A abordagem evolutiva no estudo do comportamento animal e humano
Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro
Departamento de Zoologia
Instituto de Biologia - UnB
70910-900 Brasília, DF - BRASIL
(disponível on line até a publicação)
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O estudo do comportamento
A afirmação de que um organismo se comporta de uma determinada
maneira porque “seus genes estão lhe ordenando que ele assim o faça” pode
parecer um tanto fantasiosa e, no caso dos seres humanos, até mesmo ofensiva.
Entretanto, quando consideramos a evolução de um comportamento, podemos
chegar a conclusões como estas. O intuito deste capítulo não é demonstrar a
veracidade desta afirmação, mas introduzir o leitor no pensamento evolutivo e na
maneira pela qual ele tem sido aplicado ao estudo do comportamento em geral,
seja ele animal ou humano.
Quando desejamos investigar as causas de um determinado
comportamento, que pode ser definido como o conjunto de atitudes e reações dos
organismos, duas categorias de perguntas podem surgir em nossas mentes. A
primeira refere-se às causas próximas (ou imediatas) do comportamento, de como
ele é realizado ou que mecanismos operam, dentro do animal, para que ele possa
comportar-se daquela maneira. A segunda refere-se às suas causas remotas, que
tentam explicar por que aquele determinado comportamento evoluiu numa dada
espécie animal. Estas causas, também conhecidas como causas evolutivas, são
as causas que procuramos desvendar quando estudamos a evolução de um
comportamento, e constituem o objeto desta revisão.
Causas próximas e remotas do comportamento não são antagônicas, mas
complementares, e ambas compõem (ou deveriam compor) o conteúdo
programático da maioria dos cursos universitários de comportamento animal.
Entretanto, elas diferem substancialmente nas suas origens históricas.
Estudos que versam sobre as causas próximas do comportamento são de
fato mais antigos e têm suas origens no estudo da anatomia e da fisiologia animal,
da psicologia e da filosofia. Ilustres estudiosos do comportamento animal, como
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Konrad Lorenz, Niko Timbergen e Karl von Frish, conhecidos como os fundadores
da etologia, ficaram famosos por sua pesquisa sobre as causas próximas do
comportamento, tendo até mesmo recebido pelo conjunto de suas obras o prêmio
Nobel de medicina de 1973.
As causas evolutivas do comportamento, entretanto, só puderam ser
investigadas a partir da “teoria da evolução através de seleção natural” de Charles
Darwin (1859), que nos abriu as portas do pensamento evolutivo. O
desenvolvimento pleno do pensamento evolutivo, entretanto, só veio a ocorrer nas
últimas décadas do século XX, período em que também se desenvolveram duas
áreas da biologia, a genética e a ecologia, que agora formam os pilares do
pensamento evolutivo. Por estas razões, este capítulo inicia-se com uma breve
revisão da teoria de Darwin, a nossa grande herança do século XIX, e em seguida
são apresentados alguns de seus desdobramentos no estudo do comportamento
animal e humano durante o século XX.
Conforme veremos, a aplicação da abordagem evolutiva ao
comportamento, especialmente ao comportamento social e a temas como o
egoísmo e o altruísmo, culminou por deflagrar a última grande revolução no
próprio pensamento evolutivo: a substituição do indivíduo (ou dos organismos
propriamente ditos) pelo gene (ou grupos de genes) como as unidades de seleção
relevantes. Para encerrar o capítulo, algumas críticas relativas à influência dos
genes no comportamento (especialmente no comportamento humano) são
apresentadas e discutidas, juntamente com algumas perspectivas de estudos
futuros sobre as causas evolutivas do comportamento.
A herança do século XIX para o estudo do comportamento: as teorias
de Darwin
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A teoria de Darwin é mais facilmente compreendida quando desmembrada
em uma série de teorias interligadas (veja E. Mayr, 1982. “The Growth of
Biological Thought”, Harvard Univ. Press, para uma revisão detalhada de cada
uma destas teorias). Nosso interesse obviamente recai sobre a teoria da seleção
natural, mas para que possamos melhor entendê-la e relacioná-la às demais,
façamos uma breve menção destas teorias, que incluem: (1) a própria idéia da
evolução, da transformação dos organismos ao longo do tempo, que já havia sido
aventada por vários pesquisadores pré-Darwinianos (como Erasmus Darwin, o avô
de Charles, e Lamarck, que propôs sua teoria em 1809, ano em que Charles
nasceu), mas à qual Darwin forneceu uma série de evidências e adicionou a idéia
de transformação horizontal ou da diversificação das espécies no espaço; (2) a
evolução através de descendência comum, onde Darwin postulou que todos os
organismos atuais descendem de ancestrais comuns e se diversificaram através
dos tempos, o que explica, por um lado, a grande diversidade de espécies atuais
e, por outro lado, restringe a vida a uma origem comum, um evento único talvez (o
que também permite uma investigação mais objetiva); (3) a evolução como um
processo gradual, confrontando assim a visão essencialista (ou tipológica) da
espécie então predominante entre os naturalistas, e as teorias saltacionistas que,
ao postularem uma grande descontinuidade entre espécies, previam que novas
espécies só poderiam surgir através de grandes saltos evolutivos; (4) a seleção
natural propriamente dita, que explica como a evolução realmente ocorre; e (5) a
especiação, ou o processo de formação de novas espécies, que é colocado como
uma conseqüência do processo de seleção natural.
De forma simplificada (e também por uma questão de espaço) a teoria da
seleção natural baseia-se em três características freqüentemente observadas na
grande maioria das espécies:
1. Variação: indivíduos de uma mesma espécie podem diferir em muitas
características (morfológicas, fisiológicas, do comportamento, etc.);
2. Hereditariedade: os pais podem passar suas características individuais para
a sua prole;
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3. Reprodução diferencial: devido às suas características especiais herdadas,
alguns indivíduos deixam mais descendentes que outros.
Darwin percebeu que a evolução é o processo resultante quando estas três
condições ocorrem em uma espécie. Assim, quando certos indivíduos se
reproduzem mais que outros, e quando sua prole herda as características
(incluindo as características ligadas ao comportamento) que permitiram a seus
pais se reproduzirem com maior êxito, estas características se espalharão pela
população. Por outro lado, se alguns indivíduos se reproduzem menos que outros,
e sua prole herda as características que impossibilitaram a seus pais se
reproduzirem com maior sucesso, estas características tenderão a desaparecer da
população ao longo de várias gerações.
Um aspecto fundamental da teoria da seleção natural é que o indivíduo é
claramente colocado como o objeto ou a unidade de seleção relevante. É o
indivíduo que se comporta e que interage com seu ambiente físico e biológico. É o
indivíduo que se reproduz. A seleção natural é apenas o processo resultante da
reprodução diferencial dos indivíduos.
Já o comportamento em si, que é visto pelo biólogo como qualquer outra
característica morfológica ou fisiológica observável no fenótipo dos indivíduos,
poderá então evoluir ou não à medida que produza indivíduos mais ou menos bem
adaptados. Esta melhor adaptação, em última análise, se refletirá no seu sucesso
reprodutivo ou, como costumamos dizer, na sua aptidão, que pode ser enfim
medida através do número de descendentes diretos (filhos, netos, bisnetos) que
um indivíduo deixa nas gerações seguintes.
A maneira pela qual o comportamento se originou e as condições
ambientais que permitiram ou favoreceram a sua evolução, espalhando-se entre
os indivíduos e mantendo-se (ou não) nas populações, provavelmente nunca
serão conhecidas. Teríamos, pois, que voltar no tempo e na história evolutiva da
espécie em questão para conhecermos com precisão estes aspectos. Mesmo com
a ajuda de um vasto registro fóssil, pouco saberíamos sobre a evolução do
comportamento dos organismos, pois o comportamento em si, ou grande parte
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dele, não é passível de fossilização (pegadas, marcas, utensílios e outros objetos
podem também indicar certos comportamentos dos organismos, mas apenas no
caso de algumas poucas espécies, como a nossa).
Por outro lado, temos os organismos que ainda vivem, e que podem nos
fornecer comparações relevantes e necessárias (o leitor há de concordar comigo
que seria praticamente impossível conhecermos com profundidade qualquer
aspecto de nossa própria evolução se estivéssemos sozinhos neste planeta), e
temos a teoria da seleção natural que, baseada na capacidade de adaptação dos
organismos, pode nos ajudar a formular hipóteses testáveis sobre a evolução do
comportamento (hipóteses geram predições que, por sua vez, podem ser
cientificamente testadas). Estas são, de fato, as armas de que dispomos para
investigarmos a evolução do comportamento na atualidade.
Por muitos anos, entretanto, a teoria da seleção natural foi simplesmente
ignorada pela grande maioria dos estudiosos do comportamento e somente no
século XX, quando o trabalho dos etologistas nos anos sessenta e setenta
passou a ser mais conhecido (e a etologia passou a ser incluída como uma
disciplina formal dos currículos de biologia e história natural de várias
universidades do mundo, inclusive no Brasil), que ocorreram enfim algumas
tentativas de incorporar o pensamento evolutivo ao estudo do comportamento.
Estas primeiras tentativas, entretanto, estavam repletas de erros de interpretação
da teoria da seleção natural, conforme veremos a seguir.
Os desdobramentos da teoria da seleção natural no século XX:
I. O problema do “bem da espécie”
Talvez devido ao fato de Charles Darwin ter colocado a especiação como
uma conseqüência do processo de seleção natural, vários estudiosos do
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comportamento dos anos cinqüenta, sessenta e setenta, que tentaram de alguma
maneira incorporar o pensamento evolutivo ao estudo do comportamento,
passaram a utilizar a espécie, e não o indivíduo, como o objeto ou a unidade de
seleção natural.
Não importava a estes estudiosos se os indivíduos variavam entre si em
uma série de comportamentos, ou se estes comportamentos podiam fazer com
que eles deixassem mais ou menos descendentes nas gerações futuras. O que
realmente importava, ou o que parecia implícito em sua argumentação, é que pelo
menos alguns indivíduos sobrevivessem e se reproduzissem para que a espécie,
como um todo, pudesse então ser preservada. A conseqüência deste raciocínio foi
uma aceitação crescente, entre os estudiosos da época, de que o comportamento
dos indivíduos estava primariamente voltado para o benefício da espécie à qual
pertenciam.
Um dos exemplos mais ilustrativos deste modo de pensar nos é fornecido
por Konrad Lorenz (1966), que numa de suas raras tentativas de explicar as
causas remotas do comportamento, discute a possível evolução do
comportamento agressivo no homem e nos animais totalmente baseada nas suas
“funções de preservação da espécie”, mas o exemplo mais extremo até agora
conhecido é o de Wynne-Edwards (1962, 1986), que propôs uma teoria segundo a
qual as espécies atuais teriam evoluído mecanismos de auto regulação
populacional, com o objetivo final de evitar a super exploração dos recursos
necessários à sua sobrevivência e a possível extinção de todo o grupo.
Tomando como ilustração os diversos tipos de agregações que muitos
mamíferos, aves, peixes e répteis em geral apresentam, Wynne-Edwards sugeriu
que estas agregações permitiriam aos animais de alguma maneira estimar o
tamanho da população e investir com maior ou menor intensidade na produção de
novos indivíduos (na reprodução), de forma a manter os tamanhos populacionais
compatíveis com os recursos disponíveis. Esta teoria, atualmente mais conhecida
através da expressão “seleção de grupo”, tem levado vários autores a
desenvolverem ou simularem modelos de seleção natural onde grupos de
indivíduos ou populações inteiras pudessem tornar-se unidades de seleção. O
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efeito de grupo pode até mesmo ser medido em populações naturais. Entretanto,
segundo G.C. Williams (1966), a seleção natural agindo sobre as variações entre
indivíduos teria sempre um efeito muito mais forte na formação do patrimônio
gênico das gerações seguintes do que as diferenças entre grupos ou populações.
Esta questão, na realidade, encontra-se ainda hoje aberta a novas discussões. O
problema, entretanto, está em como interpretar corretamente o comportamento
dos indivíduos. Sob a perspectiva da teoria de seleção natural, espera-se que os
indivíduos se comportem “egoisticamente”, ou seja, visando o aumento do seu
próprio sucesso reprodutivo, de sua própria aptidão. Sob a perspectiva da seleção
de grupo, espera-se que os indivíduos se comportem “altruisticamente”, ou seja,
visando o benefício da espécie à qual pertencem (ou dos demais indivíduos do
seu grupo ou população), chegando mesmo a abrir mão de seu próprio sucesso
reprodutivo!
Esta teoria tem é claro um certo atrativo, uma vez que coloca os indivíduos
da população todos a serviço do bem comum e da coletividade. Uma “verdadeira
sociedade de altruístas” que poderia servir como modelo para a nossa própria
sociedade. Entretanto, conforme veremos a seguir, os exemplos de altruísmo
reprodutivo são relativamente raros no reino animal e estão restritos a alguns
grupos taxonômicos cuja biologia difere substancialmente das demais espécies
animais.
Além de focar de maneira errada a unidade de seleção, o que a “teoria do
bem da espécie” realmente não consegue explicar pode ser captado no seguinte
argumento, desenvolvido por Alcock (1993): Imaginemos que, numa população de
altruístas, surgisse um indivíduo que (talvez devido a uma mutação) passasse a
comportar-se de maneira egoísta em relação aos outros indivíduos do grupo,
investindo seu tempo e energia na criação de seus próprios filhos. Qual entre os
dois tipos de indivíduos, o egoísta e o altruísta, deixaria uma prole mais numerosa
e estaria mais representado nas gerações seguintes?
Caso o leitor ainda não esteja convencido, imaginemos a coisa pelo outro
lado. Digamos que, numa população de egoístas, onde todos só quisessem saber
de reproduzir-se e cuidar dos seus próprios filhos, surgisse um altruísta que
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dedicasse boa parte de seu tempo e energia para o benefício (ou para o sucesso
reprodutivo) dos outros indivíduos da população. Que chances teria este indivíduo
em deixar descendentes nas gerações futuras? De que maneira o altruísmo se
espalharia pela população?
O modelo de seleção de grupo apregoado pelos partidários do “bem da
espécie” mostrou-se desde o início inadequado para a interpretação do
comportamento, mas forçou os biólogos deste período a examinarem com maior
profundidade a evolução do comportamento social. Afinal de contas, se os
indivíduos tendem a comportar-se apenas egoisticamente, de que maneira o
comportamento social, que exige um certo nível de cooperação entre os membros
de um grupo, poderia ter evoluído através de seleção natural em tantos animais
diferentes, inclusive na nossa própria espécie?
II. A evolução do comportamento social e os limites da teoria da
seleção natural
Viver em grupo pode acarretar sérias complicações para um indivíduo.
Certas doenças parasitárias, por exemplo, podem se espalhar mais rapidamente
quando os indivíduos estão de alguma forma agrupados. A competição por
recursos alimentares, ou por territórios, ou por locais de nidificação, ou até mesmo
por parceiros sexuais (se considerarmos o sexo oposto como um recurso, o que
não é muito convencional) também pode ser muito mais intensa nestas condições.
Talvez por estas razões, nem todos os organismos chegaram a evoluir qualquer
forma de comportamento social. Em outras palavras (e utilizando uma
argumentação puramente econômica, muito em prática na ecologia) há muitas
condições ecológicas nas quais os custos (para os indivíduos, medidos através de
seu sucesso reprodutivo) podem exceder os benefícios (medidos da mesma
forma) de se viver em grupo.
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Entretanto, sob certas circunstâncias, os benefícios podem tornar-se
maiores e o comportamento social tem enfim alguma chance de evoluir.
Imaginemos algumas situações. Um casal de aves ou de mamíferos, por exemplo,
pode cuidar melhor de seus filhotes do que um dos pais apenas poderia, caso
estivesse sozinho. Certos mamíferos carnívoros, como um grupo de leoas, por
exemplo, podem se juntar para defender territórios e para desenvolverem técnicas
de caça coletivas, mais eficientes que as técnicas individuais, conseguindo assim
subjugar presas talvez muito maiores ou que, de outro modo, não estariam no
cardápio principal do dia. De forma semelhante, mamíferos herbívoros podem
formar grandes rebanhos para se defenderem de predadores, aumentando o
número de “vigias” e desenvolvendo diferentes tipos de “sinais de alerta” que
permitiriam aos animais fugirem quando os predadores se aproximassem, ou
ainda, poderiam simplesmente dividir com outros indivíduos, tão apetitosos ou
mais do que eles, as mesmas chances de serem atacados por um determinado
predador (Hamilton, 1971, apresenta um modelo de seleção bem mais realista
para a evolução deste comportamento em certos grupos de presas - os chamados
“rebanhos egoístas”). Em todos estes casos, que denominamos comportamentos
de cooperação (ou mutualismo, no caso de cooperação entre indivíduos de
espécies diferentes) há um benefício líquido (ou um aumento na aptidão) para
cada um dos indivíduos envolvidos (comparando com suas aptidões caso
estivessem sozinhos), o que torna a sua evolução perfeitamente viável através de
seleção natural. A teoria da seleção natural não é, portanto, incompatível com a
evolução do comportamento social (Williams, 1966).
O que a seleção natural clássica, baseada no indivíduo como a unidade de
seleção, realmente não consegue explicar, é quando a ajuda beneficia apenas um
dos membros da relação. É o que podemos chamar do verdadeiro altruísmo
reprodutivo, onde o altruísta sofre uma perda real em sua aptidão, enquanto
“recipiente” da ação acaba por beneficiar-se.
Evidentemente, quando os indivíduos envolvidos são pais e filhos, não
podemos interpretar este comportamento como altruísta, uma vez que um pai ou
uma mãe estaria simplesmente investindo em sua própria aptidão ao ajudar os
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filhos. Estes comportamentos de ajuda de pais em relação aos filhos, que
denominamos cuidados parentais, são também totalmente viáveis quando
analisamos a sua evolução através de seleção natural. Poderíamos até mesmo
esperar que, sob certas circunstâncias, um pai ou uma mãe chegasse a se matar
para salvar a vida de um filho ou uma filha. Mas quando o comportamento de
ajuda não envolve os descendentes diretos do indivíduo altruísta, somos então
obrigados a rever alguns aspectos da teoria de seleção natural.
Uma alternativa para este problema foi apresentado por Robert Trivers
(1971), que propôs um mecanismo denominado “altruísmo recíproco”, no qual o
indivíduo altruísta sofre inicialmente uma perda relativamente pequena como
conseqüência de sua boa ação, mas recebe no futuro, do próprio “recipiente” da
ação, um benefício maior que a perda inicial. Obviamente, um sistema como este
estaria sujeito a fracassar tão logo os indivíduos inicialmente ajudados
simplesmente se negassem a retribuir, com juros, os benefícios recebidos.
Entretanto, sob certas circunstâncias, especialmente quando os indivíduos
envolvidos podem se encontrar e interagir repetidamente, o altruísmo recíproco
poderia evoluir ou, como preferem alguns, poderia tornar-se uma estratégia
evolutiva estável.
O altruísmo recíproco, entretanto, só consegue explicar um altruísmo mais
brando, onde as perdas iniciais são relativamente pequenas. Há exemplos,
entretanto, em que o altruísta simplesmente não parece ser recompensado de
forma alguma, sofrendo perdas aparentemente irreparáveis em sua aptidão. Estes
exemplos são para nós do maior interesse, pois parecem confrontar-se
diretamente com a teoria da seleção natural de Charles Darwin. Mas que
exemplos são estes, afinal?
Em diversas famílias de aves a presença de ajudantes não reprodutivos nos
ninhos não é um fenômeno raro. Além do macho e da fêmea que formam o casal,
encontramos nestes ninhos outras aves que auxiliam na sua construção, na coleta
de alimentos e na alimentação dos pais e dos filhotes. Em vários casos, os
ajudantes montam guarda e protegem os filhotes de seus predadores, enquanto
os verdadeiros pais estão fora do ninho. Para o ajudante, estas atividades
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poderiam ser consideradas um verdadeiro desperdício de tempo e energia, que
poderiam estar sendo investidos em seu próprio benefício, em sua própria aptidão.
Como então explicar este comportamento?
Outro exemplo clássico é aquele que envolve a evolução de castas não
reprodutivas nas abelhas e em outros insetos sociais. Façamos uma breve visita a
uma colmeia. Lá encontraremos uma rainha que se dedica quase integralmente à
reprodução, enquanto suas irmãs, as operárias, se ocupam dos cuidados com o
ninho, de sua construção, da coleta de alimentos e da alimentação da própria
rainha e de sua prole. Ao invés de um aparelho reprodutivo, as operárias
desenvolveram em seu lugar um poderoso ferrão, que não hesitam em utilizar
como arma contra qualquer intruso que se aproxime perigosamente da colmeia,
ato este que as levará irremediavelmente à morte. Não seria mesmo um absurdo
imaginar que elas se suicidam para defender as castas reprodutivas e sua prole.
Como então um indivíduo, como esta operária, poderia abdicar de seu próprio
sucesso reprodutivo para claramente beneficiar (ou colaborar com o sucesso
reprodutivo) de um outro indivíduo, como a rainha?
Comportamentos altruísticos como o desta operária podem ser encontrados
numa grande variedade de insetos denominados por Edward Wilson (1975) como
eusociais, que incluem, além das abelhas, as vespas, as formigas, os cupins e
alguns afídeos onde castas, morfologicamente diferenciadas ou não, dividem entre
si o trabalho geral da colônia e a tarefa de produzir ou não descendentes. Mais
recentemente foi descoberto na África até mesmo um mamífero eusocial, um
roedor, o Naked mole rat, que vive em colônias subterrâneas onde os indivíduos
se alimentam de certas raízes. Tal como em muitos insetos eusociais, a colônia é
dominada por uma rainha, uma fêmea reprodutiva maior que os outros membros
da colônia, com poucos pêlos, dentes enormes e aspecto geral horripilante. Esta
rainha se acasala exclusivamente com apenas dois ou três machos da colônia,
enquanto os outros indivíduos, os não reprodutivos (= altruístas), dedicam-se
unicamente à tarefa de abrir túneis e coletar raízes.
Mas há ainda alguns outros exemplos envolvendo outros tipos de
organismos. Uma “caravela portuguesa” (Physalia; Cnidaria) pode apresentar
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muitas semelhanças a uma colônia de formigas. Alguns indivíduos, os
gastrozóides, se especializaram na coleta de alimentos (= operárias), outros, os
dactilozóides, na defesa da colônia (= soldados) e ainda outros, os gonozóides, na
reprodução (= rainhas). A diferença fundamental é que, enquanto operárias,
soldados e rainhas podem se movimentar livremente, gastrozóides, dactilozóides
e gonozóides estão unidos em um mesmo corpo, do qual partilham um intestino
comum e um flutuador (uma câmara de gás) que permite à caravela flutuar sobre
as águas oceânicas.
O próprio Charles Darwin sentiu que sua teoria estava seriamente
ameaçada ao analisar a evolução das castas não reprodutivas nos insetos
eusociais. Entretanto, ele conseguiu perceber que a seleção natural poderia estar
operando num outro plano diferente do indivíduo, como a família inteira (o que
equivaleria à colônia). O altruísmo reprodutivo dos insetos sociais e de outros
animais, entretanto, só passou mesmo a ser mais bem compreendido quando
analisado sob o ponto de vista dos genes, o que só veio a acontecer na segunda
metade do século XX quando William Hamilton, numa série de artigos publicados
(1964a,b; 1970; 1971; 1972), propôs que os genes seriam a unidade de seleção
relevante. Antes de entrarmos na evolução do altruísmo reprodutivo, entretanto,
vejamos como os genes poderiam ser considerados as unidades de seleção
natural.
III. Os genes como as unidades de seleção
Darwin (1809-1882) obviamente não tinha conhecimento do conceito de
gene e de seu papel na hereditariedade. Este conceito só passou mesmo a ser
mais conhecido e divulgado a partir de 1920, quando vieram a público os
experimentos de Mendel e de outros naturalistas que realizaram experimentos de
cruzamento em plantas. Tal como Darwin, Mendel não estava a par da
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composição química dos genes, que hoje sabemos constituir-se de DNA, ou de
sua estrutura em forma de “dupla hélice” (descoberta por Watson e Crick em
1953), mas foi capaz de estudá-los e identificá-los através de sua expressão no
fenótipo dos indivíduos, como a cor (verde ou amarela) e a forma (lisa ou rugosa)
das sementes de ervilhas que ele estudou. Talvez mais importante do que os
conceitos de dominância, recessividade e das próprias “leis de Mendel”, a
contribuição mais significativa deste autor foi na própria concepção do significado
do gene e, especialmente, na sua natureza particulada (genes se segregam
independentemente durante a meiose), que expôs enfim o gene aos olhos da
ciência.
Atualmente nós sabemos que os genes estão presentes em cada uma das
células de um organismo (que podem chegar a mais de um trilhão no corpo
humano). Dentro das células, os genes codificam a síntese de proteínas, os
blocos de construção dos seres vivos, e especialmente, de enzimas (também um
tipo de proteína) que controlam o metabolismo celular. Entretanto, a característica
mais extraordinária dos genes (e mais relevante para o nosso estudo) é a sua
capacidade de produzir réplicas de si mesmos. Segundo Richard Dawkins (1989),
nós os indivíduos, nascemos, crescemos, nos reproduzimos (reproduzimos os
genes) e morremos. Mas os genes, ao produzirem réplicas de si mesmos, podem
tornar-se potencialmente imortais.
Para produzirem suas réplicas, entretanto, os genes precisam fabricar os
indivíduos, sejam eles seres solitários ou coloniais, que competirão e/ou
colaborarão entre si para deixar seus descendentes (os novos portadores das
réplicas de genes) nas gerações seguintes. Com estas informações em mente,
podemos então imaginar a teoria da seleção natural operando ao nível dos genes
de modo análogo ao que Darwin imaginou para os indivíduos, como proposto por
Alcock (1993):
1. Variação genética: genes ocorrem em duas ou mais formas alternativas, os
alelos, dentro de uma espécie. Diferentes alelos levam à produção de
formas relativamente diferentes da mesma proteína.
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2. Hereditariedade: alelos podem ser transmitidos de pais para filhos.
3. Reprodução diferencial: alelos produzem efeitos que permitem aos seus
portadores produzirem mais réplicas de si mesmos do que indivíduos com
alelos alternativos do gene em questão.
A idéia do gene como a unidade de seleção se constitui na última grande
revolução da história do pensamento evolutivo. Ela nos leva a pensar que os
indivíduos não se comportam para o benefício de outros indivíduos de sua espécie
ou população (= seleção de grupo) e nem para o seu próprio benefício, (=
seleção individual clássica), mas em benefício de seus genes. Nesta nova
perspectiva, o que podemos esperar dos indivíduos é que eles se comportem no
sentido de aumentar a sua aptidão inclusiva, um conceito desenvolvido na
próxima seção que é a chave para a compreensão do altruísmo reprodutivo.
IV. O conceito de aptidão inclusiva e a evolução do altruísmo
reprodutivo
Em vista do que foi exposto na seção anterior, podemos concluir que a
produção de réplicas de um alelo (ou de um grupo de alelos) se constitui no
grande projeto de vida dos indivíduos, estas “máquinas de sobrevivência” que
funcionam como “veículos” para a replicação dos genes (Dawkins, 1989).
Obviamente, o caminho mais direto para se realizar este projeto é o investimento
em sua própria reprodução ou, como vimos anteriormente, em sua própria aptidão.
Mas há também um caminho alternativo para os indivíduos produzirem réplicas de
seus genes, descoberto por William Hamilton (1964b): ajudando indivíduos
aparentados (como irmãos, primos, sobrinhos, etc.), e que também podem possuir
a mesma réplica do alelo, a sobreviverem e a produzirem os seus filhos. É o que
pode ser chamado de aptidão indireta que, juntamente com a aptidão direta (via
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reprodução pessoal) compõem o que Hamilton chamou de aptidão inclusiva, um
termo que pode ser aplicado tanto ao indivíduo como ao próprio gene ou um de
seus alelos.
Utilizando o coeficiente de parentesco (ver tabela abaixo) como a
probabilidade de dois indivíduos partilharem de uma mesma réplica de um alelo,
Hamilton propôs uma regra para se estabelecer como um alelo raro qualquer,
como aquele que promove o altruísmo em seu portador, poderia espalhar-se numa
população. Esta regra pode ser expressa através da seguinte fórmula:
Br – C > 0
Onde r = coeficiente de parentesco (ver tabela abaixo); B = benefício (ou o número
adicional de parentes cuja existência se deve à ação do altruísta) e C = custo na
aptidão direta do altruísta.
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Tabela 1. Coeficiente de parentesco (r) entre diferentes tipos de parentes.
(r)
Clones ou gêmeos idênticos 1.0
Pais/mães e filhos/filhas 0.5
Irmãos (ãs) 0.5
Meio irmãos (ãs) 0.25
Avô/avó e neto/neta 0.25
Tio/tia e sobrinho/sobrinha 0.25
Primos (as) 0.125
. A regra de Hamilton diz de forma simples que, para que um alelo se
espalhe, ou para que o altruísmo possa evoluir numa população, os custos diretos
para o indivíduo altruísta (= C) precisam ser menores do que os benefícios
indiretos (= B). Os custos são, obviamente, o número de descendentes diretos
(filhos e filhas) que o altruísta deixou de produzir, e os benefícios são o número
adicional de parentes (não descendentes diretos), cuja sobrevivência se deve
exclusivamente à ação do altruísta (e não o número total de parentes do altruísta,
como aparece numa grande maioria de livros didáticos), multiplicado pelo
coeficiente de parentesco entre o altruísta e o (s) “recipiente” (s) da ação.
Imaginemos, como ilustração, que um indivíduo altruísta deixou de produzir
três filhos como conseqüência de sua ação. Em uma espécie diplóide qualquer,
que se reproduz sexuadamente, um filho herda metade de seus genes de seu pai
e outra metade de sua mãe. O custo para o altruísta será, portanto, de 0.5 (= r
entre pai e filho) x 3 (= número de filhos) = 1.5 unidades genéticas. Entretanto,
devido à sua boa ação, sete sobrinhos foram capazes de sobreviver e se
reproduzir, o que resulta num benefício de 0.25 (= r entre tio e sobrinho) x 7 (=
número de sobrinhos) = 1.75 unidades genéticas. Há, portanto, um ganho líquido
de 0.25 unidades genéticas para o altruísta, o que elevará a freqüência do alelo
que promove o altruísmo na população.
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Este é, obviamente, apenas um exemplo hipotético. Na prática tem sido
bastante difícil não apenas conhecermos com precisão as verdadeiras relações de
parentesco entre os indivíduos de uma população animal qualquer vivendo em
condições naturais, como também estimarmos com precisão as possíveis perdas
na aptidão direta dos indivíduos altruístas. Já existem, entretanto, alguns estudos
reveladores. Num estudo realizado com um passarinho australiano, a “cambaxirra
de duas cores”, Austad & Rabenold (1985; Behavioral Ecology and Sociobiology
17:19-27) descobriram que quando os pais estão sozinhos no ninho, a média de
filhotes obtida por ano é de apenas 0.4, mas quando um ajudante está presente, e
sua principal tarefa parece ser a de defender o ninho contra predadores quando os
pais estão fora, esta média sobe para 1.3 filhos por casal/ano. Em média, um
único ajudante aumenta as chances de sobrevivência dos filhotes (seus irmãos e
irmãs) em 0.9 filhos/ano (B = 1.3 x 0.5 = 0.65; C = 0.4 x 0.5 = 0.2; B > C).
Hamilton (1964b; 1972) foi também o primeiro a perceber que o sistema
haplodiplóide, que determina os sexos nas vespas, formigas e abelhas, propicia
uma maneira diferente de se estimar o coeficiente de parentesco entre indivíduos
de uma colônia. Neste sistema, os machos são haplóides (originam-se de um
óvulo não fertilizado), enquanto as fêmeas são diplóides (originam-se de um
óvulo fertilizado por um espermatozóide). Se calcularmos então o coeficiente de
parentesco (r) entre uma operária e sua irmã, a rainha, veremos que ambas
possuem uma cópia idêntica de genes (oriunda de seu pai haplóide, o zangão) e
probabilísticamente, mais uma das duas cópias possíveis presentes em sua mãe,
a rainha que lhes deu origem. Assim, elas partilham 0.5 + 0.25 = 0.75 de seus
genes. De fato, elas não são irmãs como costumamos entendê-las, mas “super
irmãs” (compare com r entre irmãos diplóides na tabela acima). Se, por outro lado,
esta operária pudesse ter tido a opção de produzir os seus próprios filhos (se, ao
invés de um ferrão, tivesse desenvolvido um aparelho reprodutivo funcional),
poderíamos também verificar que seu coeficiente de parentesco com sua filha
(rainha ou operária) seria de apenas 0.5. Dedicar-se então à tarefa de ajudar a
rainha a cuidar de seus filhos pode ser, para esta operária, mais vantajoso para a
produção de réplicas de seus alelos do que investir na sua própria reprodução.
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Este raciocínio é, na realidade, uma simplificação, pois teríamos que incluir
nestes cálculos o número total de filhos e filhas produzidos pela rainha e pela
operária (se isto fosse possível; ou considerá-lo de fato nulo), bem como o número
total de operárias e rainhas com as quais o benefício é dividido. Mas o simples
fato de um altíssimo coeficiente de parentesco estar envolvido já é um indicativo
bem forte de que ajudar parentes pode ser mesmo um investimento nos próprios
genes de um indivíduo.
Um coeficiente de parentesco bastante elevado foi também encontrado no
caso dos cupins e do naked mole rat, mas, contrariamente às abelhas, vespas e
formigas, os machos e fêmeas destes insetos e deste roedor são ambos
diplóides. Nestes casos, o que se tem observado é que existe um alto grau de
endocruzamento (ou cruzamento entre parentes) nestas colônias, o que, por sua
vez, também pode ampliar em muito o coeficiente de parentesco entre os
indivíduos.
Talvez por não apresentarmos um coeficiente de parentesco tão elevado
como os exemplos citados acima, nós e muitos outros organismos onde o
altruísmo reprodutivo pode ser encontrado (como aquelas aves em que ocorre a
presença de ajudantes), não evoluímos em direção a eusocialidade, mas em
direção a comportamentos sociais alternativos. Nosso sistema de determinação
dos sexos é bastante diferente do sistema haplodiplóide das abelhas, vespas e
formigas, e o endocruzamento praticado pelos cupins e pelo naked mole rat é
uma prática claramente evitada na nossa sociedade e, na realidade, na grande
maioria dos animais que se reproduzem sexuadamente (veja na próxima seção
uma breve discussão sobre o incesto). Entretanto, seja a espécie em questão
eusocial ou não, o altruísmo reprodutivo só tem mesmo sido observado quando
os beneficiários da ação são parentes (mesmo que muito distantes) do altruísta.
Neste momento de nossa discussão, chegamos então a um ponto bastante
revelador sobre o altruísmo reprodutivo. Ele só pode ser concebido ou imaginado
do ponto de vista dos indivíduos. Do ponto de vista dos genes, não há altruísmo
algum, apenas genes investindo egoísticamente em seu próprio benefício, em sua
própria reprodução e, somente por esta razão, o comportamento altruísta pôde
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evoluir nos indivíduos de várias espécies, inclusive a nossa (sim, nós temos
inúmeros exemplos de altruísmo reprodutivo na nossa espécie, e apesar de não
sermos eusociais, temos também as nossas “castas não reprodutivas”).
Esta nova forma de se conceber a seleção natural operando ao nível dos
genes não invalida o pensamento clássico de Darwin que, como vimos,
permanece basicamente o mesmo quando transposto do indivíduo para o gene.
Entretanto, ele certamente o torna mais amplo, possibilitando-o incorporar
comportamentos até então considerados contraditórios com a teoria da seleção
natural, como o altruísmo reprodutivo. Da mesma forma, esta nova visão da
seleção natural não necessariamente invalida os vários estudos previamente
realizados que utilizaram estimativas de aptidão baseadas apenas no número de
descendentes diretos de um indivíduo, e não na sua aptidão inclusiva (que
incorpora a aptidão direta e indireta). Para o propósito destes estudos, estas
estimativas continuam válidas e, na maioria dos casos, elas podem mesmo
eqüivaler-se à verdadeira aptidão inclusiva, uma vez que a aptidão indireta só
parece ser importante num número limitado de espécies (creio tratar-se do nosso
caso). Num certo sentido (não muito correto, pois estaríamos colocando os
indivíduos e os genes ao mesmo tempo como as unidades de seleção),
poderíamos até pensar que o “interesse do indivíduo” e o “interesse de seus
genes” são grandemente coincidentes. Talvez por esta razão, passamos tanto
tempo sem perceber o papel dos genes no comportamento. Na próxima seção, eu
apresento algumas críticas ao pensamento evolutivo baseado no gene como a
unidade de seleção, bem como algumas perspectivas de estudos futuros nesta
área do comportamento.
As críticas à abordagem evolutiva do comportamento no final do
século XX e algumas perspectivas de estudos futuros
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Desde que lançada a público, a idéia de que os genes podem de algum
modo determinar o comportamento dos animais e dos homens tem provocado um
grande debate em nossa sociedade. Uma das críticas mais comuns a esta nova
abordagem do estudo do comportamento é a de que a influência dos genes no
comportamento dos indivíduos ainda não foi devidamente demonstrada,
especialmente no caso de nossa própria espécie. Antes de responder a esta
crítica, entretanto, precisamos considerar algumas características dos genes e de
seu papel no comportamento dos organismos.
Há na realidade alguns estudos que mostram que um determinado
comportamento pode ser controlado por um único gene, obedecendo às leis mais
simples da genética mendeliana. Meu exemplo preferido é o de Rothenbuhler
(1964; American Zoologist 4:111-123), que realizou experimentos de cruzamento
entre duas linhagens de abelhas, as “higiênicas” e as “não higiênicas”. Para
entendermos este comportamento lembremo-nos que, entre as abelhas, existe
uma doença denominada American foulbrood que pode eventualmente atacar as
larvas e levá-las à morte. Para manter a limpeza dentro dos ninhos e evitar que a
doença se espalhe, algumas abelhas simplesmente abrem as “células” onde as
larvas mortas se encontram, e as removem para fora do ninho. Esta é a linhagem
“higiênica”. Em uma outra linhagem destas mesmas abelhas, a “não higiênica”, as
larvas não são removidas, permanecendo vedadas por uma tampa dentro destas
células, que se transformam assim em sua tumba mortífera. Quando Rothenbuhler
cruzou estas duas linhagens, obteve uma primeira geração totalmente não
higiênica, demonstrando assim que esta característica (e seu respectivo alelo) era
dominante em relação à linhagem higiênica. Entretanto, quando estes híbridos
foram cruzados com a linhagem higiênica original, encontrou-se o seguinte
resultado. Num total de 29 colônias obtidas, em 6 delas as células foram abertas
(a tampa foi retirada) e as larvas foram removidas; em 9 delas as células foram
abertas, mas as larvas não foram removidas; em outras 6 as células não foram
abertas pelas abelhas, mas depois que o pesquisador as abriu, as larvas foram
removidas; e em 8 delas, as células não foram abertas e as larvas não foram
removidas (mesmo depois que o pesquisador retirou as tampas). Estes resultados
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mostram, em primeiro lugar, que os comportamentos de “abrir ou não” a célula e
“remover ou não” a larva morta de seu interior são controlados por diferentes
genes e, em segundo lugar, que cada um destes comportamentos pode ser
explicado com base num único par de alelos!
Em outros estudos observou-se que o comportamento em questão era
controlado por dois ou mais genes, mas na grande maioria dos casos, o que se
tem mesmo observado é que um comportamento qualquer pode ser afetado por
um conjunto enorme de genes. Trata-se da chamada herança poligênica,
descoberta bem depois de Mendel e que nos permite explicar as variações
contínuas entre os indivíduos (variações quantitativas e não qualitativas). Se
pudéssemos então suprimir o efeito de cada gene no genótipo de um animal
qualquer, de tal maneira que um determinado comportamento se modificasse ou
passasse a não mais ser exibido pelo animal, poderíamos atingir uma porção
considerável de seu genótipo. Por esta razão, não tem mesmo sido fácil
demonstrar o efeito dos genes no comportamento (exceto talvez no caso de certas
doenças genéticas que produzem alterações drásticas no comportamento), mas
isto não significa de forma alguma que o efeito em si não exista.
É bastante provável que, com o desenvolvimento da biologia molecular,
genes que afetam direta ou indiretamente determinados comportamentos
humanos ou não humanos venham a ser descobertos no futuro próximo. Descobrir
genes para o comportamento, entretanto, não é a meta da abordagem evolutiva
do comportamento ou da sociobiologia. O aspecto fundamental nestas ciências é
descobrir se o comportamento em questão realmente evoluiu (e, neste caso, uma
base genética seria absolutamente imprescindível), e de que maneira ele poderia
ter se espalhado na população, contribuindo para a aptidão inclusiva dos
indivíduos que o exibiam, em relação a outros indivíduos que apresentavam
comportamentos alternativos. São estes aspectos do comportamento que nos
interessam, e que podem enfim nos ajudar a formular as hipóteses e as predições
necessárias para a sua investigação científica.
Outro argumento freqüentemente utilizado contra a influência dos genes no
comportamento é o de que a cultura, geralmente imaginada como uma
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característica exclusivamente humana, seria o principal fator na determinação do
nosso comportamento, e não os nossos genes. Esta argumentação, entretanto,
também carece de maiores esclarecimentos. Em primeiro lugar, se imaginarmos a
cultura (ou a “protocultura”, se preferirem) como sendo a transmissão de
informações e conhecimentos entre indivíduos e gerações, o que parece bastante
razoável, poderemos facilmente verificar que muitos animais de fato a praticam.
Mas mais importante do que isto é o fato de que, sob a luz da abordagem
evolutiva, não existe uma dicotomia verdadeira entre o que poderia ser
classificado como “genético” e “cultural”. Não há de fato sentido algum em se
afirmar que um determinado comportamento é “exclusivamente cultural”, pois a
cultura também é vista como uma manifestação genética dos animais, evoluída
dentro das populações e moldada por seleção natural de acordo com as
necessidades impostas pelo ambiente físico e biológico em que estes animais se
desenvolveram. Somos, portanto, seres culturais porque fomos moldados pela
seleção natural para sermos assim.
Nós podemos é claro afirmar que o fato de falarmos uma determinada
linguagem, por exemplo, depende da cultura na qual vivemos. Mas não podemos
nos esquecer que nossa habilidade geral para a fala, que inclui nosso aparato
vocal, nosso sistema nervoso, nossa capacidade de aprender e memorizar certos
símbolos e até mesmo a idade mais adequada para aprendermos com maior êxito
uma nova linguagem claramente dependem dos nossos genes e podem ser vistas
como adaptações biológicas à cultura. Atualmente acredita-se que há genes até
mesmo para a religiosidade humana e o principal argumento em favor desta idéia
é que, apesar da enorme diversidade étnica e cultural encontrada entre os
homens, ainda hoje não se descobriu qualquer povo ou civilização totalmente ateu
sobre o nosso planeta. Além disto, diversas funções adaptativas para a
religiosidade, envolvendo claros benefícios para os indivíduos que a praticam, têm
sido enunciados (Wilson, 1975,1978; Dawkins, 1989).
Um exemplo bastante ilustrativo da falsa dicotomia entre o “genético” e o
“cultural” pode ser encontrado no caso da chamada “repressão social ao incesto”.
Vimos na seção anterior que a grande maioria das espécies evitam as práticas
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que levam ao endocruzamento e a razão para este fato é que os indivíduos
assim produzidos podem apresentar sérios problemas de adaptação (alelos
recessivos, cuja expressão no fenótipo poderia ser suprimida se combinados com
alelos dominantes normais, poderiam se apresentar em dose dupla e manifestar
os seus efeitos deletérios no indivíduo). Entretanto, alguns pensadores
contemporâneos têm proclamado que a repressão ao incesto na nossa sociedade
é algo “exclusivamente cultural”, na prática, um simples tabu!
Vários estudos têm mostrado que os acasalamentos incestuosos,
especialmente entre pais e filhos ou entre irmãos (r = 0.5 em ambos) são
relativamente raros em condições naturais (menos de 2% nas aves e nos
mamíferos). Há na realidade duas maneiras principais pelas quais os animais
evitam cruzarem-se com parentes. Num conjunto de espécies, um dos sexos se
move para longe de sua área natal, antes de se acasalar. Num outro conjunto, os
animais permanecem próximos, mas desenvolvem uma aversão sexual pelos
parentes quando atingem a idade reprodutiva. Este é o caso dos seres humanos.
Num experimento realizado com crianças criadas conjuntamente nos Kibbutz
israelenses (Shepher, J. 1971. Archives of Sexual Behavior 1:293-307), verificou-
se que, num mesmo grupo de crianças, o casamento entre os seus membros
parece jamais ter sido observado. A experiência de terem sido criados juntos,
como “pseudo” irmãos e irmãs, parece simplesmente ter destruído a atração
sexual entre eles. Em condições naturais, os indivíduos criados juntos são mesmo
aparentados entre si e, em conseqüência, uma tendência genética para a aversão
sexual por parentes poderia ter evoluído através de seleção natural, como uma
adaptação para se evitar o endocruzamento e seus efeitos maléficos, o que
parece ter de fato ocorrido. Se dermos ouvidos aos partidários do tabu do incesto,
tudo que conseguiremos será a produção de uma prole mal adaptada e, se
sobrevivêssemos a isto, poderíamos ao longo de muitas gerações até mesmo nos
transformar numa espécie eusocial, como o Naked mole rat!
Outro exemplo de comportamento muitas vezes citado como devido
“exclusivamente à cultura” na nossa espécie refere-se à escolha de parceiros
sexuais. Entretanto, quando se investigou mais profundamente quais as
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características dos homens e das mulheres mais desejadas por pretendentes de
sexos opostos (Buss, D. M. 1989. Bahavioral and Brain Sciences 12:1-14),
observou-se que os homens priorizam (entre várias opções possíveis) certas
características relacionadas à idade (de fato as mulheres mais jovens) e a
determinados atributos físicos (os quais, também se acredita, sinalizam aos
machos sua aptidão física para produzirem filhos), enquanto as mulheres
priorizam características masculinas que indicam status social elevado e melhores
perspectivas de sucesso financeiro. Apesar de inesperado (e talvez “socialmente
injusto”) este resultado foi repetidamente obtido numa pesquisa envolvendo mais
de 10.000 pessoas em 37 diferentes culturas espalhadas em 5 continentes e em
cinco ilhas isoladas adicionais. Muitas pessoas obviamente duvidam que a
escolha de parceiros sexuais possa ter evoluído desta maneira na nossa espécie,
mas apesar da cultura e de sua enorme diversidade, podemos constatar que estas
preferências humanas são consistentes com o que seria esperado caso
quiséssemos mesmo aumentar a nossa aptidão inclusiva.
Outro argumento comumente apontado contra a influência dos genes no
comportamento humano é o de que esta abordagem despreza totalmente o papel
de nossa consciência no nosso comportamento. Esta é, na minha opinião, uma
afirmação verdadeira e com a qual concordo inteiramente. Mas perceba o leitor o
seguinte: para que nos comportemos de uma maneira adaptativa, ou visando
ganhos na nossa aptidão inclusiva, não é mesmo necessário que estejamos
conscientes do que estamos fazendo. Vejamos, como referência, os outros
animais com os quais partilhamos o nosso planeta. Nós freqüentemente
afirmamos e aceitamos o fato de que eles se comportam no sentido de aumentar a
sua aptidão inclusiva, mas sabemos que muitos deles não apresentam, ou não
parecem apresentar, qualquer forma de consciência ou de auto conhecimento
(deve haver algumas exceções a esta regra; pessoalmente, sempre quis saber a
opinião das baleias sobre a vida e sobre elas mesmas). Conforme nos lembra
John Alcock (1993), nossos mecanismos de “tomada de decisões” foram
moldados pela seleção natural para aumentarmos a nossa aptidão inclusiva, não
para monitorarmos conscientemente as conseqüências evolutivas ou os ganhos
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em aptidão de cada uma de nossas ações (de fato, acho que seríamos
chatíssimos e poderíamos até mesmo sofrer perdas irreparáveis na nossa aptidão
inclusiva se nos comportássemos desta maneira o tempo todo).
A consciência, portanto, não parece fundamental para que nos
comportemos de maneira adaptativa, mas isto não impede, por outro lado, que
possamos investigar as bases adaptativas da consciência na nossa espécie e nos
outros animais. Esta é, entretanto, uma questão totalmente diferente daquela
apresentada anteriormente, e que na prática tem se constituído numa das
investigações mais difíceis de serem realizadas, uma vez que ainda não dispomos
de maneiras adequadas para observarmos e medirmos diferentes níveis de
consciência nos diversos organismos vivos e até em nós mesmos. A simples
possibilidade de investigação científica da consciência humana e animal já é, por
si só, um grande desafio para os pesquisadores do comportamento no novo
milênio.
Outro exemplo de comportamento freqüentemente citado pelos críticos da
abordagem evolutiva do comportamento (e que realmente parece confrontar-se
com a teoria da seleção natural operando ao nível dos indivíduos ou dos genes) é
aquele que envolve a adoção de crianças na nossa espécie. Como este
comportamento poderia ter evoluído? Alguns estudos preliminares realizados em
países do ocidente vêm mostrando que a adoção de crianças por parentes
(mesmo que parentes distantes da criança adotada) ocorre numa proporção muito
maior do que a adoção de não parentes, o que permitiria a evolução deste
comportamento através de seleção natural, mas ainda precisamos saber se esta é
uma tendência geral na nossa espécie (o que ocorreria, por exemplo, entre as
populações indígenas da América do Sul e em outros povos de origens distintas
espalhados pelo nosso planeta? E o que ocorreria com outras espécies de
animais onde a adoção de jovens também já foi observada?).
Conforme podemos observar nos exemplos até agora apresentados, muitas
das críticas contrárias ao pensamento evolutivo na atualidade provêm da falta de
informações biológicas corretas e de erros de interpretação do pensamento
evolutivo por parte de um variado grupo de escritores e pensadores. Mas há
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evidentemente muitos outros problemas reais que permanecem não resolvidos e
para os quais poderíamos direcionar nossas investigações no futuro.
Um dos problemas mais incômodos que temos de lidar no momento é o fato
de que a única maneira que possuímos para estimar a probabilidade de dois
indivíduos quaisquer possuírem um mesmo alelo é através do coeficiente de
parentesco, tal como proposto por Willian Hamilton. Entretanto, indivíduos não
aparentados também poderiam compartilhar certos alelos (talvez numa proporção
menor do que os indivíduos aparentados) e, em decorrência disto, também
apresentar certos comportamentos de ajuda. Uma maneira visualizada por
Richard Dawkins (1989) para que um alelo presente num indivíduo fosse
reconhecido por outros indivíduos também portadores do alelo (mas não
necessariamente parentes) e recebesse deles algum tipo de ajuda, poderia
ocorrer caso o indivíduo sinalizasse a presença do alelo através de alguma
característica fenotípica bastante incomum (como, por exemplo, uma boca
enorme, uma orelha pontuda ou uma barba verde, o que originou a expressão
“green beard selection”, proposta por Dawkins para explicar a evolução destas
características). Apesar de algumas tentativas infrutíferas, entretanto, esta
possibilidade permanece não demonstrada.
A importância de sabermos como dois indivíduos não aparentados
poderiam partilhar um mesmo alelo é, na minha opinião, fundamental para
interpretarmos não apenas os comportamentos de ajuda entre os indivíduos, mas
também certos sentimentos associados ao ato de ajudar, como por exemplo, a
simples bondade, a simpatia, a amizade, a capacidade de entender e perdoar, e
outros. Creio que, se descobríssemos quais e quantos alelos afinal de contas
partilhamos, poderíamos talvez encontrar aí a origem da virtude humana, o que
me parece uma linha de investigação bastante interessante.
Poderíamos também, por outro lado, descobrir a origem da maldade
humana e dos sentimentos negativos (baseados talvez na baixa quantidade de
alelos em comum, ou em interações complexas entre diferentes alelos em
diferentes genes, ou ainda em certos alelos mutantes), o que já não me parece
uma linha de pesquisa das mais excitantes. Seja lá como for, para desvendarmos
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as virtudes e maldades da natureza humana, precisaremos conhecer um pouco
mais sobre os genes e, além disto, sermos capazes de formular hipóteses
adaptativas e predições testáveis sobre os indivíduos portadores destes genes, o
que nem sempre é uma tarefa trivial (qual a vantagem adaptativa em ser
bonzinho? Qual a vantagem adaptativa em ser ruim? Quem deixaria mais cópias
de seus alelos nas gerações seguintes?).
Não se duvida hoje em dia que, tal como os sentimentos, as emoções
humanas (e dos animais em geral) também apresentem uma base genética.
Entretanto, ainda não sabemos muito bem sob que circunstâncias as emoções
poderiam influenciar na adaptação dos indivíduos. Descobrir enfim de que maneira
os sentimentos e emoções poderiam contribuir ou influenciar na adaptação dos
indivíduos é na realidade mais um desafio interessante para os pesquisadores do
novo milênio.
Mas além do comportamento humano, há também o estudo do
comportamento dos outros animais, que pode tornar-se tão interessante ou mais
do que o comportamento humano e que, em última instância, nos leva a uma
melhor compreensão da vida e do próprio homem. Na impossibilidade de listar
aqui todas as perspectivas de estudos futuros sobre a abordagem evolutiva do
comportamento dos animais, deixo ao leitor a tarefa de aprofundar-se no assunto
(as referências ao final do capítulo podem ajudar bastante), com a esperança de
que a leitura desta breve revisão possa ter contribuído para despertar seu
interesse para este tema tão fascinante do conhecimento humano.
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Fontes primárias
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Wilson, E. O. 1975. Sociobiology: The New Synthesis. Cambridge: Harvard
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Wilson, E. O. 1978***. On Human Nature. Cambridge: Harvard University Press.
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* .(traduzido pela Ed. Itatiaia, B.H.).
** Uma coletânea das publicações deste autor, considerado o biólogo teórico mais
importante da segunda metade do século XX, pode ser encontrada no livro
“Narrow Roads of Geneland”. 1996. Ed. Freeman, Oxford.
*** (traduzido pela EDUSP, SP).
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Glossário
Adaptação: uma característica ou atributo que confere maior aptidão inclusiva a
um indivíduo.
Alelo: uma das formas alternativas de um gene.
Altruísmo: comportamento de ajuda que aumenta a aptidão do “recipiente” (=
aquele que recebe a ajuda), enquanto diminui a do altruísta (aquele que pratica a
boa ação).
Aptidão: na abordagem clássica da seleção natural refere-se ao número de
descendentes diretos de um indivíduo. Numa abordagem ao nível dos genes
refere-se ao número de réplicas de um alelo (ou um grupo de alelos) na geração
seguinte.
Aptidão direta: genes contribuídos por um indivíduo para a geração seguinte,
obtidos através da reprodução do indivíduo.
Aptidão inclusiva: o somatório da aptidão direta e indireta de um indivíduo (ou
das réplicas de seus genes).
Aptidão indireta: genes contribuídos por um indivíduo para a geração seguinte
obtidos através da ajuda a indivíduos aparentados, e cuja sobrevivência e
reprodução seriam impossíveis sem a referida ajuda.
Diplóide: portador de dois conjuntos de genes (um originário do pai e outro da
mãe). Organismos diplóides produzem gametas (espermatozóides ou óvulos)
haplóides.
Egoísmo: comportamento que aumenta a aptidão inclusiva de um indivíduo em
decorrência da diminuição da aptidão inclusiva de outros indivíduos.
Endocruzamento: cruzamento entre indivíduos aparentados.
Especiação: processo de formação de novas espécies.
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Espécie: unidade básica da classificação biológica dos seres vivos. Dois
organismos podem ser considerados da mesma espécie quando (desde que
sexualmente maduros e de sexos opostos) podem cruzar-se e produzir uma prole
fértil em condições naturais.
Etologia: nome pelo qual ficou conhecido o estudo do comportamento animal nos
anos sessenta e setenta; também conhecido como o estudo das causas próximas
do comportamento.
Eusocial: nome dado a uma forma de organização social que envolve (1)
cooperação entre indivíduos nos cuidados com os jovens; (2) divisão de trabalho
em castas reprodutivas e não reprodutivas e (3) sobreposição de gerações.
Evolução: em termos gerais refere-se às mudanças graduais nos organismos; em
termos genéticos refere-se às alterações nas freqüências gênicas das populações
de uma espécie ao longo de sucessivas gerações.
Fenótipo: qualquer atributo ou característica mensurável de um indivíduo, que se
expressa devido à interação dos seus genes e do ambiente (físico ou biológico) no
qual se desenvolveu.
Genótipo: conjunto (ou subconjunto) dos genes de um indivíduo.
Haplodiploidia: sistema de determinação dos sexos das vespas, formigas e
abelhas onde os machos são haplóides (originam-se de ovos não fertilizados) e as
fêmeas diplóides (originam-se de ovos fertilizados).
Haplóide: portador de um único conjunto de genes (ver diplóide).
Meiose: as duas divisões sucessivas do núcleo que precedem a formação dos
gametas.
Mutação: alteração na forma de um gene, mais freqüentemente, um erro na
replicação do DNA cromossômico.
Patrimônio gênico: conjunto de genes de uma população.
População: conjunto de indivíduos de uma mesma espécie, que vivem num
mesmo local e ao mesmo tempo.
Seleção de grupo: processo de seleção que ocorre entre grupos de indivíduos.
Seleção de parentesco: nome utilizado por Maynard Smith para designar o que
atualmente se entende como seleção indireta. Wilson (1975), entretanto, coloca a
Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]
Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL
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seleção de parentesco como um tipo de seleção de grupo, o tem lhe valido muitas
críticas por parte de outros pensadores importantes.
Seleção indireta: processo que ocorre quando indivíduos diferem em sua
capacidade de ajudar indivíduos aparentados (excluindo-se os descendentes
diretos) e/ou com réplicas de seus genes, a sobreviver e a reproduzir-se.
Seleção natural: processo que ocorre quando indivíduos diferem na sua
capacidade de produzir descendentes, em virtude de suas características
herdadas. Também chamada seleção direta.
Sociobiologia: uma disciplina que usa a abordagem evolutiva no estudo do
comportamento social.
Carlos Eduardo Guimarães Pinheiro - [email protected]
Departamento de Zoologia Instituto de Biologia – UnB 70910-900 Brasília, DF – BRASIL
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