WikiLeaks e imprensa: uma análise a partir dos vazamentos ... · Tendo como referência o artigo...
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Universidade de Brasília
Faculdade de Comunicação
Departamento de Jornalismo
WikiLeaks e imprensa: uma análise a partir dos
vazamentos de 2010
Isabela Botelho Horta 07/33547
Mariana Haubert de Freitas 07/36023
Orientador: Fernando Oliveira Paulino
Brasília
2011
2
4.1 PRINCÍPIOS DO WikiLeaks
Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809),
uma vez declarou que o preço da liberdade é a eterna vigilância1. Essa é a
grande inspiração do WikiLeaks, como pode ser observado na descrição do
próprio site2: “nós acreditamos que uma mídia jornalística desempenha papel
fundamental nesta vigilância”3.
Trata-se de uma organização não governamental, sem fins lucrativos,
que tem como objetivo publicar documentos, fotos, vídeos ou informações
confidenciais de algum governo ou empresa, que tenham relevância no cenário
internacional. O site se declara uma maneira inovadora, segura e anônima para
denunciantes que desejam “vazar” informações. Daí o nome WikiLeaks: leak
em inglês significa vazamento e Wiki é uma referência à tecnologia de mesmo
nome que permite a edição coletiva e colaborativa de documentos por ele
publicados. Apesar disso, o WikiLeaks não pertence à organização Wikimedia.
A semelhança está na interface e na tecnologia aplicada, como se verá a
seguir.
O site se define como “um serviço público internacional que permite que
denunciantes e jornalistas obtenham informações suprimidas do domínio
público da maneira mais segura possível.”4 Ou ainda “um grupo independente
1 Há divergências históricas quanto à autoria desta frase. No entanto, o WikiLeaks atribuiu à sentença ao terceiro presidente americano Thomas Jefferson.
2 A seção About do site encontra-se em anexo, “Anexo 1 – About 2010”, e pode ser acessado no link http://wikileaks.org/media/ about.html. Acesso em 12/12/2010.
3 Tradução livre para “We believe the journalistic media plays a key role in this vigilance”
4 Tradução livre para: “Wikileaks is an international public service that allows whistleblowers and journalists to get supressed information out in the public domain as safely as possible”
3
global de pessoas com uma longa dedicação à ideia de uma imprensa livre e
as melhorias pra transparência da sociedade que podem vir disso.”5
Tendo como referência o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos6, o WikiLeaks defende que a liberdade de expressão e a liberdade da
imprensa são ferramentas fundamentais para melhorar os rumos da sociedade.
Ele incentiva, por meio de uma tecnologia avançada de proteção às fontes, que
os cidadãos que tenham informações confidenciais e de interesse
internacional, as passem para o site. Em contrapartida, o WikiLeaks garante
anonimato total a essas pessoas, além de se responsabilizar pelos
questionamentos legais e políticos que a revelação desses documentos pode
gerar.
O resultado desses vazamentos, de acordo com a seção About do
WikiLeaks, é a diminuição de governos e organizações corrompidas. Segundo
o site, quando os riscos de constrangimento aumentam, é menos provável que
ocorram casos de conspiração, corrupção, exploração e opressão. Para o
WikiLeaks, “governos abertos são a melhor maneira de promover a boa
governança”, pois:
A divulgação melhora a transparência, e essa transparência cria uma melhor
sociedade para as pessoas. A melhor apuração dos fatos reduz a corrupção e
fortalece a democracia em todas as instituições da sociedade, incluindo governos,
corporações e outras organizações. Uma mídia jornalística saudável, vibrante e
inquisitiva desempenha um papel fundamental para atingir esses objetivos. Nós
fazemos parte dessa mídia.7
5 Tradução livre para: “Wikileaks is an independent global group of pepole with a long standing dedication to the ideia of a free press and the improved transparency in society that comes from this ”
6 “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios independentemente de fronteiras.”
7 Tradução nossa para: “Publishing improves transparency, and this transparency creates a better society for all people. Better scrutiny leads to reduce corruption and stronger democracies in all society’s institucions, including governments, corportations and other organisations. A health, vibrant and inquisitive journalistic media plays a vital role in achieving these goals. We are part of that media.”
4
4.2 COMO FUNCIONA O SITE
Esse portal de vazamento de documentos secretos passou a ganhar
destaque no jornalismo investigativo após publicar o vídeo Collateral Murder,
em abril de 2010, que mostrava soldados americanos atirando em civis no
Iraque. Desde então, muito se especula a respeito de sua estrutura de
produção: quem são seus funcionários e financiadores, por exemplo, ou como
é o processo de checagem de informações recebidas. Isso porque o conteúdo
publicado no site não esclarece de maneira detalhada como funciona a
organização WikiLeaks.
Segundo a seção About de seu site, o WikiLeaks é um projeto da The
Sunshine Press, uma ONG internacional financiada por ativistas de direitos
humanos, jornalistas investigativos, tecnólogos, advogados e o público em
geral. Não há quase nenhuma referência sobre essa organização na internet e
ao buscarmos o site da The Sunshine Press somos automaticamente
redirecionados para o WikiLeaks, o que nos leva a crer que ela foi criada
somente pra angariar donativos para o site.
O WikiLeaks vive exclusivamente de doações. No menu superior da
página, a aba “Support” contém as informações para os internautas que
desejam contribuir com o projeto. Lá, a organização destaca que precisa de
recursos pra comprar computadores, pagar profissionais experts em
programação, além de outras contas. Quem quiser colaborar, pode fazer
transferências online via cartão de crédito, transferências bancárias ou por
correio.
Quantos aos funcionários e colaboradores, a seção explica que o site é
formado por jornalistas de credibilidade, programadores de sistema,
engenheiros de rede, matemáticos e outros. A figura que mais se destaca
desse grupo é o australiano Julian Assange, considerado pela imprensa
internacional o porta-voz do site. Ele é quem representa o WikiLeaks em
entrevistas a jornalistas e coletivas de imprensa em que o site anuncia novos
vazamentos.
5
Jornalista e ciberativista8, Julian Assange é um dos nove membros do
conselho consultivo do WikiLeaks9. Ele estudou matemática, física e foi
programador antes de lançar o site. Em diversas entrevistas à imprensa
internacional, Assange assumiu viver como um nômade desde as primeiras
publicações do WikiLeaks. Ele não tem residência fixa e troca constantemente
de celular. Mais recentemente, no dia 7 de dezembro, Assange se apresentou
à polícia inglesa depois de ser procurado pela Interpol10 por ser acusado de
cometer quatro crimes sexuais na Suécia. O fato é questionado por defensores
de Julian Assange que consideram sua prisão uma represália política depois da
publicação do Cablegate, que desagradou autoridades americanas. Nove dias
depois, no dia 16 de dezembro, Assange foi libertado após pagar fiança de 240
mil libras, cerca de 640 mil reais. O dinheiro foi doado por pessoas que apóiam
a causa do WikiLeaks.11
A seção About ainda explica que “como outros meios de comunicação
que se prestam ao jornalismo investigativo, nós [WikiLeaks] aceitamos (mas
não solicitamos) fontes anônimas de informação. Diferente de outros meios,
nós fornecemos uma caixa postal de anonimato super segura fortificada por
tecnologias criptográficas de informação de ponta”12. Essas tecnologias e as
recomendações para envio de vazamentos serão detalhadas ainda neste
capítulo, onde também explicaremos porque as sedes do site estão na Suécia,
Islândia e nos Estados Unidos.
8 O ciberativismo é uma forma de ativismo realizada em meios eletrônicos e na internet. A alcunha surgiu na década de 90, com a expansão da Rede, e representa uma alternativa para as pessoas que desejam manifestar opiniões que não nos meios de comunicação de massa tradicionais como jornais e revistas impressas, televisão e rádio.
9 Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Julian_Assange. Acesso em 5/11/2010.
10 Interpol, sigla de International Criminal Police Organization, é uma organização internacional que ajuda na cooperação de polícias do mundo todo.
11 Enquanto estava na prisão, Assange escreveu o texto “The truth will always win”, disponível no Anexo 10 deste trabalho.
12 Tradução livre para: “Like other media outlets conducting investigative journalism, we accept (but do not solicit) anonymous sources of information. Unlike other outlets, we provide a high security anonymous drop box fortified by cutting-edge cryptographic information technologies”.
6
Após receber um documento secreto, os jornalistas do WikiLeaks
atestam a veracidade do material, por meio de “técnicas tradicionais de
jornalismo e de métodos modernos de tecnologia”. Isso seria, segundo a seção
About:
Normalmente, nós [WikiLeaks] fazemos uma análise forense do documento, que
determina o custo da falsificação, intenção, motivos, oportunidades, a reivindicação da
organização autora do vazamento, e responde a uma série de outras questões
detalhadas sobre o documento. Nós também podemos fazer pesquisas de campo do
documento. Para nosso vídeo Collateral Murder, por exemplo, nós mandamos um
grupo de jornalistas para o Iraque para entrevistar vítimas e observadores do ataque do
helicóptero. O grupo obteve cópias de relatórios médicos, certificados de óbitos,
depoimento de testemunhas e outras evidências que corroboraram para a verdade da
história.13
Atestada a veracidade do material, o WikiLeaks publica uma notícia
explicando a importância daquele vazamento pra sociedade. O site oferece,
então, o material original recebido pelas fontes e esse artigo. O objetivo é
garantir que os leitores tirem suas próprias conclusões a respeito dos
documentos revelados.
Há, no entanto, a preocupação em manter a segurança e integridade
física dos denunciantes, por isso, o WikiLeaks pode suprimir algumas
informações que sugiram a identidade dessas pessoas. Esse processo é
chamado de Harm Process Minimization ou Processo de Minimização de
Danos. O site diz que não tem intenção de reduzir o conteúdo dos vazamentos
postados, mas garantir segurança e anonimato aos denunciantes.
Para o WikiLeaks:
13 Tradução livre para: “Typically we will do a forensic analysis of the document, determine the cost os forgery, means, motive, opportunity, the claims of the apparent authoring organisations, and answer a set of other detailed questions about the document. We may also seek external verification of the document. For example, for our release of the Collateral Murder vídeo, we sent a team of journalists to Iraq to interview the victims and observers of the helicopter attack. The team obtained copies of hospital records, death certificates, eye witness statements and other corroborating evidence supporting the truth of the story.”
7
Publicar o material original que está por trás de cada uma de nossas histórias é a
maneira na qual mostramos para o público que nossas histórias são autênticas. Os
leitores não têm que acreditar na gente; eles podem ver por eles mesmos. Dessa forma,
nós também apoiamos o trabalho de outras organizações jornalísticas, para que eles
vejam e usem os documentos originais livremente também. Outros jornalistas podem ver
um detalhe ou ângulo no documento que nós não nos atentamos à primeira vista.
Tornando esses documentos livremente disponíveis, nós esperamos expandir as
análises e comentários por toda mídia. Mais ainda, queremos que os leitores saibam a
verdade para que eles possam tirar suas próprias conclusões.14
Isso pode ser observado nas publicações dos Diários de Guerra, tanto do
Afeganistão como do Iraque. Somando esses dois vazamentos o WikiLeaks
publicou 466.743 SIGACT, que são Significant Action in the war, algo como
“Ação Significativa de guerra”. Esses SIGACT detalham eventos vistos e
ouvidos pelas tropas militares dos EUA nos territórios ocupados nesses países.
Os relatórios são escritos por militares e, por isso, não são de fácil
compreensão para quem não pertence ao Exército.
Em outubro de 2010, com o vazamento da Guerra do Iraque, o WikiLeaks
reuniu os documentos dos dois conflitos em um único hotsite15 chamado Diary
Dig.
14 Tradução livre para: “Publishing the original source material behind each of our stories is the way in wich we show the public that our story is authentic. Readers don´t have to take our word for it, they can see for themselves. In this way, we also support the work of other journalism organisations, for they can view and use the original documents freely as well. Other journalists may well see an angle or detail in the document that we were not aware of in the first instance. By making the documents freely avaiable, we hope to expand analysis anda comment by all the media. Mosto f all, we want readers know the truth so they can make up ther own minds.”
15 O hotsite é um mini-site alojado dentro de um site. Ele serve para destacar determinado conteúdo ou ação de marketing podendo ter, em alguns casos, vida útil determinada.
8
Figura 2 – Página do hotsite Diary Dig, de 12/12/2010
Nesse hotsite, o internauta pode pesquisar todos os SIGACT obtidos
pelo WikiLeaks da Guerra do Afeganistão e da Guerra do Iraque. A busca pode
ser feita nas seguintes categorias: “tipo” (friendly fire ou friendly action); “região”
[do país] (norte, sul, capital, desconhecida...); “ataque em” (inimigo, amigo,
desconhecido ou neutro); “tipo de unidade” (civil, coalizão, infraestrutura,
inimiga...); “afiliação” (inimigo, amigo, desconhecido ou neutro); “cor” (azul,
verde e amarelo); “classificação” (confidencial, secreto, não classificado, GIRoA
- Government of Islamic Republic of Afghanistan ...) ou “categoria” (ataque,
prisão, acidente, assassinato...).
Ainda é possível, no Diary Dig, pesquisar quantos SIGACTS foram
escritos por data ou por período (de 01/01/2004 a 01/01/2010) e também
quantas são as referências nesses relatórios a civis, nacionais, amigos e
inimigos mortos e feridos nos combates. No exemplo abaixo, a ferramenta
mostra que existem 816 SIGACT´s relatando que 16 e 39 civis foram feridos.
Figura 3 – Detalhe de ferramenta disponível no Diary Dig, de 12/12/2010
9
Navegando no hotsite, o internauta encontrará SIGACT como essa16,
retirado da seção “Tipo” > “Fogo Amigo”:
SHOOTING ACCIDENT INVOLVING A US CONVOY AND CIVILIAN CONVOY: %%%17
BDA
2004-02-02 00:00:00
WHILE OVERTAKING A 20X VEHICLE US CONVOY ON ROUTE %%% AN ARMOR
GROUP SECURITY COMPANY VEHICLE WAS FIRED UPON WITH TWO SHOTS FROM
THE TOP COVER OF THE ESCORT VEHICLE IN THE MIDDLE OF THE US CONVOY. THE
CIVILIAN CONTRACTOR WAS DRIVING A BRAND NEW %%% WHITE PICK-UP WITH %%
% PLATES AND HAD PREVIOUSLY UNDERSTOOD SIGNALS FROM THE REAR ESCORT
VEHICLE OF THE CONVOY TO MEAN THAT HE WAS CLEARED TO PASS. THERE WERE
NEITHER CASUALTIES NOR DAMAGES REPORTED. A WRITTEN REPORT %%% FROM
THE COMPANY IN ORDER TO FACILITATE ANY FURTHER INVESTIGATION.
Em português, pode ser traduzido como18:
“Tiro acidental envolvendo comboio dos EUA e comboio civil: %%%
BDA
2004-02-02 00:00:00
Enquanto ultrapassava um veículo 20X, na via %%%, um veículo da companhia de
segurança ArmorGroup deu dois tiros da tampa de um carro de escola que estava
no meio do comboio americano. O contratante civil estava dirigindo uma nova %%%
pick up branca com placa %%% e tinha anteriormente entendido os sinais da
traseira de uma escolta do comboio americano, que autorizava sua passagem. Não
houve relato nem de casualidade nem de danos. Um relatório escrito %%% pela
companhia a fim de facilitar qualquer investigação futura. “
No caso do vazamento Diários de Guerra do Iraque, que continha
390.136 SIGACT´s, o WikiLeaks produziu uma notícia que explicava que os
documentos recebidos pela organização provavam a morte de 109.032
pessoas no Iraque, sendo 66.081 civis, 23.986 insurgentes, 15.196 das tropas
do governo iraquiano e 3.771 das forças de coalizão. Ou seja, o site
apresentou, por meio de documentos originais e por meio de seu artigo, que
mais de 60% dos óbitos no Iraque eram de civis.
16 Disponível em http://213.251.145.96/id/11950. Acesso em 30/11/2010.
17 O símbolo de porcentagem (%) substitui algumas informações suprimidas pelo site.
18 Tradução livre.
10
A estratégia utilizada pelo site para divulgação do vídeo Collateral Murder
foi semelhante à utilizada nos Diários de Guerra do Afeganistão e do Iraque. O
WikiLeaks criou um hotsite19, onde disponibiliza a versão original do filme de 38
minutos, uma versão editada e uma entrevista com o soldado que testemunhou
o ataque do Apache americano atirando em civis no Iraque em 2007.
Figura 4 – Página do hotsite Collateral Murder, de 12/12/2010
Além dos três vídeos, o site disponibiliza informações sobre os dois
jornalistas da Reuters mortos no incidente, o fotógrafo Namir Noor-Elden e o
motorista Saeed Chmag, uma lista de reportagens que saíram sobre o assunto
e a transcrição da conversa dos dois militares que estavam no Apache. O
WikiLeaks ainda publicou o US Rules of engagement for Iraq, que são as
“regras” do conflito armado, segundo o Exército norte-americano. Esse último
foi publicado, porque, após a agência Reuters solicitar explicações sobre o
acontecido, o Exército limitou-se a dizer que os soldados não infringiram
nenhuma orientação de guerra contida naquele “manual”.
A última publicação do WikiLeaks, o Cablegate, apresenta duas
diferenças de publicação das anteriores. Primeiro, os 251.287 telegramas da
diplomacia norte-americana não foram divulgados de uma vez só. Com 15 dias
do início da publicação, apenas 1.344 documentos haviam sido publicados.
Além disso, esse vazamento não ganhou um hotsite como os Diários de Guerra
ou o Collateral Murder.
19 O conteúdo do vídeo Collateral Murder está disponível em https://collateralmurder.com.
11
Para acessar os documentos do Cablegate, o internauta tem duas
opções: fazer o download de uma pasta com conteúdo compactado de todos
os dados já publicados até então ou utilizar as ferramentas de busca do site.
Essa pode ser por “últimas publicações”, “por ano do telegrama”20, “origem do
telegrama” (embaixada ou consulado dos países), “palavra chave” ou por
“classificação” (confidencial, confidencial não publicável para nações
estrangeiras [Noforn], secreto, secreto não publicável para nações
estrangeiras, não classificado, não classificado para uso oficial apenas [for
official use onl]).
Figura 5 – Página do WikiLeaks na seção do Cablegate, de 12/12/2010
A seguir, um trecho de um telegrama21 escrito em 28/03/2009 e publicado
pelo WikiLeaks no dia 12/12/2010. No texto, o então embaixador dos EUA em
Brasília, Clifford Sobel, faz comentários sobre a Lei do Abate22 no Brasil. O
diplomata relata aos seus superiores um episódio ocorrido em 12/03/2009,
quando um homem roubou um monomotor em Luziânia (GO). O homem pilotou
o pequeno avião, acompanhado da filha de 5 anos, até cair no estacionamento
do maior shopping de Goiânia, tendo causado a morte dos dois. Sobel
relaciona o caso à hipótese de ataques terroristas suicidas e destaca a
20 Os documentos publicados pelo site são de 66, 72, 75,79,86, 88, 89, 90 e de 2000 a 2010 e estão disponíveis no site o WikiLeaks em http://213.251.145.96/. Acesso em 28/11/2010.
21 Disponível em http://213.251.145.96/cable/2009/03/09BRASILIA390.html
22 A Lei do Abate Aéreo, lei nº 9.614 de 05/03/1998, trata dos casos em que uma aeronave estrangeira pode ser submetida à detenção, à interdição e à apreensão por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou da Polícia Federal.
12
inoperância das Forças Aéreas Brasileiras (FAB) que, para atirar em um avião
hostil, precisaria passar por um longo procedimento, até decisão presidencial.
Viewing cable 09BRASILIA390, THEFT OF SMALL PLANE ACTIVATES SHOOTDOWN PROCEDURES
(...)23
Reference ID Created Released Classification Origin
09BRASILIA390 2009-03-28 00:12
2010-12-12 07:07
SECRET//NOFORN Embassy Brasilia
(...)
S E C R E T BRASILIA 000390
NOFORN SIPDIS
DEPARTMENT FOR WHA/BSC AND L
E.O. 12958: DECL: 03/27/2019 TAGS: SNAR MOPS PGOV BRSUBJECT: THEFT OF SMALL PLANE ACTIVATES SHOOTDOWN
PROCEDURES
REF: A. 08 BRASILIA 1170 B. IIR 6 809 0120 09 C. 08 BRASILIA 1214 Classified By: DCM Lisa Kubiske. Reason 1.4 (d)
(...)
¶2. (C) COMMENT: The Brazilian Air Force followed exactly the procedures provided to Embassy Brasilia last year in going up the chain of command before authorizing a shootdown. Because of the seriousness of a potential threat to a large number of citizens in the mall, the Air Force took the additional step of consulting with the President. While no decision was made before the plane crashed, the procedure followed illustrates the extreme caution with which a possible shootdown is approached, the broad understanding of the shootdown policy among air traffic controllers and the fact that the procedures are executed as written. Mission believes that the March 12 incident provides an illustration of the effectiveness of Brazil's procedures to prevent inadvertent shootdowns that were the basis of the recommendation for
23 Alguns trechos do telegrama foram suprimidos nesta parte do projeto. A íntegra do documento encontra-se no Anexo 2 deste trabalho.
13
Presidential certification of Brazil in ref c. The fact that the procedures were correctly followed on March 12 demonstrates that they remain well known to pilots, controllers and decision makers. Along with the absence of any indication that conditions have changed with regard to shootdowns, this incident provides a strong case for recertification later this year.
(...)
O conteúdo deste telegrama pode ser traduzido da seguinte forma24:
“A Força Aérea Brasileira seguiu exatamente os procedimentos
previstos a Embaixada de Brasília no ano passado em subir na
cadeia de comando antes de autorizar uma derrubada (da
aeronave). Devido à gravidade de uma ameaça potencial para
um grande número de cidadãos no shopping, a Força Aérea
levou a etapa adicional de consulta com o Presidente. Enquanto
nenhuma decisão foi tomada antes do avião cair, o procedimento
seguido ilustra o cuidado extremo com que uma eventual
derrubada é abordada, o entendimento amplo da política de
derrubada entre os controladores de tráfego aéreo e ao fato de
que os procedimentos são executados como está escrito.
Missão acredita que o incidente de 12 de março fornece uma
ilustração da eficácia dos procedimentos do Brasil para evitar
derrubadas inadvertidas, que foram a base da recomendação
presidencial do Brasil em ref c. O fato de que os procedimentos
foram seguidos corretamente em 12 de março, mostra que eles
continuam conhecendo bem os pilotos, controladores e
tomadores de decisão. Junto com a ausência de qualquer
indicação de que as condições mudaram em relação à
derrubadas, este incidente fornece um forte argumento para um
nova certificação ainda este ano.”
24 Tradução livre.
14
Nota-se, portanto, que nos quatro vazamentos de 2010, o WikiLeaks
publicou integralmente os documentos recebidos, permitindo quando
necessário, o download do material para qualquer internauta, não havendo
custo nenhum para isso. O site funciona, então, como um banco de dados
online de informações confidenciais.
Na seção About, o WikiLeaks afirma ter criado um novo modelo de
jornalismo, com estrutura de produção e publicação diferente do padrão
comercial, que busca o lucro e a competitividade:
WikiLeaks apresentou um novo modelo de jornalismo. Porque nós não somos
motivados por um lucro, nós trabalhamos em cooperação com outras editoras e
organizações de mídia ao redor do globo, em vez de seguir o modelo
tradicional de competir com outras mídias. Nós não acumulamos as nossas
informações, fazemos os documentos originais disponíveis com as nossas
notícias. Os leitores podem verificar, por eles mesmos, a veracidade daquilo
que temos relatado. Como uma agência de notícias, o WikiLeaks noticia fatos
que muitas vezes são relatados por outros meios de comunicação. Nós
incentivamos isso. Acreditamos que a mídia mundial deve trabalhar o mais
junto possível para trazer notícias pra um amplo público internacional.25
Em entrevista à revista New Yorker26, Julian Assange, um dos
fundadores do site, classifica esse novo padrão criado pelo site de “jornalismo
científico”:
Quero estabelecer um novo padrão: ‘jornalismo científico’. Se você publicar um
artigo sobre o DNA, é exigido, por todas os bons veículos de biologia, que você
envie os dados que embasaram sua pesquisa - a ideia é que as pessoas vão
replicá-los, checá-los, verificá-los. Então, isso é algo que precisa ser feito para o
jornalismo também. Há um desequilíbrio de poder imediato, em que os leitores
são incapazes de verificar a veracidade sobre o que eles estão sendo
informados, e que leva ao abuso.27
25 O trecho foi retirado do Anexo 1 deste trabalho.
26 “No secrets – Julian Assange´s mission for total tranparency” de 07/07/2010. Disponível em http//www.newyorker.com/reporting/2010/06/07/100607fa_fact_khatchadourian?currentPage=all#ixzz0pWdlAepe. Acesso em 5/11/2010.
15
27 Tradução livre para: “I want to set up a new standard: ‘scientific journalism’. If you publish a paper on DNA, you are required, by all the good biological journals, to submit the data that has informed your research – the ideia being that people will replicate it, check it, verify it. So this is something that needs to be done for journalism as well. There is an immediate power imbalance, in that readers are unable to verify what they are beingtold, and that leads to abuse”