PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
26ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO
Registro: 2013.0000151425
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº 0173614-
62.2008.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante RENATO
JORGE VALENTE, é apelado VOTORANTIM CELULOSE E PAPEL S/A.
ACORDAM, em 26ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de
Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento em
parte ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra
este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores
FELIPE FERREIRA (Presidente sem voto), RENATO SARTORELLI E
VIANNA COTRIM.
São Paulo, 20 de março de 2013.
Reinaldo Caldas
RELATOR
Assinatura Eletrônica
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Apelação nº 0173614-62.2008.8.26.0100 - Voto 7832 2
PJCR
V o t o: 7832
Apelação com Revisão nº 0173614-62.2008.8.26.0100
Origem : São Paulo Foro Central - 31ª Vara Cível
proc. nº 583.00.2008.173614-1
Apelante : RENATO JORGE VALENTE (autor)
Apelado : VOTORANTIM CELULOSA E PAPEL S/A (ré)
Juíza a quo: Cláudia Maria Chamorro Reberte
Apelação Obrigação de fazer Entrega
intempestiva de documentação e de veículo arrematado
em leilão Danos materiais Reembolso dos valores
comprovadamente desembolsados com estacionamento
e utilização de táxi Descabimento de liquidação na
hipótese, em que o valor dos danos pode ser aferido
mediante simples cálculo aritmético - Cláusula penal
estipulada apenas em favor de um dos contratantes
Interpretação paritária da pactuação - Inteligência do art.
408 do CC/02 - Disposição contratual que deve voltar-se
a ambos os contratantes - Entendimento do E. STJ
Obrigação cumprida fora do prazo ajustado Redução
equitativa da penalidade - Aplicação do art. 413 do
CC/02 à hipótese Sentença modificada Recurso
parcialmente provido.
1. Autor de “ação de obrigação de entrega de coisa certa
c.c. reparação de danos materiais” apela de r. sentença que julgou
parcialmente procedente o pedido para condenar a ré a pagar R$ 340,00,
com atualização monetária a contar da data dos desembolsos, acrescidos
de juros de mora de 1% ao mês a partir da citação, e determinou a divisão
de custas, despesas processuais e honorários advocatícios (fls. 85/90).
Sustenta o apelante, em suma, que:
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a) o juízo 'a quo' entendeu que o pedido de reparação de
danos materiais relativo à condenação da ré ao pagamento de R$ 40,00 por
dia de atraso na entrega dos documentos não poderia ser acolhido porque o
autor não comprovou os gastos diários, semanais ou mensais, relativos ao
desembolso. Contudo, o autor havia requerido que a condenação da ré
relativa às despesas de táxi fosse apurada em fase de liquidação, pois
quando ajuizou a ação não tinha em seu poder os documentos do veículo e
não podia, de antemão, fixar o montante do prejuízo;
b) em primeiro grau houve interpretação gramatical de
cláusula penal, que previa multa compensatória no importe de 1% sobre o
valor do veículo em caso de atraso do autor na retirada do bem de seus
pátios. Assim, de rigor que tal cláusula, inserta em contrato de adesão, seja
interpretada a fim de que a penalidade valha para ambos os contratantes e
não só em favor da ré, nos termos do art. 408 do CC/02;
c) aplicável as disposições do Código de Defesa do
Consumidor à hipótese, especialmente a norma inserta no art. 47 do CDC,
uma vez que a ré, fornecedora, com habitualidade, aliena os bens de sua
frota regularmente; e
d) o autor comprou, pagou, mas não recebeu veículo
arrematado em leilão. Assim, diante da privação do bem por
aproximadamente três meses e das diversas vicissitudes que teve que
suportar, tais como chuvas, esperas em vias públicas, desembolso de
dinheiro e frustrações, de rigor que seja indenizado pela ré no valor integral
de seu prejuízo e não apenas em R$ 340,00, quantia muito aquém do que
gastou para ingressar com a ação R$ 4.000,00 de honorários e
aproximadamente R$ 600,00 de custas processuais.
Pugna pela condenação da ré: a indenizar as despesas
que suportou com utilização de táxi no período em que foi privado de seu
veículo, com quantum debeatur a ser fixado em fase de liquidação; ao
pagamento de multa prevista em cláusula penal fixada somente em favor da
requerida, no importe de 1% sobre o valor da arrematação do bem por dia
de atraso no cumprimento da obrigação; e ao pagamento das verbas
sucumbenciais e honorários advocatícios no percentual de 20% sobre o
valor da condenação.
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Recurso tempestivo, preparado e com resposta.
É o relatório.
2. O recurso será parcialmente provido.
O autor ajuizou ação com vistas à condenação da ré ao
pagamento de multa contratual e ressarcimento de despesas, uma vez que
em 16.04.08 arrematou um veículo VW Gol Power 1.6, 2004, em leilão
promovido pelo Portal Superbid e apesar de ter efetuado o pagamento do
lance tempestivamente, não recebeu o veículo no prazo de 20 dias a contar
do efetivo pagamento, nos termos contratados.
Ante a demora de oito dias de atraso na entrega do bem
o veículo foi entregue em 28.05.2008 quando deveria ter sido entregue em
20.05.08 -, postulou aplicação de penalidade inserta no contrato firmado
entre as partes, consistente no pagamento de 1% do valor do bem por dia
de atraso em caso de não retirada do automóvel, no prazo de 10 dias, pelo
comprador.
Pleiteiou ainda o autor o pagamento de despesas havidas
com estacionamento para o veículo e transporte diário, pois a ré não lhe
entregou os documentos do bem tempestivamente, impedindo a utilização
do automóvel, bem como o pagamento de 1% (R$ 200,00) sobre o valor do
veículo (R$ 20.000,00) por dia de atraso de sua entrega (8 dias), e igual
valor (1% ao dia) por dia de atraso na entrega dos documentos (a contar do
dia 03.06.08), tudo a ser apurado à época da prolação da sentença ou em
fase de liquidação.
2.1 Dos danos materiais.
Quanto à condenação da ré ao pagamento de danos
materiais e comprovação dos valores desembolsados pelo autor, a sentença
não merece reparos, pois como bem observou o juízo 'a quo':
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“(...) com relação às despesas atinentes à utilização de
serviço de táxi, comprovou o autor haver despendido apenas R$
40,00 (fl. 33), de modo que a este montante deverá ser limitada a
condenação.
Inconsistente a justificativa apresentada pelo autor, em
réplica, para não ter acostado aos autos outros recibos, já que, em
pretendendo reaver os valores desembolsados, evidente que o
interessado deveria exigir do taxista recibos, ainda que semanais ou
mensais, como forma de comprovar o prejuízo alegado.”
Ademais, a ré entregou os documentos do veículo após o
ajuizamento da ação por meio de Sedex postado em 21.07.08 e recebido
em 23.07.08. Assim, considerando que o aditamento da inicial só foi
recebido em 29.08.08, era possível a apresentação pelo autor de recibos
referente à utilização de táxi durante o período integral em que ficou privado
da utilização do bem.
Contudo, instado a especificar provas ante a impugnação
oferecida pela ré e que afirma ausência de recibos dos valores pagos por
força do uso de táxi, o requerente manteve-se inerte, sem nada postular e
nenhum documento juntou.
Ora, a prova da efetiva utilização de táxi dependia tão
somente da apresentação de recibos e simples operação aritmética para
somatória dos valores despendidos, nos termos do art. 475-B do CPC,
sendo descabida, portanto, a liquidação no caso, nos termos do
entendimento do E. STJ1. Isso porque o fato probando não pode ser
relegado, evidentemente, para a liquidação. A efetiva utilização de táxi
deveria ter sido provada na instrução e, salvo no valor reconhecido na
sentença, não o foi.
1 "...não perde a liquidez da dívida cujo quantum debeatur dependa tão somente de cálculos aritiméticos" (AgRg no Ag 688.202/BA, rel. Min. HELIO QUAGLIA BARBOSA, 6ª Turma; DJU 26.06.2006).
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Assim, de rigor a manutenção da sentença quanto à
condenação da ré ao pagamento das despesas comprovadas com
estacionamento, no valor de R$ 300,00 (fl. 32) e com serviço de táxi, no
valor de R$ 40,00 (fl. 33).
2.2 Da aplicação da cláusula penal
Quanto à aplicação da cláusula penal2, a sentença
merece reparos.
Isto porque a interpretação gramatical de cláusula penal -
que prevê multa compensatória no importe de 1% sobre o valor do veículo
ao dia, em caso de atraso do autor na retirada do bem de seus pátios
deve voltar-se a ambos os contratantes indistintamente, ainda que redigida
apenas em favor da apelada, vigorando também para o apelante que ficou
privado da irrestrita utilização do bem em decorrência do atraso na entrega
da documentação.
Acerca do tema, entendimento do E. STJ:
“RECURSO ESPECIAL - CONTRATO BILATERAL,
ONEROSO E COMUTATIVO - CLÁUSULA PENAL - EFEITOS
PERANTE TODOS OS CONTRATANTES - REDIMENSIONAMENTO
DO QUANTUM DEBEATUR - NECESSIDADE - RECURSO
PROVIDO.
1. A cláusula penal inserta em contratos bilaterais,
onerosos e comutativos deve voltar-se aos contratantes
indistintamente, ainda que redigida apenas em favor de uma das
partes.
2. A cláusula penal não pode ultrapassar o conteúdo
econômico da obrigação principal, cabendo ao magistrado, quando
ela se tornar exorbitante, adequar o quantum debeatur.
2 Cláusula penal “Se o(s) bem (ns) arrematados(s) não for(em) retirado(s) no prazo de até 10 (dez) dias úteis a contar da data de liberação de retirada, será cobrada pela guarda do(s) mesmo(s) uma taxa de 1% (hum por cento)/dia, calculada sobre o valor da arrematação. Decorrido o período de 30 (trinta) dias úteis a contar da data de liberação de retirada sem que o(s) bem(ns) tenha(m) disso retirado(s, o(s) mesmo(s) poderá(ão) ser vendidos para terceiros, perdendo o arrematante, neste caso, a integralidade do valor pago.
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3. Recurso provido.
(...)
É cediço que o contrato é fruto do acordo de vontade de
duas ou mais pessoas, destinado a estabelecer uma regulamentação
de interesses patrimoniais, constituindo uma verdadeira lei entre as
partes, tendo como um dos principais primados a força obrigatória do
seu cumprimento, conhecida como pacta sunt servanda.
Todavia, ainda sob a égide do Código Civil de 1.916, os
pronunciamentos jurisdicionais já eram favoráveis à relativização dos
contratos, à luz dos princípios da boa-fé, da função social e da
equivalência, e que vieram a se concretizar com o advento do Novo
Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor.
Dessa forma, os contratos devem ser interpretados, para
que se possa extrair a real declaração volitiva dos contratantes. Para
tanto, além dos princípios da boa-fé, da função social e da
equivalência, deve ser considerado, também, o tipo de contrato
celebrado e seus efeitos.
(...)
Nesse panorama, o descumprimento contratual implica
no dever do inadimplente em indenizar os prejuízos causados ao
outro contratante, ressarcimento este que será apurado, ou em ação
própria, em que serão discutidas as perdas e danos, ou,
simplesmente, pela cobrança da cláusula penal.
A cláusula penal, além de ser um reforço do vínculo
obrigacional, é, também, uma pré-determinação das perdas e danos,
caso algum dos contratantes deixe cumprir a sua parte da avença,
tornando-se desnecessário perquirir-se o efetivo prejuízo sofrido.
Em síntese, o descumprimento contratual gera o dever
de indenizar, que poderá ser aferido de duas formas: pela
averiguação do efetivo prejuízo sofrido, ou pela execução da cláusula
penal.
(REsp 1119740/RJ, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA,
TERCEIRA TURMA, julgado em 27/09/2011, DJe 13/10/2011)
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No caso, a cláusula penal não deve incidir em
decorrência da autorização para retirada do veículo dada pela vendedora
com 8 dias de atraso, uma vez que a tolerância de 10 dias para retirada do
bem pelo comprador dos pátios também deve prestigiar o vendedor, que no
caso, atrasou o cumprimento de obrigação contratual por apenas 8 dias.
Por outro lado, está bem comprovado que os documentos
do automóvel foram entregues somente após 51 (cinquenta e um) dias
corridos 03.06.08 a 23.07.08 (quando a ré postou via Sedex o documento
do veículo) prazo muito superior ao previsto no contrato, que estipula que
a documentação relativa ao veículo arrematado será disponibilizada pela
empresa comitente para ser retirada pelo arrematante no prazo de até 30
dias úteis a contar da data da efetivação do pagamento.
Por isso, de rigor que a cláusula penal inserta em contrato
de adesão, seja interpretada paritariamente e aplicada na hipótese, a fim de
que a penalidade valha para ambos os contratantes e não só em favor da
ré, nos termos do art. 408 do CC/023.
Ora, a cláusula penal ajustada fixou o percentual de 1%
de multa sobre o valor do veículo arrematado (R$ 18.250,00) por dia. Os
documentos do automóvel foram entregues com atraso de 51 dias do prazo
limite. Por isso, a multa contratual devida seria de R$ 9.307,50.
Porém, tendo em vista o cumprimento da obrigação
quanto à entrega do automóvel e da documentação - ainda que tardiamente
pela apelada e a condenação da apelada ao reembolso dos gastos com
estacionamento e corrida de táxi, únicos comprovados pelo autor, tenho que
deve ser aplicada a disposição do art. 413 do CC/024 ao caso.
3 Art. 408. “Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.”.
4 Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
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Assim, reduzo o valor da penalidade para R$ 3.723,00, ou
seja, 40% (quarenta por cento) do valor fixado em cláusula penal para
hipótese de descumprimento contratual.
Em suma: dá-se parcial provimento ao recurso, a fim de
determinar incida a multa contratual em desfavor também da apelada,
porém com redução do valor para R$ 3.723,00, com correção monetária a
partir de 22.07.08 um dia após o cumprimento da obrigação e incidência
de juros a contar da citação.
Tendo em vista a sucumbência recíproca e próxima de
igualitária (reparação de danos e valor da cláusula penal reduzidos v.g.),
mantém-se a repartição entre as partes das custas e despesas processuais.
3. Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso, nos termos acima.
Reinaldo de Oliveira Caldas - Desembargador Relator