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A PRIMA RAQUEL DAPHNE DU MAURIER Tradução de EDUARDO SAL? Círculo de Leitores Título Original: MY CAUSIN RACHEL Capítulo primeiro Antigamente, costumavam enforcar homens em Four Turnings. Mas agora já não. Hoje em dia, quando um assassino é punido pelo seu crime, acontece em Bodmin, após julgamento imparcial nos Assizes. Isto se a lei o condena antes de a consciência o matar. É preferível assim. Como uma intervenção cirúrgica. E o corpo tem um enterro decente, embora numa sepultura anónima. Quando eu era pequeno, as coisas não se passavam assim. Recordo-me, na adolescência, de ver um indivíduo pendurado em correntes no local onde as quatro estradas se encontram. O rosto e corpo tinham sido enegrecidos com alcatrão para os preservar. Esteve lá suspenso durante cinco semanas antes de o apearem, e foi na quarta que o vi. Oscilava entre o céu e a terra sobre o estrado de madeira ou, como o meu primo Ambrose referiu, entre o Céu e o Inferno. O Céu nunca ele alcançaria e, quanto ao inferno que conhecera, achava- se fora do seu alcance. Ambrose tocou no corpo com a bengala. Ainda consigo imaginá-lo, a mover-se com a deslocação do ar como um cata-vento num eixo enferrujado, um triste espantalho daquilo que fora um homem. A chuva apodrecera-lhe os calções, senão o corpo, e tiras de tecido pendiam dos membros inchados como papel polposo. Era Inverno, e um brincalhão qualquer que passara colocara um ramo de azevinho na jaqueta rasgada, para celebração. Aos meus sete anos, aquilo afigurou-se o ultraje final, mas não me pronunciei. Ambrose devia ter-me levado lá com alguma ideia em mente; talvez para testar a minha coragem, ver se eu fugiria,

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A PRIMA RAQUEL DAPHNE DU MAURIER

Tradução de EDUARDO SAL?

Círculo de Leitores

Título Original: MY CAUSIN RACHEL

Capítulo primeiro

Antigamente, costumavam enforcar homens em Four Turnings.

Mas agora já não. Hoje em dia, quando um assassino é punido pelo seu crime, acontece em Bodmin, após julgamento imparcial nos Assizes. Isto se a lei o condena antes de a consciência o matar. É preferível assim. Como uma intervenção cirúrgica. E o corpo tem um enterro decente, embora numa sepultura anónima. Quando eu era pequeno, as coisas não se passavam assim. Recordo-me, na adolescência, de ver um indivíduo pendurado em correntes no local onde as quatro estradas se encontram. O rosto e corpo tinham sido enegrecidos com alcatrão para os preservar. Esteve lá suspenso durante cinco semanas antes de o apearem, e foi na quarta que o vi.

Oscilava entre o céu e a terra sobre o estrado de madeira ou, como o meu primo Ambrose referiu, entre o Céu e o Inferno. O Céu nunca ele alcançaria e, quanto ao inferno que conhecera, achava-se fora do seu alcance. Ambrose tocou no corpo com a bengala. Ainda consigo imaginá-lo, a mover-se com a deslocação do ar como um cata-vento num eixo enferrujado, um triste espantalho daquilo que fora um homem. A chuva apodrecera-lhe os calções, senão o corpo, e tiras de tecido pendiam dos membros inchados como papel polposo.

Era Inverno, e um brincalhão qualquer que passara colocara um ramo de azevinho na jaqueta rasgada, para celebração. Aos meus sete anos, aquilo afigurou-se o ultraje final, mas não me pronunciei. Ambrose devia ter-me levado lá com alguma ideia em mente; talvez para testar a minha coragem, ver se eu fugiria, riria ou choraria. Como meu tutor, pai, irmão e conselheiro - na realidade, como todo o meu mundo -, estava sempre a pôr-me à prova. Lembro-me de que contornámos o estrado, enquanto ele explorava o corpo com a bengala, até que se deteve, acendeu o cachimbo e pousou-me a mão no ombro.

5 - Aqui tens no que todos acabamos, Philip. Uns no campo de batalha, outros na cama e outros ainda em conformidade com o seu destino. Não há fuga possível. Não podes aprender a lição demasiado cedo. Mas é assim que um assassino morre. Uma advertência para ti e para mim, no sentido de levarmos uma vida direita. - Conservávamo-nos lado a lado, a ver o corpo oscilar, como se estivéssemos de visita à feira de Bodmin e o cadáver fosse um alvo para visar com bolas. - Observa o que um momento de exaltação pode provocar numa pessoa - continuou. - Aqui tens Tom Jenkyn, honesto e estúpido, excepto quando bebia de mais. Sem dúvida que a esposa era rezingona, mas isso não justifica que a matasse.

Se começássemos a eliminar as mulheres por causa das suas línguas aguçadas, quase todos os homens seriam assassinos.

Eu preferia que ele não tivesse mencionado o nome do homem. Até então, o corpo fora uma coisa morta, sem identidade. Surgiria nos meus sonhos, sem vida e horrível, como me apercebi perfeitamente a partir do momento em que pousei a vista no cadafalso. Agora, relacionar-se-ia com a realidade e com o homem de olhos aguados que vendia lagostas no cais da cidade. Costumava encontrar-se junto dos degraus nos meses de Verão, com a cesta a seu lado, e punha os crustáceos a rastejar pelo chão numa corrida fantástica, para gáudio das crianças. Não havia muito tempo que eu o vira.

- Então? - perguntou Ambrose, observando-me a expressão. - Que te parece?

Encolhi os ombros e dei um pontapé na base do estrado. Não queria que ele reparasse no meu estado de espírito, que me percorria um misto de amargura e terror. De contrário, desprezar-me-ia. Aos vinte e sete anos, Ambrose era o deus de toda a criação, pelo menos de todo o meu reduzido mundo, e o único objectivo da minha vida consistia em emulá-lo.

- O Tom tinha um ar sorridente a última vez que o vi repliquei. - Agora, nem tem frescura suficiente para servir de

engodo às suas lagostas.

Soltou uma gargalhada e puxou-me levemente a orelha.

- Assim é que gosto de te ouvir. Falaste como um verdadeiro filósofo. - E, com um súbito lampejo de percepção, acrescentou: - Se estás agoniado, vai vomitar atrás daquela sebe e lembra-te de que não me dei conta de nada.

Voltou as costas ao cadafalso e à encruzilhada e afastou-se pela alameda que construía na altura, a qual atravessava o bosque e serviria de segunda via de acesso de carruagens à casa. Fiquei satisfeito ao vê-lo retirar-se, porque não alcancei a sebe a tempo. Depois, senti-me melhor, embora os dentes chocalhassem e tivesse muito frio. Tom Jenkyn voltou a perder identidade e converteu-se numa coisa sem ?vida, como um saco velho. Foi mesmo um alvo para a pedra que atirei. Invulgarmente temerário, observei o corpo oscilante. Mas não aconteceu nada. A pedra atingiu o vestuário molhado com um som abafado e saltitou no chão. Envergonhado com o gesto, abandonei o local apressadamente pela nova alameda, à procura de Ambrose.

Bem, isto passou-se há dezoito anos, e não me recordo de ter pensado muito no assunto desde então. Até aos dias mais recentes. É curioso como nos momentos de crise aguda a mente faz reaparecer a infância. Recomecei a pensar no infortunado Tom, suspenso nas suas correntes. Nunca ouvira a sua história, e poucas pessoas se lembrariam dela agora. Ambrose dissera que tinha matado a mulher. E nada mais. Era rezingona, mas isso não constituía motivo suficiente para recorrer ao homicídio. Possivelmente, como manifestava inclinação especial para a bebida, matara-a sob o efeito do álcool. Mas como? E com que arma? Uma faca ou as próprias mãos? Talvez tivesse saído do bar da pousada para o cais a cambalear, naquela noite de Inverno, inflamado de amor e febre. E a maré estava alta, com a água a lamber os degraus de pedra e a lua cheia a reflectir-se no mar. Quem sabe que sonhos de conquista lhe

acudiam à mente perturbada, que súbita erupção de fantasia?

Talvez se arrastasse em direcção a casa, no pequeno chalé atrás da igreja, um indivíduo pálido, de olhar congestionado, a tresandar a lagosta, e a mulher invectivara-o por entrar com os

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pés molhados, o que pusera termo ao sonho e o levara a matá-la. As coisas podiam perfeitamente ter-se passado assim. Se existe sobrevivência depois da morte, como nos ensinaram a crer, procurarei o coitado do Tom para o interrogar. Sonharemos no Purgatório juntos. No entanto, ele era um homem de meia-idade, com cerca de sessenta anos, e eu ainda só tenho vinte e cinco. Os nossos sonhos não seriam os mesmos. Por conseguinte, volta para as tuas sombras, Tom, e deixa-me alguma medida de paz. O cadafalso há muito que desapareceu, e tu com ele. Atirei-te uma pedra por ignorância. Perdoa-me.

A verdade é que a vida tem de ser suportada e vivida. Mas o problema consiste em como vivê-la. O trabalho do dia-a-dia não apresenta dificuldades. Tornar-me-ei juiz de paz, como Ambrose foi, e também frequentarei, um dia, o Parlamento. Continuarei a ser honrado e respeitado, como toda a família antes de mim. Cultivarei bem a terra e velarei pelas pessoas. Ninguém suspeitará do fardo de culpa que me pesa nos ombros, nem saberá que todos os dias, ainda atormentado pela dúvida, faço a mim próprio uma pergunta a que não posso responder. Raquel estava inocente ou culpada? Talvez também me inteire disso no Purgatório.

Como soa terno e suave o seu nome quando o murmuro! Perdura na língua, insidioso e lento, quase como veneno, que é de facto apropriado. Passa da língua aos lábios ressequidos e destes regressa ao coração. E o coração governa o corpo, assim como a mente. Libertar-me-ei disso, um dia? Dentro de quarenta, cinquenta anos? Ou porventura algum persistente vestígio de matéria no cérebro subsistirá, pálido e doentio? Alguma minúscula célula do sistema circulatório deixará de correr com as outras em direcção ao coração-fonte? É possível que, quando tudo tiver sido dito e feito, eu não deseje ser livre. Por enquanto, não o posso determinar.

Ainda tenho a casa para estimar, como Ambrose desejaria. Posso restaurar as paredes onde a humidade se infiltra e manter tudo devidamente em ordem. Continuar a plantar árvores e arbustos, cobrir as colinas despidas por onde o vento circula

uivando, proveniente de leste. Deixar algum legado de beleza quando partir, se não puder ser nada mais. Mas um homem solitário é contranatura, e não tarda a enfrentar a perplexidade. Da perplexidade passa à fantasia. Da fantasia à loucura. E regresso assim a Tom Jenkyn, suspenso nas suas correntes. É possível que ele também sofresse.

Há dezoito anos, Ambrose afastou-se pela alameda e eu fui no seu encalço. Ele talvez usasse a jaqueta que visto agora. Esta velha jaqueta de caça verde, com protecção de cabedal nos

cotovelos. Tornei-me tanto como ele que quase poderia ser o seu fantasma. Os meus olhos são os seus, e os traços fisionómicos também. O homem que assobiou aos seus cães e voltou as costas à encruzilhada das quatro estradas e ao cadafalso podia ser eu. Bem, era o que sempre desejara. Ser como ele. Ter a sua altura, os seus ombros, a maneira de se encurvar, até os braços compridos, mãos de aspecto algo desajeitado, o sorriso repentino, o acanhamento no primeiro encontro com um desconhecido, a aversão ao rebuliço, ao cerimonial. A cordialidade de maneiras com aqueles que o serviam e estimavam - lisonjeiam-me aqueles que dizem que também possuo essa característica. E a resistência que se revelou ilusória, pelo que tombámos ambos na mesma calamidade. Tenho-me interrogado ultimamente se, quando morreu, a mente enevoada e torturada pela dúvida e temor, ao sentir-se abandonado e só naquela maldita vivenda onde eu não podia estabelecer contacto com ele, se o seu espírito se desprendeu do corpo e se juntou ao meu, para tomar posse, pelo que voltou a viver em mim e repetir os seus erros, tornou a contrair a doença e pereceu pela segunda vez. Pode ter sido assim. Só sei que a minha parecença com ele, de que tanto me orgulhava, constituiu um inconveniente. Em virtude dela, surgiu o desaire. Se eu fosse outro, ágil e rápido, com uma língua aguçada e ideias lúcidas para os negócios, o ano agora terminado não teria passado de mais doze meses surgidos e deixados eventualmente para trás. Preparar-me-ia para um futuro activo e satisfatório. Para o casamento, possivelmente, e para uma jovem família.

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Mas eu não era nada disso, e Ambrose tão-pouco. Éramos sonhadores, desprovidos de sentido prático, reservados, cheios de grandes teorias nunca testadas e, como todos os sonhadores, adormecidos perante o mundo acordado. Antipatizando com o nosso semelhante, ansiávamos por afecto, porém a timidez manteve o impulso dormente até que o coração foi afectado. Quando isso aconteceu, os céus abriram-se e sentimos que dispúnhamos de toda a riqueza do universo para dar. Teríamos sobrevivido se fôssemos outros. Raquel teria vindo do mesmo modo. Permaneceria connosco uma ou duas noites e partiria. Discutiríamos questões de negócios, resolveríamos alguns assuntos, escutaríamos a leitura do testamento em torno de uma mesa e eu - abarcando a situação num relance - conceder-lhe-ia uma anuidade vitalícia e livrar-me-ia dela.

Não aconteceu assim porque me parecia com Ambrose. Não aconteceu assim porque pensava como ele. Quando me dirigi ao quarto dela, na sua primeira noite, e, depois de bater à porta, e entrar, inclinei a cabeça levemente por causa do lintel baixo e ela se levantou da cadeira em que se sentava junto da janela, para me olhar, eu devia ter compreendido então, pela expressão de reconhecimento que exibiu, que não era a mim que via, mas Ambrose. Não Philip, mas um fantasma. Devia ter partido naquele momento, feito as malas e desaparecido, regressado ao lugar a que pertencia, à vivenda das persianas

corridas, bafienta de recordações, ao jardim formal com terraço e fonte gotejante no centro; regressado ao seu país, ressequido em pleno Verão e brumoso de calor, austero no Inverno sob o frio e céu brilhante. Um instinto qualquer devia tê-la prevenido de que se ficasse comigo acarretaria destruição, não só para o fantasma que encontrara, mas, em última análise, no final, também para ela.

Quando me vira de pé na sua frente, acanhado e embaraçado, angustiado de ressentimento pela sua presença, embora perfeitamente consciente da minha qualidade de anfitrião e dos meus pés grandes e braços e pernas deselegantes, angulosos, será que pensara "O Ambrose devia ser assim quando jovem;

antes do meu tempo. Não o conheci quando tinha este aspecto", e, por isso, decidira ficar?

Talvez fosse essa a razão pela qual, quando tive o breve encontro com o italiano Rainaldi, pela primeira vez, também me

olhou com o mesmo ar chocado de reconhecimento, dissimulado com prontidão, moveu os dedos na caneta em cima da secretária por uns instantes e acabou por perguntar:

- Chegou só hoje? Nesse caso, a sua prima Raquel não

o viu.

O instinto também o prevenira. Mas demasiado tarde.

Não se pode voltar atrás na vida. Não há regresso ao passado. Nunca uma segunda oportunidade. Não posso apagar a palavra pronunciada ou o facto consumado, aqui sentado, vivo e em minha própria casa, tal como o infortunado Tom Jenkvn não podia, suspenso das suas correntes.

Foi o meu padrinho Nick Kendall quem, no seu estilo directo e brusco, me disse na véspera do meu vigésimo quinto aniversário (há apenas uns escassos meses, meu Deus, mas um lapso de tempo tão longo!):

- Há mulheres, Philip, boas pessoas muito possivelmente, que, sem a mínima culpa própria, provocam uma calamidade. Tudo no que tocam transforma-se em tragédia. Não sei porque te digo isto, mas sinto que o devo fazer.

Em seguida, testemunhou a minha assinatura no documento que eu lhe colocara na frente.

Não, não se pode voltar atrás. O rapaz que se encontrava debaixo da janela dela na véspera do aniversário, o mesmo que surgiu à entrada do seu quarto na noite em que chegou, já não existe, à semelhança da criança que atirou uma pedra a um homem morto num cadafalso para se incutir falsa coragem. Tom Jenkyn, espécime andrajoso da humanidade, irreconhecível e não chorado, porventura, ao longo de todos estes anos, me contemplaste com compaixão, enquanto eu percorria o bosque em direcção ao futuro?

Se olhasse para ti, por cima do ombro, não te veria a oscilar nas tuas correntes, mas a minha própria sombra.

Capítulo segundo

Não me acudia a menor sensação de presságio quando conversávamos, naquela última noite, antes de Ambrose partir para a sua derradeira viagem. Nenhuma premunição de que jamais voltaríamos a estar juntos. Decorria o terceiro Outono em que os médicos lhe haviam ordenado que passasse o Inverno no estrangeiro, e eu habituara-me à sua ausência e a olhar pela propriedade até ao seu regresso. No primeiro em que o

fez, ainda me encontrava em Oxford, pelo que o seu afastamento pouca diferença exercera em mim, mas no segundo voltei definitivamente e permaneci sempre em casa, que era o que ele desejava de mim. Não fiquei com saudades da vida gregária na Universidade, e na realidade até me congratulei por lhe voltar as costas.

Nunca me acudia vontade de estar em parte alguma senão no lar. À parte os tempos do liceu em Harrow e mais tarde em Oxford, não vivera em lugar algum excepto naquela casa, onde me fixara aos dezoito meses, na sequência da morte de meus jovens pais. Ambrose, à sua curiosa maneira generosa, foi dominado pela compaixão por aquele pequeno primo órfão, pelo que me foi buscar pessoalmente, como faria em relação a um cachorro, um gato ou qualquer ser frágil e solitário necessitado de protecção.

O nosso lar foi estranho desde o princípio. Ele despediu a minha ama quando eu tinha três anos, porque me batia nas nádegas com uma escova do cabelo. Não me recordo do incidente, mas descreveu-mo mais tarde.

- Fiquei furioso quando vi a mulher a zurzir o teu pequeno corpo com as suas enormes e grosseiras mãos por causa de um lapso insignificante, cuja inteligência limitadíssima não lhe permitia compreender - explicou. - A partir de então, os correctivos tornaram-se responsabilidade minha.

Nunca tive motivo para o deplorar. Não podia existir um homem mais imparcial, mais justo, mais simpático, mais pleno de compreensão. Ensinou-me o alfabeto da maneira mais simples possível, recorrendo às iniciais de cada imprecação. A pesquisa das vinte e seis letras exigiu não pouco trabalho, mas ele conseguiu-o, e advertiu-me de que não devia empregar as palavras que as acompanhavam. Embora invariavelmente cortês, revelava-se retraído perante as mulheres, assim como desconfiado, com o comentário de que provocavam problemas num lar. Nessa conformidade, só admitia pessoal doméstico do sexo masculino, tribo controlada pelo velho Seecombe, que fora mordomo do meu tio.

Talvez excêntrico, heterodoxo - a região oeste do país sempre se caracterizou pelos temperamentos singulares -, mas, apesar das suas opiniões individuais sobre as mulheres e a educação de rapazes, Ambrose não era maníaco, nem nada do género. Desfrutava da simpatia e respeito dos vizinhos e da estima do pessoal. Dedicava-se à caça no Inverno, antes de o reumatismo o atacar, pescava no Verão num pequeno barco que conservava ancorado no estuário, jantava fora e recebia amigos quando lhe apetecia, ia à missa aos domingos, embora me olhasse com uma ruga na fronte se o sermão se alongava demasiado, e conseguiu contagiar-me com a paixão para plantar arbustos raros.

- É uma forma de criação como outra qualquer - costumava dizer. - Há quem se incline para a reprodução. Eu prefiro ver coisas a desenvolverem-se na terra. Exigem menos de nós, e o resultado é muito mais gratificante.

Chocava o meu padrinho, Nick Kendall, Hubert Pascoe, o vigário, e outros seus amigos, que costumavam aconselhá-lo a criar raízes na paz doméstica e uma família em vez de rododendros.

- Criei um rebento, o que consumiu vinte anos do meu período de vida, ou enriqueceu, conforme o ponto de vista

com que se encare a situação - argumentava, puxando-me levemente a orelha. - Além disso, o Philip é um herdeiro pronto a exercer essas funções, pelo que não se levanta a questão de ter de cumprir o meu dever. Ele se ocupará de o fazer quando o momento se apresentar. E agora, reclinem-se nas poltronas e estejam o mais confortáveis possível, meus senhores. Como não há mulheres em casa, podemos pousar os pés na mesa e cuspir na carpete, se nos apetecer.

Não fazíamos nada disso, naturalmente. Ambrose era meticuloso em tudo, sem omitir a higiene e asseio, mas encantava-o proferir observações jocosas do género diante do vigário, pobre homem, com um regimento de filhas, e o vinho do Porto circulava em torno da mesa após o jantar de domingo, com Ambrose a piscar-me o olho do seu lugar à minha frente.

Parece que ainda o estou a ver, semicurvado, meio refastelado na cadeira - hábito que adquiri dele -, estremecendo com hilaridade silenciosa quando o vigário proferia a habitual, tímida e ineficiente advertência, após o que, receando ter melindrado o homem, se apressava a mudar de assunto, rumando para temas em que o clérigo se acharia mais à vontade e esforçando-se por proceder de modo que se sentisse como em sua casa. Eu apreciava sobretudo as suas qualidades quando estudava em Harrow. As férias passavam rapidamente, enquanto comparava as suas maneiras e companhia com as dos garotos irresponsáveis meus condiscípulos e dos professores, circunspectos e arrogantes, destituídos, a meu ver, de toda e qualquer humanidade.

- Não te preocupes - recomendava-me, com uma palmada no ombro, antes de eu sair, pálido, de olhos algo húmidos, para apanhar o comboio de Londres. - É apenas um processo de treino, como domar um cavalo: tem de se enfrentar. Quando os teus tempos de colégio terminarem, como acontecerá inevitavelmente, ficarás aqui para sempre e passarei eu a treinar-te.

- Treinar-me para quê?

- Não és o meu herdeiro? Só isso já é uma profissão.

E eu partia, conduzido por Wellington, o cocheiro, para apanhar o comboio de Londres em Bodmin, não sem me voltar, a fim de ver Ambrose pela última vez, apoiado à bengala, com os cães ao lado, os olhos semicerrados numa expressão de compreensão e cabelo anelado que começava a tornar-se grisalho. E quando ele assobiava aos animais e voltava para dentro, eu engolia o nó na garganta e sentia as rodas da carruagem levarem-me para longe, inevitável e fatalmente, ao longo da passagem de saibro que atravessava o parque, para em seguida transpor o portão, a caminho do colégio e da separação.

No entanto, Ambrose não incluíra a saúde nos seus planos, e quando o colégio e a Universidade ficaram para trás de mim, foi a sua vez de partir.

- Dizem-me que, se passo mais um Inverno debaixo desta chuva persistente, terminarei os meus dias numa cadeira de rodas - explicou-me. - Tenho de procurar o sol. As praias de Espanha ou o Egipto, qualquer lugar no Mediterrâneo que seja seco e quente. Confesso que não estou muito empenhado em ir, mas, por outro lado, demónios me levem se vou acabar a minha vida paralítico. Aliás, o projecto tem uma vantagem.

Trarei plantas que mais ninguém possui. Veremos como se darão no solo da Cornualha.

O primeiro Inverno chegou e partiu, assim como o segundo. Ele divertiu-se à sua maneira e não creio que se sentisse só. Regressou acompanhado de uma infinidade de árvores, arbustos, flores e plantas de todas as formas e cores. As camélias eram a sua paixão. Iniciou uma plantação exclusivamente delas e não sei se possuía algum condão especial para o fazer, mas floresceram à primeira tentativa e não se perdeu uma única.

Assim se foram sucedendo os meses até ao terceiro Inverno. Desta vez, optou pela Itália. Desejava ver alguns dos jardins de Florença e Roma. Nenhuma dessas cidades era quente naquela época do ano, porém o facto não o preocupava. Alguém lhe garantira que o ar era seco, embora frio, e não necessitava de temer a chuva. Conversámos até tarde, naquele último serão. Nunca se deitava cedo e acontecia com frequência sentarmo-nos juntos na biblioteca até à uma ou duas da madrugada, umas vezes calados, outras a trocar impressões, ambos com as longas pernas estendidas na nossa frente diante do lume e os cães enroscados aos pés. Referi atrás que não me acudira qualquer premunição, porém agora pergunto-me, ao rememorar aqueles dias, se tal não sucedeu com ele. Com efeito, olhava-me com uma expressão de perplexidade meditativa, para de vez em quando desviar a vista para as paredes em volta, onde se encontravam retratos da família, depois para a lareira e em seguida para os cães adormecidos.

- Gostava que viesses comigo - declarou subitamente.

- Não demorava muito a fazer as malas.

Abanou a cabeça e sorriu.

- Estava a brincar. Não podemos ausentar-nos ambos simultaneamente durante meses. Um proprietário rural tem certas responsabilidades, embora nem todos pensem como eu.

- Podia acompanhá-lo a Roma - aventurei, excitado com a ideia. - Depois, desde que o tempo não me retivesse, estava de volta pelo Natal.

- Não - articulou pausadamente. - Foi apenas uma fantasia de minha parte. Esquece-a.

- Suponho que se sente bem... Não tem dores?

- Decerto que não. Tomas-me por um inválido? Há meses que não tenho nem vestígios de reumatismo. O pior, meu caro Philip, é o atractivo que o lar exerce em mim. Quando chegares à minha idade, talvez sintas o mesmo.

Levantou-se da poltrona e aproximou-se da janela. Afastou os pesados cortinados e contemplou o relvado durante uns momentos. Fazia uma noite calma e silenciosa. As gralhas haviam recolhido aos poleiros e, por uma vez, até os mochos permaneciam calados.

- Ainda bem que eliminámos as passagens e fizemos a relva chegar até aqui - murmurou. - Em todo o caso, podíamos melhorar o aspecto geral se prosseguisse até ao cercado dos póneis. Um dia, tens de mandar aparar os arbustos do outro lado, para haver uma vista do mar.

- Eu? - Estranhei. - Porque não o primo?

Não respondeu imediatamente.

- Tanto faz - acabou por dizer. - Não te esqueças, em todo o caso.

O meu velho perdigueiro, Don, ergueu a cabeça e olhou-o.

Vira a bagagem no átrio e pressentira a partida iminente. Levantou-se e foi-se postar ao lado de Ambrose, de cauda baixada. Chamei-o a meia voz, mas ignorou-me. Sacudi a cinza do cachimbo no lume. O relógio do campanário badalou. No sector do pessoal doméstico, ouvi a voz rouca de Seecombe a admoestar o ajudante de cozinha.

- Deixe-me ir consigo, Ambrose - solicitei.

- Não digas disparates, Philip - foi a réplica pronta. - Vai mas é para a cama.

Apenas isto. Não voltámos a ventilar o assunto. Na manhã seguinte, durante o pequeno-almoço, transmitiu-me as últimas instruções sobre o plantio da Primavera e várias coisas que desejava que eu fizesse antes do seu regresso. Acudiu-lhe o capricho repentino de construir um lago para cisnes numa área pantanosa do parque junto da entrada do caminho de acesso oriental, pelo que necessitaria de iniciar os trabalhos sem demora, se o Inverno contivesse alguns dias sofríveis. O momento da partida surgiu com uma prontidão que nenhum dos dois acolheu com satisfação. O pequeno-almoço terminou às sete, porque ele tinha de sair cedo. Pernoitaria em Plvmouth e partiria de manhã à hora da maré favorável. O barco, uma unidade da marinha mercante, deixá-lo-ia em Marselha, de onde seguiria para a Itália. Fazia uma manhã húmida, de temperatura cortante. Wellington levou a carruagem para a entrada e carregou a bagagem sem demora. Os cavalos mostravam-se irrequietos, ansiosos por iniciar a viagem. Ambrose virou-se para mim e pousou-me a mão no ombro.

- Olha por tudo. Não me desapontes.

- Isso é um golpe baixo - retruquei. - Que eu saiba, nunca o desapontei.

- És muito jovem. Delego em ti uma carga pesada. De qualquer modo, tudo o que possuo é teu, como sabes.

Creio que, se insistisse, me deixaria acompanhá-lo. No entanto, não o fiz. Seecombe e eu ajudámo-lo a subir para a carruagem, com os seus tapetes e bengalas, e depois sorriu-nos pela janela aberta.

- Pronto, Wellington. Podemos ir.

E afastaram-se pelo caminho que comunicava com a estrada, precisamente quando principiava a chover.

As semanas sucederam-se mais ou menos como durante os dois Invernos anteriores. Eu sentia a ausência dele, como sempre, mas havia muita coisa para me entreter. Se desejava companhia, visitava o meu padrinho, Nick Kendall, cuja única filha, Louise, era alguns anos mais nova que eu e companheira de infância. Tratava-se de uma moça delicada, despretensiosa e bonita. Ambrose gostava de observar, maliciosamente, que acabaríamos por casar, mas confesso que nunca a encarei com semelhantes intenções em mente.

A primeira carta dele chegou em meados de Novembro, trazida pelo mesmo navio que o deixara em Marselha. A viagem decorrera sem nada de especial a assinalar, com bom tempo, apesar de uma certa agitação do mar na baía da Biscaia. Encontrava-se bem de saúde, bem-humorado, e aguardava com ansiedade a passagem pelos diferentes pontos de escala em Itália. Não se atrevera a viajar numa diligência, o que, de qualquer modo, o obrigaria a deslocar-se a Lião, e preferira alugar uma carruagem, na qual tencionava seguir ao longo da costa em direcção a Florença. Wellington meneou a cabeça ao

inteirar-se e previu um acidente. Manifestava a firme opinião de que nenhum francês era capaz de conduzir uma carruagem devidamente e todos os italianos revelavam tendência para o roubo. No entanto, Ambrose sobreviveu à tenebrosa previsão, e a missiva seguinte proveio de Florença. Conservei todas as suas cartas e tenho-as neste momento na minha frente. Li-as numerosas vezes nos meses seguintes e manuseava-as com insistência, como se a pressão dos meus dedos pudesse extrair-lhes informações mais completas do que as fornecidas pelas palavras escritas.

Foi perto do final daquela epístola de Florença, onde, segundo parecia, passara o Natal, que aludiu pela primeira vez à prima Raquel.

??Encontrei uma nossa parente. Deves recordar-te de me ouvir falar dos Coryn, que possuíam uma vivenda no Tamar e acabaram por vendê-la. Um deles casou com uma Ashlev, há duas gerações, como podes verificar na árvore genealógica, e uma descendente desse ramo nasceu e foi criada em Itália por um pai sem dinheiro e mãe italiana, para vir a desposar um nobre chamado Sangalletti, o qual abandonou este mundo na sequência de um duelo, no estrangeiro, deixando à mulher uma carga de dívidas e uma vivenda enorme e vazia. Não tiveram filhos. A condessa Sangalletti, ou, como insiste em se intitular a minha prima Raquel, é uma mulher sensata, boa companheira, que decidiu oferecer-se para me mostrar os jardins de Florença e, mais tarde, de Roma, pois estaremos na capital na mesma altura.?,

Congratulei-me pelo facto de ele ter encontrado uma pessoa amiga e, em particular, alguém capaz de partilhar a sua paixão pelos jardins. Como não sabia absolutamente nada acerca da sociedade florentina ou romana, eu receara que se lhe deparassem poucos, ou mesmo nenhum, compatriotas, mas afinal surgira ao menos uma pessoa cuja família viera originariamente da Cornualha, pelo que existia também esse elemento comum.

A carta seguinte consistia quase inteiramente em listas de jardins, que, embora não apresentassem o seu melhor aspecto naquela época do ano, pareciam tê-lo impressionado profundamente. Tal como a nossa parente.

??Começo a nutrir um afecto especial pela nossa prima Raquel??, escreveu no princípio da Primavera. ??Sinto-me impressionado com o que deve ter sofrido com esse Sangalletti. Os Italianos são traiçoeiros por natureza, facto impossível de refutar. Ela é tão inglesa como tu ou eu no aspecto e maneiras, e dir-se-ia que ainda ontem vivia junto do Tamar. Não se cansa de me ouvir falar da pátria e de tudo o que tenho para lhe contar. É extremamente inteligente, mas, graças a Deus, sabe quando se deve calar. Nada de tagarelices, como é vulgar nas mulheres. Indicou-me aposentos excelentes em Fiesole, perto da sua vivenda, e tenciono passar uma boa parte do meu tempo junto dela, sentado no terraço ou a percorrer os seus jardins, que são, segundo parece, famosos pela sua concepção e estatuetas, apesar de não me considerar uma autoridade nestas últimas. Ignoro de que vive a

nossa prima Raquel, mas depreendi das suas palavras que teve de vender uma grande parte dos bens para pagar as dívidas do marido."

Perguntei ao meu padrinho se se recordava dos Coryn e respondeu que sim, mas não emitiu uma opinião concreta a seu respeito.

- Eram pessoas instáveis, nos meus tempos de adolescente - salientou. - Perderam ao jogo o dinheiro e propriedades, e actualmente a casa, à beira do Tamar, não passa de pouco mais que uma herdade em ruínas. Entrou em declínio há uns quarenta anos. O pai dessa mulher devia ser Alexander Coryn, que julgo ter desaparecido no continente, segundo filho de um segundo filho. Não sei o que foi feito dele. O Ambrose referiu a idade da condessa?

- Não. Só diz que casou muito jovem, mas não quando. Suponho que é de meia-idade.

- De qualquer modo, deve ser muito atraente, para lhe despertar tanto entusiasmo - comentou Louise. - Nunca o tinha ouvido admirar uma mulher.

- Talvez o segredo resida precisamente aí - aventei. - É feia e banal e ele não se sente na obrigação de lhe dirigir galanteios. A hipótese encanta-me.

Chegaram mais duas ou três cartas, sem qualquer novidade especial. Ambrose acabava de regressar aos seus aposentos depois de jantar com a nossa prima Raquel ou preparava-se para se encontrar com ela. Explicava que havia muito poucas pessoas em Florença capazes de lhe dar conselhos desinteressados

sobre os seus assuntos e sentia-se lisonjeado por lhe poder ser útil. E Raquel mostrava-se extremamente grata. Não obstante os seus numerosos interesses, parecia singularmente só. Decerto nunca tivera nada em comum com Sangalletti, e confessava que toda a vida ansiara por dispor de amigos ingleses. ??Penso que alcancei algo de positivo, além de adquirir centenas de novas plantas que regressarão a casa comigo??, revelava numa das missivas.

Seguiu-se um período de silêncio epistolar. Embora não mencionasse a data do regresso, costumava ser perto do final de Abril. O Inverno parecera mais prolongado entre nós, com geada - raramente forte na área ocidental do país - de uma intensidade e persistência excepcionais. Algumas das jovens camélias dele haviam sido afectadas pela intempérie, e eu acalentava a esperança de que não regressasse prematuramente e tivesse de suportar ventos agrestes e chuvas copiosas.

Pouco depois da Páscoa, recebi a carta.

??Deves estar admirado com o meu silêncio e, para ser franco, nunca esperei vir um dia a escrever-te o que a seguir lerás. A Providência actua das formas mais estranhas. Viveste sempre junto de mim, pelo que decerto te apercebeste da agitação que se me instalou no espírito nas últimas semanas. Na verdade, ??agitação?, talvez não seja o termo apropriado. O mais correcto seria falar de ??excitação de felicidade??, que se converteu numa certeza. Não tomei uma decisão precipitada. Como sabes, sou demasiadamente um homem de hábitos para alterar o meu modo de vida por um capricho. No entanto,

compreendi, há semanas, que não se me deparava outro rumo possível. Encontrei algo que nunca vislumbrara, nem imaginava que existisse. Mesmo agora, ainda me custa a crer que aconteceu. Os meus pensamentos dirigiram-se para ti com frequência, mas só hoje consegui reunir a calma e coragem suficientes para te escrever. Quero comunicar-te que a tua prima Raquel e eu casámos há duas semanas. Estamos agora em Nápoles, em plena lua-de-mel, e tencionamos regressar a Florença dentro de pouco tempo. Não te posso dizer mais do que isto. Não traçámos quaisquer planos e nenhum dos dois deseja, para já, viver fora do momento presente.

Espero que um dia, não muito distante, a possas conhecer. Eu poderia alongar-me numa descrição pessoal que te aborreceria, a par das suas características nos campos da ternura e bondade, mas prefiro que te certifiques directamente, na ocasião oportuna. Não entendo porque me escolheu de entre todos os homens, um cínico avesso às mulheres, empedernido, por assim dizer. Ela graceja a esse respeito e eu admito a derrota. Aliás, ser derrotado por alguém como a Raquel equivale, de certo modo, a uma vitória. Poder-me-ia considerar vencedor, e não vencido, se não constituísse uma afirmação a todos os títulos presunçosa.

Transmite a nova a todos, com as minhas saudades e os cumprimentos dela, e lembra-te, meu caro rapaz, de que este casamento, tardio na vida, não alterará um átomo do afecto que me mereces e até o reforçará, e agora que me julgo o mais feliz dos homens procurarei fazer ainda mais por ti do que até aqui, com a ajuda de minha esposa. Não tardes a escrever e, se achares que o deves fazer, inclui uma palavra de boas-vindas à tua prima Raquel.

O teu sempre dedicado

Ambrose. ??

A inesperada comunicação chegou por volta das cinco e meia, quando eu acabava de jantar. Por sorte, encontrava-me só, pois Seecombe entregara-me a correspondência e retirara-se em seguida. Guardei a carta na algibeira e saí para cruzar os campos em direcção ao mar. O sobrinho de Seecombe, que ocupava a pequena casa perto da praia, saudou-me. Tinha as redes estendidas na muralha de pedra, para as secar aproveitando os derradeiros raios solares. Respondi com um grunhido entre dentes, e decerto considerou que a minha atitude não primava pela boa educação. Trepei a umas rochas até alcançar um rebordo estreito sobranceiro à pequena baía, sentei-me, puxei da carta e voltei a lê-la. Se conseguisse experimentar uma ponta de simpatia, de alegria, um simples raio de ternura pelo casal que partilhava um período de felicidade em Nápoles, teria ficado com a consciência aliviada. Envergonhado comigo próprio e irritado com o meu egoísmo, não era capaz de notar a menor sensação de afecto no coração. Conservava-me sentado, aturdido pela amargura, o olhar perdido no mar calmo. Acabava de completar vinte e três anos, mau grado o que me sentia tão só e perdido como acontecera num passado remoto, instalado num banco em Fourth Farm, sem ninguém para me dispensar amizade e nada na minha frente - apenas um mundo novo de experiência estranha que não desejava.

Capítulo terceiro

Creio que o que mais me envergonhava era a satisfação dos amigos dele, o verdadeiro prazer pelo seu bem-estar. Os parabéns caíam-me em cima às catadupas, como se me considerassem uma espécie de mensageiro de Ambrose, e no meio de tudo eu tinha de sorrir, inclinar a cabeça e tentar convencê-los de que previra que aquilo acabaria por acontecer. Sentia-me como um homem de duas caras, um traidor. O meu primo esforçara-se por me fazer detestar a falsidade, nas pessoas e nos animais, e, de súbito, descobria-me a fingir que não me achava à beira de uma angústia excruciante.

??O melhor que lhe podia ter acontecido.?? Quantas vezes ouvi pronunciar estas palavras e tive de as ecoar! Comecei a evitar os vizinhos e regressar a casa através do bosque, para não enfrentar os rostos ansiosos e línguas aguçadas. Se passava nas proximidades das herdades ou visitava a aldeia, não havia fuga possível. Bastava que alguém me descortinasse para me crivar de perguntas ou trocar impressões entusiásticas. Como um actor indiferente, exibia um sorriso forçado e via-me obrigado a replicar com um calor que me desagradava, como o que o mundo espera que se fale de uma boda. ??Quando voltam??? Para isto, não havia resposta senão: ??Não sei. O Ambrose não diz. ?,

Havia larga especulação sobre o aspecto, idade e natureza geral da noiva, a que me limitava a replicar: ??É viúva e também adora a jardinagem.¨?

As cabeças dos interessados inclinavam-se em aprovação: muito apropriado, não podia ser melhor, a mulher indicada para ele. Seguia-se então uma fase de comentários maliciosos, aparentemente inofensivos, relativos à interrupção de um longo celibato de quem parecia um solteirão inveterado. A arguta Mrs. Pascoe, esposa do vigário, perorou acerca do tópico, como se ao fazê-lo se vingasse de insultos passados sobre o matrimónio.

- Como vai ser tudo diferente agora, Mister Ashley! -- proclamava em todas as oportunidades possíveis. - Acabou-se a indiferença pela arrumação em sua casa. E ainda bem. Passará a imperar uma certa organização entre o pessoal doméstico, o que decerto não agradará ao Seecombe, que fazia praticamente o que queria.

Neste aspecto, falava verdade. Penso que Seecombe era o meu único aliado, mas eu tinha o cuidado de não enfileirar a seu lado e interrompia-o quando tentava revelar-me o que lhe ia no íntimo.

- Não sei o que dizer, Mister Ashley - murmurava, sombrio e resignado. - Uma senhora cá em casa voltará tudo do avesso e ficaremos sem saber a quantas andamos. Primeiro uma coisa, depois outra, e provavelmente ninguém conseguirá agradar-lhe por mais que se esforce. Julgo chegado o momento de me aposentar e ceder o lugar a alguém mais jovem. Talvez não fosse má ideia mencionar o facto a Mister Ambrose, quando lhe escrever.

Indicava-lhe que não fosse pateta e Ambrose e eu estaríamos perdidos sem ele, mas abanava a cabeça e continuava a executar as suas tarefas com uma expressão grave, sem deixar

escapar uma oportunidade para pronunciar uma alusão amargurada ao futuro, à inevitável alteração das horas das refeições, modificação profunda na disposição do mobiliário, uma interminável operação de limpeza que se prolongaria da alvorada ao anoitecer sem repouso para ninguém e, como tirada final, até os infortunados cães sofreriam as consequências. Estas profecias, emitidas em tons sepulcrais, permitiram-me recuperar uma certa medida do perdido sentido do humor, e soltei uma gargalhada pela primeira vez desde que lera a carta de Ambrose.

Que quadro pintava o fiel Seecombe! Acudiu-me uma visão de um regimento de empregadas domésticas, munidas de panos e espanadores, atarefadas a eliminar até à última teia de aranha, sob o olhar desaprovador do velho mordomo. A sua melancolia divertia-me, mas quando outros principiaram a afinar pelo mesmo diapasão - a própria Louise Kendall, a qual, por me conhecer bem, devia ter percepção suficiente para dominar os impulsos da língua -, passei a irritar-me.

- Ao menos, vai haver novas coberturas para os móveis da biblioteca - declarou alegremente. - As actuais tornaram-se cinzentas com o tempo e uso, mas aposto que vocês nunca repararam. E flores dentro de casa, o que será um progresso de monta. A sala de estar cumprirá finalmente as suas funções, pois sempre me pareceu lamentável que não a utilizassem. Calculo que Mistress Ashley a decorará com livros e quadros da sua vivenda em Itália.

Continuou a desbobinar o seu rosário, enumerando toda uma lista de ??progressos?,, até que perdi a paciência e disse com certa aspereza:

- Com a breca, Louise, deixa o assunto em paz! Estou farto de tudo isso até à raiz dos cabelos.

Interrompeu-se e olhou-me com curiosidade.

- Não estarás, porventura, com inveja?

- Não sejas pateta.

Haveria, sem dúvida, adjectivos menos inconvenientes para lhe dirigir, mas conhecíamo-nos tão bem que a encarava como uma irmã mais jovem, sem lhe conceder respeito especial.

A partir daí, não insistiu, e reparei que, quando o estafado tema voltava à baila na conversa geral, me olhava e tentava passar a outro. O facto mereceu a minha gratidão e fiquei a gostar mais dela.

Foi o seu pai e meu padrinho, Nick Kendall, que deu a estocada final, inconsciente de que o fazia, naturalmente, no habitual tom brusco e sem rodeios.

- Já efectuaste planos para o futuro, Philip? - perguntou-me, uma noite, quando me apresentei em sua casa para jantar.

- Planos? - repeti, sem compreender. - Não.

- Ainda é cedo, claro - admitiu -, e suponho que não os poderás fazer até que o Ambrose e a esposa cheguem. Perguntei apenas para saber se encaraste a hipótese de procurar uma pequena propriedade nas imediações.

- Com que intuito? - Decididamente, custava-me a abarcar o sentido da sua curiosidade.

- Bem, a situação alterou-se um pouco, não achas? -- Volveu com desprendimento. - Eles desejarão sem dúvida estar sós. E, se surgir um filho, as coisas não serão iguais

para ti, hem? Penso que o Ambrose não permitirá que sofras com o novo panorama e te comprará qualquer propriedade que escolheres. Existe, decerto, a possibilidade de não terem descendentes, mas, por outro lado, subsiste sempre essa eventualidade. Talvez prefiras construir. Às vezes, resulta mais satisfatório do que adquirir uma casa já pronta.

Continuou a falar e mencionar locais num raio de cerca de trinta quilómetros susceptíveis de me agradar, e fiquei aliviado ao verificar que não esperava que me pronunciasse imediatamente. O que ele sugeria era tão abrupto e inesperado que eu experimentava dificuldade em raciocinar com clareza, e, na primeira oportunidade, despedi-me. Sim, tinha inveja. Afinal, Louise devia falar verdade. A inveja de uma criança que se encontrava repentinamente obrigada a partilhar a única pessoa da sua vida com uma estranha.

À semelhança de Seecombe, eu vira-me a desenvolver todos os esforços para me adaptar a uma situação nova e desconfortável. Apagar o cachimbo na presença dela, pôr-me de pé à sua entrada, diligenciar, embora contrariado, participar na

conversa, resignar-me aos rigores e tédio da sociedade feminina. E ver Ambrose comportar-se como um imbecil, até me sentir na obrigação de abandonar o aposento em virtude do profundo embaraço. Nunca me considerara um intruso. Já não desejado, expulso do lar e alojado em qualquer recanto, como um criado. A aparição de um filho, que chamaria pai a Ambrose, pelo que eu deixaria de ser necessitado.

Se tivesse sido Mrs. Pascoe que me chamasse a atenção para semelhante possibilidade, atribuiria o facto a malícia e esquecê-lo-ia. Mas o meu próprio padrinho, um homem reservado e calmo, a expor uma hipótese tão cruel, era diferente. Regressei a casa atormentado pela incerteza e tristeza. Quase

não sabia o que fazer. Deveria traçar planos, como Nick Kendall sugerira? Procurar uma nova residência? Efectuar os preparativos para partir? Não queria viver em qualquer outro lugar ou possuir outra casa. Ambrose criara-me e educara-me

somente para aquela. Era minha. E dele. Pertencia a ambos.

Mas agora tudo se modificara. Recordo-me de vaguear pela vi venda, quando regressei da visita aos Kendall, e contemplá-la

com um olhar novo, e os cães, pressentindo a minha perturbação, seguiam-me, tão inquietos como eu. O meu antigo quarto quando criança, desocupado desde longa data, e agora o local onde a sobrinha de Seecombe se instalava uma vez por semana para cuidar da roupa da casa, adquiria um novo significado. Vi-o pintado de fresco, e o meu pequeno taco de críquete, que ainda se encontrava, debaixo de teias de aranha, numa prateleira entre livros cobertos de pó, deitado fora como mero lixo. Não me ocorrera até então que o aposento continha numerosas recordações. Agora, desejava recuperá-lo, um oásis de refúgio do mundo exterior. Ao invés, converter-se-ia num lugar

estranho, abafado, a cheirar a leite fervido e cobertores postos

a secar, como as salas de casas pequenas que visitava com frequência, onde viviam crianças. A imaginação mostrava-mas a

gatinhar pelo chão com gritos agudos e colidir para se magoarem, no meio de uma confusão indescritível. Santo Deus! Estaria tudo aquilo, ou mesmo pior, reservado a Ambrose?

Até então, quando pensava na minha prima Raquel - o que só fazia esporadicamente, para afastar em seguida o nome da mente, como se faz perante uma coisa desagradável -, concebera-a como parecida com Mrs. Pascoe. De traços fisionómicos mais ou menos grosseiros, olhar perscrutador para detectar o mínimo grão de pó, como Seecombe profetizara, e risadas demasiado agudas, sobretudo quando houvesse convidados para jantar. Agora, assumia novas proporções. Num momento monstruosa, como a infeliz Molly Bates, membro do pessoal doméstico, que obrigava as pessoas a desviar a vista por uma questão de delicadeza, e no seguinte pálida e retraída, coberta com um xaile numa cadeira dominada por uma petulância de inválida, enquanto uma enfermeira permanecia alerta para lhe acudir e, entretanto, misturava medicamentos com uma colher. Num momento, de meia-idade e enérgica, e no seguinte afectada e mais jovem do que Louise, a minha prima Raquel tinha uma dúzia, pelo menos, de personalidades, cada uma mais odiosa que a anterior. Imaginei-a a obrigar Ambrose a ajoelhar para brincar com os filhos encavalitados nas costas e ele a submeter-se com humilde graciosidade por ter perdido toda a dignidade. No entanto, via-a igualmente envolta em musselina, com uma fita no cabelo, sacudir os caracóis com uma expressão pretensiosa, enquanto Ambrose se reclinava na poltrona a observá-la, um sorriso de pateta a alterar-lhe o rosto.

Quando, em meados de Março, chegou a carta a anunciar que afinal tinham decidido continuar no estrangeiro durante o Verão, o meu alívio foi tão intenso que me contive com dificuldade de soltar um grito de satisfação. Sentia-me mais traiçoeiro que nunca, mas não o podia evitar.

??A tua prima Raquel está ainda tão assoberbada pela resolução dos seus assuntos antes de partir para a Inglaterra que decidimos, embora contrariados, como deves calcular, protelar o regresso para já??, revelava Ambrose. ??Esforço-me tanto quanto possível, mas as leis italianas diferem radicalmente das nossas, e é uma carga de trabalhos tentar harmonizá-las. Farto-me de gastar dinheiro, mas faço-o por uma boa causa de que me não arrependo. Falamos de ti com frequência, meu rapaz, e lamento que não estejas connosco.??

Prosseguia com perguntas sobre a situação no lar e estado dos jardins, com o habitual fervor de interesse, pelo que se me afigurava que eu devia estar louco para imaginar por um momento que fosse que ele podia mudar.

A vizinhança não deixou, evidentemente, de se mostrar desapontada pelo facto de eles não regressarem antes do final do Verão.

- Talvez o estado de saúde de Mistress Ashley a impeça de viajar - observou Mrs. Pascoe, com um sorriso malicioso.

- Isso não sei - repliquei. - O Ambrose refere na carta

que passaram uma semana em Veneza e voltaram de lá com reumatismo.

- Reumatismo? - O sorriso extinguiu-se. - A esposa também? Que pena... - E, com uma expressão pensativa: - Deve ser mais velha do que eu supunha.

Uma mulher apatetada, com o raciocínio orientado invariavelmente para um único rumo. Eu sofrera de reumatismo nos joelhos aos dois anos de idade. Com dores incomodativas, segundo os meus pais me haviam explicado. Às vezes, quando a humidade do ar aumentava, ainda me acudiam. Apesar disso, existia alguma similaridade entre os meus pensamentos e os de Mrs. Pascoe. A minha prima Raquel envelheceu subitamente vinte anos. Voltava a ter cabelo grisalho, apoiava-se a uma bengala, e eu via-a, quando não plantava rosas no jardim italiano que me era impossível configurar, sentada a uma mesa, a bater impacientemente com a bengala no chão, rodeada por meia dúzia de advogados que palravam em italiano, enquanto o infortunado Ambrose permanecia resignadamente a seu lado.

Porque não regressava ele a casa e a deixava resolver os seus problemas?

O meu estado de espírito melhorou, todavia, a partir do instante em que a noiva afectada cedeu o lugar à matrona idosa, flagelada por lumbago. O quarto das crianças retrocedeu para segundo, ou mesmo terceiro, plano, e a sala converteu-se num boudoir, circundado por cortinados, uma ampla lareira acesa em pleno Verão e alguém a chamar Seecombe em tom irritado para que trouxesse mais carvão, porque o frio a incomodava profundamente. Readquiri o hábito de cantar quando montava a cavalo, incitava os cães para perseguirem coelhos jovens, nadava antes do pequeno-almoço, passeava na embarcação de Ambrose até ao estuário se o vento soprava de feição e gracejava com Louise acerca das modas impostas por Londres, quando ela ia lá passar a época do ano apropriada. Aos vinte e três anos, não é preciso muito para que o espírito assuma um estado quase de euforia. A casa continuava a ser o meu lar. Ninguém mo arrebatara.

Até que, no Inverno, o tom geral das cartas dele se alterou. De modo imperceptível, a princípio, e quase não me dei conta. Porém, ao reler as suas palavras detectei uma aragem de tensão, como que uma nota de ansiedade subjacente que o dominava gradualmente. Depreendi que, em parte, se tratava de saudades de casa. Uma nostalgia da pátria e de bens que lhe pertenciam, mas, sobretudo, uma espécie de solidão que me parecia estranha num homem casado havia apenas dez meses. Admitia que o Verão e o Outono tinham sido muito cansativos, e agora o Inverno encontrava-se invulgarmente perto. Embora a vivenda se situasse num ponto elevado, a atmosfera era opressiva, e ele dizia que costumava mover-se de um aposento para outro como um cão antes de uma tormenta, sem que, contudo, se registasse qualquer trovão. O ar persistia pesado, e daria a própria alma por uma boa chuvada, ainda que lhe agudizasse o reumatismo. ??Nunca fui atreito a enxaquecas, mas agora acodem-me com frequência?,, escrevia. ??Às vezes, quase me privam da visão. Estou farto de ver o Sol. Não encontro palavras para exprimir as saudades que tenho de ti. Há muitas coisas para abordarmos, mas não por carta. A minha mulher foi hoje à cidade, e daí a oportunidade que se me depara para traçar estas linhas.,? Era a primeira vez que

empregava a expressão ??minha mulher". Até então, mencionara-a como ??Raquel?, ou ??a tua prima Raquel??, pelo que ??minha mulher?? parecia formal e mesmo fria.

Nessas epístolas do Inverno, não aludia ao regresso, mas manifestava sempre um desejo apaixonado de conhecer as novidades, e comentava qualquer pequena ocorrência que eu lhe comunicara em cartas anteriores, como se não possuísse outro interesse.

Como não chegassem notícias na Páscoa ou no Pentecostes, comecei a preocupar-me. Falei disso ao meu padrinho, que aventou a possibilidade de o mau tempo ter atrasado o correio. Verificavam-se intensos nevões na Europa Central, pelo que eu não devia contar com a chegada de correspondência de Florença antes de fins de Maio. Havia já um ano que

Ambrose casara e dezoito meses que partira para a Itália. O meu alívio inicial pela sua ausência, após o enlace, transformou-se em temor de que jamais voltasse. Era óbvio que um

Verão no continente lhe afectara a saúde. Que aconteceria após

o segundo? Por fim, em Julho, chegou uma carta, breve e incoerente, totalmente imprópria dele. Até a letra, em geral bem

legível, estendia-se no papel como se lhe fosse difícil pegar na

caneta.

??Não estou a passar bem?,, reconhecia. ??Deves ter-te apercebido pela minha carta anterior. Em todo o caso, convém

guardar silêncio, pois ela vigia-me constantemente. Escrevi-te

diversas vezes, mas não há ninguém que me mereça confiança,

e a menos que eu próprio saia para enviar estas linhas, há o perigo de não te chegarem às mãos. Desde que adoeci, não posso ausentar-me para muito longe. Quanto aos médicos, nenhum me proporciona o mínimo alívio. São uma corja de mentirosos. O mais recente, recomendado por Rainaldi, tem ares de assassino, o que não admira, atendendo à sua proveniência. No entanto, eles nem sabem no que se meteram ao desafiar-me, e acabarei por vencê-los." Seguia-se um espaço em branco e a anteceder a assinatura umas garatujas que não consegui decifrar.

Mandei selar o cavalo e fui mostrar a missiva ao meu padrinho, que ficou tão apreensivo como eu.

- Dá a impressão de um colapso mental - declarou sem hesitar. - Confesso que não me agrada nada. Não é uma carta própria e um homem em plena posse das suas faculdades. Deus queira que... - Interrompeu-se e mordeu o lábio inferior.

- Deus queira o quê? - perguntei.

- O teu tio Philip, pai do Ambrose, morreu de um tumor no cérebro - declarou secamente. - Suponho que não o ignoras?

Era a primeira vez que ouvia mencionar o facto e disse-lho.

- Aconteceu antes de nasceres, claro - acrescentou. - O assunto nunca foi muito ventilado na família. Não sei se essas coisas são hereditárias, e os médicos creio que também não. A medicina não está suficientemente avançada. - Tornou a ler a carta, recorrendo aos óculos. - Existe, sem dúvida, outra possibilidade, extremamente improvável, mas que eu preferiria...

- Qual?

- Ele estar embriagado quando escreveu isto.

Se não tivesse mais de sessenta anos e não fosse meu padrinho, eu não teria hesitado em esbofeteá-lo pelo arrojo da sugestão.

- Nunca o vi embriagado - afirmei com veemência.

- Nem eu - admitiu com prontidão. - Limito-me a tentar escolher o menor de dois males. Acho que deves partir para a Itália.

- Já tinha decidido fazê-lo, antes de o procurar - anunciei.

Regressei a casa, sem a mais remota ideia das providências a tomar para empreender a viagem.

Não partia de Plymouth qualquer barco que me pudesse ser útil, pelo que seria obrigado a seguir para Londres, daí para Dôver, embarcar no paquete para Bolonha e depois atravessar a França, rumo à Itália na diligência usual. Admitindo que não se verificariam atrasos imprevistos, encontrar-me-ia em Florença dentro de cerca de três semanas. O meu francês era fraco e o italiano inexistente, mas nada disso me preocupava, desde que pudesse chegar até Ambrose. Despedi-me de Seecombe e do pessoal, com a única explicação de que tencionava efectuar uma breve visita ao amo, sem todavia mencionar a doença, e parti para Londres numa bela manhã de Julho, com a perspectiva de uma viagem de cerca de três semanas em território desconhecido no meu horizonte.

Quando a carruagem enveredava pela estrada de Bodmin, avistei o nosso empregado que costumava ir buscar a correspondência. Indiquei a Wellington que parasse e o rapaz entregou-me a mala. Existia uma possibilidade muito remota de haver nova carta de Ambrose, mas foi o que aconteceu. Separei-a

das restantes, devolvi a mala ao rapaz e mandei-o seguir para casa. Enquanto reatávamos a marcha, extraí a folha de papel do sobrescrito e aproximei-a da janela para ver melhor.

As palavras estavam garatujadas, quase ilegíveis:

??Vem depressa, por amor de Deus. Ela acabou por se desmascarar, Raquel, o meu tormento. Se não me acudires imediatamente, poderá ser demasiado tarde. Ambrose."

Apenas isto. Não havia qualquer data, nem marca no sobrescrito, selado com o anel dele.

Conservei-me imóvel, com a folha de papel na mão, consciente de que nenhum poder do Céu ou da Terra me permitiria chegar junto dele antes de meados de Agosto.

Capítulo quarto

Quando a diligência chegou a Florença e nos largou à entrada da estalagem à beira do Arno, afigurava-se-me que passara toda a vida na estrada. Nenhum viajante que pousasse os pés no continente europeu pela primeira vez se sentiria menos impressionado do que eu. Os caminhos que percorremos, os montes e vales, as cidades, francesas ou italianas, onde nos detivemos para pernoitar, pareciam-me todos iguais. Em toda a parte imperava a sujidade, e o ruído era ensurdecedor. Habituado ao silêncio da vivenda quase vazia - pois o pessoal dormia nas suas instalações junto da torre do relógio -, onde eu não ouvia qualquer som ao longo da noite, à parte o vento nas árvores e o bater da chuva nas vidraças quando a circulação

era de sudoeste, a confusão e pandemónio das cidades estrangeiras quase me aturdiam.

É verdade que dormi - quem não se deixa vencer pelo sono após longas horas de trepidação na estrada? -, porém os sonhos estavam povoados por todos os ruídos estranhos: o bater de portas, vozes agudas, passos junto da janela, carroças pesadas que percorriam a rua empedrada e, sempre, cada quarto de hora, o badalar do relógio do campanário. Se me encontrasse no estrangeiro com qualquer outra missão, talvez tudo fosse diferente. Poderia então assomar à janela pela manhã com o espírito despreocupado, observar as crianças descalças a brincar no passeio e até talvez lhes atirasse moedas, enquanto escutaria os novos sons com fascinação, para à noite passear pelas ruas estreitas e sinuosas com agrado perante um ambiente diferente do habitual. No entanto, a actual situação obrigava-me a encarar tudo com indiferença e até hostilidade. O meu único objectivo consistia em entrar em contacto com Ambrose, e o facto de o saber enfermo num país estranho fazia com que a minha ansiedade se convertesse em ódio por tudo o que era estrangeiro, até o próprio solo.

A temperatura era quase sufocante. O céu apresentava uma tonalidade azul-clara e, enquanto percorria as estradas poeirentas da Toscana, dir-se-ia que os raios solares tinham absorvido toda a humidade da atmosfera. Os vales achavam-se cobertos por um tapete pardo e as pequenas povoações encontravam-se desertas, pois os habitantes refugiavam-se debaixo dos seus tectos para obviar o calor.

O meu primeiro instinto, ao apear-me da diligência em Florença, enquanto descarregavam a bagagem coberta de pó e a levavam para a estalagem, consistiu em cruzar a rua empedrada e postar-me diante do rio. Sentia-me extenuado e coberto de pó da cabeça aos pés. Nos dois últimos dias, preferira sentar-me ao lado do condutor para não morrer sufocado dentro da pequena cabina, e, à semelhança dos infortunados animais que percorriam a estrada, ansiava por uma paisagem em que a água ocupasse um lugar privilegiado. Agora, tinha-a na minha frente. Não se tratava do estuário azul das proximidades de casa, mas de uma corrente caudalosa acastanhada como o leito pelo qual circulava, a superfície sulcada de detritos, apesar do que, para a minha imaginação, quase febril de cansaço e sede, representava um espectáculo maravilhoso, como quem se sente disposto a tragar veneno, desde que lhe mitigue a secura das entranhas.

Continuei a contemplar a água em movimento, fascinado, enquanto o sol incidia na ponte próxima, até que, de súbito, atrás de mim, na cidade, soaram as badaladas solenes das quatro horas. O eco foi retomado por outros campanários e o som misturou-se com as águas castanhas do rio.

Notei a meu lado uma mulher, com uma criança soluçante nos braços e outra agarrada às saias rasgadas, a qual estendeu a mão na minha direcção, os olhos negros dominados por uma expressão de súplica. Dei-lhe uma moeda, mas tocou-me no cotovelo, murmurando, até que um dos passageiros da diligência, ainda junto desta, lhe dirigiu algumas palavras incisivas em italiano e ela afastou-se para a ponte de onde viera. Era jovem;

pouco mais de dezanove anos, porém os traços do semblante podiam considerar-se intemporais, perseverantes, como se albergasse no pequeno corpo uma alma velha que se recusava a morrer. Mais tarde, já no quarto que me atribuíram, assomei à pequena varanda sobranceira à praça e vi-a mover-se entre as carroças, furtivamente, como uma gata a coberto da noite.

Lavei-me e mudei de roupa com uma apatia invulgar em mim. Agora que chegara ao termo da viagem, assolava-me uma espécie de alheamento, e o ânimo que me impelira a efectuar a longa peregrinação parecia ter-se dissipado, substituído por uma indiferença inexplicável. A própria realidade da folha de papel na minha algibeira perdera toda a substância. Fora escrita há muitas semanas, e tornava-se difícil determinar o que podia ter acontecido desde então. Talvez ela tivesse levado Ambrose de Florença, em direcção a Roma ou Veneza, e imaginei-me encafuado de novo na diligência, atrás deles, para percorrer cidade após cidade ao longo do tórrido país, sem jamais os encontrar, sempre vencido pelo tempo e estradas poeirentas.

Por outro lado, as minhas deduções podiam estar erradas, com as cartas escritas apressadamente, e daí a irregularidade da letra, resultado de uma das partidas a que o Ambrose de outrora se dedicava de vez em quando. Nessa conformidade, apresentar-me-ia na vivenda e descobri-lo-ia a meio de uma recepção, abrilhantada por trepidante música italiana.

Desci à praça diante da estalagem. As carroças já não se achavam lá. O período da sesta terminara e as ruas voltavam a estar cheias de gente. Enveredei por elas e perdi-me quase imediatamente. Rodeavam-me pátios e travessas sombrios, casas altas que dir-se-ia tocarem-se, varandas protuberantes, e, à medida que as percorria, vislumbrava rostos desconfiados ou curiosos que me acompanhavam com os olhos e expressões de sofrimento. Algumas pessoas aventuraram-se a seguir-me, murmurando, como fizera a mendiga com dois filhos de tenra idade, e estendendo as mãos, mas quando eu lhes falava com aspereza, à semelhança do meu companheiro de viagem, retrocediam, apreensivas. Os sinos recomeçaram a atroar os ares e desemboquei numa larga piazza, onde numerosos indivíduos, em grupos, falavam e gesticulavam animadamente, sem o menor elemento de ligação, a meu ver, com os edifícios em redor, austeros e belos, ou com as estátuas que os contemplavam remotamente com olhos cegos ou mesmo com o som dos sinos, que vibravam intensa e lugubremente sob o céu quase plúmbeo.

Chamei uma carrozza que ia a passar e, quando articulei em tom hesitante as palavras ??Villa Sangalletti?,, o condutor respondeu algo que não compreendi, embora detectasse o termo ??Fiesole", ao mesmo tempo que inclinava a cabeça e apontava com o chicote. Seguimos pelas artérias estreitas apinhadas de gente, enquanto ele vociferava para o cavalo e as pessoas se desviavam apressadamente. Os sinos calaram-se, todavia o eco pareceu perdurar nos meus ouvidos, solene, sonoro, dobrando, não pela minha missão, insignificante e pequena, nem pelas vidas dos transeuntes, mas pelas almas de homens e mulheres há muito falecidos e pela eternidade.

Subimos uma estrada longa e sinuosa em direcção às colinas distantes e deixámos Florença para trás. As casas começaram a rarear e atravessámos uma área pacífica, silenciosa, sem o calor sufocante de pouco antes. As construções que agora nos ladeavam apresentavam um aspecto menos formal, mais acolhedor. Entretanto, a vegetação aumentava, com mais tendência para o verde do que para o castanho das regiões flageladas pelas temperaturas escaldantes.

O condutor deteve a carrozza diante de um portão fechado embutido num muro alto, voltou-se no banco e olhou-me por cima do ombro.

- Villa Sangalletti - anunciou simplesmente. O termo da minha peregrinação.

Fiz-lhe sinal para que aguardasse, apeei-me, avancei para o portão e puxei a corrente da sineta a um lado. Ouvi-a retinir no interior da propriedade. O condutor levou a carrozza para a berma da estrada, saltou do banco e permaneceu junto dela, ao mesmo tempo que enxotava as moscas com o chapéu. O cavalo inclinou-se entre os varais e assumiu a melhor posição possível para recuperar as energias, após a longa e íngreme subida. Como não acudisse ninguém, tornei a puxar a corrente da sineta. Desta vez, registou-se o latido surdo de um cão, que aumentou de intensidade no momento em que se abriu uma porta algures. O grito de uma criança foi abafado, enérgica e irritadamente, por uma voz feminina, e distingui passos que se acercavam. Registou-se o ruído de um ferrolho e o ranger dos

gonzos do portão à medida que se abria. Surgiu uma mulher

com ares de camponesa, que me olhou em silêncio.

- Villa Sangalletti? - proferi. - Signor Ashley?

O cão, preso por uma corrente à entrada de um anexo onde ela decerto vivia, pôs-se a ladrar mais furiosamente que antes. Estendia-se uma alameda à minha frente, ao fundo da qual

avistei a villa, com aspecto decrépito e destituída de vida. A mulher fez menção de me fechar o portão na cara, enquanto o animal persistia nos latidos e a criança chorava. O rosto daquela estava inchado, como se sofresse de dor de dentes, e conservava a ponta do xaile pousado nele, como que para atenuar o tormento.

Transpus o portão e repeti as palavras ??Signor Ashley??. Desta vez, ela estremeceu, como se visse os meus traços fisionómicos pela primeira vez, e pôs-se a falar rapidamente, com uma espécie de agitação nervosa, ao mesmo tempo que gesticulava em direcção à vivenda. De repente, voltou-se e chamou alguém que se encontrava no anexo. Um homem, presumivelmente o marido, apareceu à porta aberta, com uma criança equilibrada no ombro, reduziu o cão ao silêncio e aproximou-se de mim, enquanto increpava a mulher. Esta prosseguiu a torrente de palavras, das quais distingui ??Ashley?? e ??Inglese?,, e foi a vez dele de me olhar com estranheza. Tinha um aspecto menos desagradável que ela - mais asseado e olhos de expressão sincera -, até que a expressão se alterou para profunda apreensão e murmurou algumas palavras para a mulher, a qual desapareceu no interior do anexo com a criança, para assomar quase imediatamente, ainda com a ponta do xaile pousada no rosto.

- Eu falo algum inglês, signore - articulou o homem. - Em que o posso servir?

- Procuro Mister Ashley - informei. - Ele e Mistress Ashley encontram-se na villa?

A expressão apreensiva acentuou-se e ele engoliu com nervosismo, antes de perguntar:

- É filho de Mister Ashley, signore?

- Não - redargui com impaciência. - Sou primo. Eles estão em casa?

Meneou a cabeça, mais acabrunhado que nunca.

- Nesse caso, vem de Inglaterra e não sabe o que aconteceu? Que posso dizer? É um assunto muito triste, não sei como explicar-lhe. O Signor Ashley morreu há três semanas. De repente. Uma pena... A condessa fechou a villa, mal o enterraram, e partiu. Há quase duas semanas que não se encontra cá. Ignoramos se voltará.

O cão reatou os latidos e ele voltou-se para o mandar calar.

Senti o sangue esvair-se do rosto, absolutamente estupefacto. O homem observava-me com pesar e disse algo à mulher, que foi buscar um banco e o colocou a meu lado.

- Sente-se, signore - indicou ele. - Lamento. Lamento profundamente.

Abanei a cabeça, impossibilitado de falar. Não havia nada que pudesse dizer. O homem, preocupado, dirigiu-se à mulher em tom agreste, para desanuviar a tensão, e virou-se de novo para mim.

- Se deseja entrar na villa, eu abro-a. Poderá ver onde o Signor Ashley morreu.

Era-me indiferente o que fazia ou aonde ia. A minha mente ainda se achava demasiado aturdida para raciocinar. Ele começou a afastar-se pela alameda, ao mesmo tempo que puxava de umas chaves da algibeira, e acompanhei-o, com as pernas subitamente pesadas como chumbo. A mulher e a criança seguiram-nos.

Os ciprestes que nos ladeavam lembravam sentinelas tenebrosas, e a decrépita vivenda, como um sepulcro, aguardava ao fundo da alameda. à medida que nos aproximávamos, vi que era grande, com muitas janelas, todas fechadas, e, diante da entrada, o caminho de acesso descrevia um círculo, para as carruagens poderem inverter a marcha. Estátuas, nos respectivos pedestais, erguiam-se entre os ciprestes. O homem abriu a pesada porta com uma das chaves que possuía e fez-me sinal para que entrasse. A mulher e a criança também vieram e eles começaram a subir os estores, passando de aposento a aposento, decerto convencidos de que a entrada da luz me atenuaria a amargura. As dependências comunicavam todas umas com as outras, grandes e arejadas, com frescos no tecto e chão de pedra, num ambiente vagamente medieval. Numas, as paredes eram lisas, enquanto outras exibiam tapeçarias e, noutra ainda, mais escura e opressiva, havia uma longa mesa de refeitório circundada por cadeiras monásticas lavradas, com candelabros enormes em cada extremidade.

- A Villa Sangalletti é muito bonita e antiga, signore -- disse o homem. - O Signor Ashley costumava sentar-se aqui quando o sol era muito forte para ele. Esta era a sua cadeira.

Apontou, quase com reverência para uma de espaldar elevado a um lado da mesa. Eu observava tudo como que imerso

num sonho. Nada daquilo possuía realidade. Era-me impossível imaginar Ambrose naquela casa ou naquela sala. Nunca poderia entrar ali com o à-vontade que eu tão bem lhe conhecia, a assobiar e conversar com ar despreocupado. Persistentemente, em ritmo monótono, marido e mulher moviam-se em torno do aposento para abrir janelas e subir estores. Lá fora, havia um pequeno pátio, uma espécie de claustro quadrangular, aberto ao céu, mas protegido do sol. No centro, via-se uma fonte, com a estátua de bronze de um rapaz, que segurava uma concha nas duas mãos. Atrás da fonte, um laburno entre duas áreas pavimentadas, que produzia uma abóbada de sombra. As flores douradas há muito que tinham murchado e caído no chão poeirento e cinzento. O homem murmurou à mulher, que se dirigiu a um canto do pátio e fez rodar uma torneira. Com lentidão, suavemente, a água começou a jorrar entre as mãos do rapaz.

- O Signor Ashley sentava-se aqui todos os dias, para observar a fonte - explicou ele. - Gostava de ver a água. Colocava-se debaixo da árvore. É muito bonita, na Primavera, coberta de flores. A contessa chamava-o do quarto por cima.

Apontou para as colunas de pedra da balaustrada. A mulher desapareceu dentro de casa e, momentos depois, aparecia na varanda que o marido indicara, depois de subir os estores. Entretanto, a água continuava a jorrar entre as mãos do rapaz.

- No Verão, sentavam-se sempre aqui - prosseguiu o homem. - O Signor Ashlev e a contessa. Comiam ao som da água da fonte. Era eu que os servia. Trazia dois tabuleiros e pousava-os na mesa. - Apontou para a mesa de pedra e duas cadeiras que ainda ali se encontravam. - Após o jantar, tomavam a tisana, dia após dia, sempre da mesma maneira.

Fez uma pausa e tocou numa cadeira com a mão. Acudiu-me uma sensação de opressão. A temperatura era agradável no pequeno pátio, fresca quase como numa sepultura, apesar do que a atmosfera dir-se-ia estagnada, como a do interior da casa antes de ventilada.

Pensei em Ambrose em nossa casa. Percorria a propriedade em mangas de camisa durante o Verão, apenas com a protecção de um chapéu de palha. Revi esse chapéu, puxado para os olhos, enquanto ele se sentava na embarcação e apontava para algo ao longe, no mar. Recordava-me de como estendia os braços, a fim de me puxar para bordo, quando eu nadava na sua esteira.

- Sim - volveu o homem, como que para consigo. - O Signor Ashley sentava-se nesta cadeira para olhar a água.

A mulher reapareceu, cruzou o pátio e fechou a torneira. A água parou de correr. Tudo ficou imóvel, silencioso. A criança, que estivera a contemplar a fonte de olhar arregalado, agachou-se repentinamente e pôs-se a apanhar vagens do laburno, que em seguida se entreteve a atirar à água da fonte. A mulher ralhou-lhe, puxou-o para a parede e pegou numa vassoura aí apoiada, com a qual principiou a varrer o pátio. O facto quebrou o silêncio, e o marido tocou-me no braço.

- Quer ver o quarto onde o signore morreu? - perguntou com brandura.

Possuído pela mesma sensação de irrealidade, segui-o pela escadaria de acesso ao piso superior. Atravessámos aposentos menos abundantemente mobilados que os de baixo, e um, virado a norte, sobranceiro à alameda dos ciprestes, achava-se desnudo como uma cela monástica, à parte a simples armação de ferro de uma cama encostada à parede, junto da qual se

viam um jarro de água, uma bacia e um biombo. Havia tapeçarias na parede acima da lareira e, num nicho ao canto, encontrava-se uma estatueta que representava uma Virgem ajoelhada, as mãos unidas em prece.

Dirigi o olhar para a cama. Os cobertores estavam meticulosamente dobrados aos pés. Duas almofadas, sem fronhas, achavam-se colocadas à cabeceira, sobrepostas.

- O fim foi muito rápido - informou o homem, a meia voz. - É certo que ele estava fraco, muito mesmo, mas ainda na véspera se arrastara até ao pátio, para se sentar diante da fonte. A contessa bem lhe recomendou que voltasse para a cama, devido à fraqueza, mas o Signor Ashley não quis escutá-la. E os médicos entravam e saíam constantemente. O Signor Rainaldi também veio para o convencer a ter cuidado, mas ele reagia com violência, como uma criança. Era aflitivo ver um homem definhar daquela maneira. Até que, de manhã cedo, a contessa foi chamar-me ao quarto, pois eu tinha passado a dormir cá em casa. Branca como um lençol, exclamou: ??Ele está a morrer, Giuseppe! Pressinto que não passa de hoje!,? Segui-a e vi-o na cama, de olhos fechados, ainda a respirar, embora pesadamente, não como se dormisse. Mandámos chamar o médico, mas o Signor Ashley não voltou a acordar. Estava em coma, o sono da morte. Eu próprio acendi as velas com a contessa e, depois de as freiras se retirarem, fiquei a velar o corpo. A violência tinha desaparecido completamente e ele apresentava uma expressão serena. Gostava que o tivesse visto, signore.

Notei-lhe os olhos marejados. Desviei a vista e fixei-a na

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cama. No entanto, não sentia nada. A apatia dissipara-se e deixara-me frio e duro.

- A que violência se refere? - acabei por perguntar.

- À que surgiu com a febre. Tive de o manter na cama à força por duas ou três vezes, a seguir aos ataques. Com a violência veio a fraqueza, aqui. - Pousou a mão no estômago. - Tinha muitas dores. E quando elas desapareciam, ficava aturdido e sonolento, com o espírito a vaguear. Garanto-lhe que foi horrível, signore. Horrível ver um homem tão forte incapacitado.

Abandonei o quarto frio e desolador e ouvi-o fechar a janela e baixar o estore atrás de mim.

- Porque não se fez nada? - persisti. - Os médicos não lhe podiam aliviar as dores? E Mistress Ashley limitou-se a deixá-lo morrer?

- Desculpe, signore? - proferiu, perplexo.

- Que espécie de doença era, quanto tempo durou?

- Como disse há pouco, o final foi muito rápido, mas precedido de um ou dois ataques. E, durante todo o Inverno, o signore não se sentia bem; triste, diferente do habitual. Pelo menos, muito diferente do ano anterior. Quando veio viver para a villa, era feliz, alegre.

Ele ia abrindo mais janelas enquanto falava, e saímos para um espaçoso terraço, com algumas estátuas dispersas. Na extremidade mais distante, havia uma longa balaustrada de pedra, da qual nos aproximámos. Em baixo, via-se um jardim de aspecto formal que exalava o odor de rosas e jasmins e, ao longe, outra fonte, e ainda outra, com degraus de pedra de acesso

a cada jardim, até que, ao fundo, se erguia o muro que rodeava toda a propriedade.

Voltámo-nos para oeste, na direcção do sol-poente, que projectava uma luminosidade suave no terraço e jardins, e afigurou-se-me que pairava uma estranha serenidade que anteriormente não se achava presente.

A pedra ainda estava quente debaixo da minha mão, e uma lagartixa surgiu de uma greta e rastejou ao longo da parede.

- Nas tardes calmas, isto é muito bonito, signore - disse o homem, que permanecia um ou dois passos atrás de mim, como que por deferência. - Às vezes, a contessa mandava abrir a água das fontes e, nas noites de lua cheia, ela e o Signor Ashley vinham para o terraço depois de jantar. O ano passado, antes de ele adoecer.

Conservei-me imóvel e silencioso, a contemplar as fontes e os lagos por baixo, com os nenúfares.

- Creio que a contessa não voltará - acrescentou o homem, pausadamente. - Isto tornou-se muito triste para ela. Há demasiadas recordações amargas. O Signor Rainaldi disse-nos que a villa vai ser alugada e possivelmente vendida.

Estas palavras fizeram-me regressar à realidade. O sortilégio do jardim silencioso dominara-me por um breve momento, com a fragrância das rosas e o clarão do sol-poente, mas o efeito agora extinguira-se.

- Quem é o Signor Rainaldi?

- Ocupa-se de todos os assuntos da contessa: negócios, questões de dinheiro, tudo. Conhecem-se há muito tempo.

Enrugou a fronte e acenou com a mão para a mulher, a qual, com o filho nos braços, cruzava o terraço. A visão desagradava-lhe, pois não deviam estar ali. Ela apressou-se a desaparecer na villa e começou a baixar os estores.

- Quero falar com ele - declarei.

- Eu dou-lhe o endereço. Fala inglês perfeitamente.

Entrámos igualmente e, quando percorria os diversos aposentos em direcção ao átrio, verifiquei que os estores eram fechados, um a um, atrás de mim. Explorei as algibeiras em busca de trocos. Sentia-me uma pessoa anónima qualquer, um turista de visita ao continente, atraído pela curiosidade a uma villa com a possível intenção de a comprar, e não eu próprio, a olhar pela primeira e última vez o lugar onde Ambrose vivera e morrera.

- Agradeço-lhe tudo o que fez por Mister Ashley.

Com isto, depositei-lhe algumas moedas na mão.

- Lamento, signore. - As lágrimas surgiram novamente. - Lamento profundamente.

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Os últimos estores encontravam-se baixados. A mulher e a criança achavam-se no átrio ao nosso lado e a atmosfera voltara a escurecer, como a entrada de um subterrâneo.

- Que aconteceu à sua roupa, bens pessoais, livros, documentos? - inquiri.

O homem pareceu embaraçado. Virou-se para a mulher,

com a qual dialogou por um momento. Registou-se um vaivém de perguntas e respostas. O rosto dela assumiu uma expressão de ignorância e encolheu os ombros.

- A minha mulher ajudou a contessa, antes de partir -- disse ele, voltando-se de novo para mim. - Parece que ela levou tudo. A roupa, livros e outras coisas de Mister Ashley foram guardados num baú. Não ficou nada na villa.

Olhei ambos com intensidade, mas não vacilaram, e compreendi que falavam verdade.

- E não fazem a menor ideia do destino de Mistress Ashley?

O homem meneou a cabeça.

- Só sabemos que abandonou Florença no dia a seguir ao funeral.

Abriu a pesada porta principal e transpu-la.

- Onde está sepultado? - perguntei em tom impessoal, como um estranho.

- No novo cemitério protestante de Florença, signore, como muitos ingleses que morreram aqui. O Signor Ashley não se encontra só.

Dir-se-ia que pretendia assegurar-me de que Ambrose teria companhia e, no mundo das trevas para além da sepultura, receberia consolação de compatriotas seus.

Pela primeira vez, não consegui sustentar o olhar do homem. Exibia a expressão de um cão, sincero e dedicado.

Voltei-me e, no mesmo instante, ouvi a mulher soltar uma exclamação para o marido. Antes que ele tivesse tempo de fechar a porta, precipitou-se para dentro e abriu uma pesada arca que estava encostada à parede. Regressou com algo na mão, que entregou ao homem, o qual se virou para mim. O rosto apresentava-se descontraído, como que aliviado.

- A contessa esqueceu isto. Leve-o, signore, pois é só para si.

Era o chapéu de Ambrose, de abas largas, viradas para baixo. O que ele costumava usar para proteger a cabeça do sol, nos jardins de casa. Não servia a mais ninguém, por ser muito grande. Senti os olhos ansiosos deles pousados em mim, à espera de que dissesse alguma coisa, enquanto o voltava repetidamente nas mãos.

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Capítulo quinto

Não me recordo de nada do percurso de regresso a Florença, à excepção de que o Sol se pusera e anoitecera. O crepúsculo não era tão prolongado como em Inglaterra. Nos arbustos que ladeavam a estrada, insectos, porventura grilos, tinham iniciado os habituais sons monótonos e, de vez em quando, a carrozza cruzava-se com camponeses descalços, com pesadas cestas às costas.

Quando entrámos na cidade, o ar fresco e límpido das colinas circundantes foi de novo substituído pelo calor. Não como o que fizera durante o dia, ardente, escaldante, mas abafado,

proveniente das paredes e chão, que o haviam armazenado ao longo de horas. A lassidão da tarde e a actividade do lapso de tempo entre a sesta e o pôr do Sol tinham cedido o lugar a uma certa animação. Os homens e as mulheres que percorriam as piazzas e ruas estreitas achavam-se dominados por certa vivacidade, como se acabassem de passar o dia escondidos, adormecidos, nas suas casas silenciosas e agora surgissem como gatos vadios dispostos a explorar a cidade. Os mercados ambulantes estavam superlotados de compradores ruidosos, no que emulavam os vendedores, enquanto outros acudiam à chamada dos sinos e enchiam as igrejas.

Paguei ao condutor junto da catedral, na piazza, e entrei, quase sem me dar conta do que fazia, no templo, onde o sacerdote entoava num murmúrio palavras velhas de séculos que não me era possível entender, até que, de súbito, me apercebi da imensidão da perda que acabava de sofrer. Ambrose morrera. Não o tornaria a ver. Deixara-me para sempre. A figura e sorriso familiares não voltariam a beneficiar-me com a sua presença. Pensei no quarto frio e ermo onde morrera, na Villa Sangalletti e na Virgem no seu nicho, e ocorreu-me a ideia de que quando partira não fazia parte daquele aposento, ou sequer da casa, ou mesmo do país, e o seu espírito regressara ao lugar a que pertencia, entre as suas colinas, os seus bosques, no jardim que estimava, rodeado pelo som do mar.

Saí da catedral e, na piazza, ao erguer os olhos para o imponente zimbório, lembrei-me pela primeira vez de que não comera nada em todo o dia, com a compreensão repentina que surge após um abalo e tensão profundos. Assim, transferi os pensamentos da morte para a vida e, ao descobrir um local aparentemente sofrível nas proximidades, entrei para satisfazer o apetite, após o que me dispus a procurar o Signor Rainaldi. Giuseppe, o homem que me recebera na villa, escrevera o endereço num pedaço de papel e, esforçando-me por pronunciar as palavras o mais compreensivelmente possível, encontrei a casa, do outro lado da ponte nas cercanias da estalagem, na margem esquerda do Arno, onde havia menos ruído que no coração de Florença. Viam-se poucas pessoas nas ruas. As portas achavam-se fechadas e os estores das janelas baixados. Os meus passos ecoavam com algo de sinistro no pavimento.

Cheguei por fim ao endereço que me interessava e puxei o cordão da sineta. Um criado abriu a porta passado um momento e, sem perguntar como me chamava, conduziu-me ao primeiro piso e ao longo de um corredor, ao fundo do qual bateu a uma porta e introduziu-me numa sala. Pestanejei ante a luz intensa e súbita e vi um homem numa cadeira junto de uma mesa, que consultava um maço de documentos. Levantou-se à minha entrada e fitou-me com uma expressão de curiosidade. Era um pouco mais baixo do que eu, com cerca de quarenta anos, rosto pálido, quase totalmente desprovido de cor e feições aquilinas. Havia algo de arrogante, desdenhoso, na sua atitude, como de quem manifesta pouca tolerância para com os imbecis... ou os inimigos. No entanto, creio que o que mais me atraiu a atenção foram os olhos, negros e encovados, os quais, à primeira vista, deixaram transparecer uma expressão de reconhecimento, prontamente dominada.

- Signor Rainaldi? - perguntei. - Chamo-me Philip Ashley.

- Queira sentar-se.

A voz era fria e dura e o sotaque italiano pouco vincado.

- Deve estar surpreendido de me ver - volvi, instalando-me na cadeira que indicava. - Não sabia que me encontrava em Florença?

- Não - admitiu. - Na verdade, não fazia a menor ideia.

As palavras continham uma inflexão de prudência, que, todavia, se podia dever ao seu fraco domínio da língua inglesa.

- Sabe quem sou? - prossegui.

- Creio que estou bem elucidado quanto ao grau exacto de parentesco. É, salvo erro, primo ou sobrinho do extinto Ambrose Ashley.

- Primo - precisei - e herdeiro.

Pegou numa caneta e tamborilou com ela no tampo da mesa, como se pretendesse ganhar tempo, ou procurasse uma distracção.

- Estive na Villa Sangalletti e vi o quarto onde ele morreu. O empregado, Giuseppe, foi muito atencioso. Forneceu-me todos os pormenores, mas sugeriu que o procurasse, Signor Rainaldi.

Seria impressão minha, ou os olhos negros toldaram-se de facto?

- Há quanto tempo se encontra em Florença?

- Algumas horas. Desde o meio da tarde.

- Chegou só hoje? - A mão que segurava a caneta perdeu a tensão. - Nesse caso, a sua prima Raquel não o viu.

- Não, com efeito. Giuseppe deu-me a entender que ela abandonou Florença no dia seguinte ao do funeral.

- Abandonou a Villa Sangalletti, mas não Florença.

- Quer dizer que ainda está na cidade?

- Não, agora já partiu. Confiou-me o encargo de alugar a villa. Vendê-la, se possível.

Os seus modos eram algo rígidos, como se toda a informação que me revelava tivesse de ser ponderada previamente.

- Sabe onde se encontra neste momento? - perguntei.

- Não. Partiu quase repentinamente, sem traçar planos. Prometeu escrever quando tomasse uma decisão sobre o futuro.

- Está, porventura, em casa de pessoas amigas?

- É possível, embora me custe a crer.

Acudiu-me a sensação de que, naquele próprio dia, ou na véspera, estivera com ele, o qual sabia muito mais do que confessava.

- Decerto compreenderá, Signor Rainaldi, que sofri um forte abalo ao inteirar-me da morte do meu primo através de empregados domésticos. Tenho vivido numa espécie de pesadelo. Que aconteceu? Porque não fui informado de que se encontrava enfermo?

Observou-me em silêncio por uns instantes e, por fim, disse:

- Creia que nós também sofremos um abalo profundo com a morte repentina do seu primo. Estava doente, sem dúvida, mas não sup