Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf ·...

190
Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural Belém 2009

Transcript of Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf ·...

Page 1: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado

Wany Marcele Costa Góes

Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de

afirmação cultural

Belém 2009

Page 2: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

Wany Marcele Costa Góes

Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Pará. Área de concentração: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Orientadora: Profa. Dra. Ivanilde Apoluceno de Oliveira.

Belém 2009

Page 3: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

2

Dados internacionais de catalogação – na - publicação (CIP). Biblioteca Paulo Freire do Centro de Ciências Sociais e Educação, UEPA,

Belém – PA.

Góes, Wany Marcele Costa. Educação Popular em Ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural / Wany Marcele Costa Góes; Orientadora: Ivanilde Apoluceno de Oliveira. ___ Belém: [s.n.], 2009.

172f. Trabalho de Conclusão de Curso (Mestrado) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009.

1. Ambiente Hospitalar. 2. Educação Popular. 3. Representação de si. I. Título.

Page 4: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

3

Wany Marcele Costa Góes

Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade do Estado do Pará. Área de concentração: Saberes Culturais e Educação na Amazônia.

Data de aprovação: ____/____/_____ Banca Examinadora ________________________________ - Orientadora Profª. Drª. Ivanilde Apoluceno de Oliveira Doutora em Educação – PUC - SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ________________________________ - Examinadora Profª. Drª. Nilda de Oliveira Bentes. Doutora em Educação – UNIMEP- BRASIL Universidade Metodista de Piracicaba. ________________________________ - Examinadora Profª Drª. Ivany Pinto Doutora em Psicologia da Educação – PUC – SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Page 5: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

4

À educanda- paciente e às

educadoras do NEP, pela

disposição em fazer parte

deste estudo.

Page 6: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

5

AGRADECIMENTOS

Após seguir um longo caminho no estudo e construção desta

dissertação, chegar neste momento de busca no passado das pessoas que se

apresentaram como parte significativa desta produção, a qual se materializa no

presente como um trabalho coletivo, imerso em sonhos, determinações e

realizações, é tarefa muito gratificante.

Agradeço a Deus e a minha família, em especial, a minha querida mãe

Iris Góes, pelo apoio incondicional à minha formação como ser humano e

profissional e aos meus filhos, Isaac Martins e Luíze Dias, pelo carinho e amor a

mim sempre ofertado e, principalmente, por fazerem parte das minhas buscas

no ser-mais. Ao exemplo de força e luta para a concretização dos sonhos,

expressos por minha amada avó Maria Costa.

Aos amigos educadores do NEP e aos (as) educandos(as)-pacientes das

comunidades hospitalares, pelas experiências de Educação Popular como

práxis ético-reflexiva que contribuíram na minha formação profissional e

pessoal, especialmente, à minha orientadora Profª. Drª. Ivanilde Apoluceno, que

acompanha e contribui com a minha formação acadêmica e humana desde a

graduação com rigorosidade e amorosidade.Agradeço também as educadoras

Ellem Leal e Cristiane Leite, por suas contribuições e amizade.

É gratificante, neste momento, ter a oportunidade de agradecer as

pessoas amigas que de forma direta ou indireta contribuíram para a realização

deste trabalho e que estão inscritas em minha história: Roseane Rabelo, Andréa

Silveira, Kátia Lima, Amauri Gomes e Tarcisio Filho e aos amigos do mestrado.

Agradeço, também, ao Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Santa

Casa de Misericórdia do Pará, à Assistência Social do Espaço Acolher e à

UEPA/Pós-graduação pela confiança e apoio na realização deste estudo.

Page 7: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

6

Na avaliação do que move indivíduos e comunidades à participação é necessário considerar o seguinte: identidades, como uma arena de entendimento e luta sobre “quem sou e quem somos”, o que define e limita a vida que eu/nós vivemos e o que eu/nós podemos, devemos ou gostaríamos de fazer para provocar mudança ou deixar as coisas como estão.

(JOVCHELOVITCH, 2008, p.278)

Page 8: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

7

RESUMO

GÓES. Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. 2009. 172f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Pará, Belém, Pará, 2009. O estudo aqui apresentado foi pensado a partir de uma experiência educativa vinculada ao Núcleo de Educação popular Paulo Freire (NEP), do Centro de Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará. Investiga a problemática: como uma alfabetizanda do NEP, em sua trajetória de vida e tratamento de saúde hospitalar representa a si na situação de educanda-paciente? Apresenta como objetivos específicos: (a) identificar o significado das práticas educativas do NEP para a educanda-paciente; (b) analisar o processo de construção de identidade, a partir da representação de si que a educanda-paciente expressa em sua trajetória de vida, tendo como referência antes e depois da experiência educativa com o NEP; (c) observar as relações interpessoais efetivadas no ambiente hospitalar; e (d) identificar a contribuição do trabalho educacional do NEP na formação e superação da identidade negada da educanda-paciente vítima de escalpelamento. Trata-se de uma pesquisa de campo com abordagem qualitativa e enfoque dialético, e consiste em um estudo de caso, que foi realizado no Espaço Acolher da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará. Como procedimentos metodológicos, adotou-se: levantamento bibliográfico de autores que abordam os seguintes temas, cultura, identidade, e educação popular; observação participante dos encontros educativos; levantamento documental dos relatórios diários dos educadores do NEP e das produções dos educandos; entrevista aberta com a utilização da técnica história de vida com uma (01) educanda-paciente; e entrevista com a utilização de roteiro semiestruturado com duas (02) educadoras do NEP. Para a sistematização e análise dos dados, foram utilizadas as técnicas da análise de conteúdo, entre as quais, a análise temática. Entre os resultados, destaca-se: as representações de si expressas por Rosa como educanda-paciente do NEP tiveram como referência sua condição de pessoa analfabeta, as quais perpassaram por dois momentos significativos: no início de sua participação nos encontros educativos, ocorreu a expressão de sua identidade pressuposta de pessoa inferior, “burra” e incapaz; e no decorrer de sua participação, a expressão de sua identidade metamorfose como pessoa que tem conhecimento, aprende e ensina e como mulher corajosa, que luta pela sua saúde.

Palavras-chave: Educação. Ambiente Hospitalar. Educação Popular. Representação de si.

Page 9: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

8

ABSTRACT

GÓES. Wany Marcelo Costa. Popular education in the hospital: construction of identities as a process of cultural affirmation. 2009. 172f. Thesis (MA in Education) - University of Pará, Belém, Pará, 2009. The study presented here was designed from an educational experience linked to the Núcleo de Educação Popular Paulo Freire (NEP), of the Centro de Ciências Sociais e Educação, Universidade do Estado do Pará. It investigates the problem: how a literacy student of NEP, in her trajectory of life and hospital health care represents herself in the position of pupil and patient? It presents the following objectives: (a) to identify the significance of educational practices of NEP for a pupil-patient; (b) to analyze the process of identity construction from the representation of self that the pupil-patient expressed in his life trajectory, the reference before and after the educational experience with NEP; (c) to observe the interpersonal relationships carried out in the hospital; and (d) to identify the contribution of the educational work of NEP in training and upgrading of the denied identity of the pupil- patient who was scalped. It is a field research with a qualitative and dialectical approach, and it consists of a case study, which was held at the Espaço Acolher of the Fundação Santa Casa de Misericordia do Para. As methodological procedures one adopted: bibliographic survey of authors who approach the following themes, culture, identity, and popular education; participant observation of the educative meetings; documentary surveys related to the daily reports of NEP educators and of the students' productions; open interviews with the technique of using the life story with one (01) pupil-patient; and interview with the use of semi-structured script with two (02) teachers of NEP. For the systematization and analysis of data, one used the techniques of content analysis, including thematic analysis. Among the results, one points out: the representations of herself expressed by Rose as a NEP pupil-patient, had as its reference her condition as an illiterate person, which are constituted by two significant moments: at the beginning of her participation in the educative meetings, she expressed her assumed identity as an inferior person, "stupid" and incapable; and throughout her participation, she expressed her metamorphosis identity as a person who knows, learns and teaches and as a courageous woman, fighting for her health. Key-words: Education. Hospital’s Environment. Popular Education. Self’s Representation.

Page 10: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

9

LISTA DE SIGLAS

CEP- Comitê de Ética em Pesquisa

CONEP- Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

FSCMPA- Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará

NEP- Núcleo de Educação Popular Paulo Freire

PAIVES- Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento

SETEPS- Secretaria de Trabalho e Promoção Social

SUS- Sistema Único de Saúde

TCLE- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

UEPA- Universidade do Estado do Pará

-

Page 11: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

10

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Espaço Acolher 16

Figura 2- Espaço Acolher 16

Figura 3- Mapa geográfico do Pará 34

Figura 4- Exemplo típico de embarcação ribeirinha 36

Figura 5- Paciente com escalpelamento parcial 36

Figura 6- Paciente com escalpelamento total 36

Figura 7- Paciente após tratamento de enxertia 36

Figura 8- Distribuições por faixa etária das vítimas de escalpelamento em

embarcações a motor (Estado do Pará, nos anos de 2007 a

2009)

37

Figura 9- Vítimas de acidente por escalpelamento atendidas na FSCMPA

nos anos de 2005 a 2009 (mês de julho)

38

Figura 10- Municípios do Pará com registros de casos de escalpelamentos

atendidos na FSCMPA nos anos de 2006 a 2009 (mês de julho)

39

Figura 11- Fluxograma de atendimento no Espaço Acolher 41

Page 12: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

11

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO......................................................................................... 12 2 TRILHAS METODOLÓGICAS DA PESQUISA ..................................... 29 2.1 SUJEITOS DA PESQUISA ..................................................................... 45 2.2 CUIDADOS ÉTICOS DA PESQUISA ENVOLVENDO SERES

HUMANOS .............................................................................................

52 3 SUJEITO, IDENTIDADE E CULTURA: UM PERCURSO HISTÓRICO

ENTRE AS RACIONALIDADES CLÁSSICA, MODERNA E A CONTEMPORÂNEA ..............................................................................

55 3.1 CONCEPÇÕES DE SUJEITO, IDENTIDADE E CULTURA DA

RACIONALIDADE CLÁSSICA: O SER RACIONAL ...............................

56 3.2 CONCEPÇÕES DE SUJEITO, IDENTIDADE E CULTURA NA

RACIONALIDADE MODERNA: DO SER RACIONAL AO SER DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL .................................................................

63 3.2.1 A Subjetividade no Pensamento Moderno ......................................... 64 3.2.2 O Pensamento Positivista .................................................................... 69 3.2.3 Sujeito como Ser de Transformação Social ....................................... 70 3.2.4 Crise da Racionalidade Moderna ........................................................ 73 3.3 CONCEPÇÕES DE SUJEITO, IDENTIDADE E CULTURA NA

RACIONALIDADE CONTEMPORÂNEA: SER DE COMPLEXIDADES

79 3.3.1 Cultura em Debate na Contemporaneidade: Aprendendo com a

Diversidade ............................................................................................

82 3.3.2 O Sujeito Contemporâneo: Ser em Construção 86 4 EXPERIÊNCIAS E APRENDIZAGENS: HISTÓRIA DE VIDA

NARRADA E RECRIADA PELA “ROSA” QUE É O “PRETO” ............

96 4.1 QUANDO ROSA SE TORNOU PRETO: INFÂNCIA, DA LIBERDADE

À “PRISÃO” .............................................................................................

97 4.2 DA REVOLTA: O PRETO MOLECA SE TORNA MÃE MULHER .......... 109 4.3 O ACIDENTE: SOFRIMENTO E LUTA PELA SAÚDE .......................... 117 5 EDUCANDA-PACIENTE: REPRESENTAÇÃO DE SI NO CONTEXTO

EDUCATIVO DO NEP NO ESPAÇO ACOLHER ...................................

126 5.1 AMBIENTE HOSPITALAR EM CONTEXTO: EXPRESSÕES DE UM

COTIDIANO VOLTADO PARA A COMPLEXIDADE SAÚDE- DOENÇA

127 5.2 O NEP E A PRÁXIS EDUCATIVA NO ESPAÇO ACOLHER:

DESAFIOS E SUPERAÇÕES .................................................................

136 5.3 VIDA EM PROCESSO: EXPRESSÕES DAS REPRESENTAÇÕESDE

SI NO CONTEXTO EDUCATIVO DE UMA ALFABETIZANDA DO NEP

142 5.4 EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DE ALTERIDADE: BUSCA

DESUPERAÇÃO DA IDENTIDADE NEGADA ........................................

157 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................... 165 REFERÊNCIAS ...................................................................................... 176 APÊNDICES ........................................................................................... 183 ANEXO ................................................................................................... 193

Page 13: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

12

1 INTRODUÇÃO

O estudo aqui proposto foi pensado a partir da minha experiência

educativa atrelada à linha de pesquisa Educação Popular e Escolarização Básica,

vinculada ao Núcleo de Educação Popular Paulo Freire (NEP), do Centro de

Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Dentre

suas ações, destaca-se o trabalho socioeducacional com pessoas em tratamento

médico-hospitalar.

O Núcleo de Educação Popular Paulo Freire desenvolve ações

interligadas de ensino, pesquisa e extensão, centradas em torno de um eixo comum,

a educação popular numa perspectiva freireana, mas conta também com a

contribuição de outras abordagens teóricas no âmbito sociohistórico,

sociointeracionista e multicultural crítico.

Desde o ano de 2002, vivencio, como educadora do NEP, práticas

educacionais com pessoas em tratamento de saúde. Essa experiência teve início

com as ações de alfabetização e pós-alfabetização de jovens, adultos e idosos

pacientes do Hospital Offir Loyola. Este trabalho foi desenvolvido no espaço de uma

instituição filantrópica de apoio a pessoas em tratamento oncológico e, em 2003, as

práticas educativas estenderam-se nesta mesma instituição para a educação infantil,

em uma brinquedoteca.

De 2003 a 2006, por meio do acordo entre NEP e a assistência social da

Secretaria de Trabalho e Promoção Social (SETEPS), foram iniciadas as atividades

educativas no espaço do Albergue, cedido pela Santa Casa de Misericórdia que

abriga crianças, jovens, adultos e idosos oriundos do interior do estado que estão

em tratamento de saúde em Belém.

Atualmente, o Hospital Santa Casa de Misericórdia desenvolve práticas

educativas com pessoas em tratamento de saúde, por meio do Programa de

Atendimento Pedagógico Hospitalar, com oficinas lúdicas e pedagógicas no espaço

da brinquedoteca para as crianças e reiniciou as atividades em 2007 com o NEP,

que desenvolve ações educativas que visam à inclusão social de jovens, adultos e

idosos e seus familiares no ambiente Espaço Acolher 1.

1 Trata-se de um espaço que funciona sob a direção da Secretaria de Trabalho e Promoção Social (SETEPS), cedido pela Santa Casa de Misericórdia para o acolhimento das pessoas oriundas do interior do Estado, que se deslocam para Belém devido à necessidade de tratamento de saúde.

Page 14: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

13

O Hospital de Clínicas Gaspar Viana desde 2006 é mais um ambiente

hospitalar no qual o NEP desenvolve ações socioeducacionais com crianças, jovens,

adultos e idosos. Iniciou com atendimento de pacientes em tratamento psiquiátrico

no Hospital Dia e, em face de sua desativação, em 2009, o Núcleo passou a

desenvolver suas ações educativas com os pacientes em tratamento renal.

Nesses espaços de trabalho, como educadora do NEP, pude desenvolver

junto ao Grupo de Estudo e Trabalho da Santa Casa de Misericórdia e do Grupo de

Estudo e Trabalho Hospital Dia atividades que objetivavam favorecer a ampliação do

conhecimento e elevação da autoestima dos educandos por meio da

problematização da realidade, buscando gerar uma maior compreensão do cotidiano

da vida, mediante experiências dialógicas de educação.

A constituição de ações pedagógicas nesses hospitais aponta para um

movimento de inclusão social e escolar que pressupõe a ruptura das práticas

tradicionais de ensino e abre espaço para o trabalho que articula as diversas áreas

do saber no tratamento de saúde. Essa perspectiva traz a compreensão de ser

humano mediante as dimensões biológicas, psíquicas e socioeducacionais.

A prática educativa popular desenvolvida pelo NEP no ambiente

hospitalar reflete a proposta freireana de educação, que traz a identidade dialógica

humanista em suas ações com as comunidades populares, partindo da perspectiva

de educação libertadora ético-reflexiva, situando no espaço e no tempo os sujeitos

do conhecimento e fortalecendo a autonomia na luta pelo viver com dignidade.

Assim, a educação popular se configura como movimento social

educacional que mobiliza estudos e práticas compromissadas com as classes

populares, visando sua instrumentalização ética e política por meio do favorecimento

da ampliação do conhecimento crítico reflexivo, objetivando a ruptura com as

condições de opressão e de negações sociais vivenciadas pelas populações

marginalizadas das condições básicas de educação, moradia e saúde (BRANDÃO,

2002).

Educação que se situa no movimento de busca do ser-mais, se alicerça

sob a ótica da formação do sujeito compreendido como ser de reflexão-ação-

reflexão, inconcluso, indeterminado. “Desta maneira, a educação se re-faz

constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo” (FREIRE, 1987, p.84).

De acordo com Gazzinelli (2006), as práticas educativas voltadas para o

contexto do tratamento de saúde evidenciam os efeitos dos movimentos sociais que

Page 15: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

14

visam à humanização dos espaços hospitalares, tendo se iniciado no Brasil durante

a segunda metade do século XX, no sentido de minimizar as tensões cotidianas

causadas pelas enfermidades e o desgastante tratamento médico hospitalar.

Nessa compreensão, saúde e doença estão em constante relação com as

manifestações biológicas e sociais (MINAYO, 1999). O olhar voltado para a pessoa

em tratamento de saúde não mais se limita ao tratamento físico de um corpo, mas

evidencia um sujeito constituído de uma história de vida, constituinte de uma cultura

e de interação social contínua.

Mediante a experiência educativa desenvolvida com pessoas em

tratamento de saúde, em meu Trabalho de Conclusão, no Curso de Pedagogia,

aprofundei meus estudos sobre representações sociais, educação popular e a sua

relação com a melhora do quadro clínico dos educandos-pacientes, tendo como

alicerce os estudos sobre a inclusão social em ambientes não convencionais de

ensino.

Nesse fazer educativo, pude compartilhar junto aos (as) educandos (as)

as práticas sociais cotidianas constituídas nas comunidades hospitalares, nas quais,

em meio à realidade conflituosa de negações sociais, de autonegação e de

estigmatização da diferença, da enfermidade, emerge a força e a união de seres

humanos em busca da cura, da saúde.

As pessoas em tratamento médico-hospitalar, em sua maioria, são

provenientes das classes populares, oriundas do interior do estado e das

comunidades periféricas de Belém, com baixa escolaridade, com histórico de

exclusão educacional e experiências cotidianas desumanas agravadas pelas

desigualdades sociais. De tal forma que a luta pela cura da enfermidade confronta-

se com a dura realidade excludente de negação do exercício da cidadania, refletida

na pouca oferta de atendimento médico-hospitalar público e nas intermináveis filas

de espera para o acesso ao diagnóstico e ao tratamento de saúde.

Ao ter contato, como educadora, com a comunidade da Fundação Santa

Casa de Misericórdia do Pará, pude observar o número significativo de mulheres em

tratamento de saúde provenientes de comunidades ribeirinhas do estado do Pará,

vítimas de escalpelamento2, que participam da experiência educativa desenvolvida

pelo NEP no Espaço Acolher.

2 Acidente ocasionado pela avulsão (extração traumática do couro cabeludo e lesões em áreas adjacentes do mesmo), causado pela ação mecânica do eixo–motor desprotegido das embarcações

Page 16: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

15

A precariedade do transporte fluvial na Amazônia está diretamente ligada

ao drama que atinge principalmente mulheres e crianças. A maioria dos barcos

utilizados por estas comunidades não possui proteção em seus motores, tornando-

se uma arma contra as pessoas que ao se aproximarem do motor têm seus cabelos

acidentalmente puxados pelo eixo, causando o arrancamento brusco do escalpo dos

cabelos e algumas vítimas perdem parte da pele do rosto e das orelhas.

Segundo explicações médicas, “A força de tensão e a firme aderência à

pele fazem com que o couro cabeludo seja arrancado no plano do tecido areolar

mais frouxo [...], gerando hemorragia e estado de choque” (BRITO, 2004, p 31), por

se tratar de uma região bastante vascularizada, podendo ocasionar a morte.

A Fundação tornou-se referência estadual no atendimento às vítimas de

escalpelamento e intensificou suas ações com a criação, em 2007, do PAIVES-

Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento. Podemos

entender melhor como são encaminhadas tais ações a partir das explicações abaixo:

O programa funciona em quatro nichos de assistência: 1º- acidente ocorrido com criança até doze (12) anos de idade, a internação para procedimentos e outros acompanhamentos se faz na Clínica Pediátrica; 2º-a partir dessa idade a internação da vitima se faz na Clínica Cirúrgica e; 3º - após a alta das internações nas clínicas, em função de curativos e demais atendimentos ambulatoriais, o acompanhamento se dá no Ambulatório da Santa Casa. 4º na alta, as pacientes e acompanhantes são instaladas no Espaço Acolher, albergue abrigado pela própria Santa Casa onde permanecem com alimentação e repouso garantidos pela instituição, enquanto continuam sob os cuidados multiprofissionais do hospital (acompanhamento ambulatorial, intervalo entre internações para novas cirurgias, etc.) (PAIVES, 2007, p.10-11).

Assim, é no Espaço Acolher da Santa Casa que as vítimas de

escalpelamento são acolhidas para tratamento.

que trafegam pelos rios da região, configurando uma realidade peculiar na Amazônia. (PAIVES- Programa de Atendimento Integral às Vitimas de Escalpelamento. [DOC]. Termo de compromisso. (Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará. FSCMPA. Belém-PA, 2007).

Page 17: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

16

Fonte: Guia Técnico do PAIVES/FSCMPA, 2007

A maioria das pessoas atendidas no Espaço Acolher são mulheres que

participam dos programas “Mãe Canguru3”, “Mãe Coruja4” e as vítimas de

escalpelamento. Assim, a práxis educativa desenvolvida pelo Núcleo de Educação

Popular Paulo Freire neste ambiente é marcada pelo encontro de mulheres

educadoras e educandas, que constroem juntas a aprendizagem. Mulheres que

significam e ressignificam suas posições, condições sociais e suas identidades por

meio do ato educativo crítico-reflexivo, no qual são problematizados os elementos de

negação da historicidade do ser humano como forma de favorecimento da geração

de novas perspectivas de vida.

No Espaço Acolher, essas mulheres estabelecem suas relações

interpessoais que vão fazendo parte de um cotidiano repleto de significações sobre

a condição da mulher na sociedade, principalmente, em torno do ser mãe, ser filha e

das relações com a estética, devido às mutilações corporais provocadas pelo

acidente de escalpelamento. Condições que se encontram dentro de um contexto de

exclusão social que se estabelece nas referências de gênero, estética, etnia e classe

social.

A complexidade que envolve a compreensão do próprio conceito de

mulher na sociedade contemporânea ultrapassa os limites das determinações

biológicas, pois se situa na multiplicidade das redes de significados construídos,

3 O programa Mãe Canguru atende recém-nascidos prematuros, que ficam em contato permanente e direto com o corpo da mãe. O método acelera a recuperação das crianças e reduz o tempo de permanência no hospital. 4 O alojamento da Mãe Coruja destina-se às mães de bebês internados na Santa Casa. Entre as vantagens está a redução do estresse e o aleitamento exclusivo.

Figura 1-Espaço Acolher Figura 2-Espaço Acolher

Page 18: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

17

reproduzidos, contestados, bem como, reconstruídos na dinâmica das relações

socioculturais vigentes.

Louro (2008) toma o conceito de gênero como categoria de análise para

adentrar no debate sobre as relações de poder estabelecidas historicamente, as

quais se constituem em processos de exclusão social da mulher. Em suas análises,

a autora indica que a concepção de mulher foi construída historicamente sob um

modelo reducionista de compreensão dos sujeitos na adoção de dicotomias, como:

homem/mulher, macho/fêmea, razão/sentimento, teoria/prática.

O conceito de gênero emerge como ferramenta política e pressupõe a

ruptura com o determinismo biológico que expressa de forma reducionista as

diferenças sexuais, em que a mulher é identificada tendo como referência da

espécie humana o homem, situando-a nas fronteiras: homem completo/mulher

incompleta; força/ fragilidade; proteção/submissão/dependência.

Para tanto, o conceito de gênero apoia-se nos fatores sociais das

distinções baseadas no sexo. Assim, elementos, como igualdade, desigualdade,

significações, sexualidade, identidade e diferença, emergem como relevantes para a

reflexão e o debate sobre a questão da mulher na sociedade. Não se trata de negar

a biologia, o gênero não se constitui sob corpos sexuados, na medida em que as

características biológicas são constituídas a partir de construções sociais e políticas.

A concepção de mulher sofre influências e determinações diretas dos

conceitos instituídos e legitimados socialmente, tidos como verdades absolutas e

que perpassam, aparentemente incontestáveis, pelas formas de organização social

e suas instituições como família, trabalho, igreja, em que a relação com o gênero

está atrelada à adoção de papéis sociais determinados.

As mulheres em tratamento de saúde no Espaço Acolher da Fundação

Santa Casa de Misericórdia do Pará e seus acompanhantes passam a fazer parte da

comunidade hospitalar. Essa comunidade é caracterizada pela diversidade cultural,

que, segundo Fleuri (2006), é baseada no estabelecimento de conteúdos e

costumes culturais pré-dados e pela dinâmica da diferença como um processo de

significação e afirmação da cultura em meio à produção de campos de força que

categorizam e discriminam comportamentos, saberes e práticas sociais.

A comunidade hospitalar se constitui não apenas pelas pessoas em

tratamento de saúde e pelos demais funcionários do hospital, mas também pelas

tensões das relações sociais de poder e de conflitos que excluem e estigmatizam a

Page 19: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

18

diferença. Nesse contexto, o ambiente hospitalar se configura como um espaço de

relação entre sujeitos e culturas, de sistemas de significações, de construção de

representações sociais e de identidades, na medida em que, por meio da percepção

da representação construída socialmente, constitui-se a identidade e a diferença.

Por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. É por isso que a representação ocupa um lugar tão central na teorização contemporânea sobre identidade e nos movimentos sociais ligados a identidade. Questionar a identidade e a diferença significa nesse contexto questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação. No centro da crítica da identidade e da diferença está uma crítica das suas formas de representação (SILVA, T. 2000, p. 91).

As atividades educativas desenvolvidas pelo NEP em ambientes

hospitalares de Belém, ao longo dos anos de atuação, vêm se configurando por

meio de práticas que visam à compreensão do ser humano em sua totalidade.

Para Josso (2007), buscar a compreensão do ser humano em sua

totalidade pressupõe percebê-lo como ser complexo e em formação, que, ao

articular a sua consciência e as suas atividades no mundo, suas aprendizagens,

descobertas, significações, constitui-se em ser de processos contínuos de estar-

sendo.

Tal experiência educativa busca estar para além da oferta da

possibilidade de aquisição da leitura e da escrita em meio às situações limites de um

contexto de complexidade de vida e morte, saúde e doença em que os educandos

se encontram, pois, centra-se na valorização do sujeito em formação a partir da

fomentação do olhar crítico desses sobre suas relações sociais no mundo e com o

mundo, buscando gerar uma maior autonomia dos mesmos na resolução dos seus

problemas cotidianos.

Com o olhar voltado para o sujeito e suas relações interpessoais

constituídas no ambiente hospitalar, no qual se configuram as manifestações de um

cotidiano de construção e expressão de saberes, significações e ressignificações de

si e do outro, diante de uma realidade voltada para o tratamento de saúde, torna-se

possível o estudo dos processos pelos quais são construídas as identidades dos

seres humanos.

Page 20: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

19

Dessa forma, a busca do olhar crítico-reflexivo sobre o sujeito e seu

contexto abre espaço para o debate sobre a construção da identidade de cada

sujeito a partir das suas representações de si, tendo em vista as experiências sociais

cotidianas. Com isso, é visada a problematização das condições socioculturais que

convencionalizam as formas ser e agir no mundo, as quais geram uma concepção

de ser humano determinado e incapaz de provocar mudanças significativas em sua

realidade.

Para Silva, T. (2000), mediante a perspectiva da teoria cultural

contemporânea, a construção de identidades ocorre por meio da ideia de

movimento, no qual há a ruptura com a fixação da identidade como um processo

socialmente imposto de homogeneização cultural, comportamental e estético.

Há as perspectivas de identidades futuras, porém, quando essa

possibilidade é negada, é vedada também a possibilidade de ser humano e da

própria vida, que é compreendida como prática de conquista de elementos que

humanizam, inquietam, libertam. “Daí que a vida, a liberdade, o trabalho, nunca são

dados naturalmente; uma identidade humana é sempre negação do que a nega”

(CIAMPA, 1998, p.35).

Ciampa (1998) aponta para a compreensão de ser humano como sujeito

inconcluso, sujeito de possibilidades e como primeiro elemento de conceituação da

identidade humana, a vida, essa compreendida como processo. Para ele, identidade

é um processo humano de articulação da diferença e da igualdade, na qual ao

mesmo tempo em que diante de um contexto histórico e social são constituídas

formas equivalentes de expressões humanas, que são normatizadas na própria

dinâmica das relações sociais, cada sujeito apresenta suas próprias determinações

diante de sua existência concreta, configurando a unidade na multiplicidade.

Assim, a identidade é construída com o outro, na medida em que nos

identificamos por meio do olhar para e o reconhecimento do outro. Estamos

socialmente situados em um espaço e em um tempo que demarcam valores,

culturas, comportamentos, bem como a própria transgressão do instituído.

Para Ciampa (1998, p. 38, 86 e 137):

Sozinhos certamente não podemos ver reconhecida nossa humanidade, consequentemente não nos reconhecemos como humanos.Ter uma identidade humana é ser identificado e identificar-se como humano [...] O indivíduo isolado é uma abstração. A identidade se concretiza na atividade social. O mundo criação humana é o lugar do homem. Uma identidade que

Page 21: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

20

não se realiza na relação com o próximo é fictícia, é abstrata, é falsa [...] É necessário vermos o indivíduo não mais isolado, como coisa imediata, mas sim como relação. Só assim ele pode ser determinado pelo que não é ele, pelo que o nega.

No processo de construção de identidades, cada sujeito em suas relações

sociais se expressa de acordo com o contexto que envolve as determinações sociais

sobre as posições que ocupa nos diversos grupos sociais dos quais é

integrante.Dessa forma, cada sujeito apresenta-se como representante de si,

mediante suas atribuições como membro, por exemplo, de uma família, de uma

comunidade e de uma localidade.

As identidades construídas pelos sujeitos são reveladas por meio das

representações que fazem de si em suas relações com o outro. “Em cada momento,

é impossível expressar a totalidade de mim, agir por mim, mas sempre estou sendo

o representante de mim mesmo. O mesmo pode ser dito do outro frente ao qual

compareço (e que comparece frente a mim) (CIAMPA, 1998, p.171).

Para o sujeito identificar-se como ser humano, faz-se necessário a

oposição aos processos de objetivação, nos quais, seres humanos são identificados

como coisas e, como tais, sem perspectiva de transformação da própria vida. Tais

processos demonstram o caráter convencional e prescritivo de representações

sociais que categorizam pessoas e seus atos, determinam seu espaço e tempo e a

sua própria perspectiva de futuro, indicando que papéis devem ser desempenhados

por cada pessoa na sociedade. Segundo Oliveira (2001), essas convenções têm

como referência um paradigma que nomeia e distingue os incluídos dos excluídos,

os capazes dos incapazes, os belos dos feios, dentre outros. Por isso:

a expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo com suas predicações e, consequentemente, ser tratado como tal. De certa forma, re - atualizamos, através de rituais sociais, uma identidade pressuposta, que assim é vista como algo dado (e não se dando continuamente através da re- posição). Com isso retira-se o caráter de historicidade da mesma, aproximando mais da noção de um mito que prescreve as condutas corretas, re - produzindo o social (CIAMPA, 1998, p.163).

É nesse contexto de construção da identidade como algo determinado

pelas convenções sociais que se origina, segundo Ciampa (1998, p.71), a identidade

pressuposta, isto é, “o significado socialmente compartilhado define, explica, legitima

Page 22: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

21

a realidade e a nova identidade”, de modo que há a identidade que não foi o sujeito

que construiu de si na relação com o outro, mas o outro a impôs.

Opondo-se ao processo estático de interiorização de identidade

pressuposta constituída de forma prescritiva e convencional, ele define a identidade

como metamorfose, isto é, “ser é ser metamorfoseada! A metamorfose é a

expressão da vida. Como tal é um processo inexorável, tenhamos ou não

consciência dele” (CIAMPA, 1998, p.113).

Assim, para Ciampa (1998), a construção da identidade é uma forma de

aprendizado em que o ser humano ao romper com as estruturas que o fazem

assumir como sua a identidade pressuposta, já não faz a representação de um

personagem exterior a si, mas age por sua própria vontade, é espontâneo. De modo

que a constituição humana se dá por meio do aprendizado produzido nas práticas

sociais, portanto, envolvendo tensões, conflitos e superações.

Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal. Uma historia de vida. Um projeto de vida. Uma vida-que- nem- sempre- é- vivida, no emaranhado das relações sociais. Uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. A questão da identidade, assim deve ser vista não como questão apenas científica, nem meramente acadêmica: é, sobretudo, uma questão social, uma questão política (CIAMPA, 1998, p.127).

A identidade, portanto, assume o caráter cultural-histórico não apenas

porque é construída nas práticas sociais cotidianas, mas por ser elemento de

humanização, em que os sujeitos ao produzirem cultura demarcam suas fronteiras

em relação ao outro, como um ato consciente de afirmação de si mesmo e do

mundo que transforma.

É no contexto das formas de representação de si que as identidades

sexuais e de gênero são estabelecidas por cada sujeito, como nos indica Louro

(2008, p.26):

Suas identidades sexuais se constituiriam, pois, através das formas como vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado os sujeitos também se identificam, social e historicamente, como masculinos ou femininos e assim constroem suas identidades de gênero.

No processo de construção de identidade, cada sujeito estabelece,

embora não de forma estável ou fixa, suas relações com o gênero a partir de suas

Page 23: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

22

identidades sexuais e de gênero. Esses processos que tomam corpo na construção

das identidades de cada sujeito, tendo em vista fatores, como classe social, história

de vida, etnia, estética, nacionalidade, subjetividades, dentre outros, estão

diretamente ligados às condições de tensões de poder estabelecidas nas relações

sociais, fazendo com que atue o caráter de ocultação de identidades, tendo em vista

os padrões instituídos a partir de critérios e modelos de normalidade.

Portanto, para discutirmos os processos que objetivam o sujeito e que o

situam dentro de um caráter de estabilidade é necessário apontarmos os elementos

que permitem as desconstruções do dado. Segundo Freire (1987), é no território de

estabelecimento das relações de opressão que se legitima a emergência de

liberdade e de ruptura com os processos de dupla alienação do opressor e do

oprimido.

Para Louro (2008, p.33):

o processo desconstrutivo permite perturbar essa ideia de relação de via única e observar que o poder se exerce em varias direções. O exercício do poder pode, na verdade, fraturar e dividir internamente cada termo da oposição.

Para que haja a desconstrução da lógica de oposição homem-mulher, se

faz necessária a percepção de que tal oposição é construída e, portanto não é fixa.

A concepção social de mulher, tendo como referência o homem faz com que o

entendimento da diferença seja concebido como falta, o que contribui de forma

significativa para o preconceito contra a mulher. “A desconstrução sugere que se

busquem os processos e as condições que estabeleceram os termos da polaridade.

Supõe que se historicize a polaridade e a hierarquia nela implícita” (LOURO, 2008,

p.32).

Conceber os aspectos sociais buscando ir além dos fatores biológicos

para compreender as diferenças sexuais não implica grandes avanços sob a ruptura

com as polaridades, se tais análises apresentam o homem como referência de todo

um discurso legitimado. Condição na qual a relação homem-mulher se fundamenta

sob o discurso em torno de quem domina/oprime e de quem é dominado/oprimido.

Dessa forma, a busca de uma compreensão linear das questões sociais

não dá conta de suas complexidades. A diferença sexual, portanto, é cultural, bem

como os padrões de estética e comportamento.

Page 24: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

23

Os sujeitos que constituem a dicotomia não são, de fato, apenas homens e mulheres, mas homens e mulheres de várias classes, raças, religiões, idades etc. e suas solidariedades e antagonismos podem provocar arranjos mais diversos, perturbando a visão simplista de “homem dominante versos mulher dominada” (LOURO, 2008, p.33).

Nesse contexto, o ambiente hospitalar da Fundação Santa Casa de

Misericórdia do Pará se configura como espaço que congrega pessoas e culturas

oriundas das comunidades ribeirinhas, dos campos, das áreas periféricas de Belém,

trazendo consigo a busca da saúde, mas, também, seus saberes, significações,

sonhos, histórias de vida e culturas.

Então, o ambiente hospitalar torna-se lugar de encontro de pessoas e

saberes, culturas e identidades, de homens e mulheres do campo, da beira dos rios,

das palafitas, de sujeitos que constroem sua cultura e sua história no arado da terra,

nas estradas de rios, nos caminhos das matas ou dos asfaltos das grandes

metrópoles.

A ação educativa do Núcleo, no Espaço Acolher, foi motivada pela

identificação pelos profissionais de saúde de um número significativo de pessoas

hospitalizadas ou seus familiares, que apresentam analfabetismo ou baixa

escolaridade, caracterizando uma demanda e um quadro de exclusão escolar e

social. Este trabalho iniciou sob a perspectiva de promover encontros educativos

como práticas de vivências, de diálogo, de favorecimento da autonomia e criticidade

mediante um contexto de negação social das condições básicas para o exercício da

cidadania.

Nestes encontros tem emergido relatos de experiências, expressões

subjetivas, debates e reflexões sobre os temas que fazem parte do cotidiano da vida

dos educandos, sobre o qual o ambiente hospitalar é mais um elemento de

significação, como indica a fala da educanda Ana5·: um lugar muito especial para

mim [...] muito útil para todo mundo que precisa se consolar dos problemas e

doenças (NEP, 2007, p 18).

Assim, a valorização da autoestima por meio da experiência educativa

destes educandos apresenta-se como elemento fundamental para a superação das

dificuldades encontradas em um doloroso e prolongado tratamento de saúde, que é

caracterizado pelo isolamento do convívio familiar e comunitário, causado tanto

pelas necessidades do tratamento de saúde quanto pelos processos sociais de 5 O nome dos educandos é fictício

Page 25: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

24

estigmatização das diferenças e pelo preconceito. Como podemos perceber na fala

da educanda Joana, que é vitima de escalpelamento: Como vai ser a minha vida

com os preconceitos, as brincadeiras de mau gosto? Como na verdade eu vou viver

comigo mesma? (NEP, 2007, p.18).

O tratamento de saúde das mulheres vítimas de escalpelamento

encontra-se nas fronteiras entre o isolamento e a socialização. A mutilação do corpo,

a perda dos cabelos, afeta diretamente as estruturas estabelecidas de feminilidade

das educandas, tal tratamento está para além dos cuidados clínicos de um corpo,

pois perpassa pelo reconhecimento de si, pela problematização dos padrões de

estética e normalidade estabelecidos socialmente.

Segundo Azerêdo (2007), os papéis atribuídos à mulher, os padrões de

estética e comportamento estão voltados para a sua percepção “fundamentalmente

como corpo” tendo em vista o domínio do discurso masculino. Esse processo de

diferenciação encontra no discurso as condições para a produção do preconceito

contra a mulher:

o processo de produção do preconceito é muito complexo e começa muito cedo em nossas vidas. Nascemos em um mundo povoado com discursos e palavras, palavras que tem um significado em contextos específicos, isto é, palavras que já têm um sentido para as outras pessoas que nasceram antes de nós. A palavra começa a fazer sentido para mim quando eu me aproprio dela, lhe dou minha intenção, falo com meu próprio sotaque (AZERÊDO, 2007, p.28).

O processo de diferenciação pode ser construído de forma passiva pelo

sujeito, que interioriza as identidades impostas pelas determinações de papéis que

ganham legitimidade nas relações sociais de poder e que por meio do discurso

propicia o estabelecimento do preconceito e das hierarquizações das relações entre

os sujeitos. De modo que tal tratamento de saúde reflete, em momentos de tensões

diante da necessidade de adaptação de um novo cotidiano que está voltado para a

relação doença e saúde, um novo espaço de convívio interpessoal (o ambiente

hospitalar). Ambiente no qual se estabelecem relações de união diante da busca da

cura, mas também relações conflituosas e impessoais na medida em que, muitas

vezes, repentinamente, a educanda-paciente se encontra em um lugar estranho ao

seu convívio social.

Page 26: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

25

Essa experiência das pessoas em tratamento de saúde é também

caracterizada pela espera do diagnóstico e tratamento da enfermidade. Assim, no

ambiente hospitalar, os pacientes e seus familiares convivem com a ansiedade de

retornar a sua terra, a seu município para a retomada do seu convívio familiar e

comunitário.

Ao longo desta vivência educativa, pude observar que o afastamento das

pessoas em tratamento médico-hospitalar do convívio familiar é um dos fatores que

causa impactos emocionais muito dolorosos para o paciente e para os seus

familiares, como expressam as educandas6:

Nós mãe é muito bonito ter os filhos ao nosso lado e também estar perto da família que a gente ama. Há também tanto tempo que a gente está fora de casa (MARIA, 2007).

Eu fui na capelinha de Jesus. Quando eu estou triste, com saudade de meus filhos, eu vou até lá para pedir a minha saúde e a dos meus filhos e de toda a minha família (ANA, 2007).

Nesse contexto, a ação desenvolvida pelo NEP, no Espaço Acolher da

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, parte da perspectiva humanista de

educação, a qual busca a ressignificação da autoimagem dos educandos-pacientes,

o que envolve o reconhecimento de si, do outro, de sua colocação no mundo, como

processo crítico-reflexivo diante da realidade e das situações limites vivenciadas em

um contexto de fragilidade de saúde e da necessidade da superação das

dificuldades que envolvem dimensões biológicas, psíquicas e sociais.

Consciente de que o Espaço Acolher é constituído de relações de

complexidades interindividuais e intergrupais tencionadas pelas forças de poder,

pelas diferenças e, mediante a compreensão da construção da identidade como

processo dinâmico inacabado, é que levanto como problema de estudo desta

dissertação: como uma alfabetizanda do NEP, em sua trajetória de vida e tratamento

de saúde hospitalar, representa a si na situação de educanda-paciente?

Tomei como ponto de partida as representações de si que a educanda-

paciente apresentou mediante as suas experiências socioculturais, para analisar o

6 Textos produzidos pelas educandas nos encontros educativos respectivamente dos dias 31 de outubro e 7 de novembro e de 2007.

Page 27: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

26

processo de construção de identidade da mesma em sua trajetória de vida e na

experiência educativa desenvolvida com o NEP, na medida em que o processo de

identificação se dá a partir das representações que cada indivíduo faz de si em suas

relações com o outro. Para Josso (2007), trata-se da busca de conhecimento e

compreensão dos significados que cada sujeito atribui às situações vivenciadas.

Ainda para Josso (2007, p.110), o estudo da construção das identidades

humanas está voltado para a compreensão dos processos de formação dos sujeitos

sociais, sob a ótica das suas construções de conhecimentos, aprendizagens,

constituídas na trajetória de vida, portanto, a autora enfoca “a questão da identidade,

ou melhor, da formação de si, da formação do sujeito”.

Assim, a experiência educativa compartilhada, significada e ressignificada

pela educanda-paciente e pelas educadoras do NEP no Espaço Acolher,

materializa-se em um cenário social de superação das condições de negação social

do próprio ato educativo em um ambiente não convencional de ensino.

Dessa forma, a práxis educativa das educadoras do NEP que participam

desta experiência no Espaço Acolher está inserida nesta pesquisa mediante a busca

da compreensão dos processos de formação do sujeito, em que a educação está

presente enquanto experiência social de manifestação de saberes e significados

sobre si e sobre o outro através de suas atividades com o outro no mundo.

É um estudo voltado para as práticas educativas no Espaço Acolher e

para as relações sociais que constituem a comunidade hospitalar, considerando que

as dimensões subjetivas, culturais e políticas, as quais são constitutivas do cotidiano

da vida de cada ser humano, abrem caminho para a problematização e ampliação

do olhar voltado para a relação educação e saúde.

Anteriormente, a questão se colocava como descritiva apenas; o desafio era obter o maior número possível de informações. Agora, a questão é de compreensão, de entendimento: precisamos captar os significados implícitos, considerar o jogo das aparências. A preocupação é com o que se oculta, fundamentalmente com o desvelamento do que se encontra velado. (CIAMPA, 1998, p.138)

Nesse sentido, desloca-se o olhar da relação educação e saúde do

paradigma da informação como exclusivo meio de promover mudanças

comportamentais para o paradigma das “ações educativas participativas”, superando

Page 28: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

27

a compreensão restrita de atender os interesses de controle de epidemias e

doenças infecciosas.

Assim, espero contribuir com este estudo para a reflexão sobre práticas

educativas ético-políticas que rompam com o paradigma, segundo o qual as ações

educativas com as comunidades hospitalares têm um caráter meramente

intervencionista e disciplinador de comportamentos e hábitos. Além disso, os

pedagogos e as práticas educacionais, de modo geral, não estão presentes no

ambiente hospitalar, portanto, faz-se necessário o debate sobre o significado das

ações educativas em ambientes hospitalares.

Estabeleci com este estudo os seguintes objetivos: (a) investigar como

uma alfabetizanda do NEP, em sua trajetória de vida e tratamento de saúde

hospitalar, representa a si na situação de educanda-paciente; (b) identificar o

significado das práticas educativas do NEP para a educanda-paciente; (c) analisar o

processo de construção de identidade, a partir da representação de si que a

educanda- paciente expressa em sua trajetória de vida, tendo como referência antes

e depois da experiência educativa com o NEP; (d) observar as relações

interpessoais efetivadas no ambiente hospitalar; (e) identificar a contribuição do

trabalho educacional do NEP na formação e superação da identidade negada da

educanda- paciente vítima de escalpelamento.

Esta dissertação tem a seguinte estruturação: na primeira seção, a

introdução; na segunda seção, apresento as trilhas metodológicas da pesquisa,

como premissa científica epistemológica de produção e sistematização do

conhecimento. Situo o lócus da pesquisa por meio do histórico da Fundação Santa

Casa de Misericórdia do Pará que tem, no Programa de Atendimento Integral às

Vítimas de Escalpelamento, a referência no tratamento médico- hospitalar como

proposta multiprofissional que envolve as dimensões biopsicossociais do sujeito.

Destaco as práticas educativas desenvolvidas pelo Núcleo de Educação

Popular Paulo Freire com pessoas jovens, adultas e idosas em tratamento de saúde

e com os seus acompanhantes e ou familiares no Espaço Acolher, bem como os

procedimentos metodológicos de escolha dos sujeitos da pesquisa, de produção e

análise dos dados. Outro ponto em destaque são os cuidados éticos da pesquisa

com seres humanos.

Na terceira seção, estabeleço um percurso histórico entre as

racionalidades clássica, moderna e contemporânea, mediante a concepção de

Page 29: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

28

sujeito, identidade e cultura, objetivando suscitar reflexões e debates sobre os

contextos sociopolíticos e culturais que atuam nas relações sociais e se

dimensionam em práticas de negação do sujeito em suas subjetividades, diferenças

e historicidade.

A quarta seção traz a história de vida de uma educanda- paciente do

NEP, vítima de escalpelamento, com ênfase nas suas formas de representação de

si, tendo em vista a construção de identidades pressupostas e identidades

metamorfoses.

Nas análises, parto da identificação dos momentos expressos pela

educanda-paciente como marcantes em cada fase da sua vida: a infância, a

adolescência e a maturidade a partir das suas práticas sociais cotidianas em seus

contextos socioculturais e as relações interpessoais e significações atribuídas a sua

localidade e ao ambiente hospitalar.

E na quinta seção, trago a prática educativa do NEP no ambiente

hospitalar do Espaço Acolher da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, no

debate sobre a prática da educação popular com pessoas em tratamento médico-

hospitalar como processo ético-político de humanização e inclusão social. Para

então, apresentar como uma alfabetizanda representa a si na situação de educanda-

paciente, tendo como referência antes e depois da experiência educativa com o

NEP.

Destaco também o cotidiano do Espaço Acolher enquanto território de

estabelecimento de relações interpessoais e interculturais, de relações de poder e

de aprendizagens em um contexto de complexidade saúde-doença, que constituem

esta comunidade hospitalar. Cotidiano no qual as práticas educativas desenvolvidas

pelo Núcleo e seus sujeitos estão contidas e estabelecem significações e

ressignificações da relação inclusão- exclusão social.

Page 30: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

29

2 TRILHAS METODOLÓGICAS DA PESQUISA

Esta dissertação consiste em um estudo de caso, que tem como ponto de

partida o contexto e as relações de complexidade que envolve a construção de

identidade de uma educanda-paciente, mediante a experiência educativa

desenvolvida pelo Núcleo de Educação Popular Paulo Freire na Fundação Santa

Casa de Misericórdia do Pará.

O caso “é o estudo da particularidade e da complexidade de um caso

singular, levando a entender sua atividade dentro de importantes circunstâncias”

(STAK,1978 apud ANDRÉ, 2005, p.18).

Os critérios adotados para a escolha do estudo de caso adequam-se aos

objetivos desta pesquisa, pois:

focalizam resultados humanistas ou diferenças culturais e não resultados comportamentais ou diferenças individuais [...] Em segundo lugar, dizem eles, quando as informações dadas pelos participantes não forem julgadas pela sua veracidade ou falsidade, mas forem sujeitas ao escrutínio com base a credibilidade [...]. O terceiro critério por eles enfatizado é a singularidade da situação: a unidade vai ser escolhida porque representa por si só um caso digno de ser estudado, seja porque é representativo de muitos outros casos seja porque é completamente distinto de outros casos ( GROTELUESCHEN, 1980 apud ANDRÉ, 2005, p. 3, 4 e 29).

Compreendendo que o objeto de estudo é que determina a escolha do

método de pesquisa, sistematização e análise dos dados, consideramos a

abordagem qualitativa a mais adequada à proposta desta pesquisa, pois buscamos

adentrar a complexidade das relações sociais do ambiente hospitalar, considerando

o contexto da vida diária dos sujeitos da pesquisa e que os “pontos de vista e

práticas no campo são diferentes devido as diversas perspectivas e ambientes

sociais a ele relacionados” (FLICK, 2004, p.22).

Na pesquisa de campo, para o alcance de uma maior compreensão do

fenômeno social, o pesquisador não apenas se insere na realidade, mas concebe a

construção do conhecimento de forma coletiva, pois parte das interações

concretizadas entre sujeito–pesquisador e sujeitos-pesquisados.

Os questionamentos levantados por este estudo em torno do processo de

construção de identidades procuram situar o ser humano em suas relações com seu

contexto histórico, político e cultural, como ser de dimensões biopisicossociais,

Page 31: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

30

portanto, contraditório, inacabado e histórico. Para tanto, o método dialético adequa-

se a este estudo, pois tem como uma das premissas fundamentais o processo

permanente de vir-a-ser em que tudo está sujeito a mudanças. O método dialético

“esforça-se para entender o processo histórico em seu dinamismo, provisoriedade e

transformação” (MINAYO, 1993, p.65).

A pesquisa qualitativa, à luz do enfoque dialético, segundo Minayo (1993),

volta-se para o caráter de totalidade da existência humana. De modo que para o

estudo da construção de identidades ao longo da trajetória de vida do sujeito, há

uma história pessoal, uma construção humana que ao ter seu movimento particular

é mediatizada por toda uma complexidade contextual de uma realidade situada em

um tempo e em um espaço. Portanto, para a captação e entendimento do processo

de construção de identidade, pressupõe-se o entendimento da totalidade da

existência humana em sua indissociabilidade dos fatores sociais, políticos e

culturais, haja vista que no particular está contido o geral e vice-versa.

O estudo das identidades humanas tem suas bases teórico-

metodológicas na Psicologia Social. Trata-se de uma área da psicologia que estuda

as interações sociais, fazendo pontes entre a psicologia e a sociologia. Essa área

volta-se para os processos de encontro social e interdependência entre os

indivíduos.

O estudo da construção das identidades humanas em um contexto de

complexidade saúde-doença, sob a ótica da Psicologia Social, visa à ruptura com o

modelo cartesiano de dualidade corpo e mente que caracterizou a concepção de

sujeito moderno, racional, pensante e consciente, pertencente a um mundo

mecanizado, passivo de explicações sobre os fenômenos biopsicossociais. Este

modelo estabelecia noções de extensão e movimento, presentes na concepção de

matéria, na qual o corpo humano é visto como os demais corpos do universo,

podendo, portanto,ser compreendido e explicado matematicamente.

Em contrapartida, a Psicologia Social, segundo Ciampa (1998), busca a

compreensão do ser humano na complexidade de relações sociais que envolvem

tanto aspectos objetivos quanto subjetivos, internos e externos, mediante uma

relação dialética de formação humana.

Tal área do conhecimento surge como um modelo de estudo do ser

humano sob o ponto de vista do encontro social e apresenta como principais

categorias de estudo: a percepção social; a comunicação; as atitudes; a mudança de

Page 32: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

31

atitudes; o processo de socialização; os grupos sociais e os papéis sociais.

No entanto, enquanto construção histórica, a Psicologia Social sofreu

críticas, dentre as quais, podemos destacar a sua limitação a métodos observáveis e

descritivos do comportamento social. Por ter emergido em um contexto histórico

norte-americano de pós-guerra, teve sua prática investigativa voltada para propostas

de ajustamento e adequação de comportamentos individuais ao contexto social

daquele período.

Outra crítica está na noção limitada de sociedade, voltada apenas para as

interações sociais, quando na realidade a dimensão social possui toda uma

complexidade que está diretamente ligada à constituição do sujeito individual e

coletivo, mediante aspectos, como história de vida, cultura e contexto histórico.

Tais críticas possibilitaram a emergência da nova Psicologia Social, que

pressupõe o entendimento do ser humano em sua totalidade, em seus processos

biopsicossociais que se constituem nas interrelações entre a atividade e a

consciência de cada ser humano, inseridas em contextos socioculturais.

Para a nova psicologia social, existem três categorias fundamentais para

o estudo do ser humano: atividade, consciência e identidade. A atividade

compreendida como a própria ação dos indivíduos no mundo; a consciência como

processo de reconhecimento de si e do outro e como possibilidade de reflexão

mediante seu contexto no mundo; e a identidade como construção humana, que

ligada à consciência e a atividade, distingue cada sujeito constituído de cultura e de

história em que “o indivíduo não mais é algo: ele é o que faz”. (CIAMPA, 1998,

p.135).

O lócus da pesquisa

Este estudo foi realizado no Espaço Acolher da Fundação da Santa Casa

de Misericórdia do Pará, que funciona como um albergue e oferece apoio às

pessoas provenientes das classes populares do interior do Estado do Pará, que se

deslocam à capital para fazer tratamento de saúde, em decorrência da insuficiente

oferta de atendimento de saúde publica em seus municípios.

A Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará tem grande

representatividade no Estado do Pará com o tratamento médico-hospitalar público,

diante de uma proposta de tratamento de saúde que envolve uma equipe

Page 33: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

32

multiprofissional no atendimento da grande demanda da população amazônica,

apresentando como missão:

prestar assistência à saúde, inserida no SUS, atuando como hospital geral de ensino e de referência na atenção integral a saúde da mulher e da criança, na média alta complexidade, com qualidade e de forma humanizadora, articulada com as políticas públicas e em parceria com a sociedade civil (Planejamento estratégico da FSCMPA/2007) (Guia técnico do PAIVES, 2007, p.10).

Trata-se de uma instituição com quase quatro séculos de existência,

embora os registros históricos não tenham muita precisão, possivelmente, foi

fundada em 24 de fevereiro de 1950, sob a direção da igreja católica. Momento em

que no mundo se instalavam as Irmandades da Santa Casa de Misericórdia

juntamente com o colonialismo.

Assim, cabia aos portadores da misericórdia revelada na assistência aos

desvalidos, doentes, órfãos, dentre outros, a adoção da doutrina de Santo Tomás de

Aquino, século XIII, que propunha em suas obras espirituais e corporais da

misericórdia, atitudes, como ensinar os simples; dar conselho a quem o pede;

castigar os que erram; rezar pelos vivos e pelos mortos; dar de comer aos famintos;

dar pouso ao peregrino e enterrar os mortos (BORDALO, 2000, p.20).

Em 1990, ao ter o seu regime jurídico alterado pelo governo do Estado,

tornou-se fundação estadual, mas ainda é forte no cenário paraense a

representação desta instituição como a que acolhe a quem vier a sua porta e,

apesar de fazer atendimentos por meio da central de leitos, tendo em vista a

organização do SUS, atende também a demanda que vem até o hospital de forma

direta.

Ao longo do seu estabelecimento, a Fundação Santa Casa de

Misericórdia do Pará vem buscando ruptura com o caráter assistencialista que

referendou a construção das Santas Casas no Brasil, com a criação de programas

de assistência à saúde e de equipes multidisciplinares na execução de ações que

visam ao tratamento de saúde, considerando as dimensões biológicas, sociais e

culturais da população amazônica.

O Programa de Atendimento Integral às Vítima de Escalpelamento

(PAIVES) é um exemplo dessas iniciativas de estabelecimento de uma ação

conjunta no tratamento de saúde, haja vista o acidente causar sequelas físicas e

Page 34: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

33

emocionais que atingem tanto o paciente quanto a sua família. A equipe

multidisciplinar é composta por médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes

sociais, pedagogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, nutricionistas,

fonoaudiólogos e pessoal de apoio. São objetivos do programa (PAIVES, 2007,

p.20):

ofertar cobertura assistencial integral, interdisciplinar e humanizadora às vitimas de escalpelamento e familiares ingressos na Santa Casa; aprimorar e desenvolver tecnologias de atendimento e insumos voltados para as necessidades das (os) pacientes; construção, manutenção e alimentação de banco de dados como referência técnica e de pesquisa na área; capacitação continuada de pessoal técnico especializado para o atendimento desta referência.

A região amazônica abriga uma rica rede fluvial, a qual apresenta os rios

como principais meios de transporte, comunicação e escoação dos excedentes de

produção agrícola, artesanal e do extrativismo. Os rios funcionam como meio de

vida e como recurso de socialização das comunidades ribeirinhas7 que se

encontram, devido à extensão territorial da região, isoladas. Os barcos assumem

papel fundamental para o trabalho e para o dia-a-dia dessas comunidades, fazendo

parte das práticas culturais amazônicas por meio dos saberes construídos no

cotidiano da vida à beira dos rios.

7 Neste trabalho, as comunidades ribeirinhas são compreendidas como grupos populacionais estabelecidos próximos às margens dos rios da região amazônica, os quais possuem íntima relação com a natureza, construindo um cotidiano de saberes e práticas peculiares a sua região.

Page 35: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

34

É no cenário da biodiversidade amazônica que as mulheres vítimas de

escalpelamento constituem suas práticas sociais cotidianas, construindo sua história

de vida ligada à sobrevivência por meio do trabalho da cultura da terra, do

extrativismo e do artesanato. Essas práticas se apresentam como expressão dos

saberes transmitidos a cada geração, como expressão cultural em que os rios, mais

que uma dimensão geográfica, são demarcadores de fronteiras entre terras,

elemento fundamental para a vida. Porém, é nos caminhos de rios e no interior dos

barcos, que funcionam como principais meios de transporte destas comunidades,

que se abre uma dicotomia entre as riquezas naturais amazônicas e a pouca oferta

do poder público ao atendimento das necessidades básicas de moradia, educação e

saúde.

Faz parte da prática cotidiana das comunidades ribeirinhas as pequenas

embarcações serem dirigidas por pessoas de todas as idades, sem que sejam

tomadas medidas de segurança. As mulheres, principalmente crianças, são as mais

atingidas por, em sua maioria, usarem seus cabelos longos.

Outro agravante é que o espaço no interior dos barcos é muito restrito

para a movimentação, o que deixa os passageiros muito próximos aos motores

Figura 3 - Mapa geográfico do Pará com recortes dos rios em azul celeste. As setas verde-escuro mostram algumas regiões onde ocorrem acidentes – nota-se a extensa distribuição geográfica das áreas de ocorrência ao longo dos cursos dos rios. Fonte: Guia Técnico do PAIVES/FSCMPA, 2007).

Page 36: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

35

descobertos, e por qualquer motivo podem ter seus cabelos puxados pelo eixo do

motor que gira rapidamente sem possibilidades de interrupção rápida do acidente.

Ribeiro (2009, p.34-35) aponta outros fatores que possibilitam o acidente:

durante as travessias de barco, os ribeirinhos têm de lidar com algumas situações perigosas como. Por exemplo, a entrada de água pelo espaço que fica entre o motor e o eixo 8. A aproximação da água do eixo do motor, somado a um pequeno descuido, pode provocar o escalpelamento, pois a força centrípeta9 gerada pelo eixo em rotação atrai os cabelos da vítima, fazendo com que o couro cabeludo seja bruscamente arrancado.

Concomitante com a realidade de negação social vivenciada pelas

comunidades ribeirinhas da região amazônica, evidenciadas pela insuficiente oferta

dos atendimentos básicos de saúde, saneamento e educação, as vítimas de

escalpelamento têm de lidar com uma rotina dolorosa do tratamento de saúde, à

qual, muitas vezes, têm o acesso dificultado pelas grandes distâncias de suas

localidades dos centros urbanos, pelas dificuldades de descolamento para ter

atendimento em Belém e pela espera de diagnóstico e tratamento da enfermidade.

Na maioria das vezes, as embarcações são de propriedade da família,

que, devido ao baixo poder aquisitivo, buscam alternativas para a improvisação de

motores a custo mais baixo. Dessa forma, os barcos são equipados

inadequadamente com motor de gerador10, utilizado para dar maior estabilidade e

equilíbrio ao mesmo, é uma opção mais econômica por funcionar a óleo diesel (ver

figura 2). Porém, o gerador não é um instrumento apropriado para sua utilização

como motor de barcos, como nos explica Ribeiro (2009, p.34):

o mesmo não possui carenagem para os eixos, que gira em alta rotação e se estende até a hélice, sem qualquer tipo de proteção. Como o motor destas embarcações, na maioria das vezes, é deixado descoberto, se torna uma verdadeira “armadilha” para as pessoas que as utilizam, que no decorrer do trajeto que fazem, ficam suscetíveis à ocorrência de acidentes, entre eles o escalpelamento.

8 Essa água é geralmente retirada manualmente pelas crianças ou mulheres, utilizando uma cuia (objeto artesanal, feito de um fruto local). 9 Força direcionada para o centro. O eixo apresenta movimento rotatório apenas para uma direção, no caso dos motores, para dentro. 10 Motores comprados em oficinas, vindos de fazendas que não os usam mais como geradores de energia ou para captar água com a chegada da luz elétrica no interior da Amazônia (MARTINS, 2006).

Page 37: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

36

Segundo Voltolini (2003), esse tipo de acidente reforça a exclusão entre

os já excluídos, “tão dolorido quanto a perda total ou parcial do couro cabeludo,

orelhas, sobrancelhas e pálpebras ou ainda a cegueira, conseqüências previsíveis

do escalpelamento, é ter que cobrir, com bandagens e lenços, as feridas de uma

mazela que destrói a auto-estima, nega o direito tão feminino à vaidade”.

As imagens a seguir apresentam as formas de escalpelamento total ou

parcial

Fonte: Guia Técnico do PAIVES/FSCMPA, 2007.

Figura 5 - Paciente com escalpelamento parcial.

Figura 6 - Paciente com escalpelamento total.

Figura 7 - Paciente após tratamento de enxertia. Nota-se o comprometimento dos tecidos cervicais e pavilhões auriculares.

Figura 4 - Exemplo típico de embarcação ribeirinha, tipo bote para o uso familiar, de fabricação rústica com o eixo exposto (seta amarela). Obs. Foto no barco onde houve acidente. Fonte: Guia Técnico do PAIVES/FSCMPA, 2007.

Page 38: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

37

A necessidade de tratamento médico obriga essas pessoas a

interromperem tanto a educação escolar quanto as práticas sociais cotidianas de

sua comunidade, e, ao se deslocarem de seu local de origem, seu município, para

entrarem em contato com a realidade dos grandes centros urbanos, se defrontam

com um ambiente muitas vezes desconhecido, o hospitalar.

A Fundação Santa Casa de Misericórdia Pará possui uma grade de

atendimento de saúde às pessoas provenientes dos 143 municípios que compõem o

Estado do Pará e de Estados vizinhos, por meio de programas essenciais à saúde.

Esses programas são voltados, principalmente, às comunidades carentes que se

deslocam por grandes distâncias rumo ao hospital em busca de tratamento médico-

hospitalar, haja vista não encontrarem em sua cidade local as condições adequadas,

reflexo da ausência de políticas públicas de atendimento à saúde, educação,

saneamento básico e moradia.

As vítimas de escalpelamento em sua maioria são mulheres,

principalmente crianças, já que faz parte do contexto cultural ribeirinho o manejo dos

barcos desde a infância. O uso dos cabelos longos também é parte da manifestação

cultural religiosa dessas comunidades, os quais são facilmente atraídos para os

eixos dos motores. Segundo dados da FSCMPA, 80% dos casos registrados de

escalpelamento ocorreram em mulheres, sendo 20% dos casos em homens.

A tabela abaixo apresenta o índice de mulheres vítimas de

escalpelamento, tendo uma porcentagem elevada de crianças que passam por esse

drama.

Figura 8: Distribuição por faixa etária das vítimas de escalpelamento em embarcações a motor (Pará) nos anos de 2007 a 2009.

Fonte: FSCMPA, 2007.

Atualmente, não temos o número exato de pessoas vitimadas pelo

escalpelamento no Estado do Pará, pois muitos casos que acarretam em mortes não

Page 39: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

38

são registrados pela família, bem como não é feita a denúncia da situação de perigo

em que as comunidades se encontram ao utilizarem barcos irregulares, na medida

em que os mesmos são na maioria de propriedade da própria família, a qual precisa

diariamente desse transporte.

A solução para esse problema é a instalação de uma proteção no motor

dos barcos, no entanto, a grande maioria não possui recursos, o que acarreta em

um número significativo de vítimas. Como podemos observar na tabela abaixo:

Figura 9 - Vítimas de acidentes por escalpelamento atendidas na FSCMPA nos anos de 2005 a 2009 (mês de julho) Fonte: FSCMPA, 2007

O Guia Técnico do PAIVES indica que o número de escalpelamentos na

Amazônia não representa agravo à saúde pública, mas é em função da gravidade e

das multinecessidades, sequelas e especificidades do tratamento que esse

programa se justifica. No entanto, esta ação não pode ocorrer isoladamente das

iniciativas de prevenção e erradicação desse acidente que deve estar em

mobilização com o Ministério Público, o governo, ONGs, Defensoria da União,

Marinha e sociedade civil.

Para além de práticas de informações sobre os perigos que o motor dos

barcos oferece para as populações ribeirinhas, a busca da eliminação desse

problema está diretamente ligada à efetivação de políticas públicas que favoreçam a

inclusão social e educacional negadas historicamente a essas comunidades que, ao

longo de sua ocupação na Amazônia, foram negligenciadas. Segundo Neto (1993), o

sistema de transporte fluvial amazônico foi sendo sucateado, na medida em que se

Page 40: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

39

deslocou o escoamento da produção amazônica dos rios para os asfaltos,

acarretando em prejuízos para as populações ribeirinhas, evidenciados na

precariedade de transporte em que convivem as populações ribeirinhas.

Os dados a seguir apontam para a abrangência em que ocorrem os

acidentes de escalpelamento, com o registro de 25 (vinte e cinco) municípios

atingidos por esse drama. O que revela o alto grau de precariedade de transporte

fluvial a que as populações ribeirinhas estão submetidas. Municípios, como Igarapé

Miri, Portel e Cametá, apresentam maior ocorrência deste acidente.

Figura 10 – Municípios do Pará com registros de casos de escalpelamento atendidos FSCMPA nos anos de 2006 a 2009 (mês de julho).

Fonte: FSCMPA,2007.

A solução para o problema do escalpelamento, apesar de apresentar-se

como algo simples, perpassa pela complexidade dos fatores socioculturais que

fazem parte do cotidiano da vida à beira dos rios. Assim, a mera oferta de

informações sobre os riscos que os motores descobertos dos barcos oferecem à

saúde, por si só, não indicam mudanças comportamentais que favoreçam a

segurança dessas populações. Para Gazzinelli (2006, p.27):

Page 41: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

40

Há uma não- correspondência, frequente, entre saber instituído e mudança de comportamento e de práticas, que estaria ligado ao fato de que comportamentos traduzem percepções, valores, representações simbólicas, relações de poder, crenças e sentimentos, não podendo, na maioria das vezes, ser modificados a partir, unicamente, e novos conhecimentos. Assim, tem início o desenvolvimento da percepção do quanto de subjetividade existe no modo dos sujeitos verem e representarem o processo de saúde-doença.

Para Martins (2006), ao transporte fluvial na Amazônia deve ser dada a

mesma importância que é dada ao transporte rodoviário do país, pois ambos

implicam as condições de segurança de seus usuários, bem como o transporte e

escoamento das produções e consequentemente a economia de um país.

Para o enfrentamento desse grave acidente, em 2005, foi criado o Fórum

Estadual Permanente contra o Escalpelamento e, sob a coordenação da secretaria

de Saúde Pública, foram estruturados grupos de trabalho para a política estadual de

atenção e erradicação desses acidentes, que conta também com a participação de

setores governamentais como: a OAB, Pastoral da Criança, ONG Sarapó, Sindicato

dos Médicos e Sociedade Paraense Pediátrica.

O acidente do escalpelamento impõe sobre suas vítimas transtornos de

cunho emocional, físico e social que se arrastam por anos em sua vida, mediante

um tratamento doloroso e prolongado. Outro agravante é o enfrentamento do

preconceito, pois o acidente deixa sequelas estéticas irreversíveis e após anos de

tratamento o (a) paciente acaba encontrando no isolamento social a fuga contra o

preconceito.

O acidente impõe dor, seqüelas físicas e vivencias de intenso sofrimento psíquico e social durante todo o tratamento e atravessando a continuidade da vida das (os) pacientes com danos significativos à auto- estima, identidade, percepção corporal, humor, sociabilidade e relações afetivas globais (PAIVES, 2007, p.13).

Após o período das internações clínicas, a vítima de escalpelamento

passa por um longo processo de tratamento que envolve uma rotina de curativos e

demais atendimentos ambulatoriais, período em que, juntamente com o seu

acompanhante, a paciente fica instalada no Espaço Acolher, como mostra o

fluxograma de atendimento.

Page 42: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

41

Figura 11: Fluxograma de atendimento do Espaço Acolher. Fonte:

Recepção-abertura/resgate de prontuário

Tratamento na clínica pediátrica- enf.São Francisco

leitos 1 e 2

Tratamento na clínica cirúrgica- enf. Santa Maria

ESPAÇO ACOLHER

ACOLHIMENTO

Levantamento de necessidades sociais-

construção de agenda de consultas e curativos

Atendimento

diário do serviço social

Alta médica

Desligamento do Espaço Acolher

Retorno ao município de origem FINAL

INÍCIO

Abordagem inicial

Apresentação aos usuários das normas e

rotinas do Espaço

Confecção do sumário social

Encaminhamento aos leitos

Realizar curso de trabalho e geração de renda (oficinas manuais)

Proporcionar atividades de cultura e lazer

Proporcionar suporte aos acompanhantes

Monitoramento diário das consultas, exames, curativos, etc.Se necessário a solicitar transporte

Monitoramento do TFD (Tratamento

Fora do Domicilio)

Realizar trabalhos de grupos

educativos e informativos

Em sendo necessária nova internação

1º1º

2º1º

3º1º

4º1º

Page 43: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

42

O acidente, também afeta a renda familiar, pois pacientes e seus

familiares têm que subitamente se deslocar de sua comunidade e interromper suas

atividades econômicas em virtude do tratamento médico-hospitalar, condições essas

que se apresentam como agravantes de um cotidiano doloroso de tratamento de

saúde.

Diante das questões apontadas, as ações educativas desenvolvidas pelo

NEP no Espaço Acolher com as vítimas de escalpelamento refletem a mobilização

dos profissionais de diversas áreas do saber rumo à efetivação de ações que

articulam saúde, educação e cultura no tratamento médico- hospitalar, como forma

de minimizar as tensões sofridas.

A escolha do Espaço Acolher para a realização da pesquisa tem caráter

intencional, por ter como especificidade a promoção de práticas de inclusão social e

educacional desenvolvidas pelo NEP com jovens, adultos e idosos em tratamento de

saúde, entre os quais mulheres vítimas de escalpelamento.

O Espaço Acolher se configura como um ambiente que congrega uma

diversidade composta de homens e mulheres, adultos e crianças, os quais trazem

consigo toda uma vivência, seus costumes, saberes e tradições herdadas e

construídas no cotidiano de sua localidade. A diversidade cultural do contexto

amazônico é manifestada pela comunidade hospitalar por meio da expressão das

linguagens, da história de vida e das formas de agir e pensar de cada membro. Esse

espaço torna-se um local de expressões de um saber ser que toma dimensões

individuais e, ao mesmo tempo, faz parte do coletivo que caracteriza essa

comunidade.

Cada pessoa que chega a esse ambiente começa a fazer parte do

cotidiano de um local que não é a sua casa, mas que lhe oferece condições básicas

para a continuidade do tratamento de saúde. Assim, o que de início parece estranho,

um espaço físico impessoal, apresentado por corredores e enfermarias, começa a

ter novas significações. Cada sujeito começa a fazer parte da comunidade do

Espaço Acolher, no qual, são estabelecidas novas relações sociais. Num contexto

de fragilidade e tensão mediante o enfrentamento de uma enfermidade, surge o

novo e na dinâmica das relações sociais cotidianas, são construídas novas

amizades, convive-se com as diferenças, que ora podem provocar o isolamento, ora

instigar a socialização.

Page 44: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

43

Nesse contexto, o tratamento de saúde está para além de um processo

fisicobiológico, pois se configura na própria condição de convivência com novas

experiências e na possibilidade de ressignificação da vida, de si e do outro.

Assim, esta comunidade abriu caminho para a entrada de um grupo de

educadores que, sob a perspectiva do novo, encontraram possibilidades de

promover ações de alfabetização e pós-alfabetização, com práticas de valorização

do ser humano em sua totalidade. Trata-se de um trabalho de parceria entre a

assistência social do Espaço Acolher e o NEP.

O Núcleo de Educação Popular Paulo Freire está localizado no Centro de

Ciências Sociais e Educação (CCSE), na Universidade do Estado do Pará (UEPA) e

promove estudos e práticas educativas voltadas para a Educação Popular, pautadas

na perspectiva freireana, contando também com abordagens teóricas no âmbito

sociohistórico, sociointeracionista e multicultural crítico.

O Núcleo desenvolve ações educativas de alfabetização e pós-

alfabetização com crianças, jovens, adultos e idosos, provenientes das classes

populares de Belém, das áreas periféricas e de municípios do Estado do Pará,

objetivando o favorecimento da ampliação do conhecimento de educadores e

educandos mediante experiências dialógicas de educação, centradas na valorização

do ser humano, compreendido como sujeito da ação.

Tal perspectiva pressupõe a mobilização da comunidade acadêmica em

prol da inclusão social e educacional dos sujeitos marginalizados de seus direitos,

não apenas de acesso às experiências educativas em espaços convencionais e não

convencionais de ensino, mas das possibilidades de continuidade dos estudos que

favoreçam a autonomia e criticidade dos mesmos na tomada de atitudes frente às

condições de negações sociais vivenciadas cotidianamente.

Com o desenvolvimento de estudos em educação popular articulado às

práticas educativas realizadas com as comunidades do campo, das áreas periféricas

e das comunidades hospitalares de Belém, o Núcleo vem se configurando como

agência de formação acadêmica de estudantes dos cursos de licenciatura, dentre o

quais, Matemática, Pedagogia, Ciências da Religião, bem como de especialistas,

mestres e doutores que, no exercício de aprofundamento teórico-prático, oferecem

contribuições para a academia científica por meio das produções resultantes de

pesquisas que se materializaram na elaboração de artigos, trabalhos de conclusão

de curso, monografias e dissertações.

Page 45: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

44

O relatório das atividades desenvolvidas pelo Núcleo, em 2007, nos traz

esclarecimentos sobre a execução de suas ações com a comunidade hospitalar do

Espaço Acolher:

Iniciamos as atividades na comunidade no mês de abril de 2007. Este iniciar na verdade se apresenta como um retorno do NEP à comunidade hospitalar localizada na Santa Casa, marcado por um sentimento positivo por parte dos educadores (as), uma vez que o Núcleo vem desenvolvendo desde 2003 uma ação educativa neste espaço. Em 2003, por meio de um acordo entre NEP e Assistência Social da SETEPS (Secretaria de Trabalho e Promoção Social), foram iniciadas as atividades de alfabetização e pós- alfabetização no Albergue São José, atual Espaço Acolher, que abriga crianças, jovens, adultos e idosos oriundos principalmente do interior do Estado e que estão em tratamento medico em Belém. No ano de 2005, o albergue São José passou por um processo de reforma, o que exigiu uma temporária suspensão das atividades desenvolvidas no espaço. Em 2007, sob uma nova coordenação exercida pela Santa Casa de Misericórdia, o albergue passou a ser denominado Espaço Acolher, porém, manteve sua funcionalidade de ser um espaço de abrigo e de desenvolvimento de atividades de cunho social às pessoas em tratamento médico. Em virtude do trabalho educativo desenvolvido pelo NEP desde 2003, fomos convidados a retornar ao espaço para darmos continuidade às ações educativas às segunda, terças e quartas feiras no horário das 14h:00 às 15h:30min, e os encontros de planejamento das atividades, às quintas-feiras às 16h:00.

Devido à existência de vítimas de escalpelamento acolhidas neste

espaço, a prática educativa desenvolvida pelo NEP busca a ressignificação da vida

por meio de ações educativas que favoreçam a reflexão crítica sobre a realidade,

visando a novas perspectivas de futuro e de reinserção social, em meio a um

momento doloroso diante dos reflexos psicológicos, estéticos e sociais advindos da

mutilação corporal causada pelo arrancamento brusco do couro cabeludo.

No Espaço Acolher, as mulheres vítimas de escalpelamento e seus

familiares convivem com a ansiedade de retornar à sua terra, seu município para a

retomada do seu convívio familiar e comunitário. Grande parte dessas mulheres,

devido ao acidente e à necessidade de tratamento de saúde, é repentinamente

afastada do convívio com seus filhos, causando impactos emocionais muito

dolorosos para a paciente e para os seus familiares, como expressa uma

educanda11:

O meu cabelo era ASSIM como o cabelo desta mulher. Eu queria TANTO que o meu cabelo VOLTASSE como era ANTES (Meri, 2007).

11 Textos produzidos pelas educandas no encontro educativo do dia 7 de novembro de 2007.

Page 46: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

45

2.1 SUJEITOS DA PESQUISA

Diante deste contexto vivenciado no Espaço Acolher, é que direcionamos

este estudo a uma (01) das mulheres vítimas de escalpelamento, educanda do NEP,

e a duas (02) educadoras do NEP que desenvolvem suas ações educativas no

Espaço Acolher.

Os critérios de escolha da educanda-paciente foram: (a) ser vítima de

escalpelamento; (b) participar da experiência educativa promovida pelo NEP no

Espaço Acolher por pelo menos seis meses; (c) apresentar frequência nos encontros

educativos, em decorrência da grande rotatividade que caracteriza as comunidades

hospitalares; (d) estar na faixa etária entre (de 18 a 60 anos); (e) gênero ( feminino),

(f) naturalidade (ser natural do Estado do Pará); (g) que apresentasse condições

físicas e psicológicas para participar deste estudo e que aceitasse participar do

mesmo.

Em relação às educadoras, os critérios adotados foram: (a) gênero

(masculino; feminino); (b) serem integrantes do Núcleo de Educação Popular Paulo

Freire, com atuação de no mínimo um ano como educadora de jovens, adultos e

idosos no ambiente hospitalar de realização da pesquisa.

Para a escolha dos sujeitos da pesquisa, buscamos primeiramente

estabelecer uma relação de proximidade com os mesmos no cotidiano do Espaço

Acolher e no contexto da prática educativa desenvolvida pelo NEP, mediante

observações dos encontros educativos, considerando aspectos, como: interações

entre educandos e educadores nas práticas educativas; comunicação (formas

verbais, expressões, afetividade, agressividade, etc.); formas de participação dos

educandos-pacientes. Além de observação das práticas sociais cotidianas,

considerando aspectos, como: o dia-a-dia no Espaço Acolher; relações interpessoais

entre os que se encontram em tratamento de saúde; seus familiares e equipe

técnica do hospital; as ocupações das pessoas em tratamento de saúde e seus

familiares.

Inicialmente, foi feita a apresentação e esclarecimentos sobre os objetivos

da pesquisa à assistente social do Espaço Acolher e às educadoras do NEP, para

então começarmos as observações iniciais que se apresentavam como necessárias

para a escolha dos sujeitos da pesquisa.

Page 47: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

46

No decorrer das observações, foram sendo estabelecidos diálogos com a

comunidade hospitalar (pessoas em tratamento de saúde e seus familiares,

educadores do NEP e corpo técnico), tendo em vista o cotidiano de vida constituído

diante do contexto de tratamento de saúde.

A partir das aproximações com o contexto educativo desenvolvido pelas

educadoras do NEP no Espaço Acolher e dos critérios de escolha adotados, foram

indicadas duas educadoras para participar da pesquisa.

As educadoras são graduandas do curso de Licenciatura em Pedagogia

da Universidade do Estado do Pará, integrantes do Núcleo de Educação Popular

Paulo Freire há dois anos, com atuação em estudos e práticas educativas com a

comunidade hospitalar do Espaço Acolher. Com as mesmas, após aceitarem

participar da pesquisa, realizamos entrevistas com a utilização de roteiro

semiestruturado com o objetivo de verificarmos as contribuições do trabalho

educacional do NEP para a superação da identidade negada da educanda-paciente

vitimada de escalpelamento.

As entrevistas com as educadoras foram realizadas no Núcleo de

Educação Popular Paulo Freire, as quais se estabeleceram em diálogos e relatos

sobre a prática educativa vivenciada no ambiente hospitalar, tendo como referência

aspectos, como: experiência educativa; proposta teórico-metodológica do Núcleo;

contribuições do trabalho educacional do NEP para a superação da identidade

negada da educanda-paciente vítimada de escalpelamento; e caracterização do

Espaço Acolher da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará.

Com a educanda- paciente12 foi utilizada a técnica da história de vida,

pois a mesma favorece uma visão processual das fases da sua vida, tendo como

alicerces a fidelidade das experiências e interpretações de cada ator sobre suas

vivências.

Segundo Haguette (1987), dentro da abordagem metodológica biográfica,

situa-se a técnica história de vida que pode ser utilizada como procedimento de

produção de dados e tem como principal característica uma relação de proximidade

entre pesquisador e pesquisado.

Josso (1988, p.40), ao situar o método biográfico no contexto educativo,

denomina-o como biografia educativa entendida como uma “um narrativa centrada

12 Neste estudo, a educanda-paciente foi denominada pelo nome fictício Rosa e as educadoras foram denominadas Carmem e Carina.

Page 48: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

47

na formação e nas aprendizagens de seu autor (...) o interesse da biografia

educativa está menos na narrativa propriamente dita do que na reflexão que permite

a sua construção”.

Neste estudo, pela história de vida da educanda-paciente, buscamos

detectar as identidades construídas a partir das representações de si que a mesma

expressa no contexto de sua infância, perpassando pela adolescência e fase adulta

na família, no contexto do acidente, vivência no hospital e no trabalho educacional

do NEP no Espaço Acolher.

É por meio da história de vida de cada sujeito, mediante suas relações e

experiências desenvolvidas nos diversos grupos sociais de que participa, que se

configuram os processos de afirmação social, de construção e desconstrução de

conceitos, de visões de mundo que vão se constituindo a cada fase da vida e

dimensionando-se na construção de identidades.

Para Haguette (1987, p. 82), é fundamental que questões subjetivas

humanas sejam levantadas do ponto de vista do sujeito em questão, para que

“assim, conheçamos suas táticas, suas suposições, seu mundo e os

constrangimentos e as pressões aos quais estão sujeitos”.

Considera Marre (1991, p. 107) que:

Histórias de vida têm relação fundamental com a epistemologia que valoriza a história oral e popular, a experiência social vivida e, igualmente, com uma metodologia pluridisciplinar, em desenvolvimento, através da qual se podem captar novos problemas.

Não se trata da busca da mera reconstrução do passado de sujeitos por

meio de relatos individuais, mas a aproximação do contexto real da vida mediante as

relações de continuidade-descontinuidade, historicidade, conflitos internos e

externos, fatores de imprevisibilidade que constituem a construção de identidades.

A técnica da história de vida busca captar, por meio de uma série de

entrevistas, os elementos significativos do cotidiano da vida dos sujeitos da

pesquisa, visando a uma maior aproximação dos contextos e acontecimentos que

influenciam nas formas de pensar, agir e ser no mundo. “Ela tenta obter dados

relativos à “experiência intima” de alguém que tenha significado importante para o

conhecimento do objeto de estudo” (LAKATOS, 2007, p.135).

Para a produção de dados em torno da construção de identidade da

educanda mediante a trajetória de vida, de acordo com a técnica história de vida, por

Page 49: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

48

se tratar “de uma narrativa em torno de determinados fatos ou fenômenos, nos quais

se evidenciam valores e padrões culturais” (LAKATOS, 2007, p.136), foram

realizadas entrevistas não estruturadas, nas quais, a entrevistada teve liberdade

para desenvolver cada situação em qualquer direção que considerasse adequada.

“É uma forma de poder explorar mais amplamente uma questão”. (LAKATOS, 2007,

p.94).

Nessa perspectiva, na entrevista, foi utilizado um roteiro de tópicos

relacionados ao problema de estudo, no qual, a entrevistadora pôde fazer as

perguntas que quisesse, “sondar razões e motivos, dar esclarecimentos, não

obedecendo, a rigor, a uma estrutura formal” (LAKATOS, 2007, p.94). Buscamos,

ainda, desenvolver dinâmicas pedagógicas que possibilitassem a expressão das

representações de si atribuídas em momentos específicos na trajetória de vida da

educanda-paciente, por meio de falas, expressões corporais e desenhos.

Assim, na produção de dados por meio da técnica história de vida, o

sujeito da pesquisa apresenta-se como narrador da sua própria história. Cabe ao

pesquisador o desafio de mediar as narrativas, de estabelecer uma relação de

confiança e motivar as falas significativas para o conhecimento da trajetória de vida

do sujeito, em cada fase marcada por acontecimentos, experiências, relações

sociais e subjetividades que participam da constituição de vários eus, de

identidades. De modo que se busca a revelação das identidades construídas ao

longo da vida até o momento atual.

Essa proposta metodológica apresenta-se sob a ótica da compreensão

dos processos de formação do sujeito a partir da identificação das transformações

do mesmo ao longo de sua vida. Segundo Josso (2007, p.110), tal proposta

pressupõe que na pesquisa haja o favorecimento de reflexões dos sujeitos sobre os

momentos significativos da sua vida, que possibilitem o autoconhecimento como

processo de reconhecimento de si, do outro e do mundo que transforma.

Abordar o conhecimento de si mesmo pelo viés das transformações do sujeito no tempo de uma vida, pelas atividades, encontros, acontecimentos, situações formadoras e momentos de articulação das pessoas cuja referencia é fonte de inspiração etc, é conceber a construção da identidade, a formação de si mesmo como uma trajetória feita ao colocar em tensão heranças sucessivas e novas construções, do posicionamento em relação dialética da aquisição de conhecimentos, de saber-fazer, de estratégias, de valores, de comportamentos e a busca ou pesquisa de novos conhecimentos, novas competências, novo saber-fazer, novos comportamentos, novos valores.

Page 50: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

49

A partir da aproximação com as práticas sociais cotidianas estabelecidas

neste ambiente por meio de observações e dos diálogos constituídos com

educandos- pacientes, seus familiares, educadores do NEP e assistência social,

percebemos que a educanda-paciente Rosa atendia aos critérios de escolha dos

sujeitos da pesquisa, então a convidamos a participar da pesquisa, fazendo os

esclarecimentos dos seus objetivos. Após a assinatura do termo de consentimento

livre e esclarecido (TCLE) 13, demos início às entrevistas, nas quais, Rosa foi

narrando a história da sua vida.

Na reconstituição da sua trajetória de vida, a sistematização das

informações foi feita de maneira que pudéssemos visualizar de forma global a

trajetória de vida que nos foi revelada. Buscamos a ordenação da vida da Rosa no

tempo, com o intuito de visualizarmos melhor a trajetória relatada e percebermos se

a entrevistada deixou de contemplar alguma fase da sua vida.

Assim foram feitas novas entrevistas para que fossem explorados pontos

não mencionados e esclarecidos acontecimentos que ficaram obscuros nas

primeiras entrevistas.

Tendo em vista os seus relatos, destacamos os momentos da narrativa

em que Rosa se refere a si mesma, objetivando captar os eus apresentados,

relacionando esses eus expressos com as suas atividades no mundo, evidenciando

as diferentes concepções que a mesma constrói sobre si e sobre o outro, sobre as

pessoas com quem estabelece contato, tendo como referência as categorias de

análise apontadas neste estudo.

Para estabelecermos uma relação próxima com os sujeitos da pesquisa

realizamos a observação participante. Trata-se de uma técnica de produção de

dados que tem como elemento norteador o diálogo mediante a construção de uma

relação de confiança entre os sujeitos da pesquisa, capaz de fornecer não somente

as informações necessárias ao atendimento da questão-problema pesquisada, mas

de favorecer o estabelecimento de uma relação humana pautada em pressupostos

éticos.

A observação participante é uma “tentativa de colocar o observador e o observado do mesmo lado, tornando-se o observador um membro do grupo

13 O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, cf. no apêndice D nesta dissertação.

Page 51: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

50

de molde a vivenciar o que eles vivenciam e trabalhar dentro do sistema de referência deles” (MANN,1970 apud LAKATOS, 2007, p.91).

Desse modo, a observação participante favoreceu uma maior

compreensão da dinâmica das relações e práticas sociais em suas especificidades

no ambiente hospitalar e das interações entre educandos e educadores nas práticas

educativas.

A interação entre pesquisador e os sujeitos da pesquisa, em uma

perspectiva dinâmica de construção científica, favorece o conhecimento que se

contrapõe à prática da pesquisa como um sistema fechado à confirmação ou não de

hipóteses sobre realidades e fenômenos pré-determinados.

Para Santos (1997, p.28), a investigação deve ser compreendida na

multiplicidade de apreensão e análise dos fatos: “em vez de eternidade, a história;

em vez do determinismo, a impossibilidade; em vez do mecanicismo, a

espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, e irreversibilidade

e a evolução”.

Para o atendimento dos objetivos da pesquisa, realizamos um

levantamento documental por meio dos relatórios diários dos educadores do NEP,

que contém registros das atividades desenvolvidas nos espaços hospitalares, bem

como das produções dos educandos que ofereceram dados que contribuíram para a

análise das identidades construídas na experiência educativa.

Realizamos, também, o levantamento bibliográfico de autores que

abordam temas, entre os quais, cultura, identidade, educação popular e saúde, na

perspectiva da educação popular, na construção de uma educação humanizadora,

comprometida com as classes populares num fazer pedagógico e político a favor da

ética humana.

Para sistematização e análise dos dados, utilizamos técnicas da análise

de conteúdo, em que “o conteúdo das comunicações é analisado por meio de

categorias sistemáticas previamente determinadas [...] É uma técnica que visa os

produtos da ação humana, estando voltada para os estudos das ideias e não das

palavras em si” (LAKATOS, 2007, p 129). Essa técnica permite também analisar o

conteúdo de documentos pessoais e de discursos.

Assim, a sistematização e análise dos dados se estruturaram com a

elaboração de categorias e subcategorias temáticas conforme o quadro a seguir:

Page 52: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

51

Categorias temáticas Subcategorias temáticas

• Experiências e aprendizagens: história de vida familiar narrada e recriada pela “Rosa” que é o “Preto”.

• Quando Rosa se tornou “Preto”: infância, da liberdade à “prisão”. • Da revolta: o Preto moleca se torna mãe mulher. • O acidente: sofrimento e luta pela saúde.

• Educanda-paciente: representações de si no contexto educativo do NEP no Espaço Acolher.

• Ambiente hospitalar: expressões de um cotidiano voltado para a complexidade saúde-doença. • A Práxis do NEP no Espaço Acolher: expressões do cotidiano educacional. • Vida em processo: expressões das representações de si no contexto educativo de uma alfabetizanda do NEP. • Educação como prática para a alteridade: busca de superação das identidades negadas.

Quadro – Categorias e subcategorias temáticas.

E com a construção das categorias analíticas apontadas pela revisão

bibliográfica: consciência14, atividade15, identidade16, identidade pressuposta17,

identidade metamorfose18, representação de si19, Ciampa (1998), Josso

(2007/1998), Hall (2002); cultura20 e educação popular21, Brandão (2002), Laraia

(2002), Freire (2004/1987) e Gazzinelli (2006), dentre outros autores que contribuem

com o debate sobre as práticas educativas de resistência às condições de

desumanização do sujeito, bem como sobre as relações identidade, diferença e

cultura, como dimensões que se articulam em seus processos de formação.

2.2 CUIDADOS ÉTICOS DA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS

Inicialmente, para podermos adentrar no lócus da pesquisa, este projeto

foi submetido à aprovação do Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos da

14 Cf. p. 56 15 Cf. p.56 16 Cf. p.22e 56 17 Cf. p.22 18 Cf. p.22 19 Cf. p.21 e 99 20 Cf. p.78 e 84 21 Cf. p.15

Page 53: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

52

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará22 e após o aval dessa instituição,

iniciamos o trabalho de observação da dinâmica cotidiana do Espaço Acolher, tendo

em vista as relações interpessoais estabelecidas nesse espaço e as práticas

educativas desenvolvidas pelo NEP.

Este estudo, portanto, pautou-se nas Diretrizes e Normas

Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, contidas na

Legislação (Lei 8974/95 - Resolução 196/96) aprovada pelo Conselho Nacional de

Saúde – CNS

As Diretrizes e Normas estão fundamentadas nos principais documentos

internacionais que foram formulados mediante a mobilização coletiva rumo ao

comprometimento ético de respeito ao ser humano e à vida estabelecendo deveres

aos pesquisadores. As normas de eticidade diante da prática da pesquisa com seres

humanos, ao longo do desenvolvimento científico, tornam-se elementos

fundamentais de valorização e proteção do ser humano mediante os exemplos

históricos de abusos entre as relações de poder que se estabelecem no processo da

pesquisa.

Por meio de reflexões coletivas que ganharam extensões mundiais de

avaliação dos impactos da pesquisa para a vida no planeta, foram elaborados os

preceitos da declaração de Helsinque (1964) e do Código de Nuremberg (1947),

dentre os seus princípios básicos se enquadram as responsabilidades ético-políticas

dos pesquisadores no desenvolvimento das pesquisas. Esses preceitos éticos

trazem para o cenário da ação investigativa a perspectiva de democratização das

relações entre os participantes da pesquisa, sendo ambos, pesquisadores e

pesquisados, coautores do conhecimento que está sendo produzido neste processo.

No centro do debate em torno dos cuidados éticos da pesquisa, está o

consentimento livre e esclarecido o qual indica

O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua anuência à participação na pesquisa. (Resolução CNS 196/96)

Para tanto, questões, como liberdade, criticidade, autonomia e

responsabilidade social, emergem como fundamentos da prática da pesquisa

22 Carta de autorização desta pesquisa pelo comitê de ética em pesquisa da FSCMPA, ver anexo A nesta dissertação.

Page 54: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

53

científica com seres humanos mediante critérios, como relevância, geração do

conhecimento, exeqüibilidade, que devem estar alicerçados na defesa da vida.

Dentre os princípios básicos, apontamos os Aspectos Éticos da Pesquisa

Envolvendo Seres Humanos:

j) ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena. Indivíduos ou grupos vulneráveis não devem ser sujeitos de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida através de sujeitos com plena autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios diretos aos vulneráveis. Nestes casos, o direito dos indivíduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado, desde que seja garantida a proteção à sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida; l) respeitar sempre os valores culturais, sociais, morais, religiosos e éticos, bem como os hábitos e costumes quando as pesquisas envolverem comunidades; m) garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após sua conclusão (Resolução CNS 196/96).

Esses documentos possuem grande relevância social, apresentando

fortes influências na formulação da legislação de cada país. No Brasil, a resolução

de 10 de outubro de 1996 (196/96) prevê ao pesquisador os seguintes

encaminhamentos: elaboração do protocolo de pesquisa (descrição), consentimento

livre e esclarecido (autorização) dos sujeitos da pesquisa e a submissão do projeto

de pesquisa aos Comitês de Ëtica em Pesquisa (parecer).

As Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo

Seres Humanos norteiam a apreciação dos projetos de pesquisa pelo Comitê de

Ética em Pesquisa – CEP e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa-CONEP

que prevê:

sob a ótica do indivíduo e das coletividades os quatro referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado (Resolução CNS 196/96).

Neste contexto, o estudo aqui desenvolvido visou ao diálogo entre os

sujeitos da pesquisa, fundamentando-se em pressupostos éticos, os quais

possibilitaram o esclarecimento dos objetivos da pesquisa e a liberdade de

participação da mesma salvaguardando os direitos e interesses dos sujeitos

pesquisados. Essa interação pressupõe autonomia dos envolvidos na determinação

dos caminhos da pesquisa na comunidade hospitalar, em que foram efetivados

procedimentos de produção de dados necessários ao atendimento dos objetivos da

pesquisa.

Page 55: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

54

3 SUJEITO, IDENTIDADE E CULTURA: UM PERCURSO HISTÓRICO ENTRE AS

RACIONALIDADES CLÁSSICA, MODERNA E A CONTEMPORÂNEA

Esta seção destaca os fundamentos conceituais que influenciaram

concepções de ser humano, identidade e cultura, em momentos históricos distintos.

Partimos de elementos epistemológicos histórico-culturais que constituíram a

racionalidade clássica, moderna e contemporânea, com o objetivo de favorecer

reflexões sobre os caminhos históricos das identidades humanas como processo

fundamental de compreensão do sujeito na contemporaneidade.

Para tanto, tomamos como referência as três categorias fundamentais no

estudo das identidades, apresentadas pela psicologia social: atividade, consciência

e identidade. A atividade entendida como ação humana no mundo e com o mundo,

constituída e situada historicamente, e, como tal, demarcada por fatores culturais e

por formas de produção e aquisição do conhecimento. Trata-se da dialogicidade

entre a ação e o aprendizado do sujeito histórico.

A categoria consciência para a psicologia social não se detém ao estudo

do entendimento do comportamento humano mediante os fatores psíquicos do

funcionamento cerebral ou subjetivo. Para a psicologia social, a consciência possui

uma dimensão existencial a partir do processo humano reflexivo de reconhecimento

de si, do outro e do mundo. A identidade, então, se constitui nas interrelações entre

a atividade e a consciência de cada ser humano, inseridas em contextos

socioculturais.

Para o entendimento das mudanças conceituais de sujeito e de identidade

ao longo da história, faz-se necessária a reflexão sobre as dimensões políticas e

culturais que marcaram as racionalidades clássica e moderna, bem como sobre os

fatores que desestruturaram as bases teóricas que sustentavam o paradigma

moderno e os reflexos desse movimento para a formação da racionalidade

contemporânea.

Assim, refletimos sobre alguns motivos que direta ou indiretamente

influenciaram as mudanças conceituais de sujeito e de identidade ao longo do

tempo. Para tanto, partimos dos pressupostos filosóficos que conduziram o

pensamento e a concepção de sujeito racional na racionalidade clássica, soberano e

individual da racionalidade moderna, para apontar os fatores conceituais e

Page 56: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

55

contextuais que vêm se concretizando na contemporaneidade, na concepção de

sujeito e identidade como processo inacabado.

3.1 CONCEPÇÃO DE SUJEITO, IDENTIDADE E CULTURA DA RACIONALIDADE

CLÁSSICA: O SER RACIONAL

O sujeito da racionalidade clássica, segundo Spinelli (1990), era aquele

que buscava libertar-se das ilusões, por meio de um processo contínuo e solitário,

no sentido da individualidade de aquisição da sabedoria, proveniente de um

exercício contemplativo do mundo na busca da razão de ser das coisas.

A sabedoria estava ligada à razão como meio de superar a “fraqueza dos

nossos sentidos” para encontrar a verdade. De modo que os conhecimentos

adquiridos pelos sentidos eram duvidosos, servindo apenas como via de acesso

para o conhecimento racional, cabendo à filosofia libertar a alma das paixões.

Para a filosofia grega, a sabedoria era algo desenvolvido por meio da

educação e do exercício do pensar, em que se fazia necessária a pesquisa ou

investigação. A função da filosofia era ativar o desejo humano natural de adquirir

conhecimento, por meio da produção de ciência para “desvelar o conhecimento e

responder as questões postas por esta mesma inteligência, no confronto do próprio

ser do homem no mundo” (SPINELLI, 1990, p.35).

No mundo grego, para esse autor, à sabedoria, compreendida como “arte

de fazer” e “arte de viver”, é acrescentada a “arte de raciocinar”, como habilidade de

que se apropriava o filósofo. A sabedoria apresenta-se como capacidade de

apropriar-se da “compreensão da totalidade”. Para Sócrates, a sabedoria é

primeiramente a atitude ou a consciência de nada saber mediante todo o saber,

porém o conhecimento para ele não é algo inatingível.

A pesquisa intelectual desinteressada representava uma forma de busca

da sabedoria, compreendida como um esforço para se libertar de um corpo que era

passível às ilusões. Essa libertação era possível, segundo Platão, por meio da

“catarse”, ou purificação de tudo o que era corpóreo.

Dessa forma, a filosofia, ao surgir a partir da crítica aos mitos e aos

dogmas vigentes, também critica a própria história da filosofia. A crítica às

explicações míticas estão na base da ciência moderna, apresentada por uma

tradição racionalista explicativa. A filosofia grega é ligada à produção de saber por

Page 57: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

56

meio da investigação racional que não se limita a um único campo, “filosofia, pois, é

um termo a abarcar todas as tendências e direções da curiosidade (pathos) grega de

conhecer tudo de todas as coisas” (SPINELLI, 1990, p.58).

Assim, as bases da compreensão de sujeito da racionalidade clássica

estão presentes nas concepções filosóficas que emergiram no mundo grego. A

chamada filosofia ocidental ao longo de sua produção ampliou seu território de

influência sobre o mundo, estando presente nos vários campos do saber, nas formas

de organização e estruturação política e social das sociedades.

A organização social, política e cultural possibilitou o desenvolvimento de

teorias, métodos e concepções de mundo por meio da filosofia, que influenciaram e

ainda influenciam, não apenas a ciência, mas o próprio ideário e comportamento

social na contemporaneidade. A cidade de Atenas se destacou mediante o

desenvolvimento da democracia e da filosofia clássica, influenciando o

conhecimento científico ocidental, a política e a educação:

Todo o desenvolvimento de Atenas e a crise vivida pela cidade transformaram-na na cidade grega mais importante do período. Sua importância militar, econômica e política refletiu-se em sua vida cultural e intelectual, e Atenas transformou-se em importante centro de debates e de efervescência política e cultural. À cidade ocorriam os homens interessados nas artes e na filosofia e aí permaneciam os atenienses que se preocupavam com artes questões. Como resultado, a cidade conheceu, nesse período um surpreendente desenvolvimento das artes, da ciência e filosofia (ANDERY, 1996, p.59).

Existe a tendência de compreendermos ciência e filosofia como

elementos distintos um do outro, porém, em sua origem, a ciência era uma atividade

própria do filósofo. O desejo filosófico grego de compreender tudo acerca de todas

as coisas atingiu um estágio, no qual está aberto a novos pensares, sendo, portanto,

inconcluso.Um elemento que configura a atualidade é o deslocamento do saber

isolado ao coletivo, mas, sempre envolvendo a aplicação da inteligência:

O saber transformou-se historicamente numa obra coletiva, deixando o solitário pesquisador na douta ignorância além dos limites da “sabedoria” de sua especialidade. Como obra coletiva o saber avança hoje coletivamente, em amplitude e profundidade, mas sempre dependente de um esforço pessoal, isolado ou em grupo, de aplicação da inteligência a determinados problemas, ou áreas, do inacabável enciclopedismo do saber (ANDERY, 1996, p.60).

Page 58: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

57

A filosofia grega, assim, ao inaugurar caminhos investigativos para a

compreensão da realidade, da busca da verdade por meio do pensamento racional,

influenciou o pensamento ocidental, de acordo com os interesses e condições

sociohistóricas de cada época.

O sujeito da racionalidade clássica era um ser que buscava libertar-se das

ilusões por meio do uso da razão, portanto, era ser racional. Platão (1976) fazia uma

distinção entre dois mundos, o das ideias e o das coisas sensíveis, e dois tipos de

conhecimentos possíveis correspondentes a cada mundo. Referente ao mundo

sensível havia a opinião (os objetos e suas imagens), e a filosofia correspondia ao

mundo das ideias, esse como real objeto do conhecimento.

Em sua obra “A República”, ao tratar sobre esses dois mundos, Platão

(1976) estabelece pelo mito da caverna uma analogia entre o sol e a ideia do bem,

para mostrar que o verdadeiro conhecimento ao mesmo tempo em que iluminava o

homem era também iluminador, na medida em que o conhecimento dava

transparência à realidade. Para tanto, fazia-se necessário galgar etapas que

iniciavam no mundo sensível e terminavam quando se atingia o mundo das ideias. O

filosofo então era aquele que conseguia conquistar essas etapas transitando do

mundo sensível ao inteligível, pois conhecia por meio da contemplação do real.

Para Platão (1976), a organização social era baseada em uma hierarquia

de acordo com a natureza que era dominante em cada alma, assim temos: caráter

de bronze, dominado por desejos sensíveis; caráter de prata, dominado pelo ímpeto;

e caráter de ouro, dominado pelo pensamento especulativo. Dessa forma, cabia a

cada sujeito o seu lugar social segundo as suas aptidões naturais. Assim, a

sociedade deveria se manter inata, sem traumas e sem grandes mudanças.

Na racionalidade clássica, o sujeito nasce pré-determinado a uma

ocupação social, sua identidade é estabelecida por meio de padrões de

capacidades. Esse sujeito determinado não possui perspectiva de mudança de vida,

nasce com o seu lugar estabelecido no mundo do trabalho, na família, na sociedade.

É sujeito atemporal, de ação no mundo delimitada por regras

estabelecidas socialmente sobre as formas de estar no mundo. Esse olhar

contemplativo não era passível de mudanças, então, o sujeito da antiguidade

clássica era compreendido como determinado pela razão, nascia com a sua

identidade imutável, a qual determinava a sua ocupação política e social. De tal

forma que o sujeito da racionalidade clássica possuía virtudes imutáveis e

Page 59: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

58

universais, e o conhecimento era autoconhecimento, já que o mesmo estava

presente na alma humana.

Essa concepção de sujeito racional e de identidade fixa e pré-

determinada está diretamente ligada à concepção de sociedade imutável daquele

período, já que a mesma, para o mundo grego, através da constituição da pólis e da

democracia, havia encontrado o modelo ideal de civilização.

Diante de tais fatores, podemos notar que, na racionalidade clássica,

cada sujeito teria que assumir uma identidade pressuposta, a qual operava sobre a

ideia de estagnação por meio da re-posição. “Assim, a identidade que se constitui no

produto de um permanente processo de identificação aparece como um dado, e não

como um dar-se constante, que expressa o movimento do social” (CIAMPA, 1998,

p.171).

Isso ocorre devido ao processo de regulação social das formas de agir e

pensar humanas, que, ao envolverem relações desiguais de poder, buscam a

manutenção das estruturas políticas e sociais vigentes. Em meio a tensões de força,

cada indivíduo é representante de si desempenhando papéis (decorrentes de suas

posições). Com isso, são ocultas outras partes de seus eus, não contidas na sua

identidade pressuposta e re-posta; caso contrário, não é o representante de si

(CIAMPA, 1998).

Desse modo, o individual e o coletivo são elementos indissociáveis na

construção da identidade. O ser humano percorre um caminho, uma história de vida

que é sua enquanto indivíduo, mas que está em relação dialética com os fatores

socioculturais.

A identidade é a consciência de posse do eu, um eu entre eus. No

contexto das relações com o outro, ao nos diferenciarmos enquanto seres únicos

atuamos naquilo que somos e no que não somos. A cada momento, em cada

situação de relação com o outro, expressamos um papel, um eu, e ocultamos outros

eus.

Segundo Ciampa (1998), a identidade é formada por vários personagens

que atuam de acordo com as condições de um dado contexto que um mundo físico e

social apresenta. No mundo da racionalidade clássica, em que as estruturas sociais

eram determinadas, eram vistas como imutáveis, seus sujeitos assumiam papéis e

identidades impostas pelos padrões sociais pré - estabelecidos.

Page 60: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

59

Ciampa (1998) indica que, para compreendermos o conceito de

identidade, é importante o entendimento do seu caráter duplo de ocultação e

revelação. A cada momento de nossa vida, desempenhamos papéis e, por meio de

nossas ações, pensamentos e emoções, revelamos parte de nossa totalidade,

ficando ocultos alguns aspectos da nossa identidade que, muitas vezes, não são

revelados por conta das determinações sociais sobre as formas de ser e estar no

mundo, que reduzem os espaços de expressão dos diversos eus que fazem parte da

totalidade humana, que é indivisível.

De forma que a identidade é o que define quem é uma pessoa ou como

ela está sendo em um determinado momento, como ela se relaciona com o outro,

com o mundo e consigo mesma, assim como a sua atividade no mundo.

Status e papel social são categorias de análise utilizadas pela

Antropologia Social que nos ajudam a entender a identidade. No contexto das

relações socioculturais, são estabelecidos padrões e regras que representam as

formas de estar no mundo. Em meio a relações assimétricas de poder, são

estabelecidas hierarquias mediante fatores, como gênero, raça, classe social, que

estabelecem a colocação (status) de cada sujeito em um grupo social ou instituição,

bem como o papel que cada pessoa deve exercer. De forma que tratar de identidade

é:

compreender a estrutura e o processo das diferentes trocas de bens materiais, de serviços e de símbolos entre diversas categorias de sujeitos e o modo como acontecem aí ações e reações de nomes, de títulos de determinações de semelhanças e diferenças que, afinal, tanto se manifestam na maneira como as pessoas vivem os códigos de seus contatos umas com as outras, quanto na forma pela qual representam o seu relacionamento e o reconhecimento de quem são ,a partir deles. A partir do que eles simbolicamente determinam (BRANDÃO, 1984, p.38).

A partir do conceito de status e papel, é possível entender o caminho dos

determinantes na construção das identidades de cada sujeito social. Desde a

infância, estamos ligados a instituições, em um mundo familiar, religioso,

comunitário, em um mundo físico e social, permeado pelas relações de trabalho e

pelas relações simbólicas, ou seja, nascemos e entramos em contato com um

mundo cultural, um mundo de aprendizagens. O sentimento de pertencimento a um

grupo social e a uma comunidade com seus padrões e valores pré-estabelecidos é

um dos principais determinantes para a construção da identidade.

Page 61: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

60

Brandão (1984) nos ajuda a compreender como as identidades são

estabelecidas:

A experiência de vida de cada um de nós confirma uma conclusão a que os estudiosos sobre o assunto acabam quase sempre chegando: não é fácil separar a dimensão individual da construção e do exercício cotidiano da identidade e de sua dimensão social. Na verdade de suas várias dimensões sociais e socialmente simbólicas. Um menino caboclo das matas do Norte aprende a ser “si mesmo”, uma pessoa um outro Pedro, Pedro Garcia, misturando os sentimentos e a consciência que brotam de suas trocas afetivas com os seus pais e irmãos, com o emaranhado que o faz aprender a crescer reconhecendo-se também: “caboclo” “filho de bugre”, “pobre” e “analfabeto”. Porque ele existe no interior de um mundo que tanto predetermina desde que posições ele pode ser e relacionar-se, como estabelece os nomes das identidades de uma pessoa mestiça (porque resultado de um casamento entre uma índia e um branco em uma área de contato interétnico), pobre (porque privado de bens e obrigado a trabalhar sob a dependência do poder de outros) e analfabeto (porque vive fora de um contexto em que mestiços pobres podem ter acesso aos centros formais de ensino) (BRANDÃO, 1984, p.39).

Assim, o processo de identificação faz parte da condição humana, pois

reconheemos o outro e o mundo para nos reconhecermos, nos situarmos dentro de

um contexto coletivo com a nossa própria história de vida. Daí porque Ciampa

(1998) no traz a compreensão de que a identidade é aprendizagem e é vida. Para o

autor, construímos novas identidades, fazendo rupturas sobre o que o outro impôs,

sobre uma identidade pressuposta.

A relação de status e papel, apesar de ter determinações sobre a

identidade de cada indivíduo, não é um dado que finda em si mesmo, o que somos e

o que seremos são dimensões da condição humana de estarmos vivo. Para Ciampa

(1998), se identidade é vida, a mesma acaba quando perdemos a perspectiva de

futuro. Identidade é identificação, é processo.

Nesse contexto, a racionalidade clássica, ao estabelecer regras de

comportamento, de colocação e ocupação social, faz a categorização dos sujeitos

dentro de uma concepção determinista de cultura, na qual a diversidade de

comportamento é explicada sob a perspectiva somatológica (relação com a

anatomia e fisiologia do corpo humano) ou mesológica (relação entres os seres

vivos e o meio ambiente), apresentando-se como uma explicação reducionista sob a

ótica dos determinismos biológicos e ambientais.

Page 62: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

61

Identidade e cultura enquanto fenômenos sociais articulam o individual e

o coletivo como elementos importantes para o entendimento do ser humano na

dinâmica de construção de sua história de vida.

Segundo o determinismo biológico, os sistemas de hierarquias entre os

sujeitos são estabelecidos por meio das diferenças raciais, por fatores genéticos

hereditários distintos sob os quais são atribuídas de forma inata as condições de

capacidade, inteligência e comportamento de cada povo. Essa concepção ao longo

da história justificou a valorização de uma cultura como referência em detrimento de

outra e com isso atos de perseguição, segregação e extermínio de povos

considerados “bárbaros, inferiores, selvagens”.

Muita gente ainda acredita que os nórdicos são mais inteligentes do que os negros; que os alemães têm mais habilidade para a mecânica; que os judeus são avarentos e negociantes; que os norte-americanos são empreendedores e interesseiros; que os portugueses são trabalhadores e pouco inteligentes; que os japoneses são trabalhadores, traiçoeiros e cruéis, que os ciganos são nômades por instinto, e, finalmente que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses (LARAIA, 2002, p. 17).

Já o determinismo geográfico condiciona as diferenças entre os sujeitos e

a diversidade cultural, as diferenças de ambientes físicos, indicando que esses

determinam as formas de comportamento e relação com a natureza, para a

sobrevivência de um povo em um determinado espaço geográfico e que o ser

humano apenas atende de forma passiva às determinações da natureza. Porém,

essa explicação possui limites devido à possibilidade da existência da diversidade

cultural em um mesmo tipo de ambiente físico. Para Laraia (2002, p.24):

A posição da moderna antropologia é que a “cultura age seletivamente”, e não casualmente sobre o seu meio ambiente [...] As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores.

Assim, toda a produção constante da diversidade cultural está no que

diferencia o ser humano das outras espécies de animais, o fato de ser possuidor e

produtor de cultura.

Page 63: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

62

Diante das questões apontadas, notamos a influência da racionalidade

clássica sobre a concepção de ser humano de identidade fixa, dividido entre corpo

(território de passividade ao erro) e alma (representada pelo poder racional que

liberta das ilusões), que na modernidade toma força por meio do pensamento

filosófico do movimento Iluminista na sociedade capitalista.

3.2 CONCEPÇÕES DE SUJEITO, IDENTIDADE E CULTURA NA RACIONALIDADE

MODERNA: DO SER RACIONAL AO SER DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

A racionalidade moderna emerge no cenário histórico-político do século

XVI, marcado pela contestação das verdades teológicas, contestação da estrutura

econômica medieval, culminando com um ceticismo e a busca de um novo olhar

sobre o mundo, constituindo-se num período de resgate do conhecimento da

filosofia grega e oriental.

Nesse contexto, surgem como elementos que possibilitam o encontro de

certezas a fé, a experiência e a razão. É na busca de certezas indubitáveis que

vários pensadores estabeleceram as bases teórico-metodológicas que sustentaram

o paradigma da ciência moderna, aliado a uma concepção de sujeito.

Com a ciência moderna, nega-se o caráter sensível do mundo em que

vivemos, de modo que as diversas expressões subjetivas, enquanto essência do ser

humano, estiveram reprimidas ou recalcadas, identificadas com o irracional ou

passional, porém, sempre existentes e por diversas vezes evidentes, inclusive na

produção científica que se apresentava como neutra e objetiva.

Segundo Hall (2002), a queda do sistema feudal e a ruptura com seus

dogmas e tradições apresentam-se como um período envolvido pela dúvida e

ceticismo metafísico, sobre o qual o ser humano assume o papel central na relação

com a natureza e com o conhecimento. O autor aponta alguns movimentos que

influenciaram a formação da concepção de sujeito individual, singular e distinto,

dotado de poderes e de capacidades e que se configurou no período da

modernidade.

a Reforma e o Protestantismo, que libertaram a consciência individual das instituições religiosas da Igreja e a expuseram diretamente aos olhos de Deus; o Humanismo Renascentista , que colocou o homem no centro do

Page 64: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

63

universo ; as revoluções científicas , que conferiram ao homem as faculdades e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza ; e o Iluminismo, centrado na imagem do Homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância , e diante do qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e dominada (HALL, 2002, p.26).

Segundo Pereira (2007, p.183), nesse período, a filosofia moderna teve

seu início a partir da busca mais consciente do homem por sua liberdade e por sua

independência. Configura-se também como um período de desarticulação cultural,

em que houve uma separação dos povos e do “espírito do Ocidente e sua visão

global do mundo”, proveniente da formação e desenvolvimento de cada nação que

buscou desenvolver-se por si, visando à sua própria identidade mesmo que a partir

da concepção de civilidade vigente. Ainda segundo o autor, trata-se de um período

de divórcios:

Não só a razão teórica e pratica, a ciência e a fé, a religião e a metafísica,a política e a moral que se divorciam, ficando cada qual entregue a si mesma. Também os problemas, os métodos, as teorias surgem tão numerosos, que não é mais possível dominá-los por uma visão de conjunto (PEREIRA, 2007, p.183).

Tal período configura-se pela afirmação de um novo conceito de ciência e

com isso a “substituição do entendimento qualitativo – eidético do ser pelo

entendimento do mecânico-quantitativo” (PEREIRA, 2007, p.183), abrindo caminho

para uma concepção de mundo e ser humano mecanizados, na qual o pensamento

do filósofo Iluminista René Descarte inaugurou a subjetividade no pensamento

moderno na figura do “sujeito cartesiano”.

3.2.1 A Subjetividade no Pensamento Moderno

O sujeito moderno, racional, pensante e consciente é conhecido como

“sujeito cartesiano”, que concebe o mundo mecanizado, passivo de explicações

sobre seus fenômenos, mediante noções de extensão e movimento, presentes na

concepção de matéria e na distinção entre alma e corpo humano, esse identificado

como os demais corpos do universo, podendo ser explicado matematicamente.

Assim, na racionalidade moderna apresenta-se uma visão dualista de ser

humano, em que o eu pensante representa a determinação da consciência sobre o

corpo. Para Chauí (1990, p.80), na filosofia moderna, por meio da “consciência do

ato de ser consciente”, tem-se a primeira descoberta da subjetividade, com a

Page 65: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

64

afirmação da certeza do Cogito (razão) e da universalidade da consciência. Na

subjetividade cartesiana, não está presente a preocupação com as singularidades

humanas e o ser humano é situado fora de seu contexto material na medida em que

parte-se do uso da razão como determinação da realidade e das ações no mundo.

René Descartes trouxe a concepção de sujeito capaz de raciocinar e

pensar, que possui no centro essencial do eu uma identidade imutável. Descartes

acreditava na possibilidade de o ser humano conhecer e chegar a verdades por

meio da razão. Para tanto, utilizou-se da dúvida como estratégia metodológica:

Partindo da regra de que não se deve ter por certo nada que não seja claro e distinto, Descartes passa a duvidar da existência de todas as coisas, particularmente do que é proveniente dos sentidos. Essa dúvida só não pode atingir o próprio pensamento, cuja existência fica evidente pelo fato de a dúvida ocorrer. “Penso, logo existo”: Descartes chega aqui a conclusão de que é um ser pensante e, portanto, existe (ANDERY, 1996, p.202).

Apresenta ainda a sua concepção de liberdade, partindo do princípio de

que quando se duvida se está exercendo a liberdade, necessária para se atingir a

verdade. Descartes (1973), ao dar ênfase à razão, não indica a opção por um

conhecimento contemplativo, mas por um método único de busca da verdade que

possibilite o controle sobre o mundo, tendo como modelo de raciocínio a

matemática, pelas certezas e evidências que a mesma oferece.

A concepção de sujeito possuidor de uma identidade fixa e constituída de

forma autônoma por meio da essência racional, a mente, situada no centro do

conhecimento, é reforçada, também, pelo empirismo do filósofo John Locke em seu

“Ensaio sobre a Compreensão Humana”. “A identidade da pessoa alcança a exata

extensão em que sua consciência pode ir para trás, para qualquer ação ou

pensamento passado” (LOCKE, 1967 apud HALL, 2002, p.28). Nessa perspectiva,

os fatores políticos e sociais não interferem na apreensão do conhecimento e na

constituição da identidade de cada sujeito.

O conhecimento era constituído de ideias provenientes da experiência,

tanto interna (operações da mente), ideias de reflexão ou externas (objetos do

mundo exterior), ideias de sensação. Essas eram ideias que a mente passivamente

adquiria a partir de objetos externos a ela, o conhecimento se dava por meio da

transição das ideias simples as complexas.

Locke (1967) indicava que não se podia conhecer tudo que havia nos

Page 66: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

65

objetos, devido às limitações dos sentidos, portanto, se conheceria apenas aquilo

que os sentidos humanos (internos ou externos) conseguissem captar. As ideias de

reflexão eram classificadas como complexas, pelas quais se obteria o conhecimento

científico.

Aliada à preocupação com a produção do conhecimento estava a filosofia

política, que era baseada na concepção de sujeito como tendo características

naturais e universais a sua espécie, que tem como traço básico a liberdade, a

igualdade e a racionalidade. O indivíduo soberano, sujeito da modernidade, ao

mesmo tempo em que se afirmava como sujeito da razão, do conhecimento e da

prática, era também aquele que se submetia aos reflexos dessas práticas. No

cenário de composição do sistema capitalista, essa concepção de sujeito foi

amplamente aceita. Assim, Locke (1967) apresentou uma concepção filosófica que

atendeu aos interesses burgueses de sua época e caracterizou-se como um dos

mentores e divulgadores do liberalismo.

As estruturas de poder formadas na constituição do Estado, que se

caracterizava pela organização em um território próprio e um governo soberano e

centralizado, encontraram legitimidade para o exercício do poder do rei sobre seus

súditos na concepção filosófica de Locke (1967), Hobbes (1983) e Rousseau (1973)

conhecidos como “contratualistas”. 23

No centro argumentativo em prol da legitimação da formação do estado e

de um poder absoluto, estava a concepção de ser humano que não saberia lidar

com a própria liberdade. Em “O Leviatã”, Hobbes (1983) descreve o homem como

ser competitivo, egoísta, fadado a uma condição de guerra de todos contra todos.

Nesse momento, a concepção de liberdade era entendida como ausência de

impedimentos e somente a lei poderia “salvar” o homem das atitudes irracionais no

contexto das novas estruturas políticas e sociais da modernidade.

Rousseau (1973) trouxe à tona a compreensão de ser humano como

23 Para Hobbes (1983), os homens naturalmente livres, ao viverem em sociedade, renunciam a esta liberdade

para viver sob um contrato social, para a conservação da vida e da própria liberdade e por isso devem submeter-

se ao poder do rei. Locke (1967) defendia um pacto social baseado na ideia de consenso, no qual a

representação e participação popular limitam a soberania do governante, dando origem ao modelo de governo

representativo. Já em Rousseau (1973), o ponto central de um contrato social deve estar embasado na ideia de

vontade geral, seu pensamento fomenta a compreensão de governo democrático e direto, a qual se volta para a

concepção de soberania absoluta.

Page 67: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

66

produto social, ser naturalmente bom, mas também ser dual, corrompido. Para

Cerizara (1990, p. 39):

Essa dualidade, de um lado, pela natureza boa do homem e, de outro, pelas modificações que o estado social nele opera. Quanto àquela (a natureza boa), deve ser preservada para que permaneça o mais natural possível; no que toca as modificações produzidas pelo estado social, é preciso direcioná-las, ou de certa forma, DESNATURAR o homem, ou seja, converter o homem natural em homem social.

Tratava-se de um período de transição do velho (uso dos costumes, da

tradição) ao novo (a razão, referendada na lei). O sujeito, ser de direitos naturais,

passou a ser de direitos formais, pertencente a um Estado unificado, soberano e

absoluto, o qual possui ordenamento jurídico preciso e coerente. Constituiu-se,

então, o sujeito de direitos e de contratos sociais.

Ainda no século XIX, emergiu um pensamento filosófico que pôs em

discussão os limites da razão e situou o ser humano como ser de liberdade de usá-

la. Em meio à influência do pensamento filosófico que legitimava a Revolução

Francesa, constituiu-se uma concepção de sujeito ativo que, ao alcançar a liberdade

de atividade racional, passou a determinar a sua condição no mundo. Sob o advento

da corrente filosófica idealista, iniciou-se a ruptura com a concepção de sujeito

passivo e determinado.

Segundo Andery (1996), Kant, no século XIX, desenvolveu seu sistema

filosófico ligado à tradição racionalista alemã que era baseada em ideais burgueses

de ênfase à liberdade e ao individualismo, marcas do pensamento moderno. Ao

traçar sua análise sobre o pensamento humano, Kant critica o posicionamento

racionalista de elaborar explicações e máximas morais a partir de condições a priori,

sem questionar os limites do uso da razão e abre caminho para um novo processo

filosófico que compreende levar em consideração os próprios limites da razão.

Kant considera fundamental o questionamento proposto por Hume sobre a possibilidade do conceito de causa não depender da experiência, mas considera incorreta a posição de Hume no que diz respeito a impossibilidade de existir a metafísica , pois acredita que o homem não pode ser indiferente a esses problemas , nos quais a experiência está inteiramente ausente e a razão inevitavelmente age fora dos limites da experiência , concebendo realidades transcendentais como a existência de Deus , a imortalidade da alma e a liberdade do homem no mundo (ANDERY, 1996, p.344).

Page 68: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

67

Mediante a crítica sobre o uso da razão e suas limitações (o que a razão

pode fazer e o que ela é incapaz de fazer), Kant elaborou uma teoria transcendental

do conhecimento, apontando a função ativa do sujeito. “É na consciência do sujeito

que se encontra o suporte da universalidade da razão, por meio de sua estrutura

lógica e formal” (OLIVEIRA, 2005, p.146).

A concepção kantiana de liberdade foi apresentada, segundo Oliveira

(2005), por meio da relação entre os conceitos de cidadão ativo e de cidadão

passivo. A partir desses conceitos, Kant estabeleceu um modelo de sujeito diante da

sua condição de dependência ou independência na vida em sociedade. Assim, o

filosofo estabelecia:

cidadãos os membros de um Estado unidos com vistas à legislação, sendo seus atributos jurídicos: liberdade legal , a de “não obedecer a nenhuma outra lei senão aquela que tenha dado o seu consentimento”; a igualdade civil, a de “ não reconhecer nenhum superior no povo, somente aquele ao qual tem a capacidade moral de obrigar-lhe a ele”, e a independência civil, a de “não agradecer a própria existência e conservação de arbítrio do outro no povo, e sim a seus próprios direitos e faculdades como membro da comunidade” .A personalidade civil consiste “ em não poder ser representado por nenhum, outro nos assuntos jurídicos”. (KANT, 1999 apud OLIVEIRA, 2005, p.146).

O cidadão ativo era ser independente, que, regido pelas leis democráticas

estabelecidas socialmente, era responsável pelo exercício dos seus próprios

direitos, era sujeito individual.

Segundo Oliveira (2005), com a distinção de ser humano como cidadão

passivo ou ativo, Kant determinou o papel e a colocação das pessoas em sociedade,

tal distinção tinha como referência critérios de independência. Assim, o cidadão

ativo, independente, era aquele que possuía qualificações para votar e colaborar

com a introdução das leis. A concepção de independência estava voltada para os

meios que cada indivíduo possuía para garantir seu próprio sustento e não em torno

de sua capacidade de tomada de atitudes frente aos problemas cotidianos. De modo

que cidadãos passivos seriam:

O moço que trabalha a serviço de um comerciante ou um artesão; o servente (não o que está a serviço do Estado); o menor de idade (naturaliter vel civiliter); todas as mulheres e em geral qualquer que não possa conservar sua existência (seu sustento e proteção) por sua própria atividade, e sim que se veja forçado a pôr-se as ordens dos outros (salvo as do Estado), carece de personalidade civil e sua existência é, por assim dizer, só de inerência (KANT, 1999 apud OLIVEIRA, 2005, p.147).

Page 69: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

68

A concepção de liberdade kantiana estava pautada em um exercício

individual da consciência e do uso da razão. A partir dessa concepção,desenvolveu-

se um sistema filosófico em torno da racionalidade subjetiva, que distingue as

diferenças de capacidade de acordo com fatores como gênero, classe social e de

capacidade racional (OLIVEIRA, 2005.p 147).

Outro representante da racionalidade subjetivista moderna é Hegel que

defende, numa visão idealista, a atividade racional livre como determinante da

situação do ser humano no mundo.

Segundo Andery (1996), Hegel desenvolveu uma compreensão da

dialética, que está no pensamento e nas coisas, em que o mundo real e o

pensamento constituem uma unidade indissolúvel. Considera que é por meio do

movimento dialético que o espírito procede à elevação da consciência à razão.

Movimento contraditório que envolve três fases: em si (tese), para si (antítese), e em

si para si (síntese). Com isso, Hegel rompeu com a ideia de que uma coisa só pode

ser ela mesma e que ao transformar-se perde sua identidade não sendo mais

recuperada.

Ele concebeu o sujeito como ser em processo, que está em constante

mudança, mas que se conserva a si mesmo em cada estágio do processo por que

passa. Dessa forma, o ser humano pode ser compreendido em um processo

contraditório que orienta o seu desenvolvimento.

3.2.2 O pensamento positivista

No século XVIII, não se tinha a devida dimensão sobre as mudanças

estruturais e institucionais que o sistema capitalista iria produzir. Nesse período, os

processos da vida moderna contemplavam a assimilação do indivíduo sujeito da

razão, porém, com o avanço do liberalismo econômico, as sociedades modernas

tornaram-se mais complexas e direcionaram-se para práticas mais coletivas e

sociais, dando uma nova dimensão à democracia moderna, mediante o advento do

Estado-nação.

As leis clássicas da economia política, da propriedade, do contrato e da troca tinham de atuar, depois da industrialização, entre as grandes formações de classe do capitalismo moderno. O empreendedor individual da Riqueza das ações de Adam Smith ou mesmo do capital de Marx foi transformado nos conglomerados empresariais da economia moderna. O

Page 70: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

69

cidadão individual tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas e administrativas do estado moderno (HALL, 2002, p.30).

Segundo Andery (1996), na primeira metade do século XIX, num

momento pós-revolucionário em que a burguesia havia se estabelecido no poder na

França, Comte desenvolveu seu sistema filosófico, tomando partido da parcela mais

conservadora burguesa. Defendia um regime ditatorial e não parlamentarista que

serviu como base ideológica de organização política e moral efetivada

principalmente nos países da América Latina, inclusive no Brasil.

Para Comte (1973), a história era um progresso contínuo do

conhecimento e do espírito humano, porém, esse progresso só seria possível em

uma ordem absoluta. Ele desenvolveu, então, como sistema filosófico, o positivismo,

que envolve diversos temas, como a história, a filosofia, a ciência e a religião. A

historia é um desenrolar guiado por dois princípios básicos: a ordem que pressupõe

uma transformação ordenada, um continuo fluir e o progresso, que pressupõe

transformações lineares e cumulativas. Nessa visão de historia, cabe ao ser humano

respeitar a ordem natural, sendo regido pelas leis da natureza.

o verdadeiro espírito positivo consiste sobretudo em ver para prever, em estudar o que é, a fim de concluir disso o que será , segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais (COMTE, 1973, p.56).

Segundo Comte (1973), o conhecimento real é o cientifico, pois é útil,

preciso, positivo, já que parte dos fatos tal como se apresentam. Defende que o

conhecimento científico é baseado na observação e que não é mera acumulação de

fatos, mas a relação dos fatos a hipóteses, tal relação é possibilitada pelo raciocínio

humano. Para tanto, a ciência deve se ocupar com fatos que são regidos por leis

naturais e imutáveis; nessa perspectiva, a sociedade é governada por leis imutáveis

em si mesmas independente da vontade dos homens.

3.2.3 Sujeito como ser de transformação social

Com o materialismo-histórico-dialético de Marx (MARX; ENGELS, 1984),

os aspectos históricos, políticos e sociais ganharam força para o entendimento do

sujeito, de sua ação no mundo e da dinâmica das relações sociais. A filosofia de

Marx está intimamente ligada aos acontecimentos históricos, econômicos e políticos

Page 71: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

70

de seu tempo. As suas produções teóricas e prática política estavam a serviço da

classe trabalhadora.

Assim, há influência do materialismo histórico dialético para a formação

da concepção de sujeito, identidade e cultura mediante as dimensões

sociohistóricas, cuja base são os conceitos de historicidade, dialeticidade e mudança

na compreensão de ser humano.

Inicialmente, Marx recorreu a categorias hegelianas para a construção de

sua própria concepção, tendo como base a dialética como perspectiva para se

compreender o real e para se construir conhecimento. Porém, opôs-se ao idealismo

hegeliano, tendo como ponto de referência a matéria, de modo que “a natureza

humanizada, não é, portanto construída a partir do nada e nem construída pelas

ideias, mas por meio de uma atividade prática e consciente: o trabalho” (ANDERY,

1996, p.405).

Dessa forma, Marx compreendeu a sociedade com base em relações

econômicas, históricas, políticas e ideológicas em que “a base da sociedade, da sua

formação, das suas instituições e regras de funcionamento, das suas ideias, dos

seus valores são as condições materiais” (ANDERY, 1996, p.401).

Para Marx, a sociedade estava centrada no ser humano como sujeito

ativo, concreto e de transformação. O trabalho surge como base da sociedade e

característica fundamental do ser humano, ao qual cabe construir uma nova

sociedade. O homem, então, se transforma e transforma a natureza de acordo com

as suas necessidades materiais; como não são necessidades prontas e acabadas,

essas se alteram e se substituem no processo histórico.

Nesse entendimento, homens e mulheres são sujeitos históricos e sociais,

que, em sua relação com a natureza, a transformam, modificam. Nesse sentido, sua

natureza é mutável, é sujeito ativo na construção de si mesmo e de sua história.

Dessa forma, nem os fenômenos ou ideias são imutáveis.

Marx (MARX; ENGELS, 1984) desenvolveu uma concepção de sujeito

ativo, refutando a concepção idealista para identificar o ser humano como ser de

práxis. O sujeito, então, emerge como ser de relação dialética com o mundo material

e, portanto, ser de relação mútua na transformação de si próprio, do outro e do

mundo. Para o filosofo, ser sujeito é ser social e consciente.

Em completa oposição à filosofia alemã, a qual desce do céu à terra, aqui

Page 72: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

71

sobe-se da terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se também o desenvolvimento dos reflexos [Reflexe] e ecos ideológicos deste processo de vida (MARX; ENGELS, 1984, p.18).

Com Marx, o conhecimento científico assumiu o caráter de práxis, tendo

como premissa a transformação da realidade e a não neutralidade desse

conhecimento, já que, nessa perspectiva, atende aos interesses políticos e

ideológicos da cada época.

O método proposto por Marx tem como premissa o conhecimento

científico que envolve a teoria e a prática (práxis), concebendo que o conhecimento

deve construir os meios para a intervenção na realidade. O conhecimento deve ser

comprometido com uma determinada via de transformação.

Para apreender o real deve-se, assim, partir dos fenômenos da realidade, dos fenômenos que existem e que são externos ao homem, que são concretos, e não aquilo que existe na cabeça dos homens, as suas ideias, os seus pensamentos (ANDERY, 1996, p.416).

Conforme Oliveira (2002), as críticas do marxismo, feitas à racionalidade

idealista, abrem espaço para a compreensão do ser humano em sua totalidade,

enquanto sujeito histórico, inacabado e o olhar sobre a própria vida como

contraditória.

Assim, a ciência moderna durante longo período se estabeleceu como

detentora e produtora de conhecimento verdadeiro, inquestionável, racional e

comprovado experimentalmente. Conceitos, como neutralidade, inatismo, ordem

natural, ordem e progresso, fundamentaram um paradigma, reduzindo as

possibilidades humanas de criação, autonomia e de construção contínua. Com o

pensamento materialista dialético de Marx, contrapondo-se à visão idealista de

mundo no século XIX, e o desenvolvimento da complexidade das relações sociais no

mundo do trabalho e do capital nas instituições do mundo moderno da segunda

metade do séc. XX, emergiu uma concepção social do sujeito.

Page 73: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

72

3.2.4 Crise da racionalidade moderna

Segundo Hall (2002), no final do século XX, a concepção de sujeito e

identidade marcada pela racionalidade moderna evidencia uma crise provocada pela

perda do sentido de si, devido a um tipo diferente de mudança estrutural e

institucional corrente, que descentra as bases culturais, até então consideradas

fixas, de gênero, classe, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que possibilitavam

a formação de sujeitos determinados. Na base desse processo, está a evidência da

produção de novas formas de aprender, de relações sociais e de relações com o

mundo.

Dessa forma, o autor analisa a identidade cultural, construída a partir do

“pertencimento” a estruturas e instituições de uma dada cultura, mediante seus

aspectos étnicos, raciais, linguísticos, religiosos e nacionais, apresentando a cultura

na base da construção de identidades do sujeito.

A concepção de cultura, nesse contexto, começou a romper com as

bases da racionalidade clássica e moderna que estavam sob a ótica do

determinismo geográfico e biológico. Nesse contexto, a cultura passou a emergir

como processo histórico–social, na qual seus atores são sujeitos de aprendizado

constante, de interação social.

O determinismo biológico foi refutado por pesquisadores da área após a

avaliação do racismo que moveu e legitimou ideologicamente a perseguição nazista

ao povo judeu, na segunda guerra mundial. Nesse cenário, emergiu, como elemento

fundante do entendimento da diversidade cultural, a aprendizagem. De modo que as

diferenças passaram a não ser mais entendidas como estágios lineares de

desenvolvimento humano, que justificavam a valorização de uma cultura como

referência em detrimento de outra. Pelo contrário, as diferenças começaram a ser

explicadas pela história cultural de cada povo, envolvendo o entendimento dos

diversos fatores que influenciaram na aprendizagem e plasticidade humana, que

estão para além das diferenças entre gêneros e raças. Assim:

o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação. Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada (LARAIA, 2002, p.20).

Page 74: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

73

No século XIX, Edward Tylor apresentou a primeira definição de cultura,

tendo como referência a aprendizagem, entendida “como um todo complexo que

inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra

capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”

(LARAIA, 2002, p.25). Esse conceito indica que o ser humano não produz cultura

sozinho, mas em sociedade, bem como o aprendizado se dá na relação com o outro.

Segundo Laraia (2002), Tylor apresentou a cultura como um fenômeno

natural, sob o qual os fatores metafísicos e teológicos não são levados em

consideração para a compreensão do comportamento cultural humano, na medida

em que tais fatores não podem ser mensurados e, portanto, estão fora do padrão

científico positivo.

Tylor procurou demonstrar que cultura pode ser objeto de um estudo sistemático, pois trata-se de um fenômeno natural que possui causas e regularidades permitindo um estudo objetivo e uma análise capazes de proporcionar a formulação de leis sobre o processo cultural e a evolução (LARAIA, 2002, p.30).

Objetivando maior precisão, o estudo das regularidades culturais era

baseado na comparação de raças consideradas com o mesmo grau de civilização.

Para Tylor, a diversidade cultural era proveniente das desigualdades evolutivas de

cada povo. Essa explicação era influenciada pela teoria da evolução apresentada

por Charles Darwin no século XIX, em que a nascente antropologia estava ligada à

ideia do evolucionismo unilinear, de tal forma que o comportamento social humano

era estudado segundo uma escala de civilização.

Assim, por meio de sucessivas mutações, os povos passariam por

estágios lineares que se seguiam da vida selvagem, bárbara e civilizada, tendo

como parâmetro para indicar o grau de civilização de um povo a cultura europeia.

Nesse contexto, a ciência apresenta uma larga ligação com o etnocentrismo junto a

ideia de desenvolvimento cultural uniforme:

A cultura desenvolve-se de maneira uniforme, de tal forma que era de se esperar que cada sociedade percorresse as etapas que já tinham sido percorridas pela “sociedades mais avançadas”. Desta maneira era fácil estabelecer uma escala evolutiva que não deixava de ser um processo discriminatório, através do qual as diferentes sociedades humanas eram classificadas hierarquicamente, com nítida vantagem para as culturas europeias (LARAIA, 2002, p.34).

Page 75: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

74

A teoria evolucionista linear e o método comparativo dominante no início

do século XX foram criticados pelo antropólogo Franz Boas, defendendo que para a

compreensão da diversidade cultural se fazia necessário às investigações históricas

“e propôs em lugar do método comparativo puro e simples, a comparação dos

resultados obtidos através dos estudos históricos culturais simples e da

compreensão dos efeitos das condições psicológicas e dos meios ambientes”

(LARAIA, 2002, p.36). Inauguraram-se,então, novas perspectivas para a

investigação social por destacar a necessidade da compreensão dos fatores

subjetivos e socioambientais para o estudo da diversidade cultural.

Com esse entendimento, observou-se que, em função dos diferentes

eventos históricos experienciados por cada povo, são constituídas culturas distintas,

de tal forma que a unidade da espécie humana só pode ser explicada por meio da

sua diversidade cultural. O antropólogo americano Alfred Kroeber amplia o conceito

de cultura e rompe com a ideia de inatismo do ser humano frente à produção

cultural. O ser humano, então, tanto é produto da cultura quanto é produtor da

mesma (LARAIA, 2002, p. 56).

Hall (2002) nos ajuda a entender a trajetória histórica dos fundamentos

conceituais que constituíram uma concepção de sujeito e de identidade, marcados

por contextos distintos que influenciaram o pensamento moderno. O autor

contextualiza o que chama de “nascimento e morte do sujeito moderno”.

Para isso, esse autor apresenta três concepções de identidade. O sujeito

do iluminismo unificado, aquele que possui capacidade de razão, consciência e

ação, elementos que constituem um núcleo interior fixo (concepção individualista). O

sujeito sociológico, entendido como ser de interação, possui um núcleo interior que

não é autossuficiente, mas reflexo das interações entre fatores internos e externos

ao ser humano, fatores que formam identidades estáveis. O sujeito pós-moderno se

caracteriza por diferentes posições do sujeito, pela instabilidade.

Hall (2002) aponta dois eventos como principais influenciadores da

ampliação dos fundamentos conceituais do sujeito moderno. Um foi a biologização

do ser humano advindo da teoria darwinista sobre a evolução das espécies, que

situa a razão ligada à natureza e a mente ao desenvolvimento físico do ser humano.

O outro evento foi o surgimento das novas ciências sociais que possibilitaram novas

formas de pensar em torno da ideia de sujeito e identidade.

Page 76: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

75

Assim, coube à psicologia o estudo do indivíduo e seus processos

mentais e à sociologia, com a crítica ao individualismo racional, os estudos sobre as

interações do sujeito em sociedade, mediante seus aspectos internos (subjetivos) e

externos (experiências sociais e seus fatores políticos e culturais), que constituem a

descrição sociológica primária do sujeito moderno, a chamada teoria da

socialização.

Com isso, manteve-se o dualismo cartesiano corpo e mente que, por sua

vez, é marcado pela influência da racionalidade clássica, inaugurada pela filosofia

grega. Segundo Spinelli (1990), nessa dualidade, o conhecimento adquirido por

meio dos sentidos, do corpo era passível de erro, cabia à mente, por meio da razão,

a apreensão do verdadeiro saber.

Devido à profunda influência da racionalidade clássica sobre a ciência

moderna, a chamada teoria da socialização, que critica a concepção de sujeito

individual, sujeito do iluminismo, ao defender uma compreensão de sujeito social, de

interação, apresenta influências do pensamento cartesiano ao estabelecer em suas

análises a dualidade indivíduo e sociedade, entendidos como categorias distintas,

porém conectadas.

Este modelo sociológico interativo, com sua reciprocidade estável entre “interior” e “exterior”, é, em grande parte, um produto da segunda metade do século XX, quando as ciências sociais assumem sua forma disciplinar atual (HALL, 2002, p.32).

O sujeito sociológico é ser de interações que se concretiza na construção

de identidades estáveis. O indivíduo soberano permanece e está na base do

discurso econômico que é legitimado pelas leis que orientam a vida na sociedade

moderna. O sujeito soberano, então, é ser de interação, ser social e de desejos,

interesses e necessidades, no entanto, apresenta-se como ser de identidade

atemporal.

Na segunda metade do século XX, evidenciou-se um movimento de

contestação dos preceitos da racionalidade moderna, da concepção de ciência e de

ser humano. Esse período é caracterizado por uma profunda crise, a qual foi

desencadeada pelos avanços do conhecimento, pela contestação da razão revelada

pela ciência positiva e ampliação dos fundamentos conceituais sobre a sociedade e

seus sujeitos.

Page 77: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

76

Os avanços recentes da física e da biologia, ao introduzirem os conceitos

de historicidade, de processo, de liberdade, de autodeterminação atribuídas aos

sistemas pré-celulares de moléculas, passaram a questionar a distinção entre

orgânico e inorgânico, entre seres vivos e matéria inerte e mesmo entre o humano e

o não-humano, abrindo o debate em prol da superação das dicotomias, tais como:

natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria,

observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa, rumo à

produção do conhecimento que visa à análise da totalidade, mediante uma

transformação radical na relação sujeito-objeto.

Segundo Hall (2002, p.34), no período que chama de modernidade tardia

(segunda metade do século XX) ocorreu “uma série de rupturas no discurso do

conhecimento moderno”, que desencadearam na ruptura com a concepção de

sujeito cartesiano (sujeito dividido entre corpo e mente sujeito individual, de

identidade imutável).

Para explicar como ocorreu esse processo, Hall (2002) apresenta o que

considera como as principais contribuições para o avanço dos fundamentos

conceituais e metodológicos das ciências sociais e humanas.

A primeira foi a reinterpretação da teoria marxista sobre o ser humano

como produtor da história diante de condições dadas pela realidade material. Para o

estruturalista marxista Louis Althusser (1918-1989), Marx teria deslocado a noção de

agência individual, ao rejeitar o sujeito do empirismo, da essência ideal, postulada

pela racionalidade moderna, na medida em que as condições históricas são

herdadas e produzidas em contextos coletivos. Sobre a análise de Althusser, Hall

ressalta:

O fato é que embora o seu trabalho tenha sido amplamente criticado, seu “anti - humanismo teórico” (um modo de pensar oposto às teorias que derivam seu raciocínio de alguma noção de essência universal do Homem, alojada em cada sujeito individual) teve um impacto considerável sobre muitos ramos do pensamento moderno (HALL, 2002, p.36).

Para Hall (2002), outra contribuição conceitual para a compreensão de

sujeito em sua totalidade diante de suas dimensões objetivas e subjetivas foi dada

por Freud. A abertura ao inconsciente suscitou aspectos humanos que têm

contribuído com o entendimento sobre a construção da identidade de forma

contínua. Pensadores psicanalíticos, como Mead e Cooley, desenvolvem o estudo

Page 78: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

77

do eu interativo; a percepção do eu como inteiro, unificado, de uma autoimagem pré-

estabelecida, dá lugar a algo gradual e social.

A teoria de Freud de que as nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona com uma “lógica” muito diferente daquela da Razão, arrasa com o conceito de sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada- o “penso, logo existo”, do sujeito de Descartes (HALL, 2002, p.36).

O sujeito social começa a adentrar no território simbólico, em sistemas de

representações simbólicas, que envolvem a língua, a cultura e a diferença. Para a

psicanálise, a identidade é formada ao longo do tempo por meio de processos

inconscientes e está sempre incompleta e, portanto, sempre sendo formada, logo,

não se trata de uma essência imutável do ser humano e sim de uma identificação.

A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através da quais nós imaginamos ser vistos por outros (HALL, 2002, p.39).

Assim, a conceituação de cultura emerge como um exercício complexo e

em andamento. Para Laraia (2002), a cultura sob a perspectiva antropológica

apresenta-se como determinante do comportamento e das realizações humanas por

meio dos padrões culturais, portanto, está para além das determinações genéticas

hereditárias. Com a produção cultural, o ser humano rompe com supostas

determinações genéticas e passa a depender dos processos de aprendizagem.

De forma que o ser humano passa a ser situado no contexto de suas

relações com o mundo, no qual se inscreve como ser da natureza e sujeito da

cultura “como um alguém que pertence também ao mundo que a espécie humana

criou para aprender e viver” (BRANDÃO, 2002, p.16).

3.3 CONCEPÇÕES DE SUJEITO, IDENTIDADE E CULTURA NA RACIONALIDADE

CONTEMPORÂNEA: SER DE COMPLEXIDADES

Page 79: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

78

A racionalidade contemporânea é constituída diante de um espírito

reflexivo que se encontra profundamente desencantado com a razão e encontra a

chance de valorizar os fatores invisíveis, diante de um mundo que se tornou

inteligível, compreensível e racionalizável.

Segundo Japiassu (1996), no momento histórico de crise paradigmática, o

próprio tema pós-modernidade tem causado algumas inquietações, na medida em

que o moderno significa o agora. No entanto, algumas teorias contemporâneas

buscam situar tal tema em um contexto reflexivo em torno da própria concepção de

modernidade estabelecida ao longo da formação do paradigma moderno. Nesse

contexto, buscamos traçar reflexões sobre as concepções de sujeito, identidade e

cultura situadas na contemporaneidade.

Para Japiassu (1996), neste momento de incertezas, não se trata de

negarmos a importância da Razão e da ciência e que os processos de produção

científica não estão em perigo, e sim a humanidade, pois, “somos muito mais

ameaçados pela corrida armamentista, pelas bombas nucleares e outras, pela

utilização abusiva das manipulações genéticas ou pela informação controladora do

que pela eventual implosão do mecanicismo racionalista” (p.189).

E indica que nossa sociedade tem dificuldade de produzir “seres humanos

sábios” na medida em que estabelece como foco a formação de pessoas altamente

qualificadas e competentes científica e tecnicamente em detrimento da formação

para pensar ou repensar nosso mundo racionalizado e objetivo, assim como a sua

relação com as diversas formas de manifestação da cultura.

A pós-modernidade, na visão de Japiassu (1996), é marcada pela

contestação da Razão positiva, de sua perspectiva unilateral, funcional, de sujeito e

de identidade. A racionalidade pós-moderna aponta um movimento para a

pluralidade de sentidos e incertezas diante do mundo, do futuro. Esse movimento

ressalta a formação humana, não para o domínio da natureza, mas para o novo,

para novas formas de pensar e agir em sociedade.

Na sociedade contemporânea, é posta em cheque a razão dos cientistas,

na medida em que nem sempre revela as soluções a que se propôs oferecer à

sociedade, tampouco se apresenta convincente, deixando escapar suas

contradições internas, sejam metodológicas, práticas ou ideológicas, o

conhecimento científico vem se confrontando com as incertezas. A tal ponto de a

razão científica não mais representar um “porto seguro”, defrontando-se com uma

Page 80: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

79

realidade que já não possui um horizonte fixo, evidenciando um sentimento de

incerteza, que não age como um processo atemorizante diante do inesperado, mas

como processo crítico que possibilita a ampliação da visão de um mundo pós-

moderno.

Mediante essas constatações, abre-se espaço para o questionamento da

universalidade do conhecimento científico, para a denúncia do mito da razão e

busca-se novos valores sob a perspectiva da pluralidade das visões de mundo e

diversidade de modos de viver e agir:

Tais valores, dizem,essencialmente humanos, não podem mais se sentir ameaçados ou subjugados por um pensamento racional uniformizador, homogeneizador e unidimensionalizador, impondo-se a tudo e a todos pela racionalidade de sua tecnocência ( JAPIASSU, 1996,p.179).

Santos (1997) faz uma análise do paradigma emergente, que surge ante

a crise do paradigma moderno, indicando elementos que o situam na

contemporaneidade. O autor ressalta que essa análise só pode se desenvolver de

forma especulativa na medida em que trata de pressuposições de um futuro.

Portanto, tais análises não são tratadas de forma determinista, estando abertas às

facetas do processo histórico dinâmico, mas que têm como alicerce um olhar

sociológico da realidade.

Trata-se da ruptura com os preceitos da ciência moderna que se apoiam

numa concepção mecanicista de ser humano, de matéria e de natureza,

dicotomizando ciências naturais e ciências sociais e os conceitos de ser humano,

cultura e sociedade. O paradigma emergente caracteriza-se pela busca da

superação da visão dualista, revalorizando os estudos humanísticos, que

pressupõem uma transformação humana.

Assim, o sujeito da racionalidade contemporânea é ser de relações

sociais, nas quais, são atribuídos significados, é ser cultural e de aprendizado,

compreendido diante de suas dimensões objetivas e subjetivas que são

indissociáveis.

Segundo Brandão (2002), o ser humano diferencia-se dos outros seres

vivos por apresentar consciência reflexiva que compreende o mundo por meio de

símbolos e significados e rompe com a consciência meramente reflexa, de modo

Page 81: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

80

que nos diferenciamos não apenas por vivermos em um mundo da natureza que nos

é dado, mas por criarmos e recriarmos o nosso mundo.

Dessa forma, “somos uma pessoa em um duplo sentido” (BRANDÃO,

2002, p.21), pois ao mesmo tempo em que somos sujeitos do mundo da natureza,

unidade de uma espécie, somos sujeitos do mundo da cultura em suas múltiplas

dimensões, uma espécie que se transforma ao aprender a viver.

Os outros seres vivos do mundo são o que são. Nós somos aquilo que nos fizemos e fazemos ser. Somos o que criamos para efemeramente nos perpetuarmos e transformarmos a cada instante. Tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado, quando tomamos as coisas da natureza e recriamos como os objetos e os utensílios da vida social representa uma das múltiplas dimensões daquilo que , em uma outra, chamamos de: cultura. O que fazemos quando inventamos os mundos em que vivemos: a família, o parentesco, o poder de estado, a religião, a arte, a educação e a ciência, pode ser pensado e vivido como uma outra dimensão (BRANDÃO, 2002, p.22).

Discute o autor as concepções funcionalistas de cultura, as quais, ao

analisarem a relação do ser humano com a natureza, subordinam a cultura ao

trabalho e seus resultados, deixando em segundo plano os processos de produção,

os fatores políticos que criam e reproduzem cultura. Nessa perspectiva, a cultura é

reduzida ao resultado do trabalho humano sobre a natureza e a história entendida

de forma linear.

A cultura é histórica, no sentido de que a atividade humana que cria a história é aquela que faz a cultura. Assim a própria história humana não é outra coisa senão a trajetória do processo por meio do qual o trabalho social do homem opera a dialética da transformação da natureza em cultura. Opera a passagem de um mundo dado ao homem para um mundo construído pelo homem (BRANDÃO, 2002, p.39).

O ser humano em sua relação com o mundo define-se pelo significado

que dá à ação e ao mundo que transforma. A sua ação no mundo, portanto, não é

feita simplesmente de forma reflexa e material, na medida em que o ser humano é

ser que produz cultura, suas produções possuem valor simbólico.

3.3.1 Cultura em debate na contemporaneidade: aprendendo com a diversidade

Page 82: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

81

A cultura na contemporaneidade emerge como fenômeno social que

envolve as múltiplas dimensões humanas em seus processos de aprendizagem,

significação e ressignificação da vida cotidiana, do passado e das perspectivas de

futuro.

Na racionalidade contemporânea, cultura e identidade se articulam tanto

em um processo de demarcação de fronteiras entre o que somos e o que não

somos, em um complexo social que possibilita um sentimento de pertencimento a

um local aliado a uma dada forma de pensar e agir, quanto aponta para a abertura e

valorização da diversidade cultural.

Fleuri (2006) chama atenção para a necessidade da problematização das

relações entre sujeitos e culturas, sobre a visão reducionista de estabelecimento das

diferenças baseadas nos estereótipos, legitimados ideologicamente e assimilados

pelos grupos sociais como principais constitutivos de identidades culturais. Nesse

processo, da resistência social aos padrões historicamente estabelecidos de

normalidade, está a reflexão-ação sobre a diversidade e a diferença na diferença:

Conclui-se que as novas perspectivas emergentes de compreensão das diferenças indicam uma visão mais complexa do diferente, para além do paradigma da diversidade. Deste modo surge o campo hibrido, fluido, polissêmico, ao mesmo tempo promissor, da diferença que se constitui nos interlugares das enunciações de distintos sujeitos e das múltiplas identidades sócio-culturais (FLEURI, 2006, p.49).

O foco de debate vai além da convivência democrática entre diferentes

grupos e culturas, mas parte do princípio da igualdade de oportunidade em uma

proposta de educação para a alteridade. Tal perspectiva desloca a compreensão

simplista do outro pela dicotomização das diferenças estéticas, de geração, de raça,

de gênero, para a compreensão do outro em sua historicidade, subjetividade,

enquanto sujeito social e pensante.

O processo de homogeneização cultural atua sobre a razão, a nação, a

raça e a religião de cada povo, fazendo a repressão da pluralidade cultural por meio

da força armada ou ideológica, limitando ou eliminando as potencialidades humanas

de criar, viver suas identidades e reconhecer-se como sujeito, caracterizando o que

Touraine (1998) chama de “inferno totalitário”.

Para Touraine (1998), a unificação do mundo pela racionalização é uma

ilusão, pois vivenciamos tanto a dissociação quanto a mistura da cultura de massa e

Page 83: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

82

da obsessão identitária. Isso significa dizer que o monoculturalismo, que

corresponde a uma sociedade mundial, e o multicomunitarismo, a grupos separados

por universos culturais distintos que só se relacionam por meio do mercado, são

mais afirmações ideológicas e políticas do que realidade, na medida em que as

sociedades têm na sua própria afirmação cultural elementos que favorecem a

diversidade e a comunicação entre culturas.

É no cenário da constituição da sociedade do consumo, a qual tem como

premissa a implantação de relações sociais determinadas pelo mercado e do

comunitarismo, enquanto movimento cultural de negação da comunicação com

outras culturas, configurando um ilusório isolamento cultural, portanto segregador, é

que Touraine (1998) indica a urgência em criticar o que essas duas concepções têm

em comum: “a ideia de que a sociedade deve ter uma unidade cultural, seja ela a da

razão, duma religião ou étnica” (p.200). Trata-se da recusa da unidade

mercadológica e da fragmentação cultural que não cessa de agravar.

O multiculturalismo se insere em um contexto que busca a complexa

relação entre igualdade e diversidade, um viver juntos que tem como princípio “a

união entre a democracia política e a diversidade cultural, fundadas sobre a

liberdade do sujeito” (p.200). Esse sujeito é livre das ações políticas totalitárias, em

que sua liberdade não é medida pelas suas diversas possibilidades de consumo e

de produção de capital, mas pela liberdade à sua afirmação cultural, de suas

identidades e, sobretudo, a livre construção da vida pessoal.

Não existe sociedade multicultural possível sem o recurso a um princípio universalista que permite a comunicação entre os indivíduos e grupos social e culturalmente diferentes. Mas também não há sociedade multicultural possível se este princípio universalista comandar uma concepção da organização social e da vida que seja julgada normal e superiora a outras (TOURAINE, 1998, p.200).

Em nome de um modelo ideal moderno de sociedade nacional

(mercadológica) e do universalismo político, tem-se como visão de ser humano a

formação do sujeito político nacional-democrático e para o qual são impostas as

obrigações sociais e culturais que prescrevem a destruição da diversidade cultural e

a racionalização autoritária, acarretando em um conflito entre os mercados mundiais

e as identidades culturais e sociais. A propagação do conceito de tolerância, em

uma perspectiva neoliberal, surge como política ideologizante enquanto forma de

Page 84: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

83

aceitação de práticas socioculturais diversas entendidas como inferiores à cultura

dominante.

É no contexto de negação da diferença que ocorre a separação entre

cultura, sociedade e poder. Sob a perspectiva da formação de culturas homogêneas,

de purificação étnica, foi deflagrado o extermínio de populações no mundo e práticas

de negação da própria cidadania. Assim, uma sociedade baseada em uma política

de exclusão das diferenças tende a se autodestruir, pois recai sob a intolerância e a

violência:

Um povo tem o direito de lutar por sua independência nacional, e esta luta é mais forte quando se apóia numa identidade cultural, lingüística e histórica. Mas se a construção da soberania nacional acarreta a rejeição das minorias e a “preferência nacional”, a catástrofe está próxima, pois a comunidade não passa de instrumento a serviço dum poder absoluto, duma ditadura comunitarista ou nacionalista que destrói tanto a cultura como a economia e substitui a consciência nacional pela rejeição do estrangeiro (TOURAINE, 1998, p.190).

Nesse sentido, faz-se necessária a problematização das relações sociais

entre os sujeitos em seus contextos sociais, não na perspectiva de normatização de

suas práticas para o “bom viver juntos”, e sim na democratização dessas relações,

na valorização das possibilidades humanas rumo a novas perspectivas para a vida

enquanto processo humano de criação, superação, rupturas e tolerância.

Freire (2004), ao problematizar o discurso da diferença, na perspectiva da

tolerância para com as diferenças entre os sujeitos, aponta para o discurso neo-

liberal que defende tolerar o diferente como um sistema de hierarquias, no sentido

de inferiorização do outro que não representa a cultura dominante. A tolerância

defendida por Freire é compreendida como qualidade humana de não apenas

conviver com as diferenças, mas de valorizá-las.

Segundo Hall (2002), a concepção de cultura na contemporaneidade

volta-se para os processos de interrelações entre saberes locais e globais.

Inicialmente, podemos pensar que esse processo tende a homogeneizar a cultura,

formando o que se denomina na contemporaneidade de “aldeia global”, pelo

contrário, tais relações se constituem em processos de afirmação das diferenças e

da cultura de cada povo como movimento de resistência às relações assimétricas de

poder estabelecidas na sociedade do consumo, da informação e do individualismo.

Page 85: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

84

Dussel (1994) faz uma análise semântica sobre a modernidade e sua

crise, apontando aspectos positivos e negativos em torno do desenvolvimento da

ciência moderna. Em seu aspecto positivo, a modernidade é reconhecida pela busca

do uso da razão, indicada como emancipação racional que propiciou um novo

desenvolvimento histórico, por meio do amadurecimento da razão. Em seu aspecto

negativo, sob o status da modernidade, abrem-se fronteiras entre o moderno (novo),

e o atrasado (velho), justificando práticas irracionais violentas, em prol de um dito

processo civilizador.

O autor então desenvolve sua análise sobre o que chama de mito da

modernidade, que consiste em considerar a vítima (o Outro) como culpada, que

pode ser objeto de diversos ataques violentos, cabendo ao sujeito moderno o papel

de civilizador, o inocente. Trata-se de uma relação polarizada que opõe pessoas e

culturas, de forma segregadora, sob a égide do “progresso”, da modernização.

Mediante o aspecto negativo da modernidade foi legitimada uma

concepção de sujeito determinado pelos aspectos sociopolíticos e culturais, sob os

quais foram estabelecidos modelos de comportamento, pensamento e estética como

pressupostos civilizatórios. Assim, cada sujeito nasce determinado à ocupação de

um papel social, no qual é exercida a negação da diferença em prol de um modelo

de homogeneização cultural, estética e comportamental.

Para Dussel (1994), faz-se necessária a superação do mito da

modernidade rumo à prática de inclusão do Outro na perspectiva da alteridade, não

no sentido estratégico para imposição de uma cultura dita superior sobre a outra,

mas na própria valorização das culturas, as quais não estão relacionadas a um

modelo, mas valorizadas em seu contexto histórico, político e social, e ele aponta

para a transmodernidade como uma nova perspectiva, a de negação do mito para o

reconhecimento da injustiça e de ruptura da razão emancipadora como razão

libertadora.

Não se trata da negação da modernidade, mas da própria criticidade de

suas teorias e práticas, das ações dos seres humanos no mundo, configurando-se

como um projeto de libertação, que se dá de forma transcendente, por meio da

correlação de solidariedade.

Na sociedade contemporânea, vivemos o apelo mercadológico que

pressupõe a formação de uma sociedade individualista, de formas de agir e pensar

Page 86: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

85

homogêneas, que tem como referência a valorização da cultura europeia, bem como

a marginalização das identidades culturais. Para Touraine (1998, p.190):

Só conseguiremos viver juntos se reconhecermos que nossa tarefa comum é combinar a ação instrumental e identidade cultural; se cada um de nós, portanto, se construir como sujeito e se obtivermos leis, instituições e formas de organização social cuja finalidade principal seja proteger nossa busca de viver como sujeitos de nossa própria existência.

Ele indica que há uma continuidade entre a ideia de sujeito e a sociedade

multicultural, já que para podermos viver juntos diante das diferenças devemos nos

reconhecer mutuamente como sujeitos. Trata-se da comunicação intercultural, na

qual a democracia se configura como política do sujeito, que se opõe às práticas

autoritárias que visam unificar culturalmente a sociedade.

Para analisar a sociedade na perspectiva multicultural, Touraine (1998,

p.189) parte da distinção entre indivíduo e sujeito, esse compreendido como ator

social que se constitui tanto pela sua atividade instrumental quanto pela sua

identidade cultural. Assim, para responder ao problema: Podemos viver juntos?,

indica que “ao invés de dever passar do indivíduo para a sociedade, agora nossa

tarefa é explicar porque o apelo ao sujeito é a única resposta disponível”.

Para Brandão (2002, p.41), o fato de o ser humano ser sujeito da história

e agente criador de cultura não indica que essas são qualidades e, tão pouco,

essência do mesmo, mas elementos de um processo dialético de humanização. De

tal forma que “o homem realiza um trabalho único que, criando um mundo de cultura

e fazendo a história humana, cria a própria trajetória de humanização do homem”.

Assim, nos identificamos porque somos seres de consciência e ação, o

que se configura em uma totalidade humana, a qual envolve historicidade,

objetividade e subjetividade. Como seres culturais, somos seres de aprendizagem,

então, a identidade é um processo humano de estar sendo, é um fenômeno social.

3.3.2 O sujeito contemporâneo: ser em construção

O pensamento moderno, ante a perspectiva dualista, também se

caracteriza pela disciplinaridade evidenciada na especificação, especialização, que

segrega uma organização do saber, impondo fronteiras intransponíveis,

hierarquizando e delimitando as áreas, o que propicia um olhar limitado sobre um

Page 87: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

86

dado contexto. Já o paradigma emergente, segundo Santos (1997), busca a

totalidade sob a perspectiva de que o local está conectado com o total, um

interferindo no outro. Apesar de haver uma fragmentação, ela não é disciplinar, mas

temática, na qual os conhecimentos estão em relação uns com os outros.

Contraditoriamente à racionalidade moderna, apesar de se estabelecer

sob a égide de seus dogmas, foi a sua própria produção que possibilitou a sua

crítica. A ciência, como detentora de verdades universais antes incontestáveis,

segundo Japiassu (1996), também era divinizada, “a fé na ciência, mesmo batizada

de "racionalista”, mesmo que se apresente como ímpia, sacrílega, leiga, ainda é uma

fé. A idolatria sempre é uma alienação” (p.161), apresentando com isso o caráter

subjetivo de sua produção, que propiciava credos, sonhos, paixões.

Assim, a racionalidade contemporânea configura-se mediante a busca do

entendimento do ser humano em sua totalidade; busca em primeiro lugar libertar-se

das amarras da compartimentação, especialização e individualização da ação

humana rumo à aceitação de possibilidades como ponto de partida, visando analisar

de forma crítica as novas situações culturais e as condições e possibilidades da

totalidade humana e do saber. Para Japiassu (1996, p.163):

Não podemos negar que estamos assistindo, hoje, a uma retorno ao mágico, do místico, do encantado, numa palavra, do irracional. O fascínio exercido pelas tradições orientais e sua influência em muitos corações e mentes ocidentais.

O sujeito neste contexto é concebido por Morin (2000) sob a perspectiva

do pensamento complexo, que é representado pela busca de uma nova forma de

estar no mundo, pela ruptura com o mundo das ordenações e determinações de

verdades inquestionáveis, de um porto seguro ilusório, no qual, cabiam à ciência as

determinações de formas de ser, pensar e agir no mundo.

O pensamento complexo pressupõe um começo que seja sempre um

recomeço, um ir e vir do ser humano no mundo, que acima de tudo encontra no caos

possibilidades da incerteza, de respostas, de caminhos diversos, de escolhas, de

retrocessos, mas também de avanços. Pressupõe um novo olhar sobre o mundo e

diante do mundo.

Morin (2000) ressalta que o sujeito deve ser compreendido em sua

totalidade e indica que desde o nosso nascimento a cultura está presente em nossa

Page 88: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

87

vida e que a identidade humana é formada por uma tríade: indivíduo- sociedade-

espécie. Ao mesmo tempo em que somos indivíduos, somos uma parte da

sociedade e pertencemos a uma espécie e cabe ao ser humano cuidar do planeta

em que vive.

Contatamos que a natureza e o ser humano não podem ser mensurados

por grandezas matemáticas. O sujeito é complexo e a sua relação com a natureza e

com o outro é indeterminada. A concepção de identidade, nesse contexto, está

situada em um processo humano de ir e vir de construção histórica não linear.

Segundo Ciampa (1998), ao negarmos a possibilidade de mudança do

sujeito negamos a possibilidade de estar vivo, pois o sujeito é verbo, é ser de ação

no mundo. Quando o sujeito toma consciência dos aspectos que limitam a sua forma

de ser, pensar e agir no mundo, ele inicia um processo de libertação, de rupturas

com o dado, toma consciência da sua relação dialética com a realidade e com a

história.

A teoria cultural contemporânea descreve a identidade mediante a ideia

de movimento, processo, no qual ocorre a ruptura com a fixação da identidade, ou

seja, “aquilo que trabalha para contrapor-se a tendência a essencializá-las” (SILVA,

T., 2000, p. 86).

Assim, identidade é um permanente processo de identificação, no qual,

ao nos identificarmos como pertencentes a um grupo social, a uma cultura, a uma

localidade e a um tempo que demarca uma relação de igualdade mediante os

sujeitos com os quais compartilhamos tal experiência, e ao traçarmos um grau de

subjetividade, forma de pensar, agir, ser enquanto ser distinto, exercemos a relação

com a diferença na construção da identidade.

Através da articulação de igualdades (equivalências de fato) e diferenças, cada posição minha me determina, fazendo com que minha existência concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realiza pelo desenvolvimento dessas determinações.Em cada momento de minha existência, embora eu seja uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito. Quando estou frente a meu filho relaciono-me como pai; com meu pai, como filho e assim por diante. Contudo meu filho não me vê apenas como pai, nem meu pai me vê apenas como filho; nunca compareço frente aos outros apenas como portador de um único papel, mas como uma personagem (CIAMPA, 1998, p.164).

A contemporaneidade, então, é marcada pela contestação do sujeito

individual e pela busca da compreensão do sujeito em seu contexto social, cultural e

Page 89: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

88

histórico. Morin (2000) defende a adoção da compreensão da realidade diante de

todos os elementos que possibilitam a explicação de um fato. Afirma que nas

relações educativas não nos tem sido ensinado a compreendermos uns aos outros,

pois estamos vivendo em uma sociedade que prega práticas individualistas, que

favorecem o egocentrismo, o egoísmo, alimentando a rejeição do próximo. Portanto,

é de extrema importância que aprendamos a compreender os outros, mas, para

tanto, devemos primeiramente nos autoanalisar.

Adentra nesse processo de contestação, o pensamento de Paulo Freire

(1987), para o qual, o ser humano é ser de práxis, ser de superação das condições

objetivas e subjetivas, históricas, políticas e culturais, que impõem condições de

desumanização e camuflam a essência da condição humana. Essa ,segundo o

autor, é a de constituir-se sujeito da reflexão-ação, ser em processo, portanto, de

autonomia perante as suas relações com o outro e com o mundo que transforma.

O conhecimento produzido sob a perspectiva positivista ampliou as

possibilidades de sobrevivência da humanidade, no entanto, firmou-se sob uma

perspectiva funcional e de domínio da natureza. Na contemporaneidade, a ciência

se depara principalmente com o saber viver, com a incerteza do conhecimento em

um mundo que não mais é objeto de controle, mas de compreensão.

A história das ciências não se restringe à da constituição e proliferação das disciplinas, mas abrange ao mesmo tempo, a das rupturas entre as fronteiras disciplinares, da invasão do problema de uma disciplina por outra, de circulação de conceitos, de formação de disciplinas híbridas que acabam tornando-se autônomas; enfim, é também a historia da formação de complexos, onde diferentes disciplinas vão ser agregadas e aglutinadas. Ou seja, se a historia oficial da ciência é a da disciplinaridade, uma outra historia, ligada e inseparável, é a das inter-poli-transdisciplinaridades (MORIN, 2004,p.107).

No centro deste debate está a relação do sujeito com o saber construído

em suas práticas sociais cotidianas. O senso comum tende a ser um conhecimento

mistificado, mistificador e conservador, porém possui uma dimensão libertadora que

pode ser ampliada quando em relação com o conhecimento científico. Segundo

Santos (1999), para que haja o diálogo entre o conhecimento do senso comum com

o conhecimento científico e entre os demais saberes, faz-se necessário a ruptura

com o paradigma dominante que se constituiu contra o senso comum, considerando-

o superficial, ilusório e falso.

Page 90: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

89

Assim, a racionalidade contemporânea não segue um único caminho

metodológico, pois se configura pela própria transgressão metodológica, partindo da

perspectiva da sua pluralidade. É um conhecimento que tem como princípio não um

caminho unidimensional e sem contradições, mas de possibilidades, imaginação em

que a ação humana projeta-se no mundo a partir de um espaço-tempo.

Esse contexto evidencia um movimento que passa pelo problema

metafísico, levando à busca das rupturas com as proposições cartesianas e

newtonianas sobre o funcionamento e organização do planeta, visando a uma

perspectiva de mundo globalizante, no qual, se faz necessária uma nova forma de

ver o mundo e suas relações com os seres humanos, que por sua vez pressupõem

uma mudança global de consciência.

A racionalidade contemporânea é marcada pelo exercício reflexivo sobre

o conhecimento e a possibilidade do erro dimensiona o ser humano diante de um

recomeço. Morin (2000), ao discutir o problema do conhecimento, defende que

primeiramente devemos saber o que é o conhecimento, levantando como

problemas-chave a ilusão e o erro. Trata-se, pois, da necessidade de percebermos o

conhecimento de forma crítica, pois não estamos isentos de chegarmos a

conclusões erradas sobre o que nos chega por meio dos sentidos. Aponta como

exemplo os erros do passado quando muitas vezes acreditamos em algo que após

anos constata-se ser ilusão. Portanto, o conhecimento nunca é o reflexo ou espelho

da realidade, o conhecimento é uma tradução seguida de reconstrução da realidade.

Para Morin (2000), o erro é confundirmos as ideias com a realidade e,

portanto, o problema do conhecimento não é foco de atenção restrito aos filósofos,

mas de todos, para que cada pessoa possa explorar as possibilidades do erro, para

com isso poder chegar mais próximo da realidade.

Na contemporaneidade, a concepção de identidade está sob a ideia de

movimento, construída no diálogo entre pessoas, contextos e saberes, em processo

de abertura a novas possibilidades de vida.

A identidade nessa perspectiva é um processo humano que envolve

contínuas mudanças, nas quais, o ser humano, ao romper com as condições

objetivas e subjetivas que apresentam a ilusão de identidade imutável, pressuposta,

rompe com as determinações sociais que re-põem a identidade imposta pelo outro e

revela os vários eus que compõem as identidades que vão sendo construídas ao

Page 91: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

90

longo da vida, evidenciando-se em um constante vir-a-ser, em metamorfose.

(CIAMPA, 1998, p.113).

Para tanto, na racionalidade contemporânea, a consciência está para

além do reconhecimento de ser consciente, dos objetos e dos fenômenos da

realidade, mas consciência dos processos que impedem a humanização e a

compreensão humana em sua historicidade, contradição e movimento. Assim, o

sujeito ativo é compreendido em um contexto de consciência de si, do outro e do

mundo que transforma.

No estudo da identidade, produto e processo são elementos

indissociáveis. Para Brandão (1984), o entendimento sobre a dinâmica da

construção da identidade está para além das relações de contrastes, de tensões de

força correntes nos grupos sociais que se dimensionam em contextos mais amplos

da sociedade, mas está no reconhecimento social da diferença.

As identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto com o outro; por se ter de estar em contato, por ser obrigado a se opor, a dominar ou ser dominado, a tornar-se mais ou menos livre, a poder ou não construir por conta própria o seu mundo de símbolos e, no seu interior aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o grupo, a minoria, a raça, o povo. Identidades são mais do que isto, não apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social da diferença (BRANDÃO, 1984, p.42).

A diferença emerge, então, no contexto da formação das identidades, seja de

comunidades, grupos ou de cada indivíduo como instrumento de demarcação de

fronteiras entre o que está dentro e o que está fora de uma dada vivência, em um

determinado contexto de vida. A identidade é estabelecida nas fronteiras do que

somos e o que não somos, da história e da cultura a que pertencemos e

construímos. Daí as identidades serem construídas em contextos culturais.

O sujeito contemporâneo possibilita-se ao imprevisto e ao erro, estando

em processo, busca soluções para os problemas cotidianos, soluções que por sua

vez não são aceitas como acabadas. É um sujeito social, que produz interrelações

com comunidades e grupos sociais nacionais e globais. É sujeito de identidades

construídas no mundo da cultura, da informação, da comunicação, mas também no

mundo simbólico, de significações, em que se configura um novo processo de

compreensão e vivência do espaço-tempo evidenciado pelo avanço da globalização.

Page 92: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

91

Se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço- tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência , mais interconectado (HALL, 2002, p.67).

No momento de encurtamento das distâncias e de escalas temporais, o

sujeito contemporâneo tem contato com variadas expressões culturais e concepções

de mundo que têm um efeito sobre suas identidades.

Paralelamente ao avanço do processo de globalização, vai se

estabelecendo na contemporaneidade uma concepção de ser humano como

inconcluso, contraditório e social, formada a partir das contribuições teóricas

pautadas em uma perspectiva multidisciplinar em torno do conhecimento.

Para Hall (2002), deve-se ao trabalho do linguista estrutural Ferdinand de

Saussure significativa contribuição para o descentramento do pensamento moderno

sobre o sujeito. Saussure indica que a língua é uma construção social e preexistente

a nós por ser construída culturalmente e, portanto, não podemos ser seus essenciais

autores, pois a mesma é produzida em meio a significados que estão embutidos em

nossos sistemas culturais.

Existe, então, uma analogia entre língua e identidade. Os significados das

palavras não são fixos, carregam os traços das tradições dos povos no mundo. Hall

(2002) explica que “o significado surge nas relações de similaridade e diferença que

as palavras têm com outras palavras no interior do código da língua” (p.40).

Assim como a língua, a identidade não é um sistema fechado, tem um

antes e um depois constantes, “o significado é inerentemente instável; ele procura o

fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença)”

(HALL, 2002, p.41).

Para esse autor, outra significativa contribuição teórica para a ampliação

conceitual do sujeito é proveniente dos movimentos sociais que contestaram as

estruturas antes consideradas intocáveis na manutenção das bases teórico-políticas

da modernidade. Para Hall (2002, p.44):

O feminismo faz parte daquele grupo de “novos movimentos sociais” que emergiram durante os anos sessenta (o grande marco da modernidade tardia), juntamente com as revoltas estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos civis, os movimentos revolucionários do “Terceiro mundo”, os movimentos pela paz e tudo quilo que está associado com “1968”.

Destacam-se nesses movimentos sociais emergentes no final do século

Page 93: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

92

XX alguns elementos fundamentais que fomentaram a ampliação conceitual da

concepção de sujeito, de identidade e da própria realidade.

Nesse período, esses movimentos apresentavam uma oposição à ordem

política e econômica estabelecida, seja ela de cunho capitalista ou socialista. Com

isso, constatou-se que os debates políticos poderiam estar para além da escolha e

defesa de uma fronteira ideológica pré-estabelecida. A política passou a ser vista

tanto em suas dimensões objetivas quanto subjetivas. Suspeitou-se das formas

burocráticas de organização do estado moderno e constituiu-se uma nova forma de

organização política, com o fim da classe política.

Nesse sentido, cada movimento apresentou uma identidade social,

acarretando em uma fragmentação em vários e separados movimentos sociais, o

que caracterizou a política da identidade. Dentre os mais variados movimentos

sociais, Hall (2002) destaca as contribuições do feminismo para a formação da

concepção de sujeito contemporâneo como não determinado por dualidades, mas

complexo enquanto ser de identidades, ser de diferenças e ser em movimento. O

movimento feminista:

Abriu, portanto, para a contestação política, arenas inteiramente novas da vida social: a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças, etc.Ele também enfatizou como uma questão política e social o tema da forma como somos formados e produzidos como sujeitos generificados.Isto é, ele politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres, pais/mães, filhos/filhas) (HALL, 2002, p.45).

Nesse contexto, se configura o sujeito contemporâneo que é social,

reflexivo, contraditório, indeterminado, situado dentro de uma perspectiva holográfica

de mundo, sua ação implica o todo e o todo implica sua ação, está interligado com o

planeta, é responsável pelos rumos da história, é ser de complexidades.

Segundo Morin (2004), o sujeito contemporâneo é ser de

responsabilidades consigo e com o planeta e seus problemas, sobretudo mediante a

globalização, com a sobrecarga de informações que não conseguimos processar e

organizar. Devemos analisar criticamente esses processos, haja vista a degradação

da vida no planeta; devemos desenvolver uma consciência planetária que possibilite

a tomada de ação sobre os problemas atuais.

Com isso, Morin (2004) levanta o aspecto chamado antropoético, que tem

como foco a ação do ser humano em sociedade, a relação homem-sociedade, sob a

Page 94: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

93

ótica das responsabilidades pessoais e sociais dos seres humanos, situados no

contexto da democracia.

Mediante a trajetória histórica sobre as concepções de sujeito, identidade

e cultura aqui apresentadas, é relevante fazermos algumas considerações, tendo

como referências Morin (2004), Hall (2002) e Santos (1997):

• o conhecimento científico iniciado a partir do surgimento da filosofia

ocidental atribuiu capacidades ao ser humano que foram mitificadas ao

longo do tempo. A mente humana representada por um “poder

racional” capaz de encontrar toda e qualquer solução para os

problemas cotidianos é o principal exemplo disso.

• a valorização do que podemos chamar de mito do “poder racional” é

constituída a partir da negação das sensações provenientes dos

sentidos, do corpo. Ao corpo, coube o estabelecimento das diferenças

físicas, genéticas sob as quais se construiu ao longo do tempo padrões

de estética e comportamento.

• as concepções que se apoiaram em dualidades em noções de correto

e errado, falso e verdadeiro, tomaram na racionalidade clássica e

moderna amplas dimensões que determinaram não apenas as

organizações sociais,mas as formas de pensar e agir humanas, que se

evidenciaram no estabelecimento de práticas de estigmatização e

negação das diferenças, em prol de uma suposta homogeneização

cultural, estética e comportamental.

• ao longo do tempo, podemos notar a provisoriedade das verdades e

com isso torna-se evidente que a historicidade é um elemento contido

não apenas na trajetória das humanidades, mas da própria vida no

planeta. Tudo está em movimento, tudo é histórico, processual e

inacabado.

• em um momento marcado pelo recomeço, que não indica a partida do

nada, mas de um sentimento de libertação ao imprevisto, se estabelece

na contemporaneidade um processo humano crítico-reflexivo que

envolve um exercício de revisão das diversas dimensões que

constituem não apenas a formação humana, mas a formação do

mundo da história da cultura, das sociedades. A abertura ao invisível e

Page 95: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

94

ao imprevisto surge como possibilidade de ampliação do

conhecimento, da própria compreensão humana e da vida em

sociedade.

De modo que a identidade humana assume caráter temporal, histórico. Ao

invés de identidades, temos identificações constituídas socialmente em meio a

tensões de força que traduzem o desejo de cada grupo social de acesso privilegiado

aos bens sociais. Portanto, a identidade nunca é inocente, é construída no jogo das

relações sociais, é jogo político, mas também é autoafirmação, sentimento, desejo,

possibilidade e vida.

Page 96: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

95

4 EXPERIÊNCIAS E APRENDIZAGENS: HISTÓRIA DE VIDA FAMILIAR

NARRADA E RECRIADA PELA “ROSA” QUE É O “PRETO”

Nesta seção, convidamos o leitor a adentrar na história de vida da Rosa,

buscando compreender os processos de construção de representações de si,

desenvolvidos ao longo de sua trajetória de vida, a partir das suas relações sociais

em seu contexto sociocultural.

Com esta análise, objetivamos destacar os elementos que se interligam

no processo de construção de identidades do sujeito em seu cotidiano, bem como

aqueles que contribuem de forma direta ou indireta na interiorização do sujeito de

identidades impostas, negando o caráter de historicidade humana, bem como os

elementos que favorecem a superação dessas identidades tidas como fixas, na

medida em que “identidade é historia, isto nos permite afirmar que não há

personagens fora de uma história, assim como não há história (ao menos história

humana) sem personagens” (CIAMPA, 1998, p.157).

Nesse sentido, destacamos as identidades construídas ao longo de sua

trajetória de vida, reveladas como identidades-metamorfose, as quais representam a

autonomia do sujeito em seu processo de humanização frente às condições sociais

que lhe impõem uma identidade pressuposta e re-posta pelas convenções sociais de

estigmatização da diferença em um processo de homogeneização dos sujeitos.

Para tanto, apontaremos os processos pelos quais as identidades são

construídas mediante as interrelações entre a atividade e a consciência do sujeito. A

articulação desses elementos possibilita a concretização das formas de

reconhecimento de si e do o outro por meio da prática social na qual se expressam

as representações de si. No processo de autonomia do sujeito na construção de

suas identidades, opera a consciência da temporalidade, de um estar sendo como

possibilidade de ser mais (CIAMPA, 1998, p.189).

Com o entendimento de que a construção de identidades, tendo em vista

as formas de representação de si de cada sujeito, é um processo humano de

aprendizagem, situamos na trajetória de vida da Rosa seus saberes e práticas

inseridos nos contextos culturais vivenciados em sua localidade e no Espaço

Acolher da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, após ter sido vítima de

escalpelamento.

Page 97: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

96

O relato da história de vida da Rosa foi feito no ambiente do Espaço

Acolher, envolvendo vários encontros, no período em que estava em tratamento de

saúde. Rosa atualmente teve alta do seu tratamento e está morando em Portel junto

com a sua família, tendo que vir à Belém somente para consultas de rotina.

4.1 QUANDO ROSA SE TORNOU “PRETO”: INFÂNCIA, DA LIBERDADE À

“PRISÃO”.

Preto, como esta mulher de 26 anos, mãe de quatro filhos, nascida em

Portel município do Estado do Pará prefere ser chamada, retrata sua infância como

um momento mágico por ser um período de recebimento de carinho dos pais.

Por exemplo, com três anos era bom né porque a gente tem o carinho da mãe, do pai. A gente leva uma vida tão especial que se não pudesse crescer... O colo da mãe é muito bom. Eu morava com os meus irmãos e meus pais lá em Portel, mas no interior, em Pacajá, a gente é onze irmão... deixa eu ver a quinta, eu sou.

Podemos notar que ao remetermos o diálogo à infância, logo ela é

atrelada à sua relação com a família e com sua localidade. Com isso, ela nos

apresenta os primeiros elementos que vão compondo a sua identidade, elementos

que lhe diferenciam de outras crianças e de outros moradores do seu município.

Trata-se da quinta filha de uma família formada por onze irmãos, que, juntamente

com seu pai e sua mãe, morava em um interior de Portel chamado Pacajá.

Então, na busca de expressar quem é Preto recorre às características de

seus pais (a mãe “carinhosa” e o pai “severo”), bem como suas ocupações e

religiosidade, elementos compartilhados em sua relação familiar:

Ele (pai) era realista,gostava de chegar com a pessoa e falar que ele não gostava daquilo.Ele era serrador, minha mãe era roceira, trabalhava na roça, no roçado, fazia farinha (...) o meu pai mexia com aparelho. Ele tocava, os pessoal dava contrato, aí ele levava o aparelho dele naquela festa dançante, aí a gente participava (....) A nossa religião nós somo, quando o meu pai, eu me entendi, o meu pai era evangélico, tem aquele negócio da pessoa desguiar né, aí meu pai se desguiou, mas não era evangélico e nem era católico sabe ele tava, agora ele é evangélico, eu sou evangélica, todinha a minha família.

Page 98: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

97

Preto indica a localidade de Pacajá como “meu rio”. O município de Portel

é caracterizado pela sua localização às margens do rio, no qual se estabelecem as

comunidades ribeirinhas, que constituem em sua relação próxima com a natureza

suas práticas sociais cotidianas, nas quais, os rios são essenciais vias de transporte,

alimentação e comunicação.

De forma que a expressão de sua prática cultural inscrita em sua

localidade funciona como elemento que lhe caracteriza, lhe diferencia, traçando as

referências que a situam em seu contexto religioso, comunitário e familiar. Segundo

Brandão (2002, p.41):

No espaço de tensão entre a necessidade (as suas limitações como ser da natureza) e a liberdade (o seu poder de transcender o mundo por atos conscientes de reflexão) o homem realiza um trabalho único que, criando um mundo da cultura e fazendo a história humana, cria a própria trajetória de humanização do homem.

Cultura e identidade se articulam como forma de expressão dos sujeitos

no mundo, enquanto seres distintos, que encontram na relação com a diferença as

possibilidades de situarem-se em um espaço e em um tempo do qual fazem parte,

não apenas como presença física, mas como produtores de significações que

perpassam pela história, ao mesmo tempo em que a essas novas significações são

incorporadas. A complexa condição humana de estar em constante formação é parte

de uma rede de práticas humanas que se estabelecem no âmbito aprendizagem.

Para Preto, o rio é seu território, sua casa, seu lugar, diferente da cidade

e do hospital onde estava internada, que é visto como um lugar estranho ao seu

cotidiano. O sentimento de pertencimento a um território, a uma localidade é mais

um recurso adotado pelo sujeito para a demarcação das fronteiras entre o que está

dentro e o que está fora, do lugar que o sujeito tem como referência cultural, que se

materializa em suas ações com a sua comunidade e em suas formas de representar

a si e o seu lugar.

A busca da referência cultural como recurso de construção das

identidades que “surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais,

linguísticas, religiosas” (HALL, 2002, p. 8) manifesta-se na relação com a diferença,

para nos estabelecermos como ser único.

Enquanto seres distintos, recorremos aos elementos que nos diferenciam,

que nos dão unidade em relação aos outros, é o que podemos denominar de

Page 99: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

98

processo de diferenciação, o qual pode ser construído por meio da assimilação dos

padrões de cultura, estética, gênero e comportamento hegemônicos.

Para Rosa, ser habitante da região amazônica, ser paraense, moradora

de Portel são condições que se apresentam como insuficientes para dizer quem é, e

então recorre à especificidade da localidade em que vive, que não é a cidade, nem o

campo, mas o rio Pacajá.

Mas, localizar-se em um território ainda não é suficiente para representar-

se, Rosa parte então para expressar o que faz. Nesse momento, podemos perceber

que a construção de identidades se dá na sua articulação com a consciência e a

atividade do sujeito. Trata-se das formas de reconhecimento de si como ser situado

em um contexto sociocultural, por meio de suas práticas sociais no trabalho, na

família, na comunidade. “O sujeito não é mais algo: ele é o que faz” (CIAMPA, 1998,

p.135).

O trabalho emerge como elemento de manifestação cultural, pois retrata

as práticas típicas de sua localidade, o que a identifica como pertencente a este

contexto. O sujeito deixa de ser substantivo (nome) e passa a ser verbo (ação):

Nossa linguagem quotidiana tem dificuldade de falar do ser como atividade- como acontecer, como suceder. Acabamos por usar substantivos que criam a ilusão de uma substância de que o indivíduo seria dotado, substância que se expressaria através dele (CIAMPA, 1998, p.133).

Para se representar, Preto recorre, então, às suas práticas na infância,

que a diferenciavam das outras meninas, indicando que não gostava de estar em

casa como suas irmãs. Em suas principais lembranças, o trabalho na infância estava

ligado à brincadeira:

eu gostava de tá mais trabalhando, de tá na roça com a minha mãe, brincava, ajudava em casa tirava farinha.Trabalhava na roça, brincava de boneca, de bola...eu gostava mais de brincar com as minhas primas que com as irmã não se unia pra brincar, nós brigava, com as minhas primas dava mais certo.

As identidades se materializam na forma de representação que cada

sujeito faz de si quando “compareço como representante de mim [...] desempenho

papéis decorrentes de minhas posições [...] quando reponho no presente o que

tenho sido, quando reitero a representação de mim” (CIAMPA, 1998, p.179).

Page 100: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

99

Preto, que na verdade é o apelido da protagonista desta história real, não

apresenta afinidade com o seu nome de batismo dado pelo pai, “Foi o meu pai,

porque ele achou bonito né e colocou o nome de todos com ‘R’ ”, pois a mesma se

reconhece como Preto.

O nome de cada sujeito funciona como um elemento marcante no

processo de identificação, ele ganha significado a partir das relações constituídas

com o outro. Normas e padrões são estabelecidos socialmente para designar e

diferenciar pessoas, assim, a denominação de uma pessoa convencionada

coletivamente, por exemplo, um apelido, é marcado por acontecimentos

significativos na história de vida de cada sujeito, que toma parte na construção da

representação de si.

De tal forma que Preto, ao ser chamada pelo seu nome de batismo, não

se reconhece como indica a sua fala: “aí eu achava esquisito chamar “Rosa” a

modo que aquilo não era nem, a modo que não tava nem me chamando”. Assim, “a

identidade, que inicialmente assume a forma de um nome próprio, vai adotando

outras formas de predicações, como papéis especialmente” (CIAMPA, 1998, p.134).

Mas por que Rosa, sendo mulher, identifica-se tão fortemente com um

apelido considerado masculino? Tal identificação apresenta um conjunto de

significados e atribuições dados a ela, que foram estabelecidos no cotidiano da sua

comunidade. Não significa dizer que as identificações e atribuições dadas aos

sujeitos são assimiladas de forma passiva, mas que podem ser incorporadas e

interiorizadas pelos sujeitos fazendo parte da sua vida.

Interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso. A tendência é nós nos predicarmos coisas que os outros nos atribuem. Até certa fase essa relação é transparente e muito efetiva; depois de algum tempo, torna-se menos direta e visível; torna-se mais seletiva, mais velada e (mais complicada) [...] O nome é mais que um rótulo ou etiqueta: serve como uma espécie de sinete ou chancela, que confirma e autentica nossa identidade. É o símbolo de nós mesmos (CIAMPA, 1998, p.134).

A identidade assume forma de personagem, dotada de características e

práticas distintas a cada sujeito, que são convencionadas socialmente. Tais

atribuições podem parecer como estáticas, dando a impressão de atemporalidade à

condição humana. No jogo das relações sociais, várias identidades são construídas

em um processo contínuo de transformação do sujeito, no entanto, “a metamorfose

Page 101: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

100

pode parecer como não-metamorfose, como não-movimento, como não-

transformação” (CIAMPA, 1998, p.148).

Rosa nos explica quando passou a ser chamada de Preto, sendo um

momento marcante da sua infância que possibilitou a vivência de novas experiências

e uma nova forma de vida:

quando eu era gita, meu pai só teve um homem primeiro ele e a minha mãe.O resto foi só mulher, só teve um filho homem e era o mais velho.Como ele não tinha parceiro né, ele cortou o meu cabelo baixo pra andar com ele. Ele era serrador,não tinha parceiro pra ele andar pro mato,aí ele agarrava me fez de homem,cortava o meu cabelo como de homem.Eu ia com ele pra segurar linha pra ser acompanhante dele.Foi por isso que ele colocou o meu apelido Preto, pra mim ser o parceiro dele do mato e outra pra os pessoal não falar né, que ele andava com filha mulher pros pessoal não falar. Aí o meu pai cortou o meu cabelo bem baixinho parecia um homem, comprava roupa de homem pra mim, cortou o meu cabelo bem baixinho, colocou o meu apelido de Preto, não era Preta, era Preto!

A necessidade de ajuda na renda familiar fez de Rosa, ainda criança, um

menino, que acompanhava o pai no trabalho de derrubada de árvores. Nessa fase,

ela se representa como uma “moleca” que não estava preocupada em ser menina

ou menino, pois o desejo de liberdade era o que lhe movia. Para ela, liberdade

significava não viver “presa” dentro de casa como as suas irmãs, fazendo as funções

domésticas. E quando questionada se aos sete anos de idade ficou triste por se

vestir de homem, cortar os cabelos e trabalhar na mata, logo vem a resposta coberta

de risos, preocupando-se em explicar qual era a sua função neste trabalho:

nem liguei né porque eu era moleca ainda aí ... só pra segurar linha mesmo pra ele. Tem que colocar uma linha em cima da tora da madeira pra levar pra serrar tudo certo, aí através daquela linha a serragem sai também.

No processo de construção de identidade, cada sujeito estabelece,

embora não de forma estável ou fixa, suas relações com o gênero a partir de suas

referências sexuais e de gênero. Esses processos que tomam corpo na construção

das identidades de cada sujeito, tendo em vista fatores, como classe social, história

de vida, etnia, estética, dentre outros, estão diretamente ligados às condições de

Page 102: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

101

tensões de poder estabelecidas nas relações sociais, as quais podem fazer com que

atue o caráter de ocultação de identidades, tendo em vista os padrões instituídos a

partir de critérios e modelos de normalidade.

Em nossas relações com os outros, assumimos vários papéis como

membros de uma família, de uma localidade, de uma igreja, dentre outros, condição

em que vivemos um processo de exposição e ocultação das várias identidades que

construímos. Assim, Rosa tornou-se parceiro do seu pai, tornou-se Preto: “foi o caso

que ele tratava eu como um homem”.

Apesar de vestida como homem, Rosa se identificava como mulher e

apresentava ter mais afinidade com a sua mãe, como expressa a sua fala: “a minha

mãe porque ela era mulher igual eu e com a mãe da gente a gente pode é...

conversar os segredos da gente, porque tem o dia-a-dia, tem os medos da gente e

com o pai é difícil de conviver”.

Transformá-la em homem foi o recurso utilizado por seu pai para justificar

a sua ausência no ambiente doméstico, o qual seria o seu ambiente legítimo, e, aos

poucos, Rosa foi sendo reconhecida em sua comunidade como homem:

todo mundo falava lá que não conhecia, que nesse tempo né todos os moradores do rio, lá é grande, era pouco morador, e as pessoa pensava que eu era homem, porque toda vestida de homem, tinha cabelo bem baixinho. O meu apelido era Preto.

Ser integrante de instituições, como igreja, família e escola, são

elementos tomados pelo sujeito em seu processo de identificação. No entanto, a

participação ou a ocupação de um lugar em cada instituição que faz parte da vida

cotidiana do sujeito é determinada pelos fatores socioculturais, os quais estão

atrelados aos processos de estabelecimento das diferenças, momento em que

recorremos aos marcadores sociais, como gênero, classe, etnia, estética (LOURO,

2008, p.60).

Essas condições ficam evidentes nos relatos da Rosa sobre as suas

práticas cotidianas em sua localidade. Sua mãe e principalmente seu pai indicaram

as formas de atenção dadas aos seus filhos e ocupações, tendo em vista o gênero e

a cor da pele.

É uma família assim premiada. E teve uma irmã que é meia branca, aí ela era o xodó do meu pai. Só ela era branca todos

Page 103: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

102

nós era moreno, então ela era meia branca, (o pai e a mãe moreno),aí notava que a gente um pouco... eles davam mais carinho pra ela, ele (pai) não queria que ela trabalhasse na roça, no sol pra não ficar morena e o caso foi que eu comecei a trabalhar com a minha mãe, a gente foi pegando o trabalho da roça, foi o caso que eu não pude ter estudo porque eu trabalhava mais com a minha mãe do que eu tinha estudo.

Rosa, ao ser questionada sobre a sua raça, se indica como “preta”,

cabendo a ela o trabalho braçal, na roça, ao sol, no entanto, sendo mulher deveria

como sua irmã estar no espaço doméstico.Como “naturalizar” a saída da Rosa deste

espaço e da aprendizagem das funções domésticas para dedicar-se somente ao

trabalho da lavoura com sua mãe ? Ou na serragem das árvores nas matas com seu

pai? A primeira solução encontrada, que foi a de “transformá-la” em homem, não

dava conta de estabelecer as diferenças entre os filhos, então se recorreu à cor da

pele.

Dessa forma, ao “Preto” cabia o trabalho na roça e na floresta e não os

estudos:

Porque o meu pai era serrador nessa época né serrava, acho que você sabe né de motosserra, aí como não tinha é a pessoa que fosse segurar a linha pra ele, pra baixar, aí como os pessoal gosta de falar muito, tem pai que se serve de filha aí, foi o caso que ele tratava eu como um homem.

Da mesma forma que as identidades são construídas mediante as

relações sociais de poder, tais relações são atravessadas pelas diferenças,

estabelecidas a partir da necessidade de cada sujeito fazer distinções do que está

sendo ou não está sendo, de espaços ou ambientes dos quais faz parte e,

principalmente, sua diferenciação em relação ao não-eu.

A partir da relação com o outro, são estabelecidas as diferenças em suas

dimensões objetivas e subjetivas. No entanto, o ser diferente pode assumir um

caráter de negação do não-igual, tendo em vista a manutenção das formas de

hierarquização entre sujeitos e culturas, as quais se mantêm na adoção de critérios

estéticos comportamentais, objetivando uma espécie de padronização dos seres

humanos.

Page 104: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

103

No entanto, a diferença não se apresenta de forma simplista como o que

está dentro e o que está fora ou o que é masculino e o que é feminino, mas a partir

das diferentes posições do sujeito, que podem se tornar conflitantes, oscilantes e

percebidas de forma distintas.

De fato, os sujeitos são, ao mesmo tempo, homens ou mulheres, de determinada etnia, classe, sexualidade, nacionalidade; são participantes ou não de uma determinada confissão religiosa ou de um partido político... Essas múltiplas identidades não podem, no entanto, ser percebidas como se fossem “camadas” que se sobrepõem umas às outras, como se o sujeito fosse se fazendo “somando-as” ou agregando-as. Em vez disso é preciso notar que elas se interferem mutuamente, se articulam; podem ser contraditórias; provocam, enfim, diferentes “posições” (LOURO, 2008, p.51).

Nas instituições sociais, há a demarcação implícita ou explicita, tendo em

vista as diferenças estabelecidas, dos que estão dentro ou fora, dos que mandam ou

obedecem, dos espaços nos quais os indivíduos podem ou não transitar e como

devem se comportar. Louro (2008, p.60) contribui com esse debate ao problematizar

as relações de gênero, diferença e identidade estabelecidas dentro das instituições.

Ao longo da história, as diferentes comunidades (e no interior delas, os diferentes grupos sociais) construíram modos também diversos de conceber e lidar com o tempo e o espaço: valorizaram de diferentes formas o tempo do trabalho e o tempo do ócio, o espaço da casa ou o da rua; delimitaram os lugares permitidos e os proibidos e determinaram os sujeitos que podiam ou não transitar por eles; decidiram qual o tempo que importava (o da vida ou o depois dela); apontaram as formas adequadas para cada pessoa ocupar (ou gastar) o tempo [...]. Através de muitas instituições práticas, essas concepções foram e são aprendidas e interiorizadas; tornam-se quase “naturais” (ainda que sejam “fatos culturais”). A escola é parte importante desse processo.

Rosa, quando relata sobre sua experiência escolar nesse período, indica

“sou burra”, por estar excluída das oportunidades de aprender a ler e escrever, bem

como de aprender os conteúdos escolares. Possibilidade que foi dada à sua irmã.

Quando perguntamos se sua irmã branca conseguiu estudar, temos como resposta:

Conseguiu, até a terceira (série) porque nesse tempo era o meu irmão que era professor e ela estudava com ele. Como naquele tempo as pessoas tinha como é um ... que a gente era prendida pelos pais nossa mãe. Meu pai com a minha mãe não deixaram a gente sair pra outra paragem pra cuidar, pra gente estudar, ter uma sabedoria a mais. Foi o caso que todo mundo parou, que o meu irmão parou de ser professor. Naquela época era uma coisa que não tinha escola como agora tem. Se

Page 105: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

104

saísse, só podia ir outra pessoa que pudesse bem ler, aí quando não tinha essa pessoa de alto niver né não foi, ficou tudo parado.

A partir dessa fala, podemos detectar os elementos que estão interligados

no processo de estabelecimento da diferença para a construção da identidade. Para

Rosa, não ter vivenciado a experiência educativa escolar, significa possuir um

deficit, ser inferior e, por mais que lhe tenha sido negada a simples tentativa de ter

tal experiência, a sua identidade é incorporada à ideia de fracasso ou de não

adequação aos critérios de escolaridade por ser mulher, trabalhadora da roça e

“preta”.

Fenômeno social que Freire (1987) indica como autodesvalia, situação

em que o sujeito introjeta, assume como reais as determinações do outro sobre si.

Condições que se estabelecem nas relações interpessoais constituídas nas

fronteiras entre o que oprime e o que é oprimido.

Como a escola, historicamente, foi intitulada como espaço legítimo do

saber, que ultrapassa os limites da aquisição de conteúdos científicos, ao funcionar

como reprodutora das condições sociais dominantes, atua sobre as relações sociais,

sobre as concepções de ser humano e sobre o corpo de seus alunos. Segundo

Charlot (2000), aquele que não se enquadra nas condições de aprendizagem e

comportamento, logo, é o fracassado escolar, o que não sabe, portanto, um sujeito

inferior.

Aspectos que demonstram uma concepção de sujeito pré-determinado a

uma ocupação social, referência da racionalidade clássica, na qual, cada ser

humano nasce com uma essência imutável que lhe garante uma atividade social

determinada. Ser de identidade fixa e de capacidades limitadas por regras

socialmente estabelecidas.

Mesmo para quem não esteve no ambiente escolar, essas concepções

são assimiladas, na medida em que nas relações de aprendizagem estão presentes

as demarcações das diferenças e das identidades. ”Sob novas formas, a escola

continua imprimindo sua ‘marca distintiva’ sobre os sujeitos. Através de múltiplos e

discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-se os corpos e as mentes”

(LOURO, 2008, p.62).

Em sua infância, Rosa via as possibilidades de estudar em uma escola

como um sonho que não poderia ser realizado no seu rio:

Page 106: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

105

Eu tinha um sonho de sempre assim como é... o serviço do interior é pesado e eu ainda era um pouco pequena né, aí eu tinha muita vontade de vim, que eu tenho uma tia que mora aqui em Belém, aí eu tinha vontade de vim com essa minha tia prá mim estudar,ser alguma coisa na vida. Só que o meu pai dizia que não, ele tinha condição de nos criar sem deixá pelo canto dos outros. Aí, eu não teve essa, não realizei meu sonho. Eu queria ser alguma coisa, mas não um pessoal lá de alto niver, mas uma profissão que não desse pra mim morar mais no interior né, pra mim morar na cidade viver do meu emprego, viver da minha sabedoria.

Estudar significava mudança de vida, significava deixar de ser alguém

inferior, incapaz, “burra” e escrava, para ser alguém que poderia ter outra ocupação

que não fosse o trabalho braçal ao sol, para ser sábia e independente.

O desejo e a busca de novas perspectivas de vida, materializadas na

construção de novas identidades do sujeito, caracterizam seus processos de

humanização, a negação de sua historicidade é o que a desumaniza, e retrata a sua

morte simbólica.

Enquanto atores, estamos sempre em busca de nossas personagens; quando novas não são possíveis, repetimos as mesmas; quando se torna impossível tanto novas como velhas personagens, o ator caminha para a morte, simbólica ou biológica (CIAMPA, 1998, p.157).

Em sua comunidade, Rosa, ao viver a infância como menino, o Preto, não

precisava ficar “trancada em casa”, com isso, conheceu melhor os caminhos das

matas, e aprendeu a brincar as brincadeiras convencionadas aos meninos, a viver

livre no seu rio. Quando questionada se gostava de ser menino, a resposta é

imediata:

Logo no começo eu gostei, gostava de tá como menino... a gente brincava uma bola, saia de casa né. Aí eu gostava porque o meu pai assim como eu tô dizendo, ele nunca gostou das filha dele tá no meio de homem,de tá saindo.Eles sabiam que eu era mulher, a maioria.Os que morava perto sabia, mas os outro que não morava não sabia.Naquele tempo morava pouca gente dentro do rio, era pouca gente, era só família mesmo que morava dentro do rio. Aí os outro que iam chegando iam se colocando eles não sabiam, levava eu como um homem mesmo, era Preto! Preto! Olha o filho do João.

Page 107: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

106

Preto! Fala pro Preto te levar em tal paragem, aí eu ia, mas aí eles não percebiam que eu era homem ou se eu era mulher.

Assim, o apelido Preto foi tomando na vida da Rosa todo um significado

que se concretizava em suas representações de si. O Preto da infância era uma

moleca disfarçada de menino que vivia dentro de um rio que era seu. Era aquele

menino-moleca que conhecia as “paragens”, que trabalhava no roçado e na

derrubada das árvores, trabalhava pesado em baixo do sol, menino da pele preta,

conhecido por muitos, mas excluído da escola, menino que não aprendeu a ler nem

escrever e que guardava um sonho de ser alguém de “alto niver”, que um dia viria

para cidade estudar e deixar de ser burro, menino de sonhos.

Podemos notar que, por meio das representações sociais construídas e

estabelecidas em sua localidade e em sua família sobre as diferenças de

capacidade a partir de padrões de gênero, estética e etnia, Rosa foi construindo as

representações de si por meio de sua experiência de exclusão do ambiente escolar

e da negação da sua feminilidade.

As representações sociais, enquanto forma de conhecimento construído

por meio da comunicação entre os sujeitos, demandam compreensões, afirmações e

atitudes humanas que operam sob o seu caráter convencional e prescritivo. Por

estarem impregnadas de valores tradicionalizados na vida cotidiana, se constituem

como “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração

de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos” (MOSCOVICI, 2003 apud

SÁ, 1993, p.31).

Atualmente, mesmo depois de adulta, Rosa é reconhecida em sua

comunidade e se reconhece como Preto: “e aí até agora as pessoa, Preto! Preto! aí

até hoje até com o cabelão é. Aí eu achava esquisito chamar Rosa a modo que

aquilo não era nem eu, a modo que não tava nem me chamando”.

O apelido, ao mesmo tempo que lhe remete ao trabalho forçado na

infância, lhe traz a lembrança da liberdade que para ela significava poder sair de

casa, andar nas matas e nos rios, conhecer pessoas, se divertir, brincar.

Com o passar do tempo, chegou o momento em que o menino- moleca

começou a se reconhecer como mulher, período em que a família saiu da área

ribeirinha, localidade de Pacajá, e morou em Portel:

Page 108: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

107

Quando eu fui me entendendo, eu assumi né que eu era mulher mesmo porque eu não tinha que ser homem [...] Como mulher não tinha liberdade, como homem não, porque os outro não sabiam que eu era, se eu era mulher né.Quando a gente veio passar pra cidade, aí que eu comecei crescer, comecei entender que eu era mulher. Eu comecei a vestir saia, os pessoal caçoavam de mim que eu era macho fêmea porque eu vestia saia e a minha mãe dizia: Não, ela é mulher! Aí dizia não, ela é homem! Tinha vez que eles tiravam a minha roupa pra mostrar mesmo que eu era mulher.

Ao se tornar menina-mulher, Rosa teve, como suas irmãs, de ficar no

espaço doméstico e aprender as funções “da mulher”, estabelecidas pelos seus

pais, e com isso perdeu a brincadeira de bola, os caminhos pelas matas e rios, que

era a sua experiência frequente, porém, o trabalho no roçado continuou já que era

uma atividade essencial para o sustento da família. Trabalho do qual Rosa

apresenta com orgulho os seus saberes adquiridos ao longo da sua vivência na

lavoura: “sei fazer farinha d’agua, farinha de tapioca, pé de moleque, beju grande,

beju baré, de mandioca mole, tem o beju chica”.

4.2 DA REVOLTA: O PRETO MOLECA SE TORNA MÃE-MULHER

Esse período é marcado pela transição da infância para a adolescência e

vida adulta. Rosa que, aos doze anos de idade, já tinha se assumido em sua

feminilidade, já com seus cabelos longos e vestida com roupas femininas,

representava a sua casa como uma prisão, o seu reconhecimento como mulher

esteve ligado ao sentimento de perda da liberdade e ao sentimento de revolta, que

marca um período turbulento em sua vida. Nessa fase, Rosa se representava como

uma pessoa presa e revoltada:

Pra mim foi difícil porque o meu pai não queria, porque eu era ainda pequena mas como teve a revolta teve que deixar eu fazer o que eu queria, por exemplo, estudar que eu não tinha a minha liberdade, só trabalhar,só trabalhar,aí foi a revolta porque eu falei pra mim viver presa mais antes eu arranjar marido, porque antes prende, prende, eu não tinha aquela liberdade, eu só podia sair se fosse com o meu pai, minha mãe ou então com a minha vó, tá entendendo, aí eu achei que eles queriam o meu mal e eu queria assim sair pra festa pra até namorar.

Page 109: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

108

A determinação de papéis sociais atribuídos a cada sujeito toma corpo no

discurso e são assimilados como naturais às práticas de discriminação e exclusão

social. Por exemplo, ao longo da história, couberam à mulher o isolamento e o

silenciamento, a reclusão ao ambiente doméstico, visto como condição natural.

E apesar de a mulher já ter conquistado a adoção das mais variadas

práticas no âmbito da família e do trabalho fora do ambiente doméstico, e

apresentar-se, muitas vezes, como mantenedora financeira da família, atribui-se a

mulher o ônus da chamada “jornada tripla”, na qual cumpre suas obrigações

domésticas.

Segundo Azerêdo (2007, p.30), isso ocorre porque o “significado de

mulher tem se mantido estável através dos tempos, continuando a pertencer- pelo

menos metade- ao mundo dos homens, incorporando os valores do ‘modelo fálico’24

”. Assim, a linguagem por meio dos processos de significação dá materialidade ao

preconceito. Segundo Azerêdo (2007, p.28):

é assim que se produz o preconceito através da linguagem, em nossos corpos, num processo de reiteração em que somos agentes, mas no qual não reconhecemos nossa agencia, já que faz parte desse processo apagar os traços de nossa participação de modo que as palavras e as coisas apareçam como dadas, naturais, mantendo uma relação direta, imediata entre elas independentes de nós.

Bakhtin (1999) aponta tanto para o caráter de sujeição como de agência

do sujeito na apropriação do sentido das palavras e é nesse processo de

aprendizagem que podem ser rompidas as suas determinações sociais e

transformadas. Nessa dinâmica, temos os processos de agência, pois cada sujeito

incorpora os significados, e de sujeição porque o significado é incorporado também

por outras pessoas. Portanto, a sujeição está nessa via dupla de subordinação do

poder e de tornar-se sujeito.

Para Rosa, a liberdade estava fora de sua casa e a forma que encontrou

para consegui-la foi casando-se aos doze anos de idade. Em sua localidade, fazia

parte das tradições de seu povo a escolha do marido ser feita pelo pai da moça: “ é

24 O falo significa a “representação do pênis, adorado pelos antigos como símbolo da fecundidade da

natureza” (Novo Aurélio, século XXI).

Page 110: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

109

o pai que escolhe, olha tu tem que casar com fulano , não era a gente que escolhia

era ele,então, assim nunca dá certo porque o pai quer uma coisa e a gente quer com

outro, aí foi a minha revolta” . Rosa rompeu com a tradição escolhendo e

conquistando o seu marido:

A gente era amigo, aí como o meu pai me prendia, então eu cheguei e falei se ele quisesse casar comigo eu queria até porque ele falou que não porque a idade dele era maior que a minha, ele tinha 20, eu era uma criança.Ele dizia que eu ia crescer, ia enxergar outro mais bonito, que eu ia desprezar ele, eu tava crescendo, tava na infância, eu tinha que ter a minha soltura quando eu crescesse, aí quando eu ia enxergar mais isso, não ia dar certo, não ia querer ele. Aí eu disse que não que eu não ia fazer isso, foi que eu conquistei ele sabe. A gente casou, a gente ficou... eu ainda apanhei do meu pai, a gente ficou três meses sem abençoar, foi difícil.

Nesse momento, a coragem de sair de casa se revela como uma forma

de contestação e recusa ao cotidiano de vida que lhe era imposto, de negação da

sua possibilidade de ter acesso à educação escolar e de ter novas perspectivas de

vida. A ousadia começou a fazer parte da representação que a Rosa fazia de si.

Em um momento em que se reconhecia como uma criança, o casamento

foi a solução encontrada para ter a liberdade. Quando questionada se outras

meninas, suas colegas ou irmãs escolheram o seu marido, ela responde: “não... só

que elas não tiveram essa coragem... não... elas casaram mais velha, elas era mais

velha do que eu... eu apanhei antes de sair”.

Assim, aos doze anos de idade, Rosa casou-se, mas ainda se reconhecia

como uma criança “achava que eu era uma criança ainda né”, e a liberdade

almejada não foi encontrada “foi uma coisa pela outra né”, momento em que lhe

foram apresentadas novas exigências, agora como esposa e dona de casa:

Como eu assim não entendia muito de cozinha, pra mim foi difícil porque eu teve que aprender, porque como eu tô dizendo eu gostava mais da roça do que da cozinha, então na cozinha quem ficava era essa minha Irmã que é metida a branca sabe, o papai dizia que ela era do lado esquerdo, que era do lado do coração, então ela fazia as coisas na cozinha.Quando eu me ajuntei com ele (marido) foi difícil porque era a mãe dele que tinha que fazer pra mim, até eu me acostumar, sabe? Ela ia me ensinando a fazer comida, a amassar o açaí, foi até que eu

Page 111: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

110

voltei a ser o que eu era, eu comecei a trabalhar, a acordar cedo,não teve muita diferença.

Podemos notar a forte relação que o trabalho tem na construção da

identidade de Rosa, após a revolta e a saída de casa, ela volta a ser o que era-

trabalhadora da roça, excluída da escola.

O marco da passagem da fase de criança para a sua vida adulta está

diretamente relacionada à maternidade. A representação de si como criança

encontra-se demarcada não apenas pelo fator idade, mas também porque o outro

(seu marido) a reconhecia como uma criança:

Foi que eu passei três anos sem criança, nesse momento eu ainda achava assim que eu era uma criança. Ele (marido) dizia sempre que eu era a filha caçula dele sabe, porque ele não tinha uma criança pra agradar. Aí ele perdia o tempo dele comigo sabe, ficava agradando, quando eu queria dormir embalava e aquele carinho todo NE?

É nesse contexto que a construção das identidades ocorre por meio das

percepções apresentadas pelo outro o não eu:

o caráter temporal da identidade fica restrito a uma momento originário- como se fosse uma revelação de algo preexistente e permante-, quando de fato, nos tornamos nossas predicações; interiorizamos a personagem que nos é atribuída; identificamo-nos com ela (CIAMPA, 1998, p.163).

Quando Rosa se reconhecia e era reconhecida em sua família ainda

como uma criança, aos quatorze anos de idade, toma uma atitude de grande

responsabilidade. Sua mãe apresenta complicações no parto e falece, deixando seu

irmão órfão, pois seu pai não aceitou a criança como um filho. Acontecimento que

marcou fortemente a sua vida:

Foi a perca da minha mãe (ela morreu com 30 anos) ela era uma mulher forte, foi um choque muito grande, ela não quis ir pro hospital, ela morria de medo e morreu sempre, né? Uma pessoa importante, ela era amiga, era mãe-amiga, uma pessoa especial, né? quando ela vinha pra cidade sempre ela levava um presente pra mim, carinhosa (...) foi o caso que quando a mamãe morreu o papai perguntou se ela (irmã branca) queria ficar com o pequeno, porque apesar que eu tinha marido mas eu não tinha uma responsabilidade, né? que eu não tinha filho,

Page 112: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

111

mas ela disse que não queria porque o culpado da morte da mamãe era o pequeno, porque se a mamãe não tivesse grávida dele ela não tinha morrido que o papai podia dar pra quem ele quisesse que ela não queria.O papai perguntou se eu queria, se eu tomava uma responsabilidade, eu disse que primeiramente eu ia colocar Deus na minha frente, que eu não queria que ele desse pra outra pessoa, que tinham outras pessoas que queriam né a criança só que eu disse que não. Falei pra ele não dá pra outro porque daqui mais uns dia eu ficar vendo as pessoa bater no meu irmão, eu não ia gostar né aí a minha avó também a mãe dele chamou falou pra ele que era pra ele confiar em mim e entregar o pequeno pra mim que eu ia dar conta.Eu já tava com o meu marido, eu tinha uns catorze anos já, aí foi que o papai me chamou, chamou eu chamou a minha avó e entregou o pequeno pra nos. Aí o meu marido veio de Portel quando ele foi já levou o bebê que tomou a responsabilidade pelo meu pai, porque meu pai ficou abalado. Aí a gente passou a cuidar do pequeno e graças a Deus tá indo até hoje, ele chama de mãe pra mim e pai pro meu marido.

A partir desse período, Rosa teve que aprender a cuidar de outra criança,

com o apoio do seu marido. No entanto, apesar de ter assumido a responsabilidade

de mãe, ainda não se considerava uma mulher.

Sua representação como mulher fica ocultada devido o período em que

não engravidou e a culpa tomou conta de seu dia-a-dia. O fato de não engravidar

contribuía para a assimilação de uma condição de incapacidade e inferioridade

diante das outras mulheres. Caracterizando a interiorização de uma identidade

pressuposta que era re-posta nas reuniões de família, o que causava um sentimento

de vergonha, fazendo com que Rosa se representasse como incapaz a partir da

representação do outro sobre ela mesma.

Para Ciampa (1998), a identidade pressuposta é (re)atualizada por meio

dos rituais sociais e vista como algo dado e não como sendo (re)posta

continuamente, por meio da prescrição de condutas corretas e da reprodução do

social. Em seu relato, Rosa nos expressa a opressão vivida pela exigência coletiva

de estabelecer-se como mulher por meio de uma gravidez:

Foi porque eu não engravidava, aí eu passei três anos que não engravidava. Os pessoal começava a falar que o meu marido tinha problema então era eu, aí começava a caçoar. Eu me sentia culpada, me sentia vergonhada, que só deixava pra falar

Page 113: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

112

quando ia assim pra igreja. Tinha muitas pessoa aí minha irmã começava a falar. Eu fez esse voto, se Deus me desse filho eu não mandava me operar e nem tomava remédio. Aí foi que eu engravidei .

Sua condição de mulher foi estabelecida para si e para a sua comunidade

a partir da gravidez aos dezesseis anos de idade:

Depois que eu engravidei, já veio o filho né, aí eu fui me sentindo mulher, mulher pra tomar conta de uma casa,dos filho, marido, eu fui ter uma responsabilidade sabe maior. Eu já me via como uma mulher com responsabilidade comecei a trabalhar mais. Eu já foi ter meus filho,aí eu fui tomar mais responsabilidade como mulher, foi melhor né? porque na adolescência a gente não tem compromisso com nada com ninguém chega já tá tudo feito que a mãe da gente faz e quando a gente casa chega os filho já muda né? a gente tem que fazer, que cuidar dos filho, tem que trabalhar, é mais compromisso né?, tem que ter mais uma responsabilidade.

Para Louro (2008, p.24), o gênero é “constituinte da identidade dos

sujeitos”, no entanto, a convenção social dos papéis masculinos e femininos

estabelece uma concepção reducionista de ser humano, que encontra nas

diferenças condições de discriminação social daqueles que não se enquadram

dentro de uma concepção de mulher que foi construída tendo o homem como

referência.

Papéis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrarias que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de portar [...]. As desigualdades entre os sujeitos tenderiam a ser consideradas no âmbito das interações face a face. Ficariam sem exame não apenas a múltiplas formas que podem assumir as masculinidades e as feminilidades, como também as complexas redes de poder que (através das instituições, dos discursos, dos códigos, das práticas e dos símbolos [...]) constituem hierarquias entre os gêneros (Louro, 2008, p.24).

Ultrapassar os limites das determinações de papéis nas reflexões sobre

as condições e ocupações sociais da mulher e do homem na sociedade pressupõe

adentrarmos no mundo da cultura a partir da construção dos significados atribuídos

a objetos, formas de agir e pensar:

Page 114: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

113

Nessa perspectiva admite-se que as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes dos gêneros. Estas práticas e instituições “fabricam” os sujeitos. Busca-se compreender que a justiça, a igreja, as práticas educativas ou de governo, a política e etc. são atravessadas pelos gêneros: essas instâncias, práticas, espaços sociais são “generificados”- produzem-se, ou “engendram-se”, a partir das relações de gênero (mas não apenas a partir dessas relações, e sim, também, das relações de classe, etnia, etc.) (LOURO, 2008.p.25).

O sentido do que é ser mulher sofre mudanças, à mulher são

estabelecidas novas atribuições, por mais que venha se dando de forma lenta, tais

atribuições vêm sendo incorporadas às práticas sociais cotidianas, nas formas

diversas de relacionamentos, tendo em vista as multiplicidades de elementos que

constituem a construção de identidades e os novos arranjos sociais estabelecidos na

contemporaneidade. Segundo Hall (2002, p.7):

Nenhuma identidade singular - por exemplo, de classe social - podia alinhar todas as diferentes identidades com uma “identidade mestra”, única abrangente, na qual se pudesse, de forma segura, basear uma política. As pessoas não identificam seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou como uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades da pessoa possam ser reconciliadas e representadas. De forma crescente, as paisagens políticas do mundo moderno são fraturadas por identificações rivais e deslocantes-advindas especialmente da erosão da “identidade mestra” da classe e da emergência de novas identidades, pertencentes a nova base política definida pelos novos movimentos sociais.

No entanto, ainda é dominante no cenário contemporâneo o exercício de

condições sociais que funcionam como determinadores do que cabe a cada sujeito

ser e agir, em que se tornam agente o preconceito e os elementos que alimentam a

compreensão de sujeito sob a perspectiva da fixação de suas identidades.

Aos vinte e cinco anos de idade, Rosa apresenta-se como mulher, mãe, e

trabalhadora da roça. A partir do nascimento dos seus filhos, o trabalho não mais a

escravizava, pois representava a sua parcela de responsabilidade como mulher de

contribuir no sustento dos filhos:

Eu me sentia uma mulher formada, pronta pra enfrentar a realidade, ter compromisso, já era mãe, já tinha já que trabalhar pra ajudar o marido né porque, depois que a gente tem um compromisso, a gente tem que ajudar o marido.

Page 115: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

114

Nesta fase da vida em que Rosa não se representa mais como escrava e

passa a representar-se como a mãe responsável pelos seus filhos, podemos notar

que, nos processos de construção de identidades, são atribuídas significações às

atividades do sujeito no mundo, ao saber prático.

O casamento aos doze anos de idade foi motivado pelo desejo de reaver

a liberdade que tinha quando vivia disfarçada de menino e pelo desejo de estudar.

Já mulher não tinha mais o sonho de vir morar na cidade e ser alguém de “alto

nível”, não se sentia mais numa prisão, pois hoje é responsável pelos seus filhos e o

melhor lugar para criá-los é no seu rio:

Eu quero tá no interior,quero é que meus filho também não se acostumar na cidade que é um clima preso, tem que ficar preso, tem que tá com cuidado, então lá não eles tem toda liberdade eu prefiro tá onde eles querem tá,então, é no interior que eles querem tá não quer mudar.

Porém, a identidade pressuposta de incapacidade e inferioridade por não

ter acesso aos estudos foi reposta ao longo de sua vida, ficando oculto o caráter

temporal de sua identidade como uma sucessão do que está sendo. No entanto,

Rosa luta para realizar o sonho de aprender a ler e escrever e relata o que na

infância e na vida adulta se apresentaram como dificuldades de concretização deste

sonho:

Eu cheguei a ir depois eu foi uns dois três dias, mas como eu tinha trabalho,a minha mãe não gostava que eu saísse porque atrapalhava o trabalho sabe. Depois que eu me ajuntei com o meu marido antes deu vim pra cá eu estudei lá numa escola, foi aprendi a ler porque eu estudava na escola, estudava com a minha irmã em casa, aí eu estudava na escola foi que eu foi se enturmando um pouco.Só que é o caso depois que a gente tem marido, tem filho já não tem aquela coisa quando é solteiro, a gente vai a mãe fica né fazendo as coisas e chega tá tudo feito aí é o caso que eu ia um dia noutro dia eu não ia né porque tinha que fazer a janta pra quando o filho chegar,porque eu tenho dois que estuda a noite eu estudava a noite junto com eles né,porque o dia a gente trabalha no roçado aí só dá até as 9, 8 horas da noite,o caso que tinha eles, tinha que estudar e tinha que fazer a janta.

Page 116: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

115

Nesse momento de sua vida, em que tentava, com todas as dificuldades,

aprender a ler e escrever, Rosa sofre um grave acidente.

4.3 O ACIDENTE: SOFRIMENTO E LUTA PELA SAÚDE

Chegamos ao período mais atual da história de vida da Rosa, casada,

com vinte e seis anos de idade e quatro filhos, sua vida é marcada por um trágico

acidente, o escalpelamento. Acidente que trouxe para a sua vida o desafio de

superação das dolorosas sequelas físicas, emocionais e sociais que atingem as

vítimas de escalpelamento.

Rosa relata como aconteceu o acidente:

Nesse dia eu foi dá um sono lá atrás porque no meu caso que nós viajava que a gente nem vinha, como foi eu teve a bolsa escola do meu filho tudo então pra eles manterem essa, porque o meu pai e a minha mãe me tiraram do estudo por causa do trabalho aí eu não queria tirar eles pra eles não ficarem com essa queixa.Chegou a noticia lá na rádio que quem tinha feito a bolsa escola já tinha chegado, tinha que pegar vaga, ficha que falo. A gente tem que sair de lá de madrugada e encarar fila.Aí nós saimo de lá umas uma hora da madrugada, quando a gente chegou era umas cinco horas,me deu sono aí eu foi dá uma deitada lá. Dessa deitada eu não lembro mais. Tava o meu marido, a minha prima, o meu sogro e uma cunhada minha... Foi assim, na hora que aconteceu isso comigo eu não vi, aí depois, de tanto o meu marido pelejar pra eu voltar eu tornei, aí eu perguntei pra ele o que aconteceu, o que era que tinha acontecido que os meus filho tavo desesperado,tinha dois comigo, o que tinha acontecido aí ele disse,não, te acalma. Não! Me conta o que aconteceu, ele falou né ...aí eu desmaiei de novo,eu não lembro. Quando eu tornei, porque eu passei um mês lá no hospital metropolitano, com uns três ou quatro dias que eu fui tornando, ele me chamou, falou pra mim o que tinha acontecido. Eu disse que eu não aceitava perder meu cabelo, até falei pra ele porque tu deixasse acontecer isso comigo. Ele disse que não, ele não era culpado né, aí eu me revoltei, fiquei revoltada, eu não aceitava.

Ao dormir próximo ao motor do barco que estava desprotegido, teve os

seus cabelos atraídos pelo eixo e rapidamente o seu couro cabeludo foi arrancado.

Em seu aspecto anatomo-fisiológico, segundo a Enciclopédia Delta Universal (1982,

Page 117: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

116

p.2377), “o couro cabeludo é a parte da pele que recebe o crânio e em que cresce o

cabelo. Essa pele é a mais espessa de todo o corpo, embaixo dela existem camadas

de tecidos gordurosos e conjuntivos e muitos vasos sanguíneos”.

Esse acidente desestruturou toda a família da Rosa, pois a mesma

precisou de um tratamento médico hospitalar doloroso e prolongado, que durou mais

de seis meses, período em que ficou sem ter contato com os filhos, com a sua

família e sua localidade e que teve de se adaptar a um novo cotidiano – o hospitalar

que lhe causava muitos temores, pois nunca tinha tido contato com um hospital.

Neste período de tratamento, Rosa ficou no Espaço Acolher da Fundação

da Santa Casa de Misericórdia do Pará, onde passou por uma bateria de

procedimentos cirúrgicos e ambulatoriais.

As mutilações geradas pelo acidente a afetavam de forma mais severa

emocionalmente, o que a fez passar por um processo de isolamento pelo medo de

ser vista.

A presença do seu esposo no Espaço Acolher, como seu acompanhante

foi de extrema importância para que ela aumentasse a sua autoestima, diante de um

processo de negação de si enquanto mulher.

Nas comunidades ribeirinhas, o uso dos cabelos longos, mais que um

símbolo de beleza feminina, representa na manifestação da religiosidade o manto

sagrado da Virgem Maria, mãe de Cristo. Esse manto que não tornará mais a

crescer, pois as sequelas do acidente são irreversíveis.

Rosa relata como a presença do seu esposo foi importante para o seu

tratamento de saúde que envolve dimensões psíquicas, físicas e culturais:

Ele começou a me aconselhar, que ia ficar comigo do jeito que eu tava, porque quando eu era boa ele me queria né, não ia ser agora que ele ia me desprezar. Graças a Deus ele foi um amigo, um marido né? me deu muita força pra colocar a verdade. Até hoje ele tá aqui comigo, ele podia tá lá né, eu sô de maior ele podia não tá aqui comigo, foi um apoio muito grande.

A fala da Rosa expressa a forma como ela se representa a partir do

acidente como algo que não está bom, que antes funcionava “quando eu era boa”.

No ambiente do Espaço Acolher, Rosa foi ressignificando sua própria

vida, suas representações sobre si, sobre a saúde e o hospital. Segundo Moscovici

Page 118: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

117

(2003), quando denominamos algo tiramos do anonimato o desconhecido

perturbador e essa denominação está relacionada com a identidade cultural, onde

as representações são construídas.

O não familiar, muitas vezes, produzido pelo universo reificado e pela

dinâmica social torna-se ameaçador, a novidade ao ser classificada naturaliza-se

coletivamente e adentra no universo consensual, trazendo com isso uma pretensa

estabilidade. Esses conceitos e classificações são construídos mediante um modelo

em que se estabelece o positivo do negativo, assumindo também uma hierarquia,

apresentando caráter prescritivo, porém não estático.

Rosa nunca tinha passado por um hospital, pois, em sua localidade,

acredita-se que quando uma pessoa vai até o hospital já está muito mal de saúde e

já vai morrer, então, quando se viu dentro de um, ficou com muito medo da morte.

Mas ao longo do seu tratamento foi tendo novas impressões do hospital:

Tem muita gente que diz, ah! Eu vou pro hospital não quero, mas é besteira da gente porque a gente sendo medicada, cuidada, a gente tem que confiar em Deus depois neles né? aí tinha que acreditar que a gente vai sair boa daqui né? A minha mãe tinha muito medo de ir pro hospital, até eu assim, eu tinha medo né porque aquele clima que os pessoal falavo, ah! tu vai pro hospital! Ah! tu já ta quase pra morrer, tu vai pro hospital. Aí quando falava em hospital eu tinha medo.

Nesse contexto, o Espaço Acolher, onde ela ficou mais tempo, foi

ganhando novos significados e novas amizades foram sendo construídas em um

cotidiano que passou a ser também seu:

Pra mim assim, é um espaço que ele tá pronto a acolher as pessoas que vem do interior e bom, porque aqui a gente forma uma família né, como eu tô longe da minha família de sangue... aí a gente arranja outra família porque aqui a gente fica... como é que vai? Como é que tá seu filho? Como é que vai? Então é muito bom, muito bom porque a gente arranja outra família.

A partir da vivência no hospital, Rosa passou a construir um sentimento

de pertencimento a essa comunidade e a fazer parte das práticas cotidianas

voltadas para o tratamento de saúde e compartilhar juntamente com as demais

vítimas de escalpelamento sentimentos de angústia, de saudade da família, dos

Page 119: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

118

filhos, de medo de retornar à sua comunidade e vivenciar o preconceito devido à

mutilação corporal, mas, também, com o estabelecimento de novos relacionamentos

marcados por práticas de solidariedade, encontrou apoio para na busca da saúde e

da valorização da sua autoestima.

Tendo interferência do contexto sociocultural, as práticas sociais

cotidianas são construídas no “centro do acontecer histórico: é a verdadeira

essência da substância social”. O saber prático apresenta o acúmulo das tradições,

dos saberes transmitidos pelos grupos sociais às gerações seguintes. Portanto, a

prática cotidiana é histórica, é processo, é tradição, é “a vida cotidiana que é a vida

do indivíduo” (HELLER, 1989.p.20).

Então, esse ser humano que é individual e genérico, constitui sua

personalidade e suas práticas em sociedade ao mesmo tempo em que é

condicionado pela dinâmica do cotidiano. A vida cotidiana é repleta de alternativas,

escolhas, que podem estar moralmente motivadas ou não, porém a capacidade de

decisão é um elemento que possibilita ao homem buscar ir além da cotidianidade o

que pressupõe o ato consciente, o conhecimento do próprio eu. Esse ser de escolha

é humano-genérico, é ser consciente.

Rosa, nesse contexto, parte para um novo momento de reconhecimento

de si, condições em que atividade e consciência se articulam em busca de novas

formas de se representar. Uma mulher mutilada, principalmente em sua feminilidade,

com a perda brusca dos seus cabelos que eram motivo de orgulho, “o meu cabelo

era bem liso e comprido era o meu orgulho era o meu cabelo”, busca reconhecer-se

a partir do acidente:

Como eu me percebo hoje, eu sou uma mulher diferente por causa desse acidente, então, esse acidente marcou muito a minha vida pra mim voltar assim...a minha feição teve que passar por cirurgia.

O acidente não castrou a sua identidade de mãe, esposa, mulher, mas a

tornou uma mulher sem saúde, sem beleza e sem liberdade:

A gente fica com a saúde da gente, a gente tem a liberdade, a gente pode trabalhar, a gente diz hoje eu vou trabalhar amanhã eu vou comprar tal coisa e a gente doente não né?Tem a vontade de trabalhar mas tá doente e a gente não pode fazer nada, então, a saúde da gente é uma coisa que dá liberdade.

Page 120: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

119

O tratamento de saúde exige uma rotina de toda a comunidade hospitalar,

que é caracterizada pela tensão e ansiedade do paciente e de seus familiares para

ter o atendimento médico necessário, para que possa retornar o mais rápido

possível ao seu convívio comunitário e familiar:

Bom, a situação que é mais difícil pra quem tá aqui no espaço porque depois que a gente desce pra cá é muito difícil pra gente enfrentar outra cirurgia.Pra mim foi muito difícil pra gente internar de novo ...eu teve que batalhar dois meses sem sair do pé deles lá ...Eu quero me internar!, Eu quero fazer a minha cirurgia! Então foi muito difícil pra mim até porque eu tô aqui seis meses por eles, porque eu vim pra cá só por uma cirurgia, mas, aí como eu pensava que eu tava internada eu pensei que no dia que tivesse bom, eles iam chamar, mas foi diferente, o doutor teve que chamar (...) aí não foi fácil, teve que me chorar, tinha dia que eu ficava agoniada, tinha dia que eu ia com um médico, não dá, não tem leito tu, não vai ser internada. Eu ficava desesperada porque tava longe da minha família, dos meus filho, a enfermeira disse, olha tá bom de fazer a cirurgia, eu fiquei com medo, eu ia lá com eles e dizia não, não, não tem médico.Foi muito difícil. Eu sinto muita saudade dos meus filhos, muita saudade, muita saudade mesmo deles porque quando ele (marido) chega, ele conta que os meninos tão com saudade, aí aperta mais. A gente tá aqui pra batalhar por uma vida, pra ir pra casa bem.

Nesse período doloroso, Rosa começa a abandonar a representação de

mulher mutilada, sem liberdade, para transformar-se em guerreira, mulher que luta

pela sua cura, para voltar a ser mãe que pode cuidar dos seus filhos. Na construção

de sua nova identidade, Rosa faz a negação do que a nega como sujeito em

formação, momento em que ocorre a “negação da negação, permite a expressão do

outro que também sou eu: isso consiste na alterização da minha identidade, na

eliminação da minha identidade pressuposta (que deixa de ser reposta) e no

desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante” (CIAMPA,

1998, p.181).

Nessa rotina tensa de tratamento de saúde, Rosa se representa como

uma batalhadora, uma guerreira em busca da saúde, nesse momento, começam a

se configurar os traços de uma nova identidade, de uma mulher que encontra no

Page 121: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

120

amor pelos filhos a força para lutar pela sua vida. Uma mulher que busca na

superação do medo novas formas de representar-se:

Eu acho tem vez que eu sou um pouco medrosa, mas tem hora assim que eu mesmo me acho corajosa, porque quando a primeira vez eu fui pro bloco o meu marido não tava, na segunda vez também,aí o meu marido dizia que tudo era fácil sabe. Eu queria uma pessoa porque quando a gente vai pro bloco (cirúrgico)... Ele dizia não, a primeira vez tu foi aí eu dizia não porque lá a gente deixa a sandália, até a roupa a gente vai com outra roupa, aí quando foi essa vez eu fiquei calma, aí eu mandei chamar ele pra ficar comigo, ele ficou aí quando ele viu a pequenazinha de lá né saiu foi primeiro uma na minha frente depois fui eu, também desmaiada, aí ele disse que ficou nervoso.Bem também que queria me dar nervoso, não pra minha saúde eu vou ser corajosa! Aí eu entrei como num tivesse acontecendo nada, rindo conversando sabe e isso assim tem hora que até eu digo poxa eu vendo os outros eu digo poxa eu sou muito corajosa. Com isso diz ele que quando ele me viu que eu vim de lá desmaiada, diz ele que até atacou o coração. Ele dizia que sentia uma falha no coração dele de me vê em cima de uma maca sem saber se eu tava... Eu não sei que a gente não lembra né, nessa aí a gente tem que ter um pouco de coragem porque se for medroso a gente não faz, as vez a gente prefere tá com ferimento, mas não entra lá.

Nesse momento, emerge uma mulher que supera o medo, que luta pela

sua cura e que exige ser tratada com dignidade. Rosa relata que em seu tratamento

encontrou algumas dificuldades de relacionamento com os médicos e que pediu

para ser atendida com mais atenção:

Bom, agora tá sendo um tratamento ótimo, o doutor avalia a cabeça da gente se tiver um pouco inflamado ele passa remédio e mudou depois que trocou de doutor mudou muito, teve uma fase aí um médico que fica estressado, mas depois ele reconhecia que ele tava errado, só quando eu cheguei que tava novo sentia dor, agora eu fico assim que é uma gripe uma coisa mas não é aquela dor exagerada que dá pra chorar .

A mulher com medo de hospital, que vivia isolada em sua enfermaria dá

lugar à outra, forte, lutadora, que busca a felicidade por meio de um novo

reconhecimento do seu corpo e de si, na valorização da sua vida:

Page 122: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

121

Fiquei nessa fase, pra mim foi muito difícil quando eu acordei que eu me vi diferente eu não queria falar com ninguém, não queria conversar até me movimentar eu não queria, foi muito difícil eu perder o meu cabelo que era a coisa que eu mais gostava era o meu cabelo, era bem tratado, foi muito difícil, mas eu me recuperei passei por cima disso e o que importa é a minha vida ( ...) o cabelo que eu gostava não tem então agora tem que gostar de tudo né, a gente gosta dum doutro não aí, pega tira né quer dizer que eu não gosto do meu braço acontece um acidente né,agora eu prefiro tudo.

Rosa rompe com o isolamento e busca a sua socialização, pois

compreende que é na relação com o outro que nos tornamos sujeitos da nossa

própria história, na medida em que a busca do ser mais “não pode realizar-se no

isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires”

(FREIRE, 1987, p.86).

Trata-se de um processo de ressignificação de si, em um exercício de

renovação de formas de pensar e agir, que não poderia se realizar de forma isolada,

pois nos humanizamos em nossas relações com o outro, relações conflitantes,

contraditórias que se revelam em aprendizagens constantes, e, portanto, “Não há

inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação que não se funde na

dialogicidade” (FREIRE, 1996, p.38).

Eu gosto de mim porque eu sou uma pessoa, eu me acho alegre com todo o meu defeito, eu não fico intimidada aí pra mim importa é isso a gente ficar alegre, a gente ser uma pessoa alegre, uma pessoa feliz.Tem lá um dia que eu fico a modo aborrecida, mas só é comigo sabe não com os outro porque os outro não tem culpa né? então se eu tô reinando comigo a senhora não tem culpa,eu prefiro não falar, eu fico no quarto.

Assim, Rosa vem buscando a superação dos traumas provocados pelo

acidente, a partir do apoio do seu marido e das novas experiências que vem

construindo ao longo do seu tratamento de saúde no Espaço Acolher.

Nessa fase complexa e dolorosa, diante de sua fragilidade de saúde e de

reconhecimento de si, o inesperado acontece, Rosa tem vivenciado uma nova

experiência educativa, fora do tão almejado ambiente escolar, momento em que ela

Page 123: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

122

tornou-se educanda do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire, sobre o que

trataremos na próxima seção.

Page 124: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

123

5 EDUCANDA-PACIENTE: REPRESENTAÇÃO DE SI NO CONTEXTO

EDUCATIVO DO NEP NO ESPAÇO ACOLHER

Dedicamos esta seção à experiência educativa desenvolvida pelo Núcleo

de Educação Popular Paulo Freire, vivenciada pela educanda-paciente Rosa no

período em que estava em tratamento de saúde no Espaço Acolher da Fundação

Santa Casa de Misericórdia do Pará.

Tratamos das formas como a educanda-paciente representa a si em seu

contexto educativo, tendo em vista as suas experiências vividas no ambiente escolar

e no ambiente hospitalar. Tomamos como referência seus processos de formação

construídos mediante as suas atividades no mundo e com o mundo, que, articulados

com a consciência de si em seu contexto sociohistórico, funciona como condição

dialética de humanização.

Para tanto, pressupomos o “conhecimento de si mesmo pelo viés das

transformações do sujeito no tempo de uma vida, pelas atividades, encontros,

acontecimentos, situações formadoras e momentos de articulação das pessoas”

(JOSSO, 2007, p.110).

Inicialmente, buscamos contextualizar o cotidiano do Espaço Acolher por

meio das relações interpessoais construídas no ambiente hospitalar e dos processos

de significação e ressignificação da vida e desse ambiente, mediante a

complexidade saúde-doença-exclusão social vivenciada pelas vítimas de

escalpelamento.

Tratamos também dos reflexos gerados no cotidiano dessa comunidade

hospitalar, voltados para o tratamento de saúde, a partir do desenvolvimento da

prática educativa do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire nesse ambiente

hospitalar. Momento em que tratamos dos significados que a educanda-paciente

Rosa construiu sobre essa experiência educativa.

Partimos, então, para a experiência educativa de alfabetização e pós-

alfabetização, na qual Rosa, como educanda-paciente expressou, nos encontros

desenvolvidos no Espaço Acolher, as representações de si que fazem parte das

identidades que foram sendo construídas ao longo de sua história de vida e no

cotidiano do seu tratamento de saúde, após ter sofrido o acidente de

escalpelamento.

Page 125: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

124

Esses encontros educativos se caracterizam pela expressão da

diversidade cultural manifestada pelos educandos-pacientes, oriundos dos diversos

municípios do Estado do Pará, revelando um contexto amazônico de práticas sociais

características da vida das populações dos campos, das margens dos rios, das

matas e das cidades.

De forma que cada encontro educativo se configura como território de

manifestação das diferenças e das identidades dos sujeitos, que encontram no ato

educativo formas de expressar-se, de ouvir e ser ouvido em um contexto complexo

de relação saúde-doença, exclusão-inclusão, isolamento-socialização.

Tal realidade é marcada por um cotidiano conflituoso, no qual, o sujeito

encontra nas relações interpessoais, em uma comunidade da qual subitamente

passa a fazer parte, novas possibilidades de constituir-se sujeito da sua própria

história, enquanto ser em formação. Dessa forma, a construção de identidades é

concebida a partir da “formação de si mesmo como uma trajetória feita ao colocar

heranças sucessivas e novas construções, do posicionamento em relação dialética

da aquisição de conhecimentos, de saber-fazer” (JOSSO, 2007, p.110).

E diante desse contexto, destacamos a contribuição do trabalho

educacional do NEP na formação e superação da identidade negada da educanda-

paciente, vítima de escalpelamento. Para tanto, discutimos sobre a relevância das

ações educativas desenvolvidas no ambiente hospitalar enquanto ato ético-político

de inclusão social e educacional das pessoas em tratamento médico-hospitalar,

como proposta de humanização dos espaços e relações interpessoais.

5.1 AMBIENTE HOSPITALAR: EXPRESSÕES DE UMA COMUNIDADE VOLTADA

PARA A COMPLEXIDADE SAÚDE- DOENÇA

O ambiente hospitalar do qual tratamos é o Espaço Acolher, que se

configura como um local que oferta assistência social às pessoas que estão em

tratamento médico-hospitalar na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará.

Sua estrutura física é formada por enfermarias, corredores, refeitório,

pátio, capela e jardim, onde existem brinquedos e árvores. Espaços nos quais se

estabelecem as relações interpessoais entre os que se encontram em tratamento

médico-hospitalar, seus familiares (acompanhantes) e os demais profissionais que

Page 126: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

125

atuam no hospital (enfermeiros, assistentes sociais, médicos, terapeutas

ocupacionais, psicólogos, pedagogos e pessoal de apoio).

Juntas, essas pessoas constituem a comunidade hospitalar do Espaço

Acolher e constroem todo um cotidiano voltado para o tratamento de saúde que se

reflete em relações interpessoais conflituosas, contraditórias e solidárias, nas quais,

cada sujeito representa a si e o outro em seus processos contínuos de

aprendizagem. De forma que, por meio das relações intersubjetivas estabelecidas

no cotidiano das comunidades, são construídos os saberes sociais:

No coração de uma comunidade está, portanto, a construção de espaços intersubjetivos que configuram não apenas a identidade do Eu, mas um conjunto de relações intercoordenadas que produzem fenômenos como a comunicação e o diálogo, as identidades sociais, a memória social, a vida pública e, ligado a todos estes, os saberes sociais (JOVCHELOVITCH, 2008, p.128).

Dessa forma, cada sujeito participa da vida cotidiana em que se

apresentam todos os aspectos de sua personalidade. Assim, a vida cotidiana é a

vida do homem inteiro, com todas as suas capacidades, suas subjetividades,

habilidades, ideologias. A vida cotidiana, em que o homem é inserido, tem como

condição de organicidade o funcionamento da heterogeneidade e da ordem

hierárquica que se modifica em função de estruturas econômicas e sociais

(HELLER, 1989).

Nesse ambiente hospitalar, forma-se uma comunidade marcada pela

diferença, pela hierarquização social entre aqueles que sabem (os profissionais que

atuam neste espaço que possuem o saber científico) e aqueles que não sabem

(pacientes e acompanhantes, em sua maioria, analfabetos ou com baixa

escolaridade); pelas tensões das relações de poder estabelecidas em meio a um

tratamento médico-hospitalar doloroso e prolongado e pela busca da saúde.

Condições que refletem a vigência da racionalidade clássica e moderna

nas concepções de sujeito, identidade e cultura, que se dimensionam nas relações

sociais, no estabelecimento das diferenças entre os sujeitos de forma

discriminatória, que se exercem nas práticas de inferiorização do outro, aquele que

“não sabe”, “não é belo”, “não é civilizado”.

O sujeito nessa perspectiva é ser de essência imutável, compreendido de

forma apartada de seus contextos socioculturais. Concepção em que se nega a

Page 127: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

126

condição do sujeito enquanto ser de relações com o outro e com a natureza. A

cultura nessa perspectiva funciona como modelo de categorização entre os sujeitos

determinados por suas características biológicas, anatômicas e fisiológicas do corpo

humano (perspectiva somatológica) e por suas relações com o meio ambiente

(perspectiva mesológica) (LARAIA, 2002).

Condições do determinismo biológico e geográfico sob o qual se apoia a

compreensão de cultura como fenômeno linear, dimensionado em escalas de

civilidade, que, segundo Touraine (1998), tem como referência a cultura

eurocêntrica.

Trata-se da vigência das Influências do modelo platônico e cartesiano na

concepção de saber, na qual o sujeito, ser de oposições corpo-alma, razão-emoção,

está diretamente ligado à valorização do saber lógico-matemático, experimental que

deu status de saber do “real”, “verdadeiro” à ciência positivista. Em detrimento do

saber proveniente das emoções, subjetividades humanas, e das práticas sociais

cotidianas, os “fenômenos tais como motivações, emoções, afetos inconscientes e

interesses sociais, normalmente são considerados como deficiência na estrutura do

conhecimento” (JOVCHELOVITCH, 2008, p.169).

No cotidiano voltado para o tratamento de saúde, estabelecido no Espaço

Acolher, as pessoas vão construindo suas significações sobre esse espaço que

oferece as condições básicas de moradia, alimentação e higiene:

Pra mim assim, é um espaço que ele tá pronto a acolher as pessoas que vem do interior e eu acho que isso uma coisa boa que pra gente que vem do interior de longe. A gente não tem a donde morar então aqui eles acolhe a gente, tem a cama da gente, tem a refeição. Eles dão o material, negócio de banho, perfume então, é uma coisa muito boa pra nós que não tem condição de tá comprando o material (ROSA).

Trata-se de um ambiente caracterizado pelo acolhimento de mulheres que

são atendidas pelos programas PAIVES25, “Mãe Canguru26” e “Mãe coruja27”. São

25 Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento 26 O programa Mãe Canguru atende recém-nascidos prematuros, que ficam em contato permanente e direto com o corpo da mãe. O método acelera a recuperação das crianças e reduz o tempo de permanência no hospital.

Page 128: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

127

mães e filhas que trazem para o dia-a-dia suas marcas de um gênero que afirma

seus traços nas formas de representar-se em um cotidiano assinalado pelo

sentimento de saudade da família e dos filhos distantes, pela busca da cura das

enfermidades, e pela fé na vida. Como nos relata a educadora Carmem:

Elas comungam da mesma dor, elas comungam da mesma vivência (...) porque as mães tem uma rotina muito grande dentro do hospital, é a mama,a comida das crianças.Tem aquelas que são diaristas, aquelas que tem as atividades delas de três em três horas tem a mama.Mães diaristas são aquelas que vão pro hospital de manhã cedo e ao final da tarde elas voltam pra casa.Tem a mãe coruja, que passa o dia inteiro lá, elas moram lá, as escalpeladas elas ficam albergadas no próprio Espaço Acolher.

O perfil das mulheres que são atendidas no Espaço Acolher é o de mães

de crianças que estão em tratamento de saúde, jovens adolescentes, pertencentes

às classes populares e com baixa escolaridade. Também as vítimas de

escalpelamento jovens e idosas, oriundas das comunidades ribeirinhas do Pará,

com baixa escolaridade.

Mulheres que aprendem a conviver com as diferenças e compartilham

sentimentos de medo da perda do filho (crianças recém-nascidas internadas no

hospital); no caso das mulheres escalpeladas, medo de serem rejeitadas pela

família, esposo e filhos devido às mutilações geradas pelo acidente.

Essas mulheres buscam juntas formas de superação da dor reunindo-se

para conversar, cuidando da aparência, por exemplo, se maquiando, pintando as

unhas, criando e usando bijuterias; essas são tanto práticas de resistência às

condições de vida adversas com que estão se deparando, quanto formas de

construção das representações de si, mediante as suas relações com o gênero que

se refere “ao modo como as características sexuais são compreendidas ou

representadas ou, então, como são trazidas para a prática social e tornadas parte do

processo histórico”(LOURO, 2008, p. 22).

27 O programa Mãe Coruja destina-se ao alojamento das mães de bebês internados na Santa Casa com o objetivo de reduzir a mortalidade materno-infantil. Entre as vantagens está a redução do estresse e o aleitamento exclusivo.

Page 129: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

128

Nesse espaço, a diferença se manifesta por meio das expressões

culturais das pessoas que vêm de diversas localidades da região amazônica e

trazem consigo os traços das suas formas de lidar com o tempo e com o espaço,

sua linguagem e forma de pensar e agir diante do cotidiano de tratamento médico-

hospitalar, como nos indica a fala da educadora Carina sobre as educandas:

Como elas vêm de regiões deferentes, cada uma vem de uma cultura diferente,então, a gente consegue ver que é um local muito rico.Rico de saberes e cada saber que elas possuem é um saber único porque se tu fores reparar, uma educanda que ela venha de uma região do interior, digamos assim, de Capitão Poço é diferenciada da que vem do Marajó, porque a linguagem é diferente, a vivência dela é diferente, então essa cultura que elas trazem da região delas só se somam lá dentro e elas conseguem se respeitar e conviver totalmente com isso não tem ...olha ela fala engraçado! Ela fala bunitio! (EDUCADORA CARINA)

Na articulação entre a igualdade e a diferença, cada participante dessa

comunidade hospitalar vai se tornando representante de si, papéis são atribuídos e

vão se materializando nas práticas sociais cotidianas dentro desse espaço e “assim,

personagens vão se constituindo umas as outras, no mesmo tempo que constituem

um universo de significados que as constituem” (CIAMPA, 1998, p.154).

O tratamento de saúde gera toda uma desestrutura familiar, não são raro

casos de educandas-pacientes que são rejeitadas pelos seus companheiros. A

ausência de saúde caracteriza um estigma, em que o isolamento, para as vítimas de

escalpelamento, torna-se condição de vida.

Assim, configura-se a complexidade saúde-doença-exclusão social, na

qual se atribui à pessoa em tratamento de saúde uma condição de incapacidade ou

anulação da sua participação nas práticas sociais cotidianas na família e na sua

comunidade. Mostra como ainda é vigente a concepção de saúde, na qual a

patologia torna-se principal referência de representação do outro pela sociedade.

Tal concepção de saúde coloca sob o indivíduo a responsabilidade por

sua condição de vida, não sob o aspecto de sua autonomia enquanto sujeito de

intervenção social, mas no sentido da sua adaptação ao meio ambiente e

adequação às políticas prescritivas de saúde. A saúde é entendida de forma

desligada dos fatores econômicos e sociais, cabendo ao ser humano a sua

Page 130: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

129

adaptação na sociedade. De modo que o não ajustamento à sociedade é que

implicaria um estado de desequilíbrio, de doença (SILVA, J., 2001).

Assim, as condições de doença e estética do sujeito emergem como

elementos de exclusão e negação social das diferenças. Dussel (1994) desconstrói

o discurso ético hegemônico e socialmente excludente no qual a vítima (o Outro), o

oprimido, diferente, torna-se culpada, a qual é objeto de diversos ataques violentos,

cabendo ao sujeito hegemônico, opressor, o papel de civilizador, o inocente. Com o

desenvolvimento de um contradiscurso ético-político-libertador, o autor apresenta a

“Ética como critério de verdade prática e teórica, ou seja, a vida como condição de

possibilidade para a ação e para a reflexão sobre a ação” (OLIVEIRA, 2005, p.104).

Ética que nos possibilita a crítica aos processos legitimados socialmente

de inferiorização do outro, a partir de referências de capacidade, estética, cultura,

gênero, etnia, em um processo homogeneizador das formas de agir e pensar,

formas de saber-ser.

Devido às mutilações geradas pelo acidente, as vítimas de

escalpelamento passam por um longo período de tratamento de saúde e de

afastamento da família, da sua localidade e, no cotidiano do Espaço Acolher,

compartilham um sentimento de medo de sofrerem preconceitos ao retornarem à

sua casa:

Quando elas estavam entre elas, elas se perfumavam, se colocavam colar, elas pintavam as unhas, faz parte do cotidiano, elas fazem, elas produzem, só que na fala de algumas, quando eu for pra casa eu não vô fazer isso, não vô ter coragem de meter a cara fora de casa .Outra fala vô fazer um buraco lá na parede do meu quarto pra ver o que tá acontecendo lá fora, então no meio delas assim como elas estavam com outras pessoas comungando do mesmo acontecimento elas não sentiam essa vergonha de ficar sem peruca, de ficar sem o lenço, mas as falas que representassem quando elas voltassem pra casa era o contrário (EDUCADORA CARMEM).

O medo de retornar à sua localidade e a vergonha de serem vistas pelos

outros, revela a perda da autoestima que essas mulheres apresentam, diante de

uma realidade fatalista de exclusão social, que caracteriza o processo de

desumanização, que, para Ciampa (1998), se materializa na negação da criação de

Page 131: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

130

novas perspectivas de futuro, possibilidades de vida, revelando a morte simbólica do

sujeito, que, ao representar-se como ser concluído, nega a sua humanidade.

A negação da historicidade do sujeito por meio da interiorização das

condições que o determinam como ser atemporal revela, segundo Freire (1987,

p.32), o caráter de dupla alienação do opressor e do oprimido. De modo que “a

humanização e a desumanização, dentro da história num contexto real, concreto,

objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de

sua inconclusão”.

O relato da educadora Carmem sobre as condições de desumanização

das vítimas de escalpelamento demonstra que o fator estética funciona como

elemento de estigmatização e exclusão social daqueles que não atendem aos

padrões estéticos convencionalizados. Convenções que, segundo Oliveira (2001),

distinguem os incluídos dos excluídos, os capazes dos incapazes, os belos dos

feios, dentre outros.

Elas se apresentam sem perspectiva de estudo, trabalho, namoro, principalmente namoro, por conta da estética elas tinham certeza que iam enfrentar preconceito (EDUCADORA CARINA).

As identidades construídas por meio do estabelecimento das diferenças

vistas como recurso à estigmatização do outro na adoção dos padrões de

normalidade têm na depreciação dos não considerados “normais” os condicionantes

da construção, denominados por Goffman (1982), de “identidades deterioradas”.

Para o autor, estigma é entendido como “marca ou sinal” que identifica o outro como

possuidor de algo indesejável, dada a sua condição de inferioridade, possui uma

“falha”, um “defeito”.

Nas relações sociais, o estigma se estabelece dando-se atributos a um

estereótipo, tendo como referencial a dicotomia normalidade-anormalidade, que

funciona como condicionante da inclusão ou exclusão do sujeito nos grupos sociais,

no mundo do trabalho, ambiente escolar, dentre outros.

Assim, a partir da reprodução do social, estabelecem-se coletivamente as

atribuições necessárias à participação dos sujeitos na sociedade por meio dos

critérios cognitivos, estéticos, comportamentais e culturais. O que mobiliza essa

identificação é a exclusão do diferente, sobre o qual é imputado um modelo, imagem

Page 132: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

131

social de indivíduo, que pode não ser compatível com a realidade, caracterizando o

que Goffman (1982) chama de “identidade social virtual”.

Portanto, uma das condições de exclusão das vítimas de escalpelamento

está diretamente ligada à imposição ao sujeito de uma identidade deteriorada por

conta da mutilação corporal gerada pelo acidente. Essa identidade é ratificada

continuamente pelos grupos sociais por meio de práticas excludentes, concretizadas

em três tipos de estigmas de abominações:

1) do corpo, as várias deformidades físicas;2) de culpas, de caráter individual , percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não- naturais, crenças falsas ou rígidas, desonestidade; 3) tribais, de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através da linhagem (OLIVEIRA, 2005, p.83).

No entanto, as condições de objetivação do ser humano não são dadas

como determinações estáveis. De forma que em vários momentos o cotidiano do

Espaço Acolher é marcado pela angústia e pelo medo do preconceito, mas também

pela construção de novas relações afetivas e ressignificações da vida e do próprio

ambiente hospitalar, que funcionam como instrumentos de superação das condições

de negação da historicidade do sujeito.

A vida cotidiana é heterogênea, pois solicita de acordo com as

necessidades a operação de capacidades humanas em diversas direções, porém,

nenhuma se sobrepõe a outra. Heller (1989) aponta para a compreensão de ser

humano como ser inteiro, para explicitar sua análise sobre o conceito de

homogeneização, como processo em que é empregada a individualidade na

resolução de uma tarefa. Quando empregamos nossa inteira individualidade humana

na realização de uma atividade prática, fazemos uma intervenção na cotidianidade.

Fazemos a ruptura com o ritmo fixo, com a rigorosa regularidade da vida cotidiana.

Trata-se de uma participação consciente do indivíduo em sua realidade.

Para Heller (1989, p.38):

existe alienação quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção.

As mulheres vítimas de escalpelamento, devido à necessidade de

tratamento médico-hospitalar, são bruscamente afastadas do seu cotidiano em sua

Page 133: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

132

localidade e passam a fazer parte do dia-a-dia de um hospital que lhe é totalmente

estranho, marcado por uma rotina que envolve cirurgias, curativos, exames e

consultas médicas e por um ambiente impessoal, caracterizado pelas enfermarias e

corredores, cheios de pessoas desconhecidas.

Com o decorrer do tempo de internamento que pode durar mais de seis

meses, cada sujeito vai encontrando suas formas de se relacionar com o outro e de

viver em comunidade.

No Espaço Acolher, em meio aos horários de rotinas médicas, cada

ambiente vai ganhando novos significados. As enfermarias e leitos se tornam

quartos e camas, os internados na mesma enfermaria se tornam amigos de quarto e

o que estão na enfermaria ao lado, vizinhos de quarto. É nesse contexto que a

educanda Rosa indica que as pessoas em tratamento de saúde e seus

acompanhantes “forma uma família”.

O refeitório não é apenas o local para alimentar-se, mas a sala onde se

assiste televisão e, onde se estuda. O pátio, local de visita, de ver movimento; o

jardim local em que “as crianças brincam e se pega um ventinho” (ROSA). Em um

espaço onde há uma imagem religiosa e um banco é a “Capelinha de Jesus”. E,

assim, aquele espaço estranho, alheio torna-se o lugar de cada um que faz parte

dessa comunidade hospitalar, da qual Rosa tornou-se parte e nos indica onde mais

gosta de ficar:

Lá na frente eu gosto mais que é mais fresco, ver o movimento aí chega pessoa pra visitar, fica se divertindo ... lá no pátio, porque lá a gente vê o movimento de quem entra de quem sai porque a gente tando pra cá só quando as meninas venho né, ( professoras) aí depois pronto. Lá não, vem um, depois vem outro. Porque a visita é só lá, as visita não pode entrar como a gente não tem a família da gente, a gente fica lá. Aí vem outro visitar a mulher, vem outro visitar o parente... Aí a gente fica vendo quem sai e quem entra.

A vida cotidiana é compreendida como essência da substância social e

está inscrita historicamente. O homem nesse contexto é ativo e receptivo, é

simultaneamente ser particular, pela sua unicidade e irrepetibilidade e genérico,

como elemento que se apresenta em toda atividade que tenha caráter genérico,

embora tenha motivações particulares.

Page 134: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

133

Enquanto indivíduo, portanto, é o homem um ser genérico, já que é produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano; mas o representante do humano- genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração (tribo, demos, estamento, classe,nação, humanidade)- bem como, frequentemente, várias integrações – cuja parte consciente é o homem em na qual se forma a sua “consciência de nós” ( HELLER, 1989, p.21).

Com o desenvolvimento das atividades educativas do NEP no Espaço

Acolher, os encontros educativos passaram a fazer parte deste cotidiano e as

educadoras também passaram a fazer parte desta comunidade.

5.2 A PRÁXIS DO NEP NO ESPAÇO ACOLHER: EXPRESSÕES DO COTIDIANO

EDUCACIONAL

O desenvolvimento das ações educativas do NEP se deu neste espaço

em dois períodos. Inicialmente, de 2003 a 2006 em parceria com a SETEPS, e, após

um período de reforma do espaço físico, em 2007, sob a administração da Santa

Casa, o Núcleo retornou ao Espaço Acolher para dar seguimento às ações de

alfabetização e pós-alfabetização aos jovens, adultos e idosos em tratamento

médico-hospitalar e aos seus acompanhantes, tendo em vista os objetivos e

princípios a seguir:

Page 135: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

134

Objetivos:

Realizar ações educativas em ambientes do Hospital da Santa Casa de Belém, promovendo turmas de alfabetização e ações educativas em forma de palestras, cursos, oficinas, etc. a familiares de crianças, jovens, adultos e idosos em tratamento de saúde; Desenvolver formação aos educadores, por meio de diálogos críticos e estimulo a convivência e a participação coletiva.

Princípios:

a) Respeito à pessoa humana, considerando as especificidades de sua idade, e manifestações de seu contexto social, cultural e linguístico;

b) Incentivo à curiosidade do educando em conhecer o mundo, de descobrir as coisas e de perguntar;

c) Estímulo ao educando à falar, a expressar sua forma de pensar, compreender e experienciar o mundo;

d) Viabilizar a participação do educando nas atividades, a ser o agente, o sujeito, ter autonomia no seu saber-fazer cotidiano social, cultural e ambiente alfabetizador;

e) considerar as situações existenciais, sociais e culturais do educando como parte do contexto cultural do ambiente alfabetizador;

f) Viabilizar a inclusão do educando e sua família ao ambiente alfabetizador (NEP, 2008).

Como o Espaço Acolher atende as mulheres participantes dos programas

“Mãe Coruja”, “Mãe Canguru” e PAIVES. Os encontros educativos são marcados

pela presença de mulheres que estão na faixa etária entre 14 e 60 anos. Em sua

maioria são as mães adolescentes e as vítimas de escalpelamento28, caracterizando

uma especificidade aos encontros educativos que trazem na relação com o gênero

toda uma dinâmica pedagógica na abordagem de temas que emergem dos

interesses das educandas.

As ações educativas participativas29 desenvolvidas no ambiente hospitalar

caracterizam-se pelo novo, constituindo-se em um grande desafio para os

profissionais da educação, que diante das especificidades deste ambiente e de seu

público exige a produção de novas metodologias de ensino, tendo em vista o

cotidiano hospitalar.

28 As crianças vítimas de escalpelamento também ficam neste espaço, porém as ações educativas do NEP são direcionadas à Educação de Jovens e Adultos. 29 Indica-se como ações educativas participativas aquelas que buscam inserir- no cotidiano que envolve a complexidade doença-saúde, considerando seus participantes sujeitos de autonomia na resolução das situações problemas vivenciados, como proposta ética-política de educação como instrumento de transformação de realidades excludentes. As ações educativas participativas buscam a ruptura com as práticas tradicionais de educação e saúde que se limitam a oferta de informações às classes populares objetivando a adoção de atitudes tidas como saudáveis, tendo em vista a concepção de ser humano passivo, caracterizando o paradigma da informação. GAZZINELLI, Maria. Educação em saúde: teoria, método e imaginação. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

Page 136: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

135

A nova equipe de educadores do NEP que retomou as ações em 2007

nunca havia trabalhado no ambiente hospitalar e, aceitando o desafio de

desenvolver práticas educativas em ambientes não convencionais de ensino,

possibilitaram-se a ressignificação do ambiente hospitalar e do ato educativo.

Eu imaginava assim, que quando eu entrei eu pensei o que será que vai acontecer? Qual será a reação dessas pessoas e de que forma essas pessoas que estavam lá eram pessoas em processo de alfabetização ou de pós- alfabetização? Eu imaginava que seria igual lá na escola, naquele ambiente que tem as cadeiras, o quadro a mesa, então quando você entra num espaço e vê que de início não tem nada do que tá esperando, então já entra num confronto com a mentalidade... Foi chocante, mas foi um chocante do bom né do lado bom, não do lado ruim (EDUCADORA CARINA).

McLaren (1991), com o seu estudo “A educação como um sistema

cultural”, nos traz contribuições para a compreensão da educação em seu contexto

cultural na construção de significados e símbolos materializados nas práticas

cotidianas do cenário escolar, o qual é referência social como espaço de ensinar.

Assim, quando se remete à prática educativa em locais não convencionais de

ensino, tende-se a reproduzir os elementos que compõem a educação escolar, por

meio de seus rituais e símbolos. Para o autor, “os rituais são inerentemente sociais e

políticos; eles não podem ser entendidos isolados do modo como os indivíduos se

situam biográfica e historicamente em várias tradições de mediação” (McLaren,

1991, p.73).

Nos primeiros contatos com o cotidiano do Espaço Acolher, as

educadoras passaram por um momento de desconstrução das suas representações

sobre a prática educativa, tendo como referência a estrutura escolar, e organização

do espaço físico da sala de aula, ao perceberem que os encontros educativos

seriam realizados no refeitório e que o maior desafio de sua execução seria a

adaptação a toda uma rotina voltada para o tratamento de saúde pelo qual as

educandas (mães das crianças internadas e as vítimas de escalpelamento)

passavam.

Não sabia exatamente que tipo de público a gente ia atender, então, nós fizemos a pesquisa socioantropológica e mesmo sem saber esse público, nós tínhamos feito uma dinâmica de

Page 137: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

136

aproximação. Nós não sabíamos quem seriam os educandos, como seria essa relação. Era uma expectativa né tanto deles quanto nossa (...) por ser a primeira vez que a gente estava participando de um trabalho no ambiente hospitalar e de não saber o que eu ia encontrar, sabia que ia trabalhar com pacientes e seus acompanhantes, mas não sabia de onde eles vinham origem, a sua cultura e saber lidar (EDUCADORA CARMEM).

Dessa forma, as educadoras por meio de pesquisas e planejamentos

foram construindo as estratégias de superação das dificuldades de execução das

aulas que iniciou com o trabalho de conquista das educandas, de estabelecimento

de uma relação próxima, de confiança. Na medida em que para elas, viver uma

experiência educativa, fora do ambiente escolar, em um momento tão complexo de

tratamento de saúde, era visto como algo inacessível.

Assim, o trabalho inicial das educadoras foi o de se aproximar do contexto

de vida no hospital e tornar-se parte desse cotidiano, das relações interpessoais e

dessa comunidade hospitalar:

Quando as mães passaram a pertencer ao Espaço Acolher elas (assistência social e educandas) viram a nossa força de prosseguir com as atividades pra incluir essas mães... A gente teve uma rotina muito cansativa de tá experimentando os horários, qual melhor horário? E uma rotina que quando nós chegamos lá foi quebrada, então a partir desta quebra nós percebemos que melhorou bastante a convivência lá dentro porque essa relação que elas tem entre elas é uma relação apesar de não ter alguém da família delas, mas chega a formar uma família; a família hospitalar.Nós fizemos uma árvore, devido essas relações, porque tem brigas entre elas, existem conflitos e esses conflitos nós temos que aprender a administrar e a partir dessa árvore elas começaram a perceber a relação que é feita pra elas se respeitarem também (EDUCADORA CARINA).

A vida cotidiana apresenta-se como um nível da “totalidade” e como tal

não é um campo fechado, pois está ligado a outros níveis da realidade social como o

econômico, o biológico, o psicológico, etc. Portanto, é no nível da vida cotidiana que

emergem as grandes ações e criações e é nesse nível que essas são postas em

prática configurando um constante movimento criativo a práxis. Assim, “as criações

Page 138: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

137

devem vir à vida cotidiana para verificar e confirmar a validade da criação” (PENIN,

1989, p.17).

Portanto, a vivência é um elemento fundante da prática cotidiana e é a

partir da vivência, compreendida enquanto experiência sensível, que se abrem as

reais possibilidades de conhecimento do cotidiano, significando buscar ir além das

questões instituídas sobre a sociedade, sobre o saber e comportamento social, mas

uma mudança de perspectiva.

Significa saber distinguir, antes, aquilo que vem de baixo, a socialidade enquanto nasce, com a carga de afeto que lhe é inerente, do que as formas econômico-políticas das quais até então, se pensou que determinassem (ou sobredeterminassem) toda a vida social (MAFFESOLI, 1998, p.177).

Dessa forma, o cotidiano é compreendido como acontecimento, o qual é

determinado por fatores objetivos e subjetivos, por um conjunto de significações que

em sua dinamicidade tem ao mesmo tempo dimensão efêmera e perdurável. Nessa

dinâmica, o passado se encontra no presente, não de forma determinante, mas

atual. É assim que no cotidiano “aquilo que é sempre e renovadamente antigo é,

igualmente, sempre e renovadamente atual” (MAFFESOLI, 1998, p.178).

Imersas no cotidiano do Espaço Acolher as educadoras buscavam

superar as dificuldades de encontrar um horário para o encontro educativo que fosse

compatível com a disponibilidade das educandas, haja vista suas rotinas, no caso

das mães, de acompanhamento dos filhos e das vítimas de escalpelamentos, de

suas consultas e curativos. Outra dificuldade era a de encontrar as metodologias de

ensino que se adequassem à fragilidade de saúde e emocional apresentadas pelas

educandas, bem como a rotatividade que caracteriza as comunidades hospitalares.

A estratégia é sempre de fazer de cada encontro o encontro, o único porque devido sempre o nosso trabalho foi caracterizado pela rotatividade dentro dos espaços (...) a gente viu que não poderia fazer um planejamento fazendo essa seqüência de atividades, uma seqüencia da outra, embora a gente sempre tivesse fazendo a retomada. Agora a gente tem essa dificuldade, ter um planejamento que cada dia ele é o único, pra atingir o máximo possível os nossos objetivos, o planejamento é pensado a partir do que as mães mostram pra gente (EDUCADORA CARMEM).

Page 139: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

138

Fazer com que a práxis educativa do NEP se tornasse parte do dia-a-dia

do Espaço Acolher não foi tarefa fácil, pois exigiu muita convicção das educadoras

para pôr em prática o projeto de educação popular proposto pelo NEP, que teve no

apoio da Assistência Social mais uma motivação para seguir:

Ir pra lá quase duas ou três semanas sem conseguir fazer nada, de não conseguir fazer as atividades, a gente teve que conquistar as mães pra estarem com a gente e ela (Assistente Social), sempre teve ali incentivando não! Não! Não! vão desistir ....vocês não vão desistir, vocês não vão sair daqui, não desanimem.Então as palavras dela sempre foram de muito incentivo do nosso trabalho (EDUCADORA CARMEM).

Nesse processo, as educadoras foram cada vez mais se aproximando do

contexto de vida diária destas mulheres, de seus dramas, suas aflições e

encontraram os caminhos para desenvolver uma ação educativa que possibilitasse a

problematização das situações limites às quais as educandas enfrentavam:

Naquele momento ali a gente percebeu aquela fala e não tinha como fechar os olhos para as necessidades dela e que elas chegaram no Espaço Acolher. A conversa é o filho, as preocupações, as frustrações, as angústias tanto que várias vezes a gente deixou de por em prática um planejamento porque elas queriam apenas conversar queriam alguém para ouvir e a gente quando a mãe disse, pensei que fosse trazer alguma coisa sobre filho acendeu a luz. Bom, então, elas estão dizendo pra gente o que elas querem, qual é a necessidade delas, aí nós trabalhamos o desenvolvimento da criança a partir do útero. Elas adoraram a atividade, aí a gente conseguiu fazer uma seqüência nos primeiros meses, a gente viu que seria legal para elas aprenderem que são todas mães muito jovens, mães adolescentes até nós temos (EDUCADORA CARMEM).

E a cada encontro educativo foi sendo criada uma expectativa por parte

das educandas-pacientes, na qual a presença deste projeto tornou-se essencial para

a superação das dificuldades encontradas em contexto de tratamento médico-

hospitalar prolongado e fatigante. Dessa forma, as educadoras passaram a ser

reconhecidas como integrantes da comunidade hospitalar, juntamente com as mães

corujas, as escapeladas, as professoras passaram a ser reconhecidas como “as

meninas”: “As educadoras, as amigas, um pouquinho de psicólogas, as meninas, as

professoras” (EDUCADORA CARMEM).

Page 140: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

139

A presença da experiência educativa desenvolvida pelo Núcleo no

Espaço Acolher começou a gerar toda uma expectativa das educandas de aprender

a ler e escrever, de ampliar o conhecimento, de dialogar e de superar com o outro os

momentos de tensão e sofrimento, saudade, desesperança, evidenciados no dia-a-

dia do ambiente hospitalar. Como indica a fala da educadora Carina: “sempre eles

perguntam, a senhora vem amanhã? Não, a gente explica segunda, terça e quarta-

feira, então eles sentem falta, ficam na expectativa”.

A partir do estabelecimento desta experiência educativa no Espaço

Acolher, foi possível desenvolvermos uma relação de proximidade entre as

educandas e as educadoras, as quais nos possibilitaram tratar das formas de

representação de si que Rosa expressa como educanda-paciente do NEP.

5.3 VIDA EM PROCESSO: EXPRESSÕES DAS REPRESENTAÇÕES DE SI NO

CONTEXTO EDUCATIVO DA ALFABETIZANDA ROSA NO NEP

Destacamos este momento como uma fase significativa na história de

vida de Rosa, após ter sofrido o acidente, se encontrar em um ambiente estranho ao

seu convívio social e diante da vivência de uma situação-limite evidenciada pela

mutilação corporal e abalo emocional, ela encontra a possibilidade de realizar o seu

maior sonho: estudar.

A educadora Carmem nos relata como Rosa começou a participar dos

encontros educativos:

Não foi difícil a proximidade dos educadores com ela, o convite se deu naturalmente como a gente convida. A gente teve a liberdade de ir nos quartos pra convidá-los à participar, então, essa participação, ela não se deu com dificuldades, ela foi muito feliz, essa participação conosco e de início, claro muitos perguntam pra gente como é a nossa atividade, como a gente faz, então a gente explicou pra ela quais eram os nossos objetivos, ela perguntou porque nós estávamos lá, porque a gente tava ali pra ajudar, se ela tinha necessidade de aprender algo mais específico nos estávamos lá pra ajudar. Então ela expressou o desejo de aprender a ler e escrever então nós iniciamos o processo.

Page 141: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

140

Nesse momento, Rosa se depara com a oportunidade de ser alfabetizada

e chega a questionar como isso poderia ser possível em um local que não é a

escola. Com o decorrer da sua participação nos encontros, ela foi ressignificando o

ambiente hospitalar, a educação e ressignificando a sua condição de pessoa doente

e como tal, isolada e triste, passando a ser educanda-paciente do NEP:

Pra mim foi o momento que aquilo me chamou muito a atenção, foi que eu vim participar, ela foi me buscar aí me confortava, falava não se desespera porque tu vai embora pra tua casa, vai ver teus filhos, a gente tá fazendo isso pra vocês se alegrarem, pra vocês terem um momento de não tá pensando muito no filho de vocês. Aí elas começaram a conversar comigo aí eu vinha quando dava fé dava aquela gargalhada aí eu foi me acostumando (ROSA).

No decorrer do tempo com a sua participação nos encontros educativos,

aos poucos, Rosa foi fazendo a transição de um período de isolamento para a

socialização, que iniciou com a ressignificação da educação no ambiente hospitalar.

Não! Não, não, esperava até porque a gente não sabia, primeira vez que eu fui me internar e eu não sabia que tinha isso, pensei que era só internamento mesmo e tratamento pensei que não tinha esse momento, a pessoa largar o lar dele né? pra vim, é ter esse momento com a gente passar a experiência dele pra gente que tá aqui né no hospital doente, fazer essa amizade toda (ROSA).

Em seu município antes do acidente, ela estava estudando em uma

escola pública com o objetivo de alfabetizar-se, participando da Educação de Jovens

e Adultos, na qual teve uma experiência diferenciada da que estava tendo no

hospital. Na escola, representava-se como “burra”, inferior a quem sabia ler, não ser

alfabetizada significava não saber nada.

Foi importante porque eu era, que eu era burra não sabia de nada, desenvolvi mais com a ajuda da minha irmã em casa... mas como antes tinha outra professora lá que a gente não gostou, aí teve que chamar outra né. Essa outra não é bacana, meus filho que com essa outra estudava e nunca que sabiam ler sabe se chegasse em casa, tu não sabe ler não sei nem o abcd e o que vocês fazem tanto na escola ...a professora tá com dor de cabeça. Agora não o meu marido disse que os meus filhos, quando eu vim de lá ele passou pra primeira, ele

Page 142: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

141

passou pra segunda, agora ele já passou pra terceira, então começaram bem ler e pra gente que é mãe é uma alegria que não teve essa oportunidade e os filho da gente tendo né (ROSA).

Os saberes que ela tinha construído ao longo da sua vida não eram

concebidos como legítimos, pois não foram adquiridos no ambiente escolar. As

condições de apreensão dessa concepção de hegemonia do saber científico e

legítimo do ambiente escolar em detrimento do saber construído nas práticas sociais

cotidianas apresentam-se ligadas à relação o que sei e o que sou e, portanto, não

ter tido acesso ao saber sistematizado na prática escolar significa não saber, não ter

conhecimento, ser inferior. E, assim:

Se você é uma dona de casa, uma criança de cinco anos ou um camponês vivendo numa comunidade rural dos Andes peruanos, você provavelmente será portador de crenças, de visões leigas, ideologias, de mitos ou superstições, mas não de conhecimento (JOVCHELOVITCH, 2008, p.1169).

O que implica dizer que há condições particulares de sustentação e

produção de um sistema de saber, que ocorre segundo Jovchelovitch (2008) na

arquitetura da intersubjetividade, em que a construção de representações do sujeito

ocorre por meio das relações Eu-Outro-objeto, em seus processos comunicacionais

os quais implicam “o posicionamento dos interlocutores, o laço emocional entre os

interlocutores e como eles estabelecem simetrias ou assimetrias no diálogo”

(JOVCHELOVITCH, 2008, p.173).

Portanto, no processo de construção de uma identidade pressuposta

representada, por exemplo, na condição de inferioridade da Rosa, estão subjacentes

três dimensões das representações:

a dimensão subjetiva, afetiva ou pessoal, que corresponde ao laço emocional entre interlocutores; a dimensão intersubjetiva, que corresponde ao status ou posicionamento dos interlocutores bem como à natureza do diálogo que eles estabelecem; e, finalmente, a dimensão objetiva, que corresponde à construção do objeto-mundo (JOVCHELOVITCH, 2008, p174).

A negação das suas oportunidades de estudar, na sua idade escolar, foi

um acontecimento que marcou muito a sua vida e que lhe trouxe um estigma de

incapacidade, o qual foi interiorizado e materializado na sua representação de si

Page 143: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

142

como alguém inferior. Condição que não desejava aos seus filhos, mostrando

grande preocupação com a educação escolar dos mesmos, “porque o meu pai e a

minha mãe me tiraram do estudo por causa do trabalho aí eu não quero tirar eles pra

eles não ficarem com essa queixa”. Portanto, Rosa não quer que seus filhos sejam

discriminados por não saberem ler e escrever como ela é:

Pra mim o momento mais triste foi porque eu não teve o estudo, eu não pude realizar o sonho que eu tinha, aí foi isso muito difícil pra mim. Em todo lugar perguntava se eu sabia ler, eu dizia que não, poxa mas tu tem um jeito de quem sabe ler.Todo mundo chegava perto de mim, tinha até vez que perguntava um nome né pra mim,eu ficava toda acanhada porque eu não tinha nem como ler né porque eu não sabia, é muito difícil. Dizia assina aqui, eu dizia não sei.Tem muita gente que faz caçoada poxa tu não sabe ler? Aí a gente fica toda acanhada (ROSA).

Rosa busca na educação escolar, por meio da sua alfabetização, uma

forma de abandonar a sua representação de inferioridade em relação a quem sabe

ler e escrever, de livrar-se das práticas discriminatórias e excludentes sofridas em

sua família, em seu grupo social, que acarretam na perda da sua autoestima e na

interiorização de uma identidade pressuposta de incapacidade, a qual é reposta em

seu convívio social. Condições que segundo Oliveira (2004) caracteriza o sofrimento

ético-político vivenciado pelos excluídos da escolarização:

O sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes de cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade (SAWAIA 1999, apud OLIVEIRA, 2004, p.3).

A negação do que a nega como sujeito de transformação da sua

realidade, como ser capaz, revela o processo dialético de construção de sua

identidade-metamorfose, que pode ser ocultada pelas condições adversas de sua

vida, que dificultam a tão desejada escolarização devido às suas ocupações na

família e no trabalho.

Nas formas de representar a si, cada sujeito desempenha papéis

decorrentes de suas posições colocadas nos grupos sociais dos quais faz parte,

ocorre formalmente a atribuição de um caráter atemporal à identidade pressuposta

que é constantemente reposta, ficando “oculto o verdadeiro caráter

Page 144: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

143

(substancialmente temporal) de minha identidade (como uma sucessão do que estou

sendo). Toda aparência é de estabilidade, ausência de movimento e de

transformação” (CIAMPA, 1998, p.178).

Não saber ler é uma condição de exclusão de um mundo letrado. Por não

ter acesso à informação por meio da leitura, ela se inferioriza, essa condição é tão

forte que seus outros conhecimentos não são válidos para superar tal condição:

A minha sogra dizia, olha filha tu tens que estudar porque a gente sabendo, a gente não se amarra chega numa paragem que chegar, em tal paragem aí lê o nome lá, fui estudar já depois que eu tava com o meu marido (ROSA).

Em seu relato, Rosa apresenta como referência de sua experiência

escolar a prática educativa das suas professoras, de uma que não tinha paciência

de lhe ensinar, de lhe ajudar a superar as dificuldades enfrentadas em seu processo

de alfabetização e outra que apresentava ter paciência e, portanto, ser uma pessoa

educada.

Foi boa, logo né porque tinha uma professora que...mas como ela já tinha muito tempo não tinha mais aquela paciência. Foi o caso que a gente pediu outra, aí agora é uma outra professora, é muito educada (ROSA).

As pessoas atendidas na Educação de Jovens e Adultos apresentam,

segundo Oliveira (2004, p.1-2), três especificidades: a etária, caracterizada pela

(não-infância), pessoas que não tiveram acesso ou foram excluídas do processo

educativo escolar na chamada idade escolar (dos 07 aos 14 anos), “Não são

crianças, mas pessoas jovens, adultas e idosas com experiência de vida e

Profissional”; a especificidade sociocultural, “Jovens, adultos e idosos

«marginalizados» pelo sistema econômico-social, vistos como «analfabetos» e

muitas vezes considerados «incapazes de aprender»”; e a especificidade ético-

política, “porque está no centro da relação de poder existente entre os escolarizados

e não escolarizados,entre os alfabetizados e os não-alfabetizados”.

Diante dessas especificidades, considera-se o educador sob a

perspectiva proposta pelo NEP segundo Oliveira (2002 p.21-22):

Page 145: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

144

• Responsável pelo desenvolvimento da ação pedagógica, cabendo-lhe o papel de orientar, de pensar junto, de propor caminhos para a instrumentalização do saber escolar, existindo uma intencionalidade, ético-política no ato educativo que não pode deixar de ser considerada por ele; • Capaz de assumir o compromisso político com as classes populares, respeitando o seu direito de “dizer a sua palavra” e de ser, também, sujeito do conhecimento, compreendendo a sua situação social e trabalhando junto com ele para a superação da exclusão pessoal e social a que o jovem e adulto esta sujeito; • Capaz de instrumentalizar-se teoricamente para um reflexão permanente sobre a sua prática docente, buscando construir uma nova práxis pedagógica frente à pratica instituída , desassimilando hábitos adquiridos; • Compreender que a realidade socioeducacional é dialética, conflituosa, processual e dinâmica e o seu papel político é de problematizá-la, na busca conjunta com os (as) alunos (as) de desvelá-la e transformá-la; • Interagir com a comunidade buscando integrar escola e comunidade numa ação educativa popular.

De modo que a prática educativa que não considera as especificidades

das pessoas atendidas pela Educação de Jovens e Adultos, bem como adota

propostas teórico-metodológicas apartadas do contexto sociopolítico e cultural de

vida de seus educandos, pode funcionar como mais uma experiência de reposição

da representação deste educando como incapaz, inferior, na medida em que pode

tornar o ato educativo algo difícil, penoso e excludente.Condições essas que não

favorecem a ampliação do conhecimento e a sua autonomia na resolução de seus

problemas cotidianos.

Quando Rosa fala sobre sua escolaridade indica “sou burra”, e, que por

conta do trabalho, seus pais não permitiram que ela estudasse. A educação escolar

é vista como algo importante que lhe foi negado e que lhe trouxe uma condição de

um eu ser posto.

Esse eu ser posto é a interiorização do sujeito das atribuições que lhe são

dadas por meio da imposição de uma condição essencial de atemporalidade de sua

identidade, reproduzindo o social no estabelecimento de papéis a serem

representados pelo sujeito na família, na comunidade, no trabalho, dentre outros.

Tais papéis podem estar impregnados de atribuições preconceituosas, as

quais tomam corpo nas práticas sociais cotidianas que discriminam e estigmatizam o

outro, tendo como critérios elementos como gênero, classe social, etnia, bem como

religiosidade, escolaridade, ocupação no mercado de trabalho.

Funciona como condicionantes da desumanização do sujeito a negação

da sua materialidade como ser, segundo Freire (1987) e Ciampa (1998):

Page 146: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

145

• Histórico-cultural: cada ser humano nasce em um tempo e espaço

determinado pelas construções históricas e culturais herdadas e produzidas

dinamicamente pelo homem que ao produzir suas condições materiais de

existência, produz uma sociedade historicamente determinada. O que o

humaniza não é meramente a sua condição de ser produtor da história e de

cultura, mas a consciência de seu condicionamento e de sua

indeterminação no mundo e com o mundo “é certo que a continuidade

desse desenvolvimento constitui a substância histórica dele, que só deixará

de existir se não mais existir nem História, nem Humanidade” (CIAMPA,

1998, p.172)

• Político-social: cada ser humano estabelece-se como sujeito por meio

das suas relações com o outro, as quais mobilizam tensões de força,

conflitos, contradições e superações, condição em que “sozinhos

certamente não podemos ver reconhecida nossa humanidade,

conseqüentemente não nos reconhecemos como humanos. Ter uma

identidade humana é ser identificado e identificar-se como humano!”

(CIAMPA, 1998, p.38)

• Ser de práxis: cada ser humano é ser de reflexão- ação, ser de

atividade prática- crítica, na qual o ato consciente das condições de

desumanização é o que o humaniza, trata-se da condição de “reflexão e

ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1987,

p.109)

• Ser inconcluso: Cada ser humano é ser em constante transformação,

portanto, ser que não sabe tudo, é ser de busca do saber como condição do

seu saber-ser e saber-fazer. (FREIRE, 1987, p.32)

A vida de Rosa é marcada pelo sonho de deixar de ser “alguém inferior”,

que só seria possível se tivesse a oportunidade de estudar. E após casar-se e ter

seus filhos, esse sonho de infância esteve sempre vivo e mesmo com todas as

dificuldades ela luta para alcançá-lo. A não desistência de aprender a ler e escrever

revela a sua resistência aos processos de desumanização que seria a perda dos

sonhos e das possibilidades de mudança de vida.

Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação de forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história se acha em permanente processo de tornar-se (FREIRE, 1993, p.91).

Page 147: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

146

A educadora Carmem nos indica como caracteriza a Rosa: “eu sempre a

percebi como uma pessoa muito forte é nas atitudes e nas palavras”. Essa força a

foi motivando a superar seus próprios limites, diante de sua fragilidade de saúde, e,

com esta nova experiência educativa no hospital, a encontrar novos caminhos de

superação de um período de isolamento, perda da autoestima, silenciamento e

medo do futuro:

Tinha momentos que ela se isolava, ela não queria participar, então a gente ia lá buscá-la conversar, convencê-la e ela sempre ia, mas teve tempo que ela não ia mais,dizia hoje não, hoje eu não tô legal, hoje eu tô com dor de cabeça porque os curativos eles são dolorosos, doem elas sentem dor de cabeça ficam indispostas então isso a gente respeita. Só que eu, por exemplo, comecei a diferenciar a dor do curativo com outras dores. Ela gostava de tá lá, mas não gostava de falar, aqueles momentos, não eu vô ficar só vendo, vô ficar só olhando. Até que eu acabei descobrindo que essa falta de aproximação com as nossas atividades se davam pela imensa preocupação com que ela tava dos filhos, dos filhos tarem doentes longe dela. Ela saber que ainda ia passar por um período longo de tratamento, mas eu percebi muita força nela, pessoa muito cheia de coragem de garra e claro ela é ser humano também, tinha aquele momento de tristeza (EDUCADORA CARINA).

No período de isolamento em que Rosa sofria com os traumas causados

pelo acidente e com a perda da sua liberdade, devido à fragilidade de saúde, ela se

representava como prisioneira da sua enfermidade e nos encontros educativos

começou a expressar porque sentia-se desta forma:

A gente fica com a saúde da gente tem a liberdade, a gente pode trabalhar, a gente diz, hoje eu vou trabalhar, amanhã eu vou comprar tal coisa e a gente doente não né, tem a vontade de trabalhar, mas tá doente e não pode fazer nada, então a saúde da gente é uma coisa que dá liberdade (ROSA).

Os fatores que a oprimiam, como as tensões provocadas pela ansiedade

de voltar para casa e cuidar dos seus filhos, de conviver com as sequelas geradas

pelo acidente, de perder a sua liberdade de sair e trabalhar, necessidade de sentir-

se útil na sua família, foram sendo problematizados nos encontros educativos junto

com as demais educandas, momento em que as situações-problema iam sendo

Page 148: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

147

reveladas e ressignificadas por meio das reflexões que possibilitavam a construção

de novas formas de ver o mundo:

Tem pessoas que tem preconceito, mas elas devem saberem que isso não é da vontade da gente né, é um acidente então sou uma mulher de quatro filhos, trabalhadora (ROSA).

A Educação Popular se insere nesse contexto como prática de

valorização do ser humano em sua totalidade, práxis problematizadora na qual o

sujeito dialógico, ao questionar suas condições materiais no mundo, desvenda as

barreiras ideológicas que o impedem de perceber-se como sujeito da sua própria

história, como ser contraditório e inacabado.

Quanto mais se problematiza os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-lo (FREIRE, 1987, p.80).

A Educação Popular adentra nos espaços não convencionais de ensino,

como movimento social de ruptura com as práticas pedagógicas tradicionais. Insere-

se como movimento de contestação do estabelecimento das relações humanas

discriminatórias e excludentes e tem na reflexão-ação-reflexão sobre as condições

concretas de vida do sujeito no mundo e com o mundo o favorecimento de práticas

de solidariedades e de respeito à vida. Vida humana que é entendida como

“condição de possibilidade para a ação e para a reflexão sobre a ação” (DUSSEL

2000 apud OLIVEIRA, 2005, p.104).

Freire (1987, p.81) indica que:

a educação como prática de liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também a negação do mundo como uma realidade ausente dos homens.

Neste período, Rosa vivenciava um momento muito doloroso do seu

tratamento de saúde devido às seções de curativos e saudade dos filhos, o que fazia

com que ela ficasse isolada e deprimida. Nesse momento, foram de fundamental

importância as intervenções do Núcleo no dia-a-dia da educanda-paciente para a

Page 149: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

148

minimização do seu sofrimento e valorização da sua autoestima como nos indica a

educadora Carmem:

Ela queria se afastar e a gente ia lá e buscava pras atividades.Teve uma vez que ela disse ah! Eu não quero não, embora Rosa participa, vai ser bom pra ti, tu vais até sorrir.Eu quero é ir embora, eu digo não bora a gente brinca, a gente vai até sorrir.Não se eu sorrir, vão achar que eu tô bem e vão dizer pra eu ficar ainda mais aqui no hospital, se eu ficar assim vão me ver triste e vão dizer é essa menina, essa menina quer ir pra casa, então, vamos mandar ela embora. Aí eu disse, mas tu não podes ver isso assim.

Esta experiência educativa possibilitou, por meio da adoção de ações de

afetividade, dialogicidade e criticidade diante das situações limites vivenciadas,

condições significativas na percepção da Rosa sobre as suas possibilidades de

transformações em suas formas de representar-se mediante a sua condição de

educanda- paciente.

Para ela, aprender a ler e escrever era a única condição de libertar-se do

estigma de inferioridade, de deixar de representar-se como “burra”, incapaz, porém,

no decorrer de seus encontros educativos, começou a negar esta condição ao

perceber que também era uma pessoa que tinha muitos saberes adquiridos ao longo

de sua vida. Assim, o ato educativo libertador se estabelecia na relação dialética de

ensinar-aprender, como podemos perceber em seu relato:

Viver essa experiência foi uma coisa muito boa pra mim como eu falei, eu aprendi o que eu não sabia, assim também como elas aprenderam comigo muitas coisas que elas não sabiam. Eu aprendi muita coisa, tem as meninas (professoras) como eu falei né apesar delas não terem filho, mas elas dão uma explicação pra gente como umas mãe que já tem os filhos, já tenho seu compromisso de casa né. Então pra mim, isso foi muito importante eu era mãe, mãe de quatro filho vim aprender aqui com elas. É muito bacana o que elas ensinam, muito bom mesmo (ROSA).

Dessa forma, Rosa ressignifica o ato educativo ao ter acesso a uma

forma de educar diferenciada daquela que havia vivenciado na escola, concebida

por Freire (1987) como educação bancária, na qual, o professor é o detentor do

Page 150: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

149

saber, tendo como principal atribuição ser depositador de seus conhecimentos nas

mentes dos alunos, esses que nada sabem.

Educação que estabelece uma relação de hierarquia entre os sujeitos, na

qual, a sala de aula transforma-se em território de segregação entre os capazes e os

incapazes, de relações meritocráticas e de adoção de metodologias de ensino

voltadas para a memorização:

lá não tem essa explicação né, só escrever e elas prefere mais que a gente lê que elas conversam com agente, aqui não, elas participo, as meninas (professoras) vem e converso.Pra mim é mais diferente né (ROSA).

Nesse contexto, a educação popular em ambiente hospitalar emerge

como prática de inclusão social, crítica, dialógica e democrática, que na valorização

das experiências vividas pelos sujeitos da comunidade hospitalar e no favorecimento

da ampliação do conhecimento, propicia a construção de novas formas de

representar-se no mundo e com o mundo. Condições que são possibilitadas por

meio da práxis educativa libertadora, que tem nas diretrizes educacionais freireanas

elementos ético-políticos que permitem a consolidação da transformação de

realidades excludentes.

A educação dialógica tem na liberdade dos sujeitos de dizerem a sua fala

a condição existencial e política de expressão humana das suas posições no mundo,

por meio da comunicação que não se esgota na relação eu-tu e possibilita afirmar

que “ninguém pode dizer a apalavra verdadeira, sozinho ou dizê-la para os outros,

num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais” (FREIRE, 1987,

p.91).

Portanto, na práxis educativa do Núcleo, temos:

• o diálogo nas dimensões metodológica, política e existencial permite a comunicação entre os sujeitos do conhecimento, o direito de todos de dizerem a sua fala, a interação entre os saberes, a plena realização da condição humana, a problematização coletiva das situações existenciais e sociais, e outras.

• a oralidade apresenta-se como fonte de expressão do ser humano sobre o seu existir, o seu saber experienciado e a sua cultura. O educando tem que ser estimulado a falar e expressar sua visão de mundo, rompendo com a cultura do silêncio e o autoritarismo da relação tradicional professor/aluno (NEP,

Page 151: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

150

2008).

Por meio das atividades desenvolvidas nos encontros educativos no

Espaço Acolher, as educandas expressam nos diálogos suas condições existenciais,

seus problemas cotidianos, suas formas de pensar, ser e agir, fazendo com que o

ato educativo reflita-se em relações recíprocas de afetividade e amizade. Relações

que se dimensionam em formas de superação das situações problema vivenciadas,

por meio da desmistificação das condições de opressão evidenciadas em um

contexto de saúde-doença, inclusão-exclusão social. A educação, então, enquanto

especificidade humana se estabelece como forma de intervenção no mundo.

Elas não falavam só da situação de estarem escalpeladas, do que elas estavam sentindo da vergonha, não querer voltar pra casa, de não saber o que enfrentar quando chegasse, então aquele momento era um momento em que dava um novo sentido pra elas estarem ali,de ter pessoas que pudessem ouvi-las. Não precisava dizer nada, só o fato de tá ali ouvindo, a gente já tinha feito a nossa parte, então perceber isso dentro de um ambiente hospitalar é muito importante (EDUCADORA CARMEM).

Sempre que elas trazem algumas informações pra gente tem relação com a vida familiar, seja com os filhos seja com a própria mãe delas ou até mesmo da vivência no hospital das relações que elas tem (...) uma mãe colocou a vida inteira dela, o que ela havia passado no hospital com a filha dela e emocionou bastante a gente. Disse que ela nasceu de um parto prematuro e ela já nasceu com um problema na válvula e ela tava enfrentando, passando por uma situação muito difícil (...) quando elas querem falar elas falam (EDUCADORA CARINA).

Na problematização das condições de preconceito e exclusão social

vividas pelas vítimas de escalpelamento, devido principalmente à mutilação corporal,

Rosa encontra novas formas de representar-se e abandona a condição de

prisioneira da doença, da mutilação e encarna seu personagem de mulher, mãe,

trabalhadora. Mulher guerreira, que luta pela sua saúde para voltar à sua terra, ao

seu lugar:

é mudou né, porque é como eu to falando, eu tinha muita vergonha porque meu olho ficou assim, mas com a ajuda delas

Page 152: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

151

(professoras) eu foi se entrosando com as meninas e foi perdendo a minha vergonha.Então pra mim esse foi um momento mais feliz né, porque eu não olhei mais pro meu problema, eu larguei aquela vergonha.Elas começavo a conversar comigo, levar fazer graça e aí cada um é de um jeito.Então eu nunca vou esquecer desse momento. Os dia que eu passei aqui passei uns dia ruim, mas também com elas (professoras), com vocês né consegui superar e tô feliz por isso (ROSA).

A educação problematizadora se estabelece em um contexto de

mudança, de movimento, que não seria possível sem a materialidade e radicalidade

da condição humana de historicidade, o que pressupõe a reflexão crítica da

realidade que também é movimento. Parte do princípio de que “o meu “destino” não

é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me

eximir” (FREIRE, 1996, p.53).

A educação problematizadora tem no ato de perguntar a valorização dos

questionamentos que mobilizam outros novos questionamentos como condição ética

de reflexão humana no processo de ampliação do conhecimento de forma critica. O

encontro das respostas não são dados fechados, mas conclusões que partem da

percepção das contradições das situações políticas, existenciais de cada ser no

mundo e com o mundo que transforma:

• pergunta, como fonte do conhecimento humano.

• a criticidade, que possibilita ao educando problematizar a realidade

social e explicitar a “razão de ser” dos fatos, ao se estimular a

curiosidade e o ato de perguntar. O educando tem que ser

incentivado a perguntar, a problematizar a realidade social em que

vive (NEP, 2008).

A partir das problematizações das suas situações-limite vivenciadas em

um contexto de saúde-doença, Rosa encarna sua nova personagem, a mulher

corajosa, de luta pela sua saúde, mulher que sabe e que também pode ensinar.

Na minha vida marcou assim como o nosso interior é parado agente não sabia o dia das mulheres e a gente viveu esse momento aqui, essa experiência. A semana da páscoa que a gente também não tinha e aqui eu aprendi né, elas nos

Page 153: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

152

explicaram o dia das mães também foi muito bom. Elas passaram aí eu aprendi muito porque o que eu aprendi com elas, algumas coisas que eu aprendi eu vou passar pros meus filhos, o que eu aprendi lá com as meninas. Eu posso ensinar a desenhar, aí algumas palavras o que elas me ensinaram, porque eu esqueço aí eu vô lembrando eu vô ensinar lá pra eles (ROSA).

O exercício da condição de sua historicidade na construção de sua

identidade metamorfose se revela pela atuação de sua autonomia na tomada de

decisões sobre suas ações cotidianas. Tais mudanças que não se dão de forma

desligada da tomada de consciência de seu contexto de exclusão social, encontram

nas interrelações entre atividade, consciência e identidade, sua condição de

estabelecer-se como sujeito de sua história, “o fatalismo cede, então, seu lugar ao

ímpeto de transformação e de busca, de que os homens se sentem sujeitos”

(FREIRE, 1987, p.85).

A valorização do sujeito em suas condições de contínuas mudanças se

expressa na pedagogia libertadora segundo o Projeto Político Pedagógico do NEP

(2008) como:

Educação da autonomia:

•o educando tem que ser sujeito da ação educativa,

•participar ativamente na construção do conhecimento, sendo o educador o orientador.

•o educando assume sua condição de sujeito histórico buscando instituir uma sociedade democrática.

Educação ético-política:

• o educador deve promover ações educativas individuais e coletivas estimulando a solidariedade, o respeito às diferenças e a convivência democrática e coletiva em sala de aula.

• a práxis, como processo dialético permanente de reflexão-ação sobre o fazer educativo.

A educação ético-política, portanto, tem como condição prática a relação

com a identidade e a diferença enquanto construções sociais e culturais. O processo

de construção de identidades pelo sujeito tem nas suas experiências educativas

elementos significativos para o seu posicionamento no mundo, tendo em vista o

Page 154: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

153

estabelecimento das diferenças, que podem servir como condicionantes de práticas

segregadoras, discriminatórias, diante de oposições nós-eles ou podem revelar-se

como condição humana de expressão político-cultural.

A tolerância sob a ótica neoliberal estabelece uma concepção de

diferença como sistema de hierarquias entre os sujeitos, tendo como referência uma

cultura dominante Tal entendimento funciona tanto como imposição da

homogeneização cultural quanto reforça práticas de discriminação e negação das

diferenças. Para Freire (2004), a tolerância sob a ótica multicultural crítica deve ser

compreendida como qualidade humana de não apenas conviver com as diferenças,

mas de valorizá-las.

5.4 EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA PARA A ALTERIDADE: BUSCA DE

SUPERAÇÃO DAS IDENTIDADES NEGADAS

Nos encontros educativos, as diferenças são expressas e ligadas a

sistemas de significações que se articulam na construção das identidades de cada

sujeito. Para as educadoras, diferença é:

o que me faz diferente do outro. Que diferente é esse? As formas de conceber as coisas, o que eu acredito as limitações, os meus desejos, as minhas angústias, a forma como cada um procura se perceber, até acho que se conhecer (EDUCADORA CARMEM). o que eu tenho de diferencial, como as pessoas não são iguais, tem algo que te diferencia,então, seria o que diferencia essa pessoa, é em relação a isso que eu coloco como identidade é isso que te identifica, é digamos a Carmem já tem um jeito muito calado na dela e eu já sou falastrona, eu falo pelos cotovelos, então sempre quando falam sobre a Carmem, remetem a ela sobre algum gestual ou então alguma coisa que ela faz ou fala como as próprias alunas perguntam, quando elas não sabem o nome da gente elas perguntam dessa forma (EDUCADORA CARINA).

elas perguntam, professora, cadê aquela professora gordinha, a professora não gosta, mas eles identificam ela assim, o da Carmem é miúda, é sempre assim o meu é de magrela

Page 155: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

154

(risadas). Então cada pessoa. Da outra professora é a voz engraçada, as características vêm à tona. Então, é dessa forma que vemos, eu pelo menos vejo como identidade e percebo isso nelas também, porque sempre quando elas não sabem o nome de uma professora é diferente. Aquela que tem fala engraçada é do Piauí, então, o sotaque dela é deferente do nosso (EDUCADORA CARINA).

Na concepção expressa pelas educadoras, a diferença está diretamente

ligada à identidade do sujeito. Condição em que cada ser único estabelece seus

processos de diferenciação em relação ao outro, por meio da sua atividade social e

da diversidade cultural em que está inserido. Para as educadoras, o que

individualiza o sujeito como ser único são os aspectos:

Subjetivos: formas de pensar, ser e agir e de construir significados

específicos em suas interações com o outro e com o mundo;

Existenciais: formas de conceber as coisas e de reconhecer a si próprio;

Estéticos-corporais: condições objetivas do sujeito em sua forma corporal

que lhe é característica;

Os aspectos estéticos-corporais, no entanto, não são vistos como

determinantes do estabelecimento das diferenças entre os sujeitos, mas a sua

atividade social situada, principalmente, no contexto educativo.

Cada uma delas tem uma identidade única. A Rosa é diferente não porque ela é escalpelada ou porque vem de uma região diferente, mas ela é diferente porque a gente conseguiu aprender com ela. Ela dava abertura pra que você realmente produzisse o seu trabalho colaborasse na hora de falar do trabalho. Ela fala apesar de ser reservada, faz questão de participar quando está disposta. A Rosa sempre colaborava com as atividades que eram feitas (EDUCADORA CARINA).

A concepção de diferença emerge, então, no contexto de relações sociais

entre seres distintos, seres de atividade e consciência, que, no estabelecimento da

sua comunicabilidade, expressam suas significações e atribuições sobre o eu e o

não- eu.

A concepção de identidade e diferença apontada rompe com as

concepções que se limitam nas determinações de dicotomias: branco-negro,

masculino-feminino, homossexual-heterossexual e adentram no universo simbólico e

cultural, sob o qual cada sujeito é ser único, de relações e em formação. E, portanto,

Page 156: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

155

“questionar a identidade e a diferença como relações de poder significa

problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam” (SILVA, 2000,

p.83).

Assim, identidade é um permanente processo de identificação, em que ao

identificarmo-nos pertencentes a um grupo social, a uma cultura, a uma localidade e

a um tempo, demarcamos uma relação de igualdade mediante os sujeitos com os

quais compartilhamos tal experiência, e ao traçarmos um grau de subjetividade,

forma de pensar, agir, ser enquanto ser distinto, exercemos a relação com a

diferença na construção da identidade.

Identidade, portanto, que não está apartada das tensões de poder, pois

se estabelece nos territórios objetivos e políticos de classes e grupos sociais e nos

territórios subjetivos das emoções e condições existências de cada sujeito.

Condições que se revelam na atividade humana, que, por meios das diversas

experiências vividas, constituem-se em aprendizagens que se dimensionam num ser

em identificação.

Nesse contexto, a cultura emerge como processo histórico-social, no qual

o sujeito é ator de aprendizagens constantes, ser de interações sociais, em que são

estabelecidas e expressas as subjetividades, os símbolos, crenças, práticas e

criações que tomam parte do cotidiano de vida de relações com a natureza, com o

outro e consigo.

A vivência de Rosa nos encontros educativos do NEP favoreceu a

perspectiva de superação das condições de fragilidade física e emocional, geradas

pelo acidente de escalpelamento, das situações da negação de sua humanidade, da

sua condição de ser em formação, novas formas de reconhecer-se:

eu gosto do meu jeito porque eu me sinto uma pessoa alegre com tudo que, com a dificuldade com o meu olho, mas eu não me intimido. Eu converso, eu brinco, eu faço graça. Pra mim, eu sou mais forte ainda (...) porque o sofrimento ele tem que tá debaixo dos pés da gente e não na frente, porque se a gente colocar aquele problema lá na frente da gente, todo tempo a gente tá com aquele problema. Então praquilo sair, a gente tem que seguir, tem que conversar, tem que brincar pra quilo sair da mente da gente (ROSA).

Page 157: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

156

Rosa nos relata sobre a importância da sua participação na experiência

educativa no ambiente hospitalar para a recuperação da sua saúde e autoestima.

Para ela participar da experiência educativa significa uma forma de luta pela saúde,

de estabelecimento de novas amizades e de novas aprendizagens:

a pessoa largar o lar dele né pra vim ter esse momento com a gente passar a experiência dele pra gente que tá aqui né, no hospital doente, fazer essa amizade toda (...) aquela dificuldade, vocês sabem que a gente passa todo esse tempo aqui mas vai com a esperança que tá boa né, já tá recoperada e é muito importante né pra gente (ROSA).

Essa experiência educativa se revela como prática de construção de

novos significados sobre si e sobre o outro que se manifestam em formas de

aprendizagens tanto para as educandas-pacientes quanto para as educadoras, na

medida em que ambos constroem o saber. Dessa forma, é perceptível o fenômeno

educativo envolvido em cada território de formação humana, no cotidiano, nos mais

variados espaços e diante das situações concretas de vida. Para a educadora

Carmem, participar dessa experiência educativa:

é acreditar que tudo é possível, é perceber o outro, perceber que a educação se dá das mais variadas formas.Isso eu aprendi aqui no NEP,aprendi no hospital e a gente é até desafiada a isso, o que vocês tão fazendo aqui ? Qual o objetivo? Então a gente tá desafiado a mostrar aquelas pessoas que a educação também se dá naquele espaço de diversas formas e desafiados porque a gente lida com o emocional o tempo todo. É superar, é esquecer muitas vezes de nós mesmos porque quantas vezes pelo menos eu já fui pra lá com coisas que estavam me angustiando e do hospital pra dentro eu esqueci. Fiz daquele momento pra superar. Então, acho que é isso, é superação e reconhecer o outro como sujeito e de se encantar pelas aquelas pessoas, de se encantar pela uma nova forma de educar, de levar essa educação.

A educadora do NEP aponta a prática da educação popular em ambiente

hospitalar como um constante desafio, como superação e encantamento e, no

concretizar dessa experiência, a formação dos sujeitos envolvidos revela-se na

abertura às novas possibilidades e formas de estar no mundo enquanto educando,

Page 158: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

157

educador, acadêmico, profissional, membro de uma família, de uma comunidade,

mas, principalmente, enquanto ser humano. Assim, o Núcleo se materializa como

agência formadora, como espaço de fomentação de aprendizagens:

é uma escola num sentido mais amplo da palavra; o verdadeiro dentro de uma instituição chamada UEPA, uma escola que falta ainda ser valorizada dentro da instituição, mas que fora tem uma valorização imensa pelos trabalhos que ele desenvolve. Escola para os estudantes da universidade, escola para os professores da universidade, para quem participa enquanto educador e enquanto educando. Escola para as comunidades que tem esse contato com o NEP. Aqui a gente aprende o verdadeiro sentido de uma educação popular, de uma educação para a autonomia do sujeito, que percebe o sujeito não enquanto objeto, por isso que eu digo escola em um sentido mais amplo da palavra (EDUCADORA CARMEM).

A possibilidade de vivenciar uma experiência educativa no período de

formação universitária apresenta-se como elemento significante na qualificação

acadêmica profissional dos educadores:

profissionalmente significa um passo a mais como educadora, em atuar enquanto educador que pensa em espaço escolar e aprender ser professora em um ambiente hospitalar é diferente, a forma de educar é diferente, muito diferente da escola, então pra mim é um passo a mais, uma experiência a mais e pessoalmente é superar muitas coisas. Aprender a olhar o sujeito não a patologia dele naquele espaço, de não ter medo de estar lá, de ouvir. Porque muitas pessoas tem aquele receio ah! Eu vou pra lá, vou me sentir sensibilizado ...eu sempre digo se tu fores pra lá com o olhar de que tu vais encontrar pessoas, sujeitos ricos em cultura, saber, tu não vais ter tempo pra se prender na patologia que ele tem naquele momento. E claro que tem que perceber, tem conhecer porque vai fazer parte do teu relacionamento ali com ele, então tem que conhecer o problema que ele está passando até como atuar, mas não que isso seja o fundamental, o foco não é esse (EDUCADORA CARMEM).

A experiência educativa desenvolvida pelo NEP no ambiente hospitalar

Espaço Acolher, aqui apresentada, demonstra a relevância da ação educativa

desenvolvida pelo profissional da Pedagogia no processo de melhora do quadro

Page 159: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

158

clínico das pessoas em tratamento médico-hospitalar, por meio da valorização das

práticas de humanização dos espaços e relações interpessoais.

Tem papel fundamental dentro do ambiente hospitalar, porque quando o pedagogo entra no espaço muda a rotina quebra aquela rotina e aí o paciente que era excluído começa a ser incluído porque, a rotina de cirurgias, de remédios, de consultas,são feitas diariamente,então, quando nós chegamos no espaço criamos uma rotina também mas uma rotina que vai sendo modificada diariamente, diferente do que eles estão acostumados: três horas remédio, quatro horas consulta, vou fazer exame,então isso é quebrado. Porque nós vamos pra lá fazemos as atividades, mas uma atividade muito ligada à outra, então apesar de ter aquele horário essa atividade vai render outros frutos (EDUCADORA CARINA). O pedagogo dá um outro lado humanizador dentro do hospital que é o lado da educação que é o da alfabetização, levar uma outra esperança que é de se inserir novamente na sociedade, faça com que eles estejam ali mas não estejam alheios ao que está acontecendo ao redor deles. Porque o que acontece é que eles se fecham, passam tanto tempo ali dentro que muitos ficam alheios. O pedagogo está ali com um novo jeito, com uma nova visão do espaço. Faz acontecer outras coisas independentes da rotina de consulta, de injeção (EDUCADORA CARMEM).

Como forma de desmistificar a concepção de ambiente hospitalar como

espaço de isolamento social e de negação das subjetividades humanas, espaço de

ociosidade e sofrimento, a educação popular em ambiente hospitalar demonstra que

nesse espaço e no contexto de tratamento de saúde se estabelecem redes de

saberes, símbolos, crenças, aprendizagens, manifestações humanas que

perpassam pelas expressões culturais e políticas do contexto de vida de cada ser

humano.

Buscando romper com o caráter meramente informativo, tal proposta

educativa parte do princípio da compreensão do ser humano em sua totalidade e

complexidade, na construção dos saberes e práticas cotidianas e nas relações

interpessoais de expressão cultural, de subjetividades e conflitos.

Nesse contexto, a educação popular defende a emergência de ações

educativas que tem como premissa a valorização dos sujeitos em suas diferenças,

Page 160: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

159

sob a ótica da valorização do outro enquanto ser singular e cultural e não sob a

perspectiva de um modelo de ser humano construído ideologicamente por uma

cultural dominante.

Trata-se de uma ação educativa para a alteridade, que, como inclusiva,

rompe com o olhar determinista sobre o ser humano, que mediante sua raça, gênero

e cultura, tem prescrito na sociedade neoliberal o que pode ou não pode fazer ou

sonhar e concretizar.

Portanto, a relação educação e saúde, em uma perspectiva

intervencionista, evidencia o contexto social brasileiro ideologizante das políticas de

exclusão e estigmatização da diferença. Para Mclaren (1997, p. 78-79):

A diferença é compreendida por meio de uma política de significação, isto é, de praticas de significação que são tanto reflexivas quanto constitutivas de relações políticas e econômicas prevalecentes [...] As diferenças são produzidas de acordo com a produção e recepção ideológica de signos culturais [...] a diferença não é “obviedade cultural”, tal como negro versus branco ou latino versus europeu ou anglo- americano; em vez disso, as diferenças são construções históricas e culturais.

Trata-se, segundo Mclaren (1997, p.95), de uma pedagogia inserida no

contexto do pós-modernismo de resistência, o que pressupõe não apenas a

valorização da diferença enquanto elemento constitutivo da complexidade humana,

mas como forma de não repetir e romper com as práticas que visam ao

essencialismo monocultural. Portanto, faz-se necessária a luta a favor de “uma

solidariedade que se desenvolva a partir dos imperativos da libertação, democracia

e cidadania crítica”.

A educação libertadora busca a ruptura com o sistema de opressão das

expressões humanas e luta pela democratização das relações sociais e do próprio

exercício da cidadania. Estabelece-se como práxis educativa de oposição da

opressão que mascara sob o discurso da tolerância e da diversidade cultural

práticas excludentes por meio de um consenso falso, “isto porque a estrutura

normativa que posiciona a diversidade cultural serve ao mesmo tempo para conter a

diversidade cultural” (MACLAREN, 1997, p. 76).

Diante das questões apontadas a ação educativa desenvolvida pelo NEP

junto às comunidades hospitalares tem se configurado como um esforço de

favorecer uma nova relação entre educação popular e saúde, na medida em que a

Page 161: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

160

própria compreensão de educação pauta-se no processo ético-político, no qual o ato

educativo assume o caráter humanizador das relações sociais.

Page 162: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

161

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Adentrar em um contexto educativo com o olhar de pesquisador exige

abrir-se ao imprevisto, ao provável e ao improvável. Exige vestir-se com o olhar

inquisidor, envolver-se com os indícios na busca de exercitar teoria e prática. A

ciência da qual buscamos praticar com este estudo fundou-se nas interrelações

entre produção de conhecimento, estar com o outro e encantar-se.

As considerações finais deste estudo, que, inicialmente, visam dar

respostas aos questionamentos que geraram esta pesquisa, apresentam-se como

parte de novos questionamentos que se revelam nas redes de saberes das quais

cada ser humano é construtor.

O estudo sobre os processos da construção das identidades humanas

mediante as perspectivas da psicologia social possibilitou-nos adentrar em um

território complexo de estudos e práticas voltadas para o sujeito em suas dimensões

biopsicossociais. Dimensões sobre as quais as experiências educativas do sujeito

tornaram-se fundamentais para compreendermos o que Josso (1988) nos indica, o

sujeito em formação e da formação.

Para tanto, buscamos nos aproximar do contexto de vida da educanda-

paciente Rosa, no lócus da pesquisa, para compreendermos a dinâmica social do

ambiente hospitalar, sobre a qual as relações interpessoais estiveram no centro de

nossas observações.

Nas observações das relações interpessoais efetivadas no ambiente

hospitalar do Espaço Acolher, apresentamos as seguintes considerações, mediante

os elementos a seguir.

Relação com o saber

Detectamos que as tensões sociais de poder e conflitos que envolvem as

relações interpessoais no ambiente hospitalar estão envolvidas com os processos

de estabelecimento das diferenças que adotam como critério a relação com o saber,

vinculadas ao estabelecimento do status e papel que cada membro da comunidade

hospitalar deve desempenhar.

Nesse sentido, existe no ambiente hospitalar uma hierarquização social

entre aqueles que possuem o saber científico (profissionais da área da saúde e

Page 163: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

162

educação e serviço social), os que sabem e aqueles que estão em tratamento de

saúde e seus acompanhantes, em sua maioria pessoas analfabetas ou com baixa

escolaridade, os que não sabem.

Sabemos que a relação com o saber, tendo como referência o científico,

está atrelada a uma condição paradigmática que fundou a ciência moderna, no

entanto, a problematização e debate sobre os contextos dos saberes nas diversas

instituições e comunidades fazem-se necessários para que se concretizem em

novas relações entre a vida prática e seus sujeitos.

No ambiente hospitalar, a manutenção da hierarquização entre os que

sabem e os que não sabem propicia uma condição de passividade do sujeito sobre o

seu tratamento de saúde, conferindo a eficácia ou não do seu tratamento sob a

responsabilidade do profissional.

Nesse contexto, destacamos a relevância das práticas educativas

voltadas para a relação educação e saúde no favorecimento de experiências ético-

políticas que mobilizem o sujeito em formação, enquanto ser de criticidade e

autonomia diante das situações limites vivenciada em contexto de saúde-doença, no

qual os profissionais e as pessoas em tratamento de saúde reconheçam-se como

corresponsáveis por suas ações.

Solidariedade e afetividade

Quando a pessoa em tratamento de saúde e seu acompanhante se

instalam no Espaço Acolher, lhes são informadas as regras de funcionamento desse

ambiente, os horários de refeição, de assistir televisão, visitas, entrada e saída.

Essas pessoas, diante de um novo contexto de vida diária, começam a se relacionar

inicialmente com pessoas desconhecidas em um espaço em que exercitam o saber

lidar com as diferenças, saber respeitar o espaço do outro. Convivem no cotidiano

voltado para o tratamento de saúde: crianças, jovens, adultos e idosos, que ora

entram em conflitos, se desentendem e ora expressam a tolerância no saber-viver

juntos.

No Espaço Acolher, as relações interpessoais entre as pessoas em

tratamento de saúde, seus acompanhantes, profissionais (enfermeiros, pedagogos,

assistentes sociais) e pessoal de apoio, são estabelecidas por meio de práticas de

solidariedade e afetividade como forma de superação das dificuldades encontradas

Page 164: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

163

em uma rotina que envolve consultas, curativos, cirurgias, medo de não ficar curado.

No caso das vítimas de escalpelamento, medo de retornar à sua comunidade e

enfrentar o preconceito, a rejeição de seus familiares e amigos devido às mutilações

corporais que são irreversíveis.

Como forma de superação do medo, a manifestação da esperança e da fé

na cura se revela nas práticas de religiosidade e solidariedade com a dor das

pessoas em tratamento de saúde. Não é raro observarmos, no cotidiano do Espaço

Acolher, pessoas conversando e construindo novas amizades, compartilhando suas

angústias, seus problemas pessoais e alegrias. A notícia de alta médica, que

caracteriza a volta para casa, é um momento de alegria e não são raros os apertos

de mãos e abraços na despedida.

Dessa forma, podemos concluir que o exercício da tolerância enquanto

compreensão e valorização das diferenças se estabelece no Espaço Acolher nas

manifestações de práticas coletivas de afetividade e solidariedade como forma de

superação da enfermidade, de luta pela cura.

Na análise do processo de construção de identidade a partir da

representação de si que a educanda-paciente expressa em sua trajetória de vida,

tendo como referência antes e depois da experiência educativa com o NEP,

destacamos os fatores que interligados apresentam-se como significativos na

construção das identidades de Rosa ao longo da vida, a partir de suas vivências

sociais desde a infância, perpassando pela adolescência e maturidade.

Para tanto, tivemos como ponto de partida as atividades sociais de Rosa

no mundo articuladas com a consciência que se revela nos territórios do existir

humano, em suas concepções do que somos ou estamos sendo, que nos

possibilitaram fazer as seguintes considerações.

Relações familiares

Desde a infância, Rosa veio estabelecendo suas formas de representar a

si a partir de suas relações interpessoais com seu pai, mãe e irmãos. No âmbito

familiar, as formas de articulação com a diferença na construção de suas

identidades estiveram intimamente relacionadas com os elementos: gênero e etnia.

Tendo como referência a cor da sua pele, foram indicados em sua família seu status

e papel. Não era a filha querida do seu pai e era alguém que devia trabalhar ao sol e

Page 165: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

164

não no ambiente doméstico. Dessa forma, a Rosa da infância representava-se como

o menino chamado Preto, menino-moleca, que vivia livre nas matas e nos rios.

Em sua adolescência e maturidade, seu estabelecimento perante sua

família como mulher esteve diretamente ligado à sua condição biológica de

reprodutora e, dessa forma, a construção de sua identidade como mulher estava

atrelada à maternidade. Essas condições evidenciam que no processo de

construção de identidade as relações do sujeito com o fator gênero atuam sobre a

adoção de papéis determinados socialmente, os quais funcionam como

padronizadores das formas de ser e agir dos sujeitos. Assim, o período em que

Rosa não engravidou caracterizou a sua não adequação aos padrões estabelecidos

à mulher em sua família e comunidade.

O trabalho

A partir das determinações de seus papéis na família e na sua localidade,

o cotidiano de Rosa é marcado pelo trabalho na cultura da terra, trabalho na roça e

nas matas, na derrubada de árvores.

A representação de menina disfarçada de menino livre na infância dá

lugar, na sua adolescência, à menina presa no ambiente doméstico e escrava do

trabalho na roça. A representação de si como mulher trabalhadora perpassa pela

sua adolescência e maturidade.

A partir de suas experiências de maternidade, o trabalho toma um novo

sentido, pois, já não a escraviza, representa prática de compromisso,

responsabilidade com os filhos. Condições que na maturidade dão materialidade à

representação de si como mãe, mulher e trabalhadora, pessoa de responsabilidade

com seus filhos e com seu marido.

Processos socioculturais

Ficou evidente que os processos de significação e ressignificação do

cotidiano de vida em seus contextos socioculturais se apresentaram como atuantes

na construção das identidades da Rosa, tendo como referência o sentimento de

pertencimento a uma localidade, Portel, a uma comunidade ribeirinha localizada em

Page 166: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

165

Pacajá, e, após o acidente de escalpelamento, pertencente à comunidade hospitalar

do Espaço Acolher, que para ela significa uma nova família.

Assim, o sentimento de pertencimento a uma comunidade ribeirinha e a

uma comunidade hospitalar articuladas às práticas sociais cotidianas estabelecidas

nesses espaços se materializou na expressão de suas identidades representadas

como pessoa de dentro do rio e como membro de uma nova família: a família

hospitalar.

Como membro dessa nova família, diante do cotidiano de tratamento de

saúde, Rosa representa a si como mulher guerreira que luta pela saúde para

retornar a sua comunidade ribeirinha e cuidar dos seus filhos.

Aspectos estéticos

Devido às mutilações corporais geradas pelo acidente de escalpelamento,

Rosa representa a si como uma pessoa diferente, mulher mutilada e sem saúde,

portanto, sem liberdade para sair e trabalhar.

A educação

Na reconstrução da história de vida da Rosa, ficou evidente a relevância

de suas experiências educativas no ambiente escolar e hospitalar para a construção

das suas identidades. Essas experiências estão atreladas aos processos e

manifestações culturais expressos em sua localidade e no ambiente hospitalar, que

em suas experiências de vida vão ganhando novos significados sobre a vida no

campo e na cidade, o ambiente hospitalar e a educação.

Em suas perspectivas sobre a vida na cidade estava a possibilidade de

ter por meio dos estudos uma profissão que lhe garantisse o sustento, longe do

trabalho braçal ao sol, mas que, principalmente, lhe possibilitasse ser alfabetizada

para abandonar a identidade pressuposta de pessoa inferior, sem conhecimento.

Com a vivência no hospital, em sua fase madura, já não busca a vida na

cidade e ressignifica a vida no campo, como espaço onde pode criar seus filhos

livremente, espaço que agora possibilita a ela e a seus filhos os estudos e o

sustento da família.

Page 167: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

166

A exclusão da Rosa da experiência educativa no ambiente escolar

favoreceu a interiorização de sentimentos de incapacidade e inferioridade que se

materializaram na representação de si como pessoa inferior, sem conhecimento,

“burra” e incapaz de estabelecer sua autonomia na resolução dos problemas

cotidianos. Essa forma de representar a si aponta para um processo de construção

de uma identidade pressuposta, na medida em que essa identidade era imposta

socialmente e reposta em suas relações sociais em sua localidade, principalmente,

nas reuniões familiares.

Para Rosa, ter vivido a experiência educativa com o NEP no ambiente

hospitalar e diante de uma proposta metodológica diferenciada da que havia

conhecido no ambiente escolar, possibilitou-lhe construir novos significados sobre a

educação e sobre os espaços e formas em que a educação pode se desenvolver,

bem como sobre as relações interpessoais que envolvem o contexto educativo.

No ambiente escolar, onde vivenciou a Educação de Jovens e Adultos, no

município de Portel, Rosa apresenta essa experiência educativa voltada para a

escrita e memorização, que lhe garantia uma forma de aprendizagem dificultosa e

cansativa, em que a relação entre educando e educador se dava de forma

hierarquizada, caracterizando uma prática pautada na pedagogia tradicional,

indicada por Freire (1987) como bancária. Pedagogia tradicional na qual o diálogo

dá lugar a prática expositiva, em que o educador é detentor da fala pela qual é

repassado o seu conhecimento ao aluno, que esse, por sua vez, não conhece.

Diante dessa experiência educativa escolar, Rosa representava a si como

pessoa que não sabe, não tem conhecimento. Com a vivência educativa pautada em

uma pedagogia crítica sob a perspectiva freireana de educação no ambiente

hospitalar com o NEP, a educanda-paciente pôde fazer comparações com a

experiência anterior e destacar a importância do diálogo e da contextualização da

prática educativa no favorecimento da ampliação do conhecimento. Enfatizou a

relação democrática entre educador e educando que possibilitou o estabelecimento

de uma relação de amizade. No contexto educativo do NEP, a educanda-paciente

representa a si como pessoa que sabe, aprende e ensina.

Os dados apontam que o trabalho educacional do NEP trouxe

contribuições na formação e superação da identidade negada da educanda-

paciente vítima de escalpelamento, pois:

Page 168: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

167

• Motivou a contestação de sua identidade como ser

incapaz, sem conhecimento e, portanto, inferior;

• Possibilitou compartilhar as situações-problema

vivenciadas pelas outras educandas-pacientes e, mediante as

problematizações coletivas das realidades complexas de vida, levantar

questionamentos e respostas sobre seu próprio existir no mundo e com o

mundo;

• Diante de seu contexto de fragilidade física e emocional,

participar da experiência educativa do NEP caracterizou uma forma de

superar a representação de si como prisioneira da doença, da mutilação e a

encarnar seu personagem de mulher, mãe, trabalhadora. Mulher guerreira,

que luta pela sua saúde para voltar à sua terra, ao seu lugar;

• O exercício de questionamento sobre o seu saber-ser e

saber-fazer em suas relações com o outro no ambiente hospitalar e na sua

comunidade fez com que Rosa começasse a perceber a validade dos seus

saberes construídos nas suas práticas sociais cotidianas, por meio da busca

coletiva da resolução das situações problemas expressas nos encontros

educativos;

• Seus saberes e sua experiência de vida possibilitaram

apoiar e orientar as colegas nos encontros educativos, ao tratarem de temas

relacionados ao cotidiano de vida de cada participante, que tinha como

especificidade a condição de ser mãe, articulados a temas como: família,

educação, mulher na sociedade e trabalho;

• Ao ressignificar a educação, Rosa passa a representar-se

como ser que aprende e ensina, ser que sabe e, dessa forma, passa a

superar a sua identidade pressuposta de inferioridade e incapacidade, de

pessoa que não sabe, caracterizando a identidade-metamorfose, mediante

o estabelecimento para si de novas perspectivas de futuro em sua

localidade junto a sua família.

Neste sentido, ao investigarmos como uma alfabetizanda do NEP, em sua

trajetória de vida e tratamento de saúde hospitalar representa a si na situação de

educanda-paciente, mediante a análise dos dados, podemos concluir que se segue.

Page 169: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

168

A experiência educativa da educanda-paciente Rosa com o NEP no

ambiente hospitalar do Espaço Acolher iniciou sob a perspectiva do novo, do

inesperado, o que favoreceu a ressignificação do ambiente hospitalar, que era

representado como espaço de isolamento, sofrimento e morte. A ressignificação

também da educação, por encontrar-se com a possibilidade de ser alfabetizada em

um espaço que não era a escola e em um momento doloroso de tratamento médico

e de busca da superação dos traumas causados pela mutilação corporal gerada pelo

acidente de escalpelamento.

Nesse sentido, com a experiência educativa no ambiente hospitalar, o

período de isolamento diante da vergonha do seu corpo, não aceitação de si que

caracteriza a perda da sua autoestima, tornou-se menos prolongado, pois a

possibilidade de superação por meio de um novo reconhecimento de si esteve

atrelada à experiência de educação humanista. A qual tem na valorização das

potencialidades humanas, o reconhecimento de si e do outro mediante práticas

dialógicas de educação pautadas na problematização do próprio existir humano.

Diante das questões apontadas, a participação da educanda-paciente nos

encontros educativos com o NEP foi caracterizada pelo processo de transição do

isolamento à socialização mediante a ressignificação do ambiente hospitalar e da

educação.

Inicialmente, a principal motivação de Rosa de sair do isolamento e

participar dos encontros educativos do NEP era a aprendizagem da leitura e da

escrita que lhe possibilitaria o abandono da identidade de uma pessoa que não tem

conhecimento, que é inferior e incapaz. Essa identidade pressuposta construída

desde a adolescência foi sendo reposta ao longo de sua vida, que lhe conferia um

sentimento de fracasso por não ter tido oportunidade de estudar em sua idade

escolar. A busca da ampliação do seu conhecimento por meio da sua alfabetização

caracteriza a negação da sua condição de pessoa incapaz rumo à busca de novas

perspectivas de vida, o que implica sua formação contínua como ser de

conhecimentos e superação de situações-problema.

Diante dos fatores apontados, as representações de si expressas por

Rosa como educanda-paciente do NEP tiveram como referência sua condição de

pessoa analfabeta que perpassaram por dois momentos significativos:

Page 170: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

169

• no início de sua participação nos encontros educativos

ocorre a expressão de sua identidade pressuposta de pessoa inferior,

“burra” e incapaz e;

• no decorrer de sua participação nos encontros educativos

a expressão de sua identidade metamorfose como pessoa que tem

conhecimento, que aprende e ensina. Mulher corajosa, de luta pela sua

saúde, mulher que sabe e que também pode ensinar.

Assim, a superação de sua identidade pressuposta referendada pela sua

condição de excluída da educação escolar esteve relacionada com o seu processo

de transição do isolamento à socialização, que se evidenciou na recuperação da sua

autoestima e novo reconhecimento de si como pessoa diferente. Logo, Rosa

significa as práticas educativas do NEP como uma forma de luta pela saúde, de

estabelecimento de novas amizades e de novas aprendizagens.

As questões apontadas evidenciam que as ações educativas voltadas

para a inclusão social e educacional em espaços convencionais e não convencionais

de ensino tem como principal relevância a valorização do sujeito em formação.

A educação popular em ambiente hospitalar se inscreve como práxis que

compreende os fatores físicos, psíquicos e biológicos humanos em íntima relação

com os fatores socioculturais. Dessa forma, o sujeito em tratamento médico-

hospitalar deve ser compreendido no seu contexto de vida como sujeito histórico,

como ser de afetividades e contradições, sobretudo como sujeito de saberes.

Educação que se materialize em práticas de superação do caráter meramente

informativo que veio caracterizando a relação educação e saúde no contexto

histórico brasileiro.

As ações educativas desenvolvidas pelo NEP no Espaço Acolher

contribuíram com o contexto de vida da educanda-paciente Rosa na superação das

condições de opressão evidenciadas na negação da sua historicidade. Assim,

destacam-se as ações educativas norteadas pelas diretrizes freireanas de educação

que dão materialidade a uma prática pedagógica de valorização da criatividade e

participação coletiva dos educandos na realização das atividades propostas,

referendadas pela educação dialógica, problematizadora, da autonomia ético-política

e rigorosa.

Page 171: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

170

Destacamos a relevância do trabalho pedagógico no ambiente hospitalar

como proposta de inclusão social e educacional das pessoas em tratamento médico-

hospitalar e seus familiares, como prática de socialização e humanização do

ambiente hospitalar.

Propor uma prática educativa sob a ótica da inclusão social no ambiente

hospitalar pressupõe: o compromisso ético-político com as classes populares,

marginalizadas de seus direitos como cidadãos; e a práxis educativa libertadora das

condições que oprimem os sujeitos em suas dimensões objetivas, subjetivas e

sociais. Educação de compreensão do sujeito em sua totalidade e valorização de

suas diferenças e potencialidades de aprendizagem, de criação e iniciativa.

Portanto, a ação educativa desenvolvida pelo NEP no ambiente hospitalar

caracteriza-se pela busca da superação das dificuldades encontradas diante das

especificidades da pessoa em tratamento médico-hospitalar e seus acompanhantes

que demandam produções teóricas e metodológicas que viabilizem ações

pedagógicas voltadas para o cotidiano hospitalar.

Neste estudo, foi-nos possível constatar que a radicalidade da condição

humana está na sua historicidade, que se releva na teia de conflitos, contradições e

aprendizagens estabelecidas com o outro no mundo.

Na história de vida da educanda-paciente Rosa, reconstruída neste

estudo, ao apresentar as expressões das representações de si mediante os seus

processos de construção das identidades ao longo de sua vida, aponta que as

identidades pressupostas tendem a perpassar na vida das pessoas, por serem

identidades atribuídas e condicionadas socialmente, as quais alimentam práticas de

exclusão social e preconceito.

A construção da identidade metamorfose que se revela na negação do

que a nega é um processo humano de superação de condições sociopolíticas e

culturais opressoras. No contexto educativo do NEP no ambiente hospitalar do

Espaço Acolher, Rosa encontrou elementos que contribuíram para a construção de

sua identidade metamorfose de mulher capaz de encontrar novas possibilidades de

vida. Fora deste contexto educativo, em sua localidade, em sua família, mediante

suas condições de fragilidade de saúde e estética, quais elementos podem atuar

como determinantes de sua inclusão social?

Page 172: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

171

Deixamos aqui esse questionamento para indicar que a superação das

identidades negadas de Rosa enfrenta um longo e doloroso caminho construído por

uma sociedade marcada pelo preconceito e desigualdade social.

As vítimas de escalpelamento da Amazônia, em sua maioria, tendem

diante da falta de oportunidade de acesso à educação de qualidade e à ocupação no

mercado de trabalho, à reclusão e isolamento.

Em sua reclusão, passam a ver a vida como nos indicou a educadora

Carmem sobre o relato de uma educanda-paciente vítima de escalpelamento por

“um buraco lá na parede pra ver o que tá acontecendo lá fora”.

Nesse sentido, este estudo visa concretizar-se como contribuição

científica e social, que não apenas denuncie o drama que atinge as vítimas de

escalpelamento na região amazônica, mas que fomente reflexões e debates no

âmbito educacional em prol da mobilização social de ações de combate e

erradicação deste tipo de acidente.

REFERÊNCIAS

ANDERY, Maria . Para compreender a ciência: retrospectiva histórica. São Paulo:

EDUC, 1996.

ANDRÉ, Marli. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília:

Líber Livro, 2005.

AZERÊDO, Sandra. Preconceito contra a “mulher”: diferença, poemas e corpos.

São Paulo: Cortez, 2007.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.

BORDALO, Alípio. A Misericórdia Paraense: ontem e hoje. Belém: Sagrada

Família,2000.

BRANDÃO, Carlos. Pensar a Prática: escritos de viagem e estudos sobre

educação. São Paulo: Loyola, 1984.

Page 173: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

172

______. A Educação como Cultura. Campinas: São Paulo: Mercado das letras,

2002.

BRITTO, et.al. (2004). Escalpelamento na População Amazônica. In: Revista

Paraense de Medicina, v. 18 (1), p. 10-35, Janeiro- Março. 2003.

CERIZARA, Beatriz. Rousseau a educação na infância. São Paulo: Brasiliense,

1990.

CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto

Alegre: ArtMed, 2000.

CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 6. ed. São Paulo:

Cortez, 2003.

CIAMPA, Antonio. A estória de Severino e a historia da Severina: um ensaio de

psicologia social. São Paulo: Brasilense, 1998.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia moderna. In: Primeira filosofia. 8. ed.São Paulo;

Brasiliense, 1990.

COMTE, Auguste. Discurso do espírito positivo. In: Os Pensadores. Vol. XXXIII.

São Paulo: Abril Cultural, 1973.

DESCARTES, René. Discurso do método. In: Os Pensadores. Vol. XV. São Paulo:

Abril Cultural, 1973.

Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres

Humanos contidas na Legislação (Lei 8974/95 - Resolução 196/96) aprovada pelo

Conselho Nacional de Saúde – CNS, 1996.

DUSSEL, Enrique. Crítica del “mito de la modernidad” e Dos paradigmas de la

Modernidad. In: El encubrimiento del Índio: 11492: hacia el origen del mito de la

Page 174: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

173

modernidad. México: Cambio XXI; Colégio Nacional de Ciências Políticas y

Administración Pública, 1994.

ENCICLOPEDIA DELTA UNIVERSAL, Rio de Janeiro, Editora Delta, 1982.

FLICK, U. A pesquisa qualitativa: Relevância, história, aspectos. In:______.Uma

introdução a pesquisa qualitativa. Porto Alegre: BOOKMAN, 2004.

FLEURI, Reinaldo. Políticas da diferença: para além dos estereótipos na pratica

educacional. In: Educação & Sociedade. Nº 95 Vol, 27. Maio/ Ago. 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

______. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 2.

ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São

Paulo, Paz e Terra, 1996.

______. Pedagogia da Tolerância. FREIRE, Ana Maria (Org.). São Paulo: UNESP,

2004.

GAZZINELLI, Maria. Educação em saúde: teoria, método e imaginação. Belo

Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada.

Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

HAGUETTE, Teresa. Metodologias qualitativas na sociologia. Petrópolis: Vozes,

1987.

HALL, Stuart. Identidade Cultural na pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2002

Page 175: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

174

HEGEL, Friedrich. A filosofia do espírito. In: Enciclopédia das ciências filosóficas.

Em compêndio (1830). São Paulo: Loyola, 1995.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e

Civil. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

JAPIASSU, Hilton. A crise da razão e do saber objetivo: as ondas do irracional.

São Paulo: Letras & Letras, 1996.

JOSSO, Christine. Da formação do sujeito... ao sujeito da formação.In:NÓVOA,

Antônio; FINGER, Mathias. O método (auto) biográfico e a formação.

Lisboa:MS/DRHS/CFAP,1988.

______. A formação na pesquisa biográfica como processo de construção do sujeito

e de suas identidades. In; ALCUDIA, MORENO, Leda; MAY, Margaréte et al. O

Sujeito na Educação e Saúde: desafios na contemporaneidade. São Paulo:

Edições Loyola, 2007.

JOVCHELOVITCH, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade

e cultura. Tradução: Pedrinho Guareschi.- Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

LARAIA, Roque. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar,2002.

LAKATOS, Eva, MARCONI, Maria. Técnicas de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2007.

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. Londres: Fontana, 1967.

LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-

estruturalista.10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

Page 176: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

175

MACLAREN, Peter. Multiculturalismo Crítico. In: Multiculturalismo e a crítica pós-

moderna: por uma pedagogia da resistência e transformação. São Paulo: Cortez,

1997.

MAFFESOLI, Michel. A vivência. Elogio da razão sensível. Petrópolis:

RJ:Vozes,1998.

MARRE, Jacquez. História de vida e método biográfico. Cadernos de Sociologia,

Porto Alegre, v.3, n.3;p.89-142, jan/ jul.1991.

MARTINS, Maria. Geografia dos Transportes: Trajetos e Conflitos nos

Percursos Fluviais da Amazônia Paraense: Um Estudo Sobre Acidentes em

Embarcações. [tese de mestrado]. Disponível em:

www.ig.br/posgrad/disserta/2006/Maria_martins Acesso em: 22/07/2009.

MARX, Karl e ENGELS, Friederich. A ideologia alemã. São Paulo: Moraes, 1984.

MINAYO, Maria. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 6

ed.São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:

Cortez; Brasília: DF: UNESCO, 2000.

_____. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 9 ed. Rio

de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigação em psicologia social.

Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2003.

NEP-UEPA - Relatório de atividades do ano de 2007 do Grupo de Estudo e

Trabalho Santa Casa-Espaço Acolher do Núcleo de Educação Popular Paulo

Freire do Centro de Ciências Sociais em Educação da Universidade do Estado do

Pará.

Page 177: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

176

______. Projeto Educação Pulular em Ambiente Hospitalar: processo de inclusão

social e educacional. 2008

NETO, João. Reflexões sobre a navegação fluvial amazônica. In: Revista do Centro

Sócio-Econômico. Vol.01. Belém, UFPA, 1993.

OLIVEIRA. Ivanilde. Filosofia da educação: reflexões e debates. Belém: UNAMA,

2001.

______. Saberes, imaginários e representações na construção do saber-fazer

educativo de professores/as da educação especial. PUC de São Paulo: 2002

(tese de doutorado).

______ e XAVIER, Mário (Orgs.). Palavra-ação em Educação de Jovens e

Adultos. Belém: CCSE-UEPA, 2002.

______. Princípios pedagógicos na educação de jovens e adultos. Revista da

Alfabetização Solidária, v.4, n.4, São Paulo: Unimarco, 2004.

______.Saberes, imaginários e representações na educação especial: a

problemática ética da “diferença” e da exclusão social. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

PEREIRA, Potiguara. Considerações em torno a uma concepção de sujeito. In:

ALCUDIA, MORENO, Leda e MAY, Margaréte et al. O Sujeito na Educação e

Saúde: desafios na contemporaneidade. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

PLATÃO. Diálogos. A República. Belém-Pará: UEPA, 1976.

PENIN, Sônia. Cotidiano e escola: a obra em construção. São Paulo: Cortez, 1989.

RIBEIRO. Natalia. Necessidade e dilemas das famílias das vítimas de

escalpelamento atendidas na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará:

Desafios para o Serviço Social. Trabalho de Conclusão de Curso, graduação em

Serviço Social- UFPA, Belém, 2009.

Page 178: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

177

ROUSSEAU, Jean- Jacques. Do contrato social. In: Os Pensadores. São Paulo:

Abril Cultural, 1973.

SÁ, Celso. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In. SPINK,

Mary Jane. O conhecimento no cotidiano: as representações na perspectiva da

psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1993.

SANTOS. Boaventura. Um discurso sobre as ciências. 9. ed. Porto: Afrontamento,

1997.

SILVA, Tomaz. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 4. ed.

Petrópolis- RJ: Vozes, 2000.

SILVA, Jacqueline. Educação e saúde: palavras e atos. Porto Alegre: Dacasa

Editora, 2001.

SPINELLI, Miguel. Filosofia & ciência: análise histórico-crítica da filosofia: de

Pitágoras a Decartes. São Paulo: EDICON; Santa Maria, RS: Curso de Pós-

graduação em Filosofia: UFSM, 1990.

TOURAINE, Alain. Podemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis: Rio de

Janeiro: Vozes, 1998.

VOLTOLINI, Ricardo. “O que temos a ver com as meninas de turbante na

Amazônia”. TV Cultura, artigo escrito em 01.12.03. Disponível em:

http://www.unisol.org.br/. Acesso em: 22/07/2009

Page 179: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

178

APÊNDICES

Page 180: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

179

APÊNDICE A- Roteiro de Observação UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO

INSTRUMENTAL-1

1-LEVANTAMENTO DO HISTÓRICO DA INSTITUIÇÃO 2-ESTRUTURA FISICA

2.1-Observação das condições estruturais físicas que podem interferir nas relações interpessoais nos espaços onde ocorrem as ações educativas desenvolvidas pelo NEP como: área de lazer, refeitório, dormitório, enfermarias, corredores, dentre outros. 3-RELAÇÕES INTERPESSOAIS NO AMBIENTE DA FUNDAÇÃO SANTA CASA

DE MISERICÓRDIA DO PARÁ (ESPAÇO ACOLHER)

3.1-Práticas sociais cotidianas (como se dão no dia-a-dia, quais as ocupações das pessoas em tratamento de saúde e seus familiares?). 3.2-Relações interpessoais entre pessoas em tratamento de saúde, seus familiares e equipe técnica do hospital. 3.3-Comunicação (formas verbais, expressões, afetividade, agressividade, etc.)

4-OS ENCONTROS EDUCATIVOS DESENVOLVIDOS PELO NEP 4.1-Planejamento 4.2-Atividades desenvolvidas 4.3- Metodologias adotadas 4.4-Temas abordados. 4.5-Interações entre educandos e educadores nas práticas educativas. 4.6-Comunicação (formas verbais, expressões, afetividade, agressividade, etc.) 4.7-Formas de participação dos educandos-pacientes. 4.8-Fatores que dificultam o desenvolvimento das aulas. 4.9-Fatores que favorecem o desenvolvimento das aulas. 4.10-Interação com o corpo técnico do hospital

APÊNDICE B - Roteiro de Entrevistas dos Educadores Integrantes do NEP

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO

INSTRUMENTAL-2

1. IDENTIFICAÇÃO DO (A) ENTREVISTADO (A) Nome:__________________________________________idade:__________ Formação:______________________________________________________

Page 181: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

180

Contato (end):_________________________________________________________________________________________________________________________ Tempo de participação no projeto: ________________________________ 2-EXPERIÊNCIA EDUCATIVA 2.1-Em que ano iniciou esta experiência educativa no Hospital Santa Casa de Misericórdia? 2.2-Você sabe o que motivou a experiência educativa neste espaço? 2.3-Como se deu o início das atividades na Fundação Santa Casa de Misericórdia

do Pará?

2.4-O que motivou você a participar como educador (a) desta experiência educativa? 2.5-Há quanto tempo você participa desta experiência educativa? 3-DA PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO POPULAR PAULO FREIRE: 3.1- O que é o NEP? 3.2- Quais os objetivos principais do Núcleo? 3.3- Qual a proposta teórico-metodológica da experiência educativa? 3.4- Quais as diretrizes norteadoras desta ação educativa? 3.5- Como são desenvolvidas as atividades educativas com os educandos do Hospital Santa Casa de Misericórdia? 3.6- Como é feito o planejamento das atividades? 3.7- Quais as metodologias adotadas nos encontros educativos? 3.8- Quais os temas abordados? 3.9- Como se dão as interações entre educandos e educadores nas práticas educativas? 3.10-Quais as formas de comunicação expressas nos encontros educativos (formas verbais, expressões, afetividade, agressividade, etc.)? 3.11-Quais as formas de participação educandos-pacientes nos encontros? 3.12-Quais os fatores que dificultam o desenvolvimento das aulas? 3.13- Como o grupo de educadores busca superar estas dificuldades? 3.14- Quais os fatores que favorecem o desenvolvimento das aulas? 3.16- E quais os avanços? 3.17-Como se dá a interação dos educadores do NEP com o corpo técnico da

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará?

3.18-Qual o significado desta experiência para você? 4-DA COMPREENSÃO DE IDENTIDADE E DIFERENÇA QUE OS EDUCADORES POSSUEM: 4.1- Como o Grupo considera a Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará em

sua prática de educação popular em ambiente hospitalar?

4.2- Como o Grupo compreende o conceito de cultura? 4.3- Como o Grupo compreende o conceito de identidade e de identidade cultural? 4.4- Como o Grupo compreende o conceito de diferença?

Page 182: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

181

5-DA CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NOS ENCONTROS EDUCATIVOS E AS

CONTRIBUIÇÕES DO TRABALHO EDUCACIONAL DO NEP PARA A

SUPERAÇÃO DA IDENTIDADE NEGADA DA EDUCANDA-PACIENTE VÍTIMADA

DE ESCALPELAMENTO.

5.1-Como a cultura dos educandos se expressa nos encontros educativos? 5.2-Como o grupo trabalha as questões culturais nas práticas educativas

desenvolvidas na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará?

5.3-Como o grupo trabalha as questões sobre identidade e diferença nas práticas educativas desenvolvidas na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará? 5.4-Os educandos-pacientes ao participarem da experiência educativa como se identificam: a)Como pessoa. b)Como aluna c) Como pessoa em tratamento de saúde. d) Como mulher. e) Como mãe. f) Como filha. g) Em relação a sua classe social. h) Faixa etária. i)Estética aparência física. j) Capacidade Outras: ....................... 5.5 - Como você identifica as educandas? a)Como pessoa. b)Como aluna c) Como pessoa em tratamento de saúde. d) Como mulher. e) Como mãe. f) Como filha. g) Em relação a sua classe social. h) Faixa etária. i)Estética aparência física. j) capacidade Outras: .................................. 5.6-Como a formação da identidade dos educandos se expressa nos encontros educativos? 5.7-Para você, quais os reflexos do estado de saúde para a construção de identidades dos educandos – pacientes? 6- CARACTERIZAÇÃO DO ESPAÇO ACOLHER DA FUNDAÇÃO SANTA CASA

DE MISERICÓRDIA DO PARÁ.

6.1-Como você caracteriza este espaço? 6.2-Como se dão as relações interpessoais neste espaço? 6.3-Quais são os pontos de tensão nessas relações? 6.4-Como os educandos significam este espaço? 6.5-E como você significa este espaço?

Page 183: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

182

APÊNDICE C - Roteiro das Histórias de Vida UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO

INSTRUMENTAL-3

1. IDENTIFICAÇÃO DO (A) ENTREVISTADO (A) Nome: ______________________________________________________________ Sexo:_____________________________ Estado civil: _______________________ Cor: _____________ Etnia: ______________________ Data de Nascimento: _________________________ Endereço completo:______________________________________________ _______________________________________________________________ Contato: ___________________________________ Série/Escolaridade: __________________________ Tempo de vivência na experiência educativa: ___________________________ Tempo de Permanência no Hospital Santa Casa de Misericórdia: __________ Tempo de tratamento de saúde: _____________________________________ Ocupação: _______________________________________ Jornada de Trabalho: _______________________________ HISTÓRIA DE VIDA

Pensamos que, ao longo do diálogo, de forma natural, estas questões podem ser levantadas, servindo apenas como elementos norteadores, pois sabemos que na riqueza da historia de cada vida, as informações extrapolam as questões apontadas abaixo. Assim como diversas informações serão apresentadas ao longo do contato com os sujeitos da pesquisa.

2-A INFÂNCIA:

2.1-O nascimento e o nome

2.1.1-Quando eu digo a palavra infância, o que lhe vem primeiro a mente?

2.1.2-Você sabe como foi seu nascimento?

2.1.3-Localidade onde nasceu?Foi em casa ou no hospital?

2.1.4-Você sabe quem escolheu o seu nome?

2.1.5-Por que colocaram este nome em você?

2.1.6-Você gosta do seu nome? Por quê?

2.2-A FAMÍLIA E OS PAIS

2.2.1-Quem são seus pais? (nome, como são, se os conhece quem a criou?)

Page 184: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

183

2.2.2-Qual a ocupação dos seus pais?

2.2.3-Como era a sua relação com seus pais na infância?

2.2.4-Como era o seu dia-a-dia na infância?

2.2.5-Você morava com quem?Você tem irmãos? Como eles são?

2.2.6-Quais são as suas lembranças da infância (acontecimentos marcantes,

questões do dia-a-dia, práticas, ocupações diárias)?

2.2.7-Existiam momentos festivos na comunidade onde você morava de que você

participava junto com a sua família?

2.2.8-Quais eram os seus sonhos?O que você queria ser?

3-A ADOLESCÊNCIA

3.1-Como foi a sua adolescência?

3.2-Com o que você se ocupava na adolescência

3.3-O que foi mais importante para você nessa fase da vida?

3.4-Como você se percebia na juventude?

3.5-Como foi a sua experiência educativa nesta fase?

4-A VIDA ADULTA

4.1-O que mudou para você com a idade adulta? O que mudou da infância e

adolescência?

4.2-Como você se percebe hoje como mulher/homem, mãe/pai, esposa/esposo,

trabalhadora/trabalhador ....?

4.3-Que fatos foram (ou estão sendo) marcantes na sua vida? Por quê?

4.4-O que gosta em você?

4.5-O que gostaria de mudar em sua vida?

5- SOBRE AS PRÁTICAS SOCIAIS

5.1- Família

5.2-Religiosidade

5.3-Educacional (antes do NEP)

5.4-Trabalho

5.5-Grupos Sociais (Associações Recreativas e Políticas)

6- A VIVÊNCIA NO HOSPITAL

6.1-Por que você está na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará?

6.2-Como você caracteriza a Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará?

6.3-Que locais deste espaço são significativos para você?

6.4-Como é o relacionamento entre as pessoas neste espaço?

Page 185: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

184

6.5-Como está sendo o seu tratamento de saúde?

7- VIVÊNCIA NOS ENCONTROS EDUCATIVOS NO ESPAÇO ACOLHER DA

FUNDAÇÃO SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO PARÁ.

7.1-O que levou você a participar dos encontros educativos?

7.2-Como são os encontros educativos?

7.3-Nos encontros, como se dão as relações entre o grupo?

7.4-O que significa esta experiência educativa para você?

7.5-Como você se vê ao participar desta experiência?

7.6-Há quanto tempo você participa desta experiência educativa?

7.7-O que lhe motiva a participar?

7.8-A experiência educativa contribui de alguma forma para a sua vida? Como?

7.9-Como foi a sua a sua experiência educativa ao longo da sua vida?

7.10-Quais aprendizados você construiu nestes encontros educativos?

7.11-Ocorreram algumas mudanças na sua vida pessoal a partir da vivência

educativa desenvolvida pelo NEP na Fundação Santa Casa de Misericórdia do

Pará?

Page 186: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

185

APÊNDICE D - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Título da pesquisa: Educação Popular em Ambiente Hospitalar: Construção de Identidades como Processo de Afirmação Cultural

ESCLARECIMENTO DA PESQUISA

Venho, por meio deste, convidá-lo(a) a participar desta Pesquisa

desenvolvida por mim, pesquisadora Wany Marcele Costa Góes, regularmente matriculada no Curso de Mestrado em Educação do Centro de Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará, tendo como orientadora a Profª Drª Ivanilde Apoluceno de Oliveira. Esta pesquisa tem como objetivo investigar como uma alfabetizanda do NEP, em sua trajetória de vida e tratamento de saúde hospitalar representa a si na situação de educanda-paciente. Esclareço que no Hospital Santa Casa de Misericórdia serão entrevistadas 03 pessoas, sendo 02 (duas) educadoras do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire e 01 (uma) educanda-paciente e que sua participação dar-se-á através de entrevistas abertas com roteiro semiestruturado e dinâmicas de grupo. Para o registro das falas, pretendo utilizar anotação direta das respostas e, caso V. Sa. Concordar, utilizarei um gravador. Após o levantamento dos dados, irei organizar os materiais registrados para, em um encontro específico, apresentar e discutir tudo o que foi capturado (validação). Asseguro ao (à) senhor (a) que sua identidade será mantida sob sigilo e anonimato. Utilizarei codinomes sugeridos por cada um (a) dos (as) participantes. Informo ainda que os riscos desta pesquisa serão minimizados ao (à) senhor (a) e à Instituição em que a mesma será realizada com a sensibilidade da pesquisadora em considerar a fragilidade emocional dos atores que a constituem em face da problemática vivenciada em um contexto de saúde-doença. O benefício advindo da execução e análise deste projeto perpassa pela possível contribuição da ampliação do debate sobre as práticas educativas no ambiente hospitalar e as relações sociais que constituem a comunidade hospitalar, considerando as dimensões subjetivas, culturais e políticas, as quais são constitutivas do cotidiano da vida de cada ser humano, para problematizar e ampliar o olhar voltado para a relação educação e saúde. Vale ressaltar que sua participação poderá ser interrompida a qualquer momento, quando irei devolver-lhe todos os depoimentos anotados e/ou gravados em fita cassete, sem que haja nenhum prejuízo para V. Sa.. Os termos desta pesquisa são: educação popular, ambiente- hospitalar e identidade. _________________________________ Pesquisadora Nome: Wany Marcele Costa Góes Telefones: (91) 3245-0042/ (91) 9997-7297

Page 187: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

186

CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO

Eu,.................................................................................................................................., declaro que li as informações sobre a pesquisa e me sinto perfeitamente esclarecido (a) sobre o conteúdo da mesma. Declaro ainda que, por minha livre vontade, aceito participar, cooperando com a coleta de informações para a mesma. Belém:____/____/______. __________________________________ Assinatura do sujeito da pesquisa

Page 188: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

187

ANEXO

Page 189: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

188

Page 190: Wany Marcele Costa Góes - UEPAccse.uepa.br/.../dissertacoes/03/wany_marcele_costa_goes.pdf · 2016. 2. 18. · Wany Marcele Costa Góes Educação popular em ambiente hospitalar:

GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. _________________________________________________________________________________________________

189

Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Travessa Djalma Dutra, s/n – Telégrafo

66113-200 Belém-PA www.uepa.br