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    Memrias de um Suicida [Yvonne A. Pereira]

    (Obra Medinica)

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    Memrias de umSuicida

    FEDERAO ESPRITA BRASILEIRA

    DEPARTAMENTO EDITORIAL

    Rua Souza Valente, 17-CEP-20941e Avenida Passos, 30 - CEP - 20051

    Rio, RJ-Brasil10 edio

    Do 51 ao 60 milheiro

    Capa de Cecconi

    B.N. 10.427

    281-AA; 002.01-0; 6/1982

    Copyright 1955 byFEDERAO ESPRITA BRASILEIRA(Casa-Mter do Espiritismo)

    AV. PASSOS, 3020051 - Rio, RJ - Brasil

    Composio, fotolitos e impresso offset dasOficinas do Departamento Grfico da FEB

    Rua Souza Valente, 1720941 - Rio, RJ - Brasil

    C.G.C, n 33.644.857/0002-84LE, n .O 81.600.503

    Impresso no BrasilPRESITA EN BRAZILO

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    ndice

    Introduo 007Prefcio da segunda edio 013

    PRIMEIRA PARTE

    Os RprobosI - O Vale dos Suicidas 015II - Os rprobos 031III - No Hospital "Maria de Nazar" 054IV - Jernimo de Arajo Silveira e famlia 083V - O reconhecimento 114VI - A Comunho com o Alto 136VII - Nossos amigos - os discpulos de Allan Kardec 168

    SEGUNDA PARTE

    Os DepartamentosI - A Torre de Vigia 188II - Os arquivos da alma 220III - O Manicmio 246IV - Outra vez Jernimo e famlia 274V - Preldios de reencarnao 311VI - "A cada um segundo suas obras" 339VII - Os primeiros ensaios 371VIII Novos rumos 394

    TERCEIRA PARTE

    A Cidade UniversitriaI - A Manso da Esperana 414II - "Vinde a mim" 436III - "Homem, conhece-te a ti mesmo" 451IV - O "homem velho" 481V - A causa de minha cegueira no sculo XIX 499VI - O elemento feminino 519VII - ltimos traos 544

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    Introduo

    Devo estas pginas caridade de eminente habitantedo mundo espiritual, ao qual me sinto ligada por um sen-timento de gratido que pressinto se estender alm davida presente. No fora a amorosa solicitude desse idumi-

    raldo representante da Doutrina dos Espritos - queprometeu, nas pginas fulgurantes dos volumes que dei-xou na Terra sobre filosofia esprita, acudir ao apelo detodo corao sincero que recorresse ao seu auxlio como intuito de progredir, uma vez passado ele para o planoinvisvel e caso a condescendncia dos Cus tanto lhopermitisse - e se perderiam apontamentos que, desde oano de 1926, isto , desde os dias da minha juventude eos albores da mediunidade, que juntos floresceram emminha vida, penosamenteeu vinha obtendo de Espritosde suicidas que voluntariamente acorriam s reunies do

    antigo "CentroEsprita de Lavras", na cidade do mesmonome, no extremo sul do Estado de Minas Gerais, e decuja diretoria fiz parte durante algum tempo. Refiro-me aLon Denis, o grande apstolo do Espiritismo, to admi-rado pelos adeptos da magna filosofia, e a quem tenho osmelhores motivos para atribuir as intuies advindaspara a compilao e redao da presente obra.

    Durante cerca de vinte anos tive a felicidade de sentira ateno de to nobre entidade do mundo espiritualpiedosamente voltada para mim, inspirando-me um dia,aconselhando-me em outro, enxugando-me as lgrimasnos momentos decisivos em que renncias dolorosas seimpuseram como resgates indispensveis ao levantamen-to de minha conscincia, engolfada ainda no oprbriodas conseqncias de um suicdio em existncia pregressa.8 YVONNE A, PEREIRA

    E durante vinte anos convivi, por assim dizer, com esseIrmo venervel cujas lies povoaram minha alma deconsolaes e esperanas, cujos conselhos procurei semprepr em prtica, e que hoje como nunca, quando a exis-tncia j declina para o seu ocaso, fala-me mais terna-mente ainda, no segredo do recinto humlimo onde estaslinhas so escritas!

    Dentre os numerosos Espritos de suicidas com quemmantive intercmbio atravs das faculdades medinicas

    de que disponho, um se destacou pela assiduidade e sim-patia com que sempre me honrou, e, principalmente, pelonome glorioso que deixou na literatura em lngua por-tuguesa, pois tratava-se de romancista fecundo e talen-toso, senhor de cultura to vasta que at hoje de mimmesma indago a razo por que me distinguiria com tantaafeio se, obscura, trazendo bagagem intelectual redu-zidssima, somente possua para oferecer ao seu peregrinosaber, como instrumentao, o corao respeitoso e afirmeza na aceitao da Doutrina, porquanto, por aqueletempo, nem mesmo cultura doutrinria eficiente eupossua!

    Chamar-lhe-emos nestas pginas - Camilo Cndido

    Botelho, contrariando, todavia, seus prprios desejos deser mencionado com a verdadeira identidade. Esse nobreEsprito, a quem poderosas correntes afetivas espirituais

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    me ligavam, freqentemente se tornava visvel, satisfeitopor se sentir bem querido e aceito. At o ano de 1926,porm, s muito superficialmente ouvira falar em seunome. No lhe conhecia sequer a bagagem literria, co-piosa e erudita.

    No obstante, veio ele a descobrir-me em uma mesa

    de sesso experimental, realizada na fazenda do CoronelCristiano Jos de Souza, antigo presidente do "CentroEsprita de Lavras", dando-me ento a sua primeira men-sagem. Da em diante, ora em sesses normalmente or-ganizadas, ora em reunies ntimas, levadas a efeito emdomiclios particulares, ou no silncio do meu aposento,altas horas da noite, dava-me apontamentos, noticirioperidico, escrito ou verbal, ensaios literrios, verdadeirareportagem relativa a casos de suicdio e suas tristes

    MEMRIAS DE UM SUICIDA

    conseqncias no Alm-Tmulo, na poca verdadeiramentete atordoadOres para min. Porm, muito mais freqen-temente, arrebatavam-me, ele e outros amigos e prote-tores espirituais, do crcere corpreo, a fim de, por essaforma cmoda e eficiente, ampliar ditados e experincias.Ento, meu Espirito alava ao convvio do mundo invi-svel e as mensagens j no eram escritas, mas narradas,mostradas, exibidas minnha faculdade medinica paraque, ao despertar, maior facilidade eu encontrasse paracompreender aquele que, por merc inestimvel do Cu,me pudesse auxiliar a descrev-las, pois eu no era escri-tora para o fazer por mim mesma! Estas pginas, por-tanto, rigorosamente, no foram psicografadas, pois euvia e ouvia nitidamente as cenas aqui descritas, observavaas personagens, os locais, com clareza e certeza absolutas,como se os visitasse e a tudo estivesse presente e nocomo se apenas obtivesse notcias atravs de simplesnarrativas. Se descreviam uma personagem ou algumapaisagem, a configurao do exposto se definia imedia-tamente, proporo que a palavra fulgurante de Camilo,ou a onda vibratria do seu pensamento, as criavam.Foi mesmo por essa forma essencialmente potica, mara-vilhosa, que obtive a longa srie de ensaios literriosfornecidos pelos habitantes do Invisvel e at agora man-tidos no segredo das gesuetas, e no psicograficamente.Da psicografia os Espritos que me assistiam apenas seutilizavam para os servios de receiturio e pequenasmensagens instrutivas referentes ao ambiente em que

    trabalhvamos. E posso mesmo dizer que foi graas aesse estranho convvio com os Espritos que me advieramas nicas horas de felicidade e alegria que desfrutei nestemundo, como a resistncia para os testemunhos que fuichamada a apresentar frente da Grande Lei!

    No entanto, as referidas mensagens e os apontamen-tos feitos ao despertar, eram bastante vagos, no apre-sentando nem a feio romntica nem as conclusesdoutrinrias que, depois, para eles criou o seu compilador,por lhes desejar aplicar meio suave de expor verdadesamargas, mas necessrias no momento que vivemos. Per-YVONNE A. PEREIRA

    guntar-se- por que o prprio Camilo no o fez... Poisteria, certamente, capacidade para tanto.

    Responderei que, at o momento em que estas linhas

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    vo sendo traadas, ignoro-o tanto como qualquer outrapessoa! jamais perquiri, alis, dos Espritos a razo detal acontecimento. De outro lado, durante cerca de quatroanos vi-me na impossibilidade de manter intercmbionormal com os Espritos, por motivos independentes deminha vontade. E quando as barreiras existentes foram

    arredadas do meu caminho, o autor das mensagens sacudiu aos meus reiterados apelos a fim de participar suaprxima volta existncia planetria. Encontrei-me entoem situao difcil para redigir o trabalho, dando feiodoutrinria e educativa s revelaes concedidas ao meuEsprito durante o sono magntico, as quais eu sabiadesejarem as nobres entidades assistentes fossem trams-mitidas coletividade, pois eu no era escritora, no mesobrando capacidade para, por mim mesma, tentar aexperincia. Releguei-os, portanto, ao esquecimento deuma gaveta de secretria e orei, suplicando auxilio e ins-pirao. Orei, porm, durante oito anos, diariamente,sentindo no corao o ardor de uma chama viva de intui-o segredando-me aguardasse o futuro, no destruindoos antigos manuscritos. At que, h cerca de um ano, re-cebi instrues a fim de prosseguir, pois ser-me-ia con-cedida a necessria assistncia!

    Prosseguindo, porm, direi que tenho as mais fortesrazes para afirmar que a palavra dos Espritos cenaviva e criadora, real, perfeita! em sendo tambm umavibrao do pensamento capaz de manter, pela ao davontade, o que desejar! Durante cerca de trinta anostenho penetrado de algum modo os mistrios do mundoinvisvel, e no foi outra coisa o que l percebi. denotar, todavia, que, ao despertar, a lembrana somenteme acompanhava quando os assistentes me autorizavama recordar! Na maioria das vezes em que me foram facul-tados estes vos, apenas permaneceu a impresso do acon-tecido, a ntima certeza de que convivera por instantescom os Espritos, mas no a lembrana.

    MEMRIAS DE UM SUICIDA

    Os mais insignificantes detalhes podero ser notadosquando um Espirito iluminado ou apenas esclarecido"falar", como, por exemplo - uma camada de p sobreum mvel; um esvoaar de brisa agitando um cortinado;um vu, um lao de fita gracioso, mesmo com o brilho daseda, no vesturio feminino; o estrelejar das chamas nalareira e at o perfume, pois tudo isso tive ocasio de

    observar na palavra mgica de Camilo, de Victor Hugo,de Charles e at do apstolo do Espiritismo no Brasil -Bezerra de Menezes, a quem desde o bero fui habituadaa venerar, por meus pais. Certa vez em que Camilodescrevia uma tarde de inverno rigoroso em Portugal,juntamente com um interior aquecido por lareira bemacesa, senti invadir-me tal sensao de frio que tiritei,buscando as chamas para aquecer-me, enquanto, satis-feito com a experincia, ele se punha a rir... Alis, ofenmeno no ser certamente novo. No foi por outraforma que Joo Evangelista obteve os ditados para o seuApocalipse e que os profetas da Judia receberam asrevelaes com que instruam o povo.

    No Apocalipse, versculos 10 e 11 e seguintes, doprimeiro captulo, o eminente servo do Senhor positiva ofenmeno a que aludimos, em pequenas palavras: "Eu

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    fui arrebatado em Esprito, um dia de domingo, e ouvi pordetrs de mim uma grande voz como de trombeta, quedizia: - O que vs, escreve-o em um livro e envia-o ssete igrejas.. ." - etc., etc.; e todo o importante volumefoi narrado ao apstolo assim, atravs de cenas reais,palpitantes, vivas, em vises detalhadas e precisas! O

    Espiritismo tem amplamente tratado de todos esses inte-ressantes casos para que no se torne causa de admiraoo que vimos expondo; e no primeiro capitulo da magistralobra de Allan Kardec - "A Gnese" - existe este t-pico, certamente muito conhecido dos estudantes daDoutrina dos Espritos: "As instrues (dos Espritos)podem ser transmitidas por diversos meios: pela simplesinspirao, pela audio da palavra, pela visibilidade dosEspritos instrutores, nas vises e aparies, quer emsonho quer em estado de viglia, do que h muitos exem-YVONNE A. PEREIRA

    plos no Evangelho, na Bblia e nos livros sagrados detodos os povos."

    Longe de mim a veleidade de me colocar em planoequivalente ao daquele missionrio acima citado, isto ,Joo Evangelista. Pelas dificuldades com que lutei a fimde compor este volume, patenteadas ficaram ao meu ra-ciocnio as bagagens de inferioridades que me deprimemo Esprito. O discpulo amado, porm, que, em sendoum missionrio escolhido, era tambm modesto pescador,teve sem dvida o seu assistente espiritual para poderdescrever as belas pginas aureoladas de cincia e ensi-namentos outros, de valor incontestvel, os quais rom-periam os sculos glorificando a Verdade! bem pro-vvel que o prprio Mestre fosse aquele assistente...

    No posso ajuizar quanto aos mritos desta obra.Proibi-me, durante muito tempo, lev-la ao conhecimentoalheio, reconhecendo-me incapaz de analis-la. No mesinto sequer altura de rejeit-la, como no ouso tam-bm aceit-la. Vs o fareis por mim. De uma coisa,porm, estou bem certa: - que estas pginas foramelaboradas, do princpio ao fim, com o mximo respeito Doutrina dos Espritos e sob a invocao sincera donome sacrossanto do Altssimo.

    Rio de Janeiro, 18 de maio de 1954.

    Prefcio da segunda edio

    YVONNE A. PEREIRA

    Reviso criteriosa impunha-se nesta obra que halguns anos me fora confiada. para exame e compilao,em virtude das tarefas espiritualmente a mim subordi-nadas, como da ascendncia adquirida sobre o instru-mento medinico ao meu dispor.

    Fi-lo, todavia, algo extemporaneamente, j que meno fora possvel faz-lo na data oportuna, por motivosafetos mais aos prejuzos das sociedades terrenas con-tra que o mesmo instrumento se debatia, do que minhavontade de operrio atento no cumprimento do dever. Ea reviso se impunha, tanto mais quanto, ao transmitir

    a obra, me fora necessrio avolumar de tal sorte as vibra-es ainda rudes do crebro medinico, operando nelepossibilidades psquicas para a captao das vises indis-

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    pensveis ao feito, que, ativadas ao grau mximo quequele seria possvel comportar, to excitadas se torna-ram que seriam quais catadupas rebeldes nem sempreobedecendo com facilidade presso que lhes fazia, pro-curando evitar excessos de vocabulrio, acmulos de fi-guras representativas, os quais somente agora foram

    suprimidos. Nada se alterou, todavia, na feio doutri-nria da obra, como no seu particular carter revela-trio. Entrego-a ao leitor, pela segunda vez, tal comofoi recebida dos Maiores que me incubaram da espinhosatarefa de apresent-la aos homens. E se, procurandoesclarecer o pblico, por lhe facilitar o entendimento defactos espirituais, nem sempre conservei a feitura lite-rria dos originais que tinha sob os olhos, no entanto,no lhes alterei nem os informes preciosos nem as con-YVONNE A. PEREIRA

    cluses, que respeitei como labor sagrado de origemalheia.

    Que medites sobre estas pginas, leitor, ainda queduro se torne para o teu orgulho pessoal o aceit-las! Ese as lgrimas alguma vez rociarem tuas plpebras, passagem de um lance mais dramtico, no recalcitrescontra o impulso generoso de exaltar teu corao emprece piedosa, por aqueles que se estorcem nas trgicasconvulses da inconseqncia de infraes s leis deDeus!

    LON DENIS

    Belo Horizonte, 4 de abril de 1957.

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    PRIMEIRA PARTE

    OS RPROBOS

    CAPTULO I

    O Vale dos SuicidasPrecisamente no ms de janeiro do ano da graa de

    1891, fora eu surpreendido com meu aprisionamento emregio do Mundo Invisvel cujo desolador panorama eracomposto por vales profundos, a que as sombras presi-diam: gargantas sinuosas e cavernas sinistras, no inte-rior das quais uivavam, quais maltas de demnios enfu-recidos, Espritos que foram homens, dementados pelaintensidade e estranheza, verdadeiramente inconcebveis,dos sofrimentos que os martirizavam.

    Nessa paragem aflitiva a vista torturada do grilhe-ta no distinguiria sequer o doce vulto de um arvoredoque testemunhasse suas horas de desesperao; tampou-co paisagens confortativas, que pudessem distra-lo dacontemplao cansativa dessas gargantas onde no pene-trava outra forma de vida que no a traduzida pelosupremo horror!

    O solo, coberto de matrias enegrecidas e ftidas,lembrando a fuligem, era imundo, pastoso, escorregadio,repugnante! O ar pesadssimo, asfixiante, gelado, enoi-tado por bulces ameaadores como se eternas tempes-tades rugissem em torno; e, ao respirarem-no, os Esp-ritos ali ergastulados sufocavam-se como se matriaspulverizadas, nocivas mais do que a cinza e a cal, lhesinvadissem as vias respiratrias, martirizando-os com16 YVONNE A. PEREIRA

    suplcio inconcebvel ao crebro humano habituado sgloriosas claridades do Sol - ddiva celeste que diaria-mente abenoa a Terra - e s correntes vivificadorasdos ventos sadios que tonificam a organizao fsica dosseus habitantes.

    No havia ento ali, como no haver jamais, nempaz, nem consolo, nem esperana: tudo em seu mbitomarcado pela desgraa era misria, assombro, desesperoe horror. Dir-se-ia a caverna ttrica do Incompreensvel,indescritvel a rigor at mesmo por um Esprito quesofresse a penalidade de habit-la.

    O vale dos leprosos, lugar repulsivo da antiga Jeru-

    salm de tantas emocionantes tradies, e que no orbeterrqueo evoca o ltimo grau da abjeo e do sofri-mento humano, seria consolador estgio de repouso com-parado ao local que tento descrever. Pelo menos, aliexistiria solidariedade entre os renegados! Os de sexodiferente chegavam mesmo a se amar! Adotavam-se emboas amizades, irmanando-se no seio da dor para sua-viz-la! Criavam a sua sociedade, divertiam-se, presta-vam-se favores, dormiam e sonhavam que eram felizes!

    Mas no presdio de que vos desejo dar contas nadadisso era possvel, porque as lgrimas que se choravamali eram ardentes demais para se permitirem outras aten-es que no fossem as derivadas da sua prpria inten-

    sidade!No vale dos leprosos havia a magnitude compen-

    sadora do Sol para retemperar os coraes! Existia o

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    ar fresco das madrugadas com seus orvalhos regenera-dores! Poderia o precito ali detido contemplar uma faixado cu azul... Seguir, com o olhar enternecido, bandosde andorinhas ou de pombos que passassem em revoa-da!... Ele sonharia, quem sabe? lenido de amarguras,ao potico clarear do plenilnio, enamorando-se das cin-

    tilaes suaves das estrelas que, l no Inatingvel, ace-nariam para a sua desdita, sugerindo-lhe consolaesno insulamento a que o foravam as frreas leis da po-ca!... E, depois, a Primavera fecunda voltava, rejuve-nescia as plantas para embalsamar com seus perfumescariciosos as correntes de ar que as brisas diariamente

    tonificavam com outros tantos blsamos generosos quetraziam no seio amorvel... E tudo isso era como d-divas celestiais para reconcili-lo com Deus, fornecendo--lhe trguas na desgraa.

    Mas na caverna onde padeci o martrio que me sur-preendeu alm do tmulo, nada disso havia!

    Aqui, era a dor que nada consola, a desgraa quenenhum favor ameniza, a tragdia que idia algumatranqilizadora vem orvalhar de esperana! No h cu,no h luz, no h sol, no h perfume, no h trguas!

    O que h o choro convulso e inconsolvel doscondenados que nunca se harmonizam! O assombroso"ranger de dentes" da advertncia prudente e sbia dosbio Mestre de Nazar! A blasfmia acintosa do r-probo a se acusar a cada novo rebate da mente fla-gelada pelas recordaes penosas! A loucura inaltervelde conscincias contundidas pelo vergastar infame dosremorsos. O que h a raiva envenenada daquele quej no pode chorar, porque ficou exausto sob o exces-so das lgrimas! O que h o desaponto, a surpresaaterradora daquele que se sente vivo a despeito de sehaver arrojado na morte! a revolta, a praga, o insul-to, o ulular de coraes que o percutir monstruoso daexpiao transformou em feras! O que h a conscin-cia conflagrada, a alma ofendida pela imprudncia dasaes cometidas, a mente revolucionada, as faculdadesespirituais envolvidas nas trevas oriundas de si mesma!O que h o "ranger de dentes nas trevas exteriores"de um presdio criado pelo crime, votado ao martrio econsagrado emenda! o inferno, na mais hediondae dramtica exposio, porque, alm do mais, existemcenas repulsivas de animalidade, prticas abjetas dosmais srdidos instintos, as quais eu me pejaria de re-

    velar aos meus irmos, os homens!Quem ali temporariamente estaciona, como eu es-

    tacionei, so grandes vultos do crime! a escria domundo espiritual - falanges de suicidas que periodi-camente para seus canais afluem levadas pelo turbilhodas desgraas em que se enredaram, a se despojarem dasforas vitais que se encontram, geralmente intactas,YVONNE A. PEREIRA

    revestindo-lhes os envoltrios fsico-espirituais, por se-qncias sacrlegas do suicdio, e provindas, preferen-temente, de Portugal, da Espanha, do Brasil e colniasportuguesas da frica, infelizes carentes do auxlio con-

    fortativo da prece; aqueles, levianos e inconseqentes,que, fartos da vida que no quiseram compreender, seaventuraram ao Desconhecido, em procura do Olvido,

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    pelos despenhadeiros da Morte!O Alm-tmulo acha-se longe de ser a abstrao

    que na Terra se supe, ou as regies paradisacas fceisde conquistar com algumas poucas frmulas inexpressi-vas. Ele , antes, simplesmente a Vida Real, e o queencontramos ao penetrar suas regies Vida! Vida in-

    tensa a se desdobrar em modalidades infinitas de ex-presso, sabiamente dividida em continentes e falangescomo a Terra o em naes e raas; dispondo de orga-nizaes sociais e educativas modelares, a servirem depadro para o progresso da Humanidade. no Invi-svel, mais do que em mundos planetrios, que as cria-turas humanas colhem inspirao para os progressos quelentamente aplicam no orbe.

    No sei como decorrero os trabalhos correcionaispara suicidas nos demais ncleos ou colnias espirituaisdestinadas aos mesmos fins e que se desdobraro sobcus portugueses, espanhis e seus derivados. Sei apenas que fiz parte de sinistra falange detida, por efeito na-tural e lgico, nessa paragem horrenda cuja lembranaainda hoje me repugna sensibilidade. bem possvelque haja quem ponha a discusses mordazes a veraci-dade do que vai descrito nestas pginas. Diro que afantasia mrbida de um inconsciente exausto de assimi-lar Dante ter produzido por conta prpria a exposioaqui ventilada... esquecendo-se de que, ao contrrio, ovate florentino que conheceria o que o presente sculosente dificuldades em aceitar...

    No os convidarei a crer. No assunto que seimponha crena, simplesmente, mas ao raciocnio, aoexame, investigao. Se sabem raciocinar e podeminvestigar - que o faam, e chegaro a concluses l-gicas que os colocaro na pista de verdades assaz inte-

    MEMRIAS DE UM SUICIDA

    ressantes para toda a espcie humana! O a que os con-vido, o que ardentemente desejo e para que tenho todoo interesse em pugnar, que se eximam de conheceressa realidade atravs dos canais trevosos a que me ex-pus, dando-me ao suicdio por desobrigar-me da adver-tncia de que a morte nada mais do que a verdadeiraforma de existir!...

    De outro modo, que pretenderia o leitor existissenas camadas invisveis que contornam os mundos ou pla-netas, seno a matriz de tudo quanto neles se reflete?!...

    Em nenhuma parte se encontraria a abstrao, ou onada, pois que semelhantes vocbulos so inexpressivosno Universo criado e regido por uma Inteligncia Oni-potente! Negar o que se desconhece, por se no encon-trar altura de compreender o que se nega, insniaincompatvel com os dias atuais. O sculo convida o ho-mem investigao e ao livre exame, porque a Cincianas suas mltiplas manifestaes vem provando a ine-xatido do impossvel dentro do seu cada vez mais dila-tado raio de ao. E as provas da realidade dos con-tinentes superterrenos encontram-se nos arcanos dascincias psquicas transcendentais, s quais o homem hligado muito relativa importncia at hoje.

    O que conhece o homem, alis, do prprio planetaonde tem renascido desde milnios, para criteriosamenterejeitar o que o futuro h de popularizar sob os ausp-

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    cios do Psiquismo?... O seu pas, a sua capital, a suaaldeia, a sua palhoa ou, quando mais avantajado deambies, algumas naes vizinhas cujos costumes senivelam aos que lhe so usuais?...

    Por toda a parte, em torno dele, existem mundosreais, exarando vida abundante e intensa: e se ele o igno-

    ra ser porque se compraz na cegueira, perdendo tempocom futilidades e paixes que lhe sabem ao carter.No perquiriu jamais as profundidades ocenicas - nopoder mesmo faz-lo, por enquanto. No obstante, de-baixo das guas verdes e marulhentas existe no maisum mundo perfeitamente organizado, mas um universoque assombraria pela grandiosidade e ideal perfeio!No prprio ar que respira, no solo onde pisa encontraria20 YVONNE A. PEREIRA

    o homem outros ncleos organizados de vida, obedecendoao impulso inteligente e sbio de leis magnnimas fun-damentadas no Pensamento Divino, que os aciona parao progresso, na conquista do mais perfeito! Bastaria quese munisse de aparelhamentos precisos, para averiguara veracidade dessas coletividades desconhecidas que, porserem invisveis umas, e outras apenas suspeitadas, nempor isso deixam de ser concretas, harmoniosas, verda-deiras!

    Assim sendo, habilite-se, tambm, desenvolvendo osdons psquicos que herdou da sua divina origem... Im-pulsione pensamento, vontade, ao, corao, atravs dasvias alcandoradas da Espiritualidade superior... e atin-gir as esferas astrais que circundam a Terra!

    Era eu, pois, presidirio dessa cova ominosa dohorror!

    No habitava, porm, ali sozinho. Acompanhava--me uma coletividade, falange extensa de delinqentes,como eu.

    Ento ainda me sentia cego. Pelo menos, sugestio-nava-me de que o era, e, como tal, me conservava, noobstante minha cegueira s se definir, em verdade, pelainferioridade moral do Esprito distanciado da Luz. Amim cego no passaria, contudo, despercebido o que seapresentasse mau, feio, sinistro, imoral, obsceno, poisconservavam meus olhos viso bastante para toda essaescria contemplar - agravando-se destarte a minhadesdita.

    Dotado de grande sensibilidade, para maior mal ti-

    nha-a agora como superexcitada, o que me levava a ex-perimentar tambm os sofrimentos dos outros mrtiresmeus cmpares, fenmeno esse ocasionado pelas corren-tes mentais que se despejavam sobre toda a falange eoriundas dela prpria, que assim realizava impressionan-te afinidade de classe, o que o mesmo que asseverarque soframos tambm as sugestes dos sofrimentos uns

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 21

    dos outros, alm das insdias a que nos submetiam osnossos prprios sofrimentos. (1)

    As vezes, conflitos brutais se verificavam pelos becos

    lamacentos onde se enfileiravam as cavernas que nosserviam de domiclio. Invariavelmente irritados, por mo-tivos insignificantes nos atirvamos uns contra os outros

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    em lutas corporais violentas, nas quais, tal como sucedenas baixas camadas sociais terrenas, levaria sempre amelhor aquele que maior destreza e truculncia apresen-tasse. Freqentemente fui ali insultado, ridiculizado nosmeus sentimentos mais caros e delicados com chistes esarcasmos que me revoltavam at o mago; apedrejado

    e espancado at que, excitado por fobia idntica, eu me

    (1) Aps a morte, antes que o Esprito se oriente, gravitandopara o verdadeiro "lar espiritual" que lhe cabe, ser sempre ne-cessrio o estgio numa "antecmara", numa regio cuja densi-dade e aflitivas configuraes locais correspondero aos estadosvibratrios e mentais do recm-desencarnado. A se deter atque seja naturalmente "desanimalizado", isto , que se desfaados fluidos e foras vitais de que so impregnados todos os corposmateriais. Por a se ver que a estada ser temporria nesseumbral do Alm, conquanto geralmente penosa. Tais sejam ocarter, as aes praticadas, o gnero de vida, o gnero de morteque teve a entidade desencarnada - tais sero o tempo e apenria no local descrito. Existem aqueles que a apenas se demo-ram algumas horas. Outros levaro meses, anos consecutivos,voltando reencarnao sem atingirem a Espiritualidade. Em setratando de suicidas o caso assume propores especiais, pordolorosas e complexas. Estes a se demoraro, geralmente, otempo que ainda lhes restava para concluso do compromissoda existncia que prematuramente cortaram. Trazendo carrega-mentos avantajados de foras vitais animalizadas, alm das ba-gagens das paixes criminosas e uma desorganizao mental,nervosa e vibratria completas, fcil entrever qual ser asituao desses infelizes para quem um s blsamo existe: -a prece das almas caritativas!

    Se, por muito longo, esse estgio exorbite das medidas nor-mais ao caso - a reencarnao imediata ser a teraputicaindicada, embora acerba e dolorosa, o que ser prefervel a muitosanos em to desgraada situao, assim se completando, ento,o tempo que faltava ao trmino da existncia cortada.

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    atirava a represlias selvagens, ombreando com os agres-sores e com eles refocilando na lama da mesma cevaespiritual!

    A fome, a sede, o frio enregelador, a fadiga, a in-snia; exigncias fsicas martirizantes, fceis de o leitorentrever; a natureza como que aguada em todos os seus

    desejos e apetites, qual se ainda trouxssemos o envol-trio carnal; a promiscuidade, muito vexatria, de Es-pritos que foram homens e dos que animaram corposfemininos; tempestades constantes, inundaes mesmo,a lama, o ftido, as sombras perenes, a desesperana denos vermos livres de tantos martrios sobrepostos, o su-premo desconforto fsico e moral - eis o panorama porassim dizer "material" que emoldurava os nossos aindamais pungentes padecimentos morais!

    Nem mesmo sonhar com o Belo, dar-se a devaneiosbalsamizantes ou a recordaes beneficentes era conce-dido quele que porventura possusse capacidade parao fazer. Naquele ambiente superlotado de males o pen-

    samento jazia encarcerado nas frguas que o contorna-vam, s podendo emitir vibraes que se afinassem aotono da prpria perfdia local... E, envolvidas em to

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    enlouquecedores fogos, no havia ningum que pudesseatingir um instante de serenidade e reflexo para se lem-brar de Deus e bradar por Sua paternal misericrdia!No se podia orar porque a orao um bem, um bl-samo, uma trgua, uma esperana! e aos desgraadosque para l se atiravam nas torrentes do suicdio im-

    possvel seria atingir to altas mercs!No sabamos quando era dia ou quando voltava anoite, porque sombras perenes rodeavam as horas quevivamos. Perdramos a noo do tempo. Apenas es-magadora sensao de distncia e longevidade do querepresentasse o passado ficara para aoitar nossas inter-rogaes, afigurando-se-nos que estvamos h sculosjungidos a to rspido calvrio! Dali no espervamossair, conquanto fosse tal desejo uma das causticantesobsesses que nos alucinavam... pois o Desnimo gera-dor da desesperana que nos armara o gesto de suici-das afirmava-nos que tal estado de coisas seria eterno!

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    A contagem do tempo, para aqueles que mergulhavamnesse abismo, estacionara no momento exato em que fi-zera para sempre tombar a prpria armadura de carne!Da para c s existiam - assombro, confuso, engano-sas indues, suposies insidiosas! Igualmente ignor-vamos em que local nos encontrvamos, que significaoteria nossa espantosa situao. Tentvamos, aflitos, fur-tarmo-nos a ela, sem percebermos que era cabedal denossa prpria mente conflagrada, de nossas vibraesentrechocadas por mil malefcios indescritveis! Procur-vamos ento fugir do local maldito para voltarmos aosnossos lares; e o fazamos desabaladamente, em insanascorrerias de loucos furiosos! Aasveros malditos, semconsolo, sem paz, sem descanso em parte alguma... aopasso que correntes irresistveis, como ms poderosos,atraam-nos de volta ao tugrio sombrio, arrastando-nosde envolta a um atro turbilho de nuvens sufocadorase estonteantes!

    De outras vezes, tateando nas sombras, l amos,por entre gargantas, vielas e becos, sem lograrmos in-dcio de sada... Cavernas, sempre cavernas - todasnumeradas -; ou longos espaos pantanosos quais lagoslodosos circulados de muralhas abruptas, que nos afi-guravam levantadas em pedra e ferro, como se framossepultados vivos nas profundas tenebrosidades de algum

    vulco! Era um labirinto onde nos perdamos sem po-dermos jamais alcanar o fim! Por vezes acontecia nosabermos retornar ao ponto de partida, isto , s caver-nas que nos serviam de domiclio, o que forava a per-manncia ao relento at que deparssemos algum covildesabitado para outra vez nos abrigarmos. Nossa maisvulgar impresso era de que nos encontrvamos encar-cerados no subsolo, em presdio cavado no seio da Terra,quem sabia se nas entranhas de uma cordilheira, da qualfizesse parte tambm algum vulco extinto, como pare-ciam atestar aqueles imensurveis poos de lama comparedes escalavradas lembrando minerais pesados?!...

    Aterrados, entrvamos ento a bramir em coro, fu-

    riosamente, quais maltas de chacais danados, para quenos retirassem dali, restituindo-nos liberdade! As mais

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    violentas manifestaes de terror seguiam-se ento; etudo quanto o leitor imaginar possa, dentro da confu-so de cenas patticas inventadas pela fobia do Horror,ficar muito aqum da expresso real por ns vivida

    nessas horas criadas pelos nossos prprios pensamentosdistanciados da Luz e do Amor de Deus!Como se fantsticos espelhos perseguissem obses-soramente nossas faculdades, l se reproduzia a visomacabra: - o corpo a se decompor sob o ataque dosvibries esfaimados; a faina detestvel da podrido aseguir o curso natural da destruio orgnica, levandoem roldo nossas carnes, nossas vsceras, nosso sanguepervertido pelo ftido, nosso corpo enfim, que se sumiapara sempre no banquete asqueroso de milhes de ver-mes vorazes, nosso corpo, que era carcomido lentamente,sob nossas vistas estupefatas!... que morria, era bemverdade, enquanto ns, seus donos, nosso Ego sensvel,pensante, inteligente, que dele se utilizara apenas comode um vesturio transitrio, continuava vivo, sensvel,pensante, inteligente, desapontado e pvido, desafiandoa possibilidade de tambm morrer! E - ttrica magiaque ultrapassava todo o poder que tivssemos de refletire compreender! - castigo irremovvel, punindo o re-negado que ousou insultar a Natureza destruindo pre-maturamente o que s ela era competente para decidire realizar: - Vivos, ns, em esprito, diante do corpoputrefato, sentamos a corrupo atingir-nos!... Doamem nossa configurao astral as picadas monstruosas dosvermes! Enfurecia-nos at demncia a martirizanterepercusso que levava nosso perisprito, ainda animali-zado e provido de abundantes foras vitais, a refletiro que se passava com seu antigo envoltrio limoso,tal o eco de um rumor a reproduzir-se de quebrada emquebrada da montanha, ao longo de todo o vale...

    Nossa covardia, ento, a mesma que nos brutalizarainduzindo-nos ao suicdio, forava-nos a retroceder.

    Retrocedamos.Mas o suicdio uma teia envolvente em que a v-

    tima - o suicida - s se debate para cada vez maisconfundir-se, tolher-se, embaraar-se. Sobrepunha-se a

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    confuso. Agora, a persistncia da auto-sugesto mal-

    fica recordava as lendas supersticiosas, ouvidas na in-fncia e calcadas por longo tempo nas camadas da sub-conscincia; corporificava-se em vises extravagantes, aque emprestava realidade integral. Julgvamo-nos nadamenos do que frente do tribunal dos infernos!... Sim!Vivamos na plenitude da regio das sombras!... E Es-pritos de nfima classe do Invisvel - obsessores quepululam por todas as camadas inferiores, tanto da Terracomo do Alm; os mesmos que haviam alimentado emnossas mentes as sugestes para o suicdio, divertindo-secom nossas angstias, prevaleciam-se da situao anor-mal para a qual resvalramos, a fim de convencer-nosde que eram juzes que nos deveriam julgar e castigar,

    apresentando-se s nossas faculdades conturbadas pelosofrimento como seres fantsticos, fantasmas impressio-nantes e trgicos. Inventavam cenas satnicas, com que

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    nos supliciavam. Submetiam-nos a vexames indescritveis!Obrigavam-nos a torpezas e deboches, violentando-nosa compactuar de suas infames obscenidades! Donzelasque se haviam suicidado, desculpando-se com motivos deamor, esquecidas de que o vero amor paciente, virtuo-so e obediente a Deus; olvidando, no egosmo passional

    de que deram provas, o amor sacrossanto de uma meque ficara inconsolvel; desrespeitando as cs vener-veis de um pai - os quais jamais esqueceriam o golpeem seus coraes vibrados pela filha ingrata que pre-feriu a morte a continuar no tabernculo do lar pater-no -, eram agora insultadas no seu corao e no seupudor por essas entidades animalizadas e vis, que asfaziam crer serem obrigadas a se escravizarem por se-rem eles os donos do imprio de trevas que escolheramem detrimento do lar que abandonaram! Em verdade,porm, tais entidades no passavam de Espritos quetambm foram homens, mas que viveram no crime:sensuais, alcolatras, devassos, intrigantes, hipcritas,perjuros, traidores, sedutores, assassinos perversos, ca-luniadores, stiros - enfim, essa falange malfica queinfelicita a sociedade terrena, que muitas vezes tem fu-nerais pomposos e exquias solenes, mas que na exis-

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    tncia espiritual se resume na corja repugnante quemencionamos... at que reencarnaes expiatrias, mi-serveis e rastejantes, venham impulsion-la a novastentativas de progresso.

    A to deplorveis seqncias sucediam-se outras nomenos dramticas e rescaldantes: - atos incorretos porns praticados durante a encarnao, nossos erros, nos-sas quedas pecaminosas, nossos crimes mesmo, corpori-ficavam-se frente de nossas conscincias como outrasvises acusadoras, intransigentes na condenao perenea que nos submetiam. As vtimas do nosso egosmo rea-pareciam agora, em reminiscncias vergonhosas e contu-mazes, indo e vindo ao nosso lado em atropelos perti-nazes, infundindo em nossa j to combalida organizaoespiritual o mais angustioso desequilbrio nervoso forjadopelo remorso!

    Sobrepondo-se, no entanto, a to lamentvel acervode iniqidades, acima de tanta vergonha e to rudes hu-milhaes existia, vigilante e compassiva, a paternal mi-sericrdia do Deus Altssimo, do Pai justo e bom que

    "no quer a morte do pecador, mas que ele viva e searrependa".

    Nas peripcias que o suicida entra a curtir depoisdo desbarato que prematuramente o levou ao tmulo, oVale Sinistro apenas representa um estgio temporrio,sendo ele para l encaminhado por movimento de im-pulso natural, com o qual se afina, at que se desfaamas pesadas cadeias que o atrelam ao corpo fsico-terre-no, destrudo antes da ocasio prevista pela lei natural.Ser preciso que se desagreguem dele as poderosas ca-madas de fluidos vitais que lhe revestiam a organizaofsica, adaptadas por afinidades especiais da Grande MeNatureza organizao astral, ou seja, ao perisprito,

    as quais nele se aglomeram em reservas suficientes parao compromisso da existncia completa; que se arrefeam,enfim, as mesmas afinidades, labor que na individuali-

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    dade de um suicida ser acompanhado das mais aflitivasdificuldades, de morosidade impressionante, para, s en-to, obter possibilidade vibratria que lhe faculte alvio

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    e progresso (2), De outro modo, tal seja a feio doseu carter, tais os demritos e grau de responsabilidadesgerais - tal ser o agravo da situao, tal a intensidadedos padecimentos a experimentar, pois, nestes casos, nosero apenas as conseqncias decepcionantes do suicdioque lhe afligiro a alma, mas tambm o reverso dos atospecaminosos anteriormente cometidos.

    Periodicamente, singular caravana visitava esse an-tro de sombras.

    Era como a inspeo de alguma associao caridosa,assistncia protetora de instituio humanitria, cujosabnegados fins no se poderiam pr em dvida.

    Vinha procura daqueles dentre ns cujos fluidosvitais, arrefecidos pela desintegrao completa da mat-ria, permitissem locomoo para as camadas do Invisvelintermedirio, ou de transio.

    Supnhamos tratar-se, a caravana, de um grupo dehomens. Mas na realidade eram Espritos que estendiama fraternidade ao extremo de se materializarem o sufi-ciente para se tornarem plenamente percebidos nossaprecria viso e nos infundirem confiana no socorroque nos davam.

    Trajados de branco, apresentavam-se caminhandopelas ruas lamacentas do Vale, de um a um, em colunarigorosamente disciplinada, enquanto, olhando-os aten-tamente, distinguiramos, altura do peito de todos, pe-quena cruz azul-celeste, o que parecia ser um emblema,um distintivo.

    (2) As impresses e sensaes penosas, oriundas do corpocarnal, que acompanham o Esprito ainda materializado, chama-remos repercusses magnticas, em virtude do magnetismo animal,existente em todos os seres vivos, e suas afinidades com o peris-prito. Trata-se de fenmeno idntico ao que faz a um homemque teve o brao ou a perna amputados sentir coceiras na palmada mo que j no existe com ele, ou na sola do p, igualmenteinexistente, Conhecemos em certo hospital um pobre operrio queteve ambas as pernas amputadas sent-las to vivamente consigo,assim como os ps, que, esquecido de que j no os possua,procurou levantar-se, levando, porm, estrondosa queda e ferin-

    do-se. Tais fenmenos so fceis de observar.

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    Senhoras faziam parte dessa caravana. Precedia, po-rm, a coluna, pequeno peloto de lanceiros, qual batedorde caminhos, ao passo que vrios outros milicianos damesma arma rodeavam os visitadores, como tecendo umcordo de isolamento, o que esclarecia serem estes mui-to bem guardados contra quaisquer hostilidades quepudessem surgir do exterior. Com a destra o oficialcomandante erguia alvinitente flmula, na qual se lia,em caracteres tambm azul-celeste, esta extraordinria

    legenda, que tinha o dom de infundir insopitvel e sin-gular temor:

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    - LEGIO DOS SERVOS DE MARIA -

    Os lanceiros, ostentando escudo e lana, tinhamtez bronzeada e trajavam-se com sobriedade, lembrandoguerreiros egpcios da antiguidade. E, chefiando a ex-pedio, destacava-se varo respeitvel, o qual trazia

    avental branco e insgnias de mdico a par da cruz jreferida. Cobria-lhe a cabea, porm, em vez do gorrocaracterstico, um turbante hindu, cujas dobras eram ata-das frente pela tradicional esmeralda, smbolo dos es-culpios.

    Entravam aqui e ali, pelo interior das cavernas ha-bitadas, examinando seus ocupantes. Curvavam-se, cheiosde piedade, junto das sarjetas, levantando aqui e acolalgum desgraado tombado sob o excesso de sofrimento;retiravam os que apresentassem condies de poderemser socorridos e colocavam-nos em macas conduzidas porvares que se diriam serviais ou aprendizes.

    Voz grave e dominante, de algum invisvel quefalasse pairando no ar, guiava-os no caridoso af, escla-recendo detalhes ou desfazendo confuses momentanea-mente suscitadas. A mesma voz fazia a chamada dosprisioneiros a serem socorridos, proferindo seus nomesprprios, o que fazia que se apresentassem, sem a ne-cessidade de serem procurados, aqueles que se encon-trassem em melhores condies, facilitando destarte oservio dos caravaneiros. Hoje posso dizer que todasessas vozes amigas e protetoras eram transmitidas atra-vs de ondas delicadas e sensveis do ter, com o sublimeconcurso de aparelhamentos magnticos mantidos parafins humanitrios em determinados pontos do Invisvel,isto , justamente na localidade que nos receberia aosairmos do Vale. Mas, ento, ignorvamos o pormenore muito confusos nos sentamos.

    As macas, transportadas cuidadosamente, eram guar-dadas pelo cordo de isolamento j referido e abrigadasno interior de grandes veculos feio de comboios, queacompanhavam a expedio. Esses comboios, no entan-to, apresentavam singularidade interessante, digna derelato. Em vez de apresentarem os vages comuns sestradas de ferro, como os que conhecamos, lembravam,antes, meio de transporte primitivo, pois se compunhamde pequenas diligncias atadas uma s outras e rodea-das de persianas muito espessas, o que impediria ao pas-sageiro verificar os locais por onde deveria transitar.Brancos, leves, como burilados em matrias especficas

    habilmente laqueadas, eram puxados por formosas pare-lhas de cavalos tambm brancos, nobres animais cujaextraordinria beleza e elegncia incomum despertariamnossa ateno se estivssemos em condies de algo notarpara alm das desgraas que nos mantinham absorvidosdentro de nosso mbito pessoal. Dir-se-iam, porm, exem-plares da mais alta raa normanda, vigorosos e inteli-gentes, as belas crinas ondulantes e graciosas enfeitan-do-lhes os altivos pescoos quais mantos de seda, nveose finalmente franjados. Nos carros distinguia-se tambmo mesmo emblema azul-celeste e a legenda respeitvel.

    Geralmente, os infelizes assim socorridos encontra-vam-se desfalecidos, exnimes, como atingidos de singu-

    lar estado comatoso. Outros, no entanto, alucinados oudoloridos, infundiriam compaixo pelo estado de supremodesalento em que se conservavam.

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    Depois de rigorosa busca, a estranha coluna mar-chava em retirada at o local em que se postava ocomboio, igualmente defendido por lanceiros hindus. Si-lenciosamente cortava pelos becos e vielas, afastava-se,afastava-se... desaparecendo de nossas vistas enquantomergulhvamos outra vez na pesada solido que nos

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    cercava... Em vo clamavam por socorro os que sesentiam preteridos, incapacitados de compreenderem que,se assim sucedia, era porque nem todos se encontravamem condies vibratrias para emigrarem para regiesmenos hostis. Em vo suplicavam justia e compaixoou se amotinavam, revoltados, exigindo que os deixassemtambm seguir com os demais. No respondiam os ca-ravaneiros com um gesto sequer; e se algum mais des-graado ou audacioso tentasse assaltar as viaturas afim de ating-las e nelas ingressar, dez, vinte lanasfaziam-no recuar, interceptando-lhe a passagem.

    Ento, um coro hediondo de uivos e choro sinistros,de pragas e gargalhadas satnicas, o ranger de dentescomum ao rprobo que estertora nas trevas das malespor si prprio forjados, repercutiam longa e dolorosa-mente pelas ruas lamacentas, parecendo que loucura co-letiva atacara os mseros detentos, elevando suas raivasao incompreensvel no linguajar humano!

    E assim ficavam... quanto tempo?... Oh! Deuspiedoso! Quanto tempo?...

    At que suas inimaginveis condies de suicidas,de mortos-vivos, lhes permitissem tambm a transfern-cia para localidade menos trgica...

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    CAPITULO II

    Os rprobos

    Em geral aqueles que se arrojam ao suicdio, parasempre esperam livrar-se de dissabores julgados insupor-

    tveis, de sofrimentos e problemas considerados insol-veis pela tibiez da vontade deseducada, que se acovardaem presena, muitas vezes, da vergonha do descrditoou da desonra, dos remorsos deprimentes postos a enxo-valharem a conscincia, conseqncias de aes pratica-das revelia das leis do Bem e da Justia.

    Tambm eu assim pensei, muito apesar da aurolade idealista que minha vaidade acreditava glorificando--me a fronte.

    Enganei-me, porm; e lutas infinitamente mais vivase mais rspidas esperavam-me a dentro do tmulo a fimde me chicotearem a alma de descrente e revel, com me-recida justia.

    As primeiras horas que se seguiram ao gesto brutalde que usei, para comigo mesmo, passaram-se sem queverdadeiramente eu pudesse dar acordo de mim. MeuEsprito, rudemente violentado, como que desmaiara, so-frendo ignbil colapso. Os sentidos, as faculdades quetraduzem o "eu" racional, paralisaram-se como se indes-critvel cataclismo houvesse desbaratado o mundo, pre-valecendo, porm, acima dos destroos, a sensao fortedo aniquilamento que sobre meu ser acabara de cair.Fora como se aquele estampido maldito, que at hoje ecoasinistramente em minhas vibraes mentais -, sempreque, descerrando os vus da memria, como neste ins-tante, revivo o passado execrvel - tivesse dispersado32 YVONNE A, PEREIRA

    uma a uma as molculas que em meu ser constitussema Vida!

    A linguagem humana ainda no precisou inventarvocbulos bastante justos e compreensveis para definiras impresses absolutamente inconcebveis, que passama contaminar o "eu" de um suicida logo s primeirashoras que se seguem ao desastre, as quais sobem e seavolumam, envolvem-se em complexos e se radicam ecristalizam num crescendo que traduz estado vibratrioe mental que o homem no pode compreender, porqueest fora da sua possibilidade de criatura que, merc deDeus, se conservou aqum dessa anormalidade. Para en-

    tend-la e medir com preciso a intensidade dessa dra-mtica surpresa, s outro Esprito cujas faculdades sehouvessem queimado nas efervescncias da mesma dor!

    Nessas primeiras horas, que por si mesmas cons-tituiriam a configurao do abismo em que se precipitou,se no representassem apenas o preldio da diablicasinfonia que ser constrangido a interpretar pelas dis-posies lgicas das leis naturais que violou, o suicida,semi-inconsciente, adormentado, desacordado sem que,para maior suplcio, se lhe obscurea de todo a percepodos sentidos, sente-se dolorosamente contundido, nulo,dispersado em seus milhes de filamentos psquicos vio-lentamente atingidos pelo malvado acontecimento. Para-

    doxos turbilhonam em volta dele, afligindo-lhe a tenui-dade das percepes com martirizantes girndolas desensaes confusas. Perde-se no vcuo... Ignora-se...

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    No obstante aterra-se, acovarda-se, sente a profundida-de apavorante do erro contra o qual colidiu, deprime-sena aniquiladora certeza de que ultrapassou os limites dasaes que lhe eram permitidas praticar, desnorteia-seentrevendo que avanou demasiadamente, para alm dademarcao traada pela Razo! o traumatismo ps-

    quico, o choque nefasto que o dilacerou com suas tenazesinevitveis, e o qual, para ser minorado, dele exigir umroteiro de urzes e lgrimas, decnios de rijos testemu-nhos at que se reconduza s vias naturais do progres-so, interrompidas pelo ato arbitrrio e contraproducente.

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 33

    Pouco a pouco, senti ressuscitando das sombras con-fusas em que mergulhei meu pobre Esprito, aps a que-da do corpo fsico, o atributo mximo que a PaternidadeDivina imps sobre aqueles que, no decorrer dos mil-nios, devero refletir Sua imagem e semelhana; - aConscincia! a Memria! o divino dom de pensar!

    Senti-me enregelar de frio. Tiritava! Impresso in-cmoda, de que vestes de gelo se me apegavam ao corpo,provocou-me inavalivel mal-estar. Faltava-me, ao de-mais, o ar para o livre mecanismo dos pulmes, o queme levou a crer que, uma vez que eu me desejara furtar vida, era a morte que se aproximava com seu cortejode sintomas dilacerantes.

    Odores ftidos e nauseabundos, todavia, revoltavam--me brutalmente o olfato. Dor aguda, violenta, enlouque-cedora, arremeteu-se instantaneamente sobre meu corpopor inteiro, localizando-se particularmente no crebro einiciando-se no aparelho auditivo. Presa de convulsesindescritveis de dor fsica, levei a destra ao ouvido di-reito: - o sangue corria do orifcio causado pelo proje-til da arma de fogo de que me servira para o suicdioe manchou-me as mos, as vestes, o corpo... Eu nadaenxergava, porm. Convm recordar queneu suicdioderivou-se da revolta por me encontrar cego, expiaoque considerei superior s minhas foras. Injusta punioda natureza aos meus olhos necessitados de ver, paraque me fosse dado obter, pelo trabalho, a subsistnciahonrada e ativa.

    Sentia-me, pois, ainda cego; e, para cmulo do meuestado de desorientao, encontrava-me ferido. To-so-mente ferido e no morto! porque a vida continuava emmim como antes do suicdio!

    Passei a reunir idias, mau grado meu. Revi mi-nha vida em retrospecto, at infncia, e sem mesmoomitir o drama do ltimo ato, programao extra sobminha inteira responsabilidade. Sentindo-me vivo, averi-gei, conseqentemente, que o ferimento que em mimmesmo fizera, tentando matar-me, fora insuficiente, au-mentando assim os j to grandes sofrimentos que des-de longo tempo me vinham perseguindo a existncia.

    34 YVONNE A. PEREIRA

    Supus-me preso a um leito de hospital ou em minha pr-pria casa. Mas a impossibilidade de reconhecer o local,

    pois nada via; os incmodos que me afligiam, a solidoque me rodeava, entraram a me angustiar profundamen-te, enquanto lgubres pressentimentos me avisavam de

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    que acontecimentos irremediveis se haviam confirmado.Bradei por meus familiares, por amigos que eu conheciaafeioados bastante para me acompanharem em momen-tos crticos. O mais surpreendente silncio continuouenervando-me. Indaguei mal-humorado por enfermeiros,por mdicos que possivelmente me atenderiam, dado que

    me no encontrasse em minha residncia e sim retidoem algum hospital; por serviais, criados, fosse quemfosse, que me obsequiar pudessem, abrindo as janelas doaposento onde me supunha recolhido, a fim de que cor-rentes de ar purificado me reconfortassem os pulmes;que me favorecessem coberturas quentes, acendessem alareira para amenizar a gelidez que me entorpecia osmembros, providenciando blsamo s dores que me su-pliciavam o organismo, e alimento, e gua, porque eutinha fome e tinha sede!

    Com espanto, em vez das respostas amistosas porque tanto suspirava, e que minha audio distinguiu,passadas algumas horas, foi um vozerio ensurdecedor,que, indeciso e longnquo a princpio, como a destacar-sede um pesadelo, definiu-se gradativamente at positivar--se em pormenores concludentes. Era um coro sinistro,de muitas vozes confundidas em atropelos, desnorteadas,como aconteceria numa assemblia de loucos.

    No entanto, estas vozes no falavam entre si, noconversavam. Blasfemavam, queixavam-se de mltiplasdesventuras, lamentavam-se, reclamavam, uivavam, gri-tavam enfurecidas, gemiam, estertoravam, choravam de-soladoramente, derramando pranto hediondo, pelo tonode desesperao com que se particularizava; suplicavam,raivosas, socorro e compaixo!

    Aterrado senti que estranhos empuxes, como arre-pios irresistveis, transmitiam-me influenciaes abomi-nveis, provindas desse todo que se revelava atravs daaudio, estabelecendo corrente similar entre meu ser

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 35

    superexcitado e aqueles cujo vozerio eu distinguia. Essecoro, iscrono, rigorosamente observado e medido emseus intervalos, infundiu-me to grande terror que, reu-nindo todas as foras de que poderia o meu Esprito dis-por em to molesta situao, movimentei-me no intuitode afastar-me de onde me encontrava para local em queno mais o ouvisse.

    Tateando nas trevas tentei caminhar. Mas dir-se-ia

    que razes vigorosas plantavam-me naquele lugar midoe gelado em que me deparava. No podia despegar-me!Sim! Eram cadeias pesadas que me escravizavam, ra-zes cheias de seiva, que me atinham grilhetado naqueleextraordinrio leito por mim desconhecido, impossibili-tando-me o desejado afastamento. Alis, como fugir seestava ferido, desfazendo-me em hemorragias internas,manchadas as vestes de sangue, e cego, positivamentecego?! Como apresentar-me a pblico em to repugnan-te estado?...

    A covardia - a mesma hidra que me atrara parao abismo em que agora me convulsionava - alongouainda mais seus tentculos insaciveis e colheu-me irre-

    mediavelmente! Esqueci-me de que era homem, aindauma segunda vez! e que cumpria lutar para tentar vi-tria, fosse a que preo fosse de sofrimento! Reduzi-me

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    por isso misria do vencido! E, considerando insolvela situao, entreguei-me s lgrimas e chorei angustio-samente, ignorando o que tentar para meu socorro. Mas,enquanto me desfazia em prantos, o coro de loucos, sem-pre o mesmo, trgico, funreo, regular como o pndulode um relgio, acompanhava-me com singular similitu-

    de, atraindo-me como se imanado de irresistveis afini-dades...Insisti no desejo de me furtar terrvel audio.

    Aps esforos desesperados, levantei-me. Meu corpo en-regelado, os msculos retesados por entorpecimento ge-ral, dificultavam-me sobremodo o intento. Todavia, levan-tei-me. Ao faz-lo, porm, cheiro penetrante de sangue evsceras putrefatos reacendeu em torno, repugnando-meat s nuseas. Partia do local exato em que eu estiveradormindo. No compreendia como poderia cheirar to

    36 YVONNE A. PEREIRA

    desagradavelmente o leito onde me achava. Para mimseria o mesmo que me acolhia todas as noites! E, noentanto, que de odores ftidos me surpreendiam agora!Atribui o fato ao ferimento que fizera na inteno dematar-me, a fim de explicar-me de algum modo a es-tranha aflio, ao sangue que corria, manchando-me asvestes. Realmente! Eu me encontrava empastado de pe-onha, como um lodo asqueroso que dessorasse de meuprprio corpo, empapando incomodativamente a indumen-tria que usava, pois, com surpresa, surpreendi-me tra-jando cerimoniosamente, no obstante retido num leitode dor. Mas, ao mesmo tempo que assim me apresen-tava satisfaes, confundia-me na interrogao de comopoderia assim ser, visto no ser cabvel que um simplesferimento, mesmo a quantidade de sangue espargido, pu-desse tresandar a tanta podrido, sem que meus amigose enfermeiros deixassem de providenciar a devida higie-nizao.

    Inquieto, tateei na escurido com o intuito de encon-trar a porta de sada que me era habitual, j que todosme abandonavam em hora to critica. Tropecei, porm,em dado momento, num monto de destroos e, instinti-vamente, curvei-me para o cho, a examinar o que assimme interceptava os passos. Ento, repentinamente, a lou-cura irremedivel apoderou-se de minhas faculdades eentrei a gritar e uivar qual demnio enfurecido, respon-dendo na mesma dramtica tonalidade macabra sin-

    fonia cujo coro de vozes no cessava de perseguir minhaaudio, em intermitncias de angustiante expectativa.

    O monto de escombros era nada menos do que aterra de uma cova recentemente fechada!

    No sei como, estando cego, pude entrever, em meioas sombras que me rodeavam, o que existia em torno!

    Eu me encontrava num cemitrio! Os tmulos, comsuas tristes cruzes em mrmore branco ou madeira ne-gra, ladeando imagens sugestivas de anjos pensativos,alinhavam-se na imobilidade majestosa do drama em quefiguravam.

    A confuso cresceu: - Por que me encontraria ali?Como viera, pois nenhuma lembrana me acorria?... E

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 37

    o que viera fazer sozinho, ferido, dolorido, extenuado?...

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    Era verdade que "tentara" o suicdio, mas...Sussurro macabro, qual sugesto irremovvel da

    Conscincia esclarecendo a memria aturdida pelo ine-ditismo presenciado, percutiu estrondosamente pelos re-cncavos alarmados do meu ser:

    "No quiseste o suicdio?... Pois a o tens..."

    Mas, como assim?... Como poderia ser... se euno morrera?!... Acaso no me sentia ali vivo?... Porque ento sozinho, imerso na solido ttrica da moradados mortos?!...

    Os fatos irremediveis, porm, impem-se aos ho-mens como aos Espritos com majestosa naturalidade.No conclura ainda minhas ingnuas e dramticas in-terrogaes, e vejo-me, a mim prprio! como frentede um espelho, morto, estirado num atade, em francoestado de decomposio, morto dentro de uma sepultura, jus-tamente aquela sobre a qual acabava de tropear!

    Fugi espavorido, desejoso de ocultar-me de mim mes-mo, obsidiado pelo mais tenebroso horror, enquanto gar-galhadas estrondosas, de indivduos que eu no logravaenxergar, explodiam atrs de-mim e o coro nefasto per-seguia meus ouvidos torturados, para onde quer que merefugiasse. Como louco que realmente me tornara, eucorria, corria, enquanto aos meus olhos cegos se desenha-va a hediondez satnica do meu prprio cadver apo-drecendo no tmulo, empastado de lama gordurosa, co-berto de asquerosas lesmas que, vorazes, lutavam porsaciar em suas pstulas a fome inextinguvel que tra-ziam, transformando-o no mais repugnante e infernalmonturo que me fora dado conhecer!

    Quis furtar-me presena de mim mesmo, procuran-do incidir no ato que me desgraara, isto - repro-duzi a cena pattica do meu suicdio mentalmente, comose por uma segunda vez buscasse morrer a fim de desa-parecer na regio do que, na minha ignorncia dos fatosde alm-morte, eu supunha o eterno esquecimento! Masnada havia capaz de aplacar a malvada viso! Ela era,antes, verdadeira! Imagem perfeita da realidade que so-bre o meu fsico espiritual se refletia, e por isso me

    38 YVONNE A. PEREIRA

    acompanhava para onde quer que eu fosse, perseguiaminhas retinas sem luz, invadia minhas faculdades an-micas imersas em choques e se impunha minha ce-gueira de Esprito cado em pecado, supliciando-me sem

    remisso!Na fuga precipitada que empreendi, ia entrando em

    todas as portas que encontrava abertas, a fim de ocul-tar-me em alguma parte. Mas de qualquer domiclio aque me abrigasse, na insensatez da loucura que me en-redava, era enxotado a pedradas sem poder distinguirquem, com tanto desrespeito, assim me tratava. Vagavapelas ruas tateando aqui, tropeando alm, na mesma ci-dade onde meu nome era endeusado como o de um g-nio - sempre aflito e perseguido. A respeito dos aconte-cimentos que com minha pessoa se relacionavam, ouvicomentrios destilados em crticas mordazes e irreveren-tes, ou repassados de pesar sincero pelo meu trespasse,

    que lamentavam.Torneia minha casa. Surpreendente desordem esta-

    belecera-se em meus aposentos, atingindo objetos de meu

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    uso pessoal, meus livros, manuscritos e apontamentos,os quais j no eram por mim encontrados no local cos-tumeiro, o que muito me enfureceu. Dir-se-ia que se dis-persara tudo! Encontrei-me estranho em minha prpriacasa! Procurei amigos, parentes a quem me afeioara.A indiferena que lhes surpreendi em torno da minha

    desgraa chocou-me dolorosamente, agravando meu es-tado de excitao. Dirigi-me ento a consultrios m-dicos. Tentei fixar-me em hospitais, pois que sofria, sen-tia febre e loucura, supremo mal-estar torturava meuser, reduzindo-me a desolador estado de humilhao eamargura. Mas, a toda parte que me dirigia, sentia-meinsocorrido, negavam-me atenes, despreocupados e in-diferentes todos ante minha situao. Em vo objurga-trias azedas saam de meus lbios acompanhadas daapresentao, por mim prprio feita, do meu estado edas qualidades pessoais que meu incorrigvel orgulhoreputava irresistveis: - pareciam alheios s minhas in-sistentes algaravias, ningum me concedendo sequer ofavor de um olhar!

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 39

    Aflito, insofrido, alucinado, absorvido meu ser pelasondas de agoirantes amarguras, em parte alguma en-contrava possibilidade de estabilizar-me a fim de lograrconforto e alvio! Faltava-me alguma coisa irremedivel,sentia-me incompleto! Eu perdera algo que me deixavaassim, entonteado, e essa "coisa" que eu perdera, partede mim mesmo, atraa-me para o local em que se encon-trava, com as irresistveis foras de um m, chamava--me imperiosa, irremediavelmente! E era tal a atraoque sobre mim exercia, tal o vcuo que em mim pro-duzira esse irreparvel acontecimento, to profunda aafinidade, verdadeiramente vital, que a essa "coisa" meunia - que, no sendo possvel, de forma alguma, fi-xar-me em nenhum local para que me voltasse, torneiao sitio tenebroso de onde viera: - o cemitrio!

    Essa "coisa", cuja falta assim me enlouquecia, erao meu prprio corpo - o meu cadver! - apodrecendona escurido de um tmulo! (3)

    Debrucei-me, soluante e inconsolvel, sobre a sepul-tura que me guardava os mseros despojos corporais, e

    (3) Certa vez, h cerca de vinte anos, um dos meus dedica-dos educadores espirituais - Charles - levou-me a um cemi-

    trio pblico do Rio de Janeiro, a fim de visitarmos um suicidaque rondava os prprios despojos em putrefao. Escusado seresclarecer que tal visita foi realizada em corpo astral. O peris-prito do referido suicida, hediondo qual demnio, infundiu-mepavor e repugnncia. Apresentava-se completamente desfiguradoe irreconhecvel, coberto de cicatrizes, tantas cicatrizes quantoshaviam sido os pedaos a que ficara reduzido seu envoltriocarnal, pois o desgraado jogara-se sob as rodas de um tremde ferro, ficando despedaado. No h descrio possvel parao estado de sofrimento desse Esprito! Estava enlouquecido, ator-doado, por vezes furioso, sem se poder acalmar para raciocinar,insensvel a toda e qualquer vibrao que no fosse a sua imensadesgraa! Tentamos falar-lhe: - no nos ouvia! E Charles, tris-

    temente, com acento indefinvel de ternura, falou: - "Aqui, sa prece ter virtude capaz de se impor! Ser o nico blsamoque poderemos destilar em seu favor, santo bastante para, aps

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    certo perodo de tempo, poder alivi-lo... - E essas cicatrizes?- perguntei, impressionada. - "S desaparecero - tornou Char-

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    estorci-me em apavorantes convulses de dor e de raiva,

    rebolcando-me em crises de furor diablico, compreen-dendo que me suicidara, que estava sepultado, mas que,no obstante, continuava vivo e sofrendo, mais, muitomais do que sofria antes, superlativamente, monstruosa-mente mais do que antes do gesto covarde e impensado!

    Cerca de dois meses vaguei desnorteado e tonto,em atribulado estado de incompreenso. Ligado ao fardocarnal que apodrecia, viviam em mim todas as imperio-sas necessidades do fsico humano, amargura que, aliadaaos demais incmodos, me levava a constantes desespe-raes. Revoltas, blasfmias, crises de furor acometiam--me como se o prprio inferno soprasse sobre mim suasnefastas inspiraes, assim coroando as vibraes mal-ficas que me circulavam de trevas. Via fantasmas pe-rambulando pelas ruas do campo santo, no obstanteminha cegueira, chorosos e aflitos, e, por vezes, terroresinconcebveis sacudiam-me o sistema vibratrio a talponto que me reduziam a singular estado de desmaio,como se, sem foras para continuar vibrando, minhaspotncias anmicas desfalecessem!

    Desesperado em face do extraordinrio problema,entregava-me cada vez mais ao desejo de desaparecer,de fugir de mim mesmo a fim de no mais interrogar-mesem lograr lucidez para responder, incapaz de raciocinarque, em verdade, o corpo fsico-material, modelado dolimo putrescvel da Terra, fora realmente aniquilado pelosuicdio; e que o que agora eu sentia confundir-se comele, porque solidamente a ele unido por leis naturais deafinidade que o suicdio absolutamente no destri, erao fsico-espiritual, indestrutvel e imortal, organizaoviva, semimaterial, fadada a elevados destinos, a porvirglorioso no seio do progresso infindvel, relicrio ondese arquivam, qual o cofre que encerrasse valores, nossos

    les - depois da expiao do erro, da reparao em existnciasamargas, que requerero lgrimas ininterruptas, o que no levarmenos de um sculo, talvez muito mais... Que Deus se amerceiedele, porque, at l..." Durante muitos anos orei por esse infelizirmo em minhas preces dirias. - (Nota da mdium)

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    sentimentos e atos, nossas realizaes e pensamentos, en-voltrio que da centelha sublime que rege o homem,isto , a Alma. eterna e imortal como Aquele que deSi Mesmo a criou!

    Certa vez em que ia e vinha, tateando pelas ruas,irreconhecvel a amigos e admiradores, pobre cego hu-milhado no alm-tmulo graas desonra de um suic-dio; mendigo na sociedade espiritual, faminto na misriade Luz em que me debatia; angustiado fantasma vaga-bundo, sem lar, sem abrigo no mundo imenso, no mun-do infinito dos Espritos; exposto a perigos deplorveis,

    que tambm os h entre desencarnados; perseguido porentidades perversas, bandoleiros da erraticidade, que gos-tam de surpreender, com ciladas odiosas, criaturas nas

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    condies amargurosas em que me via, para escraviz--las e com elas engrossar as fileiras obsessoras que des-baratam as sociedades terrenas e arrunam os homenslevando-os s tentaes mais torpes, atravs de influen-ciaes letais - ao dobrar de uma esquina deparei comcerta multido, cerca de duzentas individualidades de

    ambos os sexos. Era noite. Pelo menos eu assim o su-punha, pois, como sempre, as trevas envolviam-me, e eu,tudo o que venho narrando, percebia mais ou menosbem dentro da escurido, como se enxergasse mais pelapercepo dos sentidos do que mesmo pela viso. Alis,eu me considerava cego, mas no me explicando at en-to como, destitudo do inestimvel sentido, possua, noobstante, capacidade para tantas torpezas enxergar, aopasso que no a possua sequer para reconhecer a luzdo Sol e o azul do firmamento!

    Essa multido, entretanto, era a mesma que vinhaconcertando o coro sinistro que me aterrava, tendo-aeu reconhecido porque, no momento em que nos encon-tramos, entrou a uivar desesperadamente, atirando aoscus blasfmias diante das quais as minhas seriam me-ros gracejos!

    Tentei recuar, fugir, ocultar-me dela, apavorado porme tornar dela conhecido. Porm, porque marchasse emsentido contrrio ao que eu seguia, depressa me envol-42 YVONNE A. PEREIRA

    veu, misturando-me ao seu todo para absorver-me com-pletamente em suas ondas!Fui levado de roldo, empurrado, arrastado mau gra-do meu; e tal era a aglomerao que me perdi totalmen-te em suas dobras. Apenas me inteirava de um fato,porque isso mesmo ouvia rosnarem ao redor, e era queestvamos todos guardados por soldados, os quais nosconduziam. A multido acabava de ser aprisionada! Acada momento juntava-se, a ela outro e outro vagabundo,como acontecera comigo, e que do mesmo modo no maispoderiam sair. Dir-se-ia que esquadro completo de mi-licianos montados conduzia-nos priso. Ouviam-se aspatadas dos cavalos sobre o lajedo das ruas e lanasafiadas luziam na escurido, impondo temor.

    Protestei contra a violncia de que me reconheciaalvo. Em altas vozes bradei que no era criminoso e dei--me a conhecer, enumerando meus ttulos e qualidades.Mas os cavaleiros, se me ouviam, no se dignavam res-ponder. Silenciosos, mudos, eretos, marchavam em suas

    montadas fechando-nos em crculo intransponvel! A fren-te o comandante, abrindo caminho dentro das trevas,empunhava um basto no alto do qual flutuava pequenaflmula, onde adivinhvamos uma inscrio. Porm eramto acentuadas as sombras que no poderamos l-la, ain-da que o desespero que nos vergastava permitisse pausapara manifestarmos tal desejo.

    A caminhada foi longa. Frio cortante enregelava-nos.Misturei minhas lgrimas e meus brados de dor e deses-pero ao coro horripilante e participei da atroz sinfoniade blasfmias e lamentaes. Pressentamos que bem se-guros estvamos, que jamais poderamos escapar! Toca-dos vagarosamente, sem que um nico monossilabo lo-

    grssemos arrancar aos nossos condutores, comeamos,finalmente, a caminhar penosamente por um vale pro-fundo, onde nos vimos obrigados a enfileirar-nos de dois

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    a dois, enquanto faziam idntica manobra os nossos vi-gilantes.

    Cavernas surgiram de um lado e outro das ruas quese diriam antes estreitas gargantas entre montanhasabruptas e sombrias, e todas numeradas. Tratava-se, cer-

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 43

    tamente, de uma estranha -"povoao", uma "cidade" emque as habitaes seriam cavernas, dada a misria deseus habitantes, os quais no possuiriam cabedais sufi-cientes para torn-las agradveis e facilmente habit-veis. O que era certo, porm, que tudo ali estava porfazer e que seria bem aquela a habitao exata da Des-graa! No se distinguiria terreno, seno pedras, lama-ais ou pntanos, sombras, aguaceiros... Sob os ardoresda febre excitante da minha desgraa, cheguei a pen-sar que, se tal regio no fosse um pequeno recncavoda Lua, existiriam por l, certamente, locais muito seme-lhantes...

    Internavam-nos cada vez mais naquele abismo...Seguamos, seguamos... E, finalmente, no centro degrande praa encharcada qual um pntano, os cavaleirosfizeram alto. Com eles estacou a multido.

    Em meio do silncio que repentinamente se estabe-leceu, viu-se que a soldadesca voltava sobre os prpriospassos a fim de retirar-se.

    Com efeito! Um a um vimos que se afastavam todosnas curvas tortuosas das vielas lamacentas, abandonan-do-nos ali.

    Confusos e atemorizados seguimos ao seu encalo,ansiosos por nos afastarmos tambm. Mas foi em vo!As ruelas, as cavernas e os pntanos se sucediam, bara-lhando-se num labirinto em que nos perdamos, pois, paraonde nos dirigssemos, depararamos sempre o mesmocenrio e a mesma topografia. Inconcebvel terror apos-sou-se da estranha malta. Por minha vez, no poderiasequer pensar ou refletir, procurando soluo para o mo-mento. Sentia-me como que envolvido nos tentculos dehorrvel pesadelo, e, quanto maiores esforos tentavapara racionalmente explicar-me o que se passava, menoscompreendia os acontecimentos e mais apoucado me con-fessava no assombro esmagador!

    Meus companheiros eram hediondos, como hedion-dos tambm se mostravam os demais desgraados quenesse vale maldito encontrramos, os quais nos recebe-

    ram entre lgrimas e estertores idnticos aos nossos.Feios, deixando ver fisionomias alarmadas pelo horror;

    44 YVONNE A. PEREIRA

    esqulidos, desfigurados pela intensidade dos sofrimen-tos; desalinhados, inconcebivelmente trgicos, seriam ir-reconhecveis por aqueles mesmos que os amassem, aosquais repugnariam! Puz-me a bradar desesperadamen-te,acometido de odiosa fobia do Pavor. O homem nor-mal, sem que haja cado nas garras da demncia, noser capaz de avaliar o que entrei a padecer desde queme capacitei de que o que via no era um sonho, um

    pesadelo motivado pela deplorvel loucura da embria-guez! No! Eu no era um alcolatra para assim mesurpreender nas garras de to perverso delrio! No era

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    tampouco o sonho, o pesadelo, a criar em minha mente,prostituda pela devassido dos costumes, o que aos meusolhos alarmados por infernal surpresa se apresentavacomo a mais pungente realidade que os infernos pudes-sem inventar - a realidade maldita, assombrosa, feroz!- criada por uma falange de rprobos do suicdio apri-

    sionada no meio ambiente cabvel ao seu crtico e melin-droso estado, como cautela e caridade para como gne-ro humano, que no suportaria, sem grandes confusese desgraas, a intromisso de tais infelizes em sua vidacotidiana! (4)

    Sim! Imaginai uma assemblia numerosa de criatu-ras disformes - homens e mulheres -caracterizadapela alucinao de cada uma, correspondente a casosntimos, trajando, todos, vestes como que empastadas dolodo das sepulturas, com feies alteradas e doloridasestampando os estigmas de sofrimentos cruciantes! Ima-ginai uma localidade, uma povoao envolvida em densosvus de penumbra, glida e asfixiante, onde se aglome-rassem habitantes de alm-tmulo abatidos pelo suicdio,ostentando, cada um, o ferrete infame do gnero de mor-te escolhido no intento de ludibriar a Lei Divina -quelhes concedera a vida corporal terrena como precioso

    (4) Efetivamente, no alm-tmulo, as vibraes mentais longamente viciadas do alcolatra, do sensual, do cocainmano, etc.,etc., podero criar e manter vises e ambientes nefastos, per-vertidos. Se, alm do mais, trazem os desequilbrios de um suic-dio, a situao poder atingir propores Inconcebveis.

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 45

    ensejo de progresso, inavalivel instrumento para a re-misso de faltas gravosas do pretrito!

    Pois era assim a multido de criaturas que meusolhos assombrados deparavam nas trevas que lhes eramfavorveis ao terrvel gnero de percepo, esquecido,na insnia do orgulho que a mim era prprio, que tam-bm eu pertencia a to repugnante todo, que era igual-mente um feio alucinado, um pastoso ferreteado!

    Eu via por aqui, por ali, estes traduzindo, de quandoem quando, em cacoetes nervosos, as nsias do enforca-mento, esforando-se, com gestos instintivos, altamenteemocionantes, por livrarem o pescoo, intumescido e viol-do, dos farrapos de cordas ou de panos que se refletiamnas repercusses perispirituais, em vista das desarmo-

    niosas vibraes mentais que permaneciam torturando-os!Aqueles, indo e vindo como loucos, em correrias espan-tosas, bradando por socorro em gritos estentricos, jul-gando-se, de momento a momento, envolvidos em chamas,apavorando-se com o fogo que lhes devorava o corpofsico e que, desde ento, ardia sem trguas nas sensi-bilidades semimateriais do perisprito! Estes ltimos, po-rm, eu notava serem, geralmente, mulheres.

    Eis que apareciam outros ainda: o peito ou o ou-vido, ou a garganta banhados em sangue, oh! sangueinaltervel, permanente, que nada conseguia verdadei-ramente fazer desaparecer das sutilezas do fsico-espiri-tual seno a reencarnao expiatria e reparadora! Tais

    infelizes, alm das mltiplas modalidades de penriaspor que se viam atacados, deixavam-se estar preocupa-dos sempre, a tentarem estancar aquele sangue jorrante,

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    ora com as mos, ora com as vestes ou outra qualquercoisa que supunham ao alcance, sem no entanto jamaiso conseguirem, pois tratava-se de um deplorvel estadomental, que os incomodava e impressionava at ao de-sespero! A presena destes desgraados impressionavaat loucura, dada a inconcebvel dramaticidade dos ges-

    tos iscronos, inalterveis, a que, mau grado prprio,se viam forados! E ainda estoutros sufocando-se nabrbara asfixia do afogamento, bracejando em nsiasfuriosas procura de algo que os pudesse socorrer, tal

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    como sucedera hora extrema e que suas mentes re-gistraram, ingerindo gua em gorgolejos ininterruptos,exaustivos, prolongando indefinidamente cenas de ago-nia selvagem, as quais olhos humanos seriam incapazesde presenciar sem se tingirem de demncia!

    Porm havia mais ainda!... E o leitor perdoe minha memria estas minudncias talvez desinteressantespara o seu bom-gosto literrio, mas teis, certamente,como advertncia ao seu possvel carter impetuoso, cha-mado a viver as inconvenincias de um sculo em queo "morbus" terrvel do suicdio se tornou mal endmico.No pretendemos, alis, apresentar obra literria paradeleitar gosto e temperamento artsticos. Cumprimosum dever sagrado, to-somente, procurando falar aosque sofrem, dizendo a verdade sobre o abismo que, commalvadas sedues, h perdido muita alma descrente emmeio dos desgostos comuns vida de cada um!

    Entretanto, bem prximo ao local em que me encur-ralara procurando refugiar-me da rcua sinistra, desta-cava-se, por fealdade impressionante, meia dzia dedesgraados que haviam procurado o "olvido eterno",atirando-se sob as rodas de um trem de ferro. Trazendoos perispritos desfigurados, dir-se-iam a armadura demonstruosa aberrao, as vestes em farrapos esvoaan-tes, cobertos de cicatrizes sanguinolentas, retalhadas, con-fusas, num emaranhado de golpes e sobre golpes, talse fotografada fora, naquela placa sensvel e sutil, isto, o perisprito, a deplorvel condio a que o suicdiolhes reduzira o envoltrio carnal - esse templo, meuDeus, que o Divino Mestre recomenda como veculo pre-cioso e eficiente para nos auxiliar na caminhada embusca das gloriosas conquistas espirituais! Enlouquecidospor sofrimentos superlativos, possudos da suprema afli-

    o que atingir possa a alma originada da centelha di-vina, representando aos olhos pvidos do observador oque o Invisvel inferior mantm de mais trgico, maisemocionante e horrvel, esses desgraados uivavam emlamentaes to dramticas e impressionantes que ime-diatamente contagiavam com suas influenciaes dolo-rosas quem quer que se encontrasse indefenso em seu

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 47

    caminho, o qual entraria a co-participar da loucura in-consolvel de que se acompanhavam... pois o terrvelgnero de suicdio, dos mais deplorveis que temos a

    registrar em nossas pginas, abalara-lhes to violentae profundamente a organizao nervosa e sensibilidadesgerais do corpo astral, congneres daquela que trauma-

  • 8/7/2019 YvonneAPereiraMemoriasdeUmSuicida

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    tizara a todas, entorpecendo, graas brutalidade usada,at mesmo os valores da inteligncia, que, por isso mes-mo, jazia incapaz de orientar-se, dispersa e confusa emmeio do caos que se formara ao redor de si!

    A mente edifica e produz. O pensamento - j bas-tantes vezes declararam - criador, e, portanto, fabrica,

    corporifica, retm imagens por si mesmo engendradas,realiza, segura o que passou e, com poderosas garras,conserva-o presente at quando desejar!

    Cada um de ns, no Vale Sinistro, vibrando violen-tamente e retendo com as foras mentais o momentoatroz em que nos suicidamos, crivamos os cenrios erespectivas cenas que vivramos em nossos derradeirosmomentos de homens terrestres. Tais cenas, refletidasao redor de cada um, levavam a confuso localidade,espalhavam tragdia e inferno por toda a parte, sevi-ciando de aflies superlativas os desgraados prisionei-ros. Assim era que se deparavam, aqui e ali, forcaserguidas, baloiando o corpo do prprio suicida, que evo-cava a hora em que se precipitara na morte voluntria.Veculos variados, assim como comboios fumegantes erpidos, colhiam e trituravam, sob suas rodas, mserostresloucados que buscaram matar o prprio corpo por essemeio execrvel, os quais, agora, com a mente "impreg-nada" do momento sinistro, retratavam sem cessar o epi-sdio, pondo viso dos companheiros afins suas hedion-das recordaes. (4-A) Rios caudalosos e mesmo tre-

    (4-A) Em vrias sesses prticas a que tivemos ocasio deassistir em organizaes espritas do Estado de Minas Gerais, os

    48 YVONNE A. PEREIRA

    chos alongados de oceano surgiam repentinamente nomeio daquelas vielas sombrias: - era meia dzia derprobos que passava enlouquecida, deixando mostracenas de afogamento, por arrastarem na mente confla-grada a trgica lembrana de quando se atiraram s suasguas!... Homens e mulheres transitavam desesperados:uns ensangentados, outros estorcendo-se no suplcio dasdores pelo envenenamento, e, o que era pior, deixando mostra o reflexo das entranhas carnais corrodas pelotxico ingerido, enquanto outros mais, incendiados, agritarem por socorro em correrias insensatas, traziampnico ainda maior entre os companheiros de desgraa,os quais receavam queimar-se ao seu contacto, todos

    possudos de loucura coletiva! E coroando a profundezae intensidade desses inimaginveis martrios - as penasmorais: os remorsos, as saudades dos seres amados, dosquais se no tinham notcias, os mesmos dissabores quehaviam dado causa ao desespero e que persistiam emafligir!... E as penas fsico-materiais: - a fome, o frio,a sede, exigncias fisiolgicas em geral, torturantes,irritantes, desesperadoras! a fadiga, a insnia depres-sora, a fraqueza, o delquio! Necessidades imperiosas,desconforto de toda espcie, insolveis, a desafiarem pos-sibilidades de suavizao - oh! a viso insidiosa e ine-lutvel do cadver apodrecendo, seus ftidos asquerosos,a repercusso, na mente excitada, dos vermes a consu-

    mirem o lodo carnal, fazendo que o desgraado mrtirse supusesse igualmente atacado de podrido!

    Coisa singular! Essa escria trazia, pendente de si,

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    fragmentos de cordo luminoso, fosforescente, o qual,despedaado, como arrebentado violentamente, despren-dia-se em estilhas qual um cabo compacto de fios el-tricos arrebentados, a desprenderem fluidos que deve-riam permanecer organizados para determinado fim. Ora,

    videntes eram concordes em afirmar que no percebiam apenaso Espirito atribulado do suicida a comunicar-se, mas tambma cena do prprio suicdio, desvendando-se s suas faculdadesmedinicas o momento supremo da trgica ocorrncia. - (Notada mdium)

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 49

    esse pormenor, aparentemente insignificante, tinha, aocontrrio, importncia capital, pois era justamente neleque se estabelecia a desorganizao do estado de suici-da. Hoje sabemos que esse cordo fludico-magntico,que liga a alma ao envoltrio carnal e lhe comunica avida, somente dever estar em condies apropriadaspara deste separar-se por ocasio da morte natural, oque ento se far naturalmente, sem choques, sem vio-lncia. Com o suicdio, porm, uma vez partido e nodesligado, rudemente arrancado, despedaado quando ain-da em toda a sua pujana fludica e magntica, produ-zir grande parte dos desequilbrios, seno todos quevimos anotando, uma vez que, na constituio vital paraa existncia que deveria ser, muitas vezes, longa, a re-serva de foras magnticas no se haviam extinguidoainda, o que leva o suicida a sentir-se um "morto-vivo"na mais expressiva significao do termo. Mas, na oca-sio em que pela primeira vez o notramos, desconheca-mos o fato natural, afigurando-se-nos um motivo a maispara confuses e terrores.

    To deplorvel estado de coisas, para a compreen-so do qual o homem no possui vocabulrio nem ima-gens adequadas, prolonga-se at que as reservas de for-as vitais e magnticas se esgotem, o que varia segundoo grau de vitalidade de cada um. O prprio carter in-dividual influi na prolongao do melindroso estado,quando o padecente for mais ou menos afeito s atraesdos sentidos materiais, grosseiros e inferiores. poisum complexo que se estabelece, que s o tempo, comextensa cauda de sofrimentos, conseguir corrigir.

    Um dia, profundo alquebramento sucedeu em meu

    ser a prolongada excitao. Fraqueza inslita conservou--me aquietado, como desfalecido. Eu e muitos outroscmpares de minha falange estvamos extenuados, inca-pazes de resistirmos por mais tempo a to desesperadorasituao. Urgncia de repouso fazia-nos desmaiar fre-50 YVONNE A. PEREIRA

    qentemente, obrigando-nos ao recolhimento em nossasdesconfortveis cavernas.

    No se tinham passado, porm, sequer vinte e qua-tro horas desde que o novo estado nos surpreendera,quando mais uma vez fomos alarmados pelo significativorumor daquele mesmo "comboio" que j em outras oca-

    sies havia aparecido em nosso Vale.Eu compartilhava o mesmo antro residencial de qua-

    tro outros indivduos, como eu portugueses, e, no decor-

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    rer do longo martrio em comum, tornramo-nos insepa-rveis, fora de sofrermos juntos no mesmo tugrio dedor. Dentre todos, porm, um sobremaneira me irritava,predispondo-me discusso, com o usar, apesar da si-tuao precria, o monculo inseparvel, o fraque bemtalhado e respectiva bengala de casto de ouro, conjunto

    que, para o meu conceito neurastnico e impertinente,o tornava pedante e antiptico, num local onde se viviatorturado com odores ftidos e podrido e em que nossaindumentria dir-se-ia empastada de estranhas substn-cias gordurosas, reflexos mentais da podrido elaboradaem torno do envoltrio carnal. Eu, porm, esquecia-mede que continuava a usar o "pince-nez" com seu fio detoral, a sobrecasaca dos dias cerimoniosos, os bigodesfartos penteados... Confesso que, ento, apesar da lon-ga convivncia, lhes no conhecia os nomes, No ValeSinistro a desgraa ardente demais para que se preo-cupe o calceta com a identidade alheia...

    O conhecido rumor aproximava-se cada vez mais...Samos de um salto para a rua... Vielas e praas

    encheram-se de rprobos como das passadas vezes, aomesmo tempo que os mesmos angustiosos brados de so-corro ecoavam pelas quebradas sombrias, no intuito dedespertarem a ateno dos que vinham para a costu-meira vistoria...

    At que, dentro da atmosfera densa e penumbrosa,surgiram os carros brancos, rompendo as trevas compoderosos holofotes.

    Estacionou o trem caravaneiro na praa lamacenta.Desceu um peloto de lanceiros. Em seguida, damas ecavalheiros, que pareciam enfermeiros, e mais o chefe

    MEMRIAS DE UM SUICIDA 51

    da expedio, o qual, como anteriormente esclarecemos,se particularizava por usar turbante e tnica hindus.

    Silenciosos e discretos iniciaram o reconhecimentodaqueles que seriam socorridos. A mesma voz austeraque se diria, como das vezes anteriores, vibrar no ar, fez,pacientemente, a chamada dos que deveriam ser reco-lhidos, os quais, ouvindo os prprios nomes, se apresen-tavam por si mesmos.

    Outros, porm, por no se apresentarem a tempo,impunham aos socorristas a necessidade de procura-los.Mas a estranha voz indicava o lugar exato em que esta-riam os mseros, dizendo simplesmente:

    Abrigo nmero tal... Rua nmero tal...Ou, conforme a circunstncia:- Dementado... Inconsciente... No se encontra

    no abrigo... Vagando em tal rua... No atender pelonome... Reconhecvel por esta ou aquela particulari-dade...

    Dir-se-ia que algum, de muito longe, assestava po-derosos telescpios at nossas desgraadas moradas, paraassim informar detalhadamente do momento decorrentea expedio laboriosa...

    Os obreiros da Fraternidade consultavam um mapa,iam rapidamente ao local indicado e traziam os mencio-nados, alguns carregados em seus braos generosos, ou-

    tros em padiolas...De sbito ressoou na atmosfera dramtica daquele

    inferno onde tanto padeci, repercutindo estrondosamente

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