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Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’O S S E RVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Ano XLVII, número 26 (2.420) Cidade do Vaticano quinta-feira 30 de junho de 2016 y(7HB5G3*QLTKKS( +]!"!.!?!.! Francisco concluiu a viagem à Arménia com um novo apelo à fraternidade e à reconciliação Da memória um futuro de paz No voo de regresso frisou que a Europa deve reencontrar o espírito criativo Olhar positivo GIOVANNI MARIA VIAN Com a viagem à Arménia o Pon- tífice realizou outra visita do co- ração, nascida já na Argentina do costume e da amizade com os fi- lhos exilados de uma terra áspera como as suas pedras e doce como as melodias dos seus cânticos. E de modo análogo a imagem do seu povo é «uma vida de pedra e uma ternura de mãe» sintetizou o Papa Francisco, abrindo a longa conferência de imprensa no voo de regresso a Roma com a recor- dação daqueles dias: «tinha tan- tos contactos com os arménios, ia muitas vezes às suas missas», e também «uma coisa que normal- mente não me agrada fazer» co- mo os jantares, «e vós fazeis jan- tares pesados!», acrescentou sor- rindo. Na visita e na conversa com os jornalistas enlaçaram-se a dimen- são ecuménica e a política, mas no sentido traçado por Paulo VI numa reflexão que remonta às primeiras semanas de pontificado, nas quais precisamente a «política papal» é definida «iniciativa sem- pre vigilante pelo bem do alheio». Hóspede de Karekin II, em quase todos os momentos da visita o Pontífice foi acompanha- do pelo «supremo patriarca e ca- tholicos de todos os arménios». E a viagem foi selada com a assina- tura de uma declaração, mais um passo num «caminho comum já muito progredido» rumo à unida- de. Que, como disse o Papa, não é «uma vantagem estratégica», e muito menos submissão ou absor- ção, mas adesão à vontade de Cristo para oferecer ao mundo o testemunho do Evangelho. E a história ensina que ao lon- go dos séculos o testemunho cris- tão dos arménios atravessou pro- vações tremendas, até aos massa- cres de há um século, «trágico mistério de iniquidade» que o Pa- pa Francisco não hesitou em defi- nir «genocídio». Sem intenções ofensivas ou reivindicativas, mas para repetir que as atrocidades in- fligidas então são «os sofrimentos Prefácio do Papa sobre o sacerdócio O ração fator decisivo PÁGINA 12 Comemoração do aniversário de ordenação de Bento XVI Ao serviço da humanidade Na manhã de terça-feira, 28 de junho, o Pontífice presen- ciou ao encontro na Sala Cle- mentina para comemorar o sexagésimo quinto aniversário da ordenação sacerdotal de Bento XVI. Depois de ter tro- cado um afetuoso abraço com o seu predecessor, o Pa- pa Francisco recordou a sua «vida ao serviço da teologia, que não hesitou em definir “busca do amado”; foi isto que Vossa Santidade sempre testemunhou e testemunha ainda hoje». PÁGINA 13 Só a memória é «capaz de se enca- minhar pelas sendas novas e surpre- endentes», transformando «os enre- dos de ódio em projetos de reconci- liação» que permitem «esperar num porvir melhor para todos». Memória e futuro são precisamente as pala- vras-chave para sintetizar o significa- do da viagem do Papa à Arménia, que se concluiu na tarde de domin- go, 26 de junho, com a assinatura da declaração comum juntamente com o catholicos Karekin II, que o acom- panhou em todas as etapas da visita. Sobre a necessidade de curar as feridas do passado para «lançar as bases de um futuro que não se deixe absorver pela força enganadora da vingança» o Pontífice insistiu em particular durante o encontro ecu- ménico na tarde de sábado 25, cul- minado na oração pela paz elevada juntamente com o patriarca arménio na praça da República em Yerevan. Mas o convite a preservar a memória dos grandes sofrimentos padecidos pelo povo arménio a fim de olhar com esperança para o futuro ressoou também durante os encontros da viagem que tiveram como cenário sugestivo a sede principal de Etch- miadzin, antiga capital e coração histórico da Igreja apostólica, a cida- de de Gyumri — a segunda do país, aquela em que mais se concentra a presença católica — e o mosteiro de Khor Virap, no vale do monte Ara- rat, próximo da fronteira turca. Nesta visita de profundo significa- do ecuménico, Francisco teve várias vezes ocasião de reafirmar o «forte anseio de unidade» entre os cristãos, com o auspício de que «a Igreja ar- ménia caminhe em paz e a comu- nhão entre nós seja plena». Uma es- perança escrita claramente na decla- ração comum assinada com o catho- licos antes do regresso ao Vaticano. No texto do documento — onde se fala também de solidariedade, se- cularização e família — o Santo Pa- dre e o patriarca denunciam com pa- lavras fortes a «imensa tragédia» que se desenrola no Médio Oriente e noutra partes do mundo em detri- mento de «inúmeras pessoas inocen- tes assassinadas, deportadas e obri- gadas a um doloroso e incerto exílio devido a constantes conflitos de ma- triz étnico, político e religioso». O Papa voltou a falar sobre estes temas com os jornalistas durante o habi- tual encontro no voo de regresso. A conversa não foi só um balanço da visita, mas aprofundou também questões de política internacional. Entre estas o futuro da União euro- peia, depois do referendo que san- cionou a saída da Grã-Bretanha. In- terpelado sobre o argumento Fran- cisco auspiciou «um passo de criati- vidade e também de “sadia desu- nião”: ou seja, dar mais independên- cia, dar mais liberdade aos países da União». Isto equivale, declarou, a «pensar noutra forma de união, a ser criativos. Criativos em relação aos postos de trabalho, à econo- mia». Sobretudo perante a economia «líquida» que «hoje na Europa» causa desemprego e pobreza. PÁGINAS 2 A 10 CONTINUA NA PÁGINA 14

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Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00

L’O S S E RVATOR E ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suum

EM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Ano XLVII, número 26 (2.420) Cidade do Vaticano quinta-feira 30 de junho de 2016

y(7HB5G3*QLTKKS( +]!"!.!?!.!

Francisco concluiu a viagem à Arménia com um novo apelo à fraternidade e à reconciliação

Da memória um futuro de pazNo voo de regresso frisou que a Europa deve reencontrar o espírito criativo

Olhar positivoGI O VA N N I MARIA VIAN

Com a viagem à Arménia o Pon-tífice realizou outra visita do co-ração, nascida já na Argentina docostume e da amizade com os fi-lhos exilados de uma terra ásperacomo as suas pedras e doce comoas melodias dos seus cânticos. Ede modo análogo a imagem doseu povo é «uma vida de pedra euma ternura de mãe» sintetizou oPapa Francisco, abrindo a longaconferência de imprensa no voode regresso a Roma com a recor-dação daqueles dias: «tinha tan-tos contactos com os arménios, iamuitas vezes às suas missas», etambém «uma coisa que normal-mente não me agrada fazer» co-mo os jantares, «e vós fazeis jan-tares pesados!», acrescentou sor-rindo.

Na visita e na conversa com osjornalistas enlaçaram-se a dimen-são ecuménica e a política, masno sentido traçado por Paulo VInuma reflexão que remonta àsprimeiras semanas de pontificado,nas quais precisamente a «políticapapal» é definida «iniciativa sem-pre vigilante pelo bem doalheio». Hóspede de Karekin II,em quase todos os momentos davisita o Pontífice foi acompanha-do pelo «supremo patriarca e ca-tholicos de todos os arménios». Ea viagem foi selada com a assina-tura de uma declaração, mais umpasso num «caminho comum jámuito progredido» rumo à unida-de. Que, como disse o Papa, nãoé «uma vantagem estratégica», emuito menos submissão ou absor-ção, mas adesão à vontade deCristo para oferecer ao mundo otestemunho do Evangelho.

E a história ensina que ao lon-go dos séculos o testemunho cris-tão dos arménios atravessou pro-vações tremendas, até aos massa-cres de há um século, «trágicomistério de iniquidade» que o Pa-pa Francisco não hesitou em defi-nir «genocídio». Sem intençõesofensivas ou reivindicativas, maspara repetir que as atrocidades in-fligidas então são «os sofrimentos

Prefácio do Papa sobre o sacerdócio

O raçãofator decisivo

PÁGINA 12

Comemoração do aniversário de ordenação de Bento XVI

Ao serviço da humanidadeNa manhã de terça-feira, 28de junho, o Pontífice presen-ciou ao encontro na Sala Cle-mentina para comemorar osexagésimo quinto aniversárioda ordenação sacerdotal deBento XVI. Depois de ter tro-cado um afetuoso abraçocom o seu predecessor, o Pa-pa Francisco recordou a sua«vida ao serviço da teologia,que não hesitou em definir“busca do amado”; foi istoque Vossa Santidade sempretestemunhou e testemunhaainda hoje».

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Só a memória é «capaz de se enca-minhar pelas sendas novas e surpre-endentes», transformando «os enre-dos de ódio em projetos de reconci-liação» que permitem «esperar numporvir melhor para todos». Memóriae futuro são precisamente as pala-

vras-chave para sintetizar o significa-do da viagem do Papa à Arménia,que se concluiu na tarde de domin-go, 26 de junho, com a assinatura dadeclaração comum juntamente como catholicos Karekin II, que o acom-panhou em todas as etapas da visita.

Sobre a necessidade de curar asferidas do passado para «lançar asbases de um futuro que não se deixeabsorver pela força enganadora davingança» o Pontífice insistiu emparticular durante o encontro ecu-ménico na tarde de sábado 25, cul-minado na oração pela paz elevadajuntamente com o patriarca arméniona praça da República em Yerevan.Mas o convite a preservar a memóriados grandes sofrimentos padecidospelo povo arménio a fim de olharcom esperança para o futuro ressooutambém durante os encontros daviagem que tiveram como cenáriosugestivo a sede principal de Etch-miadzin, antiga capital e coraçãohistórico da Igreja apostólica, a cida-de de Gyumri — a segunda do país,aquela em que mais se concentra apresença católica — e o mosteiro deKhor Virap, no vale do monte Ara-rat, próximo da fronteira turca.

Nesta visita de profundo significa-do ecuménico, Francisco teve váriasvezes ocasião de reafirmar o «forteanseio de unidade» entre os cristãos,com o auspício de que «a Igreja ar-ménia caminhe em paz e a comu-nhão entre nós seja plena». Uma es-perança escrita claramente na decla-ração comum assinada com o catho-licos antes do regresso ao Vaticano.

No texto do documento — ondese fala também de solidariedade, se-cularização e família — o Santo Pa-

dre e o patriarca denunciam com pa-lavras fortes a «imensa tragédia»que se desenrola no Médio Orientee noutra partes do mundo em detri-mento de «inúmeras pessoas inocen-tes assassinadas, deportadas e obri-gadas a um doloroso e incerto exíliodevido a constantes conflitos de ma-

triz étnico, político e religioso». OPapa voltou a falar sobre estes temascom os jornalistas durante o habi-tual encontro no voo de regresso. Aconversa não foi só um balanço davisita, mas aprofundou tambémquestões de política internacional.Entre estas o futuro da União euro-peia, depois do referendo que san-cionou a saída da Grã-Bretanha. In-terpelado sobre o argumento Fran-cisco auspiciou «um passo de criati-vidade e também de “sadia desu-nião”: ou seja, dar mais independên-cia, dar mais liberdade aos países daUnião». Isto equivale, declarou, a«pensar noutra forma de união, aser criativos. Criativos em relaçãoaos postos de trabalho, à econo-mia». Sobretudo perante a economia«líquida» que «hoje na Europa»causa desemprego e pobreza.

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CO N T I N UA NA PÁGINA 14

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página 2 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 30 de junho de 2016, número 26

L’OSSERVATORE ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suumEM PORTUGUÊSNon praevalebunt

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w w w. o s s e r v a t o re ro m a n o .v a

GI O VA N N I MARIA VIANd i re t o r

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À sua chegada à Arménia o Papa lembrou a urgência de superar os conflitos e promover a unidade

Novos caminhos de diálogoO Papa Francisco chegou a Yerevan às14h50 de 24 de junho. O primeiro atoprotocolar da sua viagem à Arméniafoi a breve cerimónia de boas-vindas noaeroporto da capital. Imediatamentedepois, o Pontífice transferiu-se para acatedral apostólica da SantaEtchmiadzin, onde se deteve algunsinstantes em recolhimento e oração.Após a saudação do catholicos KarekinII, o Pontífice proferiu as seguintesp a l a v ra s .

Santidade, Venerado IrmãoPatriarca Supremo e Catholicosde todos os ArméniosQueridos irmãos e irmãs em Cristo!Atravessei, comovido, o limiar destelugar sagrado, testemunha da histó-ria do vosso povo, centro irradiadorda sua espiritualidade; e consideroum dom precioso de Deus poder-meaproximar do santo altar donde re-fulgiu a luz de Cristo na Arménia.Saúdo o Catholicos de todos os Ar-ménios, Sua Santidade Karekin II, aquem agradeço cordialmente o gratoconvite para visitar a Santa Etch-miadzin, os arcebispos e bispos daIgreja apostólica arménia, reconheci-do pela receção cordial e jubilosaque todos vós me proporcionastes.Obrigado, Santidade, por me teracolhido na sua casa; este sinal deamor exprime, de maneira muitomais eloquente que as palavras, oque significam a amizade e a carida-de fraterna.

Nesta ocasião solene, dou graçasao Senhor pela luz da fé acesa navossa terra, fé que conferiu à Armé-nia a sua identidade peculiar e a tor-nou mensageira de Cristo entre asnações. Cristo é a vossa glória, avossa luz, o sol que vos iluminou edeu uma nova vida, que vos acom-panhou e amparou, especialmentenos momentos de maior provação.Curvo-me diante da misericórdia doSenhor, que quis que a Arménia setornasse a primeira nação, desde oano de 301, a acolher o cristianismocomo sua religião, numa época emque ainda grassavam as perseguiçõesno império romano.

Para a Arménia, a fé em Cristonão foi uma espécie de vestido quese põe ou que se tira segundo as cir-cunstâncias e conveniências, mas foium elemento constitutivo da suaprópria identidade, um dom deenorme valor que se há de acolhercom alegria e guardar com empenhoe fortaleza, à custa da própria vida.Como escreveu são João Paulo II,«com o “Batismo” da comunidadearménia (...) nasce uma identidadenova do povo, que se tornará parteconstitutiva e inseparável do próprioser arménio. Desde então já não foimais possível pensar que, entre oscomponentes dessa identidade, nãoesteja a fé em Cristo como elementoessencial» (Carta Apostólica por oca-

sião do 1.700º aniversário do Batismodo Povo arménio [2 de fevereiro de2001], 2). Queira o Senhor aben-çoar-vos por este luminoso testemu-nho de fé, que demonstra de manei-ra exemplar, com o sinal eloquente esagrado do martírio, a poderosa efi-cácia e fecundidade do Batismo re-

cebido há mais de mil e setecentosanos, que se manteve um elementoconstante na história do vosso povo.

Agradeço ao Senhor também ocaminho que a Igreja católica e aIgreja apostólica arménia realizaram,através de um diálogo sincero e fra-

terno, para chegar à plena partilhada Mesa eucarística. Que o EspíritoSanto nos ajude a realizar a unidadepela qual rezou nosso Senhor, pe-dindo que todos os seus discípulossejam um só e o mundo creia.Apraz-me lembrar aqui o impulsodecisivo dado à intensificação das re-lações e ao fortalecimento do diálo-go entre as nossas duas Igrejas nosúltimos tempos por Suas SantidadesVasken I e Karekin I, por são JoãoPaulo II e por Bento XVI. Dentre asetapas particularmente significativasdeste empenho ecuménico, lembro acomemoração das Testemunhas da fédo século XX, no contexto do Gran-de Jubileu do Ano 2000; a entrega aVossa Santidade da relíquia do Paida Arménia cristã, são Gregório, oIluminador, para a nova catedral deYerevan; a Declaração conjunta deSua Santidade João Paulo II e deVossa Santidade, assinada aqui mes-mo na Santa Etchmiadzin; e as visi-tas que Vossa Santidade fez ao Vati-cano por ocasião de importantesacontecimentos e comemorações.

O mundo está, infelizmente, mar-cado por divisões e conflitos, bemcomo por graves formas de pobrezamaterial e espiritual, incluindo a ex-ploração das pessoas, mesmo decrianças e idosos, e espera dos cris-tãos um testemunho de estima mú-

Da memória o futuroGI O VA N N I MARIA VIAN

A melodia pungente das flautas se-lou em Yerevan a homenagem pres-tada pelo Papa Francisco ao memo-rial de Tzitzernakaberd, o monu-mento a partir do qual é possívelver à distância o monte Ararat co-berto de neve e que, com as suaspedras cinzentas, recorda as inúme-ras vítimas do «grande mal» (MetzYeghern), que há um século se aba-teu impiedosamente sobre o povoarménio. Um extermínio assustadorque poucas horas antes, no paláciopresidencial, o Pontífice tinha defi-nido «genocídio», enunciando comgravidade a palavra e recordandoque desta tragédia as grandes po-tências afastaram o olhar, como de-pois aconteceu diante dos outrosdois principais extermínios do sécu-lo passado, perpetrados pelo nazis-mo e pelo comunismo.

Hoje é preciso construir sobre amemória, sem a diluir nem esque-cer, porque ela é fonte de paz e defuturo, quis acrescentar de própriopunho o Pontífice, assinando o li-vro de honra depois da oração nosacrário onde arde a chama perene,e resumindo com tais palavras bro-

tadas do coração o sentido da suaviagem. Visita com a qual Francis-co, hóspede de Karekin II em Etch-miadzin, desejou honrar mais umavez o povo arménio, fortalecendo odiálogo ecuménico com a Igrejaapostólica que se desenvolveu so-bretudo nos últimos anos, inclusivecom o intercâmbio de visitas.

Portanto, uma memória sobre aqual construir o futuro, em buscada paz. E precisamente a memóriafoi indicada pelo Papa como funda-mento desta construção, juntamentecom a fé e o amor misericordioso,na homilia da missa celebrada emGyumri para a pequena comunida-de católica local: memória pessoalmas também do povo, fé que nãopertence ao passado, mas continua-mente «nasce e renasce do encontrovivificador com Jesus», amor pelaprocura perseverante de caminhosde comunhão e de pontes para su-perar todas as separações.

E assim que chegou, o primeirogesto do Pontífice foi a visita àSanta Etchmiadzin, onde rezoucom Karekin II, com bispos e fiéisda Igreja apostólica. Cristo é o Solda Arménia, disse o Papa, recor-dando que no início do século IV o

país se tornou a primeira nação de-claradamente cristã, antecipando oseditos emanados durante o impérioromano depois da última grandeperseguição. E a fé em Cristo,acrescentou Bergoglio, não é umaroupa que vestimos e tiramos, masuma «realidade constitutiva»: domque deve ser recebido e conservado,como fez o povo arménio ao longodo tempo e até à custa do martírio,«sinal eloquente e santo».

Dos cristãos o mundo espera umtestemunho de fraternidade e porisso o caminho do ecumenismo temhoje um «valor exemplar», até alémdos confins do cristianismo; efetiva-mente, evoca de modo contínuo oque pode unir, impedindo aindaqualquer «instrumentalização e ma-nipulação da fé». Depois, este mes-mo apelo ressoou mais vigorosodos lábios do Papa no discurso queproferiu no palácio presidencial: éde importância vital que os homensde fé «unam as suas forças paraisolar quem quer que se sirva da re-ligião para promover projetos deguerra, de opressão e de persegui-ção violenta», que instrumentalizame manipulam o santo nome deD eus.

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número 26, quinta-feira 30 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 3

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 2

Chegada à Arménia

Em Yerevan o Pontífice recordou a tragédia do povo arménio

Lição para a humanidadeAs grandes potências viraram a cara para o outro lado

No final da tarde de 24 de junho, o Papa realizou a visita de cortesia ao chefede Estado arménio, encontrando-se sucessivamente, ainda no palácio presidencialde Yerevan, com as autoridades da Nação, com os representantes da sociedadecivil e com os membros do Corpo diplomático. Publicamos a seguir a tradução dodiscurso proferido pelo Pontífice em resposta às saudações de boas-vindas que lheforam dirigidas pelo presidente Sargsyan.

mente dos verdugos até ao ponto dese prefixarem o intuito de aniquilarpovos inteiros. Como é triste que,neste caso como nos outros, as gran-des potências virassem a cara para ooutro lado!

Presto homenagem ao povo armé-nio, que, iluminado pela luz doEvangelho, mesmo nos momentosmais trágicos da sua história, sempreencontrou na Cruz e na Ressurreiçãode Cristo a força para se levantar denovo e retomar o caminho com dig-nidade. Isto revela como são profun-das as raízes da fé cristã e que tesou-ro infinito de consolação e esperançaa mesma encerra. Tendo diante dos

nossos olhos os resultados nefastos aque conduziram, no século passado,o ódio, o preconceito e a ambiçãodesenfreada de domínio, espero viva-mente que a humanidade saiba tirardaquelas experiências trágicas a liçãode agir, com responsabilidade e sa-bedoria, para evitar os perigos de re-cair em tais horrores. Por isso multi-pliquem-se os esforços, por parte detodos, para que, nas disputas inter-nacionais, prevaleçam sempre o diá-logo, a busca constante e genuína dapaz, a colaboração entre os Estadose o assíduo empenho das organiza-ções internacionais, a fim de se cons-truir um clima de confiança propícioa alcançar acordos duradouros, quetenham em vista o futuro.

A Igreja católica deseja colaborarativamente com todos aqueles quetêm a peito o destino da civilizaçãoe o respeito pelos direitos da pessoahumana, para fazer prevalecer nomundo os valores espirituais, des-mascarando quantos deturpam o seusignificado e beleza. A propósito, éde importância vital que quantos de-claram a sua fé em Deus unam assuas forças para isolar quem querque use a religião para levar a caboprojetos de guerra, opressão e perse-guição violenta, instrumentalizandoe manipulando o Santo Nome deD eus.

Hoje, nalguns lugares, particular-mente os cristãos — como e talvezmais do que na época dos primeirosmártires — são discriminados e per-seguidos pelo simples facto de pro-fessarem a sua fé, ao mesmo tempoque demasiados conflitos em váriasáreas do mundo permanecem ainda

sem soluções positivas, causando lu-tos, destruições e migrações forçadasde populações inteiras. Por isso, éindispensável que os responsáveispelo destino das nações empreen-dam, com coragem e sem tardar, ini-ciativas destinadas a pôr fim a estessofrimentos, fazendo da busca dapaz, da defesa e do acolhimento daspessoas que são alvo de agressões eperseguições, da promoção da justi-ça e de um desenvolvimento susten-tável os seus objetivos primários. Opovo arménio experimentou estas si-tuações na própria carne; conhece osofrimento e a dor, conhece a perse-guição; guarda na sua memória nãosó as feridas do passado, mas tam-bém o espírito que sempre lhe per-mitiu começar de novo. Neste senti-do, eu encorajo-o a prestar a sua va-liosa contribuição à comunidade in-ternacional.

Este ano tem lugar o 25º aniversá-rio da independência da Arménia. Éuma circunstância feliz que nos ale-gra e dá ocasião para lembrar os ob-jetivos alcançados e propor-se novasmetas a atingir. Os festejos por estajubilosa ocorrência serão ainda maissignificativos, se se tornarem paratodos os arménios, na pátria e nadiáspora, um momento especial dereunir e coordenar as energias com oobjetivo de favorecer um desenvolvi-mento civil e social, equitativo e in-clusivo do país. Trata-se de verificarconstantemente que nunca se falteaos imperativos morais de justiçaigual para todos e de solidariedadepara com os fracos e os menos afor-tunados (cf. João Paulo II, D i s c u rs ode despedida da Arménia, 27 de se-tembro de 2001: Insegnamenti XXIV/2[2001], 489). A história do vossopaís caminha lado a lado com a suaidentidade cristã, preservada no de-curso dos séculos. Esta identidadecristã, longe de obstaculizar a sã lai-cidade do Estado, exige-a e alimen-ta-a, estimulando a cidadania parti-cipativa de todos os membros da so-ciedade, a liberdade religiosa e o res-peito pelas minorias. A coesão detodos os arménios e o maior esforçopor identificar estradas úteis para su-perar as tensões com alguns paísesvizinhos tornarão mais fácil realizarestes objetivos importantes, inaugu-rando uma época de verdadeiro re-nascimento para a Arménia.

A Igreja católica por seu lado,apesar dos limitados recursos huma-nos da sua presença no país, de bomgrado oferece a sua contribuição pa-ra o crescimento da sociedade, parti-cularmente na sua ação a favor dosmais vulneráveis e dos mais pobres,nas áreas da saúde e da educação eno campo específico da caridade, co-mo testemunham o trabalho desem-penhado desde há vinte e cinco anospelo hospital «Redemptoris Mater»em Ashotzk, a atividade do institutoeducativo em Yerevan, as iniciativasda Caritas da Arménia e as obras ge-ridas pelas congregações religiosas.

Deus abençoe e proteja a Armé-nia, terra iluminada pela fé, pela co-ragem dos mártires, pela esperançamais forte do que toda a dor.

Senhor PresidenteDistintas AutoridadesIlustres Membrosdo Corpo DiplomáticoSenhores e Senhoras!Para mim é motivo de grande ale-gria poder estar aqui, tocar o solodesta terra arménia tão querida, visi-tar um povo de antigas e ricas tradi-ções, que testemunhou corajosamen-te a sua fé, que sofreu muito massempre voltou a renascer.

«O nosso céu turquês, as águaslímpidas, o lago de luz, o sol de ve-rão e, de inverno, o galhardo ventonorte (...) a pedra dos milénios (...)os livros gravados com o estilete, fei-tos oração» (Elise Ciarenz, Ode àAr m é n i a ). Estas são algumas dasimagens impressionantes que umilustre poeta vosso oferece para nosiluminar sobre a profundidade dahistória e sobre a beleza da naturezada Arménia. Encerram, em poucasexpressões, o eco e a densidade daexperiência gloriosa e dramática deum povo e o amor comovido pelasua pátria.

Agradeço-lhe vivamente, SenhorPresidente, as gentis palavras deboas-vindas, que me dirigiu em no-me do Governo e dos habitantes daArménia, e a possibilidade que medeu, com o seu amável convite, deretribuir a visita que o Senhor Presi-dente fez ao Vaticano, no ano passa-do, para participar numa solene ce-lebração na basílica de São Pedro,juntamente com Suas SantidadesKarekin II, Patriarca Supremo e Ca-tholicos de todos os Arménios,Aram I, Catholicos da Grande Casada Cilícia, e Sua Beatitude NersesBedros XIX, Patriarca da Cilícia dosArménios, recentemente falecido.Naquela ocasião, comemorou-se ocentenário do Metz Yeghern, o«Grande Mal», que atingiu o vossopovo e causou a morte de uma mul-tidão enorme de pessoas. Aquela tra-gédia, aquele genocídio, marcou oinício, infelizmente, do triste elencodas imensas catástrofes do séculopassado, tornadas possíveis poraberrantes motivações raciais, ideoló-gicas ou religiosas, que ofuscaram a

tua e colaboração fraterna, quefaça resplandecer diante de cadaconsciência o poder e a verdadeda Ressurreição de Cristo. O es-forço paciente e renovado rumo àunidade plena, a intensificaçãodas iniciativas comuns e a colabo-ração entre todos os discípulos doSenhor tendo em vista o bem co-mum são como que uma luz re-fulgente na noite escura e umapelo a viver, na caridade e com-preensão mútua, as próprias dife-renças. O espírito ecuménico ad-quire valor exemplar mesmo foradas fronteiras visíveis da comuni-dade eclesial, constituindo paratodos uma forte chamada a com-por as divergências através dodiálogo e valorização de tudoaquilo que une. Além disso impe-de a instrumentalização e mani-pulação da fé, porque obriga a re-descobrir as suas raízes genuínas,a comunicar, defender e difundira verdade no respeito pela digni-dade de cada ser humano e se-gundo modalidades em que trans-pareça a presença daquele amor edaquela salvação que se quer es-palhar. Deste modo, oferece-se ao

mundo — extremamente necessita-do — um testemunho convincentede que Cristo está vivo e ativo,capaz de abrir caminhos de re-conciliação sempre novos entre asnações, as civilizações e as reli-giões. Atesta-se e torna-se credívelque Deus é amor e misericórdia.

Queridos irmãos, quando anossa atividade é inspirada e mo-vida pela força do amor de Cris-to, crescem o conhecimento e aestima recíprocas, criam-se melho-res condições para um caminhoecuménico frutuoso e, ao mesmotempo, mostra-se a todas as pes-soas de boa vontade e à socieda-de inteira um caminho concretoque se pode percorrer para har-monizar os conflitos que dilace-ram a vida civil e cavam divisõesdifíceis de curar. Deus Todo-Po-deroso, Pai de Nosso Senhor Je-sus Cristo, por intercessão de Ma-ria Santíssima, de são Gregório, oIluminador, «coluna de luz daSanta Igreja dos Arménios», e desão Gregório de Narek, doutor daIgreja, abençoe a vós todos e àNação arménia inteira e a guardesempre na fé que recebeu dospais e testemunhou gloriosamenteno decurso dos séculos.

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página 4 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 30 de junho de 2016, número 26

Durante a missa em Gyumri o Papa indicou aos fiéis o caminho para reedificar a vida cristã

Três alicerces estáveisNa manhã de 25 de junho, segundodia em terra arménia, o PapaFrancisco visitou o memorial deTzitzernakaberd e em seguida, de avião,transferiu-se para Gyumri onde, napraça Vartanánts, celebrou para osmembros da comunidade católica locala missa votiva da misericórdia deDeus, em rito latino. Estava presentetambém o catholicos Karekin II, que noinício da celebração dirigiu um brevediscurso de saudação ao SumoPontífice. A seguir, o texto da homiliado Santo Padre.

«Levantarão os antigos escombros,restaurarão as cidades destruídas»(Is 61, 4). Nestes lugares, amados ir-mãos e irmãs, podemos dizer que serealizaram as palavras do profetaIsaías, que ouvimos. Depois das de-vastações terríveis do terramoto, es-tamos aqui hoje para dar graças aDeus por tudo o que foi reconstruí-do.

Mas poderíamos também questio-nar-nos: que nos convida o Senhor aconstruir hoje na vida? E sobretudo:Sobre que alicerce nos chama a cons-truir a nossa vida? Procurando res-ponder a esta pergunta, gostaria depropor-vos três alicerces estáveis s o b reos quais podemos, incansavelmente,edificar e reedificar a vida cristã.

O primeiro alicerce é a memória.Uma graça que devemos pedir é ade saber recuperar a memória, a me-mória daquilo que o Senhor realizouem nós e por nós: trazer à menteque Ele, como diz o Evangelho dehoje, não nos esqueceu, mas «recor-dou-se» (Lc 1, 72) de nós: escolheu-nos, amou-nos, chamou-nos e perdo-ou-nos; na nossa história pessoal deamor com ele, houve grandes acon-tecimentos que se devem reavivarcom a mente e o coração. Mas hátambém outra memória a salvaguar-dar: a memória do povo. De facto,os povos têm uma memória, comoas pessoas. E a memória do vossopovo é muito antiga e preciosa. Nasvossas vozes, ressoam as dos Santossábios do passado; nas vossas pala-vras, há o eco de quem criou o vos-so alfabeto, com a finalidade deanunciar a Palavra de Deus; nos vos-sos cânticos, misturam-se os gemidose as alegrias da vossa história. Pen-sando em tudo isto, certamente po-

dereis reconhecer a presença deDeus: Ele não vos deixou sozinhos.Mesmo no meio de adversidades tre-mendas, poderemos dizer, com oEvangelho de hoje, que o Senhor vi-sitou o vosso povo (cf. Lc 1, 68): re-cordou-se da vossa fidelidade aoEvangelho, das primícias da vossafé, de todos aqueles que testemunha-ram, mesmo à custa do sangue, queo amor de Deus vale mais que a vi-da (cf. Sl 63, 4). É bom para vós po-derdes lembrar, com gratidão, que afé cristã se tornou a respiração dovosso povo e o coração da sua me-mória.

E a fé constitui também a espe-rança para o vosso futuro, a luz nocaminho da vida, sendo ela o segun-do alicerce de que gostaria de vosfalar. Há sempre um perigo que po-de fazer esmorecer a luz da fé: é atentação de a reduzir a algo do pas-sado, algo importante mas própriode outros tempos, como se a fé fosseum lindo livro de miniaturas que sedeve conservar num museu. Mas ela,se for encerrada nos arquivos da his-tória, perde a sua força transforma-dora, a sua vivacidade, a sua abertu-

vens, não tenhais medo, dizei-lhe«sim». Ele conhece-nos, ama-nos deverdade, e deseja libertar o coraçãodos fardos do medo e do orgulho.Abrindo espaço a Ele, tornamo-noscapazes de irradiar amor. Desta for-ma, podereis dar continuidade àvossa grande história de evangeliza-ção, de que a Igreja e o mundo pre-cisam nestes tempos conturbados,mas que são também os tempos dam i s e r i c ó rd i a .

O terceiro alicerce, depois da me-mória e da fé, é precisamente o amormisericordioso: é sobre esta rocha, arocha do amor recebido de Deus eoferecido ao próximo, que se baseiaa vida do discípulo de Jesus. E é vi-vendo a caridade que rejuvenesce ese torna atraente o rosto da Igreja.O amor concreto é o cartão de visitado cristão: outras maneiras de seapresentar podem ser enganadoras eaté inúteis, pois todos saberão quesomos seus discípulos por isto: senos amarmos uns aos outros (cf. Jo13, 35). Somos chamados, antes demais nada, a construir e reconstruirincansavelmente vias de comunhão,a edificar pontes de união e a supe-

rar as barreiras de separação. Que oscrentes deem sempre o exemplo, co-laborando entre si no respeito recí-proco e no diálogo, sabendo que «aúnica competição possível entre osdiscípulos do Senhor é a de verificarquem é capaz de oferecer o amormaior» (João Paulo II, Homilia, 27de setembro de 2001: Insegnamenti,XXIV/2 [2001], 478).

Na primeira leitura, o profetaIsaías recordou-nos que o espíritodo Senhor repousa sobre quem levaa boa-nova aos miseráveis, cura aschagas dos corações despedaçados econsola os aflitos (cf. 61, 1-2). Deushabita no coração de quem ama;Deus habita onde se ama, especial-mente onde se cuida, com coragem ecompaixão, dos frágeis e dos pobres.Há tanta necessidade disto: há ne-cessidade de cristãos que não se dei-xem abater pelas fadigas nem desa-nimem com as adversidades, mas es-tejam disponíveis e abertos, prontosa servir; há necessidade de homensde boa vontade que efetivamente, enão apenas em palavras, ajudem osirmãos e as irmãs em dificuldade; hánecessidade de sociedades mais jus-tas, onde cada um possa gozar devida digna a começar por um traba-lho justamente remunerado.

Entretanto poderíamos questio-nar-nos: como é possível tornar-semisericordioso, com todos os defei-tos e misérias que cada um vê den-tro de si e ao seu redor? Gostariaaqui de me inspirar num exemploconcreto, num grande arauto da mi-sericórdia divina, que propus à aten-ção de todos ao incluí-lo entre osdoutores da Igreja universal: sãoGregório de Narek, palavra e voz daArménia. É difícil encontrar alguémcomo ele, capaz de medir as misériasabissais que se podem esconder nocoração do ser humano. Mas elesempre colocou em diálogo as misé-rias humanas e a misericórdia deDeus, elevando uma ardente súplicafeita de lágrimas e confiança no Se-nhor, «dador dos dons, a bondadepor natureza (...) voz de consolação,anúncio de conforto, impulso de ale-gria (...) ternura incomparável, mise-ricórdia transbordante (...) beijo desalvação» (Livro das lamentações, 3,1), na certeza de que «jamais é ofus-cada pelas trevas da ira a luz da[sua] misericórdia» (ibid., 16, 1). Gre-gório de Narek é um mestre de vida,porque nos ensina que é importante,em primeiro lugar, reconhecermo-nos necessitados de misericórdia e de-pois, perante as misérias e as feridasque individuarmos, não nos fechar-mos em nós mesmos mas abrir-nos,com sinceridade e confiança, ao Se-nhor, «Deus vizinho, ternura deBondade» (ibid., 17, 2), «cheio deamor pelo homem, (...) fogo quequeima o restolho do pecado» (ibid.,16, 2).

Por fim gostaria de invocar, comas suas palavras, a misericórdia divi-na e o dom de nunca nos cansarmosde amar: Espírito Santo, «poderosoprotetor, intercessor e pacificador,nós Vos dirigimos as nossas súplicas(...). Concedei-nos a graça de nosestimularmos à caridade e às boas

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ra positiva aos outros. Aocontrário, a fé nasce e re-nasce do encontro vivifi-cante com Jesus, da expe-riência da sua misericórdiaque ilumina todas as situa-ções da vida. Far-nos-ábem reavivar cada dia esteencontro vivo com o Se-nhor. Far-nos-á bem ler aPalavra de Deus e abrir-nos, em silenciosa oração,ao seu amor. Far-nos-ábem deixar que o encontrocom a ternura do Senhoracenda a alegria no cora-ção: uma alegria maior doque a tristeza, uma alegriaque perdura mesmo nomeio da dor, transforman-do-se em paz. Tudo istorenova a vida, torna-a livree dócil às surpresas, pron-ta e disponível para o Se-nhor e para os outros. Epode acontecer tambémque Jesus nos chame a se-gui-lo mais de perto, a en-tregar a vida a Ele e aosirmãos: se vos convidar,especialmente a vós jo-

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número 26, quinta-feira 30 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 5

O Pontífice pediu aos arménios que se subtraiam à lógica da vingança e trabalhem pela paz

A vossa força é a féDepois da visita a Gyumri, o Papaconcluiu o dia de sábado 25 de junhoem Yerevan onde, na praça daRepública, na presença de Karekin II,teve lugar o encontro ecuménico com aoração comum pela paz. Após asaudação do catholicos, o Pontíficeproferiu o seguinte discurso.

Venerado e caríssimo IrmãoPatriarca Supremoe Catholicos de todos os ArméniosSenhor PresidenteQueridos irmãos e irmãs!A bênção e a paz de Deus estejamcom todos vós!

Desejei ardentemente visitar estaamada terra, o vosso país, o primeiroque abraçou a fé cristã. É uma graçapara mim poder encontrar-me nestasalturas onde, sob a vista do MonteArarat, o próprio silêncio parece fa-lar-nos; onde os khatchkar — as cru-zes de pedra — narram uma históriaúnica, permeada de fé rochosa e desofrimento imenso; uma história ricade magníficas testemunhas do Evan-gelho, de quem vós sois os herdei-ros. Vim peregrino de Roma paravos encontrar e exprimir um senti-mento que me vem do fundo do co-ração: é o afeto do vosso irmão, é oabraço fraterno da Igreja católica in-teira, que vos ama e está solidáriaconvosco.

Nos anos passados, graças a Deus,foram-se intensificando as visitas eos encontros entre as nossas Igrejas,sempre muito cordiais e frequente-mente memoráveis; quis a Providên-cia que, precisamente no dia em queaqui se recordam os santos Apósto-los de Cristo, estejamos de novojuntos para reforçar a comunhãoapostólica entre nós. Estou muitograto a Deus pela «real e íntimaunidade» entre as nossas Igrejas (cf.João Paulo II, Homilia na Celebraçãoecuménica em Yerevan, 26 de setembrode 2001: Insegnamenti, XXIV/2 [2001],466) e agradeço-vos a vossa fidelida-de ao Evangelho, muitas vezes he-roica, que é um dom inestimável pa-ra todos os cristãos. Ao encontrar-mo-nos, não temos uma troca deideias, mas uma troca de dons (cf.Idem, Carta enc. Ut unum sint, 28):recolhemos aquilo que o Espírito se-meou em nós, como um dom paracada um (cf. Francisco, Exort. ap.Evangelii gaudium, 246). Partilhamoscom grande alegria os numerosospassos de um caminho comum jámuito adiantado, e olhamos verda-deiramente com confiança para o diaem que, com a ajuda de Deus, esta-remos unidos junto do altar do sa-crifício de Cristo, na plenitude dacomunhão eucarística. Rumo a estameta tão desejada «somos peregri-nos, e peregrinamos juntos (...)abrindo o coração ao companheirode estrada sem medos, nem descon-fianças» (ibid., 244).

Neste trajeto, precedem-nos eacompanham-nos muitas testemu-nhas, nomeadamente tantos mártiresque selaram com o sangue a fé co-mum em Cristo: são as nossas estre-las no céu, que brilham sobre nós eindicam o caminho que nos faltapercorrer na terra, rumo à plena co-munhão. Dentre os grandes Padres,gostaria de referir o santo CatholicosNerses Shnorhali. Nutria um amorgrande e extraordinário pelo seu po-

vo e as suas tradições e, ao mesmotempo, sentia-se inclinado para asoutras Igrejas, incansável na buscada unidade, desejoso de atuar a von-tade de Cristo: que os crentes «se-jam um só» (Jo 17, 21). Realmente aunidade não é uma espécie de vanta-gem estratégica que se deve procurarpor interesse mútuo, mas aquilo queJesus nos pede, sendo nossa obriga-ção cumpri-lo com boa vontade etodas as nossas forças para se reali-zar a nossa missão: oferecer ao mun-do, com coerência, o Evangelho.

Para realizar a unidade necessária,não basta, segundo são Nerses, aboa vontade de alguém na Igreja: éindispensável a oração de todos. Ébom estar aqui reunidos para rezar-mos uns pelos outros, uns com os ou-tros. E o que vim pedir-vos nestatarde é, antes de tudo, o dom daoração. Pela minha parte, asseguro-vos que, ao oferecer o Pão e o Cáli-ce no altar, não deixo de apresentarao Senhor a Igreja da Arménia e ovosso querido povo.

São Nerses sentia a necessidadede aumentar o amor mútuo, porquesó a caridade é capaz de sanar a me-mória e curar as feridas do passado:só o amor cancela os preconceitos epermite reconhecer que a aberturaao irmão purifica e melhora as con-

vicções próprias. Para este santo Ca-tholicos, no caminho rumo à unida-de, é essencial imitar o estilo doamor de Cristo que, «sendo rico» (2Cor 8, 9), «humilhou-se a si pró-prio» (Fl 2, 8). Seguindo o seuexemplo, somos chamados a ter acoragem de deixar as convicções rí-gidas e os interesses próprios, emnome do amor que se humilha e en-trega, em nome do amor humilde: es-te é o óleo abençoado da vida cristã,o unguento espiritual precioso quecura, fortalece e santifica. «Às faltas,suprimos com uma caridade unâni-me», escrevia são Nerses (Cartas dosenhor Nerses Shnorhali, Catholicos dosAr m é n i o s , Veneza 1873, 316), e mesmo— dava a entender — com uma parti-cular doçura de amor, que abranda adureza dos corações dos cristãos,também eles não raro fechados em simesmos e nos seus interesses. Nãosão os cálculos nem as vantagensmas o amor humilde e generoso queatrai a misericórdia do Pai, a bênçãode Cristo e a abundância do EspíritoSanto. Rezando e «amando-nos in-tensamente uns aos outros do fundodo coração» (cf. 1 Pd 1, 22), comhumildade e abertura de espírito,disponhamo-nos a receber o dom di-vino da unidade. Continuemos, de-cididos, o nosso caminho, ou me-

lhor, corramos para a plena comu-nhão entre nós!

«Dou-vos a minha paz. Não é co-mo a dá o mundo que Eu vo-ladou» (Jo 14, 27). Ouvimos estas pa-lavras do Evangelho, que nos predis-põem a implorar de Deus aquelapaz que o mundo sente tanta dificul-dade em encontrar. Como são gran-des, hoje, os obstáculos no caminhoda paz, e trágicas as consequênciasdas guerras! Penso nas populaçõesforçadas a abandonar tudo, especial-mente no Médio Oriente onde mui-tos dos nossos irmãos e irmãs sofremviolências e perseguição por causado ódio e de conflitos sempre fo-mentados pelo flagelo da prolifera-ção e do comércio de armas, pelatentação de recorrer à força e pelafalta de respeito pela pessoa huma-na, especialmente os vulneráveis, ospobres e aqueles que pedem apenasuma vida digna.

Não consigo deixar de pensar nasprovações terríveis que o vosso povoexperimentou: completou-se há pou-co um século do «Grande Mal» quese abateu sobre vós. Este «enorme elouco extermínio» (Francisco, Sau-dação no início da Santa Missa paraos fiéis de rito arménio, 12 de abril de2015), este trágico mistério de iniqui-dade que o vosso povo provou naprópria carne, permanece impressona memória e arde no coração. Que-ro reiterar que os vossos sofrimentossão nossos: «São os sofrimentos dosmembros do Corpo místico de Cris-to» (João Paulo II, Carta Apostólicapor ocasião do 1.700° aniversário doBatismo do Povo arménio, 4: Insegna-menti, XXIV/1 [2001], 275); recordá-los é não só oportuno, mas tambémforçoso: são uma advertência em to-do o tempo, para que o mundo nãovolte jamais a cair na espiral de taish o r ro re s .

Ao mesmo tempo desejo lembrar,com admiração, como a fé cristã,«também nos momentos mais trági-cos da história arménia, foi a molapropulsora que assinalou o início dorenascimento do povo provado»(ibid., 276). A fé é a vossa verdadeiraforça, que permite abrir-se à via mis-teriosa e salvífica da Páscoa: as feri-das ainda abertas, causadas peloódio feroz e insensato, podem de al-gum modo assemelhar-se às de Cris-to ressuscitado, as feridas que lhe fo-

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O catholicos de todos os Arménios, Karekin II, ofereceu na grande sa-la do rés do chão da sua residência, um almoço depois da celebraçãoda divina liturgia em Etchmiadzin na manhã de domingo 26 de junho.Reunidos em volta da mesma mesa, com o patriarca e o Papa, arcebis-pos e bispos arménios quer apostólicos quer católicos, e os membrosdo séquito papal.

No palácio apostólico

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página 6 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 30 de junho de 2016, número 26

Divina liturgia em Etchmiadzin

Aceleremos o passoNa manhã de domingo 26 de junho,último dia da viagem apostólica, depoisdo encontro com o episcopado católicoFrancisco participou em Etchmiadzinna Divina Liturgia presidida pelocatholicos na praça de São Tirídates.A seguir, o texto da saudação dirigidapelo Pontífice aos fiéis presentes, após odiscurso de Karekin II.

SantidadeCaríssimos BisposQueridos irmãos e irmãs!

No ponto culminante desta visitatão desejada e, para mim, já inesque-cível, desejo elevar ao Senhor a mi-nha gratidão, que uno ao grande hi-no de louvor e agradecimento que

lavras do apóstolo Paulo. Foi preci-samente sob o signo dos santosApóstolos que nos encontramos. Ossantos Bartolomeu e Tadeu, que pro-clamaram pela primeira vez o Evan-gelho nestas terras, e os santos Pe-dro e Paulo, que deram a vida peloSenhor em Roma, ao mesmo tempoque reinam com Cristo no céu, cer-tamente se alegram ao ver o nossoafeto e a nossa aspiração concreta àplena comunhão. Por tudo isto dougraças ao Senhor, por vós e convos-co: Glória a Deus!

Nesta Divina Liturgia, elevou-seao céu o canto solene do triságio,

louvando a santidade de Deus; des-ça, abundante, a bênção do Altíssi-mo sobre a terra, pela intercessão daMãe de Deus, dos grandes santos edoutores, dos mártires, especialmen-te da multidão de mártires que aquicanonizastes no ano passado. «OUnigénito que aqui desceu» abençoeo nosso caminho. O Espírito Santofaça dos crentes um só coração euma só alma: venha refundar-nos naunidade. Por isso, gostaria de invocá-lo novamente, fazendo minhas algu-mas palavras esplêndidas que entra-ram na vossa Liturgia: Vinde, ó Es-pírito! Vós «que sois, com gemidosincessantes, o nosso intercessor juntodo Pai misericordioso, Vós que guar-dais os santos e purificais os pecado-res»; derramai sobre nós o vosso fo-go de amor e unidade, e «sejam des-feitos por este fogo os motivos donosso escândalo» (Gregório de Na-rek, Livro das lamentações, 33, 5), acomeçar pela falta de unidade entreos discípulos de Cristo.

Que a Igreja arménia caminhe empaz, e a comunhão entre nós sejaplena. Surja em todos um forte an-seio de unidade, uma unidade quenão deve ser «submissão de um aooutro, nem absorção, mas sim aco-lhimento de todos os dons que Deusdeu a cada um para manifestar aomundo inteiro o grande mistério dasalvação realizado por Cristo Senhoratravés do Espírito Santo» (P a l a v ra sno final da Divina Liturgia, Igrejapatriarcal de São Jorge, Istambul, 30de novembro de 2014).

Acolhamos o apelo dos santos,ouçamos a voz dos humildes e dospobres, das inúmeras vítimas doódio que sofreram e sacrificaram avida pela fé; prestemos ouvidos àsgerações mais jovens, que pedem umfuturo livre das divisões do passado.Que, deste lugar santo, se difundanovamente uma luz radiosa; e à luzda fé, que desde são Gregório, vossopai segundo o Evangelho, iluminouestas terras, una-se a luz do amorque perdoa e reconcilia.

Tal como os Apóstolos na manhãde Páscoa, apesar das dúvidas e in-certezas, correram até ao lugar daressurreição, atraídos pela aurora fe-liz de uma esperança nova (cf. Jo20, 3-4) assim também nós, nestedomingo santo, sigamos a chamadade Deus à plena comunhão e acele-remos o passo rumo a ela.

E agora, Santidade, em nome deDeus, peço-vos que me abençoeis,que abençoeis a mim e à Igreja cató-lica, que abençoeis esta nossa corri-da rumo à plena unidade.

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ram infligidas e que traz ainda im-pressas na sua carne. Mostrou-as,gloriosas, aos discípulos na tarde dePáscoa (cf. Jo 20, 20): aquelas cha-gas terrivelmente dolorosas recebi-das na cruz, transfiguradas peloamor, tornaram-se fontes de perdãoe paz. Assim, mesmo a dor maior,transformada pela força salvífica daCruz de que os Arménios são arau-tos e testemunhas, pode tornar-seuma semente da paz para o futuro.

Realmente a memória, permeadapelo amor, torna-se capaz de se en-caminhar por sendas novas e sur-preendentes, onde as tramas deódio se transformam em projetos dereconciliação, onde se pode esperarnum futuro melhor para todos, ondesão «felizes os obreiros da paz»(Mt 5, 9). Fará bem a todos com-prometer-se por colocar as bases deum futuro que não se deixe absor-ver pela força ilusória da vingança;um futuro, onde nunca nos canse-mos de criar as condições para apaz: um trabalho digno para todos,a solicitude pelos mais necessitadose a luta sem tréguas contra a cor-rupção que deve ser extirpada.

Queridos jovens, este futuro per-tence-vos, mas valorizando a gran-de sabedoria dos vossos idosos. As-pirai a tornar-vos construtores depaz: não notários do status quo,mas ativos promotores de uma cul-tura do encontro e da reconciliação.Deus abençoe o vosso futuro e«conceda que se retome o caminhode reconciliação entre o povo armé-nio e o povo turco, e possa a pazsurgir também no Nagorno-Kara-

bakh» (Mensagem aos Arménios, 12de abril de 2015).

Nesta perspetiva, gostaria enfimde evocar outra grande testemunhae artífice da paz de Cristo, são Gre-gório de Narek, que proclameiDoutor da Igreja. E poderia serchamado também «Doutor dapaz». Assim escrevia ele naqueleL i v ro extraordinário, que me aprazpensar como a «constituição espiri-tual do povo arménio»: «Recordai-vos [Senhor] daqueles que, na estir-pe humana, são nossos inimigos,mas para seu bem: cumpri nelesperdão e misericórdia. (...) Não ex-termineis aqueles que me mordem:transformai-os! Extirpai a condutaterrena viciosa, e enraizai a boa emmim e neles» (Livro das lamentações,83, 1-2). Narek, «fazendo-se partici-

pante profundamente consciente decada necessidade» (ibid., 3, 2), quismesmo identificar-se com os vulne-ráveis e os pecadores de todo otempo e lugar, para interceder emfavor de todos (cf. ibid., 31, 3; 32, 1;47, 2): fez-se «o “o f e re c e - o r a ç ã o ” detodo o mundo» (ibid., 28, 2). Estasua solidariedade universal com ahumanidade é uma grande mensa-gem cristã de paz, um grito ardenteque implora misericórdia para to-dos. Os arménios, presentes emmuitos países e que daqui desejoabraçar fraternalmente, sejam men-sageiros deste anseio de comunhão.O mundo inteiro precisa deste vos-so anúncio, precisa desta vossa pre-sença, precisa do vosso testemunhomais puro. A paz esteja convosco!

Encontro ecuménico e oração comum pela paz

sobe deste altar. Vossa San-tidade, nestes dias, abriu-me as portas da sua casa eexperimentamos «como ébom e agradável que os ir-mãos vivam unidos» (Sl133, 1). Encontramo-nos,abraçamo-nos fraternalmen-te, rezamos juntos, parti-lhamos os dons, as espe-ranças e as preocupaçõesda Igreja de Cristo, da qualnotamos em uníssono aspulsações do coração, eque acreditamos e sentimosser una. «Há um só Corpoe um só Espírito, assim co-mo (...) uma só esperança;um só Senhor, uma só fé,um só batismo; um sóDeus e Pai de todos, quereina sobre todos, age portodos e permanece em to-dos» (Ef 4, 4-6): verdadei-ramente podemos, com ale-gria, fazer nossas estas pa-

Com os bispose os sacerdotes católicos

Na manhã de 26 de junho, na Sala de entrada do palácio onde tem se-de o catholicos, em Etchmiadzin, Francisco, juntamente com os mem-bros do séquito, teve um encontro informal com os quatorze bispos ca-tólicos das várias comunidades arménias e com os doze sacerdotes quedesempenham o seu ministério no país.

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obras (...). Espírito de doçura, decompaixão, de amor pelo ser hu-mano e de misericórdia (...) Vósque nada mais sois senão miseri-córdia (...) tende piedade de nós,Senhor nosso Deus, segundo a vos-sa grande misericórdia» (Hino dePentecostes).

No final da santa missa, o arcebispoRaphael François Minassian,ordinário para os arménios católicosda Europa Oriental, cuja sede seencontra precisamente em Gyumri,dirigiu ao Papa algumas palavras desaudação às quais Franciscorespondeu, dirigindo aos fiéis eperegrinos presentes as seguintese x p re s s õ e s .

No final desta celebração, desejoexpressar viva gratidão ao Catholi-cos Karekin II e ao Arcebispo Mi-nassian pelas amáveis palavras queme dirigiram, bem como ao Pa-

triarca Ghabroyan e aos Bispospresentes, aos sacerdotes e às Auto-ridades que nos acolheram.

Agradeço a todos vós que viestesparticipar, chegando a Gyumri dediferentes regiões e mesmo da vizi-nha Geórgia. Quero, de modo par-ticular, saudar aqueles que, comtanta generosidade e amor concre-to, ajudam os necessitados. Pensosobretudo no hospital de Ashotsk,inaugurado há vinte e cinco anos econhecido como o «Hospital doPapa»: nascido do coração de sãoJoão Paulo II, é ainda uma presen-ça muito importante e próxima dequem sofre; penso nas obras ani-madas pela comunidade católicalocal, pelas Irmãs arménias daImaculada Conceição e pelas Mis-sionárias da Caridade da beataMadre Teresa de Calcutá.

Que a Virgem Maria, nossaMãe, sempre vos acompanhe e guieos passos de todos pelo caminhoda fraternidade e da paz.

Missa em Gyumri

Compromisso comum pela reconciliação e a fraternidade

O caminho está abertoMilhões de pessoas pedem pão e não armas

Às 16h05 de domingo 26 de junho, nopalácio de Etchmiadzin, o PapaFrancisco e o catholicos Karekin II

assinaram a Declaração conjunta, cujoconteúdo publicamos a seguir.

Hoje na Santa Etchmiadzin, centroespiritual de todos os Arménios, nós,o Papa Francisco e o Catholicos detodos os Arménios Karekin II, eleva-mos as nossas mentes e corações emação de graças ao Todo-Poderosopela progressiva e crescente proximi-dade na fé e no amor entre a Igrejaapostólica arménia e a Igreja católicano seu testemunho comum à mensa-gem do Evangelho da salvação nummundo dilacerado por conflitos edesejoso de conforto e esperança.Louvamos a Santíssima Trindade,Pai, Filho e Espírito Santo, por terpermitido que nos reunamos na ter-ra bíblica de Ararat, que permanececomo uma memória de que Deus se-rá para sempre a nossa proteção esalvação. Grande prazer espiritualnos dá lembrar que, em 2001, porocasião dos 1700 anos da proclama-ção do cristianismo como religião daArménia, são João Paulo II visitou aArménia e foi testemunha de umanova página nas relações calorosas efraternas entre a Igreja apostólica ar-ménia e a Igreja católica. Estamosreconhecidos pela graça que tivemosde estar juntos numa solene liturgiana Basílica de São Pedro em Romano dia 12 de abril de 2015, onde em-penhamos a nossa vontade de nosopor a toda a forma de discrimina-ção e violência, e comemoramos asvítimas daquele que a DeclaraçãoConjunta de Sua Santidade JoãoPaulo II e Sua Santidade Karekin IIassinala como «o extermínio de ummilhão e meio de cristãos arménios,naquele que geralmente é referidocomo o primeiro genocídio do sécu-lo XX» (27 de setembro de 2001).

Louvamos ao Senhor por a fécristã ser, hoje, novamente uma rea-

lidade vibrante na Arménia e por aIgreja arménia exercer a sua missãocom espírito de colaboração fraternaentre as Igrejas, sustentando os fiéisna construção de um mundo de soli-dariedade, justiça e paz.

Infelizmente, porém, estamos aser testemunhas de uma tragédiaimensa que se desenrola diante dosnossos olhos: inúmeras pessoas ino-centes que são mortas, deslocadasou forçadas a um exílio doloroso eincerto devido a contínuos conflitospor motivos étnicos, económicos,políticos e religiosos no MédioOriente e noutras partes do mundo.Em consequência, minorias religiosase étnicas tornaram-se alvo de perse-guição e tratamento cruel, a pontode o sofrimento por uma crença reli-giosa se tornar uma realidade diária.Os mártires pertencem a todas asIgrejas e o seu sofrimento é um«ecumenismo de sangue» que trans-cende as divisões históricas entre oscristãos, convidando-nos todos a

promover a unidade visível dos dis-cípulos de Cristo. Juntos rezamos,por intercessão dos santos ApóstolosPedro e Paulo, Tadeu e Bartolomeu,por uma mudança de coração em to-dos aqueles que cometem tais crimese naqueles que estão em posição deacabar com a violência. Imploramosaos líderes das nações que ouçam oapelo de milhões de seres humanosque anseiam pela paz e a justiça nomundo, que pedem respeito pelosseus direitos dados por Deus, quetêm necessidade urgente de pão, nãode armas. Infelizmente, estamos aser testemunhas de uma apresenta-ção fundamentalista da religião edos valores religiosos, usando talforma para justificar a difusão deódio, discriminação e violência. Ajustificação de tais crimes com baseem conceções religiosas é inaceitável,porque «Deus não é um Deus dedesordem, mas de paz» (1 Cor 14,33). Além disso, o respeito pelas di-ferenças religiosas é condição neces-sária para a convivência pacífica dediferentes comunidades étnicas e re-ligiosas. Precisamente por sermoscristãos, somos chamados a buscar eimplementar caminhos para a recon-ciliação e a paz. A propósito, expres-samos também a nossa esperança deuma resolução pacífica das questõesem torno de Nagorno-Karabakh.

Conscientes do que Jesus ensinouaos seus discípulos, quando disse:«Tive fome e destes-me de comer, ti-ve sede e destes-me de beber, eraperegrino e acolhestes-me, estava nue destes-me de vestir, adoeci e visi-tastes-me, estive na prisão e fostester comigo» (Mt 25, 35-36), pedimosaos fiéis das nossas Igrejas queabram os seus corações e mãos às ví-timas da guerra e do terrorismo, aosrefugiados e suas famílias. Em causaestá o próprio sentido da nossa hu-manidade, da nossa solidariedade,compaixão e generosidade, que sópode ser devidamente expresso nu-ma imediata partilha prática de re-cursos. Reconhecemos tudo o que já

se está a fazer, mas insistimos que énecessário muito mais, por parte doslíderes políticos e da comunidade in-ternacional, em ordem a garantir odireito de todos a viver em paz e se-gurança, para defender o estado dedireito, proteger as minorias religio-sas e étnicas, combater o tráfico deseres humanos e o contrabando.

A secularização de amplos setoresda sociedade, a sua alienação das li-gações espirituais e divinas leva ine-vitavelmente a uma visão dessacrali-zada e materialista do homem e dafamília humana. A este respeito, es-tamos preocupados com a crise dafamília em muitos países. A Igrejaapostólica arménia e a Igreja católicacompartilham a mesma visão da fa-mília, fundada no matrimónio comoato de livre doação e de amor fielentre um homem e uma mulher.

Temos o prazer de confirmar que,apesar das divisões que subsistementre os cristãos, percebemos maisclaramente que aquilo que nos une émuito mais do que aquilo que nosdivide. Esta é a base sólida sobre aqual será manifestada a unidade daIgreja de Cristo, de acordo com aspalavras do Senhor: «Que todos se-jam um só» (Jo 17, 21). Nas últimasdécadas, a relação entre a Igrejaapostólica arménia e a Igreja católicaentrou com êxito numa nova fase,fortalecida pelas nossas orações co-muns e mútuos esforços a fim de su-perar os desafios contemporâneos.Hoje estamos convencidos da im-portância crucial de avançar nestarelação, promovendo uma colabora-ção mais profunda e decisiva, nãosomente na área da teologia, mastambém na oração e na cooperaçãoativa no nível das comunidades lo-cais, com o objetivo de compartilhara comunhão plena e expressões con-cretas de unidade. Exortamos osnossos fiéis a trabalhar harmoniosa-mente pela promoção na sociedadedos valores cristãos que contribuamefetivamente para construir uma civi-lização de justiça, paz e solidarieda-de humana. Diante de nós está asenda da reconciliação e da fraterni-dade. Possa o Espírito Santo, quenos guia para a verdade completa(cf. Jo 16, 13), sustentar todo o esfor-ço genuíno por construir pontes deamor e comunhão entre nós.

Da Santa Etchmiadzin, apelamosa todos os nossos fiéis para se junta-rem a nós nesta oração feita com aspalavras de são Nerses Shnorhali:«Glorioso Senhor, aceitai as súplicasdos vossos servos e, graciosamente,atendei os nossos pedidos, pela in-tercessão da Santa Mãe de Deus,são João Batista, o primeiro mártirsanto Estêvão, são Gregório, o Ilu-minador, os santos Apóstolos, Profe-tas, Teólogos, Mártires, Patriarcas,Eremitas, Virgens e todos os vossossantos no céu e na terra. E a Vós,santa e indivisível Trindade, sejamdadas glória e adoração para sem-pre. Amém!».

Santa Etchmiadzin, 26 de junho de 2016.

SUA SANTIDADE FRANCISCO SUA SANTIDADE KAREKIN II

Page 8: y(7HB5G3*QLTKKS( +]!!.!?!.! OL’ S S E RVATOR E ROMANO · um dom precioso de Deus poder-me aproximar do santo altar donde re-fulgiu a luz de Cristo na Arménia. Saúdo o Catholicos

número 26, quinta-feira 30 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 8/9

Com os jornalistas no voo de regresso a Roma o Papa fez um balanço da viagem à Arménia e falou do futuro da Europa

União criativa

Mosteiro de Khor Virap (26 de junho)Fiéis na oração ecuménica pela paz em Yerevan (25 de junho)

Abraço do Papa a Karekin II

durante a divina liturgia (26 de junho)

Houve um tempo na Igreja em que existiram três!(repete em italiano) Num determinado período, haviatrês na Igreja! Eu não li aquela declaração, porquenão tive tempo. Bento é Papa emérito. Ele disse cla-ramente, naquele 11 de fevereiro, que dava a sua de-missão a partir de 28 de fevereiro, que se retiraria pa-ra ajudar a Igreja com a oração. E Bento está nomosteiro, e reza. Fui visitá-lo muitas vezes, ou fala-mos pelo telefone... No outro dia, escreveu-me um bi-lhetinho — ainda assina com aquela assinatura todasua — fazendo-me os seus votos para esta viagem. Euma vez — não uma, mas várias vezes — eu disse queé uma graça ter em casa o «avô» sábio. Disse-o mes-mo na sua presença, e ele sorriu. Mas, para mim, é oPapa emérito, é o «avô» sábio, é o homem que meguarda os ombros e as costas com a sua oração. Nun-ca esqueço o discurso que nos fez, aos Cardeais, em28 de fevereiro: «Um de vós certamente será o meusucessor. Prometo obediência». E fê-lo. Mais tardeouvi dizer — não sei se isto é verdade; sublinho a pa-lavra ouvi; talvez sejam ditos, mas condiz com o seucaráter — que alguns foram lá lamentar-se porque«este novo Papa...», e ele pô-los fora! Com o melhorestilo bávaro: educado, mas expulsou-os. E, se não éverdade, assenta-lhe bem, porque este homem é as-sim: um homem de palavra, um homem reto, reto, re-to! O Papa emérito. Além disso, não sei se a senhorase lembra, que agradeci publicamente (não sei quan-do, mas acho que foi durante um voo) a Bento porter aberto a porta aos Papas eméritos. Há 70 anos,não havia bispos eméritos; hoje existem. Mas, comeste alongamento da vida, será possível a uma certaidade, com os achaques, dirigir uma Igreja ou não? Eele, com coragem — com coragem! — e com oração etambém com ciência, com teologia, decidiu abrir estaporta. E creio que isto é bom para a Igreja. Mas háapenas um Papa. O outro ou… outros — como suce-de com os bispos eméritos; não digo muitos, mas tal-vez possam ser dois ou três — serão eméritos. Foram[Papas], [agora] são eméritos. Depois de amanhã, ce-lebram-se os 65 anos da sua ordenação sacerdotal. Es-tará presente o seu irmão Georg, pois foram ordena-dos juntos. E haverá um pequeno Ato, com os res-ponsáveis do Dicastério e poucas pessoas mais, por-que ele prefere assim... Aceitou, mas muito modesta-mente; e também eu lá estarei. E direi algo a estegrande homem de oração, de coragem que é o Papa

dem: o primeiro, fazem-no como osgatos e, depois, dão os primeirospassos. Estou contente. Falaram so-bre muitas coisas. Creio que o resul-tado é positivo. O simples facto deestas Igrejas autocéfalas estarem reu-nidas em nome da Ortodoxia, parase fixarem olhos nos olhos, para re-zarem juntos e falarem e talvez dize-rem alguma coisa, mas isto é positi-víssimo. Dou graças ao Senhor. Nopróximo, estarão mais. Bendito sejao Senhor!

[Edward Pentin, do «National Catho-lic Register»] O Santo Padre, comoJoão Paulo II, parece ser um apoianteda União europeia: elogiou o projetoeuropeu quando recebeu recentemente oprémio Carlos Magno. Está preocupadocom o facto da Brexit poder levar àdesintegração da Europa e, eventual-mente, à guerra?

A guerra já está na Europa. Defacto, há um ar de divisão, e não só

não de emancipação; por detrás há histórias, culturas,equívocos; e também tanta boa vontade noutros. Épreciso ter claro isto: para mim, a unidade é sempremaior do que o conflito, sempre! Mas existem dife-rentes formas de unidade; e também a fraternidade —e com isto chego à União Europeia — é melhor doque a inimizade ou do que as distâncias. Comparan-do com as distâncias — digamos — a fraternidade émelhor; e as pontes são melhores do que os muros.Tudo isto nos deve fazer refletir. É verdade que umpaís [declara]: «Estou na União Europeia, mas queroter certas coisas que são minhas, da minha cultura...».E o passo que deve dar a União Europeia — e aquichego ao prémio Carlos Magno — para recuperar aforça que teve nas suas raízes, é um passo de criativi-dade e mesmo de «sã desunião», isto é, dar mais in-dependência, dar mais liberdade aos países da União.Pensar noutra forma de união, ser criativos: criativosquanto a empregos, quanto à economia. Hoje, na Eu-ropa, há uma economia «líquida» que faz com que —na Itália, por exemplo — 40 por cento da juventudedos 25 anos para baixo não tenha trabalho! Há algo

Durante o voo de regresso no final da visita à Armé-nia, na tarde de domingo 26 de junho, a tradicionalconferência de imprensa do Papa foi introduzida pelodiretor da Sala de imprensa da Santa Sé, padre Fede-rico Lombardi. Antes de ouvir as perguntas, que lheforam feitas em várias línguas o Papa saudou os jor-nalistas: «Boa noite! Agradeço-vos imenso a ajudanesta viagem e todo o vosso trabalho, que faz bem àspessoas: comunicar bem as coisas quer dizer boas no-tícias, e as boas notícias fazem sempre bem. Muitoobrigado!».

[Arthur Grygorian, da televisão pública arménia] É bemsabido que o Santo Padre tem amigos arménios. Já tinhacontactos com as comunidades arménias na Argentina.Durante os três últimos dias, o Santo Padre — por assimdizer — chegou a tocar o espírito arménio. Quais são osseus sentimentos, as suas impressões, e qual é a mensa-gem para o futuro, as suas orações por nós, arménios?

Bem, pensemos no futuro e depois vamos ao passa-do. Almejo a este povo justiça e paz; e por isso rezo,porque é um povo corajoso. Rezo para que tenha ajustiça e a paz. Sei que muitos trabalham para isso;ainda na semana passada, fiquei muito contente aover uma fotografia do presidente Putin com os doispresidentes da Arménia e do Azerbaijão: pelo menosfalam-se. E também com a Turquia: o Presidente daRepública [Arménia], no seu discurso de boas-vindas,falou claro. Teve a coragem de dizer: «Ponhamo-nosde acordo, perdoemo-nos e olhemos para o futuro».Esta é uma grande coragem! Um povo que sofreutanto! O ícone do povo arménio — veio-me este pen-samento hoje, enquanto estava a rezar um pouco — éuma vida de pedra e uma ternura de mãe. Carregoucruzes, e cruzes de pedra — isto mesmo é visível [nascaraterísticas cruzes de pedra ditas khachkar] — masnão perdeu a ternura, a arte, a música (aqueles «qua-tro tons» tão difíceis de individuar), e com grandegenialidade... Um povo que sofreu tanto na sua his-tória, e somente a fé, a fé o manteve de pé. Porque ofacto de ter sido a primeira nação cristã não é sufi-ciente; foi a primeira nação cristã, porque o Senhor aabençoou, porque teve santos, bispos santos, márti-res... E por isso, na sua resistência, desenvolveu — di-gamos assim — aquela «pele de pedra», mas não per-deu a ternura de um coração materno; e a Arménia étambém mãe. Esta era a segunda pergunta. Passemosagora à primeira. É verdade! Eu tinha muitos contac-tos com os arménios: frequentemente ia à Missa de-les; tinha muitos amigos arménios; fazia com elesuma coisa que habitualmente não gosto de fazer pormotivos de descanso: ia jantar com eles, e vós fazeisjantares pesados! Sou muito amigo, muito amigoquer do Arcebispo Kissag Mouradian, da Igreja apos-tólica, quer de Boghossian, o Bispo católico. Mas, en-tre vós, mais importante do que a pertença à Igrejaapostólica ou à Igreja católica é a «armenidade»; eentendi isto naqueles tempos. Hoje saudou-me umargentino de família arménia que, quando eu ia àsMissas, o Arcebispo o fazia sentar sempre ao meu la-do para me explicar algumas cerimónias ou algumas

— que poderá o Santo Padre, que poderá a Santa Sé fa-zer concretamente para nos ajudar, para nos ajudar aprosseguir. Quais são os sinais concretos. O Santo Padrefê-los na Arménia. Que sinais fará, amanhã, no Azerbai-jão?

Aos azerbaijanos falarei da verdade, daquilo que vi,daquilo que sinto. E também os encorajarei. Encon-trei o Presidente do Azerbaijão e falei com ele. E di-rei também que não fazer a paz por um pequeno pe-daço de terra — porque não é uma grande coisa — es-conde algo mais... Isto, porém, digo-o a todos: aosarménios e aos azerbaijanos. Talvez não se ponhamde acordo sobre as modalidades de fazer a paz, e so-bre isto há que trabalhar. Não sei que mais possa di-zer. Direi aquilo que na hora me vier ao coração, massempre de forma positiva, tentando encontrar solu-ções que sejam viáveis, que façam avançar

[Jean-Louis de la Vaissière, da agência «France Presse»]Santo Padre, porque decidiu acrescentar explicitamente apalavra «genocídio» no discurso feito no palácio presi-dencial? Sobre um tema tão doloroso como este, pensa queseja útil para a paz nesta região complicada?

Obrigado. Na Argentina, quando se falava do ex-termínio arménio, usava-se sempre a palavra «genocí-dio». Eu não conhecia outra. E na catedral de Bue-nos Aires, no terceiro altar à esquerda, pusemos uma

cruz de pedra em recordação do «genocídio armé-nio». Veio o Arcebispo, os dois Arcebispos arménios— o católico e o apostólico — e inauguraram-na. Alémdisso, o Arcebispo apostólico na igreja católica deSão Bartolomeu — outra [igreja] — fez um altar emmemória de são Bartolomeu [evangelizador da Armé-nia]. Sempre foi assim... eu não conhecia outra pala-vra. Eu venho com esta palavra. Quando chego a Ro-ma, ouço a outra palavra: «o Grande Mal» ou «a tra-gédia terrível», em língua arménia Metz Yeghern, quenão sei pronunciar. Dizem-me que a palavra genocí-dio é ofensiva, devendo-se dizer esta. Eu sempre faleidos três genocídios do século passado, sempre três. Oprimeiro, o arménio; depois, o de Hitler; e, por últi-mo, o de Stalin. Os três. Há outros menores. Houveum em África [Ruanda]. Mas, na órbita das duasgrandes guerras, são estes três. E eu perguntei por-quê. Alguém me disse: «Alguns pensam que não éverdade, que não foi um genocídio». Dizia-me outro(um advogado disse-me isto, de grande interesse paramim): «A palavra genocídio é um termo técnico, éuma palavra de natureza técnica, que não é sinónimode extermínio. Pode-se dizer extermínio, mas declararum genocídio envolve ações de compensação e coisasdo género». Isto foi-me dito por um advogado. Noano passado, quando preparava o discurso [para a ce-lebração de 12 de abril de 2015, em Roma], vi que sãoJoão Paulo II usou a palavra, usou as duas: «o Gran-de Male» e «genocídio». E eu citei esta entre aspas.Não caiu bem: houve uma declaração do Governoturco; passados poucos dias a Turquia chamou a An-cara o Embaixador: um homem de categoria, a Tur-quia enviara-nos um embaixador «de luxo»! Voltouhá dois ou três meses... Foi um «jejum diplomáti-co»... Fê-lo no seu direito: todos temos o direito deprotestar. Quanto a este discurso [na Arménia], é ver-dade que inicialmente não estava a palavra. E respon-do agora dizendo o motivo pelo qual a acrescentei.Depois de ter ouvido o tom do discurso do Presiden-te e também com o meu passado sobre esta palavra,depois de ter dito esta palavra no ano passado emSão Pedro, publicamente, soaria muito estranho nãodizer, pelo menos, o mesmo. Mas, naquele ponto, euqueria sublinhar outra coisa, tendo dito — se não meengano: «Neste genocídio, como nos outros dois, asgrandes potências internacionais viravam a cara parao outro lado». E esta foi a acusação. Na segundaguerra mundial, algumas potências tinham as fotogra-fias dos caminhos de ferro que levavam a Auschwitz:teriam tido a possibilidade de bombardear, e não o fi-zeram. É um exemplo. No contexto da primeira guer-ra, onde houve o problema dos arménios e, no con-texto da segunda guerra, onde houve o problema deHitler e Stalin, e depois de Yalta, os lagers e… de tu-do isto ninguém fala? Deve-se sublinhar isto e pôr aquestão histórica: porque não fizestes isto, vós potên-cias? Não acuso, apenas faço a pergunta. É interes-sante! Olhava-se, sim, à guerra, a tantas coisas, mas…àquele povo. Não sei se é verdade — mas gostaria dever se é verdade — que, quando Hitler estava no augeda perseguição aos judeus, uma das coisas que teriadito foi esta: «Quem se lembra hoje dos arménios?Façamos o mesmo com os judeus!». Não sei se é ver-dade, talvez seja apenas um dito, mas ouvi dizer isto.Os historiadores procurem e vejam se é verdade. Pen-so que respondi. Mas aquela palavra, nunca a dissecom intenção ofensiva, mas sim objetivamente.

[Elisabetta Piqué, de «La Nación»] Sabemos que o se-nhor é o Papa, mas há também o Papa Bento, o Papaemérito. Ultimamente tem havido rumores, uma declara-ção do Prefeito da Casa Pontifícia, D. Georg Gänswein,que teria dito que haveria um ministério petrino partilha-do — se não me engano — com um Papa ativo e outrocontemplativo. Há dois Papas?

emérito — não o segundo Papa— que é fiel à sua palavra eque é um homem de Deus. Émuito inteligente e, para mim,é o avô sábio em casa.

[Alexej Bukalov, de «Itar-Tass»] Eu sei que o Santo Pa-dre encorajou muito este Concíliopan-ortodoxo, chegando mesmo aalmejá-lo no encontro com o Pa-triarca Kirill em Cuba. Agora,Santo Padre, que juízo tem sobreeste — digamos — fórum? Obri-gado.

Um juízo positivo! Foi dadoum passo em frente: não cempor cento, mas um passo emfrente. Os motivos que justifi-caram, entre aspas, [as ausên-cias] são sinceros para eles; sãocoisas que, com o tempo, sepodem resolver. Queriam — osquatro que não foram — fazê-lo um pouco mais tarde. Mascreio que o primeiro passo sedá como se pode. Como ascrianças, quando dão o primei-ro passo, fazem-no como po-

de errado naquele bloco daUnião... Mas não deitemos pe-la janela fora o bebé com aágua do banho! Procuremosresgatar as coisas e recriar... Éque a recriação das coisas hu-manas — incluindo a nossapersonalidade — é um percur-so, que nunca está terminado.A pessoa na adolescência não éigual à sua idade adulta ou navelhice: é a mesma e não é amesma, recria-se continuamen-te. E isto dá-lhe vida e vontadede viver, dá fecundidade. E su-blinho isto: hoje as duas pala-vras-chave para a União Euro-peia são criatividade e fecundi-dade. É o desafio. Não sei, eupenso a União assim.

[Tilmann Kleinjung, de «Adr»]O Santo Padre hoje falou dosdons compartilhados pelas Igre-jas, em conjunto. Uma vez queirá — dentro de quatro meses —a Lund para comemorar os 500

na Europa, mas dentro dos próprios países. Lembre-se a Catalunha e, no ano passado, a Escócia... Estasdivisões, não digo que sejam perigosas, mas devemosestudá-las bem e, antes de começar a avançar parauma divisão, devemos falar seriamente entre nós eprocurar soluções viáveis. Verdadeiramente não sei,não estudei os motivos pelos quais a Grã-Bretanhaquis tomar esta decisão. Mas há decisões — acho quejá o disse uma vez; não sei onde, mas já o disse — deindependência, que se fazem por motivo de emanci-pação. Por exemplo, todos os nossos países latino-americanos, e o mesmo se diga dos países africanos,se emanciparam das coroas de Madrid, de Lisboa; nocaso de África: também de Paris, Londres; e de Ams-terdão, sobretudo a Indonésia... A emancipação émais compreensível, visto que por detrás há uma cul-tura, um modo de pensar. Caso diverso é a cisão deum país – ainda não estou a falar da Brexit –, pense-mos na Escócia, é um fenómeno que tomou o nome— digo-o sem querer ofender, empregando a palavraque usam os políticos — de «balcanização», sem comisto falar mal dos Balcãs! Trata-se mais de uma cisão,

palavras que eu não en-tendesse.

[Jeanine Paloulian, de«Nouvelles d’Ar m é n i e » ]Ontem à noite, no encontroecuménico, o Santo Padrepediu aos jovens para se-rem artífices da reconcilia-ção com a Turquia e oAzerbaijão. Gostaria ape-nas de lhe pedir — dadoque dentro de poucas se-manas vai ao Azerbaijão

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Page 9: y(7HB5G3*QLTKKS( +]!!.!?!.! OL’ S S E RVATOR E ROMANO · um dom precioso de Deus poder-me aproximar do santo altar donde re-fulgiu a luz de Cristo na Arménia. Saúdo o Catholicos

página 10 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 30 de junho de 2016, número 26

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 8

anos da Reforma, penso que este sejatalvez o momento certo não só paralembrar as feridas de ambos os lados,mas também para reconhecer os donsda Reforma e talvez — e isto é umapergunta herética — para cancelar ouretirar a excomunhão de Martinho Lu-tero, ou fazer qualquer reabilitação.Obrigado.

Creio que as intenções de Marti-nho Lutero não eram erradas: ele eraum reformador. Talvez alguns méto-dos não fossem justos, mas naqueletempo, se lermos por exemplo a his-tória do Pastor (um luterano alemãoque, ao ver a realidade daquele tem-po, se converteu e se fez católico),vemos que a Igreja não era propria-mente um modelo a imitar: haviacorrupção na Igreja, havia mundani-dade, havia apego ao dinheiro e aopoder. E por isso ele protestou. Sen-do inteligente, deu um passo emfrente justificando por que motivofazia isso. E hoje luteranos e católi-cos, com todos os protestantes, esta-mos de acordo sobre a doutrina dajustificação: sobre este ponto tão im-portante, ele não errara. Elaborouum «remédio» para a Igreja, depoiseste remédio consolidou-se num es-tado de coisas, numa disciplina,num modo de crer, num modo defazer, num modo litúrgico. Mas nãoera só ele: havia Zwingli, havia Cal-vino… E, por detrás deles, quem es-tava? Os princípes, «cuius regio eiusre l i g i o ». Devemos mergulhar na his-tória daquele tempo. É uma histórianão fácil de entender, não fácil. De-pois as coisas foram avançando. Ho-je o diálogo é muito bom, e creioque aquele documento sobre a justi-ficação é um dos documentos ecu-ménicos mais ricos, mais ricos e maisprofundos. Concorda? Há divisões,mas depende também das Igrejas.Em Buenos Aires, havia duas igrejasluteranas: uma pensava de uma ma-neira, a outra doutra. Mesmo naprópria Igreja Luterana, não há uni-dade. Respeitam-se, amam-se... Tal-vez tenha sido a diversidade que feztanto mal a todos nós, e hoje procu-ramos retomar a estrada para nosencontrarmos 500 anos depois. Pen-so que devemos rezar juntos, rezar.Por isso, a oração é importante. Se-gundo: trabalhar pelos pobres, osperseguidos, as inúmeras pessoasque sofrem, os refugiados... Traba-lhar juntos e rezar juntos. E que osteólogos estudem juntos, procuran-do... Mas esta é uma estrada longa,muito longa. Certa vez, gracejando,disse: «Eu sei quando será o dia daunidade plena» — «Qual será?» —«O dia depois da vinda do Filho doHomem!» Porque não se sabe... OEspírito Santo realizará esta graça.Entretanto, porém, é preciso rezar,amar-nos e trabalhar juntos, sobretu-do pelos pobres, as pessoas que so-frem, pela paz e muitas outras coi-sas; contra a exploração das pes-soas... muitas são coisas pelas quaisse está a trabalhar em conjunto.

[Cécile Chambraud de «Le Monde»]Há algumas semanas, o Santo Padrefalou de uma Comissão para refletirsobre o tema das mulheres diaconisas.Gostaria de saber se já existe esta Co-missão e quais são as questões que elatem na agênda para serem resolvidas?E por fim: dado que às vezes uma Co-

missão serve para fazer esquecer osproblemas, gostaria de saber se este é ocaso?

Houve um presidente argentinoque dizia e aconselhava aos presi-dentes de outros países: quando qui-seres que uma coisa não se resolva,cria uma comissão! O primeiro a fi-car surpreendido com esta notíciafui eu, porque, no diálogo com asreligiosas — que foi gravado e depoispublicado no jornal «L'OsservatoreRomano» — tratava-se doutra coisa,mais ou menos nesta linha: «Ouvi-mos dizer que, nos primeiros sécu-los, havia diaconisas. Pode-se estu-dar isto? Criar uma Comissão?» Na-da mais... Fizeram uma pergunta;foram educadas, e não só educadasmas também amantes da Igreja, mu-lheres consagradas. Eu contei queconhecia um sírio, um teólogo sírioque morreu, aquele que fizera a edi-ção crítica de Santo Efrém em italia-no. Quando eu vinha a Roma, hos-pedava-me na Via della Scrofa e elevivia lá. Uma vez, ao pequeno-almo-ço, falando das diaconisas disse-meele: «Sim, mas não se sabe bem oque eram, se teriam a ordenação...»Certamente havia estas mulheres queajudavam o bispo; e ajudavam-noem três coisas: a primeira, no Batis-mo das mulheres por imersão; a se-gunda, nas unções pré e pós-batis-mal das mulheres; e a terceira — estadá para rir — quando a esposa ia la-mentar-se ao bispo contra o maridoque lhe batia, o bispo chamava umadestas diaconisas para examinar ocorpo da mulher e ver se havia con-tusões que provassem estas coisas.Eu contei isto. «E pode-se estudar?»— «Sim, direi à [Congregação paraa] Doutrina da Fé que se faça estaComissão». No dia seguinte [nosjornais]: «A Igreja abre a porta àsdiaconisas». Verdadeiramente zan-guei-me um pouco com os mass-me-dia, porque isto é não dizer a verda-de das coisas às pessoas. Falei com oPrefeito da [Congregação para a]Doutrina da Fé, que me disse:«Olhe que há um estudo feito pelaComissão Teológica Internacional nadécada de oitenta». Depois faleicom a presidente [das SuperiorasGerais] e disse-lhe: «Por favor, pre-pare-me uma lista de pessoas que aIrmã julgue que se possam convidarpara fazer esta Comissão». E en-viou-me a lista. Também o Prefeitome enviou a lista, e agora estão lá,sobre a minha mesa, para se fazeresta Comissão. Julgo que o tema foimuito estudado na década de oiten-ta, e não será difícil esclarecer o as-sunto. Mas há outra coisa. Há umano e meio, criei uma comissão demulheres teólogas que trabalharamcom o Cardeal Ryłko [Presidente doPontifício Conselho para os Leigos]e fizeram um bom trabalho, porqueé muito importante o pensamentoda mulher. Para mim, é mais impor-tante o pensamento da mulher doque a função da mulher: a mulherpensa de maneira diferente da denós, homens. E não se pode tomaruma boa decisão, boa e justa, semouvir as mulheres. Às vezes, emBuenos Aires, eu consultava os meusconselheiros, ouvia-os sobre um te-ma; depois debruçavam-se sobre elealgumas mulheres e elas viam as coi-sas sob outra luz, e isto enriqueciamuito, muito; e, por fim, a decisão

era muito, muito fecunda, muito be-la. Tenho de encontrar estas mulhe-res teólogas, que fizeram um bomtrabalho, mas que parou. Porquê?Porque agora muda o Dicastério pa-ra os Leigos, reestrutura-se. E euaguardo um pouco que isto aconteçapara dar seguimento a este segundotrabalho, o das diaconisas. Outracoisa sobre as mulheres teólogas quegostaria de sublinhar aqui: é maisimportante o modo de as mulheresentenderem, pensarem, verem as coi-sas do que a funcionalidade da mu-lher. E repito aqui o que digo sem-pre: a Igreja é uma mulher, é «a»Igreja. E não é uma «solteirona», éuma mulher casada com o Filho deDeus; o seu Esposo é Jesus Cristo.Pense nisto e, depois, diga-me o quep ensa…

[Cindy Wooden, de «Cns»] Nestesdias, o Cardeal Marx, alemão, ao in-tervir numa conferência grande e muitoimportante em Dublim sobre a Igrejano mundo moderno, disse que a Igrejacatólica deveria pedir desculpa à comu-nidade gay por ter marginalizado estaspessoas. Nos dias sucessivos ao domassacre em Orlando, muitos disseramque a comunidade cristã tinha algo aver com este ódio contra estas pessoas.Que pensa Santo Padre?

Repetirei a mesma coisa que dissena primeira viagem e repito tambémaquilo que afirma o Catecismo daIgreja Católica: não devem ser discri-minados, mas devem ser respeitados,acompanhados pastoralmente. Po-dem-se condenar, não por motivosideológicos, mas por motivos — di-gamos — de comportamento políti-co, certas manifestações demasiadoofensivas para os outros. Mas estascoisas nada têm a ver com o proble-ma: se uma pessoa tem esta condi-ção, tem boa vontade e procuraDeus, quem somos nós para a jul-gar? Devemos acompanhá-las bem,de acordo com o que diz o Catecis-mo. É claro o Catecismo! Natural-mente há tradições nalguns países,nalgumas culturas que têm umamentalidade diferente sobre este pro-blema. Creio que a Igreja não só de-ve pedir desculpa — como disseaquele Cardeal «marxista» [CardealMarx] — a esta pessoa que é gay,que ofendeu, mas deve pedir descul-pa também aos pobres, às mulherese às crianças exploradas no trabalho;deve pedir desculpa por ter aben-çoado tantas armas... A Igreja devepedir desculpa por não se ter com-portado como devia muitas e muitasvezes — e quando digo «Igreja» en-tendo os cristãos; a Igreja é santa, ospecadores somos nós — os cristãosdevem pedir desculpa por não teremacompanhado tantas opções, tantasfamílias... Recordo a cultura de Bue-nos Aires quando era criança: umacultura católica fechada. Eu venhodisso! Não se podia entrar na casade uma família divorciada! Falo deoitenta anos atrás. A cultura mudou,graças a Deus. Como cristãos deve-mos pedir imensas desculpas… enão só sobre isto. Pedir perdão, enão apenas desculpa! «Perdão, Se-nhor»: é uma frase que esquecemos.Agora ponho-me a fazer o pastor, afazer o sermão? Não! Mas isto é ver-dade. Quantas vezes o «padre pa-trão» e não o padre pai, o padre«que malha» e não o padre que

abraça, perdoa, consola... Entretantohá tantos, tantos capelães de hospi-tais, capelães dos encarcerados, tan-tos santos! Mas estes não se veem,porque a santidade é recatada [tempudor], esconde-se. Ao contrário oimpudor é desavergonhado: é desa-vergonhado, mostra-se. Há tantasorganizações com pessoas boas epessoas não tão boas; ou pessoas aquem passas uma «bolsa» um poucogrossa e olham para o outro lado,como fizeram as potências interna-cionais com os três genocídios. Tam-bém nós, cristãos — padres, bispos—, fizemos isto; mas nós, cristãos, te-mos também uma Teresa de Calcutá,muitas Teresas de Calcutá! Temosmuitas irmãs na África, muitos lei-gos, muitos casais de cônjuges san-tos! O trigo e a cizânia, o trigo e acizânia. Assim diz Jesus que é o Rei-no. Não devemos escandalizar-nospor ser assim. Devemos rezar ao Se-nhor para que faça com que esta ci-zânia acabe e haja mais trigo. Masesta é a vida da Igreja. Não se podepôr um limite. Todos nós somossantos, porque todos nós temos oEspírito Santo dentro, mas somos —todos nós — pecadores. A começarpor mim. Estão de acordo? Obriga-do. Não sei se respondi... Não ape-nas desculpa, mas perdão!

[Padre Lombardi] Santo Padre, tomoa liberdade de lhe fazer eu uma últimapergunta e, depois deixamo-lo ir empaz...

Não me metas em apuros...

[Padre Lombardi] Diz respeito à pró-xima viagem à Polónia, para a qualjá nos começamos a preparar. E oSanto Padre dedicar-se-á à sua prepa-ração neste mês de julho. Poderá dizer-nos algo sobre os sentimentos com quese aproxima desta Jornada Mundialda Juventude, neste Jubileu da Miseri-córdia. E outro ponto, um pouco maisespecífico, é este: visitamos com o SantoPadre o Memorial de Tzitzernakaberd,durante a visita à Arménia, e VossaSantidade vai visitar também Aus-chwitz e Birkenau, durante a viagem àPolónia. Ouvi dizer que o Santo Padredeseja viver estes momentos mais com osilêncio do que com as palavras, peloque, como fez aqui, talvez faça o mesmoem Birkenau. Então, queria pedir senos podia dizer se entendia fazer lá umdiscurso ou se preferia, pelo contrário,ter um momento de oração silenciosacom uma sua motivação específica.

Há dois anos, em Redipuglia, fizo mesmo para comemorar o centená-rio da Grande Guerra. A Redipu-glia, fui em silêncio. Em seguida,houve a Missa e, na Missa, fiz o ser-mão, mas era outra coisa. O silêncio.Hoje — nesta manhã — vimos o si-lêncio.... Foi hoje? [P. Lombardi:Não, ontem] Eu gostaria de ir àque-le local de horror sem discursos, semgente… apenas a mínima necessária.Naturalmente os jornalistas estarão...Mas sem saudar este e aquele... Issonão. Sozinho, entrar, rezar... E que oSenhor me dê a graça de chorar.

No final o Papa concluiu a conferênciacom as seguintes palavras:

Muito obrigado! Mais uma vezobrigado. Obrigado também pelovosso trabalho e pela vossa benevo-lência.

Com os jornalistas no voo de regresso a Roma

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número 26, quinta-feira 30 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 11

Mensagem vídeo do Papa Francisco ao Congresso mundial contra a pena de morte

Ofensa à inviolabilidade da vidaUma detenção que não deixa espaço à esperança é uma tortura

Subsídio jubilar sobre o diálogo entre as religiões

Pelo caminhoda misericórdia

Apresentado o programa da viagem pontifícia à Polónia

Entre os jovensno lager de Auschwitz

Saúdo os organizadores deste Con-gresso mundial contra a pena demorte, o grupo de países que oapoiam, sobretudo a Noruega, paísque o hospeda, e todos os partici-pantes: representantes dos Governos,das Organizações internacionais e dasociedade civil. Além disso, desejoexpressar o meu agradecimento pes-soal, e também o dos homens deboa vontade, pelo seu compromissoa favor de um mundo livre da penade morte.

Um sinal de esperança é o au-mento, na opinião pública, da oposi-ção à pena de morte, inclusive comoinstrumento de legítima defesa so-cial. Com efeito, hoje em dia a penade morte é inadmissível, por maisgrave que tenha sido o delito do

condenado. Trata-se de uma ofensaà inviolabilidade da vida e à digni-dade da pessoa humana que contra-diz o desígnio de Deus sobre o ho-mem e sobre a sociedade e a sua jus-tiça misericordiosa, e impede o cum-primento da justa finalidade das pe-nas. Não faz justiça às vítimas, masfomenta a vingança. O mandamento«não matarás» tem valor absoluto eabrange tanto os inocentes como osculpados.

O especial Jubileu da Misericór-dia é uma ocasião propícia para pro-mover no mundo formas cada vezmais maduras de respeito pela vida epela dignidade de cada pessoa. Nãose deve esquecer que o direito invio-lável à vida, dom de Deus, pertencetambém ao criminoso.

Hoje desejo encorajar todos a tra-balhar não só pela abolição da penade morte, mas também pelo melho-ramento das condições de reclusão, afim de que respeitem plenamente adignidade humana das pessoas pri-vadas da liberdade. «Fazer justiça»não significa que se tenha de procu-rar o castigo por si mesmo, mas queas penas tenham como finalidadefundamental a reeducação do delin-quente. A questão deve ser enqua-drada na ótica de uma justiça penal

aberta à esperança de reinserção doculpado na sociedade. Não há penaválida sem esperança! Uma pena fe-chada em si mesma, que não dê lu-gar à esperança, não é uma penamas uma tortura.

Espero que este Congresso possadar um renovado impulso ao com-promisso a favor da abolição da pe-na capital. Por isso mesmo, animotodos os participantes a prosseguircom esta grande iniciativa e garanto-lhes a minha oração.

O tema da misericórdia, no centrodo jubileu, representa também avia mestra para favorecer o diálogoe superar as dificuldades nas rela-ções entre as religiões. Este é omotivo inspirador de Celebrar a mi-sericórdia com os crentes de outras re-ligiões, breve subsídio aos cuidadosdo Pontifício Conselho para o diá-logo inter-religioso que pretendeser um contributo para viver o ju-bileu segundo as indicações conti-das na Misericordiae vultus.

Na bula de proclamação do anosanto extraordinário o Papa Fran-cisco frisou também a extraordiná-ria capacidade catalisadora da mi-sericórdia vivida quer na relaçãocom as outras religiões monoteístas— judaísmo e islão — quer com asdemais tradições religiosas para fa-vorecer o encontro, o diálogo, acompreensão recíproca, eliminandotodas as formas de fechamento,desprezo, violência e discriminação.«Quisemos fazer nosso o convitedo Papa Francisco para que nosencontrássemos com as várias tradi-ções religiosas a fim de prosseguir,precisamente no tema da misericór-dia, no caminho do diálogo e dasuperação das dificuldades que, in-felizmente, estão presentes e visí-veis a todos nós», escreveu naapresentação o cardeal presidentedo Pontifício Conselho para o diá-logo inter-religioso, Jean-LouisTauran, frisando que «o desejo quenos anima é viver este ano de graçacom os nossos irmãos e irmãs devárias religiões». Com efeito, o te-

ma da misericórdia está presente naespiritualidade de numerosas tradi-ções religiosas e, afirmou o purpu-rado, isto «oferece-nos a possibili-dade de partilhar quer momentosde espiritualidade e de intercâmbioreligioso, quer obras concretas decaridade aos mais necessitados».

Publicado pela Libreria EditriceVaticana, em italiano e em inglês, osubsídio está disponível tambémno site do dicastério (www.pcinter-re l i g i o u s . o rg ) .

Fruto da colaboração inter-reli-giosa — contribuíram para a sua re-dação peritos de diversas crenças —o texto é destinado principalmenteàs conferências episcopais, e atra-vés delas a todo o mundo católico.Tauran observou que «obviamenteficaríamos felizes se pudesse serútil e interessante também para oscrentes de outras religiões».

No subsídio, inclusive através dacitação de trechos tirados dos tex-tos considerados sagrados nas di-versas crenças, encontra espaço, emparticular, um amplo panorama dotema da misericórdia nas diferentestradições religiosas. Um modo, fri-sou o cardeal Tauran, para «cons-tatar a grande riqueza da espiritua-lidade humana». E uma exortação«a não erguer muros mas a sair daspróprias casas para entrar nas dosvizinhos de outras religiões e per-correr com eles um caminho de mi-sericórdia». Na esperança de que odiálogo «possa fundar-se no respei-to recíproco» e em «vínculos deamizade honesta e sincera».

«Dar renovado impulso à abolição da pena capital»: desejou o Papa Franciscona mensagem vídeo dirigida aos participantes no sexto Congresso mundial con t raa pena de morte, que teve lugar em Oslo de 21 a 23 de junho. A cimeira nacapital norueguesa foi promovida pela Ong francesa Ensemble contre la peine demort e pela World coalition against death penalty, das quais fazem parte 140organizações de todo o mundo. As palavras pronunciadas pelo Pontífice emespanhol, cuja tradução publicamos a seguir, foram transmitidas durante ostrabalhos na tarde de terça-feira 21.

O Papa Francisco estará na Polóniade 27 a 31 de julho, por ocasião datrigésima primeira Jornada mundialda juventude. O programa da via-gem foi publicado pela Sala de im-prensa da Santa Sé e, contempora-neamente, por duas conferências deimprensa em Cracóvia e Varsóvia.

Francisco partirá no dia 27 do ae-roporto de Roma-Fiumicino. A che-gada ao aeroporto São João Paulo IIde Balice-Cracóvia está prevista paraas 16h00, onde se realizará a cerimó-nia de boas-vindas. Em seguida, oPapa transferir-se-á para o castelo deWawel e encontrar-se-á com as auto-ridades, a sociedade civil e o corpodiplomático, pronunciando o seuprimeiro discurso. No final, na salados pássaros do palácio de Wawel,Francisco fará a visita de cortesia aopresidente da República. Depois, nacatedral, sempre em Wawel, encon-trar-se-á com os bispos.

No dia 28 visitará o convento dasirmãs da Apresentação. Depois, às10h30, celebrará a missa no santuáriode Częstochowa, por ocasião do1050º aniversário do batismo da Po-lónia. Antes de dar início à celebra-ção da missa Francisco recolher-se-áem oração na capela da Nossa Se-nhora Negra. Na parte da tarde, vol-tando a Cracóvia, o Papa presidirá àcerimónia de acolhimento dos jovensperegrinos da Jmj, no parque Jordanem Błonia, lugar tradicional para asgrandes celebrações papais.

Na manhã de sexta-feira o Papavisitará o famigerado lager de Aus-chwitz-Birkenau, com a chegada pre-vista para as 8h45. Na parte da tar-

de, às 16h30, visitará o hospital pe-diátrico universitário (Uch) de Pro-kocim em Cracóvia. Depois, às18h30, participará da via-sacra comos jovens em Błonia.

No sábado, 30 de julho, às 8h30 oPontífice irá ao santuário da DivinaMisericórdia, na periferia de Cracó-via, onde passará através da portasanta, um lugar ligado à memória desanta Faustina Kowalska. Em segui-da, às 9h15, presidirá ao rito da re-conciliação de alguns jovens. Às10h30 Francisco celebrará a missa nosantuário intitulado a são João Pau-lo II. Estarão presentes, em particu-lar, sacerdotes, religiosos, consagra-dos e seminaristas polacos. Às 12h45,no arquiepiscopado, o Papa almoça-rá com alguns jovens peregrinos. Ànoite, irá ao Campus misericordiae,uma esplanada de mais de duzentoshectares em Brzegi: ali, depois deatravessar a porta santa com umgrupo de jovens, presidirá à vigíliade oração.

No domingo, 31 de julho, às10h00, no Campus misericordiae,Francisco presidirá à missa conclusi-va da jornada mundial da juventude.Na parte da tarde, na Tauron arenade Cracóvia, encontrar-se-á com osvoluntários comprometidos no aco-lhimento dos jovens, juntamentecom os componentes do comité or-ganizador e os benfeitores. Sucessi-vamente, às 18h15 está prevista a ce-rimónia de despedida no aeroportoSão João Paulo II. Partirá de Cracó-via às 18h30 com a chegada previstaao aeroporto de Roma-Ciampino pa-ra as 20h25.

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página 12 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 30 de junho de 2016, número 26

Prefácio do Pontífice a uma antologia de textos do seu predecessor sobre o sacerdó cio

Oração fator decisivoCada vez que leio as obras de

Joseph Ratzinger / Bento XVIcompreendo de modo sempre

mais claro que ele fez e faz «teologiade joelhos»: de joelhos porque, ain-da antes de ser um grandíssimo teó-logo e mestre de fé, vê-se que é umhomem realmente crente, que rezade verdade; vê-se que é um homemque personifica a santidade, um ho-mem de paz, um homem de Deus. Eassim encarna de maneira exemplaro coração de todo o agir sacerdotal:aquela profunda radicação em Deus,sem a qual toda a capacidade orga-

vedor Angelus que recitou. Desteponto de vista, à justa consideraçãodo Prefeito da Doutrina da Fé, gos-taria de acrescentar que talvez preci-samente hoje, como Papa Emérito,ele nos dá do modo mais evidenteuma das suas maiores lições de «teo-logia de joelhos».

Porque, e talvez sobretudo domosteiro Mater Ecclesiae onde se re-tirou, Bento XVI continua a testemu-nhar de modo ainda mais luminosoo «fator decisivo», aquele íntimo nú-cleo do ministério sacerdotal que osdiáconos, os sacerdotes e os bispos

oração para o «tempo livre». E rezartambém não é simplesmente umaboa prática para dar um pouco depaz à consciência, nem sequer ape-nas um meio devoto para alcançarde Deus aquilo de que julgamos ternecessidade num determinado mo-mento. Não. A oração, como nos dizneste livro, como nos testemunhaBento XVI, é o fator decisivo: é umaintercessão da qual a Igreja e omundo — e ainda mais neste mo-mento de verdadeira mudança deépoca — precisam, hoje mais do quenunca, como o pão, mais do que opão. Porque rezar significa confiar aIgreja a Deus, na consciência de quea Igreja não é nossa, mas sua, e queexatamente por isso ele não a aban-donará; porque rezar quer dizer con-fiar o mundo e a humanidade aDeus; a oração é a chave que abre oCoração de Deus, é a única que con-

segue orientar para Deus sempre denovo este nosso mundo e, ao mesmotempo, a única que consegue condu-zir sempre de novo os homens e omundo rumo a Ele, como o filhopródigo para o seu pai que, cheio deamor por ele, só espera poder abra-çá-lo de novo. Bento XVI não esque-ce que a oração é a primeira tarefado bispo (cf. At 6, 4).

E assim, a oração caminha verda-deiramente de mãos dadas com aconsciência de que, sem ela, depres-sa o mundo não só perde a orienta-ção, mas inclusive a autêntica fonteda vida: «Porque sem o vínculo comDeus somos como satélites que per-deram a sua órbita e precipitaramcomo que enlouquecidos no vazio,não apenas desagregando-se a simesmos, mas ameaçando também os

Fre i s i n g29 de junho de 1951Antecipamos na íntegra o prefácio, assinadopelo Papa Francisco no dia 7 de março, àantologia de textos sobre o sacerdócio,escritos pelo seu predecessor. IntituladoInsegnare e imparare l’amore di Dio (Siena,Cantagalli, 2016, 304 páginas), o volumereúne 43 homilias. Do texto mais antigo,pronunciado no ano de 1954 emBerchtesgaden e dedicado a Franz Niegel nodia da sua primeira missa, publicamos nestapágina o início. O livro saiu na vigília dosexagésimo quinto aniversário de Ordenaçãopresbiteral de Joseph Ratzinger, que tevelugar a 29 de junho de 1951 na catedral deFre i s i n g.

O arcebispo de München und Freising, cardeal Michael von Faulhaber,durante a ordenação sacerdotal de Joseph Ratzinger

nizacional possível e toda a presumí-vel superioridade intelectual, todo odinheiro e todo o poder são inúteis;ele encarna aquela relação constantecom o Senhor Jesus, sem a qual jánada é verdade, tudo se torna rotina,os sacerdotes quase assalariados, osbispos burocratas e a Igreja nãoIgreja de Cristo, mas um nosso pro-duto, uma Ong em última análisesup érflua.

O sacerdote é aquele que «encar-na a presença de Cristo, dando tes-temunho da sua presença salvífica»,escreve neste sentido Bento XVI nacarta de proclamação do Ano sacer-dotal. Lendo este volume, vê-se cla-ramente que ele mesmo, em sessentae cinco anos de sacerdócio, que hojecelebramos, viveu e ainda vive, teste-munhou a ainda testemunha de mo-do exemplar esta essência do agirp re s b i t e r a l .

O cardeal Gerhard Ludwig Müllerafirmou com autoridade que a obrateológica, antes de Joseph Ratzingere depois de Bento XVI, o insere naplêiade dos grandíssimos teólogosque ocuparam o sólio de Pedro; co-mo, por exemplo, o Papa LeãoMagno, santo e doutor da Igreja.

Renunciando ao exercício ativodo ministério petrino, Bento XVI de-cidiu dedicar-se agora totalmente aoserviço da oração: «O Senhor cha-ma-me a “subir ao monte”, a dedi-car-me ainda mais à oração e à me-ditação. Mas isto não significa aban-donar a Igreja mas, pelo contrário,se Deus me pede isto é exatamentepara que eu possa continuar a servi-la com a mesma dedicação e com omesmo amor com que procurei fazê-lo até hoje», disse no último como-

nunca devem esquecer:ou seja, que o serviçoprimário e mais impor-tante não é a gestão dos«assuntos correntes»,mas rezar pelos outros,sem interrupção, de al-ma e corpo, precisamen-te como hoje faz o PapaEmérito: imerso de for-ma constante em Deus,com o coração semprevoltado para Ele, comoum amante que pensano amado em cada mo-mento, independente-mente do que estiver afazer. Assim, com o seutestemunho, Sua Santi-dade Bento XVI, mostra-nos no que consiste averdadeira oração: nãona ocupação de algumaspessoas consideradasparticularmente devotas

e talvez pouco adequadas para resol-ver problemas práticos; naquele «fa-zer» que, ao contrário, os mais «ati-vos» consideram como o elementodecisivo do nosso serviço sacerdotal,relegando assim concretamente a

Pescador do lagoJOSEPH RAT Z I N G E R

No Evangelho de hoje, que o diácono nos aca-bou de proclamar, está encerrado um pouco dafascinação da Terra Santa. É quase como se,

por um instante, ouvíssemos o ligeiro marulhar das on-das do lago onde o Senhor navegou tantas vezes comos seus discípulos, como se vislumbrássemos o lumino-so esplendor do céu claro do sul que se arqueia e asaudação dos campos em volta de todo o lago, cujasflores o Senhor magnificou nas suas parábolas. No seuanúncio do Reino eterno o Senhor pôs dentro de nósum pouco do marulhar das ondas e do perfume dasflores da sua terra, e sentimo-nos felizes porque reco-nhecemos com alegria a sua afinidade com a beleza danossa pátria.

No entanto, tudo aquilo que ali se narra é apenas amoldura externa na qual se insere o que há de maior emais importante: a manhã da existência de um homem,na qual ele recebe a chamada e o encargo da sua vida.Simão, que como pescador havia muitos anos singravao lago, volta a fazer-se ao largo para pescar. Mas quan-do arrasta até à praia as redes, tão pesadas e cheias —dessa vez a pesca não era mérito seu — dá início a algode novo: «Doravante serás pescador de homens», diz-lhe o Senhor.

Então, a rede e a barca permanecem ali onde estão,e outros ocupar-se-ão delas. Agora deves lançar as re-des de Deus ao mar do mundo. Agora deves levar comsegurança, até à margem da eternidade, os homensque, relutantes, se fecham naquele mar do mundo, na

ilusão da sua presumível felicidade. E deves fazê-lo,passando através da noite desoladora de tantos fracas-sos; deves fazê-lo sem desanimar e sem reclamar, aténas horas amargas em que tudo te parece vão, e des-perdiçado o trabalho da tua vida.

Isto aconteceu naquela época, há quase dois milanos, numa manhã da existência de um homem. Masnão só então. Isto ocorre também agora, aqui, hoje.

Com efeito, o que é que acontece na ordenação sa-cerdotal e na primeira missa, a não ser isto: que Cristose apresenta novamente a alguns jovens, tirando dassuas mãos barcas e redes, às quais eles tinham vincula-do este ou aquele sonho de juventude, dizendo-lhes:agora deveis tornar-vos pescadores de homens. Deveisfazer-vos ao largo no mar do mundo para lançar a redede Deus com coragem e com magnanimidade, numaépoca que parece ter todo o interesse de se esquivar deDeus, o santo predador.

Por isso é como um eco do lago de Genesaré quan-do, no início da ordenação sacerdotal, o bispo enunciaaos jovens diáconos as futuras tarefas, que estão à suafrente; de modo objetivo, direto, simples e sintético,como outrora a língua dos romanos, dominadores domundo, formulava tais funções.

O sacerdote deve oferecer o sacrifício, abençoar, pre-sidir, pregar e batizar. Palavras breves, mas repletas deconteúdo, sobre as quais os candidatos ao sacerdóciorefletiram profundamente nos dias dos exercícios antesda ordenação, porque sem dúvida agora nestas pala-vras está encerrado todo o sentido da sua vida futura.

CO N T I N UA NA PÁGINA 15

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número 26, quinta-feira 30 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 13

Votos do Papa Francisco

Sempre em buscado amado

Publicamos o discurso de bons votosdirigido por Francisco ao seup re d e c e s s o r.

Santidade!festejamos hoje a história de umachamada que teve início há sessentae cinco anos com a Sua Ordenaçãosacerdotal, que teve lugar na Cate-dral de Freising a 29 de junho de1951. Mas qual é a característica defundo que percorre esta longa histó-ria e que daquele primeiro início atéhoje a domina cada vez mais?

Numa das tantas páginas bonitasque Vossa Santidade dedica ao sa-cerdócio frisa como, na hora dachamada definitiva de Simão, Jesus,olhando para ele, no fundo pergun-ta-lhe uma só coisa: «Tu amas-Me?». Como é belo e verdadeiro is-to! Porque é nisto, Vossa Santidadeno-lo diz, naquele «amas-Me?» queo Senhor funda o apascentar, por-que só se houver amor ao SenhorEle pode apascentar através de nós:«Senhor, tu sabes tudo, tu bem sa-bes que te amo» (cf. Jo 21, 15-19).Esta é a característica que dominatoda uma vida despendida ao servi-ço do sacerdócio e da teologia, queVossa Santidade não hesitou em de-finir «busca do amado»: foi isto queVossa Santidade sempre testemu-nhou e ainda hoje testemunha: queo aspecto decisivo nos nossos dias— de sol ou de chuva — aquele como qual advém também tudo o resto,é que o Senhor esteja deveras pre-sente, que o desejemos, que inte-riormente estejamos próximos dele,que o amemos, que acreditemosprofundamente nele e, crendo, Oamemos deveras. É este amar quenos enche realmente o coração, éeste crer que nos faz caminhar segu-ros e tranquilos sobre as águas, aténo meio da tempestade, precisa-mente como aconteceu a Pedro. Es-te amar e este crer é aquilo que nospermite olhar para o futuro nãocom receio ou saudades, mas comjúbilo, até nos anos já avançados danossa vida.

E assim, precisamente vivendo etestemunhando hoje de maneira tãointensa e luminosa esta única coisadeveras decisiva — manter o olhar eo coração dirigido para Deus —Vossa Santidade, continua a servir aIgreja, não deixa de contribuir ver-dadeiramente com vigor e sabedoriapara o seu crescimento; e faz istodaquele pequeno Mosteiro Ma t e rEcclesiae no Vaticano que se reveladeste modo ser não um daquelescantinhos esquecidos nos quais acultura do descarte de hoje tende arelegar as pessoas quando, devido àidade, lhes faltam as forças. É total-mente o contrário. E permita que oSeu Sucessor, que escolheu chamar-se Francisco, diga isto com força.Porque o caminho espiritual de sãoFrancisco começou em São Damião,mas o verdadeiro lugar amado, ocoração pulsante da Ordem, lá on-de a fundou e lá onde depois ren-deu a sua vida a Deus foi a Por-ciúncula, a «pequena porção», oângulo junto à Mãe da Igreja; juntode Maria que, pela sua fé tão firmee pelo seu viver inteiramente doamor e no amor com o Senhor, to-das as gerações chamarão bem-aventurada. Assim, a Providênciaquis que Vossa Santidade, estimadoIrmão, chegasse a um lugar por as-sim dizer propriamente «francisca-no», do qual promanam tranquili-dade, paz, força, confiança, maturi-dade, fé, dedicação e fideliade taisque tanto bem me fazem e que dãotanta força a mim e a toda a Igreja.E permito-me dizer também que deVossa Santidade provém um sadio ejubiloso sentido do humorismo.

Por conseguinte, os votos com osquais desejo concluir são um auspí-cio que dirijo a Vossa Santidade eao mesmo tempo a todos nós e àIgreja inteira: que Vossa Santidadepossa continuar a sentir a mão deDeus misericordioso que o ampara,possa experimentar e testemunhar-nos o amor de Deus; que, com Pe-dro e Paulo, possa continuar a exul-tar com grande alegria enquanto ca-minha rumo à meta da fé (cf. 1 Pd1, 8-9; 2 Tm 4, 6-8)!

Agradecimento de Bento XVI

Tu d onuma palavra grega

A seguir, as palavras deagradecimento de Bento XVI.

Santo Padre,Prezados irmãos,há 65 anos, um irmão ordenadocomigo decidiu escrever no santi-nho de recordação da primeiraMissa, além do nome e das datas,somente uma palavra em grego:«Eucharistoùmen», convencido deque esta palavra, nas suas numero-sas dimensões, já contém tudo oque se possa dizer neste momento.«Eucharistoùmen» significa umagradecimento humano, gratidão atodos. Obrigado sobretudo a VossaSantidade, Santo Padre! A sua bon-dade, desde o primeiro instante daeleição, em cada momento da mi-nha vida aqui, impressiona-me, co-move-me deveras interiormente.Mais do que os Jardins do Vatica-no, com a sua beleza, é a Sua bon-dade o lugar onde eu habito: sinto-me protegido. Obrigado pelas pala-vras de gratidão, por tudo. E espe-remos que Vossa Santidade possa irem frente com todos nós ao longodeste caminho da Misericórdia Di-vina, indicando a senda de Jesus,para Jesus, rumo a Deus.

Obrigado também a Vossa Emi-nência [Cardeal Sodano], pelas suas

palavras, que realmente tocaram omeu coração: «Cor ad cor loquitur».Vossa Eminência tornou presentetanto a hora da minha ordenaçãosacerdotal, como também a minhavisita de 2006 a Freising, onde a re-cebi. Só posso dizer que assim, comestas palavras, Vossa Eminência in-terpretou o essencial da minha visãodo sacerdócio, da minha missão.Estou-lhe grato pelo vínculo deamizade que ainda hoje continua,desde há tempos, de teto a teto [re-fere-se às suas habitações, que emlinha reta estão próximas uma daoutra]: é quase presente e tangível.

Obrigado, Cardeal Müller, peloseu trabalho que leva a cabo com aapresentação dos meus textos sobreo sacerdócio, nos quais procuro aju-dar também os irmãos a entrar cadavez mais no mistério em que o Se-nhor se entrega nas nossas mãos.

«Eucharistoùmen»: naquele mo-mento o amigo Berger queria refe-rir-se não apenas à dimensão doagradecimento humano, mas natu-ralmente à palavra mais profundaque se esconde, que está presentena Liturgia, na Escritura, na expres-são «gratias agens benedixit fregit de-ditque». «Eucharistoùmen» re m e t e -nos para aquela realidade de açãode graças, para a nova dimensãoque Cristo conferiu. Ele transfor-mou em ação de graças, e deste mo-do em bênção, a cruz, o sofrimento,todo o mal do mundo. E assim,fundamentalmente, transubstancioua vida e o mundo, ofereceu-nos eoferece-nos cada dia o Pão da ver-dadeira Vida, que supera o mundograças à força do seu amor.

No final, desejamos inserir-nosnesta «ação de graças» do Senhor,e assim receber realmente a novida-de da vida e contribuir para a tran-substanciação do mundo: que nãoseja um mundo de morte, mas devida, um mundo em que o amorvenceu a morte.

Obrigado a todos vós. Que o Se-nhor abençoe todos nós.

Obrigado, Santo Padre!

Presbítero desde há 65 anosUm abraço carinhoso entre o Papa Francisco e o seu predecessorinaugurou no Vaticano a sóbria e jubilosa celebração em memória dosexagésimo quinto aniversário de ordenação sacerdotal de JosephRatzinger. Realizada na sala Clementina na manhã de 28 de junho, acomemoração iniciou com um discurso do Papa Francisco. Depois, tomoua palavra o prefeito da Congregação para a doutrina da fé que, em nomeda fundação vaticana Joseph Ratzinger — Bento XVI ofereceu aoprotagonista da festa o volume Insegnare e imparare l’amore di Dio, quecontém 43 suas homilias sobre o sacerdócio. Em seguida, interveio odecano do Colégio cardinalício, cardeal Sodano. Após o agradecimento deBento XVI, os 36 purpurados presentes saudaram os dois Pontífices.Participou também a delegação do Patriarcado ecuménico, acompanhadopelo cardeal Koch.

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página 14 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 30 de junho de 2016, número 26

Economia de comunhão comemora vinte e cinco anos

Viver é uma aventura

Primerio cursode pós-graduação em mariologia

CARLA COTIGNOLI

Eventos em todas as regiões do Bra-sil desde o fim de maio até o próxi-mo outubro. Muitos eventos nos ou-tros continentes. O Brasil é o berçodesta iniciativa. Em outubro de 2015,período do censo anual das empre-sas de EdC, o projeto registrou 811empresas aderentes ao mesmo, sendo463 na Europa, 220 na América doSul, 84 na África, 26 na América doNorte e 18 na Ásia. Essas empresasinspiram-se na EdC ao adotar umagovernança centrada na fraternidade,partilhando a riqueza produzida.Damos a palavra a umas das teste-munhas, o professor Ricardo Meirel-les de Faria, doutor em Economiapela Fundação Getúlio Vargas comcursos de pós-graduação na Univer-sidade Luigi Bocconi, em Milão, naItália, e na Georgetown University,em Washington-DC, nos EstadosUnidos, e membro do Conselho deEmpresários da Associação Nacionalpor uma Economia de Comunhão(Anp ecom).

Eu estava presente, naquele maiode 1991 quando Chiara Lubich numasala repleta de gente nos chacoalhoua todos com uma proposta audacio-sa, revolucionária e ao mesmo temposimples e singela: fazer do nossoagir econômico nos mais diferentesníveis e âmbitos, um ato de comu-nhão. Mas questiono-me por que aproposta da Economia de Comu-nhão? Por que muitos de nós aderi-mos a este projeto?

Porque em algum momento denossas vidas fomos capturados pelaideia de que fazemos parte de umagrande família; uma família global enão podemos conceber a ideia depoder almoçar, e meu irmão não. Aideia de que posso me realizar comoum pai de família, criando e educan-do meus filhos, e meu vizinho nãoseja capaz de fazê-lo. A ideia de queas disparidades sociais e econômicas

podem ser modificadas e dependemtambém do nosso agir econômico,de um comprometimento pessoal.Qual é? Se não ajustarmos nossasambições econômicas e consumistas,se não nos esforçarmos em ter umestilo sóbrio e austero, não surgirãoos recursos econômicos para que es-te projeto floresça. Assim, sem esfor-ço, sem renúncia, não há comunhão,não há Economia de Comunhão.

Mas esta sobriedade, esta austeri-dade não é privação! É sim, passa-porte para uma comunidade maissaudável, mais criativa, mais lúdica,mais viva, mais alegre, muito maisrica! Uma riqueza nova: de facetasque só a comunhão criada por estasobriedade pode gerar.

O projeto de Economia de Comu-nhão é um ser vivo, ainda nascente.Se quisermos acreditar que ele per-durará pelos próximos dois milênios,então, 25 anos representaria por vol-ta do primeiro ano de vida.

Como todo ser vivo, a Economiade Comunhão possui um Adn queatesta sua paternidade/maternidade:nasceu na comunidade dos Focola-res, filha de Chiara Lubich, de suasamigas e das primeiras comunidades,e dentre suas principais característi-cas genéticas, gosto sempre de ressal-tar aquela que mais me fascina: a hi-pótese «lubichiana», a boa nova cris-tã de que chegamos ao Paraíso atra-vés do outro, ou melhor ainda, o Pa-raíso é o outro; é o cara sentado aomeu lado. O paraíso terrestre nascecom e da comunhão com o outro,construído diariamente, com esforço,recomeços, olhar para frente. Sim, nomeu entender, a força da Economiade Comunhão está neste gene.

Também, como qualquer ser vivo,a Economia de Comunhão ao nascerpassa a influenciar e ser influenciadapelo mundo. Não está mais circuns-crita ao movimento dos Focolares.

Como todo pai, mãe e irmãos,não podemos deixá-la ser influencia-

da por falsos amigos... Mas comotoda criança, adolescente e adultoterá seus percalços, seus pontos natesta, suas dores de barriga. Enfim,um ser vivo que bem nutrido podedar muitas alegrias à sua grande fa-mília terrena.

A comunhão cura neuroses, resol-ve grandes impasses, reduz doençaspsicossociais; aumenta a confiançamútua, eleva o rendimento das pes-soas, reduz a criminalidade, a cor-rupção e, deste modo, eleva o Idhdas comunidades, das cidades. En-fim, gera resultados concretos!

Mas então, pergunto-me comoatuamos concretamente?

Fazemos parte de uma grande re-de de comunhão que inicia nas nos-sas comunidades locais, de algumaforma se agrega em regiões e paísese, por fim, se interconecta em umagrande rede internacional onde sãocolocados em comum, por um lado,as necessidades, quer sejam mate-riais, de aconselhamentos, de consul-toria técnica, quer de muitos outrostipos; por outro, de disponibilida-des, de recursos doados, materiais,financeiros, de capacidades intelec-tuais, experiências de vida, dentremuitos outros.

E, o que fazemos de concreto,ainda que de forma incipiente e mo-desta: fazemos um monte de coisas:a primeira e mais importante, dadoque é a ação final do projeto, aquelacom base na comunhão de recursosfinanceiros e materiais: ajudamos fa-mílias ou pessoas individuais a supe-rarem momentos de dificuldades fi-nanceiras. O projeto foi criado paraisso.

Doamos parte de nossos salários,nossas rendas para a formação destefundo de comunhão e solidariedade.As empresas inseridas no projetodoam parte de seus lucros através deseus empresários. Criamos polos deempresas com o objetivo de visibili-zar esta experiência, incubadoras deempresas que auxiliem jovens em-preendedores a desenvolver seusprojetos de empresas. Fazemos tesesde conclusão de cursos, teses demestrado, dissertações de doutorado,seminários, cursos, simpósios bus-cando construir o arcabouço teóricoque respalda o projeto de Economiade Comunhão.

Junto ao Movimento Político pelaUnidade que é a outra face da mes-ma moeda, buscamos construir redesde contatos com políticos para quejuntos possamos desenvolver políti-cas e criar leis que estejam em con-sonância com o projeto da Econo-mia de Comunhão. Entre estes pro-jetos, como economista, eu gostariade ver a implementação de uma tri-butação mais progressiva no Brasil

que taxe efetivamente mais quem ga-nha mais. E no ano da operação La-va Jato, caberia uma menção à cor-rupção. O que é a corrupção senão atraição ao pacto social, senão a bus-ca do preenchimento de um vazioexistencial e pessoal através do acú-mulo de bens ilícitos?

A experiência de uma comunida-de que veja valor na partilha e nãono egoísmo, na sobriedade e não naostentação, na competição baseadana confiança mútua e não na com-petição desleal, na riqueza de talen-tos e expressões comunitárias e nãona riqueza vazia e desmedida pro-posta por nosso atual modelo eco-nômico-social, pode ser um impor-tante antídoto para que a prática dacorrupção seja extirpada pela raiz.

Concluo, deixando a vocês a pro-posição de um filósofo por quem te-nho grande estima, Karl Popper:«Viver é uma aventura. Um ser vivotem de imaginar, tem de arriscar oque quer que seja novo, e arriscartanto mais quanto mais alto quiserchegar».

EDSON LUIZ SAMPEL*

Mariologia é o ramo da teologiaque estuda o papel de Maria San-tíssima, Mãe de Jesus, na salvaçãoda humanidade. Este setor da teo-logia deve estar sempre em sintoniacom a cristologia, a qual reflete so-bre a missão que Deus-Pai cometeua Deus-Filho, isto é, a Jesus Cristo.Assim, cristologia e mariologia sãoduas ciências que se complemen-tam.

A Deus prestamos o culto de la-tria ou adoração. Aos santos tribu-tamos o culto de dulia ou venera-ção. A mãe de Deus (deípara) fazjus ao culto de hiperdulia, porquenossa Senhora se encontra em graude santidade imensamente superiorà perfeição dos santos.

A Academia Marial de Apareci-da (Ama), com o apoio da Facul-dade de Teologia Dehoniana, lançao primeiro curso de pós-graduação

lato sensu de mariologia no Brasil.As aulas serão ministradas em Apa-recida, São Paulo. A primeira fasepresencial dar-se-á no mês de janei-ro de 2017, do dia 10 a 25, com au-las de manhã e à tarde. A segundae última fase presencial ocorrerá nomês de julho de 2017, também comaulas nos períodos matutino e ves-pertino. Além desta carga horária,haverá um conteúdo a ser estudadoà distância, pela Internet. Receberáo título (reconhecido pelo Mec) oaluno que, após o cumprimento detodos os créditos, redigir um artigocientífico. As inscrições vão até odia 12 de outubro de 2016. Acei-tam-se leigos e clérigos, porém, éimprescindível que o candidato dis-ponha de formação universitária(graduação).

*Membro do Conselho diretorda Academia marial de Aparecida( Am a )

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 1

dos membros do corpo místico deCristo», como escreveu João PauloII, e por conseguinte «nos perten-cem», repetiu o seu sucessor, fri-sando que «recordar não só éoportuno», mas é «um dever».Como explica uma frase que oPontífice escreveu de seu punhodepois de ter prestado homena-gem às vítimas no memorial deTzitzernakaberd: a memória é«fonte de paz e de futuro».

O olhar positivo do Papa Fran-cisco, reafirmado com tranquiladeterminação na longa conversacom os jornalistas, funda-se sobrea fé e sabe precisamente que a me-mória assim purificada se torna«capaz de se encaminhar por sen-das novas e surpreendentes». E fo-ram as veredas do encontro e dareconciliação que o Pontífice pe-diu que os jovens percorram, en-quanto na declaração comum aoração se eleva «por umamudança do coração» de quempersegue os cristãos e as outrasminorias étnicas e religiosas noMédio Oriente.

Olhar positivo que na conferên-cia de imprensa o Papa confirmouacima de tudo: falando do papelda mulher na Igreja, do reconheci-mento das culpas dos cristãos pe-las faltas que se acumularam aolongo da história, do concílio Or-todoxo de Creta, do diálogo ecu-ménico com os protestantes e dasituação da União europeia depoisdo referendo britânico. Amparadopelo seu predecessor que se prepa-ra para festejar o sexagésimo quin-to aniversário de ordenação sacer-dotal, definido com afeto «o ho-mem que me guarda os ombros eas costas com a sua oração».

Olhar positivo

Professor Ricardo Meirelles de Faria

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número 26, quinta-feira 30 de junho de 2016 L’OSSERVATORE ROMANO página 15

INFORMAÇÕESAudiências

O Papa Francisco recebeu em audiên-cias particulares:

A 23 de junho

Suas Ex.cias os Professores AndreaRiccardi, Fundador da Comunidadede Santo Egídio; e José Graziano daSilva, Diretor-Geral da Organizaçãodas Nações Unidas para a Alimenta-ção e a Agricultura (FA O ); e o Se-nhor Nigel Marcus Baker, Embaixa-dor da Grã-Bretanha, em visita dedesp edida.

Renúncias

O Santo Padre aceitou a renúncia:

No dia 24 de junho

De Sua Beatitude Fouad Twal, aogoverno pastoral do Patriarcado deJerusalém dos Latinos, em conformi-dade com o cânone 401 § 1 do Códi-go de Direito Canónico.

De D. Michele De Rosa, ao governopastoral da Diocese de Cerreto San-n i t a - Te l e s e - S a n t ’Agata de’ Goti (Itá-lia), em conformidade com o cânone401 § 1 do Código de Direito Canó-nico.

No dia 25 de junho

De D. Antoine Ganyé, ao governopastoral da Arquidiocese de Coto-nou (Benim), em conformidade como cânone 401 § 1 do Código de Di-reito Canónico.

De D. Gali Bali, ao governo pastoralda Diocese de Guntur (Índia), emconformidade com o cânone 401 § 1do Código de Direito Canónico.

Nomeações

O Sumo Pontífice nomeou:

A 24 de junhoNúncio Apostólico no Quirguistão,D. Francis Assisi Chullikatt, até estadata Núncio Apostólico no Caza-quistão e no Tajiquistão.Administrador Apostólico sede va-cante do Patriarcado de Jerusalémdos Latinos, o Rev.do Pe. PierbattistaPizzaballa, O.F.M., simultaneamenteeleito Arcebispo Titular de Verbe.

D. Pierbattista Pizzaballa, O.F.M.,nasceu em Cologno al Serio (Itália), a21 de Abril de 1965, e foi ordenadoSacerdote a 15 de setembro de 1990.

Arcebispo de Taunggyi (Myanmar),D. Basilio Athai, até hoje Auxiliarda mesma Circunscrição, exoneran-do-o ao mesmo tempo da Sede Titu-lar de Tasaccora.Bispo de Cerreto Sannita-Telese-Sant’Agata de’ Goti (Itália), o Rev.do

Pe. Domenico Battaglia, do clero daArquidiocese de Catanzaro-Squilla-ce, até hoje Cónego e Presidente doCentro Calabrês de Solidariedade.

D. Domenico Battaglia nasceu a 20de janeiro de 1963, em Satriano (Itá-lia), e recebeu a Ordenação sacerdotalno dia 6 de fevereiro de 1988.

Bispo da Diocese de Chalan Kanoa(Saipan), nas Ilhas Marianas Seten-trionais, o Rev.do Pe. Ryan Jimenez,até agora Administrador Apostólicoda mesma Sede.

D. Ryan Jimenez nasceu no dia 18de dezembro de 1971 em DumagueteCity (Filipinas), e foi ordenado Sacer-dote a 8 de dezembro de 2003.

Bispo de Gibraltar, o Rev.mo Mons.Carmelo Zammit, do clero da Arqui-

diocese de Malta, até hoje VigárioJudicial desta Sede.

D. Carmelo Zammit nasceu emGudja (Malta), no dia 19 de dezem-bro de 1949, e recebeu a Ordenaçãopresbiteral a 20 de julho de 1974.

Auxiliares da Arquidiocese de Sid-ney (Austrália), o Rev.mo Mons. An-thony Randazzo, do clero da Arqui-diocese de Brisbane, até esta dataAssistente do Arcebispo de Brisbane;e o Rev.do Pe. Richard James Um-bers, do clero da Prelatura do OpusDei, até hoje Capelão do «WarraneCollege» da Universidade de «NewSouth Wales» em Kensington, si-multânea e respetivamente eleitosBispos Titulares de Quiza e de Tala.

D. Anthony Randazzo nasceu no dia7 de outubro de 1966 em Sidney (Aus-trália), e foi ordenado Presbítero a 29de novembro de 1991.

D. Richard James Umbers nasceuem Otahuhu (Nova Zelândia), a 17 demarço de 1971, e recebeu a Ordenaçãosacerdotal no dia 1 de setembro de2002.

Membros Ordinários da PontifíciaAcademia das Ciências os Professo-res Francis Leo Delmonico, Docene-te de Cirurgia na Harvard MedicalSchool, Massachusetts General Hos-pital de Boston e Diretor do NewEngland Organ Bank, Waltham,(E UA ) e Cédric Villani, Professor deMatemática na Universidade deLyon e Diretor do Institut HenriPoincaré (UPMC/CNRS) de Paris( Fr a n ç a ) .

A 25 de junhoArcebispo de Cotonou (Benim), oR e v. do Pe. Roger Houngbédji, O.P.,até à presente data docente na Uni-versidade Católica da África Ociden-

tal (Ucao) e no Instituto dominica-no S. Tomás de Aquino, em Ya-moussoukro (Costa do Marfim).

D. Roger Houngbédji, O.P., nasceuem Porto-Novo (Benim), no dia 14 demaio de 1963, e foi ordenado Sacerdotea 8 de agosto de 1992.

Bispo de Guntur (Índia), o Rev.do

Pe. Bhagyaiah Chinnabathini, atéhoje Pároco do Infant Jesus Shrinede Miryalaguda, em Nalgonda.

D. Bhagyaiah Chinnabathini nasceuem Motakondur-Yadagirigutta Man-dal, na diocese de Nalgonda (Índia),em 19 setembro de 1956, e recebeu aOrdenação presbiteral no dia 8 deagosto de 1992.

Bispo de Azogues (Equador), oR e v. do Pe. Oswaldo Patricio Venti-milla Cabrera, do clero de Cuenca,até esta data Pároco da Paróquia doEspírito Santo, em Baños.

D. Oswaldo Patricio Ventimilla Ca-brera nasceu em Cuenca (Equador), nodia 2 de agosto de 1966, e foi ordena-do Presbítero em 17 de novembro de1990.

Auxiliar da Arquidiocese de Thàn-Phô Hô Chí Minh (Vietname), oR e v. do Pe. Joseph Do Manh Hung,até agora Chanceler e Secretário doArcebispo da mesma Sede, simulta-neamente eleito Bispo Titular Libe-ralia.

D. Joseph Do Manh Hung nasceuna cidade de Saigon (desde 1975, HoChi Minh City), a 15 de setembro de1957, e recebeu a Ordenação sacerdotalem 30 de agosto de 1990.

Auxiliares da Arquidiocese de Paris(França), o Rev.do Cónego Denis Ja-chiet, do clero local, até à presentedata Vigário-Geral da mesma Sede;e o Rev.do Thibaul Verny, do clerode Paris, até hoje Pároco de Notre-Dame de Lorette e Vigário-Geral no-meado da mesma Sede, simultânea erespetivamente eleitos Bispos Titula-res de Tigisi di Numidia e de Lam-zella.

D. Denis Jachiet nasceu em Paris(França), a 21 de abril de 1962, e foiordenado Sacerdote no dia 29 de junhode 1996.

D. Thibaul Verny nasceu em Paris(França), a 7 de novembro de 1965, erecebeu a Ordenação presbiteral em 27de junho de 1998.

A 27 de junhoAuxiliar da Arquidiocese de Valença(Espanha), o Rev.do Pe. Arturo PabloRos Murgadas, até à presente dataVigário episcopal da mesma Sede,simultaneamente eleito Bispo Titularde Ursona.

D. Arturo Pablo Ros Murgadasnasceu em Vinalesa, na Arquidiocese,Província e Comunidade autónoma deValença (Espanha), no dia 10 de ju-nho de 1964, e foi ordenado Sacerdotea 29 de junho de 1993.

Início de Missãode Núncio Apostólico

D. Petar Rajič, Arcebispo Titular deSarsenterum, em São Tomé e Prínci-pe (11 de maio).

outros», escreve Joseph Ratzinger,oferecendo-nos uma das tantas ma-ravilhosas imagens disseminadasneste livro.

Amados irmãos! Permiti-me dizerque se algum de vós tiver dúvidasacerca do centro do seu ministério,sobre o seu sentido e a sua utilida-de, se tiver dúvidas acerca do queos homens deveras esperam de nós,medite profundamente sobre as pá-ginas que nos são oferecidas: por-que eles esperam de nós acima detudo aquilo que encontrareis descri-to e testemunhado neste livro: quelhes anunciemos Jesus Cristo e queos levemos a Ele, à água fresca e vi-va da qual têm mais sede do que dequalquer outra coisa, que somenteEle pode saciar e que nenhum su-cedâneo jamais pode substituir; queos conduzamos rumo à felicidadeplena e genuína, quando nada maisos satisfaz; que os levemos a reali-zar aquele seu sonho mais íntimo,que nenhum poder jamais lhes po-derá prometer nem cumprir!

Não é por acaso que a iniciativadeste livro — juntamente com aque-la de dar vida de maneira deveras

oportuna a uma coleção de volu-mes temáticos sobre o pensamentode Joseph Ratzinger / Bento XVI —foi tomada por um leigo, o profes-sor Pierluca Azzaro, e por um sa-cerdote, o reverendo padre CarlosGranados. Dirijo-lhes o meu cordialagradecimento, os meus bons votose a minha ajuda para este impor-tante projeto, assim como ao reve-rendo padre Giuseppe Costa, dire-tor da Libreria Editrice Vaticana,que publica a Opera omnia de Jose-ph Ratzinger. Como eu disse, não épor acaso que hoje apresento o vo-lume, dedicando-o em igual medidaaos sacerdotes e aos fiéis leigos; co-mo magistralmente testemunha, en-tre outras, esta página do livro queofereço a religiosos e leigos comoum último e necessário convite àleitura: «Por coincidência, nestesdias li a narração que o grande es-critor francês Julien Green faz dasua conversão. Escreve que no pe-ríodo entre as duas guerras ele viviaprecisamente como vive o homemde hoje: permitia-se tudo o quequeria, vivia acorrentado pelos pra-zeres contrários a Deus, de tal for-ma que, por um lado, precisava de-les para tornar a sua vida suportá-

vel enquanto, por outro, julgava in-sustentável exatamente aquela mes-ma existência. Procura uma saída,estabelece relacionamentos. Vai tercom o grande teólogo Henri Bre-mond, mas o seu diálogo permane-ce no plano académico, pormenoresteóricos que não o ajudam. Instaurauma relação com dois grandes filó-sofos, os cônjuges Jacques e RaïssaMaritain. Raïssa Maritain indica-lhe um dominicano polaco. Encon-tra-se com ele e descreve-lhe a suavida dilacerada. Mas o sacerdotepergunta-lhe: “E o senhor concordaem viver assim?”. “Não, natural-mente, não!”, responde. “Portanto,quer viver de outro modo, está arre-p endido?”. “Sim!”, responde-lheGreen. E depois acontece algo ines-perado. O presbítero pede-lhe:“Ajoelhe-se! Ego te absolvo a peccatistuis — absolvo-o!”. Julien Green es-creve: “Então dei-me conta de queno fundo eu sempre tinha esperadoaquele momento, sempre tinhaaguardado alguém que me dissesse:Ajoelhe-se, absolvo-o! Fui para ca-sa: eu não era outra pessoa, não,tornei-me finalmente eu mesmo!”»(Joseph Ratzinger, Opera omnia, 12,pág. 781).

Prefácio do Pontífice a uma antologia do seu predecessorCO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 12

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página 16 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 30 de junho de 2016, número 26

Conversas laicas sobre a «Laudato si’»

Uma carta pessoal

Barqueiro rumo aos litorais do cinema modernoWim Wenders, um dos cineastas que procuraramtransportar o cinema de autor alemão e europeu paraas difíceis dinâmicas do cinema moderno e para a suafechada estratégia industrial e comercial. Já nos seusprimeiros filmes, o semidiletante Summer in the City(1970) e a produção mais profissional Die Angst desTormanns beim Elfmeter (1972), Wenders começa a focaralguns dos seus temas e estilos técnico-narrativospreferidos: a viagem errante, a incomunicabilidade, aafasia, a perda do eu em contacto com umafenomenologia e um objetivismo imperscrutável, aconsequente rejeição, ou melhor, a negação sistemáticade um percurso narrativo convencional, adesconstrução de esquemas assimiláveis ao cinema degénero e, por fim, a consequente alergia por umamontagem que de certa maneira possa demonstrar,determinar, explicar a realidade objetiva. Portanto, ouso frequente de planos muito longos foi sugeridomais por um sentido de abandono que por umanecessidade expressiva real. Uma obra madura eplenamente convincente neste sentido é Alice in denStädten (1974), enquanto com Falsche Bewegung (1975)já se insinua a tentação do maneirismo, que logo

depois foi sublimado numa poética sobre o fim docinema — e também da Alemanha dos pais — em ImLauf der Zeit (1976).A fama chegou com Der amerikanische Freund (1977)mas a sua poética não se corrompe. Aliás, a irrupçãode outras culturas, em particular a americana, ofascínio perigoso pela música e pela estética de massa,a origem não totalmente traída de um thriller assinadopor Patricia Highsmith, enriqueceram os seus temasprediletos e depuraram o seu cinema das tentações docinema de autor. Depois de Der Stand der Dinge(1982), outra reflexão sobre o fim do cinema, comParis, Texas (1984) uma volta ao isolamento maneirista,Wenders repete-se a si mesmo celebrando o subgéneroque o tornou famoso, o road movie existencial.Enquanto o díptico Der Himmel über Berlin (1987) e Inweiter Ferne, so nah! (1993) alterna poesia e poetismo,tornando-se dor e delícia da crítica daqueles anos. Omesmo discurso é válido para a ficção científica deUntil the End of the World (1991). Menos pretensiosos,todavia mais bem sucedidos são Lisbon story (1994) eDon’t come knocking (2005), ulteriores reflexões sobre ostemas da viagem e do fim do cinema. (emilio ranzato)

WIM WENDERS

Enquanto leio a encíclica Lau-dato si’, estou plenamenteciente de que se trata de um

dos documentos mais importantesdeste século XXI ainda jovem, querpor causa do seu autor, o PapaFrancisco, quer pelo tema: o sofri-mento insuportável do planeta. Co-movo-me profundamente a pontoque não consigo interromper a leitu-ra. E dou-me conta de que nestetexto o que me provoca a comoção éo tom!

O modo como ele penetra na mi-nha mente, arrebatando-me devaga-rinho... Não é como ler um textoteórico ou pedagógico, assemelha-semuito mais a uma carta pessoal, queme foi enviada por um amigo íntimo(e muito competente). Continuo aleitura e quase ouço a voz pacata doautor, que nada tem de pedante,aliás muito longe do tom de quempronuncia uma conferência, parecemais a voz de alguém que fala comose estivesse pensando em voz alta, avoz gentil de quem deseja comparti-lhar comigo os seus pensamentos.

Continuo a esquecer que quem fa-la (ou melhor, quem escreve), é oPapa... Às vezes ele entra num terre-no familiar, sem nunca pretender sa-ber mais do que já sabemos, mas fa-zendo-o com tal paixão e convicçãoque o mero fluxo dos pensamentos,a complexidade e a determinação doraciocínio são arrastados e unem-nosnuma única convicção: agora oununca mais! O dano à Terra foi cau-sado por nós. Estamos a prejudicara nós mesmos, a longo prazo (e tam-bém a curto prazo).

Sim, é o tom da mensagem que atorna tão poderosa e convincente,muito mais que um ensaio ou tesesobre o argumento. Não é que aoacabares de ler a encíclica necessaria-mente saberás mais do que antes.Não é um texto rico de dados novose intuições surpreendentes, nem umaleitura da qual recebes mais conheci-mentos. Com algumas situações queantes conhecias, agora estabelecesuma relação diferente: a partir destemomento passam a pertencer à tuavida num sentido profundamenteexistencial.

Estás mais convicto do que nunca,porque a própria alma compreendeuque proteger o planeta é uma dasquestões mais urgentes do nossotempo. Com frequência, as questõesambientais que em determinadosmomentos nos parecem importantís-simas e urgentes, são deixadas emsegundo plano por causa da rotina edas emergências do dia a dia. Destavez é diverso. O Papa Francisco es-clareceu a vós, a nós, a mim, sobre-tudo que: o sofrimento dos pobresnão pode ser separado e consideradouma questão à parte do sofrimentodo planeta. As duas realidades con-cernem-se e devem ser resolvidasjuntas! Mas geralmente são conside-

radas questões separadas. As organi-zações que as combatem estão com-prometidas numa ou noutra frente.

Não o Papa Francisco, nem a féque ele representa. Portanto, não ésó o tom deste livro que o colocaacima de qualquer mensagem políti-ca. É também a fonte da qual pro-vém. O próprio título, Laudato si’,recorda-nos o motivo pelo qual Jor-ge Mario Bergoglio escolheu o nomede são Francisco e por que escrevetudo isto dirigindo-se a nós como« Fr a n c i s c o » .

Na longa história entre a humani-dade e a natureza este homem, estesanto, com a sua vida e as suas con-vicções ocupa indiscutivelmente umaposição de destaque.

Foi o primeiro que identificou aprópria vida com a de qualquer ou-tro ser vivo no planeta, e a sua com-paixão pelos pobres não conhecia li-mites. Esta encíclica foi escrita noseu espírito por outro homem deDeus cheio de amor, compaixão esabedoria, que assumiu o nome deFrancisco como um sinal, uma indi-

cação da sua missão: a reconciliaçãoda fé cristã com a realidade contem-porânea e as suas questões mais ur-gentes: por um lado a luta contra apobreza, por outro contra o abusodos preciosos tesouros do planeta: asua água, o seu ar, as suas plantas,os seus animais, os seus recursos.

Os nossos princípios cristãos (cer-tamente não é necessário insistir so-bre este ponto, pois é óbvio e evi-dente) não são só compatíveis masidênticos com a compaixão pelospobres e pelo planeta!

Somos os guardiães dos nossos ir-mãos e temos a tarefa de cuidar danatureza, dos animais e da vida naTerra, não de os explorar. Desta vez,

nesta encíclica, a fé não é algo queleva os cristãos a transcender de al-gum modo o mundo, deixando-opara trás, mas que conduz direta-mente ao mundo, exortando a abra-çá-lo e defendê-lo.

E, pelo menos desta vez, ficas im-paciente por partilhar um texto daIgreja com pessoas que não sãocrentes ou que rezam a outro Deus.

Afinal, vivemos no mesmo plane-ta, somos irmãos uns dos outros e,apesar dos diversos nomes de Deus,o espírito de compaixão e amor queemana deste texto, só pode ser umulterior motivo para respeitar o ou-tro e cuidar do que foi doado a to-dos nós: o planeta Terra.

Giotto, «Oferta do manto», afrescoIgreja Superior da Basílica de São Francisco em Assis (1292-1296)