ZINANI, C.J.a. SANTOS, S.R.P. Ensino de Literatura e Gêneros Textuais - Um Desafio Do Nosso Tempo

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1 Ensino de literatura e gêneros textuais: um desafio de nosso tempo Dra. Cecil Jeanine Albert Zinani Universidade de Caxias do Sul Dr. em Letras (UFRGS) [email protected] Dra. Salete Rosa Pezzi dos Santos Universidade de Caxias do Sul Dr. em Letras (UFRGS) [email protected] A educação do leitor de literatura não pode ser, em vista da polissemia que é própria do discurso literário, impositiva e meramente formal. Como os sentidos literários são múltiplos, o ensino não pode destacar um conjunto deles como meta a ser alcançada pelos alunos. Aguiar e Bordini (1993) RESUMO: Uma proposta de ensino da literatura com fundamento nos gêneros textuais visa desenvolver no aprendiz habilidades e competências que mobilizem sua estrutura cognitiva com a finalidade de possibilitar a aquisição de conhecimentos. Nesse sentido, são utilizadas as linhas teóricas de Piaget, relacionadas ao desenvolvimento, e de Vygotsky, com destaque para a zona de desenvolvimento proximal. Essas coordenadas viabilizam a introdução da prática de pesquisa em sala de aula, que se materializa em uma unidade piloto, estruturada a partir do compreensão de mitos e crenças da realidade educacional, utilizando gêneros literários, como conto, crônica, poema, para promover a otimização dos aspectos cognitivos, afetivos e sociais do educando. Dessa maneira, pretende-se que a sala de aula se transforme em um laboratório no qual alunos e professor se tornem pesquisadores e construtores do conhecimento. PALAVRAS-CHAVE: ensino; literatura; zona de desenvolvimento proximal. ABSTRACT: A suggestion of literature teaching grounded on textual types aims to develop abilities and competencies on the students mobilizing their cognitive structure to make possible the knowledge acquisition. Thus, Piaget’s theoretical contributions related to the development and Vigotsky’s zone of proximal development are used. These coordinates make practical the introduction of the research in classroom, which becomes a pilot unit grounded on the myth and educational beliefs comprehension using literary types, such as short story, chronicle and poem to foster the optimization of the cognitive, affective and social aspects of

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Ensino de literatura e gêneros textuais: um desafio de nosso tempo

Dra. Cecil Jeanine Albert Zinani Universidade de Caxias do Sul

Dr. em Letras (UFRGS) [email protected]

Dra. Salete Rosa Pezzi dos Santos

Universidade de Caxias do Sul Dr. em Letras (UFRGS)

[email protected]

A educação do leitor de literatura não pode ser, em vista da polissemia que é própria do discurso literário, impositiva e meramente formal. Como os sentidos literários são múltiplos, o ensino não pode destacar um conjunto deles como meta a ser alcançada pelos alunos.

Aguiar e Bordini (1993)

RESUMO: Uma proposta de ensino da literatura com fundamento nos gêneros textuais visa desenvolver no aprendiz habilidades e competências que mobilizem sua estrutura cognitiva com a finalidade de possibilitar a aquisição de conhecimentos. Nesse sentido, são utilizadas as linhas teóricas de Piaget, relacionadas ao desenvolvimento, e de Vygotsky, com destaque para a zona de desenvolvimento proximal. Essas coordenadas viabilizam a introdução da prática de pesquisa em sala de aula, que se materializa em uma unidade piloto, estruturada a partir do compreensão de mitos e crenças da realidade educacional, utilizando gêneros literários, como conto, crônica, poema, para promover a otimização dos aspectos cognitivos, afetivos e sociais do educando. Dessa maneira, pretende-se que a sala de aula se transforme em um laboratório no qual alunos e professor se tornem pesquisadores e construtores do conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: ensino; literatura; zona de desenvolvimento proximal.

ABSTRACT: A suggestion of literature teaching grounded on textual types aims to develop abilities and competencies on the students mobilizing their cognitive structure to make possible the knowledge acquisition. Thus, Piaget’s theoretical contributions related to the development and Vigotsky’s zone of proximal development are used. These coordinates make practical the introduction of the research in classroom, which becomes a pilot unit grounded on the myth and educational beliefs comprehension using literary types, such as short story, chronicle and poem to foster the optimization of the cognitive, affective and social aspects of

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the students. The intention is to transform the classroom in a laboratory in which students and teachers become researchers and builders of knowledge. KEY-WORDS:teaching; literature; zone of proximal development.

1 Literatura e escolarização

Na realidade um tanto conturbada do ensino, em que a literatura restringe-se, muitas vezes, à

focalização de dados que dizem respeito à condição do autor (datas, eventos, listagem de

obras), em lugar de privilegiar o texto, que se apresenta em múltiplos gêneros, é

imprescindível repensar questões básicas da literatura e do ensino da disciplina, uma vez que

esse conhecimento tem acompanhado o ser humano, provendo-o com os elementos do

imaginário necessários para enfrentar os obstáculos da vida bem como tentando responder aos

seus questionamentos fundamentais. Esse aspecto é reiterado por Bettelheim (1980), o qual

assevera que o contato da criança com uma literatura de qualidade, como os contos de fadas

tradicionais, promove o equacionamento de problemas fundamentais vivenciados pelo ser

humano nos estágios iniciais do desenvolvimento. O autor considera a utilidade terapêutica do

gênero contos tradicionais para resolução de conflitos internos, especialmente, aqueles

relacionado à fase edípica e aos resultantes da integração das instâncias id, ego e superego na

formação da personalidade. Além disso, como uma modalidade privilegiada de comunicação,

a literatura possibilita a instauração do diálogo entre textos de diferentes gêneros e leitores de

todas as épocas. Nessa perspectiva, a leitura do texto literário pode ser caracterizada como

uma atividade que se posiciona de modo a destituir a fragmentação do conhecimento, devido

à grande abertura que a literatura proporciona ao leitor para relacionar assuntos e temas,

favorecendo a articulação entre os saberes. A propósito, Zilberman (1999, p. 79) enfatiza que

“a leitura constitui o elemento fundamental na estruturação do ensino [...] [uma vez que] está

no começo da aprendizagem e conduz às outras etapas do conhecimento.” E, nesse sentido,

cabe destacar o fator emocional que a literatura mobiliza, visto a relação afetiva que se

estabelece entre texto e leitor.

Egon Rangel (2003, p. 130) chama a atenção para a funcionalidade do conceito de letramento

literário na formação do leitor, na medida em que essa noção permite “descrever as formas de

existência cultural da escrita que definem um texto como literário, que delimitam um cânone

determinado e que assinalam, para os sujeitos, o âmbito da estética associado à leitura

literária”. Essa perspectiva possibilita a apropriação de elementos culturais, construindo um

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repertório de conhecimentos necessários para a formação não somente de um leitor, mas de

um ser humano com referenciais que o situam em seu universo. Para atingir esse propósito,

assevera o autor:

Numa perspectiva como essa, é não só possível como necessário perceber a leitura como uma articulação, a cada momento única, entre funções da escrita, valores a elas associados, formas de existência e de circulação social dos textos, efeitos de sentido decorrentes dessas condições e implicações subjetivas para os indivíduos. (RANGEL, 2003, p. 131).

A relevância desse processo, por si só, legitima a escolarização da literatura que se tornou

uma disciplina regida por legislação pertinente. Essa escolarização deve consistir na

apropriação adequada da literatura pela escola, espaço privilegiado para o desenvolvimento

do gosto pela leitura, inviabilizando, assim, o processo de didatização do texto literário, como

instrumento com fins pedagógicos.

Os estudos de literatura, na contemporaneidade, tiveram seu estatuto abalado, devido à

emergência da nova história, dos estudos culturais, pós-estruturalistas, pós-colonias e pós-

modernos, redirecionando o enfoque histórico, de característica positivista, que a dominou

desde sua instituição como disciplina. Essa assertiva não se refere ao caráter historicista da

obra de arte, enquanto objeto estético e fenômeno social. As novas perspectivas conferem

outro rumo ao entendimento do cânone, que era visto como elenco de obras e autores

notáveis. Também o conceito de literariedade, tão precioso aos formalistas, foi questionado,

possibilitando uma abertura para novas concepções teóricas. A inserção de registros

linguísticos até então não privilegiados, de formas não referendadas pela cultura erudita, de

manifestações da cultura oral ampliaram o conceito de literatura, destituindo a idéia de

exclusividade, de acesso restrito, destinado apenas a alguns ilustrados.

O significativo avanço que os estudos literários atingiram nos últimos tempos não encontra

uma correspondência efetiva com a situação da literatura como disciplina escolar, já que esta

não tem merecido a devida consideração, uma vez que sofreu sensível apagamento na Lei de

Diretrizes e Bases da Educação de 1996 e nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Na

tentativa de otimizar o ensino da literatura, estudiosos da área têm buscado encontrar

alternativas com a finalidade de resgatar a importância da disciplina na formação humanística

do aluno. Nesse sentido, pode ser referido o projeto de pesquisa, desenvolvido na UCS,

Ensino da literatura: uma proposta metodológica alternativa para o ensino médio1, que

1 Esse Projeto de Pesquisa foi desenvolvido de março de 1999 a março de 2001, com apoio da FAPERGS e da

UCS, cujos resultados foram publicados na obra ZINANI, Cecil Jeanine Albert et al. Transformando o ensino

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possibilitou constatar a necessidade de ampliar os estudos que envolvem a problemática do

ensino da literatura no ensino médio. Assim, este estudo tem como propósito discutir uma

forma de abordagem da literatura, fundamentada na linha epistemológica preconizada nos

estudos de Vygotsky, que introduz o conceito de zona de desenvolvimento proximal como

fundamentação para a prática da pesquisa em sala de aula, tendo, como corpus de estudo,

textos que pertençam ao domínio da cultura literária.

2 Ensino de literatura: reflexão e aquisição de conhecimento.

O ser humano nasce apto a desenvolver constantemente a sua estrutura cognitiva e a adquirir

conhecimento, isso ocorre através do empenho, da curiosidade e do envolvimento de cada um.

Daí a necessidade de que esse processo seja construído de forma significativa, utilizando

conhecimentos prévios, habilidades e competências, o que só poderá ser otimizado na medida

em que o ensino for desenvolvido de forma adequada. O ensino de literatura não pode ficar

restrito a apenas uma modalidade, mas contemplar os diversos gêneros que enriquecem a área,

uma vez que o desenvolvimento de aspectos do imaginário pode contribuir para o

equacionamento de problemas educacionais tão relevantes na contemporaneidade. Nesse

sentido, refletindo sobre a crise na educação, Coelho (2000, p. 25) afirma que:

Nos rastros do pensamento complexo, todas as discussões que vêm sendo feitas em torno da 'crise do ensino' têm como base uma das premissas da psicologia cognitiva: sem estar integrado num contexto, nenhum saber tem valia, por mais sofisticado que seja, isto é, não provoca no sujeito o dinamismo interno que o levaria a interagir com outros saberes e ampliar o conhecimento inicial ou transformá-lo.

A integração dos saberes remete à questão da interdisciplinaridade, pois, os saberes relevantes

devem ser organizados de maneira a propiciar ao sujeito um conhecimento do mundo. Nesse

aspecto, Coelho (2000, p. 25) enfatiza a necessidade de “articular entre si determinadas áreas

de saber, de maneira que cada uma ilumine as outras e seja, por sua vez, iluminada por elas”.

Piaget e Vygotsky, ao pesquisarem o desenvolvimento intelectual, situaram a questão

educacional no âmbito da psicologia cognitiva. A teoria de Piaget (1999) presume que, entre a

infância e a adolescência, o ser humano desenvolve a capacidade de executar operações

lógicas que se aperfeiçoam. O estágio das operações formais é particularmente relevante nos

estudos que relacionam adolescência e educação, pois evidencia a forma de atividade mais

de língua e de literatura: análise da realidade e propostas metodológicas. Caxias do Sul, RS: Educs, 2002.

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avançada que o indivíduo pode atingir. Para o autor, o adolescente, posto diante de um

problema, consegue testar alternativas de solução, de forma organizada e consciente,

elaborando deduções críticas, uma vez que detém raciocínio hipotético-dedutivo. O

desenvolvimento mental se expande bastante na adolescência, e as formas superiores da

inteligência e afetividade ampliam e enriquecem cada vez mais a experiência, aperfeiçoando a

reflexão, a capacidade de relacionamento e a possibilidade de educação permanente. Dessa

maneira, pode-se afirmar que a sabedoria do homem maduro está no exercício inesgotável do

aprender. Um dos grandes problemas que se refletem na educação, revelado em pesquisas

ocorridas ainda na década de oitenta do século XX, é que grande parte dos adolescentes não

atinge o pensamento formal no período previsto por Piaget. (COLEMAN, 1985). Essa

constatação demonstra a necessidade de serem estabelecidas ações, visando a sanar essa

lacuna. Assim, torna-se imprescindível estimular e desenvolver a reflexão crítica, para que se

possam atingir os níveis desejáveis do pensamento formal. O texto literário, por suas

especificidades, pode auxiliar significativamente no equacionamento desse problema,

possibilitando ao educando exercitar suas faculdades reflexivas e de transposição de

conhecimentos.

Vygotsky (1984) afirma que, na adolescência, a memória torna-se extremamente lógica,

havendo uma reorientação nas relações interfuncionais que a conectam a outras funções. Esse

aspecto é altamente relevante, visto que as estruturas mentais passam a organizar-se não mais

como tipos de categorias, mas como conceitos abstratos. O aprendizado desperta vários

processos internos de desenvolvimento que são capazes de operar somente quando o

indivíduo interage com pessoas, com seu ambiente e em cooperação com seus companheiros.

O autor propõe que o aprendizado ocorre na zona de desenvolvimento proximal, permitindo a

compreensão do curso interno e possibilitando tanto o delineamento do estágio presente como

a antevisão do futuro. Para o autor, zona de desenvolvimento proximal

é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. (VYGOSTSKY, 1984, p.97).

Vygostky (1984) amplia suas considerações sobre essa questão, possibilitando vislumbrar a

relevância do entendimento desse conceito para otimizar o trabalho docente. Conforme o

autor,

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a zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de 'brotos' ou 'flores' do desenvolvimento, ao invés de 'frutos' do desenvolvimento. O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente. (VYGOTSKY, 1984, p. 97).

A reflexão sobre essas questões propõe uma inter-relação entre o ato de educar e a escola,

contribuindo para a melhoria do ensino e para a formação de seres humanos preparados para a

autogestão, capazes de vencer desafios, ancorados nos fundamentos éticos e morais do

respeito mútuo e da liberdade. A literatura, através de seu potencial transformador, das

possibilidades de reflexão e discussão que engendra, contribuem sensivelmente para atingir

essas metas. Para tanto, é importante pensar em alternativas de atuação em sala de aula,

propondo estratégias de abordagem que possibilitem atingir esse intento. Assim, a

organização de um projeto de ensino de literatura que venha, ao menos parcialmente, buscar

responder aos anseios de alunos e de professores, precisa, primeiramente, compreender o

quadro referencial a partir do qual os sujeitos interpretam sentimentos, pensamentos e ações

para, desse modo, poder contemplar os aspectos afetivo, cognitivo e social, imbricados no

processo. Posteriormente, escolher, dentro da literatura, os gêneros que melhor respondem às

necessidades do grupo. Uma possibilidade, não só de influenciar, mas também de modificar

esses aspectos, pode ser vislumbrada através da atuação sobre a zona de desenvolvimento

proximal, de Vygotsky (1984).

A tentativa de unir ensino de literatura e zona de desenvolvimento proximal remete a uma

abordagem de caráter dialético, uma vez que o sujeito da pesquisa – aluno e professor –, no

decurso dos procedimentos que estão sendo realizados, vai sofrendo modificações, tanto na

sua atuação, quanto na percepção do objeto de estudo – a literatura. As alterações sofridas

pelo sujeito determinam as adequações que deverão ser feitas, a fim de criar condições para

que os objetivos sejam atingidos. Esse modelo de trabalho, voltado para o estudo do texto

literário, propõe a melhoria da educação através da mudança, o que ocasiona um processo de

ressonância, já que as modificações afetarão, de alguma maneira, seu entorno, o que significa

que outras pessoas também poderão ser beneficiadas. Essa modalidade de investigação

registrada através de assentamentos pertinentes, possibilita o acompanhamento das mudanças

efetuadas nas relações e nas modalidades de organização que delimitam as práticas educativas

e o próprio modo de ser e de operar essas práticas.

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De acordo com essa perspectiva, é significativo considerar a possibilidade de introduzir a

prática da pesquisa em sala de aula, ou seja, transformar professores e alunos em sujeitos

pesquisadores, pois essa atividade poderá deflagrar um processo de ruptura com paradigmas

estereotipados, abrindo espaço para o novo com a constituição de novos sujeitos, aluno e

professor, autônomos e capazes de interferir em seu meio, modificando o contexto onde estão

inseridos. Nesse sentido, o contato com o texto literário, por sua potencialidade formativa,

pode constituir o elemento deflagrador de um processo que possibilite atingir esse desiderato.

Processo esse que envolve a interação aluno-professor e aluno-aluno, no ambiente de pesquisa

realizada em sala de aula, potencializando a zona de desenvolvimento proximal, o que faculta

expressivos ganhos tanto para o aluno quanto para o professor. Na medida em que for

oportunizado ao educando o exercício do pensamento, através de atividades que desafiem sua

capacidade reflexiva e criadora, haverá espaço para o aprimoramento de seu potencial para

transformar informações em conhecimentos e, como tal, alcançar autonomia para atuar em

seu contexto.

Ainda que pesquisas já realizadas2 comprovem que alunos de ensino médio apresentam

dificuldades na aprendizagem de literatura, uma vez que conteúdos, abordagens e métodos

não atendem às suas expectativas e que existe distanciamento entre as propostas de ensino e a

realidade concreta dos sujeitos envolvidos no processo, as pesquisas também evidenciam a

crença do aluno de que a leitura do texto é importante. Quando questionados a respeito do

interesse próprio e de familiares e amigos por leitura, um percentual expressivo de alunos

considerou-se leitor em maior proporção que amigos e irmãos, numa clara alusão ao

reconhecimento do prestígio que o ato de ler confere a quem lê. Esse aspecto é um dado

extremamente significativo e precisa ser conhecido e utilizado pelo professor que deve

reforçar essa idéia de modo positivo, estabelecendo relações concretas entre leitura, de

quaisquer gêneros textuais, independentemente do suporte, e realidade. Embora o aluno possa

não ser um leitor tão freqüente quanto afirma (e os professores têm ampla consciência desse

fato), ainda assim, considera a leitura uma atividade importante, por esse motivo é

imprescindível que os professores invistam nesse processo, criando novas estratégias de

abordagem dos diferentes gêneros literários, mais de acordo com as expectativas do aluno,

2 A propósito ver: ZINANI, C.J.A. Adolescência: leitura e realidade cultural. Dissertação de Mestrado. Porto

Alegre: PUCRS, 1991. Ver também os Projetos de Pesquisas desenvolvidos na Universidade de Caxias do Sul: Ensino de literatura: uma proposta metodológica alternativa para o ensino médio (1999-2001); Leitura do texto literário: possibilidades e alternativas (2003-2005).

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bem como modalidades pedagógicas adequadas ao ensino da literatura. Na adolescência, o

jovem sente necessidade de auto-afirmação e autovalorização, uma vez que o reconhecimento

próprio favorece a reflexão sobre si mesmo. Dessa forma, a literatura, por propiciar cultura e

conhecimento, é uma atividade privilegiada que oportuniza certa ascensão sobre os demais.

Na tentativa de equacionar essa problemática, foi proposta, no projeto de pesquisa Leitura do

texto literário: possibilidades e alternativas3, a organização de uma unidade de ensino,

posteriormente, aplicada em escola da rede pública. Essa modalidade de estudo privilegiou

uma abordagem alternativa para o ensino de literatura no ensino médio, possibilitando o

aprimoramento cognitivo, afetivo e social, através do estudo e análise de textos literários em

sua relação com o contexto social. Essa opção partiu da hipótese de que o desenvolvimento de

um módulo de ensino de literatura no ensino médio que contemple essa abordagem, apresenta

possibilidades de êxito, uma vez que poderá atender às expectativas do aluno, na medida em

que reduzir o distanciamento entre os objetivos da disciplina e a realidade do sujeito.

O módulo de ensino piloto organizado oportunizou ao aluno o conhecimento da relevância do

fato literário como elemento de ampliação da competência de leitura e do entendimento da

circunstância social, permitindo ao aprendiz tornar-se deflagrador da própria autonomia e um

agente de mudança no seu meio social. Para tanto, foi imprescindível considerar o trabalho de

mediação desenvolvido pelo professor, calcado na consciência de pesquisador, propiciando

um movimento em sala de aula em que tanto alunos quanto professores tornaram-se

produtores de conhecimento, o que ocasionou uma ruptura com os paradigmas tradicionais e

uma abertura para o novo. Nesse sentido, definiram-se alguns aspectos que poderiam otimizar

o trabalho em sala de aula, tais como: ampliar a disposição do aluno para o estudo de gêneros

textuais literários; propor a leitura e análise desses textos, através de um processo dialógico,

envolvendo diferentes possibilidades de leitura em que se entrecruzam os discursos do

professor e dos alunos; estabelecer relações entre o contexto de produção do texto literário, a

realidade histórico-social e o contexto de recepção; analisar as atividades efetivadas,

sistematizando as informações obtidas; oportunizar a reflexão sobre o processo desenvolvido,

avaliando suas repercussões no crescimento pessoal e do grupo.

As etapas do planejamento da unidade de ensino foram estabelecidas tendo em vista o

trabalho a ser desenvolvido junto a alunos de ensino médio, tanto em relação ao entendimento

do processo quanto ao aprimoramento de competências e habilidades do jovem, a partir do 3 Projeto de Pesquisa desenvolvido no Departamento de Letras da UCS com apoio da FAPERGS e UCS no

período de março de 2003 a fevereiro de 2005.

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contato com os diversos gêneros textuais. Dessa maneira, foram organizados instrumentos

com a finalidade de implementar o projeto que foi desenvolvido tanto pelo professor quanto

pelos alunos. Esses instrumentos procuraram dar conta da situação inicial do grupo, avaliação

das atividades realizadas, auto-avaliação, e situação de saída do grupo. Essa coleta de dados

facultou o exercício de uma reflexão sobre a atuação em sala de aula, instaurando-se

alternativas de correção de rumo através do replanejamento das atividades.

Esta proposta, centrada na leitura do gênero literário romance, utilizou como possibilidade de

estudo os conceitos de compreensão e explicação, definidos por Goldmann (1990). Para o

autor, a compreensão é o esclarecimento de uma estrutura significativa imanente ao objeto

estudado, ou seja, a descrição desse objeto. A explicação consiste na inserção dessa estrutura

enquanto elemento de uma estrutura mais ampla que o engloba. Dessa maneira, o estudo de

diferentes gêneros textuais da literatura é realizado através de sucessivas integrações. O texto

em estudo será integrado na obra da qual foi extraído; a obra, por sua vez, na obra geral do

autor; a obra geral do autor, nas correntes literárias, filosóficas e religiosas da época e do país;

essas correntes, no conjunto da vida social, econômica e política do momento. À medida que

forem sendo processadas essas inserções, o entendimento da obra propiciado pela análise vai

sofrendo modificações, ampliando-se num movimento dialético entre a parte e o todo, uma

vez que a visualização do todo amplia o entendimento das partes, modificando-lhe o sentido.

Essa abordagem tem caráter operacional e enseja ao aluno a percepção da obra literária

inserida no contexto social, tornando-a muito mais significativa, pois possibilita a construção

mais ampla dos sentidos do texto. Esse processo pode ser explorado para o estudo de outros

gêneros textuais literários além do romance, podendo-se alcançar resultados tão promissores

quanto os obtidos no estudo já realizado.

3 Escolarização e literatura

A escolarização da literatura é um aspecto indispensável na formação do leitor, pois é através

dela que muitos educandos entram em contato com o texto literário e podem desenvolver o

gosto pela leitura. No entanto, a escolarização da literatura pode ser vista negativamente,

quando lhe for atribuído um papel pedagógico, cujo objetivo seja veicular determinadas

noções ou comportamentos desejáveis. De acordo com Magda Soares (2001, p. 22),

o que se deve negar não é a escolarização da literatura, mas a inadequada, a errônea, a imprópria, escolarização da literatura que se traduz em sua

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deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o.

Uma alternativa para tornar esse processo adequado, pressupõe um planejamento que

contemple diferentes gêneros discursivos da literatura, valorizando o texto literário como

objeto estético, de maneira que o aluno possa dialogar com a especificidade desse objeto.

A realização dessa modalidade de trabalho apresenta como pressuposto básico uma

investigação sobre a realidade do aluno, pois é fundamental para o professor conhecer não só

os mitos e as crenças que perpassam o ambiente escolar, mas também a disponibilidade do

jovem para encetar uma forma de estudo que lhe possibilite desenvolver competências e

habilidades. O conhecimento da realidade, oportunizando uma reflexão sobre esse nível de

ensino, proporciona uma fundamentação consistente para a organização de um projeto que

contemple as necessidades do aluno e os objetivos do professor, no sentido de promover o

desenvolvimento cognitivo, afetivo e social do educando, utilizando, para tal, gêneros

literários, em prosa e verso, tais como contos, crônicas, romances, poemas, nos quais os

aspectos artístico-literários sejam evidenciados.

Além disso, essa modalidade de abordagem do texto literário transmite ao jovem a idéia de

que a educação é uma construção realizada pelo sujeito, e que uma das melhores maneiras de

atingi-la é através do desenvolvimento da atitude de pesquisador em sala de aula, atitude esta

que se fundamenta na necessidade do valor da leitura. Também é fundamental a adesão do

contexto escolar, a fim de propiciar não só condições materiais como também o apoio e a

aceitação para a realização do trabalho, visto que o espírito aberto constitui uma valiosa

ferramenta de sucesso. Na medida em que aluno e professor se tornarem investigadores, e a

sala de aula for considerada um laboratório, certamente, haverá uma qualificação maior dos

processos de ensino e aprendizagem e um aprimoramento mais significativo dos integrantes

da realidade educacional.

Referências

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PIAGET, J.; INHELDER, B. A psicologia da criança. Rio de Janeiro: Artmed, 1999. RANGEL, E. de O. Letramento literário e livro didático de língua portuguesa: “Os amores difíceis”. In: PAIVA, A; MARTINS, A; PAULINO; G. VERSIANI, Z. (Orgs.). Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – O jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE/FaE/UFMG, 2003.p. 127-145. SOARES, M. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, A.A.M. et al. (Orgs.). A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 17-48. VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. ZILBERMAN, Regina. Leitura literária e outras leituras. In: CHARTIER, Anne-Marie et al. Leitura: práticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 71-88. ZINANI, C.J.A.; SANTOS, S.R.P. dos. Ensino da literatura: lugar do texto literário. In: ZINANI, C.J.A. et al. Transformando o ensino de língua e de literatura: análise da realidade e propostas metodológicas. Caxias do Sul, RS: Educs, 2002.