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BRASIL: MINAS GERAIS Ouro Branco CARREIRAS Casa Carreiras Foto: Tiago Sala 2014 A Casa Carreiras está localizada à beira do caminho que ligava as Minas Gerais ao Rio de Janeiro; possivelmente funcionou como armazém e pouso para viajantes, que também necessitavam de estábulos, troca de cavalos e outros serviços ligados ao percurso. De acordo com a tradição oral, sendo a fazenda um local de criação, venda e troca de cavalos, o nome Carreiras teria se originado das carreiras a que os tropeiros obrigavam os animais para testar a sua força e resistência. É também conhecida como Fazenda Tiradentes, ou Casa Velha de Tiradentes, em função da tradição que José Joaquim da Silva Xavier teria pernoitado na casa uma noite. Exemplar de arquitetura rural, construída em pedra e madeira, com um grande telhado de quatro águas e vedações internas de pau a pique, porão e uma grande varanda ao longo da fachada e da lateral direita, é grande a semelhança de seu perfil com as casas bandeiristas, sendo também notável a curvatura no encontro das águas e o galbo do telhado.

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BRASIL: MINAS GERAIS Ouro Branco CARREIRAS

Casa CarreirasFoto: Tiago Sala 2014

A Casa Carreiras está localizada à beira do caminho que ligava as Minas Gerais ao Rio de Janeiro; possivelmente funcionou como armazém e pouso para viajantes, que também necessitavam de estábulos, troca de cavalos e outros serviços ligados ao percurso.

De acordo com a tradição oral, sendo a fazenda um local de criação, venda e troca de cavalos, o nome Carreiras teria se originado das carreiras a que os tropeiros obrigavam os animais para testar a sua força e resistência.

É também conhecida como Fazenda Tiradentes, ou Casa Velha de Tiradentes, em função da tradição que José Joaquim da Silva Xavier teria pernoitado na casa uma noite.

Exemplar de arquitetura rural, construída em pedra e madeira, com um grande telhado de quatro águas e vedações internas de pau a pique, porão e uma grande varanda ao longo da fachada e da lateral direita, é grande a semelhança de seu perfil com as casas bandeiristas, sendo também notável a curvatura no encontro das águas e o galbo do telhado.

The Carreiras House is located alongside the trail that used to link the state of Minas Gerais to that of Rio de Janeiro; it may have once been a storehouse and resting place for travellers, who also required stables, a change of horses and other services for their journey.

According to oral tradition, as the estate was a place where horses were bred, sold and exchanged, the name Carreiras may have originated from the races that the muleteers made the animals take part in to test their strength and resilience.

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It is also known as the Fazenda Tiradentes estate, or the Old House of Tiradentes, because of the legend that José Joaquim da Silva Xavier (Tiradentes) spent a night at the house.

An example of rural architecture, is was built from stone and wood, and has a large hipped roof and internal seals made of wattle and mud, a cellar and a large balcony running along the façade and the right-hand side. Its profile is very similar to that of the bandeirante houses, and it also has a striking curved aspect at the bottom of each side of the roof.

Casa CarreirasFoto: Tiago Sala 2014

Uma casa que pode ser significada tanto como um monumento como um documento (e este é o caso da Casa Carreiras) necessita ser também entendida dentro de um conjunto de circunstâncias históricas.

Parte de uma estrutura social, a arquitetura, as técnicas e os usos a elas associados, não se limitam a estilos e a regionalismos.

No período colonial, as diversas regiões do Rio da Prata se integravam através de uma dinâmica econômica que envolvia tanto o reconhecimento e a defesa do território, a utilização da mão de obra indígena e a busca de riquezas minerais.

A Independência Portuguesa, em 1640, não representou uma ruptura, mas um redirecionamento de esforços das fronteiras fluviais para um sertão interior onde as penetrações já se realizavam desde os inícios do Século XVII.

Portanto, a descoberta do ouro das Gerais é apenas a consequência, a realização de um projeto em execução havia já longo tempo. Assim, é de se entender que um partido que já vinha sendo utilizado de longa data durante o processo de penetração no

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território, chegasse junto com os descobridores das minas e se mantivesse durante todo o processo de exploração do ouro, paralelamente ao novo partido chegado junto com os que vieram apenas após as descobertas, atraídos pela febre das riquezas, sem terem participado do longo processo de busca.

Basicamente, e generalizando, estamos falando de um partido horizontal com apenas um andar (ao qual às vezes se acrescia um porão que nivelava o terreno) e de um partido vertical, com dois ou mais andares; o primeiro descendendo de uma arquitetura rural interpretada pela engenharia militar, o segundo de uma arquitetura urbana; o primeiro tendo na terra o seu principal elemento construtivo, ao passo que para o segundo é necessária a pedra.

Assim, não é de espantar que, nos esquemas do primeiro partido, mesmo com a mudança dos programas, permaneçam formas gerais e desenhos de detalhes indicativos das origens e das linhas de continuidade pelas quais os modelos se desenvolveram no espaço e no tempo.

Casa Carreiras: ponte de vista militar esquerdo: atentar para a curva do telhado.Foto: Isabel Chumbinho sem data

Casa Carreiras: sustentação de coluna Estância de Candelária: sustentação de coluna

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Foto: Tiago Sala, 2014 Foto: Dalton Sala, 2014

É justamente a presença de um grande número de analogias visuais o que induz a abandonar a facilidade de entender tais analogias como meras coincidências e passar a interpretá-las como indícios de uma estrutura que se apresenta, em termos plásticos e formais, como expressão da colonização, tanto em seus aspectos gerais como em suas contradições, tanto no que tem de particular como no que tem de universal.

Isso leva a um processo de compreensão do social a partir do documento cultural que configura e define uma história da arte induzida a partir do objeto artístico, em contraposição a uma história da arte deduzida a partir de categorias formais ou estilísticas dadas a priori.

Casa da Conceição: cachorros Casa do Padre Inácio: coluna e cachorrosFoto: Dalton Sala 2015 Foto: Dalton Sala 2006

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Casa Carreiras: cachorros Casa da Parnaíba: cachorrosFoto: Tiago Sala 2014 Foto: Tiago Sala 2007

Dito de outra forma, tais coincidências não são obra do acaso; não são, portanto, meras coincidências, mas coincidências significativas de um mesmo processo de colonização.

É isso que possibilita colocarmos em dúvida afirmações como a que segue:

“Ocorrência circunstancial foi a coluna de madeira sustentando o frechal do telhado ao longo do corredor da casa paulista, porque não se faziam colunas de taipa, assim como chaminés. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer época, essa sustentação de madeira assume aspectos muito semelhantes. Não se trata de cópia ou influência, e sim de uma forma inevitável, decorrente da natureza do material. São peças de apoio iguais, situadas em contextos completamente diferentes. Diferentes partidos atendendo a diversos programas de distintas sociedades.” 1

1. LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. CASA PAULISTA: HISTÓRIA DAS MORADIAS ANTERIORES AO ECLETISMO TRAZIDO PELO CAFÉ. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 70.

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Tudo parece lógico nesta precedente afirmação; mas o que devemos perceber é que não estamos em face de “diferentes partidos atendendo a diversos programas de distintas sociedades”, pois é justamente aí que se insere a pergunta: a sociedade colonial ibero-americana não pode, apesar de suas muitas contradições, ser entendida como um todo?

Casa do Padre Inácio: cachorrosFoto: Washington Luís circa 1916

Mais do que os frechais e as vigas das construções de taipa e de pau a pique, detalhes decorativos nos cachorros, as formas dos telhados com suas águas galbadas, as técnicas construtivas e o aspecto geral das construções nos faz afirmar a continuidade de um domínio colonial que se esparramou para bem além de São Paulo e que não tem em São Paulo seu único epicentro, bem como também não tem nas expedições que depois foram denominadas e generalizadas sob o nome de /bandeiras paulistas/ seu único processo de difusão.

Pelo contrário, parece que, pelas evidências encontradas em toda a América de colonização católica 2, estamos em face de um partido arquitetônico capaz de se adaptar aos espaços e de evoluir no tempo, atendendo a diversos programas e caracterizando uma estrutura colonial que fundava no reconhecimento do território, na busca das riquezas minerais e na apropriação da mão de obra

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indígena para atividades diversificadas ligadas ao consumo doméstico.

2.Considerando-se os exemplos encontrados na Argentina, no Paraguai, no Equador, na Venezuela e na Colômbia, podemos falar com segurança da América do Sul. Mas a afirmação de Luís Saia de que ‘no Texas foram encontradas residências obedecendo ao mesmo esquema’ # abre toda uma possibilidade de expansão de um campo de estudos que parecia inicialmente restrito ao Planalto de Piratininga e suas imediações.

3.SAIA, Luís. NOTAS SOBRE A EVOLUÇÃO DA MORADA PAULISTA. São Paulo, Editora Acrópole, 1957, p. 5.

Casa da Parnaíba: cachorrosFoto: Tiago Sala 2007

O que é bastante diferente da arquitetura ligada a programas de estabelecimento de uma empresa agrária monocultora delineada na metrópole e destinada ao comércio com o exterior como foi a produção de açúcar, que se desenvolveu principalmente no nordeste do Brasil.

Certamente as semelhanças de detalhes se devem também à lógica das técnicas e dos materiais; mas é importante recordar que detalhes de ornamentação nem sempre seguem a lógica da natureza do material; pelo contrário, muitas vezes parecem justamente buscar contrariar esta lógica.

Finalmente, não há como esquecer que a economia colonial ibérica pode ser descrita como uma estrutura de produção coesa, apesar de suas contradições; a condição do colono, a escravidão negra, a servidão indígena, o papel das ordens religiosas, a avidez das autoridades metropolitanas, o papel da burocracia, o contrabando...

Portanto, não é de espantar que a arquitetura seja justamente um dos meios pelos quais possamos acessar os diversos aspectos da sociedade colonial ibero-americana.

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Casa Carreiras: detalhe Estância de CandeláriaFoto: Tiago Sala 2014 Foto: Dalton Sala 2014

A Casa Carreiras foi tombada pelo IEPHA – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais em 19 de Setembro de 2000. 4

4.Tombamento aprovado pelo Conselho Curador do IEPHA – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais em 7 de Dezembro de 1999 e homologado pela Secretaria da Cultura do Estado de Minas Gerais e publicado no Diário Oficial Minas Gerais de 19 de Setembro de 2000, p. 2.