

    9.4.5.3.1- Preponderncia do jus prohibendi, no caso de discordncia entre os

    moradores...........................................................................................................................573

    9.4.5.3.2- Espao do empregado e jus prohibendi..............................................................575

    9.4.5.4- Compreenso do significado da expresso noite, empregada no inciso XI do art. 5 da

    Constituio....................................................................................................................576

    9.4.5.5- Determinao judicial substitutiva do consentimento do morador........................578

    9.4.6 Sigilo das correspondncias e das comunicaes telegrficas, de dados e

    telefnicas...........................................................................................................................581

    9.4.6.1- Sigilo das correspondncias, garantido no inciso XII do art. 5 da

    Constituio.........................................................................................................................585

    9.4.6.2- Sigilo das comunicaes de dados, garantido no inciso XII do art. 5 da

    Constituio.........................................................................................................................588

    9.4.6.3- Sigilo das comunicaes telefnicas, garantido no inciso XII do art. 5 da

    Constituio.........................................................................................................................592

    9.4.6.4- O tratamento dispensado ao sigilo da correspondncia e das comunicaes no

    Direito estrangeiro...............................................................................................................594

    9.4.6.5- Assertivas que infirmam o carter absoluto do sigilo da correspondncia e das

    comunicaes telegrficas e de dados.................................................................................598

    9.4.6.5.1- Interpretao sistmica da expresso (salvo) no ltimo caso, prevista no inciso XII

    do art. 5 da Constituio..............................................................................................603

    9.4.6.5.2- Interpretao literal que conduz concluso lgica de que a ressalva contida no

    inciso XII do art. 5 da Constituio encerra clusula de reserva de jurisdio quanto

    comunicao telefnica.......................................................................................................607

  • 19

    9.5- Princpio da ampla defesa.........................................................................................609

    9.5.1- Direito fundamental que est expresso, no processo criminal, apenas em relao ao

    acusado................................................................................................................................612

    9.5.1.1- Diferena de contedo entre a ampla defesa no processo criminal e no processo civil.

    Revelia. Direito ao interrogatrio. Participao dos atos processuais. Jus

    postulandi............................................................................................................................615

    9.5.1.2- Direito autodefesa consistente no direito de ser intimado dos atos do processo, de

    participar das audincias e ao jus postulandi, como decorrncia da amplitude do direito de

    defesa no processo criminal................................................................................................618

    9.5.1.3- Distino entre ampla defesa e plenitude de

    defesa...................................................................................................................................628

    9.5.1.4- As peculiaridades do direito ampla defesa no processo criminal e sua repercusso

    nos efeitos da revelia...........................................................................................................631

    9.5.2- Direito ao silncio ou de permanecer calado............................................................634

    9.5.2.1- Direito ao silncio (de permanecer calado) que se traduz em direito de no produzir,

    fora, prova contra si........................................................................................638

    9.5.2.2- Direito ao interrogatrio como materializao da autodefesa e decorrncia lgica do

    direito ao silncio...........................................................................................................647

    9.5.2.3- Exerccio do direito ao silncio que no pode servir de fundamento para a condenao

    do acusado.......................................................................................................655

    9.5.2.4- Direito da pessoa de ser ouvida perante o responsvel pela acusao, antes do

    oferecimento da denncia...................................................................................................661

    9.5.2.5- Incentivos legais confisso, como forma de premiao ao acusado e, por via reflexa,

    de exerccio, ainda que indireto, do direito de defesa............................................664

    9.5.3- Direito de recorrer (duplo grau de jurisdio) como expresso do princpio da ampla

    defesa...................................................................................................................................668

    9.5.3.1- Direito ao duplo grau de jurisdio........................................................................671

    9.5.3.2- Ofensa ao princpio da ampla defesa do prvio recolhimento priso como requisito

    objetivo para a admissibilidade do recurso..........................................................675

    9.5.4- Inviolabilidade da advocacia....................................................................................679

  • 20

    9.5.4.1- Imunidade judiciria como corolrio lgico da inviolabilidade do exerccio da

    advocacia.............................................................................................................................684

    9.5.4.2- Inviolabilidade do escritrio de advocacia, dos arquivos e dados, da correspondncia

    e comunicaes, includas as telefnicas ou afins...................................686

    9.6- Princpio da liberdade...............................................................................................689

    9.6.1- Priso processual no Direito Comparado..................................................................691

    9.6.2- Histrico do sistema prisional no Direito Constitucional brasileiro.........................696

    9.6.3 - Sistema prisional no Cdigo de Processo Penal de 1941........................................702

    9.6.4 - Mudanas operadas no sistema prisional do Cdigo de Processo Penal.................706

    9.6.5 - Tratamento dispensado pela Constituio de 1988 priso processual..................713

    9.6.5.1- Priso com ordem judicial.....................................................................................717

    9.6.5.1.1- Priso preventiva ................................................................................................719

    9.6.5.1.2- Priso temporria................................................................................................723

    9.6.5.1.3.- Natureza acautelatria da priso imposta com a sentena condenatria passvel de

    recurso............................................................................................................................729

    9.6.5.1.3.1- Necessidade de fundamentao da priso decretada com a sentena

    recorrvel.............................................................................................................................735

    9.6.5.1.3.2- Priso com a sentena condenatria nos crimes hediondos e a eles equiparados

    (Lei n 8.072, de 1990), de crime organizado (Lei n 9.034, de 1995) e nos casos de crime de

    lavagem ou ocultao de bens direitos e valores (Lei n 9.613, de 1998).................742

    9.6.5.1.4- Priso com a deciso de pronncia.....................................................................748

    9.6.5.1.5- Alternativas priso processual no Direito Comparado....................................750

    9.6.5.1.6- Adoo de medidas alternativas priso processual no sistema brasileiro........755

    9.6.5.2- Priso (deteno) sem ordem judicial....................................................................756

    9.6.5.2.1- Natureza jurdica da deteno em flagrante........................................................759

    9.6.5.2.2- Requisitos constitucionais-formais necessrios legalidade da deteno em

    flagrante delito....................................................................................................................763

    9.6.5.2.2.1- Comunicao imediata da deteno ao juiz, famlia ou pessoa de confiana e

    ao Ministrio Pblico.......................................................................................................766

  • 21

    9.6.5.2.2.2- Relaxamento da priso como conseqncia da ilegalidade da priso sem ordem

    judicial.................................................................................................................................772

    9.6.5.2.2.3- Direito liberdade provisria com ou sem fiana...........................................777

    9.6.5.2.2.3.1- Vedao liberdade provisria....................................................................779

    9.6.5.2.2.3.2- Fiana como cautela para assegurar o direito de liberdade...........................786

    9.6.5.3- Responsabilidade civil do Estado decorrente da prestao jurisdicional

    criminal...............................................................................................................................791

    9.6.5.3.1- Ressarcimento por condenao oriunda de erro judicirio.................................794

    9.6.5.3.2- Ressarcimento por dano decorrente de priso indevida......................................796

    10. LTIMAS E CONCLUSIVAS PALAVRAS............................................................799

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................800

  • 22

    TEORIA CONSTITUCIONAL DO DIREITO PROCESSUAL PENAL: limitaesfundamentais ao exerccio do direito de punir no sistema jurdico brasileiro.

    APRESENTAO DA PROBLEMTICA EM TORNO DA TEORIA

    CONSTITUCIONAL DO DIREITO PROCESSUAL PENAL.

    De h muito esto na ordem do dia discusses as mais acirradas a respeito da

    forma como deve o Estado enfrentar a criminalidade, sendo possvel, em abordagem

    reducionista, identificar, nessa questo, a despeito de suas mais diversas variantes, duas

    doutrinas ontologicamente diferenadas: (1) a que prope um sistema criminal arquitetado

    tendo como arcabouo uma viso garantstica, fundada na obedincia aos direitos

    fundamentais declarados na Constituio, concebidos como normas jurdicas que tm em mira

    limitar/restringir o direito-dever de punir (pretenso punitiva) do Estado1 e (2) outra que

    sugere um olhar do sistema mais focado na segurana pblica, diante da concepo de que os

    direitos fundamentais so ditados para as pessoas de bem, da por que, no conflito entre os

    direitos defendidos com a pretenso acusatria e os do acusado, deve prevalecer o primeiro,

    especialmente quando o delito em apurao estiver inserido no contexto da

    macrocriminalidade2. Em nosso meio, quem adepto da primeira corrente recebe o nome de

    1 Sobre o garantismo, cf. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razn: teoria del garantismo penal. 2. ed. Traduo de Perfecto Andrs Ibez et al. Madri: Trotta, 1997. 2 RICARDO DE BRITO identifica duas tendncias opostas ao garantismo: A primeira delas corresponde ideologia penal autoritria e implica um direito concebido como expresso de um Estado, cujo poder excede os limites estabelecidos no Estado liberal de direito, assumindo a roupagem de um direito penal mximo correspondente ao absolutismo penal de todos os matizes (As razes do positivismo penal no brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Jris, 2002. p. XXIII). De acordo com essa corrente, o lema : estamos interessados nos direitos humanos dos homens de bem e no nos direitos humanos dos delinqentes. (Ibid., p. XXIV). Nas palavras do referido autor, ... a segunda grande tendncia que rejeita o garantismo penal o abolicionismo (Ibid., p. XXIV), pois, para este, ... direito penal bom direito penal inexistente. (Ibid., p. XXIV). Note-se, porm, que a corrente criminal denominada abolicionismo penal possui duas variantes, uma mais radical, que prope mesmo a eliminao do sistema penal, e outra, mais moderada, que sugere uma nova viso da justia

  • 23

    garantista, o que d a entender que os demais, filiados linha de pensamento mais rgida e

    que pem em destaque o interesse na persecuo criminal, so no garantistas3.

    Essa questo de alta indagao poltica, que foi, com suporte no novo

    constitucionalismo ou neoconstitucionalismo exsurgido logo aps a Segunda Guerra Mundial,

    enfrentada e dissipada pela maioria dos pases em prol da primeira corrente de pensamento,

    diante dos mais diversos fatores histricos, sociais, culturais e polticos ainda tema

    recorrente. verdade que o incremento da criminalidade, no apenas quanto s aes ilcitas

    transnacionais supedaneadas em ampla base organizativa, representadas pelos crimes de

    trfico ilcito de entorpecentes, trfico de mulheres, crianas, rgos e armas, lavagem de

    dinheiro, de corrupo, e mais especialmente aos crimes de terrorismo, tem agitado

    divergncias quanto ao modelo a ser adotado para apoiar a persecuo criminal4. No entanto,

    a comunidade internacional tem, reiteradamente, asseverado o compromisso com o Estado

    Constitucional, que possui os direitos fundamentais como normas hegemnicas, estruturantes

    e orientadoras de todo o sistema jurdico.

    Nessa linha de orientao, no projeto de declarao do 11 Congresso das

    Naes Unidas sobre Preveno do Delito e Justia Penal, realizado em Bangkok, Tailndia,

    no perodo de 18 a 25 de abril de 2005, os Estados Membros da ONU, dentre outros

    compromissos, a despeito das posies defendidas pelos Estados Unidos e Espanha,

    reafirmaram, com nfase, que as medidas a serem adotadas no combate criminalidade, at

    mesmo em relao ao terrorismo, devem ser compatveis com o Direito Internacional e de

    conformidade com a Carta das Naes Unidas, em particular com as relativas aos direitos

    fundamentais5.

    criminal, focada no iderio democrtico. Nessa segunda linha, os abolicionistas no se atritam com os fundamentos do garantismo.3 No desenvolvimento da tese ser mostrado que essa discusso no nosso meio, em torno do garantismo,apresenta-se como questo bizantina, porquanto essa dimenso do processo criminal, que faz parte da sua histria e da razo de seu surgimento, trata-se de um corolrio lgico do sistema democrtico-constitucional plasmado na Constituio de 1988, cujo suporte principiolgico repousa na declarao e consagrao dos direitos fundamentais. 4 As constantes notcias veiculadas nos mais diversos meios de comunicaes sobre cenas de violncia inquietam e amedrontam a sociedade, fazendo suscitar o sentimento de repulsa a esse tipo de comportamento e, de permeio, da falta de fora do Estado para enfrentar a criminalidade. Esse estado de coisas d margem a que cresa, na sociedade, movimento social insistindo no endurecimento do discurso e do plano de poltica criminal, mediante a adoo de normas criminais mais contundentes e que dem realce persecutio criminis.5 O Brasil esteve presente, em comisso formada pelo Ministro WALDIR PIRES, Ministro de Estado do Controle e da Transparncia, MARCO ANTNIO DINIZ BRANDO, Embaixador do Brasil na Tailndia, CLUDIA CHAGAS, Secretria Nacional de Justia, MARIA FELICIANA ORTIGO, Primeira Secretria da Embaixada do Brasil em Viena, CARLOS EDUARDO VASCONCELOS, Subprocurador Geral da Repblica,

  • 24

    O Brasil, assim como, de resto, os demais pases da Amrica Latina, que

    somente teve o seu regime ditatorial depurado e desconstrudo na segunda metade dos anos

    oitenta, agora comea a desapartar-se do positivismo normativo. De permeio, aqui se iniciou,

    na dcada de 1990, a chamada virada coprnica, rumo construo de um novo paradigma

    jurdico, no qual os direitos fundamentais, enunciados em forma de princpios, a par de

    possurem fora normativa, so considerados normas de hierarquia superior s regras

    jurdicas estampadas na legislao infraconstitucional, de modo que eles, alm de deixarem de

    desempenhar mera funo integrativa das eventuais lacunas do Direito, passaram a ocupar

    posio hegemnica, estruturante e interpretativa do sistema jurdico6.

    Essa concepo jurdica embasada nos direitos fundamentais descortina que o

    Direito Processual Penal, mais do que qualquer outro ramo do Direito, o que possui o maior

    nmero de normas, que so direta ou indiretamente ditadas para serem aplicadas em seu

    campo de atuao. Com efeito, quem se der ao trabalho de examinar detalhadamente os

    direitos fundamentais estampados na Constituio de 1988, certamente ficar, caso no esteja

    melhor avisado, surpreso com a quantidade de preceitos que so afetos seara do processo

    penal7. Todavia, essa realidade no se trata de caracterstica nsita ao perfil dos direitos

    fundamentais tal como eles se encontram anunciados em nossa Carta Constitucional8, seno

    do fenmeno de normatizao, operado pela primeira verso do constitucionalismo, das

    declaraes dos direitos do homem, como revela a leitura das dez primeiras emendas

    constitucionais aditadas Constituio dos Estados Unidos, das quais oito eram referentes ao

    processo penal. A esse respeito, a anlise das Constituies de pases como Alemanha, Itlia,

    Espanha e Portugal, que serviram de guia para o constituinte nacional e foram editadas aps a

    Segunda Guerra Mundial, deixa patente essa vertente dos direitos fundamentais.

    WALTER NUNES DA SILVA JNIOR, Juiz Federal, ANTENOR PEREIRA MADRUGA, Diretor do Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica Internacional, CSAR OLIVEIRA DE BARROS LEAL, Membro do Conselho Nacional Criminal e Penitencirio, ROBSON ROBIN DA SILVA, Diretor do Departamento de Segurana Nacional do Ministrio da Justia, e PATRCIA MARIA OLIVEIRA LIMA, Primeira Secretria e Conselheira Internacional do Ministrio de Estado de Controle e da Transparncia. 6 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdio constitucional e hermenutica: uma nova crtica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 7 Dos 78 incisos nos quais constam a declarao dos direitos fundamentais, quarenta so referentes ao Direito Criminal, sendo que destes apenas quatro so exclusivamente de Direito Penal, enquanto 24 de Direito Processual Penal.

  • 25

    Outrossim, escoro histrico das origens da cincia criminal revela que o seu

    surgimento somente se deu a partir da segunda metade do Sculo XVIII, cujo take off adveio

    com a edio da obra Dos delitos e das penas, de autoria de CESARE BECCARIA. Sem

    desconhecer a sua importncia para o Direito Penal, notadamente devido deduo e

    exposio dos princpios da reserva legal e da proporcionalidade9, chama a ateno o estudo

    acurado do excepcional livro do milans, que a sua maior e mais fundamental contribuio foi

    para o processo penal. De fato, quela poca, o Estado era absoluto e a persecuo penal

    mero ritual era deduzida sem o conhecimento de regras ou limites, circunstncia que dava

    guarida prtica de toda sorte de arbitrariedades, como julgamentos secretos, negativa do

    direito de defesa, aplicao da tortura e outras prticas inconcebveis. O pensamento

    beccariano, elaborado em compasso com o iderio iluminista que se lanava naqueles

    tempos, tinha como norte exigir do Estado a obedincia aos direitos nsitos pessoa humana,

    ainda quando aquele estivesse no exerccio do ldimo e necessrio direito de punir.

    Ademais de a doutrina conferir especial destaque contribuio de

    BECCARIA para o Direito Penal, esquecendo-se, por via de conseqncia, de sublinhar a

    substncia da obra de alto teor revolucionrio e que levou processualizao do direito de

    punir, como instrumento indispensvel para limitar a persecuo criminal, no se tem

    conhecimento de estudo sistemtico que, ao lado de resgatar a memria de que a sua real

    contribuio para o Direito deu-se efetivamente no campo do processo penal, demonstre como

    as idias por ele esposadas em forma de ensaio filosfico foram preponderantes na declarao

    de direitos fundamentais plasmada na Constituio americana, enxertados mediante as

    primeiras emendas que lhe foram incorporadas. No mesmo passo, o exame dos direitos

    fundamentais tal como eles esto inseridos nas Constituies alem, italiana, espanhola e

    portuguesa mostra a influncia da doutrina beccariana, assertiva que se aplica, igualmente, ao

    constitucionalismo brasileiro, como se percebe do estudo das Cartas Polticas promulgadas ao

    longo do tempo, notadamente na de 1988.

    8 Nem muito menos a Constituio de 1988, a esse respeito, trouxe alguma inovao a nossa histria constitucional. Com efeito, todas as Constituies anteriores da Carta Imperial de 1824 de 1967 , igualmente sempre contiveram maior nmero de direitos fundamentais relacionados ao processo penal. 9 No se pode negar que BECCARIA legou outras contribuies importantes para o Direito Penal, como a discusso sobre a pena de morte e os crimes de adultrio e bestialismo. Todavia, note-se que a teoria do crime por ele esboada, ao afirmar que o delito era um fato jurdico, ainda hoje faz com que se tenha uma viso distorcida sobre o que deve ser averiguado no processo, levando, no raro, o operador jurdico a julgar o crime em si, e no a conduta ilcita. Ainda hoje se nota esse erro, o que se verifica em leis como a que pune os crimes hediondos, na qual so alvitradas posies rgidas tendo em conta o tipo de ilcito praticado, sem levar em considerao as circunstncias e peculiaridades do caso, assim como as condies pessoais do agente que praticou a ao.

  • 26

    O aspecto aqui assinalado da identidade das idias de BECCARIA com o

    contedo dos direitos fundamentais reconhecidos nos textos constitucionais to instigante

    que basta observar que princpios nunca antes consignados expressamente em nossas

    constituies, como o da presuno de no-culpabilidade ou de inocncia, do direito ao

    silncio, da publicidade e at mesmo mais recentes, como o da celeridade, inserido pela

    Emenda Constitucional n 45, de 2004, haviam sido pensados e justificados, com rgua e

    compasso, pelo marqus.

    Esse enfoque revela que o sistema criminal e o processo penal por excelncia

    foram concebidos como instrumento adequado para preservar os direitos essenciais da pessoa

    humana frente ao legtimo direito de punir do Estado, mediante o estabelecimento de regras

    que tm o condo de limitar esse agir estatal e, assim, coibir excessos e abusos nessa rea de

    atuao estatal. A origem, por conseguinte, do Direito Processual Penal, a par de confundir-

    se com o surgimento das declaraes de direitos do homem mais tarde, devido ao processo

    de constitucionalizao, transmudado em direitos fundamentais , teve como ratio essendi

    limitar o direito de punir, justamente a idia central do movimento iluminista, que tinha a

    declarao dos direitos do homem, ao lado da tripartio dos poderes10, como o meio eficaz

    para impedir o Absolutismo do Estado.

    No por outra razo que, aqui e alhures, os temas dominantes na esfera

    criminal seja nos trabalhos acadmicos, nos julgamentos pelos tribunais, nas discusses

    polticas travadas nos parlamentos e mesmo em fruns nos quais se permite a participao

    popular giram ao redor de debates sobre as garantias impostas pelos direitos fundamentais

    na qualidade de regras que restringem o direito de punir do Estado, tais como o devido

    processo legal, o direito ampla defesa, ao silncio, imagem, vida privada, liberdade

    provisria com, ou sem, fiana, aos sigilos bancrio e fiscal, inviolabilidade da

    correspondncia, dos dados, da comunicao telefnica, do domiclio, do escritrio e do

    exerccio da advocacia, ou ento assuntos a elas diretamente relacionados, como a coliso de

    direitos fundamentais e a inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilcito e as que delas

    so derivadas (fruits of the poisoned tree) e at mesmo os poderes investigatrios do

    Ministrio Pblico. Como se no bastasse, cada vez mais se intensifica e se pratica a

    10 BECCARIA, na sua obra, tambm faz referncia necessidade da separao dos poderes, como forma de evitar que o soberano detenha o interesse na punio do autor do crime e o poder de julgar.

  • 27

    cooperao jurdica criminal entre os pases, o que exige no apenas a formalizao de

    acordos multilaterais e bilaterais no sentido de preceituar normas processuais adequadas para

    o tratamento dessa questo, como reala a dimenso internacional desse ramo do Direito e a

    sua ntima relao com as declaraes de direitos positivadas nos textos constitucionais dos

    pases e com as que esto catalogadas em diplomas internacionais e regionais.

    Como consectrio lgico dessa realidade vivenciada no apenas no Brasil

    como igualmente nos demais pases concebidos sob o desenho democrtico, faz parte das

    preocupaes cientficas atuais perquirir as bases principiolgicas do processo criminal que

    esto fincadas na Constituio, diante da necessidade de reorientar a viso sedimentada sobre

    o Direito Processual e realar a sua dimenso poltica e internacional, o que deve ser feito

    mediante o exame amide das clusulas constitucionais orientadoras e vinculadoras do

    Estado no desempenho do poder-dever de perquirir a responsabilidade penal dos agentes que

    praticam ilcito. A anlise dos cenrios nacional e internacional demonstra a pertinncia e a

    importncia da explorao do tema no presente estudo, at porque no se enxerga, em nossa

    doutrina, desenvolvimento da matria tal como aqui se prope.

    a) Garantismo como corolrio lgico do sistema democrtico-constitucional da

    Constituio de 1988.

    Influenciado pelas idias liberais de BECCARIA, que contaminaram o mundo

    e deram suporte construo dos sistemas criminais, em nosso meio, editou-se o Cdigo de

    Processo Criminal de 1831, mas, paulatinamente, foi-se introduzindo modificaes

    substanciais, agora sob a influncia de outra corrente de pensamento, mais precisamente a

    Escola Positiva, capitaneada por CESARE LOMBROSO, a qual propunha a adoo de regras

    mais rgidas no tratamento da questo criminal. Essa nova vertente do processo criminal,

    depurada pela Escola do Tecnicismo Jurdico, fomentou a construo de outro arcabouo

    jurdico criminal, cujas bases, alinhavadas na Carta ditatorial de 1937, foram fincadas com

    especial destaque no Cdigo de Processo Penal de 1941, ainda hoje em vigor. Sob a batuta da

    ordem constitucional ento vigorante em nosso meio, o ordenamento processual penal trazido

    a lume refletiu a mentalidade antidemocrtica e eminentemente policialesca de ento.

  • 28

    Aquele paradigma de Direito, no qual foi forjado e edificado o monumento

    legislativo processual penal infraconstitucional, merc da edio da Constituio de 1988, no

    existe mais, o que recomenda a releitura do Cdigo de Processo Penal. O novo Direito,

    promovido com a Constituio de 1988, instaurou entre ns aquilo que j era realidade nos

    pases da Europa Continental desde o final do Segundo Grande Conflito Mundial, ou seja, o

    Estado Democrtico-Constitucional, aquele em que o ordenamento jurdico compreendido

    em consonncia com as lentes oferecidas pela compreenso e alcance dos direitos

    fundamentais.

    Na dimenso do neoconstitucionalismo ou do Estado Democrtico-

    Constitucional, tem-se que a Constituio, em especial os direitos fundamentais, estabelece a

    base terica de todo o ordenamento jurdico criminal, da por que, para todos os efeitos, ao

    invs de falar-se em teoria geral do processo penal, apresenta-se mais apropriado perquirir de

    sua teoria constitucional, pois a histria deste ramo do Direito a investigao cientfica

    demonstra confunde-se com a prpria histria dos direitos fundamentais. Com efeito, no

    exame da histria dos povos, contemplando a transformao da sociedade primitiva em

    Estado, observa-se que o homem, a despeito da percepo da necessidade de formalizao do

    poder poltico, logo cedo, preocupou-se em estabelecer limites ao exerccio do poder-dever de

    punir do Estado11, utilizando como um dos instrumentos mais importantes os direitos

    inerentes prpria condio humana, que subsistem independentemente da vontade dos

    governantes. Os direitos fundamentais, portanto, formam o ncleo duro das regras

    processuais ou, em outras palavras, constituem a prpria teoria constitucional do processo

    penal.

    Constituindo-se os direitos fundamentais na estrutura central do processo

    penal, a busca cientfica da teoria geral desse ramo do Direito implica, em rigor, revelar a

    compreenso daquela categoria de direitos, da por que, como j se disse, o mais correto, na

    11 So os chamados direitos de primeira gerao, que eclodiram com a Revoluo Francesa. Dentre as classificaes dos direitos fundamentais, h uma que leva em considerao a elevao do contedo das declaraes. Em consonncia com essa tica, os direitos humanos so de: a) primeira gerao, que so os direitos civis e polticos, enunciados por meio de proposies negativas (o Estado no pode prender, no pode processar etc.); b) segunda gerao, representados pelos direitos econmicos, sociais e culturais, que apareceram no Sculo XIX, em conseqncia da Revoluo Industrial; c) terceira gerao, os chamados direitos de solidariedade internacional, nos quais os beneficirios no so apenas os indivduos, mas igualmente os povos, tendncia que se manifestou aps a Segunda Guerra Mundial, merecendo especial destaque a Carta das Naes Unidas, editada em 1945. (Cf. ALMEIDA, Fernando Barcellos. Teoria geral dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996).

  • 29

    perspectiva do Estado Democrtico-Constitucional, falar-se em teoria constitucional do

    processo penal. Por conseguinte, neste estudo, tem-se como norte laborar na contribuio

    construo de uma teoria constitucional do Processo Penal. No esgaramento dogmtico da

    matria, parte-se da premissa de que o ordenamento jurdico fundamental brasileiro se

    constitui em uma carta de princpios cuja essncia enuncia os direitos fundamentais, que se

    traduzem em limitaes ao exerccio do direito de punir do Estado12, valores legitimadores e

    legalizadores da atuao estatal na seara criminal.

    Uma advertncia preciso, porm. Quando se cuida de estabelecer um sistema

    processual penal, cuja raiz terica radica na prpria teoria dos direitos fundamentais, no se

    quer, aqui, propor a construo de uma ordem impotente para enfrentar a macrocriminalidade

    ou as aes ilcitas que exigem maior rigidez na resposta do Estado. O que se quer deixar

    claro que tratamento adequado e eficaz de ilcitos que reclamam atuao mais contundente

    do Estado no combate criminalidade no se confunde com maltrato aos direitos

    fundamentais. A premissa a de que por mais hediondo ou organizado que seja o crime, na

    persecuo criminal, o Estado tem de pautar o seu agir de acordo com o perfil democrtico

    desenhado na Constituio de 1988, cuja espinha dorsal so os direitos fundamentais.

    b) Metodologia empregada.

    Tendo em considerao que a teoria constitucional do processo penal se

    confunde com a dos direitos fundamentais, resta patente a dimenso transnacional desse ramo

    do Direito. Os princpios informadores do processo penal, conquanto preceituados como

    normas mnimas em respeito dignidade da pessoa humana, devem ser cumpridos em todo e

    qualquer lugar, independentemente da nacionalidade do agente, fazendo parte da luta e do

    patrimnio da humanidade, cuja obedincia os Estados Membros da Organizao das Naes

    Unidas, em diversos fruns, tm assumido e ratificado, precisam ser contextualizados na

    12 O direito de punir do Estado desenvolve-se por meio de poltica implementada pelos trs nveis de poder poltico. Por isso mesmo, as garantias constitucionais estabelecidas servem de limitao no s da atuao do Poder Executivo em Juzo e fora dele , como igualmente do Legislativo, que detm a avaliao poltica quanto convenincia da feitura das leis pr-traadas pelos parmetros constitucionais, e do Judicirio, que, no exerccio da atividade jurisdicional, deve-se comportar, a um s tempo, como guardio ltimo desses direitos fundamentais, emprestando a ltima palavra interpretativa sobre o alcance dessas normas, e como rgo obediente a esses mandamentos. Realando esse campo de vinculao dos direitos fundamentais, a Constituio da Alemanha, no art. 1, 3, deixa consignado que Os direitos fundamentais aqui enunciados constituem preceitos jurdicos directamente aplicveis, que vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judicial.

  • 30

    perspectiva das declaraes de direitos internacionais e regionais, bem assim do Direito

    Comparado.

    Dessa forma, no estudo aqui planejado e desenvolvido, procurou-se

    esquadrinhar os direitos humanos tal como eles esto catalogados em tratados ratificados pelo

    Brasil e a forma como eles foram agasalhados, sob a modalidade de direitos fundamentais13,

    nas Constituies dos pases que legaram maior influncia na feitura da Constituio de 1988,

    como foram os casos das Cartas da Alemanha, Itlia, Espanha e Portugal, alm da dos Estados

    Unidos.

    Sem embargo da exposio e debate das posies doutrinrias, ressalta-se que a

    funo hegemnica e a natureza normativa dos direitos fundamentais no contexto do Estado

    Democrtico-Constitucional elegem a jurisdio constitucional, exercida pela adoo das

    tcnicas concentrada e difusa, inesgotvel fonte orientadora do alcance dos preceitos dessa

    categoria de direitos, razo pela qual aqui se prope fazer amplo exame crtico da

    jurisprudncia firmada sobre o tema, especialmente aquela proveniente do Supremo Tribunal

    Federal, que, na estrutura organizacional do Poder Judicirio brasileiro, possui como misso

    maior manter a inteireza positiva, autoridade e uniformidade de interpretao das normas

    constitucionais. Parte-se da premissa de todo verdadeira que, caso se queria analisar, com

    a profundidade necessria, os direitos fundamentais que informam a teoria constitucional do

    processo penal, mostra-se imprescindvel a investigao do entendimento da excelsa Corte de

    Justia acerca dos direitos fundamentais, porquanto os enunciados destes, alm de

    polissmicos, s mais das vezes, especialmente nos chamados hard cases de DWORKIN

    (coliso de direitos), somente podem ser descortinados quando do exame do caso concreto.

    c) Tratamento dogmtico do assunto.

    A base cientfica deste trabalho se escora na considerao dos princpios

    constitucionais processuais sob a categoria de limitaes ao exerccio do direito de punir,

    mediante o estudo das normas constitucionais referentes ao processo penal, contextualizando-

    o como um estatuto das liberdades pblicas, inserido na tica do Estado Democrtico-

    13 A nomenclatura direitos fundamentais corresponde aos direitos humanos inscritos na Constituio, como resultado do processo de constitucionalizao que acompanhou a Revoluo Francesa.

  • 31

    Constitucional normatizado pela Constituio de 1988, com paradigma dissonante daquele

    perquirido por um diploma repressivo, prprio dos regimes de fora.

    A tese que se prope desenvolver est dividida em duas partes bem

    delimitadas, de modo que, embora a primeira seja importante, o leitor pode, muito bem,

    dedicar-se leitura apenas da segunda, procedendo, caso queira, conferncia das remisses

    feitas nas notas de rodap sobre o que j havia sido tratado anteriormente ao longo do

    trabalho. A primeira parte trata do surgimento do processo penal e (ao mesmo tempo) das

    primeiras declaraes dos direitos dos homens, at o processo de normatizao dessa

    categoria de direitos, mostrando como esses acontecimentos se entrelaam, at o esboo da

    teoria geral dos direitos fundamentais.

    No desenvolvimento lgico dessa argumentao, no primeiro captulo, mostra-

    se a luta dos povos, desde o pensamento natural do Direito Criminal at a concepo poltica,

    para estabelecer freios ao exerccio do poder poltico e que, em resposta ao Direito Penal do

    terror, que se firmava sob a plataforma da dominao poltica do indivduo mediante a sua

    subjugao fsica fora do Estado, emergiu, depois da metade do Sculo XVIII, sob a

    orientao das idias de BECCARIA, a Escola Clssica, que deu origem propriamente

    cincia criminal, concebida como conjunto de regras bsicas que veiculam direitos

    indispensveis condio humana que devem ser respeitados pelo Estado, quando este se

    encontra no exerccio do poder-dever de punir. Evidencia-se, nesse momento do estudo, que

    o Direito Criminal a entendidos o Direito Penal e, especialmente, o Direito Processual

    Penal , ao contrrio do que, primeira vista, pode-se supor, no surgiu tendo como escopo

    armar o Estado na luta em combater a criminalidade, mas sim com a inteno de impor limites

    ao jus persequendi, por meio da edificao de regras indispensveis legitimao desse agir

    estatal, o que, posteriormente, desvirtuado pela Escola Positiva, cujo aparecimento teve a

    pretenso de mudar o foco da questo para privilegiar, na relao processual penal, a posio

    do Estado, foi completamente desconstrudo com a radicalizao do discurso jurdico operada

    por Escolas neopositivistas, principalmente a do Tecnicismo Jurdico Penal, que tanto

    influenciou o legislador nacional na edio do Cdigo de Processo Penal de 1941, ainda hoje

    em vigor, circunstncia que o identifica com o Estado ditatorial desenhado na Constituio de

    1937.

  • 32

    Com o captulo segundo, inserido na primeira parte do trabalho, fazem-se

    incurses doutrinrias sobre o direito de punir, mediante o exame da origem do Estado para,

    ento, concluir que esse direito-dever exercido em nome do povo mais poltico do que

    jurdico, razo pela qual, ao invs de perquirir os seus fundamentos jurdicos, sobreleva a

    importncia de estabelecer as bases sobre as quais deve ser definido o modelo de atuao

    nessa rea, empreitada complementada com a assertiva de que a poltica criminal h de

    encontrar a sua fundamentao nos cnones constitucionais, que radica na preservao da

    dignidade da pessoa humana, os quais estabelecem o compromisso tico do Estado no trato da

    criminalidade.

    Em passo adiante, faz-se a exposio do processo de normatizao dos direitos

    humanos, registrando-se os primeiros fragmentos normativos dessa categoria de direitos nas

    declaraes inglesas para adquirir, j com as dez primeiras emendas aprovadas Constituio

    americana, em 1789, a configurao que hoje lhe emprestada por todos os pases

    organizados sob orientao das clusulas democrticas e consta, em sua dimenso

    internacional, de tratados e convenes.

    Para bem situar como se deu o processo de constitucionalizao dos direitos

    nsitos condio humana em nosso meio, procede-se, no captulo quatro, ao histrico

    constitucional dos direitos fundamentais no Brasil, a partir da poca imperial at a

    Constituio de 1967. Chama-se a ateno para a circunstncia de a Constituio Imperial de

    1824 ser considerada, por alguns doutrinadores, como o primeiro texto a contemplar, em sua

    redao originria, uma declarao de direitos14, e que, na nossa tradio constitucional, a

    enunciao desses direitos sempre se processou em escala crescente, com exceo da Carta

    Constitucional de 1937, exatamente aquela que serviu de paradigma para a elaborao do

    Cdigo de Processo Penal vigente.

    Por fim, no captulo quinto e que integra, ainda, a primeira parte do escrito,

    traz-se baila esboo sobre a teoria geral dos direitos fundamentais, para, no primeiro

    instante, desenvolver raciocnio que leva concluso quanto ao descompasso entre os direitos

    fundamentais, declarados sob a forma de princpios, e a doutrina juspositivista e, depois,

    arrematar sobre o papel dessa espcie de direitos no Estado Democrtico-Constitucional, com

    14 Afirmativa, porm, que no se apresenta muito verossmil.

  • 33

    especial destaque para a sua natureza, na seara criminal, de norma de proteo contra o direito

    de punir, conquanto se presta para limit-lo.

    Com o captulo sexto dar-se incio segunda parte do trabalho, com o qual se

    faz esboo do Estado Constitucional ou neoconstitucional, organizado de acordo com a

    orientao dimanada dos direitos fundamentais, o que tem o condo de justificar a teoria

    constitucional do processo penal e a natureza garantstica desse ramo do Direito. Aproveita-

    se para pinar o papel diferente desempenhado pelos direitos fundamentais nos processos

    criminal e civil, o que resulta na demonstrao da diferena ontolgica entre um e outro. Para

    finalizar essa banda do estudo, reafirma-se o carter democrtico do processo penal como

    decorrncia lgica do sistema que permeia o Estado Constitucional contemporneo para, em

    seguida, patentear a sua funo poltica.

    Tendo em conta que a exegese constitucional exige a compreenso de uma

    hermenutica que peculiar ao equilbrio dessas normas quanto aos seus contedos poltico e

    jurdico, o captulo stimo se ocupa em delinear critrios indispensveis para a interpretao

    das regras e princpios de ordem constitucional, tendo em considerao trs assertivas

    indispensveis para a delimitao e compreenso dos direitos fundamentais enunciados na

    Constituio: (1) categoria de direitos que se apresentam como limitaes ao direito de punir;

    (2) relatividade desses direitos, por mais fundamentais que eles sejam; (3) garantias que

    devem ser asseguradas como regra, somente sendo admissvel a supresso temporria quando

    houver plena justificativa para tanto, ainda assim, salvo caso de flagrante delito, mediante

    deciso prvia e fundamentada de autoridade judicial ou de Comisso Parlamentar de

    Inqurito. Para concluir o raciocnio apresentado, faz-se, nessa parte, discusso sobre a

    coliso de direitos fundamentais e a utilizao do critrio da ponderao no equacionamento

    da vexata quaestio, a funo hegemnica hoje ocupada por eles no sistema jurdico e, ainda, a

    repercusso, no Direito interno, das declaraes de direitos insertas em diplomas

    internacionais.

    No penltimo captulo, para fins de orientao quanto busca do alcance dos

    direitos fundamentais, deduz-se idia de que os princpios declarativos dessa categoria de

    normas devem ser compreendidos de acordo com o contexto do sistema democrtico, tal

    como ele est concebido na Constituio, ou seja, em consonncia com os seus fundamentos e

  • 34

    objetivos. Nessa perspectiva, no exame dos direitos fundamentais tais como eles esto

    catalogados em nosso ordenamento jurdico, alm de no se perder de vista que o nosso

    sistema o democrtico-constitucional, o que, por si mesmo, j estabelece parmetros para a

    sua compreenso, impe-se ter presente que os fundamentos desse sistema encontram-se

    gizados na compreenso da (1) soberania, (2) cidadania, (3) dignidade humana e (4) dos

    valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e suas repercusses no ambiente criminal.

    De igual sorte, h necessidade de considerar os objetivos fundamentais desse sistema

    democrtico-constitucional, que tem em mira (1) construir uma sociedade livre, justa e

    solidria; (2) erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades regionais;

    alm de (3) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e

    quaisquer outras formas de discriminao.

    O nono e ltimo captulo foi reservado, agora sim, para o estudo das espcies

    de direitos fundamentais contemplados para o processo penal, exceto em relao ao habeas

    corpus e ao tribunal do jri, os quais no foram considerados de maior relevncia para o

    escopo aqui pretendido, at porque o primeiro se trata de um tipo de ao penal e o segundo,

    de um modelo de organizao do Judicirio e de julgamento, ambos comportando tratamento

    que no deve ser aqui dispensado. Quanto anlise de cada um desses direitos fundamentais

    enunciados em forma de princpios, teve-se a preocupao em conferir abordagem

    sistemtica, mediante a diviso em grupos tendo em considerao o bem jurdico por eles

    tutelado.

    Certo de que se em sentido lato sensu o devido processo legal na seara criminal

    compreende a observncia, na persecuo penal, de todos os direitos fundamentais

    catalogados explcita e implicitamente na Constituio, pode-se, no sentido stricto sensu,

    alinhar como direitos fundamentais pertinentes ao devido processo legal somente aqueles que

    so diretamente a ele relacionados, fazendo-se a distino de que o due process of law varia

    conforme seja a natureza do processo principal ou cautelar , a ponto de em alguns casos

    de tutela de urgncia, a exemplo do que ocorre nos pedidos de interceptao de contato

    telefnico, o contraditrio apenas ocorrer em momento posterior deciso e quando a

    diligncia j tiver sido encerrada. Destaca-se na anlise do devido processo legal que alguns

    institutos processuais, como a transao e a suspenso condicional do processo, so

    concebidos na qualidade de instrumentos para lograr obter a despenalizao da conduta no

    caso concreto. Aps esmiuar os princpios da publicidade e da celeridade processual como

  • 35

    categorias nsitas ao devido processo legal e a razo de ser de suas incluses nesse rol,

    procede-se a amplo exame sobre o direito fundamental inadmissibilidade das provas obtidas

    por meio ilcito, certamente inserido na Constituio 1988 sob a inspirao da Constituio

    portuguesa, cuja finalidade sancionar com a nota de ineficcia as diligncias probatrias

    tisnadas de ilegalidade, complementada com a discusso sobre a aplicao, em nosso meio, da

    teoria dos frutos da rvore envenenada (fruits of the poisoned tree), assim como das regras de

    excluso (exclusionary rules): a fonte independente; o descobrimento inevitvel, a boa-f

    (good faith), a doutrina do purged taint ou dos vcios sanados, a prova benfica em prol do

    acusado, o princpio da proporcionalidade ou balancing test, a destruio da mentira do

    imputado, a teoria do risco, a plain view doctrine e os campos abertos, a renncia do

    interessado, a infrao constitucional alheia, a infrao constitucional por pessoas que no

    fazem parte do rgo policial.

    No item 9.2, passa-se ao exame do princpio da presuno de no-

    culpabilidade, expondo os argumentos que denotam ser esta expresso, em nosso meio, diante

    da dico normativa com a qual a referida clusula constitucional foi agasalhada na

    Constituio de 1988, mais correta do que a presuno de inocncia. Ao depois de realar

    que os princpios da verdade real, do in dubio pro reo ou do favor rei germinam do preceito

    da presuno de no-culpabilidade, que, em rigor, faz-se sentir no contexto da valorao da

    prova somente se e quando se faz juzo de culpabilidade, conclui-se que no se h de

    observ-lo para fins de orientao em relao s atuaes da autoridade policial e do

    Ministrio Pblico. Nessa parte ainda se sustenta que o princpio da presuno de no-

    culpabilidade, diante da sua repercusso favorvel ao acusado quanto valorao da prova,

    implica tratamento na relao processual privilegiada daquele no confronto com o Ministrio

    Pblico. Por fim, defende-se que a presuno de inocncia, a bem da verdade, uma garantia

    contra a instaurao de inqurito ou de processo criminal sem justa causa, ou seja, para que

    uma pessoa seja indiciada ou denunciada pela prtica de um crime se reclama que, antes,

    tenha sido apurada a sua culpa sumria, que se consubstancia no binmio prova da existncia

    do crime e indcios de autoria.

    Em passo seguinte, enfrenta-se discusso a respeito dos contornos do princpio

    acusatrio, no desiderato de desenvolver a idia de que a Constituio de 1988, ao romper

    com o sistema misto ento vigente em nosso sistema jurdico, conquanto mantenha o poder

    geral de cautela do juiz, torna defesa algumas iniciativas do julgador, especialmente aquelas

  • 36

    referentes a investigaes pr-processuais, na medida em que se permite a sua participao

    nessa fase apenas para o fim de decidir sobre a realizao de diligncias para as quais h

    necessidade de tergiversar-se com algum dos direitos fundamentais catalogados na

    Constituio, argumento que, mais adiante, serve para rechaar a possibilidade de instaurao

    do juzo de instruo. Diante da pertinncia da matria, aprofunda-se o debate sobre os

    poderes investigatrios do Ministrio Pblico, partindo-se da premissa de que no existe

    privatividade da chamada polcia judiciria (polcia civil) quanto investigao dos delitos.

    Quanto repercusso desse princpio em relao ao processo criminal

    propriamente dito, acentua-se que a titularidade da ao penal nas mos do Ministrio Pblico

    representa para o acusado uma garantia fundamental de que o responsvel pela persecuo

    criminal trata-se de pessoa guiada pela imparcialidade no sentido de que no age movida pelo

    dio ou sentimento de vingana, seno pelo interesse em estabelecer a verdade e laborar

    quanto realizao da justia. Ademais, sublinha-se que o manejo da ao penal pelo parquet

    revela, antes de mais, que ela se cuida de espcie de ao coletiva, mediante a qual aquele

    defende o interesse difuso e coletivo do grupo social malferido com o crime perpetrado, o que

    demonstra a incongruncia da ao penal de iniciativa privada, at porque ela no se coaduna

    com o postulado do Direito Penal mnimo, presente em todo e qualquer ordenamento jurdico

    criminal arquitetado em compasso com o sistema democrtico-constitucional. Por fim, nesse

    item ainda h espao para se ocupar da problemtica referente participao ativa da vtima

    no processo criminal, estreme de dvidas a grande esquecida do drama exibido perante o

    Judicirio, que est a merecer novo enfoque, tendo como norte as idias da