XXXI ENCONTRO DA APHES · 3 as falhas do consumo nacional e colonial; segundo, o peso que a...

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1 XXXI ENCONTRO DA APHES – Coimbra Faculdade de Economia, 18 19 Novembro 2011 Territorialidade marítima no contexto da exploração dos recursos marinhos: a questão das pescarias 18301890 (Portugal/Espanha) Inês Amorim (UP/FL, DHEPI, CITCEM) Resumo: A nossa proposta será a de analisar quer os quadros institucionais (portugueses e espanhóis – na Galiza e na Andaluzia) quer os conflitos gerados, a sua natureza e alcance. As fontes e a metodologia adoptadas situamse na análise dos sucessivos “Livro Branco das Pescas”, de 1878, 1864 e 1886, todos impressos e divulgados, que inscrevem documentação produzida por várias instâncias locais, centrais, nacionais e espanholas. Cruzados com documentação parlamentar e ainda registos de preços de alguns produtos que avançam no mercado, poderão dar algumas explicações conjunturais. Assim, procurase reunir muito mais do que a informação institucional (quem tutela o quê). Procurase atingir a visão ambiental pressentida nos discursos, pelos diferentes participantes na arena dos poderes sobre o mar, ou seja a evolução das alterações de espaços de pesca e dos respectivos recursos (natureza das espécies, avaliação de capturas, efeitos antropogénicos e ambientais, no que se infere dos avanços técnicos as reacções dos homens do mar). Supõese que as possíveis incompreensões entre mundo ciência, interlocutoras neste processo, e mundo pesca, estarão muito mais condicionadas pelos contextos de mercados (relação entre preços dos principais pescados das águas costeiras sardinha, pescada e a importação de bacalhau, esse “pão do mar”) o que se procurará, pelo menos questionar… Palavraschave: mar, recursos marinhos, território, fronteira I – Introdução: um título programático: território/apropriação, um percurso de abordagem A proposta de abordagem situase na ideia de território e tal pressupõe apropriação. Situandonos no mar e concretamente na área dos recursos marinhos piscatórios, a primeira clareza prévia a enunciar será a de que nos debatemos com um quadro de fundo: o da natureza dos recursos, dependentes da geomorfologia (características da costa e respectiva plataforma continental), móveis e sazonais, em que a sua disponibilidade pode ser afectada por um conjunto de factores. O título acentua e privilegia, ainda, várias escalas de territorialização: numa primeira escala, vista “de cima”, tratase de uma construção política do espaço, do território marítimo nacional, versus internacional, que exigiriam negociação;

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XXXI ENCONTRO DA APHES – 

Coimbra ‐ Faculdade de Economia, 18 ‐19 Novembro 2011 

Territorialidade marítima no contexto da exploração dos recursos marinhos: a questão das 

pescarias ‐1830‐1890 (Portugal/Espanha) 

 

Inês Amorim (UP/FL, DHEPI, CITCEM) 

 

Resumo: A nossa proposta será a de analisar quer os quadros institucionais (portugueses e espanhóis – na Galiza e na Andaluzia) quer os  conflitos gerados, a  sua natureza e alcance. As  fontes e a metodologia adoptadas  situam‐se  na  análise  dos  sucessivos  “Livro  Branco  das  Pescas”,  de  1878,  1864  e  1886,  todos impressos  e  divulgados,  que  inscrevem  documentação  produzida  por  várias  instâncias  locais,  centrais, nacionais  e  espanholas.  Cruzados  com  documentação  parlamentar  e  ainda  registos  de  preços  de  alguns produtos que avançam no mercado, poderão dar algumas explicações conjunturais. 

Assim, procura‐se reunir muito mais do que a informação institucional (quem tutela o quê). Procura‐se atingir a visão ambiental pressentida nos discursos, pelos diferentes participantes na arena dos poderes sobre o mar,  ou  seja  a  evolução  das  alterações  de  espaços  de  pesca  e  dos  respectivos  recursos  (natureza  das espécies, avaliação de capturas, efeitos antropogénicos e ambientais, no que se infere dos avanços técnicos as reacções dos homens do mar). Supõe‐se que as possíveis incompreensões entre mundo ciência, interlocutoras neste processo, e mundo pesca, estarão muito mais condicionadas pelos contextos de mercados (relação entre preços dos principais pescados das águas costeiras ‐ sardinha, pescada e a importação de bacalhau, esse “pão do mar”) o que se procurará, pelo menos questionar… 

Palavras‐chave: mar, recursos marinhos, território, fronteira 

  

I –  Introdução: um  título programático:  território/apropriação, um percurso de 

abordagem 

 

A proposta de abordagem situa‐se na ideia de território e tal pressupõe apropriação. 

Situando‐nos no mar e concretamente na área dos recursos marinhos piscatórios, a primeira 

clareza  prévia  a  enunciar  será  a  de  que  nos  debatemos  com  um  quadro  de  fundo:  o  da 

natureza dos recursos, dependentes da geomorfologia (características da costa e respectiva 

plataforma continental), móveis e sazonais, em que a sua disponibilidade pode ser afectada 

por um conjunto de factores. 

O título acentua e privilegia, ainda, várias escalas de territorialização: 

‐    numa  primeira  escala,  vista  “de  cima”,  trata‐se  de  uma  construção  política  do 

espaço, do território marítimo nacional, versus internacional, que exigiriam negociação; 

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‐  numa  segunda,  será  indissociável,  incontornável,  o  sentido  de  apropriação 

territorial elaborado pelos pescadores, porque não há peixe sem pescador; 

 

No contexto temporal em que nos situamos, 1830‐1890, é  inerente esse sentido de 

“institucionalização”  das  pescas,  do  surgimento  de  quadros  administrativos  criados  para 

melhor administrar os recursos em geral, e,  igualmente, de espaços de fronteira com o paí 

vizinho, Espanha (a norte com a Galiza, a sul com a Andaluzia). Entenda‐se, porém, que para 

os  que  viviam  tais  fronteiras  poderiam  não  ter  sentido,  porque,  diz‐nos  a  investigação 

realizada para períodos anteriores, essa demarcação não tinha sentido real, por duas razões: 

porque  sempre  se  pescou  dos  dois  lados  das  fronteiras1,  e  porque,  parece‐nos,  os 

pescadores estabeleciam, eles próprios, espaços de territorialização, pontos de apropriação 

de pescado, “mares” a quem dá nomes e reconhece  “territorializa‐os”, são seus2.   

A  questão  das  pescarias,  que  colocamos  entre  1830  e  1890,  prende‐se  com  três 

aspectos  contextuais:  o  de  um  enraizamento  das  pescas  na  economia  portuguesa  e  das 

intervenções  centrais  associadas  a  um  discurso  reformador  da  pesca;  o  da  crença  numa 

intervenção  desamortizadora  despoletada  pelas  reformas  liberais  de  1830  condutora  de 

prosperidade  económica  e  o  fim  dos  obstáculos  a  um  acesso  igualitário  aos  recursos;  e, 

finalmente, da emergência de um novo quadro de apropriação, sob a intervenção do Estado. 

Será  neste  último  processo  que  se  debate  a  questão  da  apropriação  das  pescas  num 

contexto internacional e da discussão acerca do acesso aos recursos. 

 

 

II – Um quadro contextual de institucionalização das pescas 

 

A questão da exploração eficaz (entenda‐se de resposta às necessidades de procura) 

recua  à  segunda  metade  do  século  XVIII,  altura  em  que  um  défice  de  abastecimento 

evidenciou dois aspectos: primeiro, a  incapacidade das pescas portuguesas em colmatarem 

1 Caminha, Romero 2 À marcação de espaços de  territorialidade, de maior ou menor extensão e alcance conforme a espécie e a técnica empregue, os pescadores  chamam  “os mares”. As  “balizas” assinalam os  locais específicos da pesca detectada  e  em  operação Vd. Graça, A.  Santos  – O  Poveiro,  Lisboa, Dom Quixote  [1932],  1992,  cap.  III,  as marcas, balizas e divisas; cap.X, Os mares. 

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as  falhas do consumo nacional e colonial;  segundo, o peso que a  importação de bacalhau 

salgado  representava  para  alimentar  as  receitas  fiscais  e  a  interrupção  das  descargas 

acentuar uma regular política de resposta ao mercado. Tais condicionalismos irão orientar a 

acção futura do poder central. 

 

1. Intervenções estatais no quadro de um discurso reformador da pesca 

Compreende‐se que a Coroa encetasse uma política de  regulamentação do  sector, 

bem  visível  na  fundação  da  Companhia  Geral  das  Reais  Pescarias  do  Reino  do  Algarve 

(15/1/1773)3,  que  serviu  como  instrumento  de  actuação  política  e  económica4.  Os 

resultados,  contudo,  não  foram  os  esperados.  O  controlo  régio,  ao  procurar  fixar  os 

pescadores na costa, em particular na fronteira algarvia, provocou a fuga de pescadores para 

o  sul  de  Espanha,  a  Andaluzia,  agravada  pela  guerra  comercial  e  fiscal5,  com  laivos  de 

3A  política  de  pescas  Pombalina,  na  Província  do Algarve,  é  relativamente  conhecida  (o  financiamento  das frotas, a proibição de saída de pescadores do Reino e de venda de barcos a estrangeiros). A partir do séc.XVIII verificou‐se um desenvolvimento da parte oriental do Algarve bem articulada  com a  costa  sul e  sudeste de Espanha  fugindo à  fiscalização régia  (especialmente Olhão, Tavira e Monte Gordo). A criação de Vila Real de S.António, até então ponto de apoio ao reino vizinho, zona de contrabando, tornou‐se a  forma de chamar à Coroa  o movimento  comercial  de  pescado  fresco  ou  salgado  para  a  Andaluzia.  A  sardinha  era  o  grande manancial a pescar, procurada para satisfazer o mercado do norte de Portugal, numa altura que o tradicional atum escasseava. Mas mais do que a pesca, o que estava em causa era o negócio da salga, por prensagem, método  catalão  que  invadiu  vários  pontos  da  costa  portuguesa  (Ovar  e  Aveiro,  Porto  e  Póvoa  de  Varzim) (Amorim, Inês – “Trabalho e tecnologia das pescas: transferência de modelos entre Espanha e Portugal…”, o.c., p. 152). Quando da renovação da Companhia, em 4/9/1790, ou ainda em 3/7/1815, alargaram‐se os objectivos da pesca, desde os cetáceos, até ao atum, corvina, especialmente corvina no Guadiana e toda a mais “pesca de rede, linha ou anzol própria para salgar”. 4  Perfilam‐se  por  um  certo  padrão  organizativo.  Surgiam  fruto  de  um  acto  soberano  que  legislativamente estabelecia  um  contrato  através  do  qual  as  Companhias  recebiam  certas  prerrogativas  e  assumiam  certas obrigações.  Eram  sociedades  abertas  ao  público  em  geral,  acolhendo  quaisquer  accionistas independentemente  da  origem  de  cada  um.  Configuravam‐se  como  sociedades  de  capitais,  em  que estatutariamente se encontrava fixado o fundo social, o direito de voto, dependente da soma investida, assim como  o  regime  de  transmissão  das  acções.  A  regra  da  impessoalidade  marcante  confirma‐se  através  do carácter negociável das acções, traço distintivo fundamental das restantes sociedades de capitais existentes no séc. XVIII. Em todas as companhias régias o privilégio da liberdade mercantil, a existir, procurava‐se que fosse unicamente  em  favor  dos  nacionais  (Marcos,  Rui  Manuel  de  Figueiredo  –  As  companhias  Pombalinas. Contributo para a História das sociedades por acções em Portugal, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 255 e 362). 5  A  resposta  às  isenções  sobre  impostos  e  organização  das  pescarias  no  Algarve,  de  Espanha  proibe‐se  a entrada de sardinha de Portugal, só cessando esra proibição em 1778. Em 23 de Dezembro de 1782 Carlos III proibiu a entrada de peixe  fresco assim como de  salgado. Novo golpe para Vila Real de S.António. O alvará régio  de  18  de  Junho  de  1787,  isentando  de  direitos  o  atum  salgado  e mais  peixe  salgado,  no  sentido  de favorecer  a  actividade  de  conserva,  era  a  resposta  aos  desafios  de  Espanha  (Lobo,  Constantino  Lacerda  ‐ “Memória sobre a decadência da pescaria de Monte Gordo”,  in Memórias Económicas da Academia Real das Ciências, 1789‐1815, v. 3, Lisboa, Banco de Portugal, 1991, pp. 251‐268 

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espionagem6,  entre  Portugal  e  a  Espanha,  pelo  controlo  das  rotas  da  sardinha  a  fim  de 

abastecerem os centros de salga dispersos pelas costas da Galiza e da Andaluzia. 

Esta  política  falhada,  centrada  no  Algarve,  criou,  nos  discursos  dos  academistas  da 

Ilustração,  uma  ideia  de  decadência  das  pescarias  que  não  corresponde,  totalmente,  à 

realidade.  Uma  avaliação  da  evolução  e  distribuição  dos  pescadores  ao  longo  da  costa 

portuguesa,  entre  1790  e  1821,  confirma  que  na  costa  Algarvia  houve  uma  perda  de 

efectivos mas um crescimento noutros pontos da costa, em particular a norte de Lisboa (e 

no Noroeste de Portugal). De qualquer forma, os  insucessos da organização da Companhia 

trouxeram evidentes reflexos na fundamentação do discurso liberal. 

Os discursos projectados na Academia Real das Ciências de Lisboa, nos finais do século 

XVIII,  diagnosticaram  dois  factores  estruturais  como  responsáveis  pela  “decadência  das 

pescarias”: o peso do senhorialismo e o proteccionismo e privilégio régio, fundamentando‐

se nos seguintes pressupostos:  

‐  primeiro,  os  recursos  piscatórios  perdiam‐se  nas  mãos  dos  rendeiros  e 

representantes dos senhorios, e os pescadores sofriam as “vexações feitas pelos oficiais de 

justiça,  rendeiros e  seus  colhedores”7, dado que, o  rei, por expressa doação, delegara os 

direitos  de  exploração  piscatória  a  senhorios  laicos  ou  religiosos  que,  em  resultado  de 

património adquirido, faziam da pesca uma espécie de reserva na sua área de jurisdição ou 

propriedade. O mar,  rios  e  lagoas  não  seriam mais  do  que  uma  extensão  da  terra  e  os 

direitos sobre os seus rendimentos passíveis de arrendamento, além de que, qualquer dos 

titulares da propriedade útil podia, por  sua  vez,  arrendar, doar,  ceder ou  alienar os  seus 

direitos a terceiros, contribuindo para um confuso panorama de sobreposição de direitos. As 

consequências  desta  política  apontavam  para  a  criação,  entre  a  coroa  e  os  verdadeiros 

agentes  de  produção,  os  pescadores,  de  vários  níveis  de  exploração  dos  recursos,  e  de 

agentes de arrecadação da produção pesqueira que os esmagavam com impostos8.  

6 Este sigilo está perfeitamente documentado em correspondência publicada por D.  José Cornide, conhecido ilustrado  galego,  responsável  pelas  questões  da  pesca  na Galiza,  que  ao  obter  informações  através  de  um anónimo,  a  partir  da  cidade  do  Porto,  confirmava  as  discretas  operações  de  apetrechamento  de  barcos  e recrutamento de pescadores em direcção ao Algarve (Cornide, D. Jose ‐ Memoria sobre la pesca de sardina en las costas de Galicia, Madrid , [1774] 1997, p. 153). 7 Id. ‐  Memória sobre a decadência das pescarias em Portugal…, o.c., p. 275 8 Classificação compulsada em Pinho, Cândido de ‐ As Águas no Código Civil, Coimbra, Almedina, 1985, p.10‐11. 

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‐  segundo,  as  características monopolistas  e  de  privilégio,  da  Companhia  Real  das 

Pescarias  do  Algarve  e  de  outros  contratos  régios,  eram  impedimentos  a  um  livre 

funcionamento do mercado e dos sectores produtivos em geral9.  

Como  se  depreende,  estes  protestos  inseriam‐se  na  crescente  afirmação  do 

individualismo,  ao  defenderem  a  possibilidade  de  os  agentes  económicos  individuais  (ou 

actuando  como  grupo)  se  libertarem,  quer  da  tutela moral  e  religiosa  da  Igreja  que  lhes 

fixava normas de conduta, quer da tutela política do Estado, cuja propensão intervencionista 

impedia que a ordem natural das coisas por si própria funcionasse. O  julgamento acusador 

dos  academistas  e  os  apelos  liberais  que  prepararam  a  revolução  de  1820,  insistiam  nas 

virtuais capacidades da natureza humana  (materializadas na actividade  racional do  sujeito 

económico  individual),  que  teriam  como  principal  resultado  a  criação  autónoma  de  um 

objecto económico. 

O  resultado  desta  libertação  de  interferências  religiosas, morais  e  políticas10  teria 

como  resultado a  reanimação das actividades produtivas e estímulo ao mercado nacional. 

Nesta  sequência  lógica,  acreditavam  os  deputados  vintistas  ao  abolirem‐se  os  encargos 

fiscais  sobre  a  circulação  interna,  conferindo maior margem de  liberdade  aos  agentes de 

comercialização11, projecto de âmbito geral em que o sector das pescas se insere12. 

Em essência defendia‐se que ao Estado competia assegurar os direitos de  fruição e 

de uso. Este juízo remetia para o combate a uma sociedade anterior, na qual o controlo do 

meio ambiente pelos homens passava por uma multiplicidade de direitos atribuídos a uma 

9 Cf. Cardoso,  José  Luís  ‐ O pensamento económico em Portugal nos  fins do  século XVIII, 1780‐1808,  Lisboa, Estampa,  1989,  p.81‐82.  Em  consequência  deste  entendimento  geral,  a  prática  de  contratos,  por  exemplo, acabou por ser extinta em 1801 depois da representação de D. Rodrigo de Souza Coutinho ao príncipe regente em 1798, que dava por findos os “contratos do sal e da pescaria da baleia” e o sistema de contratos de pesca em geral  (vd. Coutinho, D. Rodrigo de Souza.  [1783‐1811]  ‐ Textos políticos, económicos e  financeiros, 1783‐1811, Lisboa, Banco de Portugal, t. 2, 1993, p. 68 e 247). 10 Vd. Cardoso,  José Luís – História do pensamento económico português,  temas e problemas, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, p. 55. 11 Cf. Cardoso,  José  Luís –  “A  legislação económica do vintismo: economia política e política económica nas Cortes Constituintes”, Análise Social, Lisboa, v. 112/113, 1991, p. 477 12 Alvará de 15 de Junho de 1825 prorrogando por mais 10 anos a isenção de direitos do peixe seco e salgado que se tiver pescado nos Reinos de Portugal e Algarves e  ilhas adjacentes, e referindo‐se aos alvarás de 3 de Junho  de  1815  de  18  de  Junho  de  1787,  bem  como  do  decreto  de  3  de março  de  1797  sobre  o mesmo assunto”,  in  Collecção  de  leis  sobre  a  pesca  desde Março  de  1552  até  Janeiro  de  1891,  Lisboa,  Imprensa Nacional, 1891, p.74 

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multiplicidade de pessoas, sobre um ou vários objectos, entre os quais as águas marítimas e 

fluviais13. 

 

2º A intervenção “desamortizadora” da década de 30 do século XIX 

Foi com o governo liberal, instalado na ilha Terceira dos Açores, que surgiu um decreto 

profundamente  revolucionário  para  o  futuro  das  pescas:  o  de  1830  (6  de  Novembro). 

Representa um corte com o mundo senhorial, dado que libertou os pescadores dos quadros 

institucionais  privados  (confrarias,  irmandades  e  compromissos)  e  das  obrigações  de 

carácter  senhorial  ou  religioso  (dízimas,  gabelas,  caldeiradas,  etc.)14  .  Dos  24  artigos  do 

articulado o nº 19 sintetiza o seu conteúdo: 

‐ “Ficam abolidos de hoje em diante todos os privilégios que possam estar concedidos 

a alguma pessoa, corporação ou companhia para exercer ou mandar exercer qualquer ramo 

de pescaria, com a exclusão de todos os mais que o quisessem exercer. Fica portanto livre a 

todos os portugueses e pessoas legalmente domiciliadas em domínios de Portugal, pescar 

toda a sorte de peixe e com qualquer armação, rede ou arte, que não seja proibida pela lei 

geral; salgá‐lo, empilhá‐lo, secá‐lo ou derretê‐lo como mais lhe convier” 

Os novos moldes em que se consignava o acesso aos recursos marítimos apresentam‐

se  num  outro  artigo  (nº  22)  “é  permitido  a  todos  os  portugueses  e  pessoas  legalmente 

domiciliadas  em  Portugal  formar  sociedades  de  pescaria  para  exercerem  por  si  ou  por 

interpostas pessoas este ramo de indústria ou para salgarem ou secarem o pescado ou para 

extrair o azeite e outros produtos que do pescado se possa extrair”. Em consequência deste 

ponto a Companhia de Pesca do Algarve, não sendo extinta, seria uma entre outras mais que 

a iniciativa individual quisesse criar. 

Na sua essência, o que este decreto clarificava era a qualidade do possuidor, dado que 

se anulavam os direitos de muitos, quanto a uso e usufruto, em  favor do alargamento da 

13  Para  esta  concepção  contribuiu  a  constituição  de  23/9/1822,  a  carta  constitucional  de  29/4/1826,    da constituição de 4/4/1838 e da legislação de Mouzinho da Silveira, de 3 de Março, 2 e 3 de Dezembro de 1832 que conduziu á reforma e extinção dos forais. Vd. Brandão, Maria de Fátima; Rowland, Robert – “História da propriedade  e  comunidade  rural:  questão  de método”,  in O  século  XIX  em  Portugal,  Lisboa,  Presença/GIS, [1979], p. 179‐180 14 Para  compensar a perda destes direitos  senhoriais, as  corporações  civis e  religiosas  seriam  indemnizadas com uma apólice de juro real correspondente ao líquido rendimento médio dos últimos dez anos Cf. Collecção de leis... 1552 a 1891, p. 76 

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capacidade de disposição de um só, direito que apenas existia quando se garantisse o seu 

pleno  exercício  no  plano  supra‐individual.  E  essa  garantia  residia  na Nação,  que  é  quem 

institucionaliza a qualidade de proprietário e a garante perante terceiros. Daí que transitasse 

para  o  Estado  o  papel  de  legitimar  a  posse  ou  não  em  nome  do  bem  comum15, 

institucionalizando‐se,  logo  em  Fevereiro  do  ano  seguinte  ao  decreto,  que  “todos  os 

negócios  relativos  a  este  importante  ramo  de  indústria  fiquem  sendo  da  competência  da 

secretaria d’Estado dos negócios da marinha e Ultramar (25/2/1831)16. 

O  articulado  do  decreto  de  1830  apenas  obrigara  cada  barco, mediante  uma  taxa 

uniforme, a inscrever‐se junto dos representantes do Estado (um representante da Marinha 

ou das Alfândegas) ou dos concelhos municipais, ou ainda, desde Novembro de 1842, em 

definitivo,  dos  directores  das  alfândegas.  As  circunstâncias  impostas  por  estas  licenças 

permitiam  identificar os números dos barcos, nomes dos portos a que pertenciam, nomes 

dos  proprietários,  mestres  e  homens  das  companhas,  indicando‐se  os  seus  “sinais 

característicos  (cor  de  olhos,  cabelo,  pele,  barba,  altura,  idade).  Este  controlo  foi‐se 

assumindo como forma de a breve trecho se proceder a uma intervenção mais efectiva por 

parte do Estado.  

Inserimos, assim, a desamortização do mar num  fenómeno mais  lato de produção e 

aplicação de legislação que desmantelava corporações e instituições senhoriais, incorporava 

os seus bens e/ou assumia a sua gestão. 

 

3º A emergência de um novo quadro de apropriação ‐ a intervenção do Estado 

  

No contexto da reforma fiscal, em 1843, uma década depois do Estado chamar a si o 

monopólio dos poderes fiscais no território nacional17, foi lançado o imposto de 6% sobre os 

quinhões de pesca de cada pescador18, destinado, explicitamente, “ao pagamento de  juros 

15 Cf. Brandão, Maria de Fátima; Rowland, Robert – “História da propriedade e comunidade rural…”, o.c., p.184. 16 Cf. in Collecção de leis... 1552 a 1891, p. 81 17 Vd. Mata, Eugénia – “Sistemas fiscais e reformas fiscais”,  in As finanças públicas no Parlamento Português, Lisboa, Afrontamento/Assembleia da República, 2000, p. 92 18 Vd. legislação de 10/7/1843 e 30/12/1843. O imposto dos 6% correspondeu á substituição da isenção sobre barcos  de  pesca,  determinada  por  decreto  de  6/11/1830,  por  um  direito  proporcional  sobre  lucros  dos pescadores, de 6% sobre cada uma das partes ou quinhões que entre si repartirem  ficando  livres da décima industrial; mais  tarde  foi  diminuída  para  5%  como  informa  Silva,  Carlos  Augusto  de Magalhães  e,  Regalla, 

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de  dívida  externa”,  tal  como  acontecera  com  as  receitas  das  vendas  de  bens  imóveis  de 

mão‐morta.  Aqui invoca‐se o paralelismo das ocorrências.  

Às  competências  fiscais  antecipara‐se,  desde  1842,  deliberações  que  acolhiam  as 

iniciativas  individuais:  “qualquer  companhia  ou  emprehendedor,  seja  livre  de  estabelecer 

armações19 nos lugares demarcados, sendo respeitado o direito adquirido por quem primeiro 

tiver effectuado aquele estabelecimento” (portaria de 8/3/1842). Este direito de prioridade e 

demarcação  justificava‐se perante “incerteza dos  locais em que se devem  lanças as artes e 

pela falta de demarcação das distâncias que elas entre si devem guardar, bem como de se 

colocarem  as  mesmas  artes  em  sítios  que  não  só  causam  estorvos  à  pesca  mas  até 

afugentam a concorrência do peixe às armações”20.  

Doravante, da documentação compulsada emergem os “emprehendedores” que eram 

forçados  a  dirigir‐se  às  autarquias  locais,  aos  departamentos marítimos,  ao Ministério  da 

Marinha, ou mesmo às câmaras municipais, a demandarem o arbítrio da costa, a “tirar as 

suas sortes”21.  

A  natureza  destas  demarcações  não  é  clara, mas  não  poderia,  nunca  ser  uniforme, 

perante as características biológicas, dos  fundos e da costa, condicionado, certamente, os 

sistemas de concessão e as formas de organização de trabalho, pelo que se identificam: a) as 

concessões ligadas às armações, artes fixas, que exigiam a montagem de técnicas de cordas 

e ferros a maior ou menor fundura e a demarcação de fundos e distâncias entre artes22; b) as 

Francisco Augusto da Fonseca ‐ A organização dos serviços das pescas, Lisboa, Sociedade Geographica, 1888, p. 14. 19 Armação de pesca ‐ conjunto de redes armadas verticalmente com o auxílio de âncoras ou estacas utilizadas por  forma a barrarem o caminho aos cardumes e a conduzi‐los para um parque  fechado de onde o peixe é retirado.  Em  Portugal  usaram‐se  três  variantes:  duas  para  a  sardinha  (armações  redondas  e  armações  à valenciana, estas mais  robustas e de  introdução mais  tardia) e uma para o atum. As armações para o atum eram  exclusivas da  costa  algarvia  e  aproveitavam  as migrações deste peixe para o Mediterrâneo  (atum de direito) e deste para o Atlântico  (atum de revés). A última armação para o atum  foi armada em 1972 e nela entrou apenas um exemplar! (vd. Brito, Raquel Soeiro de – Portugal, perfil geográfico, Lisboa, Estampa, 1994, p. 197). 20 In Collecção de leis... 1552 a 1891…, o.c., p.87 21 Como acontece em Peniche, 15/9/1843, in Silva, A. A. Baldaque da ‐ Estado actual das pescas em Portugal, comprehendendo a pesca marítima, fluvial e lacustre em todo o continente do Reino, referido no anno de 1886, Lisboa, Imprensa Régia, 1891, p.447 22  Lançamento  de  armações  de  atum,  portarias  de  29/5/67  e  5/6/1867  (vd. A  organiza…,  p.  17),  em  Faro, proprietários e empresários das armações, assim definidos na documentação, queixam‐se de usurpações de concessões de pesca  junto do  intendente da marinha  (Portaria de 29/5/1867). O mesmo  com os de  Tavira (24/4/1872) e com os de Sesimbra (5/3/1873, in Collecção de leis... 1552 a 1891, 141, 152 e 153). 

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concessões de espaços para aquacultura em viveiros demarcados23 e c) o  reconhecimento 

de espaços de actuação de artes móveis ou de arrasto que exigiam delimitação de espaços 

de lançamento segundo escalas temporizadas24.  

Estas urgências de demarcação  explicam  a  institucionalização dos  serviços de pesca 

numa  Comissão  de  Pescarias,  em  187825,  visto  caber  unicamente  e  exclusivamente  ao 

governo a administração e regulamento do usufruto das águas da costa 26, na sequência da 

ideia de que ao Estado competia a salvaguarda das condições gerais de acesso e usufruto de 

serviços proporcionados em comum, em igualdade de circunstâncias27. 

Tal assunção parece ter duas consequências: a necessidade em conhecer os recursos e 

os  seus  limites  e  em  conjugar,  de  forma  negocial,  os  vários  parceiros.  Efectivamente, 

reconhecia‐se que os discursos  liberais da década de 60/70 do século XIX revelavam que a 

legislação  de  1830  não  conduzira  a  um  crescendo  das  pescas  na  resolução  de 

abastecimento28, nem criara um igual acesso à pesca. O lançamento do novo imposto de 6% 

23 especialmente desde a década de 60/70 do séc. XIX, empresários são aqueles que têm capital e capacidade para requerer concessões de pesca, tanto no mar, na pesca costeira e do largo, como em sectores a despontar, como seja o da aquacultura  (“providências policiais acerca da pesca das ostras”, 15/12/1868  in Collecção de leis... 1860 a 1894, 44). Designados por concessionários, alguns eram indivíduos ligados à investigação científica e/ou  à  administração  pública,  norteados  por  noções  de  desenvolvimento  dos  recursos,  copiando modelos externos9/9/68, contrato celebrado entre o governo e José Vicente Barbosa du Bocage (encarregado em 1878 de  ir  a  França  estudar  pescas marítimas  e  piscicultura),  para  aperfeiçoar  a  cultura  das  ostras,  tornando‐se concessionário, por 30 anos, das áreas entre o pontal de Cacilhas e Barja ou Alcochete (Collecção de leis... 1860 a 1894, 40 e 77); outros obtêm concessões na zona de Alcochete (10/11/1869), ou em Aveiro (21/3/1870), ou ainda de Lagos ao Guadiana (18/5/1870) (Collecção de leis... 1860 a 1894, 47, 49, 51). 24 Regulamento para as companhas de pesca na Torreira, de 5/11/1852, in Collecção de leis... 1552 a 1891. 25 com a aceleração da  institucionalização dos serviços de pescas,  foi criada uma Comissão de Pescarias  (em 2/8/1878), reorganizada em 14/8/1892 e depois em 1895, com a designação de Comissão Central de Pescarias (28/3/1895), que se tornou a interlocutora nos pedidos de concessões elaborados por armadores, empresários, patrões e proprietários, representados individualmente ou em forma de sociedades 26  Parecer  da  Comissão  de  Pescarias  acerca  do  estabelecimento  de  armações  fixas  destinadas  à  pesca  da sardinha na costa do Algarve (23/8/1884, in Collecção de leis... 1552 a 1891, 211 27 Vd. Cardoso,  José Luís – História do pensamento económico português,  temas e problemas, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, p.62‐63 28 As expectativas criadas não terão conduzido, na prática, a uma progressão e satisfação do sector. Pelo menos continua a mostra‐se deficitária a balança. Em 1868, ano em que principiam os mapas estatísticos, o valor do peixe importado asecndia a 1284 contos, nos quais o bacalhau figura por 1207 e o da exportação  foi apenas de 170  contos,  sendo o déficit de 1114  contos, que  se manterá, até 1880 à volta de 1155  contos, atingindo o mínimo em 1887, à volta de 540 contos, não pela diminuição das importações (aumentaram para 1750 contos), mas  pelo  aumento  das  exportações  até  atingirem  os  1210  contos  neste  mesmo  ano.  O  aumento  da importação,  contudo,  significa  que  pouco  terão  aumentado  as  quantidades  de  pescado  para  o  mercado nacional (cf. em Silva, Carlos Augusto de Magalhães e; Regalla, Francisco Augusto da Fonseca – A organização dos serviços de pesca…o.c., p. 15‐16) 

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em  1843  (veja‐se  atrás)  serviu  de  barómetro  do  processo  de  acessibilidade29.  Numa 

memória  enviada  à  Academia  das  Ciências,  em  1852,  defendia‐se,  frente  à  prática  de 

especulação  de  algumas  sociedades  de  particulares,  que  o  imposto  fosse  aplicado  na 

dotação  de  infra‐estruturas  piscatórias  (portos,  docas,  viveiros)  e  de  capitais  aos 

pescadores30, dado que à “autoridade pública” competia administrar os  interesses de uma 

classe,  que  “a  si  se  não  sabe  governar”31,  fomentando  a  fundação  de  uma  caixa 

económica”32,  a  fim  de  poderem  aceder  aos  capitais  necessários.  O  Estado  tornara‐se, 

potencialmente, em zelador da incapacidade de acesso, por falta de capitais, aos recursos da 

costa. 

Na  prática,  parece  que,  embora  o  estudo  sistemático  destas  acções  não  esteja 

concluído,  que  os  empresários  emergem  e  os  pescadores  perdem  capacidade  de 

apropriação, pelo menos num quadro de crescendo da  importância da pesca. Veja‐se pelo 

menos  um  indicador  das  tendências  que  se  estavam  a  operar,  na  costa  de  Setúbal, 

relativamente às armações de pesca concessionadas para a costa de Setúbal (desde o Cabo 

Espichel a Sines, em 1887). Os dados  indicam que das 41 concessões apenas 8 ou   19.5% 

tinham apenas uma armação montada e que 6 armadores possuíam 23 armações ou 57% 

dos lugares de pesca, chamando a si mais do que um local de pesca, concentrando recursos 

e, naturalmente meios técnicos e financeiros33.  

 

 

 

29 Os pareceres surgidos em meados do século XIX, 50 a 60 e na década de 80 deste mesmo século, coincidem com momentos  gravosos  de  subida  do  pão  e,  no  último  caso,  com  “a  extensão  aterradora  da  invasão  da filoxera, a paralisação do comércio dos vinhos, a quase extinção da indústria da engorda de gados, a deficiência do  crédito  agrícola…”(  Silva,  Carlos  Augusto  de Magalhães  e;  Regalla,  Francisco  Augusto  da  Fonseca.  ‐  A organização dos serviços das pescas, …o.c., p.3) 30  “Memória  sobre  as  pescarias  nas  costas  de  Portugal  do  barão  de  Vila  Cova,  de  1858”  in  Silva,  Joaquim Manuel Bragança Lino – Armações de pesca, v.II, dissertação de licenciatura em Geografia, Lisboa, 1966,  p.187‐210. 31 Vd. Soares, R. de Moraes – “As pescarias em Portugal”, in Archivo Rural, Lisboa, 1858, pp. 533 a 540 32 Cf. Freitas, José Joaquim Rodrigues de – “Inquérito Industrial do Porto III”,” Inquérito Industrial do Porto IV”, in Novas Páginas Avulsas, comp. Jorge Alves, Porto, Fundação Engenheiro António de Almeida, p. 245, 249 33 Silva, A.A. Baldaque da – Planta Hydrographica da enseada, barra e porto de Setúbal e relatório sobre a pesca matítima e fluvial n’esta localidade, Lisboa, 1887, p.10‐11. Idem – Relatório sobre a pesca marítima nas águas de Peniche, Berlenga, Estellas e Farilhões, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889, p.56‐61. 

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III – A apropriação das pescas num contexto internacional e da discussão 

acerca do acesso aos recursos 

 

A falência das expectativas do novo regime criado com o decreto de 1830 recoloca a 

questão da natureza do regime de propriedade. O acesso chocava com carácter aleatório da 

pesca,  a  variabilidade  dos  ecossistemas,  a  incessante  flexibilidade  de  adaptação  técnica, 

social, mesmo  cultural,  da  população  piscatória.  As  normas,  institucionalizadas,  geraram 

perturbações. A complexidade da gestão de unidades de  recursos aumentou, num quadro 

político‐social a atingir uma outra escala, visível através dos conflitos em torno de artes mais 

eficazes  que  os  espanhóis  introduziam  nas  costas  algarvias,  anteriores  ao  convénio 

provisório de reciprocidade da pesca entre Portugal e Espanha em 187834. Neste processo 

diagnosticam‐se duas posturas que nortearão o futuro da gestão das unidades de recursos 

pelo Estado em nome da salvaguarda dos direitos de propriedade: 

. por um lado a noção de soberania nacional das águas “as pescarias que se encontram 

nas  águas  de  uma  nação  não  pertencem,  de  certo,  a  esta  ou  aquela,  contudo  é  fora  de 

dúvida que são nacionais. Ora a pesca feita em águas de uma nação pelos súbditos de outra 

são um acto atentatório dos direitos de propriedade”;  

.  por  outro,  a  noção  de  restrição  de  direito  de  propriedade,  quando  se  perfilam  e 

enfrentam organizações e técnicas diferentes e cada vez mais eficazes – o galeão contra as 

anteriores xávegas ou tresmalhos: “as artes lançando as suas redes de terra, e alando‐as daí 

não empregam companhas positivamente fixas nem assoldadas, portanto toda a gente que 

vem  à praia puxar  as  redes, homens, mulheres  e  crianças  têm uma parte do produto da 

pesca; assim a pesca das artes chega, por assim dizer, a todos, enquanto que a do galeão só 

aproveita directamente aos armadores e à gente assoldada das suas tripulações, em que se 

34 Convénio de reciprocidade de pesca entre Portugal e Espanha em 14/7/1878,  in Collecção de  leis... 1552 a 1891, 162  

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não empregam mulheres nem crianças como nas artes; esta é a razão por que a gente miúda 

mais oposição lhe faz”35. 

 

1. a noção de soberania nacional das águas 

 

A noção de soberania passou, com toda a certeza, por uma clarificação das tutelas e 

de  ordenamento  da  costa  36,  assim  como  um  processo  de  organização  do  conhecimento 

científico  dos  recursos  piscatórios37.  Mas  foi  precisamente  a  criação  da  Comissão  de 

Pescarias em 187838, um mês após a celebração do convénio provisório de reciprocidade da 

pesca  entre  Portugal  e  Espanha39  que  parece  tornar‐se  a  face  visível  de  uma  sucessiva 

35 Cf. Livro Branco de 1879 – Questão das pescarias, 1879, p.68. 36  O  enquadramento  do  sector  oscilou  entre  a  dependência  das  Alfândegas  (portaria  de  31/1/1850,  que reforçou o decreto de 28/11/1842) e a das autoridades marítimas em Departamentos e Distritos marítimos (decreto de 22/10/1852 e portaria de 27/10/1863 que  revogou a portaria de 31/1/1850), dos governadores civis  e  concelhos  (como  aconteceu  com  a  criação  de  uma  comissão  directora  das  companhas  de  pesca  da Torreira,  na  costa  de  Aveiro,  nomeada  pelo  governador  civil  e  presidida  pelo  administrador  do  concelho 5/11/1852). A reorganização do Ministério da Marinha (decreto de 6/9/1859) concedeu, finalmente, às novas unidades  administrativas,  funções  mais  alargadas,  como  “a  polícia  dos  portos,  da  navegação  e  pescarias marítimas”. Contudo, na prática partilhavam  com os  governadores  civis e os ministros dos  concelhos  a  sua missão  de  fiscalização  (decreto  de  22/10/1852),  promulgada mesmo  no  código  civil  de  1867,  conduzindo frequentemente a  colisão ou ausência de poderes  (Silva, Carlos Augusto de Magalhães e, Regalla, Francisco Augusto da Fonseca  ‐ A organização dos serviços …, o.c., 23). A  incongruência  legislativa parece culminar no decreto  de  30/12/1868  que  incumbia  os  intendentes  da  marinha  da  superintendência  sobre  as  pescas marítimas mas que, no ano seguinte, pelo decreto de 28/10/1869, ao extinguir as intendências se esqueceu de mencionar a polícia das pescas entre as atribuições dos chefes dos departamentos marítimos. Só as exigências de  formulação  de  instruções mais  precisas  no  cumprimento  do  convénio  de  reciprocidade  de  pesca  entre Portugal e Espanha concedeu às capitanias e departamentos a aplicação de penas regulamentares (Silva, Carlos Augusto de Magalhães e, Regalla, Francisco Augusto da Fonseca ‐ A organização dos serviços …, o.c., p. 24). 37 Esta dinâmica  foi desenvolvida pelo zoologista  José Vicente Barbosa do Bocage  (1823‐1907), professor de Anatomia,  Fisiologia  comparada  e  Zoologia  na  Escola  Politécnica  de  Lisboa.  Este  nome  está  associado  ao Gabinete de História Natural e o Jardim Botânico da Ajuda que na década de 30 foram integrados no Museu da Academia  Real  das  Ciências  (27/8/1836). No  ano  seguinte,  fundada  a  escola  Politécnica  (11/1/1837),  onde ensinava, reivindicou a anexação do dito Museu, embora só em 1851 a cadeira de zoologia lhe fosse atribuída e o Mueseu apenas em 1858. Por volta da década de 60 a depressiva situação das pescas no Báltico e Mar do Norte conduziu à criação de uma comissão que colhesse  informações sobre as condições biológicas e  físicas que afectavam a fauna piscícola. A Comissão Kiel surgiu em 1870 (vd. Castro, Margarida – Fisheries science and oceanography:a historical perspective and the future, in “One Hundred years of Portuguese Oceanography, in the footsteps of King Carlos de Bragança”, Lisboa, Museu Bocage, 1997, p. 359). 38 A Comissão de Pescarias,  criada em 2/8/1878  (Collecção de  leis…1552 a 1891, 166),  foi  reorganizada em 14/8/1892 e depois em 1895, com a designação de Comissão Central de Pescarias (28/3/1895), Amorim, Inês ‐ A organização dos Serviços de pescas e da Aquacultura e as iniciativas de instruçãocientífico‐técnica (sécs. XII a inícios de XX), in “Mare Liberum” , 2001, p. 123‐164. 39 O  Convénio provisório  foi  precedido,  entre  outros  documentos,  pelo  tratado  de  limites  entre  Portugal  e Espanha,  em  29/9/1864,  aprovado  e  ratificado  em  27/3/1866,  que  irá  desembocar  no  de  14/7/1878  (in Collecção de leis…1552 a 1891, 162). 

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apropriação dos espaços de pesca, dum lado e do outro dos mares fronteiriços de Portugal e 

de Espanha. 

Tal Convénio,  surgiu, paralelamente, de uma política de organização  crescente dos 

serviços de pesca em Espanha. Desde  finais dos anos quarenta que pequenos sectores do 

frágil  capitalismo  espanhol  (proprietários,  rentistas,  armadores  e membros  de  profissões 

liberais) vinham apresentando ao Governo diferentes projectos de exploração industrial das 

pescarias  da  costa  noroeste  africana,  partindo  as  primeiras  propostas  de  empresários 

andaluzes de Cádis  (1847) e de Málaga  (1852‐1858). A política de expansão das pescarias 

espanholas  foi  apoiada  pelos  acordos  de  pesca  firmados  com Marrocos  (1860,  1861)  e 

Portugal  (1864). Para assessorar  tudo o que  se  referia ao  sector pesqueiro,  criara‐se uma 

junta  consultiva  especializada  (27/5/1863)  que  se  concretizou  dois  anos  depois  com  a 

fundação de uma Comissão Permanente de Pesca ( 6/4/l865)40.  

O articulado do Convénio, em breves traços, permitia a reciprocidade de pesca entre 

os  dois  países41,  com  excepções  sempre  que  se  tratasse  de  artes  fixas  ou  instalações  de 

criação de ostras. Do ponto de vista do número de homens e de barcos de cada parte, se 

compararmos os dados de Espanha, para 1878 e de Portugal para 1886, Portugal tinha 41% 

40 Sobre isto vd. Rubín y Feigl, Juan Pérez de – La institucionalización de la Oceanografía y de la investigación pesquera  en  España  (1830‐1915),  in  “VII  Congresso  Internacional  da  Sociedade  Española  de Historia  de  las Ciencias y de las Técnicas”, t.I, Pontevedra, 2001, p.233‐244. 41 1º  ‐ os portugueses e espanhóis poderão exercer  indistintamente a pesca nas costas marítimas e nos  rios limítofes de Portugal e Espanha,  sujeitando‐se às  leis,  regulamentos e disposições  vigentes  sobre policia de pesca  ou  práticas  estabelecidas  sobre  o  assunto  em  cada  localidade;  exceptuando  desta  reciprocidade  as armações  de  atun,  as  artes  à  valenciana  e  quaisquer  outros  aparelhos  fixos  que  carecem  de  autorização especial e excluindo também a reciprocidade de exploração dos bancos de ostras. Limitando o uso das artes de arrastar, artes de Bou ou parelhas, chalut e quaisquer outros de efeito igualmente pernicioso – das 12 milhas da costa para fóra; 2º  ‐  sujeita  as  embarcações  de  uma  e  outra  nação,  em  tudo  que  diga  respeito  a  delitos  comuns  e contravenções legais, à jurisdição do país a que pertencem; 3º ‐ compete à autoridades marítimas o julgamento das infracções aos regulamentos de pesca; 4º  estabelecendo  que  nos  rios  Minho  e  Guadiana  será  regulado  o  exercício  da  pesca  pelas  autoridades maritimas de Caminha e da Guardia, e de Vila Real de Santo Antonio e Ayamonte; 5º estabelecendo regras na zona do sul para o emprego simultâneo das chavegas e galeões; 6º  indicando os preceitos de  funcionamento das chavegas e galeões, de modo que as primeiras  só poderão calar até profundidade de 13 melros e com distâcias convenientes para que não se embaracem, e os últimos somente poderão calar por fóra da profundidade de 15 metros e com intervalos de resguardo de 1 100 metros entre os barcos dos retadores; 7º propondo que este convénio provisório seja válido por três anos contados da data da aprovação. 

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do número de barcos e 45% do número de homens da primeira42. Mas parece que ambos se 

situavam numa conjuntura expansiva sem precedentes que poderá explicar um acordo de 

alguma forma transitório, como se verá. 

  

2. Direitos de propriedade e eficácia tecnológica 

 

A complexidade da gestão de unidades de recursos certamente aumentou, no âmbito 

de um quadro político‐social a atingir uma outra escala, visível, já, através dos conflitos em 

torno de artes mais eficazes que os espanhóis  introduziam nas costas algarvias, anteriores 

ao  convénio provisório de  reciprocidade da pesca entre Portugal e Espanha em 1878. De 

alguma  forma,  o  tratado  veio  declarar  legal  um  quadro  real  que  o  precedeu,  como  se 

descreve de seguida. 

A Questão das Pescarias ou Livro Branco, de 1879, organizado subsequentemente ao 

convénio de 1878, constitui um conjunto considerável de documentos (124) que, no âmbito 

da sessão  legislativa de 1879  foram apresentados às Cortes Portuguesas. Focam, acima de 

tudo, as relações de pesca entre Portugal e Espanha anteriores ao tratado, mas cingindo‐se 

muito particularmente às  relações entre a costa do Algarve e a costa Andaluza. Por outro 

lado, procuram demonstrar o  impacto do Convénio de 1878, relatado em sucessivos Livros 

Brancos  (1879,  1882,  1886),  reveladores  das  questões  à  volta  da  apropriação  do  espaço 

económico e territorial, e que culminará, por sua vez, no Convénio de 188543. 

O episódio, que fez despoletar a discussão pública, sucedeu a 2 de Outubro de 1877, 

antes  do  Convénio  de  1878,  e  reportando  informações muito  anteriores,  reunidas  pelo 

então  capitão  tenente  José  Allemão  de Mendonça  Cisneiros  e  Faria,  que  fará  parte  da  I 

Comissão  de  Pescarias44.  Relatado  pelo  administrador  do  concelho  de Vila  Real  de  Santo 

António, informava acerca de alguns galeões espanhóis que haviam sido apanhados a pescar 

42 Espanha: 14.017 barcos e 66 242 homens e Portugal:  6176 e 29 772 barcos e homens, respectivamente. Vd Comparando as estimativas do  sector para Espanha, em 1878 DÍAZ DE RÁBAGO, 1885, e Portugal, em 1886 SILVA, 1891. 43 Vd. convénio entre Portugal e Espanha, 2/10/1885, regulando o direito exclusivo da pesca para os nacionais nas águas territoriais de cada um dos estados, limite reservado até 6 milhas por fora da linha de baixa‐mar das maiores águas; proibindo o emprego de determinadas artes até 12 milhas; regulamento nos rios comuns, etc (Col.1552 a 1891, p.189). 44 Col.1552 a 1891, 167; ColL. 1860‐94, p. 76 

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ao largo do mesmo concelho, mesmo sem as autorizações devidas, exorbitando o limite das 

águas  espanholas, por  “boa ou má  interpretação dada  ao  limite da  linha onde  termina  a 

autoridade marítima de Portugal e começa a  liberdade dos mares …”, a chamada “linha de 

respeito”. 

A presença de um vapor de guerra espanhol que se encontrava ao largo de Vila Real a 

proteger os pescadores espanhóis, teria feito exaltar os ânimos de pescadores portugueses 

que se lançaram sobre os espanhóis. As trocas de palavras azedas e agressões exigiram um 

inquérito que reunirá bastante informação.  

É  neste  contexto  que  o  “antes”  sobressai,  evocando‐se  um  antigo  Compromisso 

Marítimo de Vila Real de Sto. António dos pescadores portugueses que acusava as artes de 

Espanha de delapidarem as armações e xávegas dos algarvios portugueses, ao introduzirem 

“…parelhas ou barcas de bou espanholas, essas artes de pesca de invenção infernal…”, quer 

de galeões “este novo aparelho de rede de malha, que é uma especie de armação volante, 

pode  ser  lançada  a  maior  ou  menor  profundidade  em  qualquer  sítio…”.  Na  verdade, 

acusavam  os  portugueses,  “as  artes  xávegas  nacionais,  tendo  ido  pescar  na  costa  da  ilha 

Cristina,  foram de ali expulsos sem motivo  (…),  tanto mais que em  todo o  tempo as artes 

xávegas  espanholas  têm  vindo  pescar  à  costa  do Monte Gordo,  sendo  aqui  sempre  bem 

recebidas…”. 

O  inquérito  realizado  a  19  de Outubro  de  1877  permite  realizar  o  diagnóstico  da 

situação de disputa que se tinha instalado, que, afinal, se procurava resolver: 

‐  era  prática  habitual  dos  espanhóis  e  dos  portugueses  visitarem  águas  da  outra  nação, 

mesmo antes do tratado de 1878, embora os portugueses fossem pouco acolhidos na “costa 

da Figueirita”, acusados de usarem artes proibidas em Espanha (parelhas); 

‐ a chegada dos galeões espanhóis a Vila Real de S. António só se fizera no ano anterior, de 

1877, e apenas um ou dois galeões, enquanto no ano de 1877 subiu para 20 o seu número; 

‐  não  houvera,  até  então,  conflitos maiores  porque  as  tripulações  dos  galeões  espanhóis 

eram compostas, sobretudo, por portugueses (companhas de 50 homens cada), em número 

indeterminado “e esses, no momento do conflito cruzaram os braços tornando‐se neutrais”; 

‐ os galeões formavam como que “uma parede e retinham a sardinha que vinha para terra, 

ao  encontro  das  armações  e  das  xávegas  dos  algarvios  o  peixe  apanhado  pelos  galeões 

seguia para Espanha não pagando direitos, concorrendo com a pescaria que os portugueses 

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pescavam e de que pagavam  impostos, sendo certo que, até 1872, os espanhóis cumpriam 

todas as obrigações de  tirar  licença e pagarem  impostos,  lançando as  redes,  iguais às dos 

portugueses, segundo o sistema da “primazia do lanço”, mesmo que fosse contra o interesse 

dos portugueses mas, porque era “justo”, era prática consensual; 

‐ as parelhas espanholas continuavam a ir pescas à costa portuguesa do Algarve, contra a lei, 

sobretudo à noite, embora sendo, por vezes, aprisionadas; 

‐ contudo, no que dizia respeito à pesca da linha no alto mar de ambas as costas sempre se 

fez  pacificamente:  os  portugueses  pescariam  nas  Areias  Gordas,  próximo  a  Cádis  e  os 

faluchos espanhóis nos pesqueiros da costa do Algarve, sem quaisquer conflitos. 

 

A questão era evidente, despoletada pela presença de uma arte, do galeão, muito 

mais eficaz perante as artes tradicionais. Os 20 galeões significavam 140 barcos (cada galeão 

com 7 embarcações) e 1000 homens a sobre explorar águas  já divididas e demarcadas. As 

consequências adivinhavam‐se: 

‐ em  termos de  remuneração, as  companhas das artes  recebiam  como paga diária 

uma parte, proporcional ao produto da pesca efectuada, em género ou dinheiro, enquanto 

os 50 homens por galeão, eram assalariados; 

‐  decorrente  da  anterior,  em  termos  de  resultados  da  pesca,  o  espaço  das  artes, 

sendo exíguo, diminuía os resultados da pesca e os galeões, como não pescavam a distância 

conveniente das artes tradicionais, tiravam‐lhes o ganho, fazendo diminuir os quinhões. 

Não obstante existir um galeão português, a sua acção era tolerada, por pertencer a 

uma  sociedade  formada  pelos  donos  das  artes  tradicionais,  não  suscitando  quaisquer 

resistências.  Contudo,  como  sugeria  o  relator  do  Inquérito,  se  aumentasse  o  número  de 

galeões  a  resistência  aumentaria,  situação  improvável  dada  a  inexistência  de  capitais,  ao 

contrário do que se passaria do outro lado do rio, do lado espanhol. 

A realidade algarvia, contudo, surge num contexto especial, revelador da fragilidade 

das  acessibilidades  e  da  dificuldade  em  regular  um  sector  em  expansão.  Por  isso,  como 

observa  o  autor  do  Inquérito:  “a  questão  não  era  contra  os  espanhóis  mas  contra  o 

sistema, e ver‐se‐á porque ele há‐de continuar, segundo suspeitas que tenho. Os Espanhóis 

não  tendo  nas  proximidades  da  Figueirita  nem  gente  nem  espaço  para  empregar  tantos 

barcos,  uma  grande  parte  dos  quais,  segundo  me  consta,  é  armado  com  empréstimos 

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levantados a  juro, hão‐de empregar esforços furiosos para pescarem na nossa costa, e por 

fim  não  podendo  obter  este  desideratum  de  outro modo,  hão‐de  fazê‐los  figurar  como 

portugueses. É provável, segundo rumores que me chegaram aos ouvidos, que para o ano os 

galeões voltem à costa nacionalizados e embandeirados regularmente como portugueses, e 

nada  os  puderá  então  impedir  de  pescar,  porque  há  já  um  que  pesca  regularmente‐ 

autorizado, como acima disse, ou então haverá os mesmos conflitos entre os nossos” 45. 

A questão, por conseguinte, não era, repita‐se, contra os “hespanhoes mas contra o 

sistema”, um complexo tecnológico irreversível que absorvia recursos limitados segundo os 

parâmetros  conhecidos  localmente. O  sistema  que  surgia  era marcado pela  existência de 

capital, essencial para aplicação em novas e onerosas  tecnologias, de proveitos evidentes, 

apoiados em áreas de pesca disponíveis. 

Acrescia,  ainda,  a  existência  de  recursos  humanos  disponíveis,  recrutáveis  em 

Portugal.  Esta  mobilidade  teria  a  ver  com  remunerações  superiores  que  o  modelo  do 

assalariamento  prometia,  e  parece  decorrer  de  uma  alteração  do  enquadramento 

institucional  do  pescador  em  Espanha.  Com  efeito,  desde  Março  1873  desaparecera  a 

obrigação da Matrícula do Mar em Espanha,  criada na década de 30 do  século XVIII, que 

sempre colocou os pescadores espanhóis sob a dependência da Armada46. O fim do registo, 

liberalizara, pelo menos em alguns pontos da costa espanhola, o mercado da mão‐de‐obra e 

fragilizara o peso das confrarias, baluartes de privilégios de venda e acesso de pesqueiros, 

assim  como  de  artes  proibidas47.  A  mão‐de‐obra  portuguesa  estava  ali,  bem  perto, 

disponível, visto que as artes tradicionais já estariam em declínio. 

Desta  forma,  frente ao avanço das novas  técnicas, nomeadamente  com a  chegada 

dos vapores e a multiplicação dos cercos, na década de 8048, o Estado português  reflecte, 

45 Cf. Livro Branco de 1879 – Questão das pescarias, 1879, p.68‐69 46 Vd. Santos Castroviejo, I. ‐ Os séculos XVIII e XIX (ata 1870): protagonistas e transformacións. In: “Historia da pesca en Galicia”, Santiago de Compostela, Universidad Santiago Compostela, 1998, p.92; Joaquim Llovet ‐ La Cataluña marítima a la segona meitat del segle XVIII. La revista de matrícules de Luis Muñoz de Guzmán (1786), in “Primer Congrés d’História Moderna de Catalunya”, 1, Barcelona, Diputació de Barcelona, 1984, p.711‐720; Fernández Díaz, R., Martinez Shaw, C. ‐ La gente de mar en la Cataluña del XVIII., in “Primer Congrés d’História Moderna  de  Catalunya”,  1,  Barcelona, Diputació  de  Barcelona,  1984,  p.553‐567;  Vásquez  Lijó,  J. M,  JoJosé Manuel ‐Los privilegios de la matricula de mar. “Obradoiro de Historia Moderna”, 6, 1997, pp.107‐130. 47 López Losa, Ernesto – Derechos de propriedade  informales y gestión comunal de  las pesquerías en el país Vasco. Un enfoque ecológico‐institucional. “Revista de História Económica”, ano XXI, 2003, nº 1, p.11‐48 48 Vd. 21/7/1891, relatório da comissão de pescarias do Ministério da Marinha sobre o regulamento provisório com redes de arrastar, in Collecção de leis… 1860 a 1894, 255. 

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através da legislação emitida e das práticas políticas, a urgência do conhecimento científico 

da pesca e a  intervenção e controlo das acções desenvolvidas. O convénio de 1885, surge 

como um reflexo dos  interesses dos dois  lados da fronteira, repondo o direito exclusivo da 

pesca para os nacionais nas águas territoriais de cada um dos estados e um limite reservado 

até 6 milhas49. 

O fim do Convénio traduz, igualmente, um contexto mais global, que se passaria um 

pouco  pela  península,  França,  Itália,  Estados  Unidos  –  o  do  aumento  do  consumo  do 

pescado. Em Espanha, desde os anos 70 que se ampliara a geografia do mercado graças ao 

desenvolvimento de uma actividade de conservas e da extensão do  ferrocarril responsável 

pelo  alargamento  dos  circuitos  do  pescado  fresco.  Até  então  a  procura  limitada  era 

perfeitamente  assegurada  pela  flexibilidade  e  o  controlo  realizado  pelas  confrarias 

adaptando‐se à procura oscilante da população espanhola. Contudo, desde os anos 80, em 

toda a Espanha o consumo de pescado per capite aumentou, pressionando as  técnicas de 

pesca, com impacto visível na sobre exploração de recursos, como aconteceu, por exemplo, 

na Biscaia50. 

Mas acrescente‐se, ainda, um outro elemento, de ordem sazonal favorável a Portugal 

e a Espanha que ganham clientes no quadro de uma crise que a França atravessou na década 

de  80  do  século  XIX  e  que  se  agravou  nos  inícios  de  XX51,  explicando  o  movimento 

irreversível  de  crescendo  da  actividade  pesqueira  desde  que  a  indústria  conserveira 

fomentou a capitalização das artes que operavam em toda a costa. 

 

Conclusão: uma discussão ambiental diluída: entre “missões de propaganda” e um 

programa regulamentador 

De  todo  este  processo,  a  visão  ambiental  pressentida  nos  discursos,  pelos 

diferentes  participantes  na  arena  dos  poderes  sobre  o  mar,  ou  seja  a  evolução  das 

49 Datado de 2 de outubro de 1885; Proibia, igualmente, a utilização de parelhas, muletas ou outros aparelhos de efeitos nocivos até 12 milhas. 50  López  Losa,  Ernesto  –  Una  apróximación  al  sector  pesquero  tradicional  vasco(c.1800‐1880).  “Historia Agraria”, 28, Deciembre 2002, p.13‐44 51 Dubois, Xavier –  La  révolution  sardinière. Pêcheurs et  conserveurs en Bretagne Sud au XIX  siècle, Rennes, PUR, 2004, p.202, 211. Carmona Badía,  Joám  – Recursos, organizácion  y  tecnologia  en  el  crecimiento de  la industria espanõla de conservas de pescado, 1900‐1936, in “La cara oculta de la industrialisation española”, p. 134. 

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alterações de espaços de pesca e dos respectivos recursos (natureza das espécies, avaliação 

de capturas, efeitos antropogénicos e ambientais, no que se  infere dos avanços técnicos as 

reacções  dos  homens  do mar)  parece  diluir‐se.  Quer‐se  pescar mais  e mais.  As  poucas 

estatísticas para Portugal  falam de 18  fábricas de conserva para 1884 e 66 em 188652, um 

crescendo  multiplicador.  O  movimento  tornou‐se  irreversível  desde  que  a  indústria 

conserveira fomentou a capitalização dos cercos que operavam em toda a costa, mesmo que 

ilegitimamente, activado por uma conjuntura propiciadora53. 

A partir desta nova orgânica, é mais uma vez um conjunto de códigos legislativos que 

confere alguns esclarecimentos no acesso aos recursos54 e a legislação, hesitante, se por um 

lado procurava acompanhar e traduzir as alterações tecnológicas, por outro  lado restringia 

ou adiava a autorização de artes que se incompatibilizavam, resultando, deste processo, um 

sistema  de  acessibilidade  marcado  pela  arrecadação  de  pontos  de  pesca  em  favor  de 

poucos55.  

52  Boletim  dos  organismos  económicos  criados  pelo  ministério  do  comércio  e  indústria,  nº2  vol.1,  Porto: Imprensa Moderna, 1935 53  A  guerra  de  1914  acelerou  o  consumo  na  generalidade  e  factores  locais,  como  o  desaparecimento  da sardinha  nas  costas  galegas  em  1909‐12  e  1924‐25,  obrigaram  os  conserveiros  a  virem mais  longe,  até  às nossas costas Vd. Carmona Badía, Joám – “O mar e a Industrialización de Galicia”, in Galicia fai dous mil anos, o feito diferencial galego, v.2 Historia, Santiago de Compostela, Museo do Pobo Galego, 1997, p.255. O próprio Estado português verifica que as receitas das exportações animam extraordinariamente a nossa balança, pois que em 1880 sente‐se já uma aceleração do sector, em 1910 representam 7% das exportações e, em 1930‐35, 20.5%, vd. Simões, Nuno – “Pescarias e conservas de peixe: notas sobre a evolução do seu comércio”, Separata Indústria  Portuguesa,  Lisboa,  1939,  p.21.  Em  1913  só  o  porto  de Matosinhos  significava  50%  do  total  das capturas do país, acima de Peniche, Portimão e Vila Real de S.António. Em 1917 apuram‐se 188  fábricas de conservas,  empregando  14679  operários;  em  1925  atinge‐se  o maior  número:  cerca  de  400  fábricas  Vd. Barbosa, António Manuel Pinto – Sôbre a Indústria de Conservas em Portugal, Lisboa, 1941. 54  Regulamentos  da  aquacultura  (regulamento  para  a  exploração  das  ostreiras,  ostreicultura  e  depósito  de ostras  na  parte  marítima  das  águas  públicas,  1/10/1895;  regulamento  para  a  exploração  de  instalações permanentes  de  pesca,  estabelecimentos  de  piscicultura  e  viveiro  de  peixe  na  parte marítima  das  águas públicas, 31/12/1895, in Collecção de leis… 1895, 51, 77, 207) quer da pesca marítima (regulamento da pesca do  atum  com  armações  fixas  na  costa  de  Portugal,  6/4/1896,  regulamento  geral  da pesca da  sardinha nas costas de Portugal, 14/5/1903, in Collecção de leis... 1896 a 1905, 492).  55 Por altura da lei de 21/5/1908, acerca da introdução dos cercos americanos no Departamento Marítimo do Norte, afirmava‐se que não era possível autorizá‐la enquanto não se alterassem as condições de pesca naquele espaço.  Este  acautelamento  residia  efectivamente  no  conflito  de  interesses  entre  as  redes  sardinheiras  ou redes  de  emalhar  em  lanchas  a  remos  ou  ainda  as  xávegas,  em  contraste  com  os  cercos  americanos  e  as armações  valencianas  na  zona  centro  e  sul. Mas  as  cautelas  caem  perante  a  eficácia  crescente  do  cerco americano e da traineira que dos centros do sul se ampliaram para o norte, até à sua autorização pelo decreto de 7/6/1913  (Cruz, Salviano   – “Estrutura económica e geográfica das  indústrias de pesca portuguesa”,  in A Revista de pesquisas económico‐sociais, Lisboa, v. 4, n. 1‐6, 1955‐58, p. 116) 

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Supõe‐se que as possíveis  incompreensões entre mundo ciência,  interlocutoras neste 

processo, e mundo pesca, estarão muito mais condicionadas pelos contextos de mercados 

(relação entre preços dos principais pescados das águas  costeiras  ‐  sardinha, pescada e a 

importação de bacalhau, esse “pão do mar”) do que se pensa. Efectivamente, a discussão 

acerca  da  escassez  dos  recursos  tomou  toda  a  acutilância  perante  a  realidade  que 

acompanhou o período de 1872 a 1885 e a Comissão das Pescarias emerge como o núcleo 

de reflexão fundamentada que respondia e pacificava os pedidos de concessões de pontos 

da  costa,  elaborados  por  armadores,  empresários,  patrões  e  proprietários,  representados 

individualmente  ou  em  forma  de  sociedades56,  produzindo  regulamentos  provisórios 

conformes às suas atribuições. Ao lado desta Comissão foram nomeadas outras, específicas, 

em assuntos particulares, para o Algarve57, costa oeste58 e para a área da Ria de Aveiro59. 

Os resultados da sua acção não anularam as perturbações surgidas entretanto, como 

revela  o  discurso  da  comissão  de  piscicultura  e  pescarias  marítimas  criada  no  seio  da 

Sociedade de Geografia de Lisboa  realizado a 27 de  Junho de 1888. O documento dado à 

estampa pela  Imprensa Nacional propõe uma  regulamentação apertada do sector “se não 

quisermos ver desaparecer por completo dos nossos rios o salmão e a lampreia, as ostras e a 

truta, e dos nossos mares tantas variedades de peixe”. O texto divide‐se entre uma análise 

do quadro institucional existente e uma avaliação do péssimo estado da pescaria, muito em 

particular da pesca fluvial, preconizando a execução de projectos de piscicultura. A proposta, 

global,  previa,  por  parte  do  Estado,  a  criação  de  uma  Comissão  Central  Permanente  de 

56  Parecer  da  Comissão  de  Pescarias  acerca  do  estabelecimento  de  armações  fixas  destinadas  à  pesca  da sardinha na costa do Algarve (23/8/1884, in Collecção de leis... 1552 a 1891, 211). 57 Vd. “concessão a uma firma comercial de Lisboa o sitio da Torre Altinha, na baía de Lagos para  lançar uma armação à valenciana” (31/1/1881), “concessão de paragens para as armações de atum na costa do Algarve” (20/1/1882). Portaria nomeando uma comissão composta de deputados da nação e proprietários de armações de pesca, que  indicasse  ao  governo  as bases  sobre  as quais devem  formular‐se novas disposições  sobre  as pescarias nas costas do Algarve (29/5/1888 a 10/1/1889). Esta comissão produziu um projecto de regulamento, 10/10/1888, para a exploração do atum e sardinha, que nunca foi executado (Collecção de leis… 1860 a 1894, 203, 206, 212), 58 Portaria regulando a distância entre as armações de sardinha na costa oeste do Reino, 15/1/1889 (Collecção de  leis… 1552 a 1891, 207). “Regulamento provisório para as armações fixas de pesca na costa da Nazareth” (4/5/1879), “portaria para o estabelecimento de armações em Cascais (16/9/1882) (in Collecção de leis…1552 a 1891, 172, 179, 182, 184) 59 Cf. 16/4/1883, in Collecção de leis…1860 a 1894, 464, solicitando ao capitão do porto de Aveiro redigisse um projecto de  regulamento para a polícia da pesca do moliço,  juntamente  segundo  tenente armada Francisco Augusto da Fonseca Regala de que resultou o Projecto de Regulamento para o exercício da pesca e colheita de Moliço… (Regalla, 1888). 

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Pescarias  e  Comissões  Regionais  que  pusessem  fim  ao  desregulamento  das  pescas,  aos 

conflitos entre pescadores, entre donos de barcos e aparelhos de pesca, que cuidassem da 

implantação de um programa de piscicultura e  fomento da pesca em geral, divulgando os 

processos mais aperfeiçoados da pesca, sem esquecer a necessidade de vigilância nas costas, 

dada a presença de embarcações espanholas e francesas60. 

Este documento tornou‐se uma peça chave em todo o processo de verdadeiramente 

identificação do problema de esgotamento de recursos e da necessidade em contrariar este 

processo, produzido por conhecedores próximos do problema. F.A. da Fonseca Regalla fora 

capitão do porto de Caminha e elaborara importantes relatórios sobre a pesca fluvial no Rio 

Minho  e  na  Ria  de  Aveiro;  José  Bento  Ferreira  de  Almeida  fora  relator  da  Comissão 

encarregada de formular as bases para um novo regulamento de pesca na costa do Algarve, 

sector nevrálgico de enfrentamentos fronteiriços e que virá a integrar a designada Comissão 

das Pescarias remodelada em 189261 

Fica  clara  a  alegação  contra  a  aproximação  crescente  de  barcos  estrangeiros  das 

costas  portugueses,  em  particular  de  Espanha  e  da  França62  que  pescavam,  em  grandes 

quantidades  a  sardinha,  actividade  que  os  membros  da  Sociedade  de  Geografia 

consideravam  que  deveria  ser  actividade  dos  portugueses,  além  daqueles  usarem  artes 

extremamente depredadoras, numa altura em que se procurava regular a pesca e superar as 

60 Vd. Carmona Badía, 1997, 253. Os  Inquéritos de 1889/90  confirmam a pressão dos espanhóis nas  costas portuguesas, em Viana do Castelo,  invasão de pescadores espanhóis; na Póvoa de Varzim  redes de  arrasto movidas a vapor; na Figueira da Foz conflitos de pesca à volta dos vapores; no Algarve oriental  já o primeiro galeão  tinha  sido  transferido da Galiza para a  Isla Cristina em 1867 e em 1874 operava  clandestinamente a oeste de Faro. Os galeões espanhóis que pelo seu número, quer pela capacidade de barcos  (construídos em grandes estaleiros de Huelva e Galiza), asseguravam, com capturas  fabulosas, o abastecimento das  lotas dos dois lados da fronteira como se lê em Cavaco, 1976, 227. 61 Em 1868, ano em que principiam os mapas estatísticos, o valor do peixe importado ascendia a 1284 contos, nos quais o bacalhau figurava com 1207 e o peixe exportado valia apenas 170 contos, sendo o défice de 1114 contos, que se manteve até 1880, à volta de 1155 contos, atingindo o mínimo em 1887, mas de apenas 540 contos,  não  pela  diminuição  das  importações  (aumentaram  para  1750  contos),  mas  pelo  aumento  das exportações, até atingirem os 1210  contos neste mesmo ano  (cf. em Silva, Carlos Augusto de Magalhães e, Regalla, Francisco Augusto da Fonseca ‐ A organização dos serviços das pescas, Lisboa, Sociedade Geographica, 1888, p. 15‐16). 62 Vd. Carmona Badía, 1997, 253. Os  Inquéritos de 1889/90  confirmam a pressão dos espanhóis nas  costas portuguesas, em Viana do Castelo,  invasão de pescadores espanhóis; na Póvoa de Varzim  redes de  arrasto movidas a vapor; na Figueira da Foz conflitos de pesca à volta dos vapores; no Algarve oriental  já o primeiro galeão  tinha  sido  transferido da Galiza para a  Isla Cristina em 1867 e em 1874 operava  clandestinamente a oeste de Faro. Os galeões espanhóis que pelo seu número, quer pela capacidade de barcos  (construídos em grandes estaleiros de Huelva e Galiza), asseguravam, com capturas  fabulosas, o abastecimento das  lotas dos dois lados da fronteira como se lê em Cavaco, 1976, 227. 

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dificuldades existentes, em particular a grave crise alimentar que se vivia. O diagnóstico e o 

programa de acção apoiava‐se na crise que se fazia sentir63: 

‐ crise alimentar, marcada por um défice cerealífero; 

‐ invasão da filoxera na vinha e o declínio da produção64; 

‐ extinção da indústria da engorda da carne, dada a concorrência da importação sul‐

americana nos mercados europeus; 

‐ deficiência do crédito agrícola; 

‐  deficiência  no  abastecimento  e  exportação  de  pescado, marcado  por  um  peso 

esmagador da importação do bacalhau (94% do valor da importação de peixe)65.  

Considere‐se,  assim, que  as propostas  aprovadas nesta  Sociedade  tiveram eco em 

várias medidas concretas e faseadas que incidem no restabelecimento da pesca, em geral, e 

da fauna piscícola, em particular. Em síntese: 

1º ‐ A realização do “Inquérito sobre o estado, condições e necessidades da indústria 

de pesca” (26/6/1890)66 que obedecia um programa prévio que cumpria uma avaliação do 

tipo de portos  (I), da duração do  trabalho  (II) das  características do pessoal empregue na 

pesca (III), do material de pesca e de apanha de plantas marinhas (IV), dos estabelecimentos 

de piscicultura e de salga (V), da estimativa da produção (VI) e da situação (VII). Esta última 

63  Este  documento  tornou‐se  uma  peça  chave  em  todo  o  processo  de  verdadeiramente  identificação  do problema  de  esgotamento  de  recursos  e  da  necessidade  em  contrariar  este  processo,  produzido  por conhecedores próximos do problema. F.A. da Fonseca Regalla  fora capitão do porto de Caminha e elaborara importantes relatórios sobre a pesca fluvial no Rio Minho e na Ria de Aveiro; José Bento Ferreira de Almeida fora relator da Comissão encarregada de formular as bases para um novo regulamento de pesca na costa do Algarve,  sector  nevrálgico  de  enfrentamentos  fronteiriços  e  que  virá  a  integrar  a  designada  Comissão  das Pescarias remodelada em 1892 64 Os pareceres surgidos em meados do século XIX, 50 a 60 e na década de 80 deste mesmo século, coincidem com momentos  gravosos  de  subida  do  pão  e,  no  último  caso,  com  “a  extensão  aterradora  da  invasão  da filoxera, a paralisação do comércio dos vinhos, a quase extinção da indústria da engorda de gados, a deficiência do crédito agrícola…”( Silva, Carlos Augusto de Magalhães e, Regalla, Francisco Augusto da Fonseca, 1888, 3) 65 Em 1868, ano em que principiam os mapas estatísticos, o valor do peixe importado ascendia a 1284 contos, nos quais o bacalhau figurava com 1207 e o peixe exportado valia apenas 170 contos, sendo o déficit de 1114 contos, que se manteve até 1880, à volta de 1155 contos, atingindo o mínimo em 1887, mas de apenas 540 contos,  não  pela  diminuição  das  importações  (aumentaram  para  1750  contos),  mas  pelo  aumento  das exportações, até atingirem os 1210  contos neste mesmo ano  (cf. em Silva, Carlos Augusto de Magalhães e, Regalla, Francisco Augusto da Fonseca ‐ A organização dos serviços das pescas, Lisboa, Sociedade Geographica, 1888, p. 15‐16). 66 As instruções para o inquérito sobre o estado, condições e necessidades das indústrias de pesca, da apanha das plantas marinhas e da exploração de salinas podem ser consultadas em Collecção de leis …1860 a 1894, 226 a 249. 

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rubrica  implicava  uma  identificação  das  espécies  de  peixes  e  plantas,  causas  da  sua 

prosperidade e decadência, providências para o  seu desenvolvimento e  “reclamações dos 

interessados”; 

2º  ‐ A elaboração de vários  relatórios, entre os quais o  regulamento provisório de 

redes de arrastar e o parecer acerca da aceitação do regulamento (de 21/7/1891, 30/71891 

e 12/9/189167) que analisavam os efeitos nefastos da  introdução de  redes de arrasto por 

vapores na costa norte do país. Os princípios defendidos obedeciam a três regras essenciais 

que congregavam uma ideia única ‐ “respeito absoluto em todos os casos pela desovação e 

os  fundos”:  1ª  ideia  –  “para  todas  as  espécies  migrantes  ou  semi‐sedentárias,  cujo 

renovamento não de  faz nas águas do  litoral,  liberdade absoluta”; 2ª  ideia: “para todas as 

espécies  sedentárias  ou  nómadas,  cuja  fonte  geradora  se  encontra  na  zona  costeira, 

protecção rigorosa no que respeita às condições físicas necessárias à vida do peixe”; 3º “para 

todas  as  espécies,  indistintamente,  conservação  rigorosa  dos  fundos”. O  texto  revela  um 

conhecimento, profundo e comparativo, dos casos espanhol, francês, inglês. 

3º  ‐ A  composição  e  clarificação  das  competências  da Comissão  das  Pescarias  (14 

Agosto 1892) que passou a  inserir um  lente das Ciências Naturais, dada a necessidade em 

proceder ao  levantamento dos  locais piscosos e à conservação de colecções de exemplares 

de  espécies  e  de  aparelhos  de  pesca68;  e  a  criação  de  uma  outra  comissão,  desta  vez 

designada por Comissão Central Permanente de Piscicultura (30/9/1892)69, na dependência 

do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, a fim de reconstituir “as excelentes 

faunas dos nossos rios e correntes, transformando‐os em verdadeiras fábricas de peixe” 70. 

67 Collecção de leis …1860 a 1894, 255‐277; 498‐521. 68 Collecção de leis …1860 a 1894, 313, nomeação de Alberto Girard. 69 Collecção de leis …1860 a 1894, 320. Era constituída pelo ministro e secretário de estado das obras públicas, comércio e  indústria, presidente; o director geral da agricultura,  vice‐presidente; do engenheiro  chefe da 3 circunscrição hidráulica; do  inspector dos  serviços  florestais; de dois oficiais da  armada, um dos quais  será engenheiro hidráulico; do  lente de zoologia agrícola do  instituto de agronomia e veterinária; de um delegado da  sociedade  de  Geografia  de  Lisboa,  eleito  pela  mesma  sociedade;  de  dois  indivíduos  de  reconhecida competência  escolhidos  pelo  ministro;  do  chefe  de  secção  dos  serviços  florestais  da  direcção  geral  da agricultura, que serviria de secretário. Para esta comissão foi de imediato, 24/11/1892, nomeado o engenheiro hidrográfico Baldaque da Silva. 70  Destaque  para  o  artigo  primeiro  declarando  que  o  objectivo  era  estudar  os  processos  técnicos  mais apropriados para promover e desenvolver no país a criação e multiplicação de peixes, crustáceos e moluscos e a  consulta  de  todos  os  assuntos  técnicos  relativos  às  pescas  fluviais;  o  nº  3,  a  apresentação  de  projectos parciais  com  o  fim  de  promover  pela  piscicultura  a  repovoação  das  águas  interiores;  o  n.  5  organizar  a estatística da pesca fluvial, etc. 

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Seguiu‐se‐lhe o Regulamento geral dos serviços aquícolas nas águas interiores do país, logo 

em 20/4/1893  (Collecção de  leis …1860 a 1894, 346 a 367)71   que preconizava uma escola 

contínua de conhecimentos faunicos que promovesse a aquacultura (curso de aquicultores, 

escolas da beira‐mar, exposições de pescas, compra de obras nacionais e estrangeiras sobre 

piscicultura  e  pescas,  publicações  de  trabalhos  sobre  aquicultura)  através  da  acção  de 

comissões regionais de aquicultura nomeadas pelo governo, lançando calendários de defeso 

de  pesca  nas  águas  interiores,  controlando  o  comércio  de  peixes  com  determinadas 

dimensões, o  tipo de  técnicas, o  respectivo policiamento72. A durabilidade desta comissão 

seria curta dada a reestruturação da Comissão Central de Pescarias (1895/4/5) em Comissão 

Permanente de Pescarias, articulando Comissões Departamentais e Comissões Locais, e cuja 

constituição era  fruto da  fusão de elementos que pertenciam  às  anteriores  comissões de 

Piscicultura e Central73.  

4º  ‐  O  estudo  das  pescas  e  dos  peixes,  invocada  desde  a  criação  da  primeira 

Comissão,  em  1878,  foi  finalmente  regulada  em  1895,  quando  se  deram  instruções  para 

remessa  de  cetáceos,  peixes  e moluscos  e  crustáceos,  à  Comissão  Central  de  pescarias, 

seguindo o modelo do  inquérito  industrial de 1890 relativo à costa do Algarve e elaborado 

por Alberto Girard74, que previa a  resposta a uma grelha de questões: a denominação da 

espécie, o comprimento médio, a frequência, a época de desova, a temporada de pesca, o 

modo de captura, o isco empregue, a profundidade a que foi capturado75. 

71 Sobressaem alguns artigos nomeadamente do Cap.I da Comissão central permanente de piscicultura (art.18 e 19), porque se propõem nomeações de comissões regionais; cap.II, “da inspecção dos serviços de exploração das águas interiores do país – criação da figura do inspector dos serviços de águas interiores do país; cap.III – Da conservação dos rios, rias, esteiros e lagoas do país em condições ao seu repovoamento que competiria aos directores das circunscrições hidráulicas, segundo regulamento de 19/12/1892; cap.IV, da protecção da fauna das águas interiores do país para promover a multiplicação das espécies úteis; cap.V da polícia e exploração da pesca nas águas interiores do país (que aliás também competiria às circunscrições hidráulicas). 72 A este regulamento sucedem‐se nomeações para a constituição das comissões regionais de aquicultura de Aveiro, Porto, Viana do castelo, Santo Tirso, Vila do Conde, Póvoa de Varzim (p. 401‐2) e Coimbra. 73 Tal  fusão prende‐se,  certamente,  com o novo  regulamento dos Departamentos marítimos,  capitanias dos portos e  respectivas delegações que  impunha que para efeitos de pisciccultura, ostreicultura, etc.  todos os pedidos de concessões nas águas jurisdicionais marítimas e margens adjacentes acontar da linha do máximo de preamar de águas vivas seriam afectadas ao M. da Marinha e Ultramar.18/4/1895, p. 22 a 35. 74 Inquérito sobre a pesca…, 1890, 369. 75Collecção de leis sobre a pesca…1895, 132‐136 (30/12/1895) 

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5º  ‐  Finalmente,  a  criação, em 17/1/190176, da  Liga Naval Portuguesa, de que era 

presidente  o  monarca  D.  Carlos,  congénere  da  de  Espanha  (Liga  Marítima  Espanhola, 

190077),  cujos  objectivos  foram  definidos  em  5  capítulos  e  40  artigos,  ampliados  para  14 

capítulos no decreto de 24 de Dezembro de 1902, reformados em 11 de Maio de 1905 para 

16  capítulos. É nesta última  remodelação que  retoma uma  ideia  cara ao Regulamento da 

Comissão de Piscicultura – as Missões de propaganda (capítulo 13) – a animação pública das 

pescarias, ao propor bibliotecas, escolas e congressos marítimos78.  

 

  

 

76 Liga naval portuguesa…, 1912. Collecção de leis …1896 a 1905, 203, aplicados em 1902 (24/12/1902, decreto aprovando os novos estatutos in Collecção de leis …1896 a 1905, 399 e reformulados em 1905 in Collecção de leis …1896 a 1905, 676). 77 Rubin y Feigl, 1999, 7. 78 A Liga desenvolveu um vasto programa de que se destaca: a  fundação do Boletim da Liga Naval  (1902); a organização do  I Congresso Marítimo Nacional em 1903, do  I Congresso Nacional das Pescarias, em 1904 em Viana  do  Castelo,  aproximando  os  diferentes  parceiros  do  sector  e  o  Congresso Marítimo  Internacional  de 1904,  em  Lisboa,  e  respectiva  exposição  oceanográfica  internacional  Vd.  Assotiation  Internationale  de  la Marine, Congrès de Lisbonne, 1904, Paris, Imprimerie Lahure, 1904.