Zebba Dal Farra - Palavras Invisíveis

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A P alavras invisíveis alavras invisíveis alavras invisíveis alavras invisíveis alavras invisíveis J osé Batista Dal Farra Martins (Zebba Dal Farra) 1 s cidades de Ítalo Calvino 1 são invisíveis porque se constroem na invisibilidade da voz de quem as narra. As imagens apare- cem e se realizam na imaginação de quem ouve, pela presença da palavra poética, que é pura vocalidade. Mesmo quando lemos, ouvimos os volteios tonais de nossa voz criarem e reconhecerem as cidades reveladas por Marco Pólo, na evocação dos gostos das iguarias, na dança da música silenciosa das ruas escuras, no encanto pelos aromas dos incensos orientais, no toque do ônix e da ametista, na chegada a Despina de navio ou de camelo, nas pipas que sobrevoam os canais concêntricos de Anastácia, nos deuses que protegem a cidade de Leandra. Este mundo impalpável se realiza pela ação da voz em nossa imaginação. Como o imperador mongol Kublai Khan, destinatário da voz do viajante Marco Pólo, seu ministro estrangeiro, que relata a experiência de suas viagens, nós, seus ouvintes, nos apropriamos do mundo des- tas cidades imaginárias. 183 José Batista Dal Farra Martins (Zebba Dal Farra) é músico, encenador e professor do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cências da ECA-USP. 1 Calvino, 2004. 2 Zumthor, 2001, p. 154. 3 Zumthor, 2001, p. 139. Visíveis pela presença de seu narrador, as cidades invisíveis, nas quais a dimensão urbana enlaça organicamente seus habitantes, se insi- nuam medievais, época em que as vozes poéti- cas dos jograis e dos cantores de gesta são por- tadoras da preservação e difusão da memória – termos com alto grau de interdependência. Segundo o linguista suíço Paul Zumthor, “até por volta do século XII, a escritura é único veí- culo do saber mais elevado: o poder passa pela voz. A partir dos séculos XII e XIII, a relação se inverte: ao escrito, o poder; à voz, transmissão viva do saber.” 2 Na obra de Calvino, os relatos passeiam por uma constelação de cidades, espa- ços medievais típicos dos narradores. São vozes poéticas da cidade as guardiãs e disseminadoras da memória coletiva, que se faz movente, posto que é fluída, e se molda nos corpos de cantores e narradores. “A voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia sobreviver.” 3 A palavra vocalizada atinge os corpos do público pelos seus poros, como ação no ar livre e desimpedido: não há amplificação artificial, há o som meticulosa- R2-A5-ZebbaDalFarra.PMD 13/05/2010, 16:05 183

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s cidades de Ítalo Calvino1 são invisíveisporque se constroem na invisibilidade davoz de quem as narra. As imagens apare-cem e se realizam na imaginação de quemouve, pela presença da palavra poética,

que é pura vocalidade. Mesmo quando lemos,ouvimos os volteios tonais de nossa voz criareme reconhecerem as cidades reveladas por MarcoPólo, na evocação dos gostos das iguarias, nadança da música silenciosa das ruas escuras, noencanto pelos aromas dos incensos orientais, notoque do ônix e da ametista, na chegada aDespina de navio ou de camelo, nas pipas quesobrevoam os canais concêntricos de Anastácia,nos deuses que protegem a cidade de Leandra.Este mundo impalpável se realiza pela ação davoz em nossa imaginação. Como o imperadormongol Kublai Khan, destinatário da voz doviajante Marco Pólo, seu ministro estrangeiro,que relata a experiência de suas viagens, nós,seus ouvintes, nos apropriamos do mundo des-tas cidades imaginárias.

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José Batista Dal Farra Martins (Zebba Dal Farra) é músico, encenador e professor do Departamento deArtes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cências da ECA-USP.

1 Calvino, 2004.2 Zumthor, 2001, p. 154.3 Zumthor, 2001, p. 139.

Visíveis pela presença de seu narrador, ascidades invisíveis, nas quais a dimensão urbanaenlaça organicamente seus habitantes, se insi-nuam medievais, época em que as vozes poéti-cas dos jograis e dos cantores de gesta são por-tadoras da preservação e difusão da memória –termos com alto grau de interdependência.Segundo o linguista suíço Paul Zumthor, “atépor volta do século XII, a escritura é único veí-culo do saber mais elevado: o poder passa pelavoz. A partir dos séculos XII e XIII, a relação seinverte: ao escrito, o poder; à voz, transmissãoviva do saber.”2 Na obra de Calvino, os relatospasseiam por uma constelação de cidades, espa-ços medievais típicos dos narradores. São vozespoéticas da cidade as guardiãs e disseminadorasda memória coletiva, que se faz movente, postoque é fluída, e se molda nos corpos de cantorese narradores. “A voz poética assume a funçãocoesiva e estabilizante sem a qual o grupo socialnão poderia sobreviver.”3 A palavra vocalizadaatinge os corpos do público pelos seus poros,como ação no ar livre e desimpedido: não háamplificação artificial, há o som meticulosa-

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mente dimensionado para decantar as narrati-vas, impregnado de música e de paixão, emcontraposição à dureza da palavra fática. “Asvozes cotidianas dispersam as palavras no leitodo tempo, ali esmigalham o real; a voz poéticaas reúne em um instante único – o da perfor-mance –, tão cedo desvanecido que se cala; aomenos, produz-se essa maravilha de uma pre-sença fugidia mas total.”4 A palavra poética épresença que entra pelos sete buracos da cabe-ça: pelos olhos – nas imagens que evoca, pelaboca – nos sabores a que convida, pelas narinas– nos perfumes que inspira, e pelas orelhas –canais nos quais penetram os seus sinais sono-ros, em busca de decodificação, pelos algoritmosda mente e da paixão. Há, portanto, uma atua-lização da memória na performance do sujeitoda voz. Mesmo que haja texto escrito, ele sub-siste abaixo da vocalidade, como palavras invi-síveis que “a voz do recitante atualiza por ummomento, retornando depois a seu estado, atéque outro recitante delas se aproprie.”5 No pro-cesso da re-memória, a voz que conta canta eborra com poesia a voz cotidiana. A conexãoentre voz e propagação da memória coletiva,tornada presença pela performance do cantor-narrador medieval, sugere ressonâncias com oaedo e o rapsodo, cantores-narradores que flo-resceram na Grécia Arcaica.

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“Pelas Musas comecemos a cantar.”6 No primei-ro verso da abertura do poema “Teogonia”, o

aedo Hesíodo prescreve a precisão de começar-se pelas Musas, a fim de que se garanta a vozcomo presença: as nomeações e os relatos dosfeitos divinos lhes dão concretude. As Musas,cantadas por este pastor iniciado por elas, são asnove filhas de Zeus e da Memória, concebidasem nove noites amorosas. Nascidas desta união,as Musas são Palavras Cantadas: são, portanto,Vozes, e sua dança, Dança das Vozes. Clio,Euterpe, Tália, Melpômene, Terpsícore, Érato,Polínia, Urânia e Calíope. Glória, Alegria, Fes-ta, Alegra-coro, Dançarina, Amorosa, Hinária,Celeste e Bela-Voz.7 A linhagem das Musas en-gendra a potência da memória, impressa invisi-velmente nas palavras cantadas, e propicia a al-ternância entre lembrança e esquecimento.

Na Grécia Arcaica, preservação e trans-missão da memória coletiva também se proces-savam pela vocalidade. A memória se conservapela ação da palavra poética sobre o outro, tor-nada presente nas vozes de aedos e rapsodos,condutores de suas audiências “ao conhecimen-to de esferas do ser que transcendem a esfera daexistência particular, o que faz da poesia épicaum instrumento político e didático de grandeimportância, e ao mesmo tempo uma forma deprazer comunitário.”8 A voz poética é, portan-to, presença que educa e diverte, no âmbito co-letivo, portada por seus sujeitos: os aedos e osrapsodos. Aedos e rapsodos errantes eram co-muns no mundo de língua grega dos séculos VIIa.C. e VI a.C., decaindo-se sua importância so-cial, a partir do surgimento das tragédias e deoutras formas literárias que dependiam da es-crita em sua composição e difusão.9 A diferença

4 Zumthor, 2001, p. 139.5 Teoria dos estados latentes, formulada há meio século por Menéndez Pidal, conforme Zumthor, 2001,

p. 143.6 Torrano, 1992, p. 109.7 Torrano, 1992: 109.8 Krausz, 2007, p. 24.9 Krausz, 2007, p. 26.

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entre eles reside no fato de que o aedo cantasuas próprias criações, enquanto o rapsodo di-vulga um repertório, é aquele que cose os can-tos. Entretanto, o aedo não reivindica para si opapel do autor da obra cantada: é o “aprendizda divindade”, receptor de um poder superiorque emana das Musas. A transição do mundoda oralidade para o mundo da escrita suscita acrescente apropriação, pelos poetas, daquilo queera visto como dom emanado das Musas. O ci-clo, correspondente ao período do século VIIa.C. a V a.C., contém a iniciação de Hesíodopelas Musas, as narrativas de Homero, cuja re-lação com as divindades é de invocação, e a obrade Arquíloco, poeta que, inspirado por elas, secolocará como o único criador de seu traba-lho.10 Na dupla função do aedo, de compositore rapsodo, este se configura como sujeito da vozpoética, concretizada no espaço entre ele e seusouvintes. O rapsodo funde, em sua perfor-mance, os atributos do narrador e do cantor.Sua voz presente apresenta fragmentos passados,em constantes ciclos de ir e vir. A voz que ema-na do corpo do rapsodo, elo da memória com opresente, porta a urgência do dizer e do cantar,seja porque diverte, seja porque vela, seja por-que revela. O poder de sua voz se manifesta nacompetência real, palpável, tangível, de conec-tar os fluxos da memória com os sentidos poé-ticos, na performance. Forjado nas frestas da dore do prazer, o rapsodo repercute na figura doBoca, evocada por Paulinho da Viola, na can-ção “Bebadosamba”11.

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Delta zero na memória. No Benin, antes de cru-zar o Atlântico, escravo empilhado nos porõesdos navios negreiros, o cativo girava nove vezes,

a cativa sete, em torno da Árvore do Esqueci-mento – ‘a árvore das voltas’ – para que perdes-se a memória de sua origem e de sua cultura.12

Nas noites oceânicas, os ruídos surdos da me-mória são vozes do banzo e da dor. Lembrançae esquecimento. Eis o berço do samba, que, paido prazer e filho da dor, se funda sobre esta po-laridade estrutural, em que vida e morte se equi-libram no fio da navalha. No “Bebadosamba”,o sambista chora “a lágrima comum que todoschoram”, capta o “rio de murmúrios da memó-ria”, que aflora na voz deste sósia do rapsodo,“para aliviar o peso das palavras, que ninguém éde pedra.” Como Hesíodo, o sambista prescre-ve o samba como elixir que, quando bebido,instaura o estado de embriaguez, chave do jogoentre lembrança e esquecimento, refletida naimagem do fogo da chama que queima o tecidoda memória: bebadosamba, bebadosamba.

Notam-se três sujeitos da voz na canção.O primeiro narra o dizer de “um mestre do ver-so, de olhar destemido”, num diálogo comBoca, personagem dos antigos carnavais cario-cas, que, no fim do cortejo, encadeava sambasde maneira contínua, ininterrupta, conduzidopelo fluxo da memória.

Um mestre do verso, de olhar destemido,disse uma vez, com certa ironia:“Se lágrima fosse de pedraeu choraria”Mas eu, Boca, como sempre perdidoBêbado de sambas e tantos sonhosChoro a lágrima comum,Que todos choramEmbora não tenha, nessas horas,Saudade do passado, remorsoOu mágoas menoresMeu choro, Boca,Dolente, por questão de estilo,

10 Krausz, 2007, p. 29, 63.11 Paulinho da Viola: Bebadosamba. Rio de Janeiro: Sony/BMG, 1996.12 Barbieri, 1998.

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É chula quase raiadaSolo espontâneo e rudeDe um samba nunca terminadoUm rio de murmúrios da memóriaDe meus olhos, e quando afloraServe, antes de tudo,Para aliviar o peso das palavrasQue ninguém é de pedra.

O segundo sujeito dirige-se diretamenteao ouvinte: pelo canto, convida a beber do sam-ba. Beber do samba, além de se nutrir das vi-brações de seus pulsos, significa beber de umatradição, guardada na memória. O efeito ins-tantâneo deste convite, entoado pela vocalidadeda palavra, é a proposta ao ouvinte de uma be-bedeira poética, deflagrada pela invocação beba-dosamba, bêbado de samba.

Bebadosamba, bebadachamaTambém.

O terceiro sujeito evoca uma família an-cestral de sambistas, pela dualidade da palavra“chama”: a ação de chamar, que abre espaço paraa manifestação da memória, e o substantivo quedesigna queima, transformação em fumaça, emsubstância impalpável e invisível. Os sambasaparecem pelo chamar e desaparecem pela cha-ma, num movimento de retorno ao tecido damemória, pessoal que se faz coletiva. Neste tre-cho, o rapsodo define uma dimensão do uni-verso da memória, que será a fonte de suas nar-rativas cantadas. O samba tem o poder, pela luzde sua chama, de restaurar a paixão, no espaçodesejado de Aruanda, lugar de Paz e Alegria.

Chama que o samba semeiaA luz de sua chamaA paixão vertendo ondasVelhos mantras de aruandaChama por Cartola, chamaPor CandeiaChama Paulo da Portela, chama,Ventura, João da Gente e ClaudionorChama por mano Heitor, chama

Ismael, Noel e SinhôChama Pixinguinha, chama,Donga e João da BaianaChama por NonôChama Cyro MonteiroWilson e Geraldo PereiraMonsueto, Zé com fome e PadeirinhoChama Nelson CavaquinhoChama AtaulfoChama por Bide e MarçalChama, chama, chamaBuci, Raul e Arnô CabegalChama por mestre MarçalSilas, Osório e AnicetoChama mano DécioChama meu compadre Mauro DuarteJorge Mexeu e Geraldo BabãoChama Alvaiade, ManacéaE Chico SantanaE outros irmãos de sambaChama, chama, chama

Eis as metáforas da memória que deli-neiam o ofício deste sambista: o rio de murmú-rios, que flui como passistas em um enredo deescola de samba; a chama do fogo, que queimaas lembranças e as vela no esquecimento; e ochamamento, que posiciona novamente os ca-nais da escuta para os murmúrios do rio. O rit-mo destas ações quem assopra no sentido dooutro é o rapsodo, pela atuação do seu corpo eda sua voz, na performance. O verso de impro-viso, na segunda parte, amplia o diálogo com ocoletivo, ao integrá-lo com a imaginação e a me-mória pessoal, como um ponto de acumulação,limite de uma operação de síntese, que se cor-porifica na presença poética da voz.

Coração partidoVerso de improvisoBeba do martírio desta vidaPelo coração

Há, portanto, um diálogo entre as memó-rias coletiva e pessoal, manifestado na voz dorapsodo. Consumindo-se pela chama da memó-

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ria, no teatro as palavras se queimam quandoditas. Quando molda sua voz na performance,o ator frequentemente transita entre estas duasmemórias: a coletiva, fonte de saber, e a pesso-al, aptidão de esgotá-la e enriquecê-la. Nestassituações, em que a voz poética é memória13, oator se faz rapsodo. Como o “escritor-rapsodo(raphtein em grego significa “coser”), que juntao que previamente despedaçou e, no mesmoinstante, despedaça o que acabou de unir”14, oator-rapsodo costura seu desempenho numcampo de tensões determinado pelas combina-ções entre as vozes do cantor e do narrador, ele-gendo-se o ritmo15 como um de seus operado-res cênicos: o equilíbrio entre canto e fala podeser processado no campo do ritmo.

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A voz poética é, ao mesmo tempo, profecia ememória. Conforme o intérprete, na perfor-mance, cante, recite ou leia em voz alta, limi-tações de maior ou menor força geram suaação; de qualquer modo, porém, esta empe-nha uma totalidade pessoal: simultaneamenteum conhecimento, a inteligência de que elase investe, a sensibilidade, os nervos, os mús-culos, a respiração, um talento de reelaborarem tempo tão breve (Paul Zumthor).16

Movimentos complementares do ritmo respira-tório, a inspiração é captação do mundo, en-

quanto a expiração é ação sobre o mundo. Nainspiração, esboços17 de lembranças se insinuamnas descontinuidades da voz. A palavra silencio-sa potencializa e impulsiona a vocalidade doator-rapsodo, na qual se manifestam os riscosde sua memória. O risco prenuncia o perigo,palavra cujo fragmento “per” é o mesmo da pa-lavra experiência18, sugerindo-se uma conexãoentre risco e experiência. O risco, como a expe-riência, insufla um percurso, um caminho detransposição, e revela a urgência da palavra vo-calizada. Neste trânsito, a autoridade da palavrapoética convoca o corpo e seus sentidos na suaação performativa, colocando-se o ator-rapsodoem estado de plena exposição. A inspiração pre-para e impulsiona as ações da vocalidade e o flu-xo contínuo da voz, em que se encadeiam ospulsos de som e silêncio. O cancionista, ao tra-mar esta fluência contínua no equilíbrio rítmi-co explícito da canção, instiga um importanteprocedimento para o ator-rapsodo, ao proces-sar as entoações do cantor e do narrador.

Quando o ator-rapsodo se depara, comomaterial de trabalho, com um texto escrito,muitas vezes distante de si e de suas inquieta-ções, estimular a experiência da palavra exigeenvolver-se e reconhecer-se com o universodado. Um texto é um conjunto bem definidode palavras, um sistema em que há vários cen-tros de gravidade, criando-se constelações sus-tentadas pelas imagens e ações invisíveis queevocam e provocam. Quando lemos “mesa”,logo percebemos o significado da palavra, sua

13 Zumthor, 2001, p. 139.14 Sarrazac, 2002, p. 37.15 O conceito de ritmo inclui, além das descontinuidades explícitas do jogo entre pulso e silêncio, as

alturas como sua extensão.16 Zumthor, 2001, p. 141.17 Risco é um esboço de projeto. De uso corrente no século XVIII, o termo se encontra associado, a

projetos do Aleijadinho, como mostra o “Risco da Igreja São Francisco de Assis de São João del Rei”,conservado até hoje.

18 Bondía, 2002, p. 25.

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camada denotativa. Porém, o objeto, que já res-soa como voz em nossa mente, evoca experiên-cias com a mesa. A voz formaliza em sonorida-de o objeto, impregnando-se a entonação dascaracterísticas físicas da mesa: seu peso, seu ta-manho, sua temperatura, a sensação que seumaterial imprime ao toque. A mesa se expandetambém para o plano dos afetos. A mesa da in-fância: “o lugar onde apoiaram sonhos, a po-lenta, a lamparina acesa, que na noite recortoue fundiu rostos.”19 O contato com a mesa fazemergir relações do corpo com o objeto: seestamos à mesa, sobre ela, debaixo dela, “emvolta desta mesa velhos e moços, lembrando oque já foi.”20 Quando articula e confronta ascamadas pessoais da memória com sua dimen-são coletiva, histórica, refletida, por exemplo,nos trabalhadores que fabricaram a mesa, as pa-lavras escritas do autor, invisíveis sob a vocali-dade, se implantam no corpo do ator-rapsodocomo memória. A apropriação se processa comopessoalidade e história21, na concretude do ges-to do corpo e da voz, por meio de uma solidarie-dade rítmica entre molde22 e forma: a formacondiciona o molde, a memória do molde de-senha a forma. A experiência cênica torna-se ocampo de tensões em que se concretizam novasposições da memória do ator-rapsodo.

O ator-rapsodo articula os atributos docantor, sujeito lírico, e do narrador, sujeito épi-co, entoando no balanço entre canto e fala, que

é o espaço da voz poética. De outra parte, suavoz é memória coletiva e pessoal. Na Grécia Ar-caica, a diminuição da influência das Musasimplicou em um aumento da presença do aedo– como compositor e rapsodo, na criação e di-fusão dos cantos épicos, apontando-se para umdomínio crescente da memória pessoal sobre suavocalidade. No mundo contemporâneo, a des-peito da ampliação das possibilidades de registroe gravação, há uma desvalorização da memória,notável na proliferação de objetos descartáveis,no apego à novidade, no descaso pelos idosos,“considerados inúteis e inservíveis em nossa so-ciedade.”23 Assim, a exaltação do indivíduo e desua memória pessoal exigirão do ator-rapsodo aconstrução de recortes da memória coletiva, his-tórica, “fixada por uma sociedade por meio demitos fundadores e de relatos, registros, docu-mentos (…).”24 O rapsodo convida o ator paraesta experiência de síntese e propõe uma atitu-de crítica no confronto de seu mundo pessoalcom as relações humanas, que afloram do cole-tivo. De modo semelhante ao sambista, queacende a chama da memória do samba, o ator-rapsodo cose os cantos nas tramas do coletivo edo pessoal, do privado e do público, da tradi-ção e da invenção, pois, também

A fraqueza da memóriaDá força ao homem.25

19 Dal Farra, 1994, Linhagem.20 Milton Nascimento e Fernando Brandt: Saudade dos Aviões da Panair.21 “(…) o ator se apropria da personagem ao mesmo tempo em que se apropria da história”, nas palavras

de Brecht, 1963, p. 54.22 O molde é o vazio corporal que enforma a voz na singularidade de cada som, definido pelas grandezas

físicas tempo (duração, velocidade), espaço (altura, ressonância) e energia (intensidade, volume).23 Chauí, 2003, p. 140.24 Chauí, 2003, p. 141.25 Brecht, 1986, Elogio do Esquecimento.

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RESUMO: O artigo desenvolve a passagem da memória coletiva como processo de dar visibilidadea palavras invisíveis, pela vocalidade, entendida como presença do corpo e da voz de cantores-narra-dores. Neste percurso, analisam-se o aedo e o rapsodo, suas ressonâncias medievais e o sambistabrasileiro, corporificado na figura do Boca, protagonista da canção “Bebadosamba”, de Paulinho daViola. Sugere-se um enfoque poético da vocalidade do ator, conformados no rapsodo. O ator-rapsodo coloca-se como articulador dos atributos do cantor, sujeito lírico, e do narrador, sujeitoépico, entoando no balanço entre canto e fala, que é o espaço da voz poética.PALAVRAS-CHAVE: Voz; Corpo; Rapsodo; Narrador; Cantor; Atuação.

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