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Brincando com o sinhozinho Num momento, as crianças da casa-grande e da senzala eram parceiros em corridas pelos terreiros e caçadas em que não se distinguiam cativos e senhores. Mas logo, o branco imitava o mais velho e empunhava um chicote. Por Isabela Pimentel Transitando entre o universo do trabalho e os sonhos comuns a toda infância, as crianças escravas, personagens quase invisíveis nas cenas de casa-grande e senzala da historiografia tradicional, começam a protagonizar algumas pesquisas. Uma delas, conduzida pela Universidade Federal de São Carlos (UFScar), mostra também como as crianças negras foram representadas no período posterior à abolição da escravidão. As imagens, produzidas entre 1880 e 1940, refletem a vida escolar e cotidiana dessa infância quase esquecida e foram localizadas em acervos de locais como São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro e até do exterior – França e Portugal. A análise das imagens convida a explorar o mundo da infância escrava, especialmente em seu aspecto lúdico. Próximas ao universo do trabalho adulto, retratadas perambulando pela cidade, quando maiores, ou nas costas de suas mães, quando pequenas, as crianças escravas desempenhavam, nas brincadeiras com os meninos e meninas da casa-grande, um papel intrigante, passando, de participantes ativos das brincadeiras a objetos delas, o que levou diversos historiadores a analisar como tais práticas reforçavam, desde cedo, as relações sociais, aumentando a distância entre os dois polos – a casa-grande e a senzala.

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Brincando com o sinhozinho

Num momento, as crianças da casa-grande e da senzala eram parceiros em corridas pelos terreiros e caçadas em que não se distinguiam cativos e senhores. Mas logo, o branco imitava o mais velho e empunhava um chicote.

Por Isabela Pimentel

Transitando entre o universo do trabalho e os sonhos comuns a toda infância, as crianças escravas, personagens quase invisíveis nas cenas de casa-grande e senzala da historiografia tradicional, começam a protagonizar algumas pesquisas. Uma delas, conduzida pela Universidade Federal de São Carlos (UFScar), mostra também como as crianças negras foram representadas no período posterior à abolição da escravidão. As imagens, produzidas entre 1880 e 1940, refletem a vida escolar e cotidiana dessa infância quase esquecida e foram localizadas em acervos de locais como São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro e até do exterior – França e Portugal.

A análise das imagens convida a explorar o mundo da infância escrava, especialmente em seu aspecto lúdico. Próximas ao universo do trabalho adulto, retratadas perambulando pela cidade, quando maiores, ou nas costas de suas mães, quando pequenas, as crianças escravas desempenhavam, nas brincadeiras com os meninos e meninas da casa-grande, um papel intrigante, passando, de participantes ativos das brincadeiras a objetos delas, o que levou diversos historiadores a analisar como tais práticas reforçavam, desde cedo, as relações sociais, aumentando a distância entre os dois polos – a casa-grande e a senzala.

Com as novas propostas temáticas e abordagens trazidas pela Nova História, nos anos 1970, personagens anônimos como essas crianças, ganham voz, não obstante eles já tenham sido “falados” por, para ficar em exemplos clássicos, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes. No clássico Casa-grande e senzala (1933), são retratadas diversas características da infância da época, como a alta taxa de mortalidade e a participação precoce e ativa no universo adulto, por meio do trabalho. Divididos pelo autor entre crianças de elite, de famílias escravas e de índios, os pequenos muitas vezes roubam a cena do livro, transitando entre uma fugaz e falsa sensação de liberdade que o convívio com as crianças brancas na rua e nas cirandas permitia e o sofrimento e dor na senzala.

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Infância x infâncias

No Brasil, desde a chegada das primeiras famílias portuguesas, as crianças da elite conviviam, desde a tenra idade, com personagens do universo da escravidão: amas de leite, criadas, mucamas, babás e aias. O conjunto de regras da sociedade aristocrática impunha certo afastamento da figura da mãe ao filho e até mesmo o ato de amamentar, um dos momentos mais importantes no desenvolvimento infantil, era visto como tarefa exaustiva que poderia ser desempenhada pelas escravas. Anúncios nos jornais de época constatam que era grande a busca por amas de leite. O professor da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Renato Pinto Venâncio destaca que, por causa da violência, as duas infâncias – a branca e a escrava – eram muito curtas. “O patriarcalismo estimulava que os meninos brancos se tornassem homens o mais cedo possível”, afirma. A essas “mães africanas” é atribuída a adaptação de canções de ninar tradicionais portuguesas à realidade colonial, com personagens como o saci-pererê, a mula sem cabeça, a cuca, o boitatá e o lobisomen. Mesmo no ambiente rígido e hierárquico, elas encontraram formas de “adocicar” a dura realidade, transpondo, para a linguagem infantil um tratamento mais terno, com a duplicação de sílabas tônicas, em palavras como “pipi”, “cacá”, “mimi”, “neném” e “dodói”.

O convívio das crianças brancas com os pequenos escravos era interrompido quando os primeiros cresciam e iam estudar na Europa, de onde deveriam voltar graduados em medicina ou direito. Do lado de fora da casa, quando atingiam 7 anos de idade, os filhos dos escravos já podiam ser separados dos pais e vendidos, indo trabalhar em outros locais, dedicando seu tempo ao aprendizado de um ofício. Venâncio ressalta que, em diversos documentos, há menções de escravos de apenas 4 ou 5 anos com ocupações específicas na casa-grande: pajens domésticos, serventes de alimentos à mesa, entre outros. “Nas áreas rurais em que o trabalho não demandava força física, como era boa parte do trabalho na pecuária, o menino escravo, por volta de 10 anos, já trabalhava como um adulto. Era campeiro e, a cavalo, tangia o gado “, acrescenta.

Mas um fator impedia que, algumas vezes, isso acontecesse: os senhores, desejando que seus filhos tivessem companhia para brincar, compravam crianças escravas para distrair seus pequenos e acompanhá-los nas brincadeiras. Quando os filhos do patriarca completavam 14 anos, qualquer relação igualitária era evitada.

O sinhozinho e sua montaria

Nos livros de Machado de Assis, a infância escrava foi retratada em registro irônico. O autor abordou, com riqueza de detalhes, o ambiente da família aristocrática. Em Memórias

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Póstumas de Brás Cubas, ele apresenta ao leitor o cotidiano do escravo doméstico, que já nas brincadeiras com as crianças da elite, era subjugado e punido, tal qual nas relações adultas. Na obra, estão um menino branco e seu respectivo moleque, Prudêncio, que era feito de “cavalo” pelo sinhozinho todos os dias. O menino era obrigado a receber um cordel no queixo, enquanto o filho do senhor, com varinha na mão, impunha ordens. Brincadeiras como essas reforçavam, no universo infantil, as relações entre senhor e escravo. Renato Pinto Venâncio acredita que por meio de “brincadeiras” era produzida e reproduzida a cultura escravista: o menino branco aprendia a “cultura senhorial” e a criança afrodescendente “aprendia” a ser escrava.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da Unifesp, Marcos Cezar de Freitas, afirma que apesar do cotidiano comum, que possibilitava à criança escrava ter o usufruto do mesmo espaço físico da criança não escrava, as relações eram assimétricas, sob estímulo dos brancos adultos, e isto podia ser flagrado nas brincadeiras.

De acordo com a historiadora Mary Del Priore, em História das Crianças no Brasil (2001), “(...) houve crianças que, sob as ordens de meninos livres, puseram-se de quatro e se fizeram de bestas. Debret não pintou esse quadro, mas não é difícil imaginar a criança negra arqueada sob o peso de um pequeno escravocrata”.

Nesse período, constata-se, pela análise da literatura, que até nos mais inocentes jogos, predominava a violência, como conta Freyre. “Mesmo no jogo de pião e no brinquedo de empinar papagaio (pipa) achou jeito de exprimir-se o sadismo do menino das casas-grandes e dos sobrados do tempo da escravidão, através das práticas, de uma aguda crueldade infantil de ‘lascar-se o pião’ ou de ‘comer-se (ou cortar) o papagaio’ do outro“.

Companheiro de brincadeira quando menor, logo o moleque escravo deixava essa condição, passando a “brinquedo” do menino do engenho. Embora em algumas ocasiões, como nas brincadeiras de roda, os laços de amizade entre os meninos livres e escravos se reforçassem, as crianças brancas possuíam, brincando de ser adultas, não raramente, seu próprio chicote. Sob ele, meninos escravos eram transformados em cavalos de montaria e burros de liteira, os meios de transporte da época.

De comadrinhas a sinhazinhas

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Apesar das brincadeiras de compadrio e de batismo, comum entre meninas brancas e negras, no universo das pequenas meninas escravas predominava a diferenciação nos brinquedos: enquanto elas mesmas faziam suas bonecas, com retalhos e roupas velhas, sementes e caroços de fruta, as da casa-grande ganhavam bonecas de louça, de olhos azuis e pele clara.

Se às meninas da casa-grande era aconselhado o recato e os brinquedos sob os olhos dos pais, as meninas escravas se espalhavam pelos quintais. Neste faz de conta, as pequenas negras eram encaradas como servas da sinhazinhas. As brincadeiras giravam em torno das cenas recorrentes na vida do engenho: brancas dando ordens às criadas para que alimentassem suas bonecas, as “filhas”.

Além das distinções entre os tipos de brinquedo, as meninas tinham roupas diferentes, condizentes com sua situação de poder: vestiam-se as filhas do senhor de engenho como pequenas senhoras, enquanto as escravinhas usavam trajes de serviçais.

Brincadeiras comuns na época da escravidão ainda estão presentes na infância atual. Câmara Cascudo, em Superstições e Costumes, destaca a presença de bolsas, bolas, pequenas armas, danças de roda, corridas, saltos e pulos. Entre os brinquedos estudados por Cascudo estão a espingarda de talo de bananeira, feita com incisões no talo da árvore e utilizada em brincadeiras de guerra. O chicotinho queimado, brincadeira até hoje praticada pelas crianças, tem origem no “jogo de peia queimada”, no qual se simulava o bater do chicote nas costas do negro punido.

Apesar de a maioria das brincadeiras reforçar as relações sociais de dominação, nos jogos livres, fora do controle dos adultos, feitos nas ruas e quintais, ganhava quem era mais rápido e esperto. Com habilidades motoras mais desenvolvidas, os meninos do engenho destacavam-se, sendo mais talentosos nos jogos de pião de madeira e corrida. Se no interior da casa-grande os moleques eram servos, no jogo simbólico do cotidiano, nas situações de contato com a natureza, longe do controle dos adultos, nas caças a passarinhos a bodoques e escaladas em árvores, eles se destacavam. Um breve suspiro de liberdade e uma fugaz sensação de poder.

Isabela Pimentel é jornalista e historiadora