Zumbido

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zumbido

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Revista experimental coletiva | curso de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco | 2012

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zumbido

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ZumbidoPublicação produzida por estudantes do curso deJornalismo da Universidade Federal dePernambuco (UFPE)Realizada para a disciplina Redação 4Recife, agosto de 2012

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índice

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Editorial..............................................4

CRÔNICAEm palcos listrados.............................................5Por Terni Castro

PERFILTreze reais de conversa..........................................6Por Eduardo Donida

PERFIL(in)eficiência.................................................8Por Terni Castro

ENSAIO#OcupeEstelita.......................................10Por Camila Almeida

ENTREVISTAA casa que habito...................................................12Por Felipe Resk

REPORTAGEMVistas a pulso.......................................18Por Vitor Tavares

REPORTAGEMHá Via Mangue, havia gente....................22Por Camila Almeida

REPORTAGEMA arte de deixar tudo velhinho em folha...................27Por Denny Farias

ENSAIOAlém da fachada: as casas e as mulheres de Santo Amaro...........13Por Felipe Resk

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editorial

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m 1973, um baiano completamente maluco proclamava a si mesmo a mosca na sopa da música Epopular brasileira. Não representava a militância dos

festivais nem a demência política do iê-iê-iê. Seu canto atendia à demanda de uma juventude na encruzilhada das tensões sociais e ideológicas. Só queria escapar à convenção, mesmo que isso significasse abusar do escárnio e do deboche. Raul Seixas lutou pela democracia no Brasil, na medida em que se negou a ser igual. Esse é o ponto de encontro com a proposta desta revista. Ela foi concebida para dar espaço aos esquecidos pela grande mídia. Às classes marginalizadas, que não aparecem nas propagandas, e para quem o direito de sorrir parece que não existe. Àqueles que, quando falam, incomodam. Soam como mosquitos. Zumbindo. Este número, especificamente, tem como proposta circular pela Região Metropolitana do Recife. E entender suas ruas como o espaço onde as coisas públicas e privadas se encontram (ou se conflitam). Tem a intenção de encontrar, nas pessoas - elas que tanto nos faltam - o que de íntimo trazem a público. E desse embolado de intimidades expostas, arranhadas, mostrar um pouquinho com quem se convive. E o Recife que precisamos enfrentar. Nestas páginas, você poderá encontrar crônicas, perfis, reportagens e ensaios fotográficos realizados em encontros com essas pessoas, que vivem, que convivem, que habitam esta cidade. Que esse zumbido possa te mover, também, a novos contatos e que o barulho miúdo de hoje possa ser, democrático como um refrão, cantado por todos.

camila almeida felipe resk denny farias terni castro vitor tavares eduardo donida

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brem-se as cortinas. A plateia aplaude. Encena. Pula. estampada no rosto. ACanta. Dança. Malabariza. Fecha-se o pano. Um Tomo aqui o exemplo de um casal de malabaristas do espetáculo. Na ovação, a recompensa. O reconhecimento bairro de Boa Viagem: entre moradores, carros, motos, o pelo trabalho desenvolvido com tanta paixão, tanta entrega instante parece se alongar naqueles pequenos gestos de de si. felicidade genuína por estar performando seus talentos. Ali Do circo longínquo aos teatros menos sofisticados do mora a alma do artista.mundo, todos buscam cativar o público, costurar instantes O espaço físico poderia ser diferente. Antes um palco, uma de estrela. Acreditam que sempre haverá alguém para plateia disposta sobre cadeiras – devidamente comportada e celebrar junto e aclamar os esforços realizados no palco. ansiosa. Mas são as listras brancas no chão que compõem o Mas a realidade não é bem assim. cenário. Cheguei a conversar com um artista de rua. Há tempos observo certos artistas pelas ruas do Recife. Educadamente, ele questionou se eu estava interessado em Não aqueles de muro de grafitagem. Falo dos que, muitas contratá-lo para algum trabalho (afinal, há também a vezes, nem são percebidos pelos transeuntes nas artérias da questão financeira). cidade. Atravessam caminhos que seguem intactos. Para ser bem sincero, as melhores apresentações a que já Exato. Refiro-me aos artistas dos semáforos – daquele assisti me pegaram de supetão, como minha avó diz. Na momento tão somente dedicado à pressa, ao ir-e-vir dos pressa em que vivemos, deixamos de observar as coisas carros, dos pedestres. Trato dos que guardam contados simples, mas belas.segundos para tentar demonstrar arte... a ninguém. Choca Nos sinais, os esforços não são menores do que no circo escrever forte assim. Mas pense: quanto do seu tempo você estrangeiro. Volto à história do casal de Boa Viagem: uma despendeu para reconhecer o desempenho à sua frente? vez que resolvi contemplar a dança dos malabares percebi Quantas palmas foram gastas? Quantas congratulações? estar diante de um espetáculo. Curto, a céu aberto, mas com O palco para esses artistas torna-se infortúnio. Insólito, a mesma intensidade de tantos outros que já presenciei.para ser mais preciso. Nas avenidas, as pessoas vão e voltam. Não parei mais de olhar. Quer uma sugestão? Faça o Sequer oferecem um olhar atencioso, um “parabéns”. E mesmo. Só não se esqueça: um aplauso, mesmo que discreto, mesmo diante de tudo, eles respondem com alegria é sempre bem-vindo.

crônica

LISTRADOSem palcos

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POR TERNI CASTRO

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perfil

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Eram quatro, parceiro. Tudo com aquela sainha

arrochada. A galega sentou logo do meu lado, deu um tapa

na minha perna, apertou e disse 'que coxa firme, hein,

Negão? Posso te chamar assim, não?'. Eu disse 'claro'. Ia

me ofender se me chamasse de branco, sou negão mesmo”.“treze reais

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oi a primeira história da noite. Ao lado de um taxista De qualquer forma, nada que afete seu bom humor. “Graças inquieto – tentativa de encontrar um eufemismo a Deus, tenho saúde, e o resto a gente consegue batalhando. Fpara tagarela –, qualquer distância é sempre Bronca foi o que eu arrumei, no mês passado, uma namorada

suficiente para uma boa dose de relatos. E risadas. E nova. Aí acaba com a gente, e o dinheiro vai embora Fernando é desses. também”, brinca. “Por sinal, estamos indo para onde A propósito: Fernando Gonçalves, pai de duas filhas, mesmo?”. É, faltava dizer o destino. O táxi seguia em linha taxista há quase duas décadas. O emprego – herança de reta pela avenida, como que somente na intenção de botar a família, já na terceira geração – está longe de ser dos mais conversa em dia.fáceis. Terça-feira, 1º de maio, e ele mais uma vez lançado às Fernando gosta mesmo é de falar; se diverte com as avenidas do Recife. “Não existe feriado para quem tem próprias histórias. Nem a nova namorada escapa. “Sabe qual contas para pagar, isso eu já aprendi. Ainda preciso de R$ o jeito mais fácil de conseguir uma mulher de graça? 200. Este mês foi difícil”. Casando!”, solta, acabando-se em risadas. Pelo menos, deu O revés financeiro é resposta também para o horário para aproveitar a pausa e, enfim, anunciar o percurso.atípico da jornada. Fernando gosta de rodar somente à Por ser feriado, não era o dia mais movimentado no Recife. noite. Segundo ele mesmo, as ruas estão mais vazias. Perigo Veio a lembrança de que, nos meses anteriores, os lucros à parte, há menos preocupação e desgaste com trânsito, haviam sido melhores que o esperado. Foi um momento de muito menos barulheira. Naquela terça, o dia havia era vacas gordas da cidade, repleto de eventos, inclusive começado cedo, às oito da manhã. E já são quase 23h. internacionais, que exigiam a presença de taxistas nas ruas.

perfil

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de conversa

POR EDUARDO DONIDA

Num mesmo sábado – e com dose repetida no domingo! – menos que R$ 150, R$ 200. Tem que saber viver também, Abril pro Rock, Chico Buarque, Cirque du Soleil, Paul concorda?”. Faço que sim com a cabeça, sorrindo.McCartney. “Não tinha um bar vazio. Tudo lotado, gente Não entendo sua habilidade em fazer render um salário indo para tudo que é canto. Várias chamadas para hotéis, modesto – pelo menos ao que me parece –, mas admiro. gringos. Era a hora de ganhar dinheiro” – “À direita, por Segundo o próprio Fernando e outros colegas dele, um mês favor”, interrompo. “De vez em quando tem dessas, é quando comum de um taxista não rende muito mais que R$ 2 mil. a gente para de dormir e vai virando noite atrás de noite, Parece razoável? Não quando se tem uma família para senão perde a chance”, completa. sustentar. E contas de casa. E combustível. Quanto sobra Quando a corda aperta, tem que fazer um esforço mesmo. para o lazer? Preferi não insistir no assunto. Apesar de não fugir da responsabilidade, Fernando é de “Chegamos”, falei. “Pode encostar aqui, por favor.” Eu não valorizar o dia de folga. Fim de semana, então, é quase dia vou para uma festa. Volto pra casa depois de mais um dia de santo. “Se a gente trabalhar tanto assim, não dá para viver. O trabalho, assim como Fernando. Mas não, eu não sou como danado do cara que inventou o trabalho devia ser um infeliz, ele. Não sou um exemplo de brasileiro malabarista, que corno safado. Se eu pego ele, quebro no pau”. Ri de novo. parece multiplicar o dinheiro e segue a vida em frente, com “E dá para se sustentar com esse ritmo de trabalho?”, incrível bom humor e simpatia. O mágico taxista tem muito instigo. “Sempre dá. Quando as contas chegam, pago. Teve a me ensinar. Sem saber, o fez por nada mais que vinte dinheirinho sobrando, pago o que devo. Dívida não é para se minutos. E R$ 13. Não o veria mais. Logo depois, nem economizar. A gente faz isso é com o dinheiro. Mas sabendo mesmo lembraria sua fisionomia; nem ele, a minha. Mas a administrar, dá pra viver tranquilo. E até tomar umas conversa não ia ser esquecida tão facilmente. Rendia uma cervejinhas, fazer aquele churrasquinho. Vai dizer que não crônica. Rendia um livro. Didático. gosta de uma prainha, tomar um negocinho, um caldinho, um sururu? Só presta ir para aproveitar mesmo, não gasto “Bom trabalho, foi um prazer.” E nada mais se tem a dizer.

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air de casa cedo faz parte de uma rotina árdua. As todo o estado. O trabalho, além de reunir quantidade relativa dificuldades de locomoção, quase invariavelmente, de estresse diário, fica no bairro de Santo Amaro, no centro Sobrigam o cidadão a seguir o regime caótico instalado do Recife – a cerca de 15 km de casa. Há um tempo, a rotina

no Recife. No cardápio de insatisfação urbana, as receitas do fotógrafo era composta pelo descaminho de atravessar o apresentam o trânsito como principal ingrediente. percurso de carro que se espichava por uma sofrida hora e Considerando o transporte público, o problema é ainda meia. “Pegava o trânsito tanto de Piedade quanto do bairro maior. Relegados ao vai-e-volta das catracas dos ônibus e de Boa Viagem, no Recife. Era estressante, e eu já chegava metrôs, os passageiros locais não raro se queixam – seja por indisposto no trabalho”, conta.conta das linhas ineficientes ou pelo atraso e lotação dos No início deste ano, veio a mudança, alicerçada em dois veículos. pilares: bicicleta e metrô. Apesar de saber que existe uma lei Mas não, não é unanimidade que o sistema de transporte municipal proibindo o uso de bicicletas nos metrôs, salvo em público recifense esteja de todo entregue ao relento. Há sábados e domingos, o fotógrafo encontrou uma saída. “A quem, mesmo tendo seu próprio veículo, o mantenha na minha é dobrável, vai numa mochila. Não tem problema”, garagem não por necessidade, mas por simples preferência. explica. “Pego a bicicleta e me dirijo à Estação de Prazeres, É o caso de Arnaldo Carvalho, que, do alto dos seus 39 anos, de onde tomo um trem/metrô para a Estação Central, no resolveu mudar os hábitos ligados exclusivamente ao Recife. De lá, a desdobro e vou pedalando para a Redação do automóvel, e garante: “Para mim, é funcional e jornal. Quando largo, por volta das 19h, faço o caminho supereficiente”. inverso”. Arnaldo mora no bairro de Piedade, localizado em Os problemas de fato parecem ter diminuído para Ar-Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana. É naldo. O percurso que levava para chegar ao trabalho editor de fotografia de um jornal impresso reconhecido em tornou-se de 50 minutos – quase metade da duração.

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perfil

(IN)EFICIÊNCIAPOR TERNI CASTRO

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“Estou com 39 anos e era fumante. Resolvi que, antes de trabalho. Arnaldo passou a utilizar seu celular para tirar chegar aos 40, teria que fazer alguma coisa pela minha fotos comportamentais durante seus percursos pelas linhas saúde. Hoje chego ao trabalho, tomo banho no vestiário e metroviárias recifenses. Utilizando-se de uma rede social fico mais disposto. Dá aquele gás para começar o dia. para fotografia, o Instagram, compôs o ensaio Percebi que essa combinação facilitaria bastante. Além “#linhasdotrem, em que o teor observacional predomina.disso, a qualidade de vida aumenta significativamente, pois A melhora na qualidade de vida é sentida com tanta há mais economia de tempo e dinheiro”, explica. veemência pelo fotógrafo que ele não esconde: até em A rotina do fotógrafo ainda não está totalmente livre do momentos inoportunos, prefere colocar o binômio carro, pois logo cedo deixa os filhos no colégio, mas ele já a bicicleta/metrô em ação. “Às vezes, quando está chovendo, eu considera diferente. E acredita que a transformação pode fico esperando somente por uma breve estiada. Quando ela ser uma ferramenta para outros usuários também. “As vem, rapidamente pego a bicicleta e me dirijo ao metrô. Em pessoas vêm mudando a conscientização sobre os dez minutos, já estou na estação”. Arnaldo confessa ter transportes. No metrô, por exemplo, não vejo mais influenciado amigos e colegas de trabalho. “Alguns até já somente aquele estereótipo do trabalhador braçal. Na utilizam esse método. Todo mundo vive melhor e com mais verdade, há gente de todas as classes”, enfatiza. Entretanto, disposição no dia a dia”. E quem diria. Aquele que geralmente não deixa de lado as críticas para aperfeiçoar o sistema. trabalha com a pressa da indústria da notícia, agora vive na “Deveriam aumentar a quantidade de trens disponíveis. procura pela calmaria em meio ao conturbado.Ainda há intervalos grandes entre a chegada de um e outro.

Todas as fotografias desta reportagem foram concedidas pelo fotógrafo Poderiam também expandir para outras áreas da cidade Arnaldo Carvalho. Para conhecer melhor o trabalho dele, acesse: para sairmos dessa neurose de carro”.web.stagram.com/n/arnaldo_carvalho.

A inspiração para a nova rotina acabou se refletindo no

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Mapa

do

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Recife.

Font

e: C

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Met

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Page 10: Zumbido

.o movimento #OcupeEstelita, que

teve sua primeira edição em abril

deste ano, mostrou o interesse dos

recifenses em ocupar sua cidade. Em

fazer parte, dar pitaco e discutir que

tipo de espaço público se deseja. Este

ensaio retrata intervenções feitas

pelos próprios cidadãos no Cais José

Estelita, no bairro de São José,

centro do Recife.

o movimento #OcupeEstelita, que

teve sua primeira edição em abril

deste ano, mostrou o interesse dos

recifenses em ocupar sua cidade. Em

fazer parte, dar pitaco e discutir que

tipo de espaço público se deseja. Este

ensaio retrata intervenções feitas

pelos próprios cidadãos no Cais José

Estelita, no bairro de São José,

centro do Recife.

A ocupação foi motivada,

principalmente, pela aprovação

~ por parte da Prefeitura ~ do

Projeto Novo Recife, que prevê a

construção de treze luxuosas

torres ao longo do Cais.

POR CAMILA ALMEIDA

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Além das manifestações artísticas

e de protesto, o #OcupeEstelita tem

ampliado as discussões sobre

cidadania no Recife. Para saber

mais sobre o grupo Direitos

Urbanos, principal organizador

do movimento, acesse:

direitosurbanos.wordpress.com

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entrevista

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ZUMBIDO: Professora, nos seus estudos, a senhora costuma relacionar arquitetura e os processos inconscientes, à luz da psicanálise. O que tanto procura?

LÚCIA LEITÃO: Eu quero saber o que faz quatro paredes, um teto e um piso serem considerados um lugar sagrado. Por que uma casa se torna templo. O que faz um espaço ser insubstituível. Os idosos, por exemplo, costumam sentir muito quando se mudam de uma casa, em que viveram por longo tempo, para um edifício. Por que esse sofrimento é provocado, quando do ponto de vista da arquitetura não há qualquer alteração? A pessoa permanece protegida do clima, do frio. Eu me preocupo, então, em entender essa dimensão imaterial da arquitetura.

Lúcia Leitão formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em1980. Três décadas depois, residiria na capital do mundo francófono. Foi na Universidade Paris Descartes, uma das quatro instituições autônomas que carregam o nome da Sorbonne, que concluiu o pós-doutorado. Hoje, professora e pesquisadora da UFPE, Lúcia é referência nos estudos sobre os processos inconscientes na arquitetura das cidades. Oferece sua inquietação diante do imaterial, em um universo traiçoeiramente concreto. Vê tijolos de carne e osso, onde o estímulo comum só enxerga pedras e poeira.

POR FELIPE RESK

a casa

que habito

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ALÉM DA FACHADA: AS CASAS E AS MULHERESDO BAIRRO DE SANTO AMARO, NO RECIFE

A f o r m a c o m o a s p e s s o a s

representam a si mesmas diz muito

sobre sua condição de vida. Esse ponto

é defendido pelo antropólogo

colombiano Arturo Escobar, que

ocupa-se do estudo do desenvol-

vimento, isto é do processo de

constituição de maneiras de pensar e

de agir. Aqui, algumas moradoras de

Santo Amaro desenham suas casas

como veem, deixando pistas

sobre o que não pode

ser fotografado - e

sobre o que sempre

sonharam que fosse.

POR FELIPE RESK

cristiane feitosa (à direita), 32 anos, mora de aluguel

jéssica farias, 22, pintou a casa para recepcionar o bebê

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Santo Amaro contém, dentre outras áreas, a região da Ponte do Maduro,

que abriga mais de oito mil famílias sem o título de posse de suas casas.

Entre 1940 e 1944, provenientes do interior de Pernambuco, aportaram os

primeiros habitantes. A área era alagadiça, por conta do mangue.

Palafitas foram levantadas com taipa ou erguidas com restos de material

de construção. No início, houve a resistência da Prefeitura e da Marinha,

que fiscalizavam a área para retirar os ocupantes. Hoje, 46% dos

moradores de Santo Amaro vivem lá há mais de uma década.

irani ribeiro, 62, com

a neta. tem filho usu

ário de drogas

mirele, de 7 anos, riscou os nomes da família no muro de casa

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Z: Então, considerar as construções como resposta às necessidades físicas do homem é incorrer em reducionismo?

LÚCIA: A arquitetura é muito mais do que pedra e cal. Nos acostumamos com a noção de que se trata de algo material, concreto e objetivo, mas essa é só uma face da moeda. Existe a outra face, subjetiva. Construímos a cidade não apenas porque é necessário um lugar para morar ou para trabalhar. Não se resume a funções objetivas. A cidade, como arquitetura – como objeto construído –, é um elemento substitutivo de perdas fundamentais do sujeito. Portanto, tem a ver com o modo como a gente se constitui como sujeito.

Z: De que tipo é essa relação que a cidade estabelece com os sujeitos?

LÚCIA: Eu sempre recordo que a palavra metrópole é formada a partir do radical grego que significa útero. A cidade tem função de mãe. Está relacionada com a perda do lugar seguro. Não é à toa que dizemos “minha cidade” para o espaço em que nos sentimos mais à vontade. Ela desempenha um papel de proteção que é inconsciente, relacionado ao desamparo humano de existir. Isso dialoga com os estudos de (Martin) Heidegger sobre o habitar. Habitar é mais do que morar em uma casa qualquer: é uma condição da dimensão humana, quando a gente exercita a própria humanidade.

Z: Que sentidos podem ser atribuídos à casa?

LÚCIA: Existe a noção de casa como referência parental, relacionada à ideia de casa do pai. Na Bíblia, por exemplo, quando se diz “a casa de” se fala de origem e de eternidade. Quando Jacó se apaixona por Raquel e é apresentado ao pai dela, ele fala “sou Jacó da casa de Abraão”. Há um sentido de pertencimento, de origem, de identidade. Mas, quando o salmista diz “habitarei na casa do senhor para todo o sempre”, essa casa é a eternidade. Ela apresenta essa dimensão no ponto de vista do psiquismo humano. A própria palavra arquitetura vem de arché, que, na filosofia, é fundamento, princípio, origem.

Z: Se a casa absorve as feições dos moradores, que rosto tem a cidade brasileira?

LÚCIA: Em uma das minhas pesquisas, ao reproduzir as marcas identitárias da Casa Grande colonial pude perceber que se constrói a cidade contemporânea do mesmo jeito, sem se dar conta. Para Gilberto Freyre, a Casa Grande patriarcal é um modelo, e não uma casa em particular. Aparentemente, ela é completamente distinta, mas se você for ver os atributos, apresenta os mesmos elementos dos edifícios de classe média alta de hoje. São fechados neles mesmos, com muros voltados para dentro. Diante da violência urbana, o argumento da segurança serve como uma luva. Mas há outros fatores. Inclusive, tem a ver com o fato de formar uma elite, que é apartada da classe média baixa.

Madeira, matéria morta

Mas não há coisa no mundo

Mais viva do que uma porta.

Eu sou feita de madeira Eu abro devagarinho

Pra passar o menininho

Eu abro bem com cuidado

Pra passar o namorado...”

(Vinícius de Moraes - A Porta)

entrevista

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Z: Para a senhora, o que mais sobrou da Casa Grande na moradia brasileira?

LÚCIA: Não dá para pensar isso em relação a uma instituição em particular. É preciso ver as marcas da sociedade que se reproduzem na arquitetura da cidade como um todo, e não em um edifício isoladamente. A Casa Grande deixou como herança a falta de preocupação com o que é público. Ela privilegia o privativismo, o centralismo e a domesticidade. Esses elementos acabam formando a base dos valores sociais, que produzem um espaço de negação da rua, ou seja, do que é público.

Z: E de que forma repercute essa não-valorização do espaço público?

LÚCIA: Se é de todo mundo eu não me incluo, porque não há valor. Eu só me incluo no privê, privacité, prime. É uma sociedade que valoriza ao extremo as marcas do privilégio. E onde há privilégio não há direito. Há exclusão, segregação. Por que as pessoas andam pelas ruas com seus carrões importados, abrem a janela e jogam a latinha de cerveja ou a ponta de cigarro para o lado de fora?! Porque o espaço é público. Na cabeça do brasileiro não tem dono e deve ser cuidado por algum outro. O outro que, antes era o escravo. Hoje é o serviçal desvalorizado socialmente.

Z: A senhora estudou no exterior. Essas marcas também são percebidas lá fora?

LÚCIA: Na França, o choque cultural é muito grande. Você vai ao supermercado e embala suas compras, não há ninguém para fazer isso por você. Cada um deve resolver sua própria vida, independente da classe social. A lógica é do público, porque a sociedade é “igualdade, liberdade e fraternidade”. São outros valores. A classe média “média” mora em apartamentos superpequenos e vive a vida pública. Todo mundo frequenta os cafés e anda nos parques. São outras marcas identitárias e outro espaço para viver, que responde a reclamos sociais e, segundo o que eu defendo, a demandas psíquicas também.

Z: Por fim, quais são as razões para que seja, então, uma “particularidade” brasileira?

LÚCIA: O Brasil foi uma das últimas sociedades a deixar de conviver com a escravidão. Conviveu com a ditadura até recentemente e convive até hoje com a tortura. Embutida, mas a gente sabe que ela está aí. Diante de todas essas marcas, não se pode esperar que todo mundo seja cortês. Sabemos que temos uma vida urbana hoje muito ameaçada, com muita violência. Mas, no meu modo de ver, ainda assim, este é só um lado da moeda...

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“Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o

mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço

com imagens de [...] moradas [...]. Pouco antes

de morrer, descobre que este paciente labirinto

de linhas traça a imagem do seu rosto.” (El Hacedor, 1960)

entrevista

Como pensadora, Lúcia oferece sua inquietação diante do imaterial, em um universo

traiçoeiramente concreto – confiando, sobretudo, no que Jorge Luis Borges afirma:

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festa da lavadeira, bairro do recife, 2012

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osa Selvagem, Ilha do Destino, Xuxa e Tancredo Neves.

A Zona Sul do Recife está repleta de comunidades. RPerguntando aos moradores da região, poucos

saberão dizer, pelo nome, onde fica cada uma. “Existe Ilha do

Destino?”, questionou-me curiosa a mãe de uma amiga

durante a pesquisa para esta reportagem. Uma das

comunidades do bairro de Boa Viagem, entretanto, não está

na margem, mas no centro. De nome curioso, todos sabem

onde fica: Entra Apulso, bem no caminho do shopping.

Quando Maria José da Silva chegou de Ribeirão, carente

cidade da Mata Sul pernambucana, há 41 anos, se instalou

em uma palafita nos manguezais distantes de um Recife que

ainda admirava suas pontes do centro. Na época, a Zona Sul

mantinha status de veraneio. “As coisas ainda começavam a

chegar. Só tinha a praia, a Avenida Conselheiro Aguiar e

muito mato, mangue”, lembra Dona Maria. Sentada em uma

cadeira, às margens do que um dia era alagado e hoje é uma

movimentada avenida, comemora os avanços advindos do

passar dos anos. Fala das palafitas a se perder de vista, dos

lixos entulhados na porta de casa, do mar de lama. Tudo

ficou para trás.

Muitos dos benefícios Dona Maria atribui ao primeiro

shopping da capital pernambucana, o segundo do Nordeste.

Ao final dos anos 1970, teve iniciou a construção do

Shopping Recife. A praia de Boa Viagem já ganhava cara de

bairro residencial e os primeiros prédios altos começavam a

surgir na paisagem: Holiday, Acaiaca, Califórnia. Todos

ainda vivos. Junto ao boom imobiliário, chegaram os

trabalhadores, vindos do interior, em busca de

oportunidades: homens para a construção civil; mulheres

para os lares que se formavam. A desigualdade recifense

começava a ganhar sua forma mais genuína. Os prédios

avançaram e se aproximaram da miséria, empurrada cada

vez mais para longe do mar.

Resistente, foi nessa época que a Entra Apulso ganhou seu

nome. Onde hoje estão as principais avenidas de Boa

Viagem, havia somente barracos. Com a especulação

imobiliária, comunidades como a Mata Sete começaram a ser

transferidas para áreas de manguezal virgem e,

posteriormente, foram destruídas; os pobres subiam os

morros e bairros como o Jordão e Ibura começavam a se

consolidar. Os resistentes, entretanto, continuaram na área

e se mantiveram como os moradores mais antigos da região.

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18

vist

as

POR VITOR TAVARES

reportagem

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Dona Maria confessa que sua vida está como um paraíso e

considera o empreendimento vizinho um marco. “Meu filho,

isso aqui agora tem luz, água. Eu tenho televisão, pego

ônibus perto e ainda passeio no shopping”, compara com os

tempos difíceis. Ainda assim, relembra outras Marias e

outros Josés que se foram da comunidade, para dar lugar a

empreendimentos. Hoje, escolas, galerias e prédios têm os

muros colados aos de sua casa. “Todo mundo quer ficar

perto do shopping, né? Aqui embaixo, parece que a gente é

um peixe dentro de um aquário, ficou tudo apertado”.

Do outro lado da calçada, Josefa Costa viu, ao longo dos 50

anos como moradora da Zona Sul, sua casa ser demolida

duas vezes e perdeu as contas sobre quantas vezes precisou

se mudar. “Boa Viagem todinha era um bairro da gente. A

gente ia catar caranguejo, marisco, no mangue, para comer.

Era muito difícil. Hoje, o bairro é de outro tipo, né? De outra

gente”. Sentada, junto ao seu cachorro, olha o movimento

apressado de carros importados e pessoas arrumadas, de

passos largos para entrar no shopping.

Dona Josefa mora em um beco que, separado por uma

grade, sai na Avenida Visconde de Jequitinhonha, a principal

da Entra Apulso. Em sua extensão, há cerca de duzentos

pontos comerciais, entre lojas, salões de beleza, bares e

restaurantes – que vão da culinária turca à italiana. De

acordo com a associação de moradores da comunidade,

apenas dois desses estabelecimentos pertencem a pessoas

que vivem atualmente na favela. Ao final do dia, a riqueza

produzida ali vai quase toda embora.

Lot Sena, morador da Entra Apulso há mais de 30 anos, é o

atual presidente da associação. Na sede da entidade, guarda

documentos e fotos sobre a história da comunidade e dados

da realidade local. Na Av. Visconde de Jequitinhonha, o

comércio transformou a área, que antes era só de palafitas,

em uma rua saneada, com calçada, água encanada e luz

elétrica. Basta uma curva para desbravar qualquer um dos

becos, e tudo muda.

A Entra Apulso que fica além da avenida que dá no

shopping não tem restaurante turco ou salões de beleza com

máquinas de última geração. Crianças dividem o espaço com

o esgoto a céu aberto. Casas de alvenaria se misturam ainda

com muitas residências de madeira. No meio do caminho,

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a p

ulso

reportagem

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uma moradora me convida a visitar o local em época de

chuva. “Não tem condição de vida, não”.

Em uma das vielas, uma casa se destaca. De portas abertas,

dá para se ver uma cozinha quase industrial, produzindo

comidas de milho. A dona é Luzinete Santos, uma das

antigas moradoras. Com o tempero especial que empresta às

pamonhas e canjicas, a empresária tem venda fixa para uma

famosa rede de cafeterias da cidade e diz que fatura bem. Ela

teria até condições de se mudar, mas nunca nem pensou.

“Tenho meus amigos, tenho o que preciso perto. Boa Viagem

é meu bairro e não saio daqui não”.

Apesar dos esgotos que persistem e do trânsito

engarrafado na porta de casa, é difícil achar alguém que dali

queira ir embora. Segundo o presidente da associação de

moradores, é quase impossível encontrar alguma casa para

comprar ou algum espaço para se construir mais. A

comunidade também é considerada uma Zona Especial de

Interesse Social (ZEIS), desde a primeira gestão de Jarbas

Vasconcelos como Prefeito do Recife, em 1988.

Com o espaço já reduzido, na comparação de 50 anos atrás,

a Entra Apulso não deve mais sumir da paisagem de Boa

Viagem. Dona Maria José da Silva, que viu os amigos

partindo, os queria de volta. Já Dona Josefa preferia não ficar

mais atrás de uma grade por causa de tanta gente

desconhecida que passa pela sua porta. Alguns

frequentadores do shopping também não gostariam de

passar pela favela no caminho das lojas de marca. A pulso,

terão que continuar passando.

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Para ser ZEIS, a Constituição Brasileira requer

da região caráter predominantemente ha-

bitacional. Além disso, os moradores precisam

apresentar carência de serviços de infra-

estrutura básica e viver com renda familiar

média igual ou inferior a três salários mínimos.

O principal objetivo é impedir que a especulação

imobiliária tome conta de alguns lugares da

cidade e invadam ainda mais a área da favela.

Entra Apulso ocupa uma área de , o Aque equivale a oito

campos de futebol.

ão aproximadamente , de acordo Scom o Instituto Brasi-

leiro de Geografia e Estatística.

ais de estão cadas-Mtradas na Empresa

de Urbanização do Recife (URB).

maioria das moradias se encontra inserida em um A formado

entre as ruas Bruno Veloso (que margeia o shopping), Tenente Domingos de Brito, Ribeiro de Brito e a Avenida Hélio Falcão.

levantamento da asso-ciação de moradores Oaponta que :

não há posto de saúde, saneamento e cerca de 70% das crianças precisam sair da comunidade para estudar.

8.3 hectares

10 mil habitantes

duas mil casas

quadrilátero

falta tudo

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festa da lavadeira, bairro do recife, 2012

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“Aqui, tudo parece que era ainda

construção, e já é ruína.” (Caetano Veloso)

HÁ VIA

ias expressas, túneis, pontes, viadutos. Constrói-se o Em 2007, a Prefeitura realizou o primeiro cadastro dos que chamam de modernidade para os carros moradores no catálogo da desapropriação. Entretanto, foi Vcorrerem depressa pelas ruas. E atravessam, passam no final do ano passado que teve início o processo de

– por qualquer lugar. Por dentro do mangue e dos morros, mudança das famílias. Para elas, duas alternativas: receber por cima dos rios, por sobre as casas. Concreto enrijecido indenização (a ser negociada, de acordo com o valor do pela promessa de desenganchar os veículos que se esmagam, imóvel) ou migrar para um apartamento em um dos três tais quais passageiros sardinhosos nos coletivos. habitacionais construídos pela Prefeitura. Quem define se os A Via Mangue, que vai interligar o Centro do Recife e a moradores recebem dinheiro ou teto é a Empresa de Zona Sul, será, quando finalizada, a primeira via expressa da Urbanização do Recife (URB).cidade. Em média, os carros poderão trafegar a uma Um dos conjuntos está de pé no bairro da Imbiribeira. Os velocidade de 60 km/h pelos quase cinco quilômetros de outros dois, no Pina, levam o mesmo nome do asfalto. E nada os impedirá de seguir sua rota apressada. empreendimento: Via Mangue. Esses dois foram construídos Nem semáforos nem faixa de pedestres – muito menos para abrigar, preferencialmente, os habitantes das lombadas. Os ônibus, que param a cada puxada de corda ou comunidades Beira Rio e Jardim Beira Rio. A grande maioria aceno de mão, também manterão distância da via. Até vivia à margem do rio, em palafitas ou casas erguidas sobre o agosto deste ano, já são computados mais de R$ 430 milhões solo lodoso do mangue. Até agora, quase todos os em investimentos. moradores já foram indenizados ou se mudaram para um No caminho das obras, havia centenas de moradias dos apartamentos no conjunto. Mas cerca de 25% ainda erguidas há décadas. Mais de 1.5 mil famílias se dividiam em permanecem em suas casas, enrolados no processo de palafitas e humildes casas de alvenaria. Espalhadas pelos negociação.bairros do Pina e de Boa Viagem, margeavam o manguezal.

POR CAMILA ALMEIDA (COM COLABORAÇÃO DE VITOR TAVARES)

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MANGUE, Na entrada do conjunto habitacional Via Mangue, no Após reavaliação, a Prefeitura ofereceu R$ 50 mil pelo Pina, um grupo de pessoas conversava animado em frente a imóvel, mas o casal continuou tentando uma um dos apartamentos padronizados. Porta aberta, foi só contraproposta. Foi quando surgiu a oportunidade de um chegar um pouco mais perto para ver o motivo da investimento barato em uma comunidade próxima, a movimentação – lá dentro, três máquinas de videogame Encanta Moça. “A gente foi na prefeitura e assinou por R$ 50 entretinham crianças. Quitéria Maria da Conceição é a mil mesmo, para não perder a oportunidade de comprar o responsável pelo comércio. Ela não mora no habitacional, novo apartamento, que é até um pouco maior”. mas tomou emprestada a pequena sala da irmã, que mora no Após a mudança, Quitéria passou oito meses sem térreo, para conseguir tirar algum dinheiro. trabalhar. O marido, zelador, vai para o emprego de bicicleta Quitéria tem 49 anos e, desde os 14, morava na Beira Rio. – um dos motivos de não poder morar muito longe. Já “A gente que construiu aquilo ali. Não existia nada, era tudo angustiada com a falta de dinheiro, decidiu reabrir o negócio mangue. A gente ia aterrando com caixa de metralha, com no pedacinho de casa da irmã no conjunto habitacional. Da caixa de marisco...”, lembra. “Quando a maré subia, acabava Beira Rio, comunidade onde morou a vida inteira, quase todo com tudo dentro de casa”. Sua moradia, de alvenaria, tinha mundo se mudou para lá. Alguns amigos, no entanto, até primeiro andar. O de cima abrigava a filha, o genro e os continuam aguardando por indenização. “Tanta gente não dois netos. Embaixo, Quitéria vivia com o marido. A recebeu casa ainda. Mora no lugar há tanto tempo e eles vêm construção era grande: dois quartos, corredor, um banheiro dizer que a pessoa não tem direito à casa”.na parte de trás. Todos os anos, pagava religiosamente o Edna Cardiná Xavier Coimbra tem 84 anos de idade e, Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). segundo ela, ascendência em Portugal. É viúva há 39 anos e Em agosto do ano passado, funcionários da Prefeitura trabalhou como empregada doméstica durante toda a vida foram fazer a medição do espaço. Após avaliação, afirmaram em casas de famílias ricas do Recife. “Todo o pessoal da 'alta' que ela seria indenizada. O terreno pertencia ao Estado, e me conhece”, conta orgulhosa. No começo deste ano, se não entraria na conta; contudo, os gastos com a construção mudou para um dos apartamentos no habitacional Via da casa, registrada no nome de Quitéria, seriam ressarcidos. Mangue. Lá, mora com o filho e com o neto: “amarelo”. Em um primeiro momento, foram oferecidos R$ 35 mil pelo “Espera um pouco, vou lá dentro buscar ele para vocês imóvel: apenas os aposentos de baixo, pois a negociação do conhecerem”, diz sorrindo. Quando volta, traz um primeiro andar foi feita à parte. Quitéria e o marido cachorrinho manso, que o filho adotou para fazer companhia recusaram. “Eu tinha meu negócio lá em casa. Vendia aos dois. bebidas e tinha essas máquinas de jogos”, pondera.

Habitacional Via Mangue

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HAVIA Dona Edna morava na Rua do Patrocínio, número 13. Lá carregando baldes de água de lá para cá. Assim como Dona na Beira Rio, sua casa tinha dois quartos, duas salas, um Edna, morava na Rua do Patrocínio. No mesmo terreno,

havia três casas. A da mãe, a da irmã e a dela. Suas parentas banheiro. Tudo na cerâmica. Tinha até um terreno grande receberam um apartamento cada e estão morando no atrás. Deixou para trás três pés de coco, três de mamão, três habitacional. A ela foi proposta indenização. Avaliaram a de banana e um de pinha. “Tudo safrejando”. Dona Edna casa em R$ 45 mil. Por enquanto, compartilha do espaço da vendia as frutas na comunidade para complementar a

aposentadoria. Na varandinha minúscula em frente ao mãe no habitacional Via Mangue, porque ainda não apartamento térreo no Via Mangue, uns vasinhos de planta encontrou um lugar bom para morar. “O jeito é pegar

indenização... Se não tem jeito, fazer o quê. Na rua eu não repousam ao lado da porta. Os únicos remanescentes da vou ficar”.antiga moradia. “Mas aqui é um inferno. Esses meninos mal

educados ficam passando e arrancando as folhas”, reclama. Vera, que morava há 30 anos na Beira Rio, trabalha como Da ex-casa, Dona Edna guarda as lembranças de vendedora de bebidas na praia. Aponta para a carrocinha, conforto. Até armário embutido tinha. “Era um lazer. Os estacionada em uma das vagas para carro. No quartos eram enormes. No banheiro, cabia um colchão de estacionamento do habitacional, veículos novos (e caros) se solteiro dentro do box”. Nada recebeu pelo pomar, muito destacam da realidade modesta. “Você acha o quê? Que esses menos pelo muro que resguardava o terreno ou pela carros são de gente pobre, daqui da comunidade? Muita cerâmica. Móveis e eletrodomésticos acabaram desfeitos. gente que não devia veio morar aqui – e levou mais de um Não cabiam na nova residência. apartamento”. “Eu não me sinto bem aqui porque é muito quente”, se Ela segue na busca por um canto para ficar. E não se queixa. “Quando a gente chegou, foram quatro dias sem um importa se for morar longe do habitacional. “Às vezes é até pingo de água. Logo depois, choveu muito e alagou tudo melhor, sabe, evita briga com a família”, ri falando em dentro do apartamento”. Para além dos problemas de cochicho e olhando para a mãe, que está sentada na infraestrutura, há ainda os conflitos por não conseguir varandinha. Há dois meses Vera é viúva. O marido morreu exercer sua autoridade no próprio ambiente. “A gente não de um problema no coração.pode fazer nada aqui. Não pode pintar, não pode bater um “Eles colocam o nome do projeto de Via Mangue, mas de prego na parede. Morar é ter um lar, sabe? Levantar Via Mangue não tem nada. Eles tão é mexendo com a despreocupada... Por enquanto, não tenho isso mais não”, moradia”. E ela diz que, com o tempo, tudo o que ela viu ser lamenta. Isso sem contar a insegurança. “Na primeira erguido, será colocado a baixo. “Eles vão fazer muito mais, é semana que eu estava aqui, me deparei com um menino só questão de tempo. Daqui a uns anos, quando eu estiver tentando entrar na minha casa pela janela da cozinha”. velhinha, não vai ter mais nada, ninguém vai saber o que era Vera Lúcia Ferreira da Silva, de 40 anos, estava Beira Rio”.

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GENTE. Em frente ao habitacional, dividindo espaço com os presente dali a dois dias. Pela casa, estavam oferecendo R$ 5 tratores, algumas casas ainda restam. Entulhos, pedras mil. “Meu filho está muito mal. Não consegue mais fazer quebradas e pedaços de ferro se fazem de quintal. Não há nada, está com depressão, nem ao trabalho quer ir. Ele não mais as ruelas que havia; e algumas casas ficaram ilhadas em está bem da cabeça”, confessou. Abriu a portinhola azul da meio a alagados. Maria Helena Barbosa Oliveira estava casa do filho para mostrar os aposentos, sem água e luz. Em perambulando por entre os escombros, conversando com os um cubículo, Ailton leva a vida com a esposa e o filho.poucos amigos que restaram. Não mora mais lá, está com Maria do Carmo conta que, certo dia, as máquinas estavam apartamento no habitacional. Mas foi só chegar perto para na comunidade. “São umas máquinas enormes, que tem um ela ir mostrando as marcas nos braços e nas pernas. “Aquele braço e uns dedos. Elas destroem as casas num peteleco”. apartamento me deixa doente. Faz calor demais. Olha para Quando os funcionários da Prefeitura entraram na casa da minha pele, está toda ferida. Eu tenho alergia ao meu família, Caique, de quatro anos, falou: “Moço, não destrói apartamento”. Mostrou o local onde morava antes, a casa minha casa, não. Onde eu vou botar meus brinquedos?”completamente demolida. Reginaldo Gomes da Silva, de 28 anos, e Ticiana Gomes Maria do Carmo da Silva Cirino, 59 anos, também tem da Silva, de 24, também vivem numa casinha da Beira Rio. apartamento no habitacional. Mas o filho, a esposa e o Moram com mais dois filhos, vários gatos e um cachorro. Os netinho Caique continuam morando na Beira Rio. Ela foi animais que foram ficando pela comunidade, abandonados, quem mostrou o caminho para a Rua do Patrocínio. Caso eles adotaram. Estão na luta com a Prefeitura para contrário, seria impossível identificá-la. No caminho, só os conseguir aumentar o valor da indenização. A quantia destroços do que restou das casas, amontoados no terreno ofertada também é de R$ 5 mil. “Com esse dinheiro a gente que mais parecia um cenário pós-guerra. No espaço, vai morar onde? Não dá para comprar casa em lugar algumas casas remanescem inteiras, em meio ao nada, nenhum. Só se a gente se mudar daqui para outra casa de aguardando negociação. maré, né?”, lamenta Ticiana. E o marido completa: “a gente Logo que chegou para mostrar a casa do filho, a vizinha só quer moradia digna. Não foi isso que a presidenta Dilma trouxe um papel. Era uma convocatória para que Ailton disse? A gente só queria um apartamento ali no fosse até a URB. Deveria portar alguns documentos e estar habitacional, poder ter um lugar bom para morar”.

Palafitas

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ernambuco se transformou em um canteiro de obras. Na paisagem, o mercado imobiliário aquecido. Em cada P esquina, uma nova construção. A realidade recente do Estado, impulsionada pelos investimentos das novas indústrias e pelo bom momento da economia do país, tem reflexos em diversos campos do dia a dia. A engenharia tornou-se a profissão mais promissora para os jovens universitários, e a cidade está se verticalizando. Sem contar viadutos, estradas, pontes e túneis, multiplicados para atender a uma demanda de automóveis já saturada. Em meio às novidades – e ao concreto –, o antigo contrasta-se com o moderno. Em Pernambuco, são 82 bens tombados, testemunhas de um tempo que não volta. Mais de 12.700 peças sacras inventariadas em 22 monumentos religiosos nas cidades do Recife, de Igarassu e de Olinda. Uma tentativa de resguardar artefatos que, quando conseguem sobreviver às investidas de ladrões e traficantes, sofrem as deteriorações do tempo. Há 75 anos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é responsável por identificar, documentar, proteger e promover o patrimônio cultural brasileiro. É o esforço de manutenção de uma memória impressa em fachadas, pinceladas, talhas e detalhes. Elementos da paisagem diária que não têm vida, mas são ricos em histórias. E é a conta-gotas, com responsabilidade e cuidado, que este trabalho de preservar o vínculo com o passado é feito. Na base da pirâmide da reconstituição, encontram-se os restauradores, cuja vocação e talento se unem à vontade de proteger. Ainda que haja certo reconhecimento do trabalho desses profissionais – afinal, as obras são divulgadas quando concluídas –, a realidade da categoria ainda é muito difícil. Há grande defasagem de restauradores no mercado, o que o torna bastante vicioso. Sem cursos técnicos disponíveis no Estado, são chamados sempre – e apenas – aqueles cujo portfólio já é conhecido. A burocracia para realizar um projeto é outro entrave. Além da demora para sair do papel, uma recomposição chega a durar mais de dez anos porque editais pouco flexíveis deixam de contemplar as dificuldades e imprevistos a que toda obra está sujeita. Com carteira assinada, mas sem seguridade e estabilidade financeira, os restauradores veem-se obrigados a aceitar qualquer salário e têm que se render a empreitadas particulares nas entressafras de obras – haja vista a imprevisibilidade do próximo serviço. Hoje, alguns restauradores, em Pernambuco, lutam por um sindicato ou associação que represente a categoria e que combata as dificuldades às quais estão submetidos. E, assim, atravessando os obstáculos, restauram, diariamente, o desejo de trabalhar.

a arte de

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e tempos em tempos, eles vão à igreja. Apesar da Flávia Zanardini é a mais experiente dos três. Contava 20 frequência não ser constante, quando chegam à anos quando interrompeu a graduação em letras e o estágio Dcasa de Deus, passam horas no altar. Por semanas e em educação infantil para mudar de profissão. Na época, sua

meses, aquele é o ambiente de refúgio, onde se sentem sogra, restauradora, precisava de ajuda. Flávia, interessada realizados. Talvez, nem o mais fervoroso dos clérigos tenha em artes, resolveu experimentar os primeiros passos de uma guardado tanta atenção no imaginário e nos detalhes ali rotina que repetiria pelos 19 anos seguintes.impressos. Eles conservam uma experiência típica de quem O entendimento pelas palavras tornou-se apreço pela convive no silêncio da descoberta, apenas olhando, sentindo, imagem. Atualmente, é reconhecida não só por sua aptidão, tocando. mas, em especial, pelo jeito cativante. Determinada, Não são padres e nem beatos fanáticos. Católicos e paciente, talentosa, delicada, atenciosa, ágil, responsável, Kardecistas, enxergam arte onde muitos veem costume. Flávia reúne todas as características de uma boa Coincidência ou não, o espaço em que trabalham restauradora.minuciosamente foi, há centenas de anos, escolhido para Hoje, Flavinha, como é chamada, gerencia os trabalhos simbolizar o sacrifício – uma permanente lembrança de dor em que atua. Coordena os restauradores e têm a difícil e generosidade. missão de intermediá-los com os órgãos que financiam a Dor e generosidade. Flávia, Goretti e Eric conhecem bem obra. Lida com a pressão de cumprir os prazos e também esse binômio. Os três são restauradores e têm em comum o cuida para que o material não seja desperdiçado. Como a talento e uma grande amizade. Compartilham um dom verba para as obras vêm de editais de financiamento, o amaciado pela paciência, pela técnica e pelo amor à profissão. orçamento é previsto antes mesmo de o trabalho começar. Juntos, participaram de quase todo trabalho de reparo dos Qualquer desperdício pode significar a diminuição da mão monumentos religiosos de Pernambuco. Somados, são mais de obra para compensar as perdas.de 30 anos de experiências em restauro. “Flavinha é muito diplomática, virou uma espécie de

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POR DENNY FARIAS

deixar tudo

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defensora dos restauradores. Ela, por ainda colocar a mão na mesa, no centro da sala, uma moldura do século XIX, massa, sabe que tem coisas que fazem parte do trabalho, sabe também coberta com ouro. Cheia de detalhes caprichosos, o que pode cobrar e quando tem que ter paciência”, diz ela repousa enfraquecida com cicatrizes da ação dos cupins.Goretti Araujo, restauradora há dez anos, oito dos quais é Entrando pela casa, o quarto cedeu espaço para uma oficina. amiga de Flávia. Quando não está nas obras e nas igrejas, Flávia passa a “Eu faço o que for mais produtivo, acho que tem que ter, maior parte do tempo no ateliê próprio, trabalhando ou se sim, uma pausa para o café, para conversar. Tem que ter divertindo. “O que é mais inspirador é que as técnicas que eu integração. A gente não é uma fábrica nem um monte de faço na minha casa, tudo o que você tá vendo aqui – as máquinas. Pelo contrário, estamos lidando com arte. Mas ferramentas, os produtos, a cola feita à base de cartilagem de isso não quer dizer que eu relaxe. Tanto é que, na maioria das coelho, o bolo armênico, que só é encontrado em minas obras, a gente consegue entregar antes do prazo – mesmo escondidas na Armênia –, é a mesma coisa que é feita há quando parece impossível“, afirma Flávia. séculos. Desde que a restauração começou, são técnicas Na casa dela, deparei-me com o universo da arte do refazer. usadas na Itália e na Europa de uma maneira geral, que A casa-ateliê é repleta de lembranças das obras de que permitem você sentir essa ligação. Isso é muito legal”.participou. Logo na entrada, apoiada na parede, uma pintura De volta à sala, foi no sofá que conversamos, juntos a Eric sacra feita sobre uma placa de ferro do século XIX. Ainda em Guimarães e Goretti. Flávia compara seu trabalho ao de um processo de recuperação, a peça tem quase um metro de cirurgião plástico. Analisa cada aspecto; repensa as altura. consequências. Com cuidado, refaz aquilo que já não está Acima do artefato, outra recordação: uma cópia de um perfeito. A relação com a medicina ultrapassa as metáforas. ornamento recriado na restauração do Teatro de Santa Assim como o cirurgião, um dos instrumentos utilizados Isabel, onde Flávia pôde acompanhar alguns ensaios da pelos restauradores é o bisturi. Seja em uma peça de gesso, Orquestra Sinfônica do Recife. Uma flor folheada a ouro. Na pintura em parede, em madeira ou em cantaria, a ferramenta

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velhinho

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é usada para retirar as camadas de tintas sobrepostas à disseram que parecia Jerusalém. Fizemos uma remoção e um pintura original. corte estratigráfico para identificar melhor. Eram várias Além dele, materiais de dentistas são adaptados pelos casas, uma pintura parietal do século XVII. Registramos em restauradores. Lupas, espátulas de vários tamanhos, sondas fotos, mas tivemos que cobrir com a pintura do altar, porque exploratórias, pinças, raspadores periodentais. “Até a faca não era parte do projeto original da igreja. Só quem estava para cortar o ouro é especial. A gente trabalha com ouro lá, trabalhando, que teve a oportunidade de ver. Essas vindo da Itália. Há o da Alemanha também, mas o melhor é o descobertas é que são incríveis”, relata Flávia.importado da Itália. E são folhas muito finas. Então, são Foi uma tarde de histórias. Lembranças em que um necessárias ferramentas próprias para lidar no manejo”, funcionário caiu da escada no altar e quebrou o braço, explica Flávia. ventiladores entraram em curto-circuito e ameaçaram “Quando vamos manusear o ouro, o ambiente tem que artefatos históricos e almas penadas foram vistas vagando estar fechado, sem ventilação nenhuma e precisamos botar pelas igrejas fechadas para reformas. Um trio que intenciona uma máscara para não respirar em cima dele. Qualquer deixar “tudo velhinho em folha”, como diz Flávia. “Quando coisinha ele se desfaz”, conta a restauradora. Serra, você começa a usar a imaginação é hora de parar de aspirador de pó e furadeira também fazem parte do conjunto restaurar”, conclui.de ferramentas. Além de testemunhos sinceros, ofereceram-me comida e Flávia e Goretti trabalharam na restauração da Igreja do aceitei. Insistiram em me acompanhar até o terminal de Carmo, em Olinda. De lá, carregam não só o orgulho por ônibus do bairro de Cajueiro, na Zona Norte do Recife, um mais uma obra concluída, mas também o sabor da pouco distante da casa de Flávia, onde estávamos, para descoberta. “A gente estava cuidando da pintura da parte voltar para a redação. No ônibus da volta, entrei com a central do altar. Atrás dele, descobrimos uma pintura bem sensação de ter descoberto um mundo novo – escondido rústica do que parecia ser uma cidade. Todo mundo ficou debaixo de diversas camadas de superficialidade do senso-encantado com aquilo, ninguém esperava. Alguns até comum.

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em folha

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reportagem: camila almeida, denny farias, eduardo donida, felipe resk, terni castro e vitor tavares | fotografia e diagramação: camila almeida | edição de texto: felipe resk | revisão: vitor tavares | orientação: wilma morais.

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