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    Boletim Contexto n. 34

    Terceira onda e terapia analtico-comportamental | Luc Vandenberghe 33

    Terceira onda e terapia analtico-comportamental: Um casamento acertado

    ou companheiros de cama estranhos?Luc Vandenberghe1

    1 Doutor em Psicologia pela Universit de lEtat Lige (BEL), Professor Adjunto da PUC de Gois.

    H alguns meses, recebi um convite para escre-ver sobre a relao entre a terapia analtico-com-portamental e a chamada terceira onda. Aceitei e agradeo pelo privilgio.

    Minha perspectiva de um terapeuta com-portamental que chegou em 1994 ao Brasil, onde uma verso behaviorista radical da tera-pia comportamental j estava bem solidifica-da. Assistindo pela primeira vez s palestras de Roberto Banaco, Hlio Guilhardi, Maly Delitti e de outros terapeutas comportamentais, logo detectei um parentesco com alguns tratamentos norte-americanos com as quais eu tinha traba-lhado no passado. Mais especificamente, pensei na FAP e no tratamento que poca ainda pre-ferimos chamar de distanciamento compreensi-vo ou terapia contextual, mas que ia se tornar conhecido pelo acrnimo de ACT.

    O parentesco consistia em uma leitura pouco convencional da anlise do comportamento e do behaviorismo radical. Tanto os brasileiros acima mencionados quanto os criadores da FAP e do distanciamento compreensivo trouxeram as an-lises Skinnerianas de sentimentos, cultura e com-portamento verbal como subsdios para a atua-o clnica. Essa leitura atestava, na poca, um pouco de ousadia. Por que ousadia? Porque, em outros ambientes, a anlise do comportamento no vista como uma teoria que pode sustentar uma prtica clnica.

    Convencionalmente, Skinner tem sido con-siderado referncia num assunto notvel, a sa-ber, as respostas simples de organismos numa situao altamente controlada como a cmara de condicionamento. A aplicao clnica dessa anlise do comportamento consistiria, ento,

    na programao de contingncias padronizadas em instituies fechadas ou em outras situaes onde os esquemas de reforamento pudessem ser controlados.

    Entretanto, os clnicos no tinham essa leitura de Skinner. Os criadores da FAP e do distancia-mento compreensivo interessaram-se na anlise do comportamento de eventos encobertos e de relaes sociais. Eles exploraram as implicaes do behaviorismo radical para a psicoterapia, isto , o encontro de um terapeuta com outra pessoa para falar sobre os sentimentos e relacionamen-tos do segundo isso tudo com a inteno de ajudar, esse ltimo, com alguns de seus proble-mas pessoais.

    Os terapeutas comportamentais brasileiros acima referidos tambm estudaram Skinner por esse motivo pouco convencional. No seria en-to uma coincidncia fenomenal? Um grupo de terapeutas nos Estados Unidos e outro no Brasil estavam construindo, de maneira independente, uma forma de tratamento psicolgico diferente nas suas opes clnicas e distinta do que est-vamos acostumados.

    Do ponto de vista behaviorista radical, a re-flexo aprofundada sobre sentimentos, cultura e comportamento verbal permitiu algumas pr-ticas clnicas at ento raramente associadas anlise do comportamento. Por exemplo: o trabalho teraputico com relatos de sonhos, o relacionamento terapeuta-cliente, a anlise do efeito da sesso sobre a pessoa do terapeuta

    Do ponto de vista behaviorista radical, a reflexo aprofundada sobre

    sentimentos, cultura e comportamento verbal permitiu algumas prticas clnicas

    at ento raramente associadas anlise do comportamento.

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    e a relevncia desse efeito para a terapia. Tudo isso est longe do tecnicismo frio da qual a mo-dificao do comportamento j foi acusada. No Brasil, essas novas prticas evoluam para estilos clnicos que conhecemos hoje como a terapia analtico-comportamental e a terapia por contin-gncias de reforamento. Durante a dcada de 1980, nos Estados Unidos, um trabalho muito similar deu incio ao que chamamos agora de terceira onda.

    Ainda durante a dcada de 1990, soube que a FAP e a terapia contextual j estavam presen-tes e sendo usadas no Brasil. Salvo engano, fo-ram trabalhos de Maria Zilah Brando e Fatima Conte, na ABPMC, que me alertaram para o fato. Assim, parecia-me que as terapias brasileiras e as norte-americanas, pela similaridade acima comentada, podiam formar um casal perfeito. O anseio de oferecer uma forma de tratamento comportamental adequado s necessidades de clientes ambulatoriais, assim como a opo te-rica pelo behaviorismo radical, parecia facilitar a convivncia das abordagens e talvez tambm promover a comunicao entre elas. A questo que me foi posta agora, uma dcada e meia de-pois, sugere que o relacionamento entre ambas no to simples e bvio como me parecia. Por isso, abordarei as diferenas e as similaridades entre as duas de uma maneira mais objetiva. Para facilitar essa tarefa, consideraremos primei-ro o que diferencia os dois movimentos terapu-ticos das outras terapias comportamentais. Para isso, realizarei um pequeno passeio pela histria e pela questo filosfica do externalismo, ineren-te ao behaviorismo radical.

    Superando o internalismo e o tecnicismoPrimeiro, necessrio esclarecer que o termo terceira onda deriva de uma histria que descre-ve uma cronologia de eventos que ocorreram no cenrio internacional (sobretudo norte-ame-ricano e europeu), do qual a terapia analtico--comportamental, como a conhecemos hoje, no participou. O termo terapia analtico-comporta-mental no se refere a uma cronologia, mas a uma viso clnica baseada no behaviorismo radi-cal e enraizada num espao geogrfico (ou me-lhor, cultural), a saber, o Brasil. Estamos, ento, comparando conceitos de diferentes ordens: um conceito que refere a uma histria, outro que re-fere a uma cultura.

    No cenrio internacional, a terapia comporta-mental, uma vez que se tornou um movimento amplo, conheceu trs ondas histricas. A primei-ra surgiu bem no meio do sculo XX. Nesse mo-mento especfico, alguns autores buscaram inspi-rao no paradigma pavloviano, como tambm nas publicaes de Mary Cover Jones e de ou-tros antigos clnicos behavioristas. Hans Jurgen Eysenck (a no ser confundido com o psiclogo cognitivo Michael Eysenck, mais conhecido no Brasil) era um dos lderes intelectuais do movi-mento. Joseph Wolpe era outro lder. A partir da dcada de 1950, H. J. Eysenck publicou um impressionante volume de trabalhos tericos e empricos acerca da terapia comportamental. At hoje, considera-se essa produo um fator determinante no estabelecimento da terapia comportamental como tratamento psicolgico (Buchanan, 2010).

    Vale ressaltar uma distino entre os analistas do comportamento, que trouxeram suas aplica-es para grupos de treino de pais, escolas, hos-pitais e outros contextos de significncia social, e os terapeutas comportamentais que tratavam transtornos de ansiedade (ditos neurticos) no consultrio ambulatorial. Os analistas do com-portamento eram defensores da viso externa-lista Skinneriana, mas raramente trabalhavam no consultrio. Os terapeutas comportamentais no consultrio no aderiram ao behaviorismo radi-cal. Trabalhavam com diversos tipos de behavio-rismo mediacional. Tratava-se exatamente do tipo de teoria internalista que Skinner combateu to veemente durante toda a sua carreira.

    Abordavam-se problemas neurticos com tcnicas padronizadas e uma viso internalista. A pessoa com agorafobia esquivava ou fugia de certos ambientes porque tinha ansiedade. A an-siedade (i.e., um conjunto de respostas emocio-nais e fisiolgicas internas) era a causa do pro-blema (Eysenck, 1957). O tratamento consistia em eliminar a ansiedade por procedimentos de inibio recproca (Wolpe, 1954) ou por extino pavloviana (Eysenck & Rachman, 1965). Aps eli-minar os processos patolgicos subjacentes, o comportamento agorafbico desaparecia.

    fcil notar que tal modelo irreconcilivel com a anlise do comportamento. De acor-do com Skinner, o problema a ser tratado est nas contingncias, isto , na interao com o ambiente. Os analistas do comportamento as-sumem que a pessoa com agorafobia esquiva

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    de espaos abertos (e sente ansiedade) por cau-sa das contingncias. A ansiedade no a causa do comportamento, mas um efeito colateral das contingncias que determinam o comportamen-to. O tratamento consiste ento em mudar a ma-neira como a pessoa interage com seu ambiente.

    Por causa da segregao entre os analistas do comportamento (externalistas) nas instituies e os terapeutas comportamentais (internalistas) nos seus consultrios, a crtica externalista no chegou a influenciar muito as prticas clnicas no consultrio. Ainda na dcada de 1980, Eysenck (1987) afirmou que o modelo operante (da an-lise do comportamento) tinha pouca relevncia para os transtornos de ansiedade. No havia, ento, trocas entre o campo internalista e o ex-ternalista? Havia, de fato.

    No auge da primeira onda, os terapeutas com-portamentais acolheram contribuies tcnicas da anlise do comportamento, mesmo sem tor-narem-se behavioristas radicais. Autores como Wolpe e H. J. Eysenck mostraram interesse por qualquer contribuio cientificamente fundada. E, do outro lado, alguns Skinnerianos tambm buscaram aliar-se com a terapia comportamen-tal clssica. Antes de fundar sua prpria revista (i.e., o JABA), analistas aplicados do comporta-mento encontraram veculos de publicao nas revistas do campo pavloviano. Contudo, nunca se sentiam plenamente vontade nessa com-panhia. Como exemplo, Wolf (1993) descreve o incmodo que analistas do comportamento sen-tiam ao precisar publicar numa revista dominada por tericos como H. J. Eysenck, que no tinham compromisso com o behaviorismo Skinneriano.

    Nos Estados Unidos, a aplicao plena de uma viso externalista na