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Bem de família Sílvio de Salvo Venosa Direito Civil - Parte Geral ۩. Origem histórica O bem de família constitui-se em uma porção de bens que a lei resguarda com os característicos de inalienabilidade e impenhorabilidade, em benefício da constituição e permanência de uma moradia para o corpo familiar. A matéria tem relação direta, mas não exclusiva, com o direito de família, razão pela qual o Código de 2002 ali disciplina esse instituto (arts. 1.711 ss). Como o propósito deste livro ainda é um estudo de transição, que examina ambos os códigos civis, mantivemos este capítulo neste tomo que trata da teoria geral do Direito Civil. Nada impediria que a matéria continuasse a ser tratada pela parte geral, assim como pelos direitos reais e principalmente pela lei registraria, onde possui maiores afinidades. Originou-se, nos EUA, do homestead. O governo da então República do Texas, com o objetivo de fixar famílias em suas vastas regiões, promulgou o Homestead Exemption Act, de 1839, garantindo a cada cidadão

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Bem de família

Sílvio de Salvo Venosa

Direito Civil - Parte Geral 

۩. Origem histórica

 

O bem de família constitui-se em uma porção de bens que a

lei resguarda com os característicos de inalienabilidade e

impenhorabilidade, em benefício da constituição e permanência de uma

moradia para o corpo familiar. A matéria tem relação direta, mas não

exclusiva, com o direito de família, razão pela qual o Código de 2002 ali

disciplina esse instituto (arts. 1.711 ss). Como o propósito deste livro

ainda é um estudo de transição, que examina ambos os códigos civis,

mantivemos este capítulo neste tomo que trata da teoria geral do Direito

Civil. Nada impediria que a matéria continuasse a ser tratada pela parte

geral, assim como pelos direitos reais e principalmente pela lei registraria,

onde possui maiores afinidades.

Originou-se, nos EUA, do homestead. O governo da então

República do Texas, com o objetivo de fixar famílias em suas vastas

regiões, promulgou o Homestead Exemption Act, de 1839, garantindo a

cada cidadão determinada área de terras, isentas de penhora. O êxito foi

grande, tanto que o instituto foi adotado por outros Estados da nação

norte-americana, tendo ultrapassado suas fronteiras; hoje é concebido na

grande maioria das legislações, com modificações que procuram adaptá-

lo às necessidades de cada país.

No entanto, apesar de sua difusão, o sucesso da instituição

não alcançou a dimensão esperada, mormente em nossa pátria, onde

sua utilização voluntária é diminuta.

No Brasil, antes da vigência do Código Civil, houve várias

tentativas de introdução do instituto, o qual foi adotado e incluído no atual

Estatuto, em razão de uma emenda apresentada pela Comissão Especial

do Senado.

O homestead nos Estados Unidos é a isenção de penhora

sobre uma pequena propriedade. Em nosso país, a lei oferece à família o

amparo de moradia.

 

۩.  Legislação - Conceituação - Natureza Jurídica

 

O bem de família era exclusivamente regulado entre nós

pelos arts. 70 a 73 do Código de 1916. Tais dispositivos foram

complementados pelos arts. 19 a 23 do Decreto-lei no 3.200/41. A parte

processual vinha regulada no CPC, de 1939, arts. 647 a 651, que foram

mantidos em vigor até que a legislação especial tratasse da matéria, o

que é feito atualmente pelos arts. 260 a 265 da Lei no 6.015/73, Lei dos

Registros Públicos.

O instituto constava da Parte Geral do Código antigo, mas

deveria figurar, como alertamos, na parte do Direito de Família, como faz

o atual Código.

Pelo nosso ordenamento civil de 1916, o homestead,

conhecido como bem de família, o que não é uma tradução, vinha

estatuído no art. 70:"É permitido aos chefes de família destinar um prédio

para domicílio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por

dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio.

Parágrafo único. Essa isenção durará enquanto viverem os

cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade."

O atual Código, por sua vez, conceitua: "Podem os cônjuges,

ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar

parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não

ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da

instituição mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel

residencial estabelecida em lei especial" (art. 1.711).

O objeto do bem de família é um imóvel, "um prédio", rural ou

urbano, onde a família fixa sua residência, ficando a salvo de possíveis e

eventuais credores. O presente estatuto civil acentua que o bem de

família consistirá em "prédio residencial urbano ou rural, com suas

pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio

familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada

na conservação do imóvel e no sustento da família" (art. 1.712). No atual

Código há uma abrangência maior na conceituação do bem de família,

como veremos.

No tocante à natureza jurídica, entendem alguns que há

transmissão da propriedade na instituição do bem, em que o adquirente é

a família, como personalidade coletiva, sendo transmitente o instituidor,

como o chefe da família. Como a família não tem personalidade jurídica,

não pode ser aceita essa posição.

Serpa Lopes entende que o bem de família é um condomínio

sui generis, onde nenhum dos co-titulares possui quota individual.

Para Caio Mário da Silva Pereira, o instituto é uma forma de

"afetação de bens a um destino especial, que é ser a residência da

família, e, enquanto for, é impenhorável por dívidas posteriores à sua

constituição, salvo as provenientes de impostos devidos pelo próprio

prédio".

Trata-se da destinação ou afetação de um patrimônio em que

opera a vontade do instituidor, amparada pela lei. É uma forma de tornar

o bem como coisa fora do comércio, em que são combinadas a vontade

da lei e a vontade humana. Nesse diapasão, o bem de família fica isento

de execução por dívidas posteriores a sua instituição, salvo as que

provierem de tributos relativos ao prédio ou despesas de condomínio (art.

1.715). Como se vê, o bem de família não pode ser instituído em prejuízo

aos credores, ou melhor, em fraude contra credores. O benefício

perdurará enquanto viver um dos cônjuges, ou na falta destes, até que os

filhos completem a maioridade. Veja o que comentamos a seguir.

 

۩.  A Lei no 8.009, de 29-3-90

 

Proveniente da Medida Provisória no 143, de 1990, nos

estertores de mandato presidencial, foi promulgada a Lei no 8.009, de

29-3-90. Esse diploma legislativo surpreende não unicamente por seu

alcance jurídico, mas pela importante particularidade de aplicação

imediata aos processos em curso.

Trata-se de norma que amplia o bem de família tradicional

(seu título refere-se ao instituto), de evidente cunho de ordem pública,

colocando a salvo de credores basicamente o imóvel residencial do casal

ou da entidade familiar. Foi ressalvada expressamente sua vigência pelo

atual Código, de acordo com o art. 1.711. Dispõe o art. 1o dessa lei: "o

imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é

impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil,

comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos

cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele

residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel

sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de

qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso

profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados."

Por outro lado, diz o art. 5o dessa lei: "Para os efeitos de

impenhorabilidade, de que trata esta Lei, considera-se residência um

único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia

permanente.

Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar,

ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a

impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver

sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art.

70 do Código Civil."

Em atenção aos princípios constitucionais atuais não se

distingue a família legítima ou ilegítima. Basta que se configure a

entidade familiar.

A inspiração desse diploma é, sem dúvida, o bem de família

tradicional, de nosso Código Civil. Entretanto, perante essa lei de ordem

pública, deixa de ter maior utilidade prática o bem de família voluntário,

por nós já referido como de pouco alcance prático. Estando agora, por

força de lei, isento de penhora o imóvel residencial que serve de moradia,

não há necessidade de o titular do imóvel se valer do custoso

procedimento para estabelecer o bem de família. Os efeitos a partir da lei

são automáticos. Como percebemos, a Lei no 8.009/90 amplia o alcance

da impenhorabilidade desses imóveis, não impondo as restrições do art.

70 do Código Civil de 1916.

A impenhorabilidade não implica inalienabilidade. O titular do imóvel não

perde a disponibilidade do bem. Isso também ocorre no bem de família

tradicional.

A divagação agora gira em torno da inspiração sociológica e

histórica dessa lei. Pacífico é que se trata de diploma de ordem pública.

Embora regulando relações privadas, tem reflexos fundamentais no

processo executório, de direito público, portanto. Não se trata, porém, de

simples norma processual, como não o é o bem de família no Código

Civil.

Em um primeiro enfoque, parece que a lei incentiva o calote e

a fraude. De fato, permite-se que com facilidade suas disposições sejam

utilizadas fraudulentamente. A nosso ver, porém, existe outro efeito que

não pode ser desconsiderado. Haverá, sem dúvida, maiores dificuldades

de obtenção de crédito por todos aqueles que nada mais possuem, que

não um imóvel residencial. Nesse aspecto, não podemos deixar de

concluir que se trata de lei de visão estreita. Muitas relações negociais

foram assim prejudicadas.

Por outro lado, positivamente, nota-se que a lei procurou

proteger a família do devedor,

"garantindo as condições mínimas de sobrevivência digna, a salvo das

execuções por dívidas, avolumadas, em grande parte, não pela

voracidade consumista do devedor, mas pelos tormentos e desacertos de

uma economia cronicamente conturbada como é a do nosso país"

(Czajkowski, 1992:16).

Há igualmente certa dúvida na sinceridade de propósitos

sociais da lei, que não distingue a moradia humilde e tosca do palacete

luxuoso e ostentativo.

De qualquer forma, a jurisprudência já se encarregou de

afastar sua inconstitucionalidade, de fato inexistente, defendida a

princípio por alguns juristas.

Também, terá apenas valor histórico a polêmica causada

pela suspensão das execuções em curso e o canhestro "cancelamento"

destas, por força da Medida Provisória no 143 e do art. 6o da lei. Os

termos da lei são equivocados e apenas acrescentamos que, de plano,

nos mostramos, no passado, contrários à aplicação imediata da

impenhorabilidade aos processos em curso.

 

۩.  Objeto e Valor do Bem de Família

 

De acordo com o art. 70 do Código de 1916, o objeto do

instituto é prédio destinado ao domicílio da família, não se distinguindo

prédio urbano ou rural.

O art. 1o da Lei no 8.009/90 refere-se ao imóvel residencial,

evitando falar em domicílio, conceitos jurídicos nem sempre coincidentes

(ver Capítulo 11). Também na dicção da lei nova, o conceito é aplicado

tanto ao imóvel urbano como ao rural (art. 1.712). Há amplitude maior no

estatuto de 2002, pois permite que a instituição, tendo como objeto bem

urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, abranja também

valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e

no sustento da família. O acréscimo é justo e visa fortalecer o instituto.

Acrescenta, porém, o art. 1.713, que o valor desses bens

mobiliários não poderá exceder o valor do prédio, à época da instituição.

Nem sempre será aceitável uma avaliação tida como justa nesse sentido,

o que pode dar margem a fraudes. Ainda, nesse mesmo artigo encontra-

se dispositivo no § 3o que permite ao instituidor determinar que a

administração dos valores mobiliários seja confiada a instituição

financeira, bem como a forma de atribuição de benefícios. Haverá,

certamente, necessidade de intervenção judicial quando surgir essa

complexidade.

O Decreto-lei no 3.200/41 ampliara o âmbito do bem de

família, permitindo não só que o imóvel rural pudesse ser objeto do

instituto, como também autorizou a inclusão na destinação da mobília,

utensílios de uso doméstico, gado e instrumentos de trabalho, descritos

expressamente no ato constitutivo.

Atualmente, carecendo de interesse prático a instituição

voluntária do bem de família, suas disposições legais devem servir de

adminículo para a interpretação da Lei no 8.009/90, omissa em muitos

aspectos.

A nova lei, no tocante ao imóvel rural, restringe a

impenhorabilidade à sede de moradia, com os respectivos bens móveis,

e, nos casos do art. 5o, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada

como pequena propriedade rural (art. 4o, § 2o). O dispositivo

constitucional referido diz respeito à pequena propriedade rural,

mandando que a lei ordinária defina.

Por outro lado, como visto na redação do parágrafo único do

art. 1o da referida lei, também são excluídos de penhorabilidade as

plantações, benfeitorias e equipamentos de uso profissional e móveis

que guarnecem a casa, desde que quitados. O art. 2o exclui veículos de

transporte, obras de arte e adornos suntuosos.

Nos princípios do Código Civil, o bem urbano ou rural não

tem restrições quanto à extensão, desde que sirva de residência para a

família.

O Código de 1916 não fixara teto para o valor do imóvel. Leis

posteriores encarregaram-se de fazê-lo, desestimulando ainda mais sua

instituição. O bem de família agora por força de lei não possui limite de

valor.

O art. 19 do Decreto-lei 3.200/41, com a redação da Lei no

5.653/71, elevou o teto para 500 vezes o maior salário mínimo do país. A

fixação de valor máximo reduz bastante o alcance da proteção procurada

pela lei. A ausência de qualquer critério de valor, por outro lado, também

é inconveniente, porque abre válvulas à fraude. A Lei no 6.742, de 5-12-

79, eliminou qualquer limite de valor para o bem de família, desde que o

imóvel seja residência dos interessados por mais de dois anos.

Afigura-se inconveniente a prefixação de valor. Melhor que

seja fixada uma porcentagem sobre o patrimônio líquido da família, como

pretendeu o atual Código, o qual, no entanto, limitou a um terço do

patrimônio líquido existente ao tempo da instituição (art. 1.711).

A nova roupagem do bem de família entre nós irá demonstrar

sua conveniência ou não. É inconveniente a oneração de todo o

patrimônio do interessado. É desvantajoso para a sociedade e para o

próprio instituidor a oneração de seu único imóvel, porque isso dificultará

sua vida negocial: não poderá contrair empréstimos de vulto, pois as

instituições financeiras pedirão outras garantias. Cremos que tal crítica

está doravante mais ainda apropriada.

A seguir, analisaremos os aspectos do bem de família no

Código Civil de 1916, em cotejo com o atual bem de família legal, ainda

lembrando que o desuso do primeiro será mais acentuado. Na parte final

deste capítulo, examinaremos o bem de família à luz do atual Código.

 

۩.  Legitimação para a Instituição e Destinação do

Bem 

O art. 70 do Código de 1916 permitia que os chefes de

família instituíssem o bem.

De acordo com o art. 233, chefe de família era o marido. A

Constituição Federal de 1988 já não permite esse entendimento. Na falta

deste, embora a lei não o diga, a prerrogativa passa para a mulher. É

esse o espírito da lei, pelo que se inferia dos arts. 251, 380 e 466.

Também era preciso admitir titularidade à mulher no caso de ausência do

marido. A mulher, ao assumir a direção do lar, deveria ter o poder de

instituir o bem, pois, de acordo com o art. 251, IV, podia até alienar os

imóveis do casal, com autorização judicial. No entanto, perante a

igualdade de direitos dos cônjuges atribuída pela Constituição havia,

destarte, que se atribuir legitimidade a ambos os cônjuges para a

instituição. Esse é o sentido do novo Código também.

Na origem do Código antigo, as pessoas solteiras, por

conseguinte, ainda que vivessem em concubinato duradouro, não podiam

instituir bem de família, assim como não tinham esse direito os tutores e

curadores em benefício dos pupilos. Modernamente, há que se admitir

que a instituição do bem de família dirige-se à entidade familiar, ainda

que monoparental, como garante a Constituição.

Não pode também instituí-lo o avô, pois com o casamento é

criada uma nova família. É essa a intenção da lei.

Desse modo, um terceiro não pode instituir o bem de família.

O atual Código Civil autoriza terceiro a fazer tal instituição, por

testamento ou doação, com aceitação expressa dos cônjuges

beneficiados (art. 1.711, parágrafo único). Nesse caso, como terceiro, o

avô pode fazer a instituição, desde que o faça com os próprios bens.

Note que a instituição só pode ocorrer se não prejudicar

credores existentes à época do ato. Daí por que o bem de família só

pode ser criado por quem seja solvente, isto é, quando a instituição não

fraudar o direito dos credores, quando sobrar bens suficientes para pagar

as dívidas existentes na época. Por dívidas posteriores, pois, não

responde o bem separado.

Pergunta-se: a família de fato pode ser beneficiada com a

instituição? Hoje, a orientação constitucional não admite dúvida. Mesmo

no sistema anterior, não tendo a lei feito distinção, havendo filhos na

família ilegítima ou não unida pelo casamento, era concebível a

instituição. Aliás, a nova terminologia a ser adotada é entidade familiar e

união estável, repelindo-se a referência à ilegitimidade da família.

A atual Constituição reafirmou esse entendimento,

independentemente de prole. A Lei no 8.009 não faz distinção entre

família legítima e ilegítima, e fala em "entidade familiar".

 

۩.  Requisitos

 

O primeiro requisito é a instituição ser feita pelo chefe da

família, com a observação feita supra. Modernamente, há uma extensão

de legitimidade aos cônjuges ou companheiros.

Em segundo lugar, o prédio deve ser de propriedade dos

cônjuges ou companheiros conviventes, exclusivamente. Se o bem

pertencer somente a um deles, no regime de separação ou de comunhão

de aqüestos, nada impede que ele ou ela ofereça o bem para que seja

atingida a finalidade da lei.

Em terceiro lugar, não pode haver dívidas suficientes para

prejudicar os credores. São dívidas anteriores ao ato instituidor que

prejudicam o instituto (art. 1.715). As dívidas posteriores não atingem a

garantia, aliás é essa a finalidade da instituição. O sistema do Código de

1916 permitia a instituição somente por escritura pública (art. 73),

enquanto o novo Código autoriza também por testamento (art. 1.711).

Questão relevante é saber se um prédio onerado com

hipoteca pode ser objeto do instituto. Maior importância tem ainda diante

da difusão do antigo Sistema Financeiro de Habitação. Em que pesem

opiniões contrárias, entendemos que nada impede que, nesse caso, seja

instituído o bem, pois a hipoteca anterior ficará por ele resguardada e

garantida. A garantia do bem de família só fica a salvo das dívidas

posteriores e pode a execução hipotecária recair sobre ele por

interpretação do parágrafo único do art. 71. Contudo, tratando-se de

hipoteca, é dispensada qualquer prova de solvência ou insolvência do

instituidor, porque o próprio prédio está garantindo a dívida.

Em quarto lugar, o prédio deve ser destinado efetivamente ao

domicílio da família. O instituto não foi criado nem para dar garantia real à

família, nem para fornecer alimentos, mas exclusivamente para garantir a

moradia. Se for alterado o destino, perde eficácia a instituição, devendo

ser desconsiderada pelos devedores. Isto se aplica também ao bem de

família legal.

Em quinto lugar, de acordo com o art. 72 (novo, art. 1.717), o

prédio não poderá ser alienado sem o consentimento dos interessados e

de seus representantes legais. O dispositivo não está bem redigido. Para

se conseguir autorização dos menores à liberação do bem há

necessidade de intervenção judicial. Dificilmente, na prática, tal

autorização é concedida, pois o pater familias precisa provar a

necessidade da alienação e que os menores continuarão garantidos até

a maioridade. Contudo, só o caso concreto poderá dar a solução. Pode

ocorrer que a família mude de domicílio e queira transferir a instituição

para outro bem; isto é possível, atendendo-se aos requisitos gerais aqui

expostos.

O art. 1.714 do atual Código acentua que o bem de família

constitui-se pelo registro de seu título no Registro de Imóveis. Antes do

registro, portanto, não há eficácia erga omnes.

 

۩. Inalienabilidade e Impenhorabilidade do Bem de

Família. Aplicação na Lei no 8.009 

Na forma do art. 1.717, o bem de família é declarado

inalienável. Tal inalienabilidade é feita em benefício da família para

proporcionar-lhe abrigo seguro e duradouro.

É preciso entender, contudo, que essa inalienabilidade é tão-

só acidental; pode ser removida, desde que haja aquiescência dos

interessados. Estes, quando incapazes, devem ser representados por

curador especial, pois há conflito fundamental com os representantes.

Característica fundamental é a impenhorabilidade. É este o

próprio cerne do instituto, como dizia o art. 70, deixando o bem "isento de

execução por dívida", salvo as provenientes de impostos relativos ao

mesmo prédio.

A primeira exceção à impenhorabilidade é justamente a de

débitos tributários relativos ao imóvel.

Não prevalece também a impenhorabilidade no caso de

fraude contra credores ou em detrimento de débito anterior. Por isso

dispunha o art. 71 que, para o exercício da faculdade de instituição, é

necessário que os instituidores no ato não tenham dívidas cujo

pagamento possa ser prejudicado.

Não é anulada, no entanto, a instituição quando aparece

dívida anterior e é provado que àquela época o instituidor não era

insolvente. Se a insolvência é posterior, em nada prejudica o bem de

família.

No bem de família legal da Lei no 8.009/90, o art. 3o trata das

exceções à impenhorabilidade:

"I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria

residência e das respectivas contribuições previdenciárias;

II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento

destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e

acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III - pelo credor de pensão alimentícia;

IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e

contribuições devidas em função do imóvel familiar;

V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como

garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para

execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização

ou perdimento de bens."

 

A vigente Lei do Inquilinato (no 8.245/91) incluiu mais uma

exceção ao art. 3o: "VII - por obrigação decorrente de fiança concedida

em contrato de locação."

O legislador do inquilinato apercebeu-se que a aplicação da

impenhorabilidade dificultaria a obtenção de fiadores na locação.

O art. 2o da lei do bem de família legal, como já referimos,

exclui também da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de

arte e adornos suntuosos.

O locatário também foi lembrado no bem de família legal, pois

"no caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens

móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de

propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo" (parágrafo

único do art. 2o).

O art. 4o procura evitar a fraude dispondo: "Não se

beneficiará do disposto nesta Lei aquele que, sabendo-se insolvente,

adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar,

desfazendo-se ou não da moradia antiga.

§ 1o Neste caso poderá o juiz, na respectiva ação do credor,

transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-

lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso,

conforme a hipótese."

A redação é ruim. Não se trata de o juiz "transferir" o vínculo,

mas de considerá-lo ineficaz em benefício do credor, nos próprios autos

da execução, para coibir a fraude. A lei nada diz acerca de terceiros de

boa-fé. Poderá, contudo, ocorrer fraude contra credores ou fraude de

execução, quando então será caso de aplicar a anulação dentro dos

princípios desses institutos.

 

۩. Duração

 

De acordo com o parágrafo único do art. 70 do Código antigo,

o benefício duraria "enquanto viverem os cônjuges e até que os filhos

completem sua maioridade". Aí o instituto terá atingido sua finalidade.

Dizíamos, sob a égide do estatuto anterior, contra a opinião

de alguns, que permanecia o bem vinculado no caso de existência de

filhos interditos que se equiparam aos menores. O atual Código foi, como

se nota, expresso nesse aspecto.

O benefício, ainda, pode ser extinto voluntariamente. É

decorrência lógica da natureza do instituto. A questão é da conveniência

da família. Pode acontecer de a instituição ter ocorrido em circunstâncias

de uma época na vida da família que não mais perduram. Os

interessados são os juízes dessa conveniência e haverá autorização

judicial para tal; se existirem incapazes, deve ser-lhes nomeado curador

especial, com participação do Ministério Público, em qualquer caso.

Se o prédio deixar de servir como domicílio da família, haverá

a extinção do benefício, por requerimento de qualquer interessado.

A propósito, dizia o art. 21 do Decreto-lei no 3.200/41: "Art

21. A cláusula de bem de família somente será eliminada, por mandado

do juiz, e a requerimento do instituidor, ou, nos casos do art. 20, de

qualquer interessado, se o prédio deixar de ser domicílio da família, ou

por motivo relevante plenamente comprovado.

§ 1o Sempre que possível, o juiz determinará que a cláusula

recaia em outro prédio, em que a família estabeleça domicílio.

§ 2o Eliminada a cláusula, caso se tenha verificado uma das

hipóteses do art. 20, entrará o prédio logo em inventário para ser

partilhado."

No bem de família legal, a instituição independe de qualquer

formalidade.

Portanto, por morte de um dos cônjuges o bem não irá a

inventário, mas se o cônjuge sobrevivente dele se mudar e não ficar

residindo algum filho menor, a cláusula será eliminada e o imóvel será

partilhado.

O art. 1.721 do Código de 2002 exprime que a dissolução da

sociedade conjugal não extingue o bem de família, mas, dissolvido o

matrimônio pela morte de um dos cônjuges, o sobrevivente poderá pedir

a extinção do bem de família se for o único bem do casal.

O credor terceiro, como interessado, pode requerer a

ineficácia do vínculo caso o seja anterior a sua constituição (art. 71 e

parágrafo único do Código Civil de 1916), ou no caso de provar que o

imóvel já não sirva para o domicílio da família. É preciso entender,

contudo, que nesses casos não há necessidade de que o credor

promova o cancelamento do vínculo, mas que simplesmente se

"desconsidere" sua existência em eventual execução e penhora. Trata-se

de ineficácia com relação a esse interessado.

Os interessados podem também provar judicialmente a

impossibilidade de manutenção da instituição, nas condições em que foi

constituído (art. 1.719). Nessa hipótese, o juiz poderá extingui-lo ou

autorizar a subrogação dos bens instituídos em outros, ouvindo sempre o

instituidor e o Ministério Público. Assim, pode ocorrer que o imóvel e os

bens móveis acessórios que o secundam se tornem excessivos ou

insuficientes para a família, necessitando esta de outro prédio ou de

outros investimentos garantidores. A necessidade será apurada no caso

concreto.

 

۩.  Processo de Constituição

 

O procedimento para a constituição do bem de família vem

estatuído nos arts. 260 a 265 da Lei no 6.015/73 (Lei dos Registros

Públicos).

A instituição deverá ser feita por escritura pública (art. 260). A

instituição por testamento, do novo Código, deve ser regulamentada. A

escritura do imóvel será apresentada ao oficial do registro para a

inscrição, a fim de que seja publicada na imprensa local (art. 261) ou, em

sua falta, na da Capital do Estado ou do Território. A finalidade da

publicidade é dar conhecimento a eventuais credores que tenham motivo

para se oporem à constituição.

Não havendo razão para dúvida, a publicação será feita de

acordo com o art. 262, da qual constará:

"I - O resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do

instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e

característicos do prédio;

II - o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá,

dentro em 30 (trinta) dias, contados da data da publicação, reclamar

contra a instituição, por escrito e perante o oficial."

Não havendo determinação expressa da lei, a publicação

será feita uma única vez pela imprensa.

Findo o prazo de 30 dias, sem qualquer reclamação (art.

263), o oficial transcreverá a escritura integralmente e fará a matrícula,

arquivando um exemplar do jornal da publicação e restituindo o

instrumento ao apresentante, com a nota da inscrição.

No caso de ser apresentada reclamação (art. 264), o oficial

fornecerá cópia ao instituidor e lhe restituirá a escritura, com a declaração

de haver sido suspenso o registro, cancelada a prenotação.

Nessa hipótese, o instituidor poderá insistir no registro,

requerendo ao juiz competente que o determine sem embargo da

reclamação (art. 264, § 1o). Caso o juiz estabeleça que se proceda ao

registro nessas circunstâncias, ressalvará ao reclamante o direito de

recorrer à ação competente para anular a instituição ou promover

execução sobre o prédio instituído, se se tratar de dívida anterior.

Trata-se de fase administrativa. Ainda que seja determinado

o registro, resta sempre ao prejudicado o direito de invalidar a instituição

ou "desconsiderá-la", na via judicial própria.

Se o juiz indeferir o registro, pode também o instituidor

recorrer à via judiciária, a contrario sensu.

Em qualquer caso, nessa fase administrativa, "o despacho do

juiz será irrecorrível e, se deferir o pedido, será transcrito integralmente,

juntamente com o instrumento" (art. 264, § 3o).

Nessa fase administrativa, o conhecimento do juiz é

incompleto, não há coisa julgada, daí por que se pode sempre recorrer às

vias ordinárias, podendo fazê-lo, de acordo com as circunstâncias, quer o

instituidor, quer o prejudicado com a instituição. Não é necessário, para

invalidar a instituição, que o prejudicado tenha apresentado reclamação

na fase administrativa. É claro que, se o tiver feito, terá situação melhor

no processo, mas não é requisito de procedibilidade.

Complementa o art. 265 da Lei dos Registros Públicos:

"Quando o bem de família for instituído juntamente com a transmissão da

propriedade (Decreto-lei no 3.200, de 14 de abril de 1941, art. 8o, § 5o),

a inscrição far-se-á imediatamente após o registro da transmissão, ou, se

for o caso, com a matrícula."

Trata-se da hipótese em que o instituidor adquire o imóvel e

já no mesmo ato institui o bem de família.

 

۩.  O Bem de Família no Atual Código Civil

 

Os arts. 70 ss do Código Civil antigo abriam importante

exceção à regra de que ninguém pode, como proprietário, tornar seus

próprios bens impenhoráveis, porque o princípio geral é de que o

patrimônio do devedor deve garantir suas dívidas. No caso, porém, o

legislador desejou cercar a família de garantias para um teto, um local

permanente onde morar, a salvo das intempéries financeiras do pater,

colocando o bem a salvo dos credores.

Nas edições anteriores desta obra, dizíamos que o

recrudescimento das dificuldades econômicas que afligiram e afligem o

país aconselhava que a instituição do bem de família fosse mais utilizada.

A Lei no 8.009/90, com todas as suas falhas, foi

evidentemente muito mais avançada, fazendo com que a

impenhorabilidade do imóvel de moradia decorra imperativamente da lei,

independendo da vontade do titular do direito. O tempo de sua vigência já

demonstra que a lei foi incorporada ao mundo negocial e ao espírito da

sociedade. Como visto, essa lei, que institui o bem de família por

imperativo legal, desestimula e suprime utilidade para a instituição

voluntária, custosa e procedimental.

Como dissemos, o atual Código disciplina o instituto dentro

do direito de família. Mantida a base estrutural, há novos pressupostos

na atual lei.

O art. 1.711, como apontamos, faculta a ambos os cônjuges

ou à entidade familiar a legitimidade para a instituição. Nesse mesmo

dispositivo, abre-se a possibilidade de o testamento instituir o bem de

família. Uma vez instituído por testamento, a lei registrária deve ser

alterada para admitir esse procedimento, cabendo às Corregedorias,

enquanto isso não ocorrer, possibilitar o que a lei material permite. Como

aponta Álvaro Villaça Azevedo, a instituição por testamento trará

dificuldades, mormente porque seus efeitos ocorrem apenas após a

morte, quando então será avaliado o patrimônio, sujeito também aos

credores do espólio. Melhor que se mantivesse unicamente a

possibilidade por escritura pública pelos cônjuges, a qualquer momento

(1999:226).

A administração do bem compete a ambos os cônjuges, salvo

disposição em contrário no ato de instituição, resolvendo o juiz em caso

de divergência (art. 1.720). Esse mesmo dispositivo, no parágrafo único,

indica o filho mais velho para prosseguir na administração, se for maior,

ou, no caso, seu tutor, com o falecimento de ambos os consortes. Poderá

não ser a solução mais conveniente para o caso concreto, decidindo o

juiz, conforme a situação. Não sendo oportuno e conveniente que o filho

mais velho seja o administrador, caberá ao juiz verificar, dentre os

membros da família, preferentemente residentes no local, qual o que

possui melhores condições para a função.

A dissolução da sociedade conjugal não extingue,

obviamente, o bem de família (art. 1.721). Há que se ver qual dos

cônjuges permanecerá no imóvel, o qual poderá, inclusive,

excepcionalmente, ficar na posse direta unicamente dos filhos. Se a

sociedade conjugal for dissolvida pela morte de um dos cônjuges, faculta-

se ao sobrevivente pedir a extinção do bem de família, se for o único bem

do casal (art. 1.721, parágrafo único). Esta última disposição não é

conveniente, pois poderá prejudicar os filhos menores (Azevedo,

1999:227).

Se, por um lado, no art. 1.712 há a especificação de que o

bem de família constituir-se-á de um prédio residencial urbano ou rural,

com suas pertenças e acessórios, por outro, o art. 1.711 limita o valor da

instituição a um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da

instituição. A lei que ordena os registros públicos deverá também

disciplinar essa prova do valor do bem. Apresentada a documentação ao

registro, havendo dúvida quanto ao limite imposto na lei, poderá o

cartorário submeter a questão a juízo. Não se suprime a possibilidade de

qualquer interessado insurgir-se contra a instituição, a qual, em qualquer

caso, não pode prejudicar as dívidas do instituidor até então existentes.

O parágrafo único do art. 1.711 permite que terceiro institua o

bem de família, por testamento ou doação, dependendo, da eficácia do

ato, da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da

entidade familiar beneficiada. Essa aceitação pode ocorrer no mesmo

instrumento de doação ou posteriormente, mormente quando se tratar de

instituição por testamento. O terceiro não está sujeito ao limite de um

terço do patrimônio.

Ao estipular que o benefício deve consistir de prédio urbano

ou rural, destinado ao domicílio da família, o art. 1.712 inova e esclarece

dúvida da doutrina no passado, autorizando que as pertenças e os

acessórios integrem a instituição, podendo também abranger valores

mobiliários, "cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no

sustento da família". O atual diploma encara o bem de família em seu

sentido global e social: de nada adianta para a família ter seu prédio

residencial imune a execuções se não há possibilidade de mantê-lo e de

manter ali os integrantes da família.

Nesse sentido, permite o Código de 2002 que o instituidor

destine recursos para essa manutenção que poderá consistir em

aplicações financeiras, alugueres etc. A maior dificuldade será isentar

esses recursos das execuções por parte de terceiros. O art. 1.713 dispõe

que os valores mobiliários desse jaez não poderão exceder o valor do

prédio instituído, à época da instituição. O texto não é muito claro e pode

dar a idéia que outro um terço do patrimônio atual possa ser destacado

para o bem de família, o que, em síntese, poderia somar 2/3 do

patrimônio e contrariar o art. 1.711.

Parece a melhor interpretação ser no sentido de que o prédio,

suas pertenças e acessórios e os bens afetados para sua manutenção e

sustento da família deverão, no total, limitar-se a um terço do patrimônio

líquido atual do instituidor. No entanto, se a interpretação sistemática é

essa, a interpretação gramatical não propende nesse sentido.

O art. 1.713 esclarece que os valores mobiliários afetados ao

bem de família deverão ser devidamente individualizados no instrumento

de instituição (art. 1.713, § 1o). Se forem títulos nominativos, a instituição

deverá constar dos respectivos registros (art. 1.713, § 2o). O instituidor

poderá determinar que a administração dos bens mobiliários seja

confiada a instituição financeira, bem como disciplinar a forma de

pagamento da respectiva renda aos beneficiários, caso em que a

responsabilidade dos administradores obedecerá às regras do contrato

de depósito (art. 1.713).

A figura do administrador, nesse caso, mais se aproxima do

contrato de fidúcia do que do de depósito. A lei reporta-se ao depósito

certamente para conceder maior rigor na apuração da conduta do

administrador.

O art. 1.714 dispõe que, em sendo a instituição formalizada

pelos cônjuges ou por terceiros, constituir-se-á pelo registro do título no

Registro de Imóveis. Se constituída por terceiros, será feita a transcrição.

Esta última solução deverá ser adotada, como regra geral, quando se

tratar de entidade familiar.

Atendendo ao princípio geral do instituto, o bem de família é

isento de execução pelas dívidas posteriores a sua constituição, salvo as

que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de

condomínio (art. 1.715). A regra é similar aos bens gravados com a

cláusula de inalienabilidade. Esclarece o parágrafo único desse artigo

que, na execução dessas dívidas afeitas ao próprio prédio, o saldo

remanescente será aplicado em outro prédio, como bem de família, ou

em títulos da dívida pública, para sustento familiar, salvo se motivos

relevantes aconselharem outra solução, a critério do juiz. O interesse a

ser visto pelo magistrado, nesse caso, é o da entidade familiar: poderá

não ser a solução mais conveniente a aplicação do saldo eventualmente

remanescente em títulos da dívida pública.

Em paralelo ao disposto no Código anterior, a isenção que

beneficia o prédio e seus acessórios durará enquanto viver um dos

cônjuges, ou, na falta destes, até que os filhos completem a maioridade.

Deve existir um alargamento nessa interpretação: se há filhos que não

atingem a plena capacidade civil porque lhes falta o devido

discernimento, ou por desenvolvimento mental incompleto, continuando

incapazes, permanecerá o benefício, pois esse é o intuito da lei, a qual

aliás é expressa no art. 1.722.

A alienação do prédio e respectivos valores mobiliários não

poderão ter destino diverso, somente sendo utilizados para domicílio

familiar e somente podendo ser alienados com o consentimento dos

interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.

Trata-se da extinção voluntária do bem de família descrita no art. 1.717.

Caberá ao juiz, em síntese, a palavra final sobre a extinção.

Outra situação que pode apresentar-se, como vimos, é a

impossibilidade de o bem continuar a servir como bem de família,

qualquer que seja a causa. Nessa hipótese, poderá o juiz, a requerimento

dos interessados, extingui-lo ou autorizar sua sub-rogação em outros

bens, ouvidos o instituidor e Ministério Público (art. 1.719). No projeto que

já se apresenta para alterar o atual Código (no 6.960/2002), nesse

dispositivo pode ser autorizada também a alienação do bem,

dependendo da prova de oportunidade e conveniência.

O bem de família extingue-se também pelo término de seu

destino natural, com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos

filhos, desde que não sujeitos à curatela (art. 1.722).

Importante é a disposição do art. 1.718. Qualquer forma de

liquidação das entidades administradoras dos valores mobiliários não

deverá atingir os valores a ela confiados, devendo o juiz ordenar sua

transferência para outra instituição semelhante. Na falência, possibilita-se

o pedido de restituição. Como vimos, a responsabilidade da instituição é

a do depositário.

Embora muito bem detalhado o bem de família no presente

Código, e por isso mesmo de complexa efetivação, tudo é no sentido de

que continuará com pouca utilização, em face do bem de família legal da

Lei no 8.009.

 

۩. Observações gerais

 

1 "Processual Civil. (Art. 496, VIII, CPC; art. 266, RISTJ).

Bem de Família. Impenhorabilidade. Lei 8.009/90. 1. A impenhorabilidade

proclamada pela Lei 8.009/90 objetiva proteger bens patrimoniais

familiares essenciais à habitação condigna. Essa inspiradora proteção

social, com origem no homested, instituto americano (EUA), objetivando

manter as guarnições da casa, protegendo o devedor das agruras de

viver sem o mínimo de condições de comodidade. 2. Excluídos os

veículos de transporte, objetos de arte e suntuosos, o 'favor compreende

o que usualmente se mantém em uma residência e não apenas o

indispensável para fazê-la habitável. Devem, pois, em regra, ser

reputados insusceptíveis de penhora aparelhos de televisão e de som'

(REsp 136.678/SP - Rel. Min. Eduardo Ribeiro). 3. Jurisprudência

uniformizadora da Corte Especial (102.000/SP - Rel. Min. Humberto

Gomes de Barros). 4. Embargos rejeitados" (STJ - Acórdão ERESP

110436/SP (199700337154), ERESP 340869, 6-12-99, 1a Seção - Rel.

Min. Milton Luiz Pereira).

"Bem de família. Lei no 8.009/90. Art. 70 do Código Civil.

Precedentes da Corte. 1. Permanece como bem de família, insuscetível

de penhora, o imóvel residencial assim afetado na forma do art. 70 do

Código Civil, sendo ínsita a cláusula da isenção na escritura para tal fim.

2. Recurso especial não conhecido" (STF - Acórdão REsp 250.028/RJ

(200000210595), RE 376381. 19-9-2000, 3a Turma - Rel. Min. Carlos

Alberto Meneses Direito).

"Processual Civil. Bem de Família. Impenhorabilidade. Lei no

8.009/90.

1. A impenhorabilidade proclamada pela Lei 8.009/90 objetiva

proteger bens patrimoniais familiares essenciais à habitabilidade

condigna. Essa inspiradora proteção social, com origem no homestead

(EUA), objetiva manter as guarnições da casa, protegendo o devedor das

agruras de viver sem o mínimo de condições de comodidade.

2. Excluídos os veículos de transporte, objetos de arte e

suntuosos, o 'favor compreende o que usualmente se mantém em uma

residência e não apenas o indispensável para fazê-la habitável. Devem,

pois, em regra, ser reputados insusceptíveis de penhora aparelhos de

televisão e de som'. (REsp. 136.678/SP - Rel. Min. Eduardo Ribeiro).

3. Jurisprudência uniformizadora da Corte Especial (102.000-

SP - Rel. Min. Humberto Gomes de Barros). 4. Recurso não provido"

(STJ - Acórdão RESP 123673/SP (199700181464) RE 372720, 17-8-

2000, 1a Turma - Rel. Min. Luiz Pereira).

"Penhora - Bem de Família. Incidência sobre imóvel com

finalidade comercial e residencial. Ausência de outros bens penhoráveis.

Hipótese em que, diante da indivisibilidade do bem, deve prevalecer a

norma de ordem pública que ressalva a residência familiar. Constrição

inadmissível. Recurso provido" (1o TACSP - AI 1.020.261-0, 9-8-2001, 11a

Câmara - Rel. Juiz Vasconcellos Boselli).

 

2 - "Constitucional. Bem de família. Imóvel residencial do

casal ou de entidade familiar: Impenhorabilidade. Lei no 8.009, de 29-3-

90, artigo 1o. Penhora anterior à lei 8.009, de 29-3-90: Aplicabilidade. I -

Aplicabilidade da Lei 8.009, de 29-3-90, às execuções pendentes:

inocorrência de ofensa a ato jurídico perfeito ou a direito adquirido. C. F.,

art. 5o, XXXVI. II - Agravo não provido" (STF - ARAI 159292, 28-6-96,

Tribunal Pleno - Rel. Min. Carlos Velloso).

3 "Processo civil - Execução - Penhora. Único imóvel

residencial pertencente a executada. Benefício da Lei no 8.009/90. O

imóvel residencial próprio do casal é impenhorável. Demonstrado que o

bem tem finalidade residencial e que a executada não possui outro, até

porque reside em apartamento alugado - pela avançada idade e por

medida de segurança - merece a proteção da Lei que dispõe sobre a

impenhorabilidade" (STJ - Resp. 76212/AL (9500503492), 2a T., Rel. Min.

Hélio Mosimann, 15-4-96).

 

4 - "Processual civil - Embargos à execução -

Impenhorabilidade dos bens móveis e utensílios que guarnecem a

residência, incluindo computador e impressora - Precedentes - Piano

considerado, in casu, adorno suntuoso (art. 2o, da Lei no 8.009/90).

I - A Lei no 8.009/90 fez impenhoráveis, além do imóvel

residencial próprio da entidade familiar, os equipamentos e móveis que o

guarneçam, excluindo veículos de transporte, objetos de arte e adornos

suntuosos. O favor compreende o que usualmente se mantém em uma

residência e não apenas o indispensável para fazê-la habitável. Devem,

pois, em regra, ser reputados insusceptíveis de penhora aparelho de

televisão e de som, microondas e vídeo-cassete, bem como o

computador e a impressora, que hoje em dia, são largamente adquiridos

como veículos de informação, trabalho, pesquisa e lazer.

I - Quanto ao piano, não há nos autos qualquer elemento a

indicar que o instrumento musical seja utilizado pelo Recorrente como

meio de aprendizagem, como atividade profissional ou que seja ele bem

de valor sentimental, devendo ser considerado, portanto, adorno

suntuoso. Incidência do disposto no artigo 2o da Lei no 8.009/90.

III - Recurso conhecido em parte, e nessa parte, provido"

(STJ - Acórdão REsp 198370/MG (199800918914), RE 380096, 16-11-

2000, 3a Turma - Rel. Min. Waldemar Zveiter).

"Bens - Família - Televisão - Impenhorabilidade - Exclusão

apenas dos objetos elencados no artigo 2o da Lei no 8.009/90 - Aparelho

que não pode ser considerado como supérfluo se vindo como fonte de

lazer e informação - Recurso não provido. O televisor não pode ser

considerado objeto de luxo, guarnecendo qualquer residência de classe

média, inserindo-se no rol dos impenhoráveis (artigo 1o, parágrafo único,

da Lei no 8.009/90). Efetivamente, o lazer se inclui entre as necessidades

básicas dos indivíduos, destinando-se aquele aparelho a essa finalidade

e bem assim servindo como fonte de informação e de instrução" (TJSP -

AI 27.318-5, 23-10-96, 8a Câmara de Direito Público - Rel. Celso

Bonilha).

 

5 - "Penhora - Embargos de terceiro - Bem de família - Lei no

8.009/90 - Incidência somente sobre as dívidas contraídas após a sua

edição - Hipótese em que não pode prevalecer a impenhorabilidade em

detrimento de débito anterior - Embargos de terceiro improcedentes -

Recurso improvido - Execução hipotecária - Penhora - Exclusão de

impenhorabilidade dos bens de família nos casos de execução de

hipoteca sobre o imóvel oferecido em garantia real pelo casal ou entidade

familiar - Art. 3o, V, Lei no 8.009/90 - Existência de averbação da cédula

de crédito industrial no registro de imóveis - Configuração da garantia

sobre o imóvel objeto da constrição - Embargos de terceiro

improcedentes - Recurso improvido. Cambial - Aval - Descaracterização

de ato de mera liberalidade por se tratar de dívida que resulta de

financiamento concedido a uma empresa pertencente ao avalista -

Necessidade de se ilidir a presunção de que a obrigação beneficia a

família - Inexistência de prova nesse sentido - Embargos de terceiro

improcedentes - Recurso improvido" (1o TACSP - Apelação Cível

584889-3/00, 5a Câmara, Rel. Torres Júnior, 15-2-95).

 

6 - "Civil - Imóvel - Impenhorabilidade - A Lei no 8.009/90,

precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece

limitação à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por

suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger

as pessoas, garantindo-lhes o lugar para morar. Família, no contexto,

significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por

laços de casamento, união estável, ou descendência. Não se olvidem

ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende

ainda a família substitutiva. Nessa linha, conservada a teleologia da

norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o

celibatário é digno dessa proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que

seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como,

normalmente acontece, passam a residir em outras casas. Data venia, a

Lei no 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário - à

pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O

sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só

essa finalidade, data venia, põe sobre a mesa a exata extensão da lei.

Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer

a insuficiente interpretação literal" (STJ - Acórdão REsp 182223/SP

(199800527648), RE 262568, 19-8-99, 6a Turma - Rel. Min. Luiz Vicente

Cernicchiaro).

Em sentido contrário:

"Impenhorabilidade. Lei no 8.009, de 29-3-90. Executado solteiro que

mora sozinho. A Lei no 8.009/90 destina-se a proteger, não o devedor,

mas a sua família. Assim, a impenhorabilidade nela prevista abrange o

imóvel residencial do casal ou da entidade familiar, não alcançando o

devedor solteiro, que reside solitário. Recurso especial conhecido e

provido parcialmente" (STJ - Acórdão REsp 169239/SP (199800226621),

RE 384712, 12-12-2000, 4a Turma - Rel. Min. Barros Monteiro).

"Penhora - Bem de família - Lei no 8.009/90 - Hipótese em que apenas

uma pessoa separada judicialmente reside no imóvel - Conceito de

família que deve ser entendido pelo seu caráter quantitativo - Finalidade

protetiva da lei - Impenhorabilidade reconhecida - Recurso provido em

parte para esse fim" (1o TACSP - Ap. Cível 0743606-0, 31-3-98, 6a

Câmara - Rel. Cândido Além).

7 "O único imóvel destino à moradia da família, cujo aluguel provê a

residência em outra cidade devido à transferência por necessidade de

emprego, não pode ser penhorado" (Entendimento unânime da 4a T. do

STJ, REsp. 214.142).

"Processual Civil. Civil. Recurso Especial. Bem de família. Propriedade

de mais de um imóvel. Residência - É possível considerar impenhorável o

imóvel que não é o único de propriedade da família, mas que serve de

efetiva residência - Recurso especial provido" (STJ - Acórdão REsp

435357/SP (200200600223) RE 469489, 29-11-2002, 3a Turma - Rel.

Min. Nancy Andrighi).

8 "Penhora - Incidência sobre bem de família - Instituição do bem

registrado por escritura pública posterior à dívida assumida pelo

executado - Desconsideração do disposto no art. 71 do CC -

Prevalecimento no caso da regra genérica do art. 591 do CPC - Validade

da constrição - Embargos do devedor improcedentes - Recurso

desprovido" (1o TACSP - Apelação Cível 419521-3/00, 4a Câmara, 14-3-

90).

9 "Penhora - Bem de família - Impenhorabilidade - Imóvel indicado pelo

próprio executando quando nele não residia e dispunha ainda de outros -

Desfazimento dos outros bens a transferência de residência para o

imóvel penhorado - Inaplicabilidade do instituto bem de família na

hipótese - Lei no 8.009/90, art. 1o - 'Não se aplica a Lei 8.009/90 quando

o executado, depois de se desfazer de seu patrimônio, transfere

residência para o imóvel penhorado'" (STJ - REsp. 252824 - RJ - Rel.

Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 14-12-2000. Diário da Justiça 12-3-

2001).

10 "Penhora - Impenhorabilidade - Bem de família - Antena parabólica

para recepção de imagem de TV. Descabimento da penhora. Lei no

8.009/90, art. 1o - 'O aparelho televisor, por viabilizar o fácil e gratuito

acesso a diversão, lazer, cultura, educação e, sobretudo, informação,

constitui peça há muito tempo essencial a vida familiar contemporânea, é

parte integrante da residência e, portanto, insuscetível de penhora, nos

termos do art. 1o, parágrafo único da Lei 8.009/90. Em conseqüência, se

para a captação das imagens em regiões diferentes, o usuário tem de se

valer de antena parabólica, a proteção a ela se estende, sob pena de

frustrar, na prática, o objetivo da lei'" (STJ - REsp. 161.262 - RS - Rel.

Min. Aldir Passarinho Júnior, j. em 24-11-1998, Diário da Justiça 5-2-

2001).

11 "Execução por título judicial - Penhora - Incidência sobre bem de

família - Impenhorabilidade que atinge a totalidade do bem - Irrelevância

da não-oposição pela mulher de embargos em defesa de sua meação -

Dispensabilidade da instituição do bem em escritura pública e o seu

registro no cartório imobiliário - Indenizatória, ademais, ajuizada quando

já em vigência a Lei no 8.009/90 - Embargos do devedor procedentes -

Recurso desprovido" (1o TACSP - Apelação Cível 494990-5/00, 1a

Câmara, Rel. Celso Bonilha, 8-6-92).

"Bem de família - Ação de cancelamento de cláusula de instituição -

Imóvel alienado pelos instituidores - Pedido de cancelamento de registro

instituição bem de família formulado pelo cônjuge sobrevivente e pelos

compradores - Determinação de citação dos herdeiros do instituidor

falecido - Interesse destes, em tese, de intervir no feito - Recurso

improvido" (TJSP - AI 133.710-4, 22-11-99, 8a Câmara de Direito Privado

- Rel. César Lacerda).