ADRIANA GIANVECCHIO
A Cidade do Olhar: Imaginário e Representação em
São Paulo ‐ anos 30
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós‐Graduação Interunidades em Estética e
História da Arte da Universidade de São
Paulo.
Linha de Pesquisa: Metodologia e
Epistemologia da Arte
Orientadora:
Profa. Dra. Carmen Aranha
São Paulo
2007
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SUMÁRIO
Apresentação ........................................................................................................................... 2
Introdução ................................................................................................................................ 5
Capítulo 1
O Olhar da História ‐ ArtistiCidades
A cidade na História .............................................................................................................. 26 A cidade na Arte .................................................................................................................... 30 Estruturas da Modernidade ................................................................................................. 42
Capítulo 2 O Olhar do Lugar ‐ IdentiCidades
Identidade Nacional e Cultura ............................................................................................ 53 O Projeto Estético e o Ideológico ........................................................................................ 73 Modernistas e Nacionalistas ................................................................................................ 79
Capítulo 3 O Olhar da Memória ‐ MultipliCidades
Mapas da Memória e do Esquecimento ........................................................................... 109 A experiência estética na representação da cidade ......................................................... 132 As Estéticas Simbólicas ....................................................................................................... 142
Capítulo 4 Olhares
Arte e Política na cidade de 30 ........................................................................................... 147 Representações visuais da cidade ..................................................................................... 161 Imagens, Imaginários e Representações ........................................................................... 165
Considerações Finais .......................................................................................................... 189
Referências ........................................................................................................................... 199
2
APRESENTAÇÃO
Na pesquisa: A cidade do olhar: imaginário e representação em São Paulo – anos 30,
o conceito‐chave está na idéia de modernidade e modernização, compreendida em
sua raiz histórica e analisada no panorama de seus desdobramentos no Brasil.
Através de um recorte específico, a cidade de São Paulo nos anos 30, buscou‐se
analisar como se estabeleceu, a partir das rupturas iniciadas com as “vanguardas”, o
projeto ideológico e o artístico, conjugados na primeira fase da chamada Era Vargas.
Nesse sentido, o “lugar” visto como campo da cultura, foi analisado através de
concepções sobre identidade e memória, bases para o entendimento de aspectos do
imaginário e da representação relacionados à cidade.
Buscou‐se interpretar a cidade como uma “arena cultural1” onde os sentidos
sociais contraditórios convivem dentro de um espaço que, ao mesmo tempo em que
é produto, é também produtor dos sentidos dos que nela vivem.
O recorte enfocou um período em que as estruturas sociais estão permeadas
por rupturas e novas concepções, que produziram intervenções e deslocamentos
criando paradigmas para pensar a cidade, dentro de moldes estruturados por
ideologias dominantes. Nesse sentido, a investigação perpassou pelo entendimento
das esferas de poder, que criaram lugares e produziram imagens e lembranças
“autorizadas” da cidade de São Paulo, que tomaram força através de estratégias de
difusão e controle da informação, que têm suas raízes nesse período.
A metodologia se principiou pelo entendimento da cidade na história, desde
os sentidos antropológicos até as esferas da arte, passando pelo questionamento da
identidade nacional e seus produtos, fazendo uma breve incursão sobre as várias
fases que o Brasil percorre, dentro dos conceitos abordados, para a criação de seus
significados nacionais, até chegar a um mapeamento de significados urbanos que
permitiram a analogia entre aspectos da história oficial e das histórias do cotidiano,
ou seja, do que escapou a um repertório de memórias autorizadas. Dentro da
1 Cf. BURKE, Peter. Sobre a cidade pré‐industrial como um centro de informação e comunicação Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.8, n. 16, 1995, p.193‐203.
3
dinâmica estabelecida, através do espaço público, que criou como um mecanismo de
“separação” de culturas, a delimitação de aspectos que foram hierarquizados como
erudito e popular, e nessa escala, foram induzindo lembranças e esquecimentos.
Na investigação, parte dos dados foram obtidos através do percurso de ampla
bibliografia. Contudo, as estratégias de levantamento de dados, foram ampliadas
pela necessidade de ir além do percurso bibliográfico, para um exercício de crítica e
do entendimento das memórias, através da investigação do que foi “descartado” ao
longo do tempo pela cultura, ou seja, através de narrativas de “lembranças de
velhos” e da literatura considerada “marginal”, como também da produção artística,
com enfoque na produção plástica do período. Procurando entender a cidade pelo
“olhar” de seus lembradores e artistas. Ou seja, os critérios investigativos se
ampliaram através da inserção de narrativas sobre a cidade, levantados através de
registros de memórias afetivas. Dados esses que foram obtidos através de uma obra
de História Oral, considerada referência e que por várias vezes será citada nesse
trabalho. Os dados sobre lugares (topografias e toponímias), fatos e lembranças da
cidade, foram analisados juntamente com dados da literatura do período considerada
como “inferior ou menor” e revelaram aspectos da sociedade sob olhares muito
particulares. Os levantamentos conjugados com a análise da produção simbólica de
grupos de artistas do período, de diferentes origens sociais e redes de relações,
possibilitaram uma visão panorâmica, que percorreu desde as esferas da
intelectualidade, centrada nas elites, como também o universo de operários
engajados em movimentos e grupos de artistas. As informações que foram
adquiridas, através das fontes orais e da análise de obras de artistas de diferentes
origens sociais, revelaram outros olhares para a cidade. Sendo que, o resultado
imagético dessa “cidade da memória” se mostrou bem diferente das imagens
divulgadas pelo aparelho do Estado, através de seus órgãos de controle e difusão da
informação, revelando uma cidade fora dos moldes difundidos pela propaganda
oficial. Através dos levantamentos pode‐se constatar que, foram as estruturas
ideológicas de controle e difusão da informação que criaram uma “tradição do olhar”
4
sobre a cidade de São Paulo, sempre por um viés construído e idealizado, de
metrópole do progresso. Dentro da concepção de São Paulo, como a cidade
modernista e modernizada, vista como uma referência de Brasil ideal.
Alguns dados que construíram esses paradigmas, foram analisados em suas
premissas, objetivando uma desconstrução das memórias oficiais, que por sua vez,
revelaram o poder desse “olhar oficial” e da idealização da metrópole,
estrategicamente difundido e estruturado, que se expandiu apagando memórias e
culturas espontâneas, em nome de aspectos de uma identidade nacional elaborada.
Dessa forma, os critérios metodológicos se ampliaram e o sentido da pesquisa
científica resultou em uma intensa preocupação pelo entendimento da cidade como
espaço de convivência de todas as ordens humanas e das conseqüências dessas
“intervenções” reveladas na contemporaneidade, sobretudo em relação ao
patrimônio cultural.
A cidade é, portanto, um produto cultural e na interpretação contemporânea, é
quase sempre vista e tomada como mercadoria. Fator esse que cada vez mais
desumaniza as relações, sobretudo nos chamados não‐lugares2, ou seja, os espaços de
todos os seres, cada vez mais individualistas e competitivos, que são frutos dessas
sociedades e da proliferação da insegurança no convívio, da violência crescente e do
rito do consumo. É preciso uma revisão dos paradigmas dessa cidade que cresceu
desordenada e desumana, de modo a tentar refrear essa pulsão destrutiva.
A “cidade do olhar” convida a uma reflexão sobre o lugar, as identidades, as
trocas, os signos e as culturas da cidade de São Paulo, através de fragmentos de uma
arqueologia cultural e imagética, que buscou desvelar na essência das memórias
esquecidas, a possibilidade de encontrar outros sentidos no espaço urbano.
2 O não‐lugar é diametralmente oposto ao espaço personalizado. É representado pelos espaços públicos de rápida circulação [...] São lugares desprovidos de memória. Cf. AUGÉ, Marc. Não‐lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.
5
INTRODUÇÃO
A cidade de São Paulo é considerada a metrópole mais modernizada do Brasil,
ícone do progresso e da modernidade. Vista como um grande centro cultural e
tecnológico, é o lugar das oportunidades. Essa idéia de São Paulo está presente no
imaginário e nas representações da cidade. Porém, as memórias oficiais de São Paulo
e seus monumentos, pouco revelam do lugar e sim nos remetem a um período onde
esses sentidos foram fabricados para se estabelecer uma “cidade‐modelo”.
Na busca pela origem desses sentidos, chegou‐se ao período da criação de
uma idéia de “Brasil Moderno” que tem nos anos 30 o seu ápice, e nesse panorama a
questão da identidade nacional, que escolheu a cidade de São Paulo como a
representação da “modernidade” brasileira.
Dentre os vários os questionamentos que nortearam essa investigação,
destacam‐se algumas perguntas:
Como seria a cidade de São Paulo, no período em que se instalou no Brasil
a “necessidade” de recriação do nacional e que a mesma foi eleita como a representante desse
ideal de modernização nacional?
Como a cidade é lembrada, ou melhor, como é a “cidade da memória” dos que viveram
naquele espaço e tempo?
Nos anos 30, a cidade de São Paulo já era uma “metrópole nos moldes futuristas,
dentro da estética adotada pelas chamadas “vanguardas”?
De que forma São Paulo era representada pelos artistas no período em que era
idealizada pelos governos?
Quantas memórias foram esquecidas para que se alinhasse o espaço idealizado ao
projeto de nação?
Para captar a ambiência sócio‐político e cultural da cidade, nos anos 30,
escolheu‐se o viés da arte, da pintura da cidade, e das narrativas “esquecidas”, que
são a memória oral e a crônica marginal, em contraponto com as fotografias e
estratégias de difusão do ideal de brasilidade do período. Nesse estudo, o recorte
6
está na análise das representações e, portanto, da construção da imagem do lugar,
relacionada ao imaginário da cidade de São Paulo, caracterizado por grandes
contrastes. Os principais campos de investigação da pesquisa relacionam questões
acerca da identidade, memória e patrimônio. Porém, não no sentido das
oficialidades, visto como uma construção das memórias autorizadas, mas no sentido
de interpretar essas questões através de um olhar peculiar, que vai buscar no campo
do imaginário a malha simbólica das representações.
Interpretando a cidade e seus habitantes como um elo orgânico para verificar
de que forma as seleções da memória podem ser direcionadas para esquecimentos,
eliminando, portanto, os “incômodos” e “embelezando” os favorecimentos.3 Esse
pensamento operou transformações no espaço, pelas vias do poder e dos
cientificismos. 4
Por isso, a pesquisa envereda também pelas questões de enraizamento da
identidade nacional, para verificar como a ação ideológica se estruturou através de
um nacionalismo pedagógico, que imprimiu à paisagem seus ideais e se conformou
numa estética cosmética e numa memória‐prótese.
O trabalho partiu da historiografia sobre a cidade de São Paulo nos anos 30,
perpassando por aspectos do universo das artes, arquitetura, política e cultura. Por
isso, a base estrutural dessa pesquisa, de certa forma, se estabeleceu no campo da
transdisciplinaridade5, não somente por se alinhar com um momento de transição na
academia e, conseqüentemente, de revisões epistemológicas, ou por que advém de
um programa interdisciplinar. É claro que esses fatores são definidores dessa
trajetória. Mas, sobretudo, pelas possibilidades de aproximações com outros campos
de estudos e outros olhares para o mesmo recorte temático.
3 O “projeto modernizador” nas cidades, incluía em seu programa, medidas “profilática” que eram justificativas para práticas xenofóbicas, como veremos no desdobramento da pesquisa. Cf. LEMOS, C. A República ensina a morar melhor. Coleção Estudos Históricos. São Paulo: Hucitec,1999. 4 Para o entendimento da memória seletiva e da epistemologia do conhecimento crítico. Cf. MORIN, E. A Cabeça Bem‐Feita: Repensar a reforma. Reformar o Pensamento, 2004. 5 Transdiciplinaridade, terminologia usada no sentido de estar além da inter‐disciplinariedade, que se estabelece através da superação da fragmentação das especialidades.
7
O mesmo objeto de estudo, a cidade nos anos 30, foi analisado por vários
ângulos, que revelaram dissonâncias e confluências e, conseqüentemente,
polissemias no campo da memória. Porém, o eixo teórico do trabalho, encontra‐se
na História da Cultura, que por sua vez é o elo entre os vários campos do saber, que
foram consultados no processo da construção das interpretações aqui reunidas.
Embora o recorte temático da pesquisa seja bem delineado, as contradições na
representação da cidade, em um período determinado, não se pautam pela busca de
conclusões, e sim pela compreensão dos fenômenos culturais que perpassam pelo
imaginário, pelas representações e pelas memórias que se estruturam na (e através
da) cidade, que por sua vez, são núcleos de organização dos seres humanos.
As interrogações, que são o princípio dessa metodologia, foram se
estruturando durante o “caminho”, que têm seus primórdios de inquietação,
despertados através do questionamento acerca do que se entende por “patrimônio
cultural”, sobretudo, na questão da arquitetura e do urbanismo, cuja área foi objeto
de especialização.6
As premissas desse estudo têm, portanto, um aporte que buscou encontrar
respostas na produção do conhecimento e nas esferas que dialogam com as
tendências de revisão de “lugar da cultura”.
Alguns aspectos da trajetória de desenvolvimento dessa pesquisa, desde seus
antecedentes, estão elencados nesse intróito, embora de forma anacrônica, por serem
parte de um processo que traz em sua trajetória várias peculiaridades, que podem
servir de referencial para o entendimento da construção metodológica.
Pode‐se dizer que, esse caminho se principia pelo interesse acerca da questão
do patrimônio em relação à memória, e das indagações que se estabelecem a partir
da participação em um Projeto de Educação Patrimonial7 responsável por parte das
interrogações sobre a cidade, cultura e identidade.
6 Especialização em Preservação e Restauro do Patrimônio Arquitetônico e Urbanístico. Monografia: Os Capomastri e a Tradição de Ofícios (1880‐1930). FAU. Universidade Católica de Santos, 2003. 7 Projeto realizado mediante convênio de cooperação científica entre USP, Museu Paulista e Arquivo do Estado. Coordenado pelas Profas. Kátia Abud e Raquel Glazer. São Paulo, 2001.
8
O projeto, que enfocava o estudo das imagens da cidade de São Paulo, através
de análise comparativa dos álbuns de fotografia de Militão e Gaensly8, embora
contemplasse a fotografia e suas técnicas, suscitou várias dúvidas acerca da questão
memória/patrimônio e conseqüentemente, da relação do indivíduo com o seu local
de “pertencimento” histórico e seus elos culturais. Surgiu então, a necessidade de
buscar outras referências para entender os processos de formação da identidade e,
nesse âmbito a cidade foi vista como campo semântico, ou seja, como produtora de
sentidos através dos significados.9 O interesse pela questão do imaginário e das
representações, surgiu pela possibilidade da descoberta de outros olhares.
No início, o projeto de pesquisa apresentado ao curso de Pós‐graduação
Interunidades em Estética e História da Arte, consistia em mapear uma rede de
significados urbanos para contextualizar e comparar a história oficial com as
histórias do cotidiano, através das pinturas produzidas nos anos 30, traçando um
percurso do olhar sobre a cidade. Com o desenvolvimento da pesquisa e com a
bagagem que foi sendo adquirida ao longo do trajeto, sobretudo, pelas disciplinas
cursadas, o trabalho definiu melhor seus contornos e os objetivos se estruturaram na
dicotomia ideologia/estética, presentes na questão urbana acerca da “história da arte
como história da cidade”10.
Conforme os questionamentos se ampliaram na esfera da cultura e as
investigações se intensificaram, as questões acerca da identidade e da memória
foram sendo levadas, inevitavelmente, para questões relacionadas aos conceitos de
nação e criação da identidade nacional e os vários desdobramentos acerca dessa
temática tão complexa.
8 Augusto Militão e Guilherme Gaensly, fotógrafos que retrataram a cidade de São Paulo, de 1887 a 1920, respectivamente. 9 Entenda‐se por campo semântico, toda a área de significação de uma palavra ou de um grupo de palavras. A teoria dos campos semânticos fornece um método valioso para a influência da linguagem no pensamento. Um campo semântico reflete as idéias, os valores e as perspectivas da sociedade , como também transmite novas gerações uma análise já elaborada da experiência através da qual será visto o mundo [...]. Cf. Semântica, 4ªed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977, p.523. 10 ARGAN. Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo. Martins Fontes, 1988.
9
Cumpre salientar que a pesquisa tem seu cerne epistemológico na
historiografia e na interpretação que se estabelece dentro dos preceitos da Nova
História.11 Portanto, o recorte não se limita apenas no espaço/tempo (São Paulo nos
anos 30), e sim nas análises comparativas das representações pelas diferentes
vertentes documentais (arte, literatura, depoimentos orais e bibliografia). Evitando, a
análise positivista, feita apenas no recorte do objeto e na confrontação de fontes
escritas. Na análise das estruturas, considerou‐se a “cidade como objeto, como
produto e como arte”, e os diálogos possíveis, dentro de um mesmo recorte temporal,
se estabeleceram. As estruturas de poder foram observadas e pontuadas, embora os
recortes fossem feitos sempre da perspectiva da história da cultura.
Sobre o método, buscou‐se uma desconstrução e re‐elaboração constantes da
cidade, evitando qualquer alinhamento com questões ideológicas, embora elas
tenham sido levantadas para análise de dados. Uma das conjecturas motrizes da
pesquisa, parte da idéia de que São Paulo foi uma “metrópole inventada”, dentro de
moldes estabelecidos ideologicamente, para ser um palco das representações do
processo de industrialização e de progresso, sendo assim um paradigma de
modernização do Brasil. Posto que há um descompasso entre a narrativa oficial e as
representações, onde o imaginário tem presença dominante. Portanto, a
representação do passado histórico da cidade de São Paulo, dentro da idéia de
metrópole, lugar do progresso e da modernidade, pode ser entendida como uma
criação utilizada dentro de um ideal de fabricações temporais e de recordações
nacionais como produto, construídas e alinhadas a todo ideário de (re)construção da
nação. As fontes reunidas visaram estabelecer analogias e aproximações entre
universos próximos e ao mesmo tempo muito distantes, como narrativas afetivas e
11 Nova História ou História das Mentalidades: teoria da história que busca interpretar os fatos através do diálogo com outras ciências, como a antropologia, a psicologia, e a sociologia, entre outras. Resumidamente, é uma história problematizadora do social, preocupada com as massas anônimas, seus modos de viver, sentir e pensar. Cf. CHARTIER, Roger. Introdução. In: A história cultural. Lisboa, Difel, 1990; LEVI, Giovanni. Sobre a micro‐história. In: BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo, SP. Unesp, 1992; VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história. São Paulo, SP: Campus, 2002.
10
documentos, onde se inserem as sistematizações oficiais em que se fabricam as
referencias locais, ou os lugares da memória.
A Fenomenologia da arte forneceu aspectos teóricos para analisar o recorte
visual das imagens da cidade, a partir da perspectiva das explicações históricas
presentes na arte, vista como um componente constitutivo do sistema cultural, que
pode ser percebido através da obra e da linguagem pictórica, reveladas na própria
arte. Ou seja, a arte vista como um agente da história, que opera num campo próprio
e que se enquadra na história da cultura. Por isso, as analises formalistas foram
suspensas para o entendimento das obras através de sua essência e esse fator é
determinante na pesquisa.
Foram selecionadas pequenas amostragens de fontes: narrativas orais,
literárias, oficiais e culturais. Os vários ângulos da memória foram considerados
nessa abordagem histórica, assim como seus produtos: o mito, o rito e a arte, como
testemunhos do gosto e das referências presentes nas representações da cidade, nos
símbolos urbanos, nos elementos étnicos, nas inclusões e deslocamentos, nos
significados religiosos, míticos, utópicos, nas evocações poéticas e nas fantasias. Ou
seja, nas produções do imaginário, como uma das principais expressões de outra
realidade histórica. A construção narrativa se desenvolveu privilegiando o espaço
das chamadas “representações imaginativas”, por isso, todo o texto recorre à leitura
imagética como contraponto. Enfatizo que, o recorte temático está na cidade de São
Paulo vista em um período de transições e focado, sobretudo, na questão do
imaginário e das representações no campo cultural. Embora não haja um estudo de
caso específico, foram observadas as dissonâncias entre as várias faces da memória,
reveladas através das fontes pesquisadas.
O trabalho é, portanto, um exercício de interpretação, realizado através dos
princípios da hermenêutica, isento de determinismos e linearidades. Através de uma
compreensão inserida numa visão de mundo, onde as subjetividades estão
permeadas por um conjunto de significados embutidos na cultura, na língua, no não‐
11
dito e na pluralidade dos elementos que foram selecionados como fontes, para o
entendimento dos registros de memória.
A reflexão se estende, inevitavelmente, para a questão do patrimônio
arquitetônico, urbanístico e cultural, que ao longo do tempo, foi sendo projetado,
construído e desconstruído, para a criação lugares a serviço das memórias e de
funções utilitárias e ideológicas. Por isso, também se propõe um questionamento
acerca da legitimidade desse patrimônio.
A imagem urbana foi analisada como uma construção, situada entre o
fenômeno político e as ações impressas no âmbito das cidades, para verificar até
onde as estéticas estruturam as identidades. Nesse percurso, procurou através da
analogia entre diferentes olhares, entender a cultura por suas representações. E
também analisar de que forma a indústria cultural começa a se estruturar nesse
período, através das vertentes representativas e como conciliou as instâncias da
cultura, popular e erudita, para criar as bases da cultura de massas e uma nova
ordem.
Deve‐se considerar algumas premissas para a leitura e o entendimento da pesquisa:
O desenvolvimento das imagens da cidade se estabelece numa dinâmica que cria
cânones de representação da cidade de São Paulo como modelo de modernidade. Há
dois momentos nesse processo, o olhar oficial e o olhar individual. Porém, o que se
principia nessa investigação está na percepção do olhar do cidadão comum e do
artista, na construção das memórias e nas representações, comparado ao olhar oficial
e a uma vertente propagandística que se estrutura num período de conformação da
indústria cultural. Partindo desse pressuposto, verificou‐se as diferentes formas de
olhar para o lugar da cultura, na tentativa de compreender o fenômeno dos processos
identitários. Nesse sentido, a pesquisa questiona a cidade histórica, através da
presença de determinados conceitos e valores, que são traduzidos na sua arquitetura
e em seus marcos simbólicos, e que definem identidades.
12
A proposta de análise também consiste no desenvolvimento da percepção acerca
da “identidade nacional”, por dois ângulos: os “modernismos e os nacionalismos”,
através dos movimentos de rupturas e transformações no campo das estéticas
simbólicas. Portanto, o sentido de identidade, e de pertencimento será questionado
através de referências históricas construídas, e a memória coletiva será analisada no
contexto, para verificar se o ato de lembrar pode ser mais do que uma viagem através
da história, revisitada e materializada no presente e pelo legado material, se pode ir
além dos mecanismos que desencadeiam as lembranças.
O centro do mundo – a cidade/identidade
Nesse sentido, é significativo registrar uma passagem que, por sua vez, abriu
um leque de questionamentos sobre as questões abordadas: “a identidade entre
cidade e a arte e a forma como o ser se insere no espaço, ou melhor, como a cidade é
definidora de identidades e de deslocamentos. Por isso, o olhar sobre as cidades nos
remete ao lugar das visões de mundo. O olho, nas esferas simbólicas é o lugar da
observação, o símbolo da identidade. Lembrando que olhamos o mundo do lugar
onde estamos situados. Estamos todos no centro do mundo.”12
A metodologia parte do particular para o todo, por esse motivo, registro
abaixo, dois pequenos relatos, que situam bem o objetivo desse trabalho, que é:
Entender como as memórias, que nascem das relações de afeto e das histórias de
vida, podem ser suplantadas por histórias oficiais positivistas e inculcadas por um
viés de uma educação que se sobrepõe à memória pessoal e que cria deslocamentos.
Os relatos que reproduzo aqui foram o fator desencadeante do processo de
entendimento, que deu origem a um princípio básico da epistemologia, que é “ver
para compreender”. Esse foi o caminho encontrado para analisar as construções
imagéticas, ou representações, tanto pelo que podem suscitar como lembrança, como
também, pelo que podem conter no esquecimento.
12 BERTOLI. Mariza. Registro de aula – Curso: Produção e Crítica de Arte na América Latina, 2006. (Informação verbal)
13
A Identidade entre Cidade e Arte – ou algumas as narrativas que desencadearam o interesse
pelo tema da pesquisa:
1. Relato: Um morador de uma cidade do interior de São Paulo, ao se
deparar com uma polêmica sobre o restauro de afrescos de uma igreja,
contou que, em sua infância um padre da referida paróquia havia
pedido para as famílias que freqüentavam as missas, fotografias das
crianças e que os anjinhos dos afrescos tinham esses rostos retratados,
inclusive o dele e de sua irmã. Logo emendou dizendo que:
“infelizmente as pinturas não tinham valor histórico, pois eram
produzidas por ‘uns Zé Ninguém‘ que ‘bebiam pinga’ na esquina e
ninguém conhecia, que não eram pintores famosos e que, portanto,
tudo deveria ser coberto (pintado sem restauro). Porque nenhum
‘artista de verdade’ havia feito aquilo não, apenas uns pedreiros
bêbados. Portanto, o padre não devia se preocupar em preservar nada
daquilo pois o empenho em restaurar aquelas pinturas era uma
bobagem (sic).”
*Note que o mesmo afirmou reconhecer a irmã em um dos anjinhos, em ter
freqüentado a igreja na infância e mesmo assim desvincula a arte da memória, a
invalida e desqualifica os artistas pelo status social dos mesmos.
2. Relato: Em uma Igreja do interior do Paraná, em meados de 80 uma
polêmica acerca do patrimônio desencadeou uma curiosa e delicada
situação. Um padre de uma paróquia da cidade de Jacarezinho, havia
contratado um artista plástico (que por sua vez era irmão do bispo da
cidade), para criar afrescos religiosos e “decorar” a capela. O artista,
para “homenagear a comunidade local”, caracterizou em suas
representações do sagrado, elementos da cidade considerados
alinhados com o profano. Ou seja, caracterizou como Maria Madalena,
uma meretriz da cidade, como cristo um mendigo dos arredores, como
14
Judas o próprio bispo (seu irmão), além de inserir elementos do MST
nas representações e fez, à sua maneira, uma espécie de “justiça social”.
É claro que essa homenagem criou muito mais do que desconfortos. A
comunidade ficou em choque, o bispo entrou com uma ordem para que
tudo fosse pintado, porém um pequeno grupo de intelectuais protestou,
pediu tombamento. A história se prolongou por tempo demasiado,
criando cisões e entrou em esferas de poder. A conclusão é que tudo foi
encoberto por tons de cinza.
Essas narrativas foram reproduzidas, na forma empírica, e muitos dados
foram omitidos, posto que a pesquisa não se destinou a desenvolver estudos de caso
e também por que dessa forma se preservou particularidades das situações relatadas,
evitando polêmicas. Dessa forma, os depoimentos, embora sejam dados reais, foram
tratados informalmente.
Porém, essas narrativas são emblemáticas e situam a preocupação, que se
principia pela indignação, justificada nesse estudo, que conduziu a investigação
sobre o que poderia ser o embrião dos lamentáveis episódios relatados, que marcam
tantos descompassos entre a memória e lugar e demonstram a fragilidade da questão
identitária, de modo geral.
Considero a primeira narrativa como uma espécie de “ponta do fio de
Ariadne”13 que desvelou (ou “desnovelou”), uma série de questionamentos muito
significativos para o processo. Essas histórias, embora contadas sem compromisso,
são reveladoras, pois através delas percebe‐se a maneira como a memória individual
e de pequenos grupos, muitas vezes é suplantada numa escala de valores onde o
coletivo e o oficial se estabelecem e onde a memória pessoal sucumbe dando lugar a
uma estética produzida com referência em valores artificiais e as memórias afetivas
são consideradas insignificantes. Sendo assim, surge a questão: Qual seria o sentido
13 Refere‐se ao mito grego: Ariadne entrega um novelo a Perseu, para que dessa forma ele possa sair do labirinto.
15
do patrimônio como legado da humanidade? Perpetuar, através de monumentos, as
esferas de poder?
Esses episódios fizeram avivar um interesse pela questão da memória urbana
e suscitaram o questionamento acerca da construção das identidades.
Nesse sentido, considera‐se a imagem urbana como uma construção, que se
situa entre o fenômeno artístico, a ação política e as ações e narrações impressas no
âmbito das cidades, onde estão presentes as referências estéticas.
A reflexão surge através da forma, ou melhor da morfologia do lugar, e a
análise da arte como possibilidade de uma arqueologia das imagens, e sobre como
olhamos para a cidade e o que entendemos por memória, identidade e,
conseqüentemente, patrimônio.
O segundo relato, por sua vez, evidencia como as esferas de poder podem
criar seus mecanismos de controle dentro de uma pequena comunidade, e a
população, modo geral, tende a se alinhar com os poderes em questão sem
questionar o caso com um olhar atento. Ou seja, a “cegueira” coletiva pode ser
disseminada assim como a catequese por imagens.
Em suma, o caminho que se principiou com essas narrativas, foi embasado na
necessidade de se pensar sobre a construção das identidades e das referências
urbanas, para possibilitar o desenvolvimento da percepção através olhar e
estabelecer uma reflexão sobre a questão patrimonial e sobre a “construção das
memórias”.
Os anos 30 do século XX, foram objeto de recorte, por caracterizar uma época
de intensas e significativas mudanças no panorama político mundial e, sobretudo, de
transformações na América Latina, com grandes mudanças no universo das
tecnologias que repercutiram no território da cultura e de redefinições político‐
sociais. Período esse em que, no Brasil, a idéia de nacional foi reconstruída.
Nesse processo, a metodologia foi se estabelecendo com a busca de referências
para o entendimento da cidade de São Paulo, por diferentes ângulos: a história oficial
e a história do cotidiano nas esferas da cultura e, portanto, do imaginário e das
16
representações. Buscou‐se uma confrontação de imagens e memórias, recortadas para
mapear a difusão das idéias em que perpassam entre questões da estética e da
ideologia e que através das referências construídas foram criando junções e
disjunções no panorama das construções das referências e das representações.
Na perspectiva dos “projetos de modernidade” essas memórias se inserem e
dialogam com o espaço urbano e com as questões do imaginário, presentes nesse
mesmo espaço. A cidade é vista como campo de possibilidades, pois é o lugar das
manifestações culturais. Por isso, verificou‐se a dialética entre o contexto urbano e os
projetos estético‐ideológicos, nas construções que marcam essas representações.
No caso de São Paulo, a cidade é dominada pela presença do Estado em suas
esferas burocráticas e as atividades e serviços são organizados pela produção
industrial que já nasce incentivando a competitividade, que por sua vez também se
refletirá no panorama urbano e, conseqüentemente, na produção cultural que cria os
espaços de utopias (o El Dorado), que bem sabemos o que ocasionou ao longo da sua
trajetória, como por exemplo, a aceleração do crescimento demográfico e suas
conseqüências.
A metodologia utilizada para investigar aspectos tão peculiares e antagônicos
a respeito da morfologia urbana e os efeitos da intervenção na sociedade através da
construção/desconstrução dos lugares da memória e do esquecimento, foi
estabelecida considerando os referenciais colhidos através das narrativas de vida, e a
idéia de pertencimento, que estavam relacionadas à idéia de nação e aos conceitos de
representação, tanto na esfera do indivíduo como da coletividade, que causam os
deslocamentos.
O método se estabelece a partir de um recorte que remete ao sentido de
pertencimento e que propõe um questionamento sobre memória e patrimônio. Para
que, através das singularidades, se verifique a situação cultural dentro do
desenvolvimento da experiência artística, e dessa forma a obra de arte possa ser
entendida como um sistema de relações. Portanto, alinhavam‐se nesse trabalho, o
método sociológico e o método iconográfico, sendo o primeiro relacionado a arte
17
como produto de uma sociedade e de uma situação histórica específica, onde o
artista é parte ativa, mesmo que por algumas vezes condicionada a esferas de poder
que a reduz a mera operação técnica, mas ainda assim o artista pode revelar os
sistemas culturais através de sua produção. Nesse sentido, o método iconológico
também utilizado, buscou entender a obra como realidade social, partindo da
premissa que a atividade artística traduz em imagens as estruturas do período,
através do simbólico. A atividade artística é essencialmente atividade da imaginação:
mas na imaginação incluem‐se também as imagens sedimentadas na memória.14
Foi feito um mapeamento para “cruzar” informações entre: narrativas do
lugar, o olhar do artista e “os óculos do Estado”. E nesse contexto tentar situar os
direcionamentos que vão estruturando, no panorama político e estético, as
identidades individuais e coletivas. Numa dinâmica que procurou alinhavar as
questões das rupturas das vanguardas com as representações sobre o espaço urbano,
criadas no panorama político do período de 30, palco de nítidas diferenças
ideológicas e radicalizações. Por outro lado, esse é um período de aproximações,
entre política e cultura e entre o público e o privado na cidade.
Segundo Argan, “Os homens do poder são os homens do progresso, os artistas
são os homens do retorno. E exatamente nisso consiste a enorme importância da sua
contribuição. Eles resgataram a arte da condição de sujeição ao poder”.15
As incursões pelo período, se estendem dos anos 20 aos 40, para que se possa
contextualizar diferentes nuances do processo de modernização e dos movimentos
que se estruturam na década de 30.
A representação da cidade se apresenta como a representação do “moderno”
no Brasil, dentro dos ideais de modernização que irão se confundir nas esferas do
nacionalismo e apresentar várias vertentes que irão criar memórias autorizadas
14 A história da arte é a história da cultura elaborada não pela via dos conceitos, mas por meio das imagens. As imagens têm no mundo uma existência própria: propagam‐se embora alteradas, em todas as classes sociais, não conhecem limites de ‘escolha’ nem de ‘estilo’ nem de nação. ARGAN. G. C. Guia de História da Arte. São Paulo: Editorial Estampa, 1994. pp.37‐50. 15 ARGAN, 1988. Op.Cit.
18
numa releitura da idealização do nacional. O período é marcado também pela
chamada era da “reprodutibilidade mecânica16” onde a indústria cultural tomará
forma e definirá padrões de comportamentos.
Para compreender as modificações culturais e a questão da demarcação das
identidades, fez‐se necessário uma retrospectiva dos fatores que culminaram na
busca desses ideais e que começam no século XIX, mas que em 1930 se fortalecem
com a “Revolução” e se consolidam no Estado Novo, adequando as estruturas e
oferecendo um amplo leque de possibilidades de re‐significações através do aparelho
burocrático.
Embora o trabalho se estruture através de um arcabouço teórico que se
embasa em análises bibliográficas, o ponto de partida foi a cidade e as
problematizações acerca dos modernismos e nacionalismos, foram caminhos para
verificar as dissonâncias na esfera da cultura e das construções de identidades,
considerando as intervenções promovidas através dos projetos urbanos e culturais
ocorridos na cidade. Considerou‐se a dimensão política das propostas estéticas
construídas pelos artistas, como os reveladores e produtores de bens simbólicos e
interpretes da realidade social.
Foram feitas várias recorrências ao espaço chamado “arena cultural”17 com o
objetivo de delinear questões relacionadas tanto ao espaço urbano quanto ao
ambiente cultural, onde circularam o homem comum, o artista, o político, a elite, a
intelectualidade, e onde não havia lugar para os chamados “incômodos” que foram
sendo “excluídos”, remanejados dos espaços, através de medidas consideradas
profiláticas, higienistas e xenofóbicas.
Nesse sentido a cidade é o espaço dos sentidos sociais, muitas vezes
contraditórios, mas que convivem numa mesma esfera. Espaço esse que é produtor e
produto dos atores individuais e coletivos que nela vivem.
16 Cf. BENJAMIN. Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Vol.1. São Paulo: Brasiliense, 1993. 17 Cf. BURKE, Peter. 1995, loc. cit.
19
No campo da amostragem, partiu‐se da análise de narrativas, que teve por
base entrecruzar referências de lugar‐memória, encontradas nos depoimentos do
livro de Ecléa Bosi, que forneceu a base para se trabalhar com história oral e analisar
narrativas de pessoas que viveram no período. Nas “lembranças de velhos” do livro
de Ecléa Bosi, foram mapeados os lugares da memória (ou a memória dos lugares),
sendo uma fonte importantíssima no desenvolvimento dessa pesquisa, onde se
confronta o olhar com as narrativas.
Outra obra analisada como fonte, foram as crônicas de Sylvio Floreal,
intelectual‐marginalizado, que ofereceu uma escala da chamada boêmia e da vida
paralela do período, estabelecendo suas narrativas em torno dos lugares “proibidos:
dos vícios, das misérias e dos esplendores”18 Esse foi o primeiro momento dos
recortes e referências que partem das representações contidas nas narrativas e que
irão se estender, ainda no campo da amostragem, para o território das imagens e das
representações, que embora seja um universo vastíssimo, buscou‐se, dentro do
recorte, uma pequena aproximação com os chamados “círculos da intelectualidade‐
artística do período”, de vertentes de diferentes origens sociais e atuações na esfera
público‐privado. E da propaganda ideológica.
Foi realizado um pequeno recorte de trabalhos de artistas, para a escolha das
imagens, buscando como referências artistas que tivessem pertencido a organizações
do período, tais como: a Sociedade Pró‐Arte Moderna (SPAM), considerado como
mais alegórica, do Clube dos Artistas Modernos (CAM), com um alinhamento mais
contestador e politizado, e também do Grupo Santa Helena, de origem operária, e
portanto de uma intelectualidade que tem outra origem social, e que por sua vez,
escapou ao “olhar vigilante” por uma produção considerada inofensiva e acadêmica,
mas que, curiosamente, revelava “mundos contrários” aos da visão dominante, como
veremos.
18 Cf. Silvio Floreal. Ronda da Meia Noite: Vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo: Boitempo, 2002.
20
Todas essas associações de artistas e intelectuais surgiram na década de 30,
em consonância com as mudanças na esfera política, porém eram vistos como uma
espécie de resistência cultural, que em algumas instâncias, provocaram reações
públicas. As referências bibliográficas e as fontes iconográficas seguiram uma
seqüência para o encadeamento das idéias apresentadas, que têm sua abordagem
estruturada nas amostragens de representações do período e no entrecruzamento das
informações levantadas. No mapeamento, o recorte estabelecido como espaço do
imaginário e das representações, considerou vários aspectos da produção simbólica,
que foram utilizados para verificar as questões do nacionalismo e do modernismo na
concepção da arte e cultura.
Analisando como um processo a questão da modernidade e do modernismo,
na esfera das construções do imaginário, e também no que tange aos nacionalismos,
as principais fontes se estabelecem na iconografia do espaço urbano produzido pelos
artistas escolhidos. Como contraponto foi realizada uma rápida incursão sobre a
produção das imagens fotográficas veiculadas pelo governo, encontradas em
diferentes segmentos, como nos postais distribuídos pelo Departamento de Imprensa
e Propaganda e também em algumas imagens da Revista São Paulo19. Através dessa
pequena seleção de narrativas e iconografias, pretendeu‐ se estabelecer os campos
para verificar os contrapontos da cidade como lugar da construção das memórias
coletivas e individuais.
Cumpre enfatizar que foi através dessa seleção diversificada de fontes, que os
dados para a reconstrução/desconstrução dos imaginários acerca da cidade e seus
lugares de memória/esquecimento foram mapeados. Sem maiores aprofundamentos,
na esfera político‐social, os mesmos figuraram apenas como elementos fornecedores
de material para o propósito desse estudo.
19 A Revista São Paulo foi um periódico mensal que circulou de 1935‐1936, tendo sido publicado ao todo, dez números. Consistia na divulgação da gestão de Armando Salles Oliveira e visava divulgar obras na cidade de São Paulo. Tinha como característica uma grande difusão de imagens e fotomontagens. Cf. MENDES, Ricardo. A revista S.PAULO: a cidade nas bancas. Unicamp, 1994.
21
Destaco também, que na esfera das representações, o cinema, que nessa época
ainda se estrutura, mas que já tem grande força representativa e será um poderoso
veículo do Estado, não foi analisado. O cinema, embora revele com muita clareza os
descompassos do período, não foi objeto dessa pesquisa.
Dentro da premissa interdisciplinar que é a tônica da contemporaneidade e
um dos mais agudos questionamentos da epistemologia atual, pode‐se afirmar que a
experiência foi bastante interessante e profícua.
Não posso deixar de mencionar que a possibilidade oferecida através do
Programa Interunidades em Estética e História da Arte, foi uma experiência que
permitiu o trânsito pelas faculdades de Artes, História, Filosofia, Arquitetura e
Urbanismo e, portanto, acesso a uma grade de cursos bastante ampla, com
segmentos que puderam oferecer um excelente instrumental para o desenvolvimento
do presente estudo.
A construção do referencial teórico e analítico da pesquisa se estabeleceu na
escolha das disciplinas cursadas durante todo processo de pesquisa. Toda seleção de
bibliografia específica foi realizada de acordo com as várias abordagens do projeto.
As disciplinas cursadas foram de grande importância para o desenvolvimento
do tema. Todas tiveram um papel definidor na pesquisa e foram decisivas no
processo de seleção da bibliografia.
As referências para entender a cidade foram permeadas de estruturas e teorias
que forneceram elementos para aproximações sobre o ‘pensamento visual’ do
período. Portanto, a investigação dessa pesquisa objetivou interpretar a arte, através
do eidos/epoché20, ou seja, através da sua essência, na percepção da arte como narrativa
visual.
Dentro da dicotomia arte/política, buscou‐se analisar os contrastes de
percepção da cidade. A cidade do artista e a cidade do poder, duas esferas num
20 Eidos/epoché. Noção das essências [apud] Husserl. Buscar a essência do mundo não é buscar aquilo que ele é em idéia, uma vez que tenhamos reduzido ao tema de discurso, é buscar o que ele de fato é para nós antes de qualquer tematização. Cf. MERLEAU PONTY. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
22
mesmo espaço. Através da fenomenologia buscou‐se “habitar” os espaços da
memória, através dos caminhos das narrativas e das representações, cuja porta está no
imaginário do período:
A arte é uma captação permanente do mais ínfimo movimento do
gosto e das idéias de uma época (...) cada modificação substancial da atitude
humana repercute em todas as atividades contemporâneas, principalmente
aquelas que, como as artes, resultam, do mesmo modo que as outras
linguagens numa expressão simbólica do pensamento coletivo das gerações.21
Para uma interpretação mais pontual, apresento um resumo dos principais
conceitos abordados nesse trabalho:
1. Imaginário social e entenda‐se por imaginário todo o repertório simbólico,
carregado de emoções, fantasias, projetos e idealizações dos indivíduos,
que tem seu campo nas narrativas, no mito e no rito.
2. Representações: no sentido tanto narrativo como pictórico, acerca da
construção das imagens, ou, que também podem ser chamadas “realidades
figurativas”, que estão intrinsecamente ligadas ao imaginário social. E
entenda‐se “representação” como o significado da idéia, ou como a
“semelhança” do objeto.
3. Ideologias Políticas: analisadas no domínio das representações e
investidas por uma concepção de mundo que pretende impor à
representação um sentido definido, como uma elaboração segunda do
imaginário.
21 Cf. FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. Tradução: Elcio Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
23
Nos capítulos que se seguem, o primeiro destina‐se aos conceitos históricos da
cidade, da arte e do imaginário e os critérios de representação na estrutura da
modernidade. O segundo capítulo se aprofunda na questão das identidades,
modernismos e nacionalismos, enfocando o imaginário e a ideologia na concepção
de nação e da formação de um projeto de “Brasil Moderno”, que irá refletir na
configuração das imagens de São Paulo, através das estruturas do aparelho do
Estado, com seus projetos de alcance popular e difusão de mentalidades. No terceiro
capítulo foram abordadas as multiplicidades do olhar pelo viés das representações,
perpassando pelas estéticas simbólicas e pela tradição de negações. O capítulo final
faz uma breve incursão pelas associações de artistas dos anos 30 e pelo projeto de
governo, por estruturas de interpretação da arte e reúne imagens selecionadas.
Em função das várias recorrências, análises e menções acerca das imagens,
optou‐se por inserir nos parágrafos, as referências de localização das imagens,
procurando dessa forma facilitar a leitura e o sistema de busca e analogias.
A contribuição que se buscou com esse trabalho, situa‐se na necessidade de
pensar o espaço da cidade e o panorama das representações, sem esquecer o universo
imaginário e, sobretudo, a dimensão do outro, buscando um alinhamento com as
premissas da contemporaneidade, no sentido de repensar os lugares onde vivemos.
Para finalizar, cumpre lembrar que o olhar do historiador sempre se estabelece
a partir do presente, do lugar onde estamos. Portanto, é esse olhar que observa a
cidade de São Paulo como uma cidade entremeada de estruturas morfológicas que
revela diferentes contextos sócio‐culturais e que busca interrogar os modos de uso e
as apropriações da paisagem urbana e, portanto, as configurações do espaço.
Entendendo a conformação da paisagem do ambiente urbano como o suporte físico
ambiental, o lugar onde se conformam os vínculos e as subjetividades dos que o
habitam. Nessa paisagem urbana comparecem, tanto a forma espacial e física
resultante da relação entre os sistemas ambientais e as práticas sociais, quanto a
forma visual do conjunto de valores que se estabelecem entre os homens e o meio
físico. Com isso, as territorialidades urbanas contemporâneas nos desafiam nas
24
tensões entre domínios, legalidades, usos e práticas, aportando novas interpretações
na relação entre morfologias urbanas, tecidos sociais, comportamentos e construções
conceituais, para além dos modelos e conceitos instituídos na cidade contemporânea.
Os questionamentos propõem uma transcendência, ou uma transgressão, dos
universos das ciências e das tecnologias e uma re‐significação dos conhecimentos e
das ações na dimensão territorial urbana respondendo às novas demandas espaciais
dos padrões de comportamento e da apropriação social para se pensar o lugar.
A cidade, em suas novas formas de enunciação cultural da territorialidade
urbana, vista através das interpretações simbólicas, demanda outras investigações da
espacialidade, no âmbito público do espaço urbano ‐ que cada vez mais tem gerado
deslocamentos, segregações e indiferenças.
Nas considerações finais, buscou‐se um alinhamento com o debate
contemporâneo sobre as práticas e representações que constituem o momento
presente de produção de conhecimento, relativo a processos que impactam a cidade
contemporânea. Porém, sob o mesmo alinhavo da Cultura, território que nos une e
nos separa, e que nos remete ao lembrar e ao esquecer, ao construir e desconstruir e,
sobretudo, ao “entender para trans‐formar”. (A.G)
25
Capítulo 1
O olhar da História
ARTISTICIDADES
“ A verdadeira viagem do descobrimento,
não consiste em buscar novas paisagens,
mas novos olhares.” (PROUST, Marcel).
26
A cidade na História
A origem da cidade e as definições que a cercam estão centradas na
questão do pertencimento. Um dos aspectos primordiais que definem o surgimento da
cidade é: “o lugar onde estão enterrados os nossos antepassados[...] a cidade dos
mortos antecede a cidade dos vivos, é a precursora, quase o núcleo de todas as
cidades vivas. A vida urbana cobre o espaço histórico entre o mais remoto campo
sepulcral da aurora do homem e o cemitério final.22
Dentro desse pressuposto, a noção territorial, como “lugar dos meus mortos”,
esteve presente desde as origens da cidade. E o culto aos mortos foi o que organizou
os primeiros espaços, dentro do conceito de religião que proibia abandonar a terra
onde repousavam os restos dos antepassados, sendo preciso que cada indivíduo
levasse um torrão de sua terra (mundus) – solo sagrado de seus antepassados aos
quais se unia pela alma. Esse cerimonial era a configuração de sua origem e a noção
de pátria como o lugar onde estão as almas da família – a região das almas (manes)23.
Na Antiga Roma, a terra pertencia para sempre à família que a cultivava, que nela enterrava seus mortos e erigia o altar dos deuses lares. Terra, família, religião, comungavam o mesmo espírito. Na terra, se cultivavam, o alimento, a memória dos vivos e dos mortos. Chuvas, sementeiras, poda, colheita eram ciclos da faina agrícola, mas também marcavam as festas; o rejuvenescimento da comunidade. [apud]. 24
Segundo o historiador Lewis Mumfort, as melhores fontes das primitivas
culturas permanecem nos costumes e nas superstições que sobrevivem – fenômeno
esse que o autor denomina como cultura arcaica e, que situa como uma camada que
se acha por debaixo das outras culturas, ainda que, mais civilizadas ou urbanizadas.
Portanto, ainda que haja revoluções e reviravoltas, a cidade não apaga
totalmente os elementos da cultura, que permanecem nos códigos da organização
22 Sobre o nascimento e a evolução da cidade‐Estado, suas instituições jurídicas, familiares e políticas. Cf. COULANGES. Fustel. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 23 Idem.Ibidem p. 43 24 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994. [Apud.] p. 424
27
dos espaços e na história do cotidiano. Para compreender os acontecimentos de uma
cidade é preciso tratar igualmente da técnica, da política e da religião, sobretudo no
aspecto da transformação. E a arte pode revelar esses momentos:
Se no princípio todos esses aspectos da vida eram separados (técnica, política, religião), foi a religião que assumiu a precedência e reclamou o primado, posto que uma imaginária inconsciente e projeções subjetivas dominavam todos os aspectos da realidade, só permitindo que a natureza se tornasse visível na medida que pudesse ser introduzida no tecido do desejo e do sonho. Monumentos e Documentos sobreviventes mostram que essa ampliação geral do poder foi acompanhada por imagens que brotavam do inconsciente e eram transpostas nas formas “eternas” da arte. 25
A cidade é como uma “segunda natureza”, é também o lugar das esferas do
poder, pois desde o princípio, as cidades apresentavam um caráter ambivalente, ou
seja, a cidade ao mesmo tempo em que protege, incentiva a agressividade, tendo,
concomitantemente, um aspecto despótico e um aspecto divino. Assim como a arte, a
cidade antiga era o lar de um deus poderoso, criador e destruidor, imperativos
divinos que governavam uma comunidade. Portanto, o poder tanto nas
manifestações cósmicas quanto humanas, sempre foi a viga mestra da nova cidade
que se configurou dirigida por instituições de poder (lei, ordem e convívio). “A
cidade, segundo Mumford, é a mais preciosa invenção coletiva da civilização,
superada apenas pela linguagem na transmissão da cultura.”
As questões do urbanismo e da representação: os monumentos
O núcleo da cidade, seu centro ou a cidadela, por ser a origem e o repositório
de relíquias, técnicas e arte, é o seu bairro mais revelador e mais demarcado pelas
esferas do poder expressas na monumentalidade. As imagens monumentais são
formas de afirmação do poder. Nesse sentido, a arquitetura monumental, é a
expressão do poder e esse poder exibe‐se na reunião de custosos materiais de
25 MUMFORD, Lewis. A história das cidades: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo, Martins Fontes, 2004. p. 41.
28
construção e todos os recursos da arte, bem como num domínio de todos os estilos
considerados sagrados: grandes touros e águias cujas poderosas virtudes o chefe de
Estado identifica nas próprias capacidades mais frágeis. [imagens 1 a 5: pp. 165‐167]
A finalidade dessa arte que marcava o território com seus símbolos era
produzir um “terror respeitoso” como numa confissão de época: ‘Sou como um
homem morto, sinto‐me desmaiar depois da visão do Rei, meu senhor.’26 Esses
marcos são, portanto, representações do poder. As formas de arte urbana também
indicam a transformação de uma sociedade, a maneira como cada qual se situa no
espaço urbano, seu lugar de morar, suas posses, quando analisados pela arte,
revelam tanto a personalidade como o conhecimento, sentimentos, opiniões e atos
tanto do indivíduo como da comunidade. As estruturas estéticas definem as
personalidades coletivas, ou seja, “a cidade vive pela recordação” sendo assim, os
seus símbolos, marcos e documentos são destinados a preservar e transmitir idéias,
sentimentos e emoções, são lembradores, cuja finalidade é dar forma, tornar visível,
portanto, são também um estigma de continuidade. 27
Sendo assim, a cidade é um receptáculo especial destinado a armazenar e
transmitir mensagens. Seus edifícios e estruturas institucionais devem ser duráveis,
assim como suas formas simbólicas, como a literatura e a arte, pois promovem um
elo entre passado e presente e podem predizer o que está por vir. Se suas estruturas
duram mais que as funções e finalidades que originalmente lhe deram forma, a
26 Sobre o sentimento de inferioridade diante da magnitude da obra, provada pela arquitetura monumental. Cf: Mumford. Op.cit. 27 [...]viver para o documento e pelo documento tornou‐se um dos grandes estigmas da vida urbana: na verdade a vida tal como era registrada – com todas as suas tentações para a ultradramatização, a inflação ilusória e a falsificação deliberada ‐ muitas vezes tendia a se tornar mais importante que a vida tal como era vivida. Daí as perversões do monumentalismo que ironicamente chegaram ao seu ponto culminante. O desenvolvimento dos métodos simbólicos de armazenagem aumentou imensamente a capacidade da cidade como recipiente: a cidade passou a não simplesmente manter um grande corpo de pessoas e instituições, maior do que qualquer outra espécie de comunidade, mas manteve e transmitiu uma porção de vidas maior do que as lembranças humanas poderiam transmitir pela palavra oral. Essa condensação e armazenagem representam uma das funções singulares representadas pela cidade; e o grau em que é desempenhada estabelece a posição e o valor da cidade; isso porque outras funções municipais, por mais essenciais que sejam, são principalmente acessórias e preparatórias. Cf. CHOAY, F. Documento Monumento. In: A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Unesp, 2001.
29
cidade algumas vezes preserva para o futuro as idéias que foram postas de lado ou
rejeitadas por outras gerações. Porém, a cidade também transmite às gerações
posteriores, no sentido negativo, as “inadaptações” que poderiam ter sido lançadas
fora, caso não houvessem se materializado, deixando sua marca (ou cicatriz). É por
isso que, para Mumford, temos que reexaminar sempre o resultado urbano
sobretudo quando há ferimentos, como guerras e conflitos. A contribuição desse
autor nos abre um questionamento essencial para a pesquisa: o entendimento da
cidade, visto por duas perspectivas: das culturas espontâneas (ou imaginários), e da
configuração do Estado e do poder (as ideologias), nas representações. Se por um
lado, as representações são resultados das esferas de domínio, são também os
lembradores, conforme analisado, que cumprem sua função por um período,
sobretudo na memória coletiva, mas, depois de certa forma se hibridizam com o
tempo, ficam sem sentido ou então re‐significam seus sentidos. Por outro lado, há a
resistência cultural, as supervivências, os lugares recônditos da memória individual
que contém a força da transmissão dos costumes. Também o imaginário, sempre tão
revelador, que nos leva a outras paragens e nos permite entrar nos recônditos das
histórias que não se transformaram em marcos e monumentos oficiais, mas que,
ainda assim, sobrevivem no imaginário popular e revelam muito mais do que a
cidade dos marcos históricos e das esferas de poder. E que podem ser entendidas
através da arte.
A arte é uma captação permanente do mais ínfimo movimento do gosto e das idéias de uma época (...) cada modificação substancial da atitude humana repercute em todas as atividades contemporâneas, principalmente aquelas que, como as artes resultam, do mesmo modo que as outras linguagens, numa expressão simbólica do pensamento coletivo das gerações. 28
28 FRANCASTEL, Pierre, 1993. Op. Cit. p. 77
30
A cidade na Arte
Se a arte é produto da sociedade, por sua vez a sociedade também se modela
sobre a arte. Sendo assim, é impossível dissociar arte e sociedade, pois uma não
existiria sem a outra, como espaço e forma, essa relação se complementa e se constrói
simultaneamente. A cultura, a tradição e a identidade de uma sociedade se traduz no
que ela produz artisticamente. Nesse sentido, arte é produto de uma sociedade assim
como a sociedade é um produto cultural e a arte sua manifestação. Por exemplo, as
cidades, vistas como palco de aglomerações humanas e acontecimentos, são
formadas a partir de existências que se agregam em um espaço, e esse espaço é
portanto uma manifestação artística. Se a formação da cidade é uma interpretação e
apropriação do espaço, dentro de uma concepção artística, então a arte é uma
atividade constitutiva da cidade. Segundo Argan, por cidade não se deve entender
apenas um traçado regular dentro de um espaço, uma distribuição ordenada de
funções públicas e privadas, um conjunto de edifícios representativos ou utilitários,
mas sim toda forma de organização do espaço e da matéria:
São espaço urbano o porte da basílica, o pátio e as galerias do palácio público, o interior da igreja. Também são espaço urbano os ambientes das casas particulares; e o retábulo sobre o altar da igreja, a decoração do quarto de dormir ou da sala de jantar, até do tipo de roupa e adornos com que as pessoas andam, representam seu papel na dimensão cênica da cidade. Também são espaço urbano, e não menos visual, por serem mnemônicos imaginárias, as extensões da influência da cidade além dos seus limites. (...) O espaço figurativo, não feito apenas do que se vê, mas de infinitas coisas que se sabem e se lembram, de notícias. 29
A arte reproduz nas cidades as interconexões e intercâmbios, passados de
geração em geração, e se expressa até mesmo na repetição dos ornatos, o sentimento
do espaço e do tempo, e uma concepção de mundo identificada com o próprio
sentido do ser. [imagens 1 a 7: pp. 165‐167]
29 ARGAN. Giulio Carlo., 1988. Op. Cit. .p.43.
31
Vários períodos, processos e teorias, comprovam que o mundo das imagens é
um mundo ordenado, e que é possível fazer uma história da arte através da história
das imagens. Dentro dessa concepção, a construção do saber se dá pelas imagens,
desde a antiguidade clássica , sendo o mito a representação necessária e afirmação de
sua existência.30 Se a partir de uma razão as idéias constroem critérios, esses por sua
vez estão imersos em uma idéia de representação. Podemos então, fazer uma
arqueologia das imagens.
Para Gombrich, “o artista não menos que o escritor, precisa ter um vocabulário
antes de poder aventurar‐se a uma mera cópia da realidade”.31 A questão da
semelhança, que estrutura esse vocabulário se situa na esfera das representações e se
origina no campo semântico:
A palavra exerceu originariamente a função de imagem. Essa função passou para os mitos. Os mitos, assim como os ritos mágicos têm em vista a natureza que se repete. Ela é o âmago do simbólico: um ser ou um processo representado como eterno porque deve voltar sempre a ocorrer na efetuação do símbolo. Inexauribilidade, renovação infinita, permanência do significado não são apenas atributos dos signos, mas seu verdadeiro conteúdo.32
Para Foucault em As palavras e as coisas, dentre as várias acepções que o
termo “semelhança” comportou até o final do século XVI , estão: a convenientia, pela
qual a similitude se estabelece na vizinhança dos lugares, locais e espaço, é portanto,
estabelecida uma espécie de “aproximação gradativa” de duas coisas que se colocam
juntas. A aemulatio, que se realiza em espaços distantes, como se a convenientia tivesse
30 Representação foi um termo cunhado na Idade Média, com o duplo significado de imagem e idéia. Para Santo Tomás de Aquino, “representar é conter a semelhança da coisa”. A representação se constrói a partir de uma relação de imagem com outras imagens, salientando dois sentidos ao mesmo tempo diferentes e complementares[...] a passagem de uma imagem para outra se faz pela mediação da idéia, de uma “imagem mental”, que parte de uma idéia, de um conceito de objeto para representá‐lo. Nesse sentido, a referência de idéia de uma imagem não seria o objeto representado em si, mas a idéia concebida sobre o objeto e a transposição das imagens se daria por códigos, por uma espécie de “vocabulário de semelhanças”, onde as imagens se situam em campos reconhecíveis. Cf: Definições de Representação. Cf. Abbagnano Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. 31 GOMBRICH. E.H. Norma e Forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990.p. 76 32 ADORNO,T.; HORKHEIMER, M. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 p. 30
32
sido rompida, mas seus elos se reproduzissem em círculos distantes uns dos outros,
gerando uma semelhança mas sem contato direto. A analogia, que está em jogo não é
mais a semelhança do visível, mas da relação entre as coisas e os sistemas. Sendo a
simpatia, que torna as coisas idênticas, que as mistura, dissolvendo‐as. Nessa acepção
de Foucault, a semelhança pode ser vista como uma qualidade comum, na forma de
substrato da representação.33
Entre o objeto e a representação do objeto, há sempre a mediação de um
conceito, uma idéia, uma representação mental que reforçaria o fato do objeto em si e
seu olhar. Porém, a representação nesse estudo, tem duas instâncias: a que não se
situa na esfera da réplica, do duplo, como no olhar do pintor que não busca uma
fidelidade e sim uma equação de sentidos, e por outro lado o olhar do fotografo que
se insere na esfera da busca da semelhança. “Nesse sentido a pior das fotografias será
sempre mais semelhante que a melhor das pinturas.” Benjamin, nos alerta que a
natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar:
Diferente porque substitui o espaço, no qual o homem age conscientemente, por um espaço onde sua ação é inconsciente. [....] Conhecemos em geral o gesto que fazemos para apanhar um isqueiro ou uma colher, mas ignoramos quase tudo da relação que efetivamente se estabelece entre a mão e o metal, e, ainda mais, as mudanças que introduz nestes gestos a flutuação dos nossos diversos humores. É nesse domínio que a câmera penetra, com todos seus meios auxiliares, com suas subidas e descidas, seus cortes e suas separações, suas extensões de campo e suas acelerações, suas ampliações e reduções. Pela primeira vez ela nos abre a experiência de um inconsciente visual, assim como a psicanálise nos fornece a experiência do inconsciente instintivo.34.
Com isso pretende ressaltar a diferença entre o que olhamos no mundo e o
que podemos olhar nas imagens. De naturezas distintas, essas imagens são
percorridas pelos olhos de maneiras diversas. [imagens 11 e 58: pp. 169 e 185]
33 Cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999 pp. 33‐60 34 Cf. BENJAMIN, Walter. 1994, p. 94.
33
Para Francastel35, a imagem existe em si, ela existe essencialmente no espírito,
sendo um ponto de referência na cultura e não um ponto de referência na realidade.
Francastel acentua que o diálogo primeiro de qualquer imagem não é, como se
poderia supor, um diálogo com a realidade física que a fez nascer. Ao contrário, a
partir dessas idéias, podemos perceber um desvio analítico na investigação das
imagens que se deslocaria da própria realidade como imagem e de qualquer real
exterior a ela lhe serviria de modelo, para os valores e perspectivas36.
Nesse sentido, o olhar para as representações deve transcender, conforme diz
Foucault, “para definir as condições nas quais o ser humano problematiza o que ele
é, e o mundo no qual ele vive” 37
Imagem, Imaginários, Ideologias
Imagens são construções, são formas de conhecimento e de comunicação que
podem carregar imaginários e simbologias, bem como podem ser esvaziadas ou
produzidas para consumo. 38 São muitos os conceitos sobre símbolos, imagens e
imaginário. Nessa pesquisa, analisamos esses conceitos sob o prisma da produção
das imagens da cidade de São Paulo.
As imagens também são construções, baseadas nas informações obtidas pelas
experiências visuais anteriores, ou seja, as informações envolvidas em nosso
pensamento são sempre de natureza perceptiva e nos traduzem a aspectos da vida
social. Portanto, as idéias podem ser representações das coisas “concretas ou
abstratas”, que também podem ser ícones, referências de lugares, caminhos de
localização. Sendo o símbolo um signo determinado pelo seu objeto dinâmico.
A linguagem simbólica das imagens lida com o encontro subjetivo entre crem
a cria e quam a vê. Usada de forma intencional ou inconsciente, seus efeitos
dependem do contexto sócio‐cultural e histórico no qual se inserem as imagens
35 Cf. FRANCASTEL, Op. Cit. 36 Idem. Ibidem., p. 193 37 FOUCAULT, op. cit., p. 14 38 LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O Imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1988
34
simbólicas, e da identificação do espectador. Segundo Aumont, “o contexto simbólico
revela‐se necessariamente social, já que os símbolos são determinados pelos
caracteres materiais das formações sociais que os engendram.” 39
Sem entrar muito profundamente nessas questões, que de certa forma
escapam ao recorte, podemos dizer de forma simplificada, que o símbolo é um só,
passível de interpretação, mas as imagens podem sem mudadas. Porém, tanto a
imagem como o símbolo são representações. O símbolo, modificado de acordo com a
carga cultural é um sistema que não substitui qualquer sentido, mas pode conter
uma pluralidade de interpretações e estar carregado de significados do passado.
Dentre uma gama enorme de teorias sobre o símbolo e a imagem, trabalhamos com a
definição de Laplantine, em que os símbolos são entendidos como esquemas de ações
intencionais produzidos nas interações entre o homem e uma dada situação social,
ou no interior do texto de um discurso.40 Portanto, imaginário e símbolo são
doadores de significados históricos e culturais.
O campo simbólico se faz presente em todas as esferas da vida social e se
estrutura por redes, são polissemânticos e polivalentes, e se amparam no referencial
significante que contém significações afetivas e mobilizadoras do comportamento
social, como por exemplo: jurar perante a bandeira nacional ou rasgar a bandeira sob
protestos, são exemplos de manifestações emocionais e demonstram que o simbólico
contém um sistema de valores referidos aos objetos e instituições sociais, que por sua
vez podem existir somente no simbólico. Já os signos se referem aos objetos, formas,
imagens concretas ou abstratas. Outra questão fundamental está no rito. As
homenagens aos fatos históricos e míticos, como as festas, celebrações da vida, das
passagens de ciclos, e mesmo, da morte, são re‐atualizações dos acontecimentos
passados. São marcas de comportamento e manifestos de continuidade, onde se vive
através dos símbolos contidos nos rituais. [imagens 15, 16, 40 e 41: pp. 170 e 179]
39 AUMONT, J. 1995. A imagem. 2ª ed., Campinas, SP, Papirus, 1995. p.78
40 LAPLANTINE, p. 24 et seq.
35
O imaginário é o mobilizador das imagens e utiliza o simbólico para se
exprimir. Portanto, o imaginário fornece à instituição o seu caráter de autonomia em
relação à sociedade e aos homens que a produzem. Isso também é usado de forma
ilusória, como no capitalismo que mitifica relações de homens com produtos.
Em síntese, o imaginário é a faculdade de elaboração e apresentação de algo:
O imaginário faz parte da representação como tradução mental de uma realidade exterior percebida, mas apenas ocupa uma fração do campo da representação, a medida que ultrapassa o processo mental que vai além da interpretação intelectual ou cognitiva. A representação imaginária está carregada de afetividade e de emoções criadoras e poéticas. A diferença entre o imaginário e a ideologia é que, embora ambos façam parte do domínio das representações referidas ao processo de abstração, a ideologia está investida por uma concepção de mundo que, ao pretender impor à representação um sentido definido, perverte tanto o real material quanto esse outro real perverte o imaginário. 41
Por outro lado, a ideologia é como uma imposição do vivido, aceito como tal.
O imaginário não é uma negação total do real, mas apóia‐se no real para transfigurá‐
lo e deslocá‐lo, criando novas relações no “aparente” real.
Estruturas culturais da arte na cidade
A cultura da modernidade é eminentemente urbana. Já nasce na cidade, no
flaneur de Baudelaire pela Paris haussmaniana.42 Na representação da cidade como
uma categoria de análise do fenômeno urbano, as formas representacionais estão nos
símbolos e na produção dos artistas e permitem a abordagem interdisciplinar entre
história, história da arte e patrimônio e temas correlatos como memória e identidade.
A análise da representação da cidade é vista através de sua arte.43
41 Idem. Ibidem, p. 25. et seq. 42 O modernismo nasce pensando a cidade. Cf. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: o pintor da Vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. ‐ Referência Georges Haussman, prefeito de Paris. 43 ARGAN, G.C. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Cf. capítulo I. Argan, argumenta que a arte não é inerente a cidade, mas há uma relação de reciprocidade na qual a arte é constitutiva da urbanidade e vice‐versa.
36
Dentro dessa premissa, há variáveis entre a arte na cidade e a cidade na arte, por
exemplo, a iconografia urbana impõe uma extraordinária variação de sentidos, pois
temos várias representações: a cidade como obra de arte, a cidade tradicional, a
cidade como panorama e a cidade como espetáculo, dentro da apropriação da esfera
pública.44 O espaço urbano, na sua materialidade imagética, torna‐se um dos
suportes da memória social da cidade. Os discursos (verbais e imagéticos), assinalam
o caráter de representação, ou seja, salientam e realçam a dimensão dos signos de
mediação pelo qual a cidade se faz conhecida. Para compreender as estruturas
culturais da arte na cidade, os conceitos de arte, cidade e objeto, devem ser
relacionados através de interconexões históricas.
A fenomenologia da arte oferece um caminho para tentar aproximações na
compreensão da ‘história da arte como história da cidade’ e dessa forma entrar no
“campo da percepção”, para tentar perceber aspectos do fenômeno urbano nas
expressões artísticas. Podemos dizer que a cidade, como realidade complexa,
encontra na arte o seu fator identitário que se revela na experiência estética. Se, por
um lado, a cidade como objeto artístico, se relaciona a uma situação cultural, o
mesmo deve ser estudado em seus componentes estruturais, considerando que cada
obra determina todo um campo de relações.
Buscou‐ se através das análises das representações, estabelecer, na condição de
nossa cultura, a experiência dos fatos para interpretar os fenômenos artísticos. Foram
considerados o processo de construção e reconstrução do urbano, o dinamismo e o
panorama cultural diverso, na qual se insere. Dentro desses critérios verificou‐se as
relações que se estabelecem na cidade enquanto produto. Considerando, segundo
Argan, que a “artísticidade” da Arte, tem dois princípios: a ação artística e a ação
histórica, e a raiz desses fatores está na consciência do valor da ação humana.
A cultura de um período se constrói com arte, mas também com o pensamento
filosófico, científico, político e religioso. Portanto, as estruturas dos sistemas formais
44 BOYER, Cristine. The City of Collective Memory: Its Historical Imagery and Architectural Entertainments. Cambridge Mass.: MIT Press, 1994.
37
se desenvolvem em função dos conteúdos culturais, que por sua vez, estruturam a
comunicação visual. Sendo a arte responsável pela crítica que se fundamenta,
organiza e desenvolve, através de experiências da percepção e dos processos do
imaginário, pois é a percepção que estabelece o tempo presente. Para Argan: a arte,
cujo valor se dá na percepção, torna presentes os valores da cultura no próprio ato
em que os traduz e reduz seus próprios valores.” [...] tudo pode ser estruturado ou
organizado como arte 45
A obra de arte possui uma estrutura cultural específica, na qual os valores de
uma época podem ser captados através da percepção. A consciência ao perceber a
obra de arte, ao executar uma “redução fenomenológica”46 pode encontrar o mito de
origem em seus símbolos, mesmo que re‐significados. Por isso, o esforço em
interpretar uma obra de arte consiste na presença de uma ação sobre o imaginário –
ou na própria essência da obra de arte ou mais precisamente sua estrutura (no caso a
concepção do fazer artístico). Essa questão ultrapassa a história das coisas artísticas
ou das pessoas que as produziram.
Memória e olhar – a representação na pintura
Para Merleau Ponty47, a imagem da memória é o lugar onde guardamos o
pensamento que o olho apreende, portanto, o olhar é exercício do pensar. O autor
observa a pintura e conclui que o artista não se limita à experiência muda, ele não
separa a visão do visível, ou seja, o olhar parte de um ser, sendo a percepção anterior
a formação de conceitos e identidades. A “coisa pela coisa mesma” perpassa pelo ser.
Dessa forma, o discurso se liberta da teoria. Através da observação da relação
pintor/pintura ele elabora sua análise sobre o “ser no mundo” e a impossível partilha
entre a visão e o visível. Ou seja, quando o pintor pensa por meio da pintura no
45 ARGAN, op. cit. p. 26 46 Redução fenomenológica ou ʺepochéʺ é o processo pelo qual tudo que é informado pelos sentidos é mudado em uma experiência de consciência, em um fenômeno que consiste na consciência/percepção de algo: imagens, fantasias, atos, pensamentos, memórias, sentimentos e outros, constituem nossas experiências de consciência. Cf. MERLEAU PONTY op. cit. 47 MERLEAU PONTY, M. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.
38
instante que sua visão se faz gesto, ele inaugura uma linguagem, que é “a arte como
forma de pensamento”. 48
Nesse pensamento, o significado da obra de arte, pode revelar aspectos
diferentes de seu valor formal. Porém a forma não deve ser dissociada do conteúdo,
posto que a disposição dos traços e cores, luz e sombra, volumes e planos, deve ser
entendida como portadora de um significado que ultrapassa o visual.49
Para Cassirer50 nos estudos da cultura, os estudos sobre o pensamento mítico
são a base para a investigação das imagens. Portanto, um quadro é ao mesmo tempo
uma obra de arte e um documento de seu tempo, embora a realidade da arte não siga
mecanicamente as mutações da sociedade. Sendo assim, uma análise formal pode se
estabelecer dentro de um recorte iconológico, desde que o método sociológico seja
englobado numa visão estrutural; a essência formal pode fazer com que se
reencontrem as coordenadas de uma correta ambientação sociológica, no sentido de
reintegrar a obra de arte em seu momento histórico, reencontrando os processos que
a geraram e as estruturas que a condicionaram. Devemos considerar também que
existe, uma via dialética que remete a questão da preservação do patrimônio em
relação ao que deve ser protegido de acordo com o poder de cada época, e nesse
sentido a idéia de preservação se alinha a uma idéia de valorização.51 [imagens 37 e 38: p.
178]
A função social da Arte
A arte foi criada pela humanidade como uma espécie de duplicação de sua
atividade real, ou seja, foi criada como uma extensão da experiência de vida,
organizada com mais afetividade e formada de maneira espontânea.
O funcionamento social da arte, se estrutura a partir das relações sujeito/objeto
e suas variáveis, e se desdobra na possibilidade de transformação de algo existente. 48Idem. Ibidem. 49 PANOFSKY, E. Estudos de Iconologia in: Significados nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2004 50 CASSIRER, Ernest. Filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001 51 ARGAN, op cit., p. 102‐103
39
A apropriação artística do mundo pelo homem dá luz à estrutura da atividade
humana, que integra a estrutura da arte sem conservar a independência das formas
simbióticas.
A imagem artística, segundo Panovski52, não é combinação e coexistência do
conhecimento e sim a uma junção orgânica e mais compacta. A arte pode ser uma
forma de conhecimento da realidade e não fazer parte do mundo da ciência; pode
além disso, ser uma forma de conhecimento valorativo sem construir uma
ramificação da ideologia, tendo em vista que a arte é a “apropriação artística do
mundo”. A cidade é, portanto, a representação de um mundo. A partir do campo da
fenomenologia , ela é pensada através do olhar do artista, que ao pintar a cidade nela
revela sua relação com o mundo. O olhar desvela a cidade, partindo de percursos
individuais. [imagens 21 e 34: pp. 172 e 177]
Por isso, cada cidade é única, como os espaços de Calvino em Cidades
Invisíveis. Depende da forma de olhar:
Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém, como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára‐raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, detalhes, esfoladuras. 53
Ao analisar como se combinam na arte, o conhecimento da realidade e sua
transformação ideal (realizada pela imaginação), o resultado não é uma junção de
princípios, como na ciência e seus paradigmas. Nesse caso, a união orgânica é
inevitável em todos os casos do reflexo e da transformação da realidade, bem como,
da criação de uma nova realidade. Por isso, pode‐se afirmar que, a arte é produto do
pensamento e da imaginação artística. Ou seja, a criação artística é a apropriação do
mundo, sendo que o conhecimento e a valoração se transformam com a criação do
que não existe, nunca existiu e/ou existirá no mundo (como na fábula, na metáfora
etc).
52 PANOWSKY, op. cit. 53 CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 14‐15.
40
A flexibilidade, a plasticidade, a dinâmica interna da estrutura da arte que se
expressa na dialética do perdurável, do variável, imutável e mutável, e em todas as
modificações morfológicas e históricas, a arte continua sendo a mesma.
Na criação artística se encontram e se identificam todos os tipos de atividades,
que, como um todo adquire a possibilidade de entrar em contato com cada um e
compor séries artístico‐utilitárias. Como resultado do contato da atividade
transformadora com a artística, surgem os frutos do cruzamento da técnica e da arte:
arquitetura, artes decorativas, desenho, publicidade e outras. Há várias correlações
entre a atividade artística e construtiva nos objetos e construções em que
predominam a faceta técnico‐utilitária sobre o artístico‐estético ou o seu contrário, a
face artística destinada a satisfazer as exigências estéticas das pessoas.
Ao analisarmos as relações de atividade artística com a orientação
valorativa descobrimos que as distintas formas de ideologia estabelecem diferentes
relações com a arte, específicas em cada caso. Nessa análise, toda série de formas
derivadas do contato artístico‐ideológico se sustentam no caminho da arte até a
ideologia. Por exemplo: as manifestações que ocorrem na propaganda, nos hinos
nacionais, na heráldica, na política e na escultura comemorativa, assim como, nos
cerimoniais do governo, são organizados artisticamente.54
Nesse sentido, a atividade artística do homem se desenvolve dentro de limites
amplos, desde a criação pura até a aplicada. O mundo das artes se situa nesses
limites e seu centro se desloca historicamente em função dos enfoques originados por
situações sócio‐culturais determinadas. Todas as formas concretas de atividade
humana, constituídas no processo histórico da divisão social do trabalho, requerem
do homem a auto‐desagregação e o isolamento de um determinado tipo de atividade,
com respeito a todas as demais.55
54 KAGAN, S.M. A arte no sistema de atividade humana. In: Arte e Cultura na América Latina. Revista da Sociedade Científica de Estudos de Arte CESA – vol. X. n. 2, 2003. 55 KAGAN, 2003, passim.
41
Portanto, a cidade é um fenômeno gerador ao qual tudo se pode reportar
como cultura. Na cidade se estruturam as forças políticas, sociais, econômicas,
religiosas, que encontram aspectos de vários períodos históricos. A cidade também
está ligada à operação estética de pintores e escultores, sendo um conjunto cultural o
panorama urbano, que perpassa pelo território, pelo projeto econômico, pelos
projetos e construções do espaço público, pelos projetos arquitetônicos. Esses atores
que operam na cidade se alinham a forças que se revelam em tensões e conformações
do espaço e na criação de “lugares para lembrar”. A relação arte‐urbanística, muitas
vezes pode ser revelada em conjuntos de imagens da cidade. A partir de uma análise
das representações de diferentes tempos, a imagem tem como função “situar”
acontecimentos representados em uma determinada dimensão: cultural, econômica,
política ou religiosa, que por sua vez revelam valores estéticos.56 [imagens 14, 17 e 52: pp.
169, 171 e 183]
Nessa mesma concepção, a posição do artista na sociedade tem que ser
considerada em todas as esferas que o artista se situa ao longo da história, e da forma
como a história produz os artistas de seu tempo. Há uma ligação direta do artista
com a sociedade, em relação à técnica e também à ideologia de cada tempo histórico,
posto que o mesmo está inserido no local, como é também fruto de seu meio e de seu
tempo. Para entender esse processo faremos uma breve incursão por aspectos da
historiografia do Brasil, que revelam a forma em que se estruturam e desenvolvem
os aspectos relacionados aos percursos da história da arte.
56 ARGAN, op. cit., p.p. 126‐129
42
Estruturas da Modernidade
A modernidade artística, inserida dentro do processo de modernização social,
está atrelada a uma idéia de atualização. No discurso histórico, a associação de
modernidade no campo das artes, se reafirma em um discurso imbuído de um ideal
de renovação, que perpassa por dois momentos: a ruptura e a novidade. A ruptura,
no caso, se estabelece em relação ao referencial clássico, onde a representação era
pensada em função da narrativa, estabelecendo uma representação do real.
A idéia de arte moderna surge quando se estabelece a ruptura com as
representações miméticas e com a verossimilhança, momento em que a dimensão
formal será posta em evidência e a arte será pensada como linguagem em si mesma.
Nesse sentido, a arte moderna tem como característica a experimentação formal.
Na esfera social, a modernidade pode ser vista dentro de uma idéia de crise
das artes, que provoca um estado de tensão. Sendo a arte uma antena sensível da
relação com o mundo que extravasa a consciência desse sentimento de crise
(separando‐se dela e refletindo sobre o seu próprio fazer).
Se no século XIX o panorama está dentro de uma idéia de “evolução e
progresso” é o valor do progresso que marca a questão da ruptura, que por sua vez,
trará mudanças e também desequilíbrios. Na dimensão da crítica, a modernidade no
Brasil, situa‐se a partir da década de 20 e se estrutura em 30. E as rupturas se
principiam pela crítica do lugar, ganhando corpo na questão da identidade.
Busca‐se entender a construção da cultura nacional e começa uma projeção
sobre “quem somos?” E o artista e o intelectual, projetam nesse momento, o olhar
sobre o lugar em que se encontram.
Tendências e percursos da arte no Brasil em relação aos fenômenos da arte
Buscou‐se através dos fenômenos históricos e cíclicos, traçar uma breve
retrospectiva dos percursos da arte no Brasil, com o objetivo de estabelecer uma
cronologia para situar as reflexões a respeito da modernidade artística, inserida no
processo de modernização social, que foi a base para se pensar a questão conjuntural
43
na perspectiva da História da Cultura. Por isso, a bibliografia que embasou o campo
investigativo, foi selecionada para oferecer um suporte teórico para o entendimento
do território cultural pelo viés da arte e para pontuar suas transições e rupturas.
Na esteira do pensamento de Gullar57, situamos o fenômeno do movimento
artístico como uma movimentação de ação coletiva, que surge no século XVIII na
Europa, como uma força social da burguesia, que detinha a riqueza e almejava o
poder político. Essa burguesia quando assume o controle do Estado, coloca os
intelectuais que até então estavam em um ciclo fechado, a serviço do Estado ou em
oposição a essa classe dominante, dando origem ao romantismo que, por sua vez,
aparece como uma reação à mediocridade da vida burguesa e à vida prática
instaurada que vai desembocar nos oitocentos, com desdobramentos no século XX,
sobretudo em países com outro tempo histórico, como no caso, o Brasil. 58
Como uma fuga do presente, o “artista romântico” combaterá tudo que definir
como pertencente ao campo da burguesia terminando por afirmar que “o fluxo dos
pensamentos é mais real que a realidade exterior”. E dessa forma estabelecerá hiatos
entre a arte e a realidade social, que por sua vez, vem da experiência política, como
forma de contestação de valores. Portanto, o caráter coletivo dos movimentos
estéticos modernos europeus, tem em sua primeira fase, sentimentos contrários ao
regime burguês e à busca de um retorno e, posteriormente, uma reação contrária da
arte pela arte. Nesse movimento há uma virada e quem busca o poder são as massas.
Surge então, a arte pela arte, como reação ao romantismo, repelindo o
sentimentalismo e o delírio. Na observação de Luckaks [apud]: “a arte pela arte é a
expressão direta de uma atitude burguesa e proletária, atenta à realização eficiente
da obra.” 59
O artista então, desiste de mudar o mundo. Se aceita como fora da natureza e
considera a arte a “única coisa boa e verdadeira da vida”. Entrega essa que
57 GULLAR, Ferreira. Vanguarda e Subdesenvolvimento: Ensaios sobre Arte. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. 58 GULLAR, s/d, passim. 59 Luckaks [apud] GULLAR, op. cit.
44
corresponde a uma fuga. O trabalho artístico torna‐se um ritual destrutivo,
marginalizado e despatriado que faz do artista do romantismo um alienado.
Os movimentos que se seguem, tais como: o futurismo e o dadaísmo voltam a
disputar com a burguesia o plano social. Porém, com pontuais diferenças da primeira
fase do romantismo, pois os dadaístas identificam a própria arte com a burguesia e a
renegam em nome da vida cotidiana, da vida moderna e suas apropriações.
Dentro dessa análise, no universo das artes no Brasil, verificamos alguns
marcos, que são relevantes para pontuar as transições na criação das identidades,
através das pontuações historiográficas, antes de chegar às vanguardas, façamos uma
retrospectiva:
Segundo Zanini, 60 no campo das artes plásticas, a Missão Francesa de 1816, foi
bastante significativa nas transformações artísticas no Brasil, pela vinda de artistas e
artífices, em sua maioria exilados bonapartistas, chamados de Colônia Le Breton61.
Nesse período, instaurou‐se um sistema de ensino acadêmico e vários artistas
neoclássicos foram responsáveis pela disseminação de conceitos estéticos. Porém, as
dificuldades de assimilação dependeram das próprias condições da civilização de um
país de configuração formada por cânones coloniais, que tendiam a rejeitar a arte
apresentada como ação cultural leiga em nível burguês. Essa Escola foi responsável
por transformações, sobretudo, na arquitetura que assume feições neoclássicas por
todo Brasil. Ainda, segundo Zanini, foi a arquitetura, a arte que mais cedo obteve
expansão e amadurecimento no país. No período, a arte brasileira no campo da
pintura, da gravura, escultura e desenho, realizou‐se apenas em nível superficial com
uma grande dependência dos artistas estrangeiros, e pelo pouco aprofundamento em
suas raízes em termos nacionais. A arte da escultura também se desenvolveu
60 ZANINI, W. Arte Contemporânea. In: História Geral da Arte no Brasil. Vol. II. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1983. pp. 738‐788 61 O plano de Le Breton consistia na criação de escola e ensino de belas artes e ofícios. D. João, através do decreto criou a Escola Real de Ciências Artes e Ofícios em 12 de agosto de 1816 – pagava pensões anuais aos mestres franceses e institucionalizou com o novo decreto de 23 de novembro de 1920 a Academia Real de Artes. Tb trouxe artistas como: Debret, Taunay, Grandjean de Montigny e Simão Pradier. Cf. ZANINI, op.cit.
45
inicialmente dentro de cânones neo‐clássicos e com maior razão e mais facilmente
que na pintura pois os estilos e tendências surgiam bastante da própria essência da
escultura antiga. Por isso, o final de século XIX é marcado pelos monumentos para
as praças das cidades e cemitérios do país – dominados pelo sentido eclético ou
historicista62.
No período seguinte, o romantismo e o indianismo de caráter nacional
definiram‐se através do romantismo e do simbolismo. 63 Na transição do século XIX
para o XX, verifica‐se que há um “atraso” em relação aos movimentos.64 Dentro desse
panorama, podemos verificar como a identidade nacional é “representada” em suas
várias fases e como são criados alguns cânones que atravessam períodos. Esses
movimentos culturais que se registram na Europa a partir do século XVIII se
manifestam, embora com atraso (nesse sentido), e com um intervalo menor. O Brasil
se espelha nos países ditos adiantados, mas com outras apropriações. Embora visse
no modelo europeu seu futuro, tinha como missão afirmar a autonomia do país e
negar as tradições coloniais, traços de uma busca pela definição de uma identidade
nacional, que se estruturava já no império.
E nessa dinâmica, se buscou no conteúdo ideológico do romantismo brasileiro
o indianismo que, embora artificial e dentro de cânones, teve seus aspectos positivos,
como o início da busca de uma temática própria, ou o princípio de uma
particularização. Essa busca foi seguida pelo sertanismo, e por outros movimentos e
se refletiu num quadro social e político bastante diverso do modelo europeu.
Nesse momento o país está em transformação e a expansão da economia
cafeeira promove o surgimento de uma classe de funcionários públicos e
desenvolvimentos tecnológicos gerados pelo progresso econômico, que, por sua vez,
62 O estilo eclético ou historicista é caracterizado por uma profusão de estilos arquitetônicos, onde os ornatos são destacados. Cf. LEMOS, Carlos. A República ensina a morar melhor. Coleção Estudos Históricos. São Paulo: Hucitec, 1999. 63 O Romantismo acadêmico, deixou nomes como Pedro Américo, Victor Meirelles, Almeida Júnior, que caracterizaram a presença de uma geração de artistas formados no Brasil. 64 ZANINI. op. cit.
46
irá gerar escassez de mão‐de‐obra. O país está imerso em um processo revolucionário
que desaguará na abolição e na República.
Chegamos ao século XX, onde a expressão “vanguarda”, reflete a pretensão
de movimentos de caráter artístico e coletivo que estariam à frente das artes, abrem‐
se novos caminhos para a expressão estética65. Nesse momento de transição, a busca
por uma idéia de novidade se traduzirá em rupturas, e em novos conceitos de
renovação artística. A partir desse período até 1922, as tendências estéticas sucederão
num imbricamento cronológico: Realismo, Parnasianismo, Naturalismo, Simbolismo,
que serão praticamente simultâneos.
A “expressão de modernidade” se configura nas idéias novas e apropriações
que expressam uma busca pela modernização que o país assimila, diferente do
sentido europeu que tem como essência a manifestação de um processo cultural. No
Brasil o modernismo surge como uma reação global a todas as tendências. Ele é uma
negação de tudo, um começar de novo, que por sua vez, é o sentido básico daqueles
movimentos europeus.
Segundo Gullar, “o modernismo é mais fruto da transformação material da
sociedade do que conseqüência de uma evolução cultural autônoma”. Mas, as
conseqüências desse movimento serão uma revolução formal nas expressões
artísticas e a busca de um projeto estético, que se principia pela ruptura com os
padrões.
Os Imaginários e as Representações no Modernismo Brasileiro
A questão do imaginário no modernismo brasileiro, portanto, se estabelece
como uma janela que abre espaços para movimentos que provocam um
“desregramento” dos sentidos e um questionamento do real até então entendido.
65 Vanguardas artísticas na Europa: o futurismo, o dadaísmo, cubismo, expressionismo, surrealismo. As vanguardas artísticas tinham como ambição mudar a História, especialmente no campo político, apesar de ter como meta à mudança na vida, partindo da vida muda‐se o mundo, desígnios presentes nas palavras de Marx,Goethe, Rimbaud e muitos outros. Vide: ARGAN, Giulio Carlo; Arte moderna. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992
47
Se a ciência, razão e civilização, passam por um questionamento, após a
Primeira Guerra Mundial, que levam a um repensar das estéticas e do “real”, nesse
momento de ruptura, a proposta das artes está na liberação do imaginário.
De acordo com François Laplantine, “as rupturas do modernismo em relação
ao estrangeiro, são parciais, mas buscam uma harmonia entre a arte e a sociedade
urbana e industrial”. Essa ruptura começa por intermédio da literatura e depois
passa para a pintura que parte em busca de temas nacionais, inspiradas pelo próprio
símbolo do mundo moderno: a cidade ‐ seus mitos, ritos e símbolos.
Essa “tendência” se principia com no movimento Pau Brasil em 1924.66 e
deságua no Manifesto Antropófago, 192867, inaugurando um tempo de revivificação
das origens consideradas “legítimas” e uma exortação dos estrangeirismos,
sobretudo na literatura e, posteriormente, nas artes plásticas. Mas também marcando
a divisão entre os modernistas, que se estabelece nas divisões nacionalistas e seus
diferentes propósitos e que reforça um separatismo verde‐amarelo68 que por sua vez
já havia se principiado.
Esses movimentos, revelam uma iniciativa de busca identitária, de acordo com
elementos que caraterizassem e particularizassem o Brasil, como um retorno.
Embora, nessa questão apareçam várias dissonâncias, posto que nesse momento de
rupturas e novas propostas estéticas que se estabelecem no universo literário e na
revolução plástica, o mesmo não acontece na arquitetura e no urbanismo, que ainda
estão em outro tempo histórico. Nesse contexto, as cidades têm ainda uma
configuração neo‐clássica, tendo como referência as cidades européias , sobretudo a
França e modelos norte‐americanos, como as cidades‐jardim, revelando um 66 Movimento Pau Brasil. Cf: AMARAL, Aracy. Antropofagia no país da cobra‐grande. In: Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: editora 34, Edusp, 2003. 67 Movimento Antropofágico de 1928. [...] “ao receber em 11 de janeiro de 1928 esse quadro de Tarsila como presente de aniversário, Oswald Andrade comentou impressionado: “É um homem plantado na terra”. Conversando com ela e com o colega Raul Bopp, propuseram‐se a fazer um movimento em torno desse quadro, dando origem ao movimento antropofágico. Seu título foi composto consultando um dicionário da língua dos índios tupi‐guarani. Abaporu vem de Aba (homem) e Poru (comer) e significa o mesmo que antropofagia.Cf. Aracy Amaral. Op.cit. p.p.279‐350. 68 Sobre o verde amarelismo. Cf: VELLOSO, Monica P. A brasilidade verde‐amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Revista de Estudos Históricos: Rio de Janeiro, 1993.
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descompasso.69 Outra questão dominante desse período está na configuração do
ideal de “homem brasileiro” e no resgate de mitos, como do bandeirante, que
restituem um universo imaginário, na reorganização dos ícones de brasilidade e se
refletem na disseminação de marcos e monumentos pela cidade70.
Na representação da metrópole paulista, que se consolidará no séc. XX, o
conceito de Comunidades Imaginárias de Benedict Anderson71, foi o referencial
utilizado para analisar a cidade idealizada na Primeira República, que deveria ser
uma cidade de brancos, ou de imigrantes europeus, desde que estabelecessem suas
identidades de acordo com critérios localistas construindo assim, essa comunidade
imaginária – muitas estruturas políticas foram articuladas para que esse ideal fosse
cumprido. As imagens do final do século XIX, revelam uma cidade quase
despovoada, destacando a arquitetura e escondendo a mestiçagem das ruas, ou então
revelando cenários onde “homens de casaca” se aglomeram – pois, o espaço público
nem sempre é um espaço popular.
No séc. XX, embora tenha se pretendido criar um conceito de casa que
acolheria a todos (desde que se varresse para debaixo do tapete toda gama de
excluídos e as memórias incômodas), revela uma cidade de homens, sem escravos e
de aspecto europeu, e cria o modelo de brasileiro, como o “mestiço ideal”,
descendente dos “bravos bandeirantes” e representante desses novos paradigmas.
A metrópole paulista situa‐se, portanto, na esfera das invenções de tradições e
suas imagens começam a ser produzidas dentro desse imaginário, antes mesmo de se
tornar uma metrópole na acepção urbanística do termo.
A metrópole paulista foi idealizada através dos signos de modernização, que
poderiam representar a cidade ideal, a cidade do progresso, a raiz da representação
do “acerto dos ponteiros do relógio” (que se principia no modernismo de 22). E cria
69 Mudanças urbanísticas irão ocorrer em larga escala. Cf. TOLEDO, Benedito Lima. Prestes Maia e as Origens do Urbanismo Moderno em São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996 70 Cf. ABUD, Kátia Maria. O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições. Tese de Doutorado, USP, 1985. 71 Cf. ANDERSON, Benedict. Memória e Esquecimento. In: Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1991.
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os cânones dessa representação, que será largamente utilizado até a consolidação do
Estado Novo.
Arte para Massas e Indústria Cultural
Não podemos deixar de apontar para um fenômeno considerado crucial nesse
sentido, que situa‐se, mais precisamente, na virada tecnológica do século XX,
trazendo novas possibilidades de comunicação: a cultura de massas.
Como conseqüência das novas tecnologias e das circunstâncias geopolíticas
configuradas na mesma época, a cultura de massas, desenvolveu‐se a ponto de
atingir outros tipos de cultura anteriores e alternativos a ela. Como por exemplo:
antes de haver cinema e rádio, falava‐se em cultura popular em oposição à cultura
erudita e das classes aristocráticas; falava‐se também em cultura nacional, como
componente da identidade de um povo; em cultura clássica, como um conjunto
historicamente definido de valores estéticos e morais; e num número tal de culturas
que, juntas e interagindo, formavam identidades muito diferenciadas das
populações. Porém, a cultura de massas acaba submetendo as demais “culturas” a
um projeto comum e homogêneo — ou pelo menos pretendendo essa submissão. Por
ser produto de uma indústria de porte internacional, a cultura elaborada pelos vários
veículos que surgiram esteve sempre ligada ao poder econômico do capital industrial
e financeiro. A massificação cultural, para melhor servir esse capital, requereu a
repressão às demais formas de cultura, de forma que os valores apreciados
passassem a ser apenas os compartilhados pela massa. [imagens 11 e 18: pp. 169 e 171]
Nesse sentido, desenvolve‐se a industria cultural72 e dentro dela, a arte
totalitária, um tipo incontestável de cultura de massa que utilizou (ou melhor, foi
utilizada), de forma peculiar, pelo controle rígido do Estado e das políticas estatais
72 A expressão ʺindústria culturalʺ foi utilizada pela primeira vez pelos teóricos da Escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro Dialektik der Aufklärung (Dialética do Esclarecimento, no Brasil ou Dialética do Iluminismo, em Portugal). Nessa obra, Adorno e Horkheimer discorrem sobre a reificação da cultura por meio de processos industriais. Cf. ADORNO. Op. Cit
50
para a produção cultural. Eliminando o que não se encaixava nos ideais de coerção e
de promoção de crescimento e industrialização.
Nesse sentido, a cultura popular, produzida fora de contextos
institucionalizados ou mercantis, passa a ser em várias instâncias, objeto de
repressão. Justamente por ser anterior, o popular era também alternativo a cultura de
massa, que por sua vez pressupunha ser hegemônica como condição essencial de
existência.
Porém, a indústria cultural percebeu mais tarde que possuía a capacidade de
absorver em si, os antagonismos e propostas críticas, em vez de combatê‐lo, e assim
o fez em vários aspectos. Com isso, nos anos 30, a industria cultural se estrutura
permeando a vida cotidiana como nunca havia acontecido em processos
civilizatórios anteriores, provocando um grande deslocamento na forma de conceber
as artes visuais até então.
Sendo que, a representação tornou‐se mais importante que a experiência e a
realidade e começou a ser vista pela ótica legitimadora da imagem registrada. 73 Ou
seja, o real foi encarado como aquilo que pudesse ser traduzido em imagens. Os anos
30 são, portanto, a fase de consolidação da imagem e também do processo chamado
de “grande urbanização”74 da cidade de São Paulo. Nessa transição nos atemos ao
repertório de imagens sobre a cidade, construídos no período que, por sua vez, se
inspira nas representações visuais e na ressonância de discursos dominantes. E o
palco desse processo é a cidade que seduz e transforma mentalidades.75
A difusão dessa idéia de metrópole, de lugar do progresso e do crescimento, irá
permear vários aspectos representacionais. Porém, alguns trabalhos escaparão a esse
modelo, sobretudo na expressão plástica. [imagens 34, 35 e 64: pp. 177 e 187]
73 BECHARA FILHO, Gabriel. Imagem e Sociedade nos anos 30. Conc. João Pessoa, v.5, n7, p‐188 Jan/jun.2002 74 Cf:. TOLEDO, Benedito Lima de. Prestes Maia e as Origens do Urbanismo Moderno em São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996 75 SCHPUN, RAISA, Mônica. Luzes e Sombras: São Paulo na obra de Mário de Andrade. Artigo originalmente publicado em Rivista di Studi Portoghese i brasiliani II Pisa/Roma. Instituti Editoriali e Poligrafici Internazionali, 2000, pp.105‐123
51
Se na propaganda, no design, os discursos levam sempre a uma idéia de
metrópole, de velocidade, de verticalização. Por outro lado, em alguns casos, a
pintura, mostra uma outra cidade. Os aspectos de industrialização alinhados ao
futurismo, são marcadamente da primeira fase do modernismo, já na segunda fase,
observa‐se uma espécie de retorno, uma antítese, um culto ao oposto.
52
Capítulo 2
O Olhar do Lugar
IDENTICIDADES
“ E a cidade ia tomando a forma que o olhar revelava.” (LISPECTOR, Clarice).
53
Identidade Nacional e Cultura
Não há como abordar a questão da identidade cultural, sem abordar a questão
do nacional, e nesse sentido desenvolver uma reflexão sobre “os nacionalismos” que
constroem dinâmicas de pensamento muitas vezes conflitantes entre si.
A cidade de São Paulo é focada em um momento de grande importância
histórica do Brasil, que é a modernização social que, por sua vez, definirá
mentalidades. A modernidade, nesse sentido, se pauta por uma forte presença do
lugar. Portanto, os nacionalismos devem ser vistos pela ótica da identidade cultural,
como ponto chave do projeto estético brasileiro e também do projeto ideológico.
O modernismo no Brasil se cinde, desdobrando‐se em correntes nacionalistas
que irão desencadear olhares antagônicos sobre a questão da identidade nacional.
Por isso, a abordagem dos nacionalismos no Brasil, neste período, é um dos pontos‐
chave da pesquisa para abordar questões acerca da cultura e da identidade nacional
que, nesse contexto, é um produto:
A relação entre identidade nacional e cultura mostra a nação sob um contexto sócio‐histórico, dentro do qual a cultura se encaixa, salientando o envolvimento emocional dos indivíduos nos elementos de sua cultura como fator fundamental explorado pelo nacionalismo.76
A Era Vargas77, desde o governo provisório até a consolidação do Estado
Novo, se valerá largamente das massas e de uma nova cultura política. O Estado
intervencionista desde seu início introduz uma política social baseada na
manipulação ideológica.78 Em relação à lógica simbólica da formação e mobilização
da identidade, o objetivo era reunir os valores dos trabalhadores e transformar
76 GUIBERNAU, Montserrat. O Estado Nacional e o Nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1977. 77 Era Vargas ‐ período em que Getúlio Dornelles Vargas governou o Brasil (de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954). Essa época foi um divisor de águas na história brasileira, por causa das inúmeras alterações que Vargas fez no país, tanto sociais quanto econômicas. Nesse trabalho, o enfoque se situa na primeira fase da Era Vargas (30‐45). Cf: FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: Historiografia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 78 Sobre a questão do Varguismo e da Política de Massas; Cf.: CAPELATTO, M. Helena R. Multidões em Cena: Propaganda Política no Varguismo e no Peronismo. São Paulo: Fapesp/Papirus, 1988.
54
algumas premissas atendidas como “atos de generosidade”. Nesse sentido, entra a
propaganda governista, como mecanismo de representação e difusão dessa
ideologia.79 O atrativo político e ideológico das mensagens articulava a divulgação de
soluções para a miséria e a exploração, possibilitando uma renovação de crenças.
É muito importante considerar aspectos do imaginário e do simbólico nesse
momento. A “política de massas” no Brasil, se principia em 1930, com a Revolução, e
introduz uma nova ordem política e social que vai adquirindo forças e que tem como
promessa o alinhamento do Brasil, com os países ditos avançados. Essa é a tônica
dos discursos. Nesse período, a ordem oligárquica é posta em cheque e isso faz
emergir novos atores sociais e a formulação desses projetos ideológicos dará
consistência ao nacionalismo de direita, alinhado ao Estado.
Nesse panorama surge a idéia de “tempo novo”80, de ruptura com o velho
sistema e da reunião de elementos que representam essa nova ordem, que será
referência constante da propaganda de Vargas. Serão apresentados os projetos de
reforma social e os ideais de “ordem e progresso” ficando claro nos discursos de
Vargas, a afirmação de unidade: “[...] um país não é uma aglomeração de indivíduos
num território, mas é principalmente uma unidade de raça, de língua e de
pensamento.” 81
Dentro dos ideais modernizantes que aspiravam o projeto de governo nesse
período, estava a organização de uma força de trabalho disciplinada em mecanismos
de controle social para garantir a ordem e evitar insubordinações. Nesse sentido, o
Estado totalitário, ou de massas, realizava mediante o emprego da violência a
eliminação de formas exteriores ou ostensivas de tensões políticas. Dessa forma, arte
e política caminham juntas, e o cerceamento se fez sentir em todas as esferas das
representações, tanto no campo literário, na música, nas artes plásticas. Criando uma
estética do “crescimento, da modernização, do trabalhador” e proibindo
79 Cf. GOMES, Ângela Castro. Essa Gente do Rio: Modernismo e Nacionalismo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. 80 CAPELATTO, 1988. Op. Cit. 81 Ver discurso de Getúlio Vargas em Primeiro de Maio de 1938 – CPDOC (www.cpdoc.fgv.br).
55
manifestações contrárias a essa ordem. A ideologia do Estado se valeu da simbologia
para a representação de suas premissas coercitivas, que tinham uma embalagem
democrática. Foi através da divulgação doutrinária, que a reforma estatal se
estruturou em representações de fácil compreensão, e textos de divulgação de
imagens de forte apelo emocional. A idéia/imagem de revolução social destaca‐se
através do material propagandístico em uma exaltação ao mito do herói solar82,
utilizado em representações desse momento histórico. Como vimos, pelo resgate do
mito do bandeirante para São Paulo.83
Embora as bandeiras dos Estados tenham sido queimadas no período,
verificamos que várias esferas da propaganda ideológica, se apropriam dos mitos de
origem para uma nova concepção de brasilidade. Nas representações da revolução,
curiosamente, também se percebe a citação de forças da natureza.84
No programa doutrinário, não faltam elementos representativos dessa
ideologia e estética alinhadas ao autoritarismo. É o caso da cartilha “Getúlio para
Crianças”, destinada à formação cívica de forma didática. O “nacionalismo
pedagógico”, abordou temas acerca dos novo símbolos da nação em várias esferas
da divulgação. Suas cartilhas e imagens re‐elaboravam um discurso autoritário
travestido de certezas e uma visão maniqueísta, através de ilustrações quase sempre
bastante primárias, geralmente, ilustradas com desenhos de traços simples. Na
divulgação das imagens de Getúlio, há também uma série de postais, onde foram
feitas “montagens fotográficas” apresentando Vargas, como o pai dos pobres, o
amigo das crianças, interessado em necessidades populares etc. [imagens 8, 9 e 10: p. 168]
82 Cf. DURANT. Gilbert. As Estruturas antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 83 Cf. ABUD. Kátia. Op. Cit. 84 Alguns autores recorreram a metáforas permeadas de imagens de catástrofes para representar a Revolução de 1930, no Brasil. Como Leão Machado [apud] que referiu‐se a uma avalanche que se desequilbrou dos cimos nevados da montanha e desceu impetuosamente pelas ladeiras, arrastando pedras, árvores, edifícios, em seu tremendo desabalamento e no dia 3 de outubro de 1930, rebentou a revolução com o rompimeto material da ordem. Ver: CAPELATO, op.cit.
56
Pode‐se observar que a noção de busca da legitimidade do ideário nacional se
estruturava nas representações e nas imagens divulgadas que mostravam uma
relação do líder com o povo.85
Na interpretação de Ângela Castro Gomes86, o Estado Novo constitui‐se como
um novo sujeito social, definindo um paradigma para o cidadão que busca o
progresso material dentro dessa ordem que unifica todos os brasileiros em uma só
cultura e que está voltado para uma estética da indústria e do trabalho, com viés
progressista:
(...) a promessa da obra de arte de instituir verdades imprimindo a figura nas formas transmitidas pela sociedade é tão necessária quanto hipócrita. Ela coloca as formas reais do existente como algo absoluto, pretextando antecipar a satisfação nos derivados estéticos delas. Nessa medida a pretensão da arte é sempre ideologia (...).O elemento graças ao qual a obra de arte transcende a realidade de fato é o estilo, mas ele não consiste na realização da harmonia – unidade problemática da forma e conteúdo, do interior e do exterior da sociedade – mas nos traços em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado em busca da identidade.87
O conceito de Nação e a idéia de pertencimento e o resgate dos mitos primordiais
A nação menos que uma entidade é algo que produz sentidos, que reforça ou
dilui identidades de acordo com interesses. Natio é a condição de pertencimento a
algo – a identidade a partir dessa condição é quase sempre abstrata em seu
significado. Porém, as nações se sustentam em função das diferenças e contrastes.
Essa é a tônica do nacionalismo e o reconhecimento de seu caráter.
No seu surgimento, a definição de nação, como definidora da nacionalidade
como uma entidade, se fazia sobre um contrato, que depois de consolidada virava
uma abstração, pois a palavra é escrava do choque sensório e sempre vem carregada
de imagens que falam ao coletivo (as massas e os símbolos das massas). Desse fato
85 Cf. GOMES, Ângela Castro. Essa Gente do Rio. op cit. 86 Idem. Ibidem. 87 Cf. ADORNO T. e M. HORKHEMER. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 123.
57
surge a tradição de se criar os símbolos nacionais, que são estratégias que se utilizam
para a invenção das tradições do mito de povo original.
Em São Paulo, esse processo é visto no resgate do “Mito do Bandeirante”
anteriormente suscitado – que envolve tanto a questão do tempo perene e do mito
primordial, dois elementos fundamentais e que se tornaram a base de uma narrativa
unificadora e que compõem a construção da tradição nacional: “Somos um povo
desbravador...” Essa narrativa estruturada a partir do mito, dá origem a várias
construções históricas. É importante ressaltar que a historicidade e a contingência do
nacionalismo se estabelecem por duas correntes básicas, conforme vimos: o
racionalismo ilustrado e o historicismo romântico.
Na disseminação de significados, a nacionalidade impõe fronteiras. Porque as
nações são calcadas na diferença. E se os Estados brasileiros são um mosaico de
diferenças, todos se igualam dentro do panorama nacional, que unifica os povos.
Esse ideal de união se estabelece através da construção de uma memória do
passado, que por sua vez estabelecerá uma sensação de pertencimento e perpetuação
da herança na noção de território nacional e do idioma. Nesse panorama, a
veiculação das imagens tem um papel preponderante: a divulgação dos significados
homogeneizantes como verdades. Essa “estratégia” inaugurada pelos franceses, tem
na propaganda governista, exemplos do serviço militar obrigatório e a coerção
implícita dentro de ideais nacionalistas.
A nação se constrói pelas identificações, mas sob elas, a diferença é setorizada
de acordo com as intencionalidades. O nacionalismo é portanto funcional para uma
idéia de modernidade, dentro da noção de comunidade imaginária 88 que se utiliza de
projeções na criação dos nacionalismos.
Por exemplo, a cultura nacional funciona como um sistema de representação
que, por sua vez, implica em uma forma de narrativa oficial que atinge a todos. As
narrativas podem ser, portanto, tendenciosas, forjadas e dominantes. Dentro dessa
88 Sobre Comunidade Imaginária. Cf. ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Editora Ática, 1989.
58
questão, deve‐se levar em conta alguns aspectos: o conceito de nação como essência ,
que precede a nacionalidade e o de nação à posteriori – o Estado que cria a nação,
como no caso brasileiro que o Estado, a partir da Era Vargas irá criar um
nacionalismo pedagógico.
A essência do caráter nacional é a essência do colonizador, é eurocêntrica com
personalidade autoritária. A questão da memória, portanto, perpassa por essa trama,
onde a pergunta chave não é por que lembramos e sim porque esquecemos(?) Nesse
sentido, a memória é a arte do esquecimento. Ou seja, nós temos conexões nacionais
que formam nossa memória, porém a memória social não é saturável e sim
infinitamente renovável, assim como os mecanismos de esquecimento social. Os
estados nacionais se formam em função de outro, isso desencadeia o surgimento do
estado‐nação com todo seu impacto:
[...] vale refletir sobre a configuração essencial do Estado‐Máquina no Brasil, que se constitui, ao mesmo tempo, como aparelho material de dominação e comunicação nacional‐mítica de uma comunidade imaginada, desde mais visivelmente, pelo menos, a guerra contra o Paraguai, processo que teve nova e decisiva inflexão, todavia, com o advento da República, porquanto ancorada em engenharia militar e na política positivista. Dessa ótica, parece ser indispensável, com vistas a apreender uma das dimensões mais reveladoras dos impasses da modernidade entre nós, reavaliar a obra‐prima de Euclides da cunha, Os Sertões (1902), como texto chave para o desmascaramento (certamente contraditório), da barbárie perpetrada pelo Estado nacional moderno (e por sua tecnologia militar), em nome da unidade do país e do modelo civilizatório que lhe foi inerente.89
O panorama nacionalista brasileiro foi fundamentado por uma história que
tem suas bases tanto na narrativa como na produção de imagens, considerando o
contingente analfabeto ‐ e os processos de “heroização” de figuras míticas. Na criação
das genealogias nacionais e no espírito de grande família patriarcal dentro de
cânones religiosos foi impresso o conceito de nação, desde que essa família atendesse
89 HARDMAN, F. Antigos Modernistas. In: NOVAES, A. Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 299.
59
aos critérios de pertencimento. Instaurou‐se uma indústria do lembrar/esquecer onde
as memórias nacionais são condicionadas. As comunidades imaginadas são feitas por
fragmentos de uma obsessão pelo todo, criando um conceito de fraternidade, no
ideal de “pátria amada”:
[...] as formas oitocentistas de imaginar a fraternidade emergindo ‘naturalmente’ de uma sociedade fraturada pelos mais violentos antagonismos raciais, de classe e regionais, são a mais clara demonstração de que o nacionalismo [..] representou uma nova forma de consciência – consciência que surgiu quando não era mais possível vivenciar a nação como o novo, no momento crucial da ruptura. (...)90
Na biografia das Nações, segundo Benedict Anderson, as mudanças mais
profundas trazem consigo amnésias características e desses esquecimentos se
originam as narrativas. E o palco dessa nação localiza‐se nas cidades – que são como
redes na construção de uma idéia do espaço ideal. É na territorialidade que se
estabelecem os critérios de nação (a geopolítica se estrutura nesse sentido). São os
espaços da comunidade imaginária e dessa pedagogia de lembranças construídas e
esquecimentos coletivos que o cenário desse espaço se desenvolve. Por isso, o
nacionalismo é visto por Anderson como um artefato cultural de um tipo bem
peculiar e emblemático. A questão da comunidade política imaginada proposta nessa
reflexão tem um local de existir e se articula e estrutura, como vimos, em mitos e no
“lugar de origem”.
O nacionalismo inventa nações, mas isso não é um pressuposto falso e sim assimilado que reflete o imaginário. A ‘dissemiNação’ se dá no âmbito das representações, que por sua vez divulgam esses cenários dentro do conceito de nação que apesar de uno ‐ é composto por diferenças. As comunidades não devem ser distinguidas por sua falsidade/ autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas.91
90 ANDERSON, Benedict. Raízes Culturais. In: Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática, 1989. p.15. 91 Idem, Ibidem.
60
Dentro dessa concepção, entendemos que o nacionalismo tem o poder de
transformar o acaso em destino, e que desde o seu surgimento no século XVIII,
produzido pela eclosão de certezas religiosas, embora não suplante religiões, deve
ser compreendido através de sistemas culturais que o precederam, e que passaram a
existir através dele, tais como as narrativas e a apropriação de valores.
Nessa apropriação, são intrínsecos dois sistemas consolidados que dão suporte
para estruturas do nacionalismo: a religiosidade e o governo. Sendo que, os conceitos
culturais básicos para se imaginar a nação historicamente são: a língua, as dinastias
(dentro da concepção de divindade), e a temporalidade.
Portanto, a comunidade imaginária é criada de exclusões que perpassam por
essas estruturas.
São Paulo é uma cidade que exclui culturas em nome de uma memória oficial,
do mito de origem dos bandeirantes, em suas memórias construídas, embasadas na
mitificação de homens que estavam a serviço da Colônia e que eram
“predestinados”, ou a serviço de Deus, na monarquia.
Na concepção religiosa, por exemplo, percebemos esse dado claramente
através da forma como os jesuítas tido como “fundadores de São Paulo” são
exaltados. Percebe‐se que nesse sentido há uma profusão de símbolos de Anchieta
como catequizador/civilizador.
O “mito do herói” sempre dá origem à tradição e exclui a memórias dos
dominados. Exaltam‐se os bandeirantes, esquecem‐se das várias nações indígenas
que foram destruídas, ou então, as representam como servis, sem importância, sem
participação ativa nos destinos e sem distinção, o índio é apenas índio sem outras
referências, mesmo havendo uma infinidade de “nações” indígenas.
Dessa tradição da memória implantada surgem os elementos utilizados no
nacionalismo que também são permeados por uma aura de sacralidade. Nesse papel,
as representações visuais têm grande relevância, nos modos de apreender o mundo e
nas possibilidades de pensar a nação. As representações visuais são pilares desse
panorama e tem um caráter didático e muito revelador:
61
As impressões visuais das comunidades sagradas, tais como relevos e vitrais de igrejas medievais, ou as pinturas dos primeiros mestres italianos e flamengos . O traço dessas representações é algo análogo à ‘aparência moderna’. Os pastores que haviam acompanhado a estrela até a manjedoura que Cristo nasceu têm feições de camponeses de Borgonha. A virgem Maria é representada como a filha de um mercador toscano. Em muitos quadros, o cliente que encomendou a obra, vestido como um burguês ou em traje de nobre, aparece ajoelhado em adoração ao lado dos pastores [...].Estamos diante de um mundo em que a representação da realidade imaginada era irresistivelmente visual e auditiva. A cristandade assume sua forma universal, mediante uma infinidade de especificidades e particularidades. 92
No Brasil isso se inverte de certa maneira, a exemplo do romantismo que
representava suas imagens pelo olhar do europeu. Quase toda construção imagética
tem o olhar do europeu como filtro, mesmo a produção modernista se fará pelas
cores e por traços do olhar de fora. Acostumou‐se a olhar de fora pra dentro.
O pertencimento, ter coisas em comum e esquecer coisas em comum é também
uma das tônicas do nacionalismo.
A mediação para as massas iletradas de concepções cristãs sempre ocorreu
pelo meio das criações visuais e auditivas, em representações que aproximavam a
comunidade à linguagem pretendida – ou seja, na adaptação das cenas para o
universo em questão.
É a partir do conceito de reprodutibilidade que o conceito de nação se
dissemina, reforçando as diferenças e direcionando os valores que a estrutura
dominante estabelece para o que pretende atingir. E no sentido das representações,
na segunda fase da recriação do nacional, a fotografia surge como a grande musa da
reprodução mecânica, posto que é apenas a mais peremptória de toda uma mesma
acumulação moderna de evidências documentárias (certidões de nascimento, diários,
boletins escolares, cartas, relatórios médicos e coisas do gênero), que registra uma
certa continuidade aparente e, simultaneamente, enfatiza a sua perda pela memória.
92 ANDERSON, 1991; op.cit. p. 32.
62
Desse estranhamento surge a concepção de pessoalidade: a identidade que não pode
ser lembrada, devendo ser narrada.93 [imagens 26, 29 e 66: pp. 174, 175 e 187]
O nacionalismo é, portanto, criador de identidades para os indivíduos que
vivem e trabalham nas sociedades modernas. Dentre os critérios de pertencimento e
comunidade, destacam‐se a continuidade do tempo e a diferenciação. Mas a
identidade nacional precisa ser reafirmada com intervalos regulares e por isso
prescinde do rito – que são também as cerimônias religiosas e civis. No âmbito
cultural a socialização se estabelece no espaço e no tempo, assim como na
identificação dos valores, crenças, costumes, convenções, hábitos e práticas que são
incorporados ao cotidiano e impregnados de significados: os indivíduos que
ingressam numa cultura carregam emocionalmente certos símbolos, valores, crenças
e costumes, interiorizando‐os e concebendo‐os como parte deles próprios.
A carga emocional que os indivíduos investem em sua língua, símbolos e
crenças, facilitam a difusão do nacionalismo que, por sua vez, emana desse apego
emocional à terra e à cultura das pessoas. Porém, a teoria social e política tende a
colocar as emoções fora da pesquisa sendo que elas são forças motrizes. Constata‐se
que força do nacionalismo procede não só do pensamento racional, mas do poder
irracional das emoções que se originam no sentimento de pertencimento.
O outro lado dessa questão está na transformação dessas emoções que são
ambíguas, e tanto tendem ao pacífico como ao xenófobo e à competitividade, nos
sentimentos de comparação e de imposição de superioridade.
Identidade nacional no século XIX
No século XIX, o Brasil passa por transformações identitárias e se descobrirá
um país “deslocado e atrasado”. Esse pensamento irá continuar, posto que
desencadeará ações para se alinhar com os ideais exigidos para que uma nação seja
considerada “adiantada”:
93 ANDERSON, 1991; op.cit, pp. 92‐93
63
Eram evidentes o ecletismo, o anacronismo e o exotismo, se pensarmos nas convergências e nos desencontros entre idéias e realidade. A realidade social, econômica, política e cultural com a qual se defrontavam intelectuais, escritores, políticos, governantes, profissionais liberais e setores populares não se ajustava facilmente às idéias e aos conceitos, aos temas e às explicações emprestados às pressas de sistemas de pensamento elaborados em países da Europa. Estava em curso uma fase importante no processo de construção de um pensamento capaz de pensar a realidade nacional.94
Dentro dos critérios eurocêntricos cultuados percebemos que a
intelectualidade de elite, não ficou de fora, e sim se alinhou por várias vezes a essa
tônica dominante, tanto da identidade, como da escala, do lugar no ranking que o
país ocuparia, numa escala ocidental.
Nessa busca de idéias para reconstrução do nacional, muitas correntes de
pensamento foram buscadas na Europa, que era a referência para países em
construção de seu ideário nacional, sobretudo na fase de transição que se encontrava.
Em toda a transição, uma rede de equívocos foi sendo construída, ou melhor, foi
sendo fundamentada em uma tradição de negações.
Se analisarmos dicotomicamente a questão da imigração como trabalho livre,
mas também como projeto de branqueamento de população, a idéia de recriação do
nacional é uma busca que evolui gradualmente. O questionamento sobre a sociedade
brasileira estava começando a ser repensado, após séculos de escravidão e agrarismo,
já no final dos oitocentos.
A questão do nacional é uma preocupação crescente. A idéia de nação está
sendo revista e reconstruída. A procura de referências e de construções simbólicas se
estabelece na medida em que se busca a construção de valores culturais, tradições,
crenças, monumentos. A preocupação com origens, etnias e justificativas são a tônica
dessas construções. Nesse sentido se estabelecem analogias, rupturas, comparações e,
sobretudo, negações.
94 IANNI, Otávio. A Idéia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.
64
Outro ponto crucial está no acelerado ritmo de transformações urbanas que
assolam as cidades, que se tornam mais intensas conforme a burguesia industrial
assume o poder. A imagem da cidade de São Paulo vai sendo construída
paulatinamente, e vai delineando sua identidade. Porém no século XIX tudo está por
ser feito, ou seja, as tradições ainda estão sendo inventadas:
[..]o estranhamento se impunha e era difuso, envolvia a própria identidade da cidade. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos, nem de mestiços; nem de estrangeiros, nem de brasileiros; nem americana; nem européia; nem nativa; nem industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância do café; não era tropical nem subtropical; não era ainda moderna mas tinha já um passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê‐la como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados. 95
Revoluções na identidade nacional
Com a Revolução de 1930, vários movimentos voltados para a questão do
projeto de Brasil Moderno, se irrompem misturados aos problemas do período, tais
como crises econômicas, surtos de urbanização e industrialização, movimentos
sociais, messianismos e políticos. Nesse período, se estabelecem as interpretações
fundamentais da história da sociedade brasileira, que através de correntes de
pensamento, adotadas por intelectuais brasileiros com formação européia, se põem a
pensar no nacional como construção.
Em 1930, o Brasil realizou uma tentativa fundamental no sentido de entrar no ritmo da história, tornar‐se contemporâneo do seu tempo, organizar‐se segundo os interesses de seus setores sociais mais avançados. Tudo o que vinha germinando antes se torna mais explícito e se desenvolve com a crise e ruptura simbolizadas pela Revolução. O que se encontrava em esboço, apenas intuído, de repente parece clarificar‐se. Foi na década de 30 que se formularam as principais interpretações de Brasil Moderno, ‘configurando uma compreensão mais exata do país.96
95 SEVECENKO. Nicolau. Orfeu Estático na Metrópole. São Paulo: Cia das Letras, 1992. 96 IANNI. Otávio, op.cit.
65
Portanto, a raiz da formação do nacional é reconfigurada nas décadas de 20 e
30, tendo em sua base formadora, a ação de intelectuais que desenvolvem um
panorama de culturas nacionais, que se difundem e geram uma série de mudanças
sociais, deslocamentos e re‐significações.
A tônica dessas mudanças está na negação do passado. São Paulo torna‐se o
cenário ideal para as novas equações, tanto por conter em seus quadros elites de
fazendeiros e industriais, quanto por ser a representação da modernidade.
Várias publicações do período atestam esse fato, dentre elas, destaca‐se,
Retrato do Brasil, de 192897 onde a revelação dos novos tempos e da construção do
nacional, será realizada através de uma análise que começa no Brasil Colônia e
aborda a questão da mestiçagem sob uma perspectiva crítica, apresentando como
“solução”, o “apagamento de tudo o que foi malfeito”. 98
O Brasil será então codificado por intelectuais que questionam a sociedade e
estabelecem parâmetros de análise criando uma articulação histórica. A historiografia
brasileira no período é traçada através de uma perspectiva que está se criando em
São Paulo, sobretudo, pela expansão capitalista e a industrialização crescente, como
também pelo engajamento do aparelho estatal no desenvolvimento.
Se no Brasil, as ciências sociais nascem do desafio de compreender as
condições de um país que se moderniza e se reinventa, no campo das artes esse
panorama é também construído, e refletirá o desenvolvimento de representações,
pautadas por um imaginário que se desenvolve a partir das novas premissas em
pauta. A tônica do período está no fascínio pela modernidade, que por sua vez vem
importada, junto ao ideal de renovação.
No emaranhado dos desafios que compõem e decompõem o Brasil como nação, as produções científicas, filosóficas e artísticas podem revelar muito mais o imaginário do que a história, muito menos a nação real do que a ilusória. Mas não há dúvida que a história seria irreconhecível sem o imaginário. Alguns segredos da
97 PRADO. Paulo Retrato do Brasil (Ensaio sobre a tristeza Brasileira) Duprat‐Mayença, São Paulo, 1928. 98 Idem. Ibidem.
66
sociedade se revelam melhor precisamente na forma pela qual ela aparece na fantasia. Às vezes, a fantasia pode ser um momento superior de realidade. 99
São, portanto, as estruturas e as configurações sociais de vida que expressam
as realidades sociais, econômicas, políticas e culturais, de acordo com cada época e
cada lugar. Tanto as cronologias, como as figuras e os feitos históricos, são marcos
cujas representações constituem a historiografia oficial, recriadas como matrizes
culturais. Nesse sentido, a cidade foi pensada sob várias óticas e mudanças nas
formas de viver e de ver. Buscando delinear a raiz dos movimentos que caracterizam
as principais configurações da vida nacional e dos marcos culturais da identidade.
Dentre eles inclui‐se também um olhar sobre a cidade da perspectiva das definições
jurídicas em consonância com o período varguista.100
Assim, na interpretação dos marcos, dos lugares oficiais da memória e da
representação do nacional, as formas de compreensão do fenômeno que cria espaços
do lembrar, são desenvolvidos e reconfigurados, a partir de 1930. E se apresentam
como movimentos contrários, pois, se por um lado busca‐se nuances de um Brasil
pluricultural, sobretudo nas concepções étnicas, por outro, há uma negação dessas
raízes, que se intensificará numa clara política, disposta à pasteurização geral, com o
99 IANNI, 2004. Op. Cit. p.48. 100 Definições de Cidade – Na esfera jurídica, a vigente definição de “cidade” é obra do Estado Novo. Foi o Decreto‐Lei 311, de 1938, que transformou em cidades todas as sedes municipais existentes, independentemente de suas características estruturais e funcionais. Da noite para o dia, ínfimos povoados, ou simples vilarejos, viraram cidades. Até 1938 o Brasil não teve dispositivo legal que estabelecesse diferença entre cidade e vila. Era costume elevar à condição de vila, ou mesmo diretamente à condição de cidade, rústicas sedes de freguesia, a mais antiga unidade territorial brasileira. E vilas e cidades surgiam até sem a prévia existência de freguesias. Tanto cidades, quanto vilas, podiam ser sedes de municípios. E os limites geográficos de sua jurisdição eram demarcados pelos limites das freguesias, desde que se tratasse de espaço com ocupação consolidada. Até havia regras para que as cidades e vilas pudessem exercer suas diferentes funções, mas a decisão de criar ou elevar uma localidade à categoria de vila, ou de cidade, não respeitava qualquer norma. Iniciativas estaduais de uniformização desse quadro territorial surgiram com a República, mas foi o Estado Novo que estabeleceu as regras de divisão territorial que permanecem em vigor. Cf. VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se imagina. Campinas: Autores Associados, 2002, pp.72‐92.
67
sentido de criar o pertencimento como uno e a nação como um todo. Revelando
contradições:
O Brasil Moderno parece um caleidoscópio de muitas épocas, formas de vida e trabalho, modos de ser e pensar. Mas é possível perceber as heranças do escravismo predominando sobre todas as heranças. As comunidades indígenas, afro‐brasileiras e camponesas (essas de base cabocla e imigrante) também estão muito presentes no interior da formação social brasileira do século XX. As culturas gaúcha, caipira, mineira, baiana, amazônica outras, parecem lembrar ‘ciclos’ de açúcar, ouro, tabaco, gado, borracha, café e outros. Subsistem e impregnam o modo de ser urbano, burguês, moderno, da cultura brasileira, dominante e oficial. 101
No Brasil Moderno, a industrialização cada vez mais centrada em São Paulo,
irá definir os personagens dessa nova época de formação social do brasileiro. Nesse
panorama as discussões se estabelecem em torno do nacional, em temas como: raça,
povo e nação, preguiça e trabalho, tradições e progressos, industrialização e
agrarismo, diversidades regionais e sociedades nacionais.
Novas formas de relação entre campo e cidade se estabelecem, assim como
entre nação, sociedade nacional e capitalismo mundial. Nesse período, a nação
republicana está em pleno processo de formação, e tentará uma equivalência com o
passado, sobretudo, na superação dos ideais do Brasil do café. Formador de elites,
de aristocracias e, conseqüentemente, de políticos, que promoveram uma
transformação social de significado estrutural, com repercussões em outras
atividades econômicas, que apesar de promover construções e rupturas, ainda
sobreviverá no gosto e na configuração estética.
Embora a iniciativa de padronização cultural possa ser observada na trama
das relações sociais, no âmbito cultural transcendem os valores, padrões e modos de
pensar, que se expressam também na forma de organização dos objetos. Nesse
sentido, portanto, observamos que a cultura é feita de sistemas significativos, de
conjuntos que articulam o passado e presente, na construção de valores e visões de
101 IANNI, 2004. Op. Cit. p.61
68
mundo e lugar, através da cultura as representações são construídas, e criam‐se as
relações sociais:
Uma indústria que povoa a cidade e invade o campo, provoca migrações e generaliza a luta pela terra, desenvolve as classes sociais e recria as diferenças raciais, recobre povoados, vilarejos e comunidades, dando passo ao mercado, à mercadoria, ao lucro, aos ritmos do capital, aos princípios do contrato. Aos poucos o Brasil fica paulista, isto é, capitalista.102
A questão do nacional, portanto, se estabelece em um debate sobre a cultura –
seria a cultura dominante colocada como critério formativo da nação?
Sim, quando se trata de fatos e personagens históricos há uma tendência da
história ser narrada pela classe dominante que, por sua vez, estabelece critérios sobre
o estado nacional e as identidades criadas em blocos autoritários.
O poder político implica também na definição da cultura em termos de arte.
Se analisarmos a cultura dominante na produção intelectual temos claros exemplos
do autoritarismo. Por exemplo, na época oligárquica predomina o positivismo (1889‐
1930) o evolucionismo e o darwinismo social, que depois se repagina e se reproduz
na eugenia103, nas estéticas totalitárias e nos métodos de coerção do industrialismo.
Por isso, é inconteste a influência dos blocos de poder na composição das
forças sociais e produções culturais.
No Estado Novo, o controle do sistema educacional, através da indústria
cultural, foi dominante e revelou elementos alinhados a uma idéia totalizadora de
arte e cultura.
[...] a indústria cultural coloca a imitação como estilo [...] Falar em cultura sempre foi contrário a cultura. O denominador comum cultura, já contém a catalogação e a classificação que introduz a cultura no domínio da administração. Só a subsunção industrializada e conseqüente é inteiramente adequada a esse conceito de cultura. Ao subordinar da mesma maneira todos os setores da produção espiritual até esse fim único: ocupar os sentidos dos homens na saída
102 IANNI, 2004. Op. Cit p.175. 103 Eugenia, o termo refere‐se a uma concepção cientificista (1876), anterior a genética, de caráter racista, que estabeleceu critérios para questões de conceitos raciais, de “purificação de sangue” até as chamadas eugenias ambientais, como: saneamento básico, sanitarismo, bacteriologia etc.
69
das fábricas, à noitinha, até a chegada do relógio do ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa em que devem se ocupar durante o dia.104
Os movimentos de integração de um país tão vasto e com culturas tão
diversificadas foram acontecendo ao longo do século XIX e XX. São vários os fatores
que delineiam a configuração do Brasil e lhe dão uma face. Enfocamos os
movimentos a partir da Revolução de 30 e dos ingredientes regionais, e também a
revolução constitucionalista de 32, organizada por setores dominantes paulistas, com
falas separatistas e a queima das bandeiras estaduais pelos governos da ditadura do
Estado Novo. Sendo fato que, a Revolução de 30 teve sua mola propulsora no jogo
de forças estaduais para redimensionar influências. E foi nesse âmbito que as
diversidades e desigualdades regionais se acentuaram e recriaram forças sociais e
econômicas, justamente no projeto de homogeneização dos estados nacionais. As
linhas políticas dos governos republicanos tomaram conta dos interesses que
predominavam no centro‐sul, mas sempre levando em conta os interesses
oligárquicos regionais.
O projeto de nação nos anos 30 ganhou contornos de unidade, mais isso foi
uma fabricação, posto que, por mais que o Brasil esteja simbolizado na língua, hino,
bandeira, moeda, mercado, Constituição, história, santos, heróis e monumentos, as
diferenças regionais são múltiplas.
Nesse sentido, considerando os derivados dessa trajetória ideológica
constatamos que, a idéia de nação e suas representações têm dois momentos:
1. No século XIX com a chamada “invenção das tradições”: Nesse momento,
a história brasileira se ergue dentro de um clima cultural‐nacional, com
configurações diferentes, mas que permaneceu até o século XX, sustentado por
processos de heroização.
104 ADORNO, op.cit. p.53
70
2. No processo de recriação do nacional nos anos 30‐40: onde o modernismo
rompe com as estéticas dominantes e o Estado Novo se apropria desse momento para
a reconfiguração do nacional.
Em ambas as fases, observamos que as mitologias se pretendem como
verdades. Nesse sentido, percebe‐se que o olhar do século XX sobre a cultura dos
oitocentos, vista sob as perspectivas do racionalismo, foi definidora da formação de
um ideário nacionalista:
O olhar projetado pelo século XX sobre a cultura do período que o antecedeu, seja ele “acadêmico” ou “moderno” via, quase sempre, através de óculos nacionalistas[...] Trata‐se de uma espécie de curto‐circuito, já que muito da arte do século passado contribuiu para a formação dessa mitologia histórica brasileira. O recuo diante das identidades, ou “raízes”, ilusórias que nossa história criou torna‐se, desse modo, fundamental para a compreensão da arte desse período [...]. Porque, ao invés de sermos moídos pelos próprios mecanismos interpretativos que essa arte contribuiu para montar, nós podemos, ao contrário, nos perguntar quais são esses mecanismos, quais as peças que os compõem, de que modo eles agiram em nosso meio cultural, inventando tradições, fazendo palpitar um sentimento de pátria, escondendo por aí as diferenças sociais e humanas, tecendo as teias de um imaginário tão lindo e confortável.105
A década de 30 foi marcada por uma espécie de redescobrimento do Brasil. A
constituição de 34 instituiu mudanças no panorama cultural, criando instituições.
Também na década de 30 criou‐se uma busca identitária, embasada na cultura
popular. A fabricação do nacional, a partir desse momento terá uma configuração
delineada, que se estrutura num aproveitamento do conteúdo simbólico do
nacionalismo e institui a “unificação” do nacional como programa do Estado Novo.
Sendo que, os símbolos e rituais foram fatores decisivos na criação da
identidade nacional, pois a idéia de nação como forma de comunidade, implica tanto
a semelhança entre seus membros, quanto a diferença em relação aos estranhos. As
questões sobre a identidade nacional e aspectos do nacionalismo, que se estruturou
via autoritarismo na Era Vargas, reestabeleceu noções tradicionais de hierarquia
105 COLI, Jorge. O que é Arte? São Paulo: Brasiliense, 2003.
71
aliadas a noções corporativistas e centralização do poder, criou uma concentração
nacional que visava liquidar com todas as formas de diferenças regionais.
Nessa época conturbada e de grandes contrastes, o Brasil é marcado por
revoluções e mudanças nos paradigmas. Mas foi através da concepção de uma
identidade coletiva, construída a partir da ação do Estado, pautada por ações
chamadas de “projetos civilizatórios”, que a memória coletiva da nação adquiriu
novos contornos e se fortaleceu vinculada a um processo de recuperação da história e
na definição de uma “estética brasileira”.
Esse fator tem suas raízes fincadas no futurismo106 reinterpretado pelas duas
vertentes de caráter nacional das chamadas vanguardas. Nessa esfera, era nítido o
desejo de modernidade nacional que envolvia a questão da produção cultural e que
entrelaçava os nacionalismos culturais e políticos. Por isso, nesse panorama da
construção da identidade nacional, não é possível falar em uma única identidade
nacional, embora fosse esse o projeto do Estado Novo; dessa forma também se
constatou que os modernismos e nacionalismos são múltiplos.
Porém, os anos 30 revelam uma sociedade de grandes precariedades que
conflitam diretamente com esse ideal de modernidade que pontua os interesses em
jogo. A ação nacionalista da Era Vargas estruturou o Estado Novo integrada a um
nacionalismo cultural e se alinhou com os modernistas no sentido de formar um
“novo povo brasileiro”. As medidas utilizadas para essa finalidade foram chamadas
de medidas disciplinadoras e construíram uma pedagogia nacional.
Mas, o que vem a ser o nacional na cultura brasileira? O que deve ser
entendido como uma estética brasileira?
Para entender a cultura brasileira ou precisar uma idéia de nacional, a
periodização deve ser um guia, pois as transformações ocorrem em diferentes
106 Futurismo: corrente oriunda do Manifesto Futurista, de autoria de Fillipo Tommaso Marinetti, publicado pelo jornal parisiense Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909. Os principais pontos defendidos pelo Manifesto eram a ʺanticulturaʺ (contra erudição), o ʺantimuseuʺ (contra o passadismo) e a ʺantilógicaʺ (contra visão positivista do século XIX). Defendia‐se ainda o ʺculto ao modernoʺ, valorizando‐se a técnica, a máquina, a velocidade, a imaginação e a liberdade das palavras.
72
períodos e diferentes moldes. Se no século XIX o romantismo no Brasil é uma forma
de olhar é também uma forma de unificar a elite, essa mesma elite que através do
modernismo criará um diálogo tenso com a tradição. No período de 30, o que define
o olhar do Estado é a busca de uma re‐interpretação das identidades nacionais e da
cultura. Os mesmo manifestos que entraram em moda e buscaram rupturas,
encontram no meio do caminho um projeto, onde suas idéias de ruptura serão úteis
para “fabricar” o produto‐nação, pelo viés da ideologia e do projeto estético.
73
O Projeto Estético e o Ideológico
Buscando um entendimento mais recortado dos anos 30 em São Paulo,
verificou‐se que, por ser uma cidade muito forte na Primeira República, a mesma
recebeu atenção especial na Era Vargas, no sentido de estabelecer mecanismos de
vigilância e controle para que não ocorressem manifestos anti‐revolucionários,
sobretudo, por especificidades políticas e o claro anti‐varguismo que em São Paulo
teve suas raízes e com isso, conseqüências.
Nos anos 30, chamados de “anos da incerteza”, como vimos, a maioria dos
projetos culturais foram alinhados com os mecanismos ideológicos do Estado, que
lançou as bases de uma reinvenção do nacional através de políticas culturais e
educativas, onde intelectuais de expressão, passaram a atuar junto aos governos.
Na esfera da intelectualidade encontramos diversas formações e correntes de
pensamento: modernistas, positivistas, integralistas, católicos e socialistas que
participaram desse entrelaçamento entre cultura e política. Muitos desses intelectuais
ocuparam cargos‐chave na burocracia do Estado.107 A participação dessa esfera de
intelectuais na vida nacional respaldava‐se na crença de que eles eram uma elite
capaz de sintonizar o país com as novas tendências do mundo e ao mesmo tempo
criar elos com as manifestações da cultura popular.
Os artistas e intelectuais tratavam em suas obras das questões sociais que
estavam na ordem do dia e participavam do debate político‐ideológico entre a direita
e a esquerda que mobilizava o mundo. Apesar do controle e da sistemática adotada
para combater os chamados “inimigos do sistema”, não muito da produção
intelectual conseguiu escapar aos moldes coercitivos.
107 Em 1930, o arquiteto Lúcio Costa foi indicado para a direção da Escola Nacional de Belas Artes. Manuel Bandeira foi convidado, em 1931, para presidir do Salão Nacional de Belas Artes. Em 1932, o escritor José Américo de Almeida assumiu a pasta da Viação e Obras Públicas. Gustavo Capanema foi nomeado em 1934, ministro da Educação e Saúde Pública, e convidou o poeta Carlos Drummond de Andrade para chefiar seu gabinete. Mário de Andrade assumiu em 1935, a direção do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo indicou, juntamente com Manuel Bandeira, o nome de Rodrigo de Melo Franco, para organizar e dirigir o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
74
Porém, muito do que foi produzido por esses intelectuais, foi usado como
base para uma “re‐invenção das tradições” no sentido de um novo alinhamento da
idéia de nacional e, conseqüentemente, de um “homem nacional”, como vimos,
dentro da idéia de criação do “novo brasileiro”. Essa questão permeou toda a esfera
da intelectualidade, sendo que na maioria dos livros publicados no período,
aprofundavam‐se na temática da cultura em relação às identidades étnicas108.
Através da literatura e do romance regionalista fazia‐se a crítica aos valores da
sociedade patriarcal e oligárquica identificados com o tempo passado. O que
interessava no momento era retratar a vida do homem comum das cidades. E nesse
sentido buscava‐se a representação do ideal do brasileiro. Posto que no mesmo
período o estrangeiro era visto com o olhar desconfiado do Estado, que via neles o
“perigo vermelho”, e portanto, ele passa a ser vigiado e perseguido. O “elemento”
que antes tinha sido parte de um projeto para “apurar a raça”, dentro de ideais de
branqueamento” passou a ser visto como o inimigo próximo, o elemento
disseminador de “desordens”.
O debate intelectual e político visava buscar e interpretar a questão das
“identidades” que melhor definiria as questões acerca da nacionalidade brasileira.
Ao mesmo tempo em que no país se promovia uma verdadeira caça aos comunistas e
anarquistas e todas as manifestações que se pusessem contrárias aos interesses da
esfera do poder. Muitos intelectuais se posicionavam de forma discretamente oposta,
mesmo atuando dentro dessas esferas do poder.109
108 Nesse período, Gilberto Freyre publicou Casa Grande e Senzala (1933) obra que modificava o enfoque da questão das raças formadoras do país e fazia a defesa da colonização portuguesa, expressa na idéia da democracia racial. Caio Prado Jr. escreveu Evolução política do Brasil, livro de orientação marxista que enfatizava a participação das camadas populares na história nacional. Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda publicou Raízes do Brasil. Nessa obra o autor se contrapunha a Gilberto Freire ao ressaltar a necessidade de o país superar as raízes culturais portuguesas como condição para entrar na modernidade. 109 Dentre vários exemplos, destacam‐se, além da sociedade nordestina retratada por Gilberto Freyre, os textos de Cassiano Ricardo em defesa da sociedade bandeirante como modelo para a democracia brasileira. Alceu Amoroso Lima, por sua vez, apontava na sociedade mineira traços do espírito de família e de religiosidade que seriam os verdadeiros valores da civilização brasileira. Entre outros que dividiam conciliavam pesquisas e interesses. (notas de aula de Elias Saliba – Nacionalismos)
75
No mesmo período, o mecanismo de controle das imagens e publicações se
dava através dos departamentos de censura, dos órgãos fiscalizadores, censores e
difusores das imagens e ideologias do governo.
Esse aparato reunia remanescentes do modernismo conservador representado
pela corrente dos verde‐amarelistas, posteriormente chamado Integralista110. Grupo
esse que participou da política cultural do governo, e delineou projetos autoritários
com uma verve de nacionalismo acirrado e um ideal de brasilidade.
O projeto autoritário também visava o controle dos meios de comunicação,
garantindo assim, tanto quanto possível, a homogeneidade cultural. A ideologia do
regime era transmitida através do rádio, dos jornais nacionais, passando pelo teatro,
pela música, pelo cinema, e marcando presença até nos carnavais, festas cívicas e
populares e em grande profusão na difusão de imagens em periódicos e cartazes.
Nesse período vários jornais e revistas tornaram‐se os porta‐vozes do regime e
contavam com a colaboração de intelectuais das mais diversas correntes. Buscava‐se
construir a imagem de uma verdadeira simbiose entre o governo e os intelectuais, e
o fortalecimento de padrões de comportamento e valores desejáveis através de
medidas mascaradas, que tinham como objetivo popularizar a imagem de Vargas e
incentivar as manifestações cívicas. O povo era então, considerado uma espécie de
matéria bruta, a ser conformado pelo saber das elites, coadunado com uma política
de coerção. Baseado nesse raciocínio, o governo justificava seu controle e fiscalização
sobre as mais diversas expressões culturais. Até mesmo a linguagem popular era
alvo desse tipo de controle. [imagens 46, 50 e 51: pp. 181, 182 e 183]
Com o auxílio do Ministério da Educação e do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), o regime autoritário do Estado Novo articulou estratégia de
110 O Integralismo ou Ação Integralista Brasileira (AIB), foi criada em 1932, movimento inspirado no fascismo italiano que defendia um ideário nacionalista, antiliberal e anti‐semita. A AIB tinha como chefe nacional Plínio Salgado e possuía seções em diversos estados do país, congregando elementos das camadas médias urbanas como intelectuais, em sua maioria católicos, profissionais liberais, funcionários públicos e militares. Seu lema era ʺDeus, Pátria e Famíliaʺ, e seus principais ideólogos eram Plínio Salgado, Gustavo Barroso e Miguel Reale. Cf. FAUSTO, Boris, Op. Cit.
76
atuação na área cultural, voltada tanto para as elites intelectuais como para as
camadas populares. Ao mesmo tempo em que incentivava a pesquisa e a reflexão
conduzidas pelos intelectuais reunidos no ministério chefiado por Gustavo
Capanema, o governo estabelecia, via DIP, uma rígida política de vigilância em
relação às manifestações culturais, sobretudo da cultura popular. Essa estrutura
altamente centralizada permitia ao governo exercer o controle da informação,
assegurando‐lhe o domínio da vida cultural do país. O DIP costumava realizar
concursos de monografias e reportagens sobre temas nacionais. Foi através de seu
setor de divulgação que se editaram várias coleções. Para divulgar essas obras foi
criada uma rede de bibliotecas em escolas, quartéis, hospitais e sindicatos. A
centralização informativa era apresentada como fator de modernidade e justificada
pelos princípios de agilidade, eficiência e racionalidade.
Devido à importância de suas funções, esse departamento, acabou se
transformando numa espécie de ʺsuperministérioʺ. Cabia‐lhe exercer a censura às
diversões públicas, antes de responsabilidade da polícia civil. Também os serviços de
publicidade e propaganda dos ministérios, departamentos e órgãos da administração
pública passaram à responsabilidade desse departamento.
Cabe nesse sentido um pequeno recorte sobre a questão do patrimônio, e um
outro departamento criado no período, o Serviço de Patrimônio Nacional, que tinha
claramente a função de representar simbolicamente a identidade e a memória da
nação. Reunindo um conjunto de bens que representavam a comunidade nacional:
relíquias, monumentos, cidades históricas entre outros. Em 1936, Mário de Andrade
foi solicitado a preparar a criação de uma instituição nacional de proteção do
patrimônio. Foi esse o documento usado nas discussões preliminares sobre a
estrutura e os objetivos do SPAN, posteriormente SPHAN, criado afinal por decreto
presidencial assinado em 30 de novembro de 1937. O decreto de criação do SPHAN
definia o patrimônio histórico e artístico nacional como ʺo conjunto de bens móveis e
imóveis existentes no país e cuja conservação seja do interesse público quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor
77
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artísticoʺ. Eram também classificados
como patrimônio ʺmonumentos naturais, bem como sítios e paisagens que eram
“importantes”, de se conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido
dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humanaʺ.
O projeto original de Mário de Andrade recebeu modificações significativas
trazidas pela orientação de Rodrigo Melo Franco de Andrade ao longo dos 30 anos
esteve à frente do SPHAN. Durante esse período o SPHAN norteou sua política pelas
noções de ʺtradiçãoʺ e de ʺcivilizaçãoʺ, dando especial ênfase à relação com o
passado. Os bens culturais classificados como patrimônio deveriam fazer a mediação
entre os heróis nacionais, os personagens históricos, os brasileiros de ontem e os de
hoje. No projeto delineado para a nação, contudo, tinha um lugar reservado à
memória popular e a memória erudita, e para cada qual, um livro diferenciado em
setores competentes. Mas as diferenças se estabeleciam também na legitimação da
arte popular . Diferenças claras, sendo que a arte popular era considerada uma “arte
menor”. Essa apropriação do passado era concebida como um instrumento para
educar a população a respeito da unidade e permanência da nação.
Ao longo das décadas em que Rodrigo Melo Franco de Andrade e seu grupo
estiveram à frente do SPHAN, os tombamentos incidiram majoritariamente sobre a
arte e a arquitetura barrocas concentradas em Minas Gerais, principalmente nos
monumentos religiosos católicos. Esse é um dado muito importante. Estudar a
trajetória do atual IPHAN, pode revelar muito das histórias e do patrimônio que o
Brasil esqueceu.
Nesse sentido, cabe um parêntese, pois sabemos que a história da instituição
voltada à conservação do patrimônio brasileiro, através do projeto de criação desse
Serviço de Patrimônio Nacional, apesar de ter sido um projeto muito válido, teve em
sua trajetória várias fases e usos, sendo que, na fase chamada de “construção do
78
orgulho nacional”, voltou‐se para a projeção e o espelhamento das feições de uma
civilização particular para a nação.111
Fica evidente, portanto, que o Estado Novo através do Plano Cultural tinha a
intenção de reformas e visava a criação de identidades impostas, nesses setores.
Onde, ao mesmo tempo em que eliminava os símbolos regionais, unificando o país
na esfera simbólica, buscava a criação ou construção, de uma simbologia nacional,
sendo que as diferenças eram pasteurizadas ou então compunham o mosaico das
“brasilidades convenientes”.
111 MARIANI, Alayde. A memória Popular no Registro do patrimônio. Revista do IPHAN n. 28, 1999.
79
Modernistas e Nacionalistas
Como vimos, a representação de nação foi, quase sempre, pautada pelo olhar
estrangeiro, mesmo que fosse para estabelecer diferenças. Embora não houvesse uma
unidade cultural nem lingüística e nem religiosa no Brasil, as identidades foram
gestadas em cima do todo, na categoria das tradições inventadas que criava uma
pseudo‐hegemonia cultural.
Mas, fora dos padrões estabelecidos, quais eram realmente os elos que uniam
a nação? No recorte brasileiro, o que se destaca, é a interpretação dos contrastes,
presentes nas mais diversas regiões, ou nas chamadas belezas tropicais. No
nacionalismo dissolvido, o território foi traçado por interesses comerciais e políticos.
Nesse sentido, o olhar para dentro, no binômio memória/esquecimento pode ser
revelador. A nação e sua iconografia revelam que a arte no Brasil se estrutura em
sintonia com o estrangeiro em sua raiz formadora e busca o olhar de fora como
legitimador, inclusive dos seus contrastes, pois o paradigma se estabelece justamente
na diferença. Porém, para entender esse processo temos que desconstruir os
elementos da história. A transformação da imagem da cidade será um processo
intensificado e justificado pela necessidade de representar a liderança do
desenvolvimento nacional, posto que era urgente a construção dessa imagem de
metrópole, de lugar de tecnologias e de modernidades.
O “ajuste do relógio112”, portanto, estava na configuração da imagem da
cidade futurista. É a “Nova São Paulo”, industrial e ordenada que vai surgir através
da propaganda, dos projetos urbanísticos e da representação oficial. Recorta‐se a
questão da produção da identidade perpassando pelo imaginário.
Nesse período, que é também um período onde a indústria cultural se
estrutura, veicula essa representação da cidade moderna. As imagens urbanas são,
portanto, signos da cidade e atuam como mediadoras do conhecimento, pois através
delas se estabelecem memórias. [imagens 49 e 53: pp. 182 e 183]
112 Expressão de Mário de Andrade em Paulicéia Desvairada.[apud Cf. Arantes, Otília. Op. Cit.
80
A arte pela vertente historiográfica
A corrente historiográfica tradicional sempre privilegiou as fontes escritas
como documento, e de certa forma não se ateve a questões da sociologia da arte,
posto que se estruturou apenas na cultura escrita. O documento iconográfico,
geralmente, era desprovido de valor documental, visto apenas como “ilustração”.
Porém, a arte como documento e referência social, presentes na arquitetura e nas
artes figurativas, pode ser surpreendente, considerando que a análise das estéticas
pode “significar” tempos, modos de vida e de mentalidades.
Verificamos que o descompasso entre o modernismo e a arquitetura, no início
do século XX, já revelavam uma sociedade que buscava rupturas, como as ocorridas
na literatura e na expressão simbólica, mas ao mesmo tempo tinham na
representação do espaço o predomínio da tradição.
Dentro dessa análise, das tradições e rupturas, outro aspecto que merece
reflexão está na posição social dos artistas na sociedade do período, que revela tanto
o grupo produtor da obra de arte como a situação individual do artista nesse grupo.
Ou seja, o artista é um tipo social que ocupa um lugar na sociedade.
A obra reconhecida perpassa pelo status social do artista ou do que ele
representa. Portanto, o mecenas e o aficionado também tinham um papel
preponderante na definição das tendências e estilo, sobretudo, ao que estava
relacionado ao gosto e ao mercado da época. Entretanto, não podemos deixar de
considerar o fato de que a arte também pode se tornar autônoma, desvinculada
dessas “padronizações”.
De acordo com Bachelard “a arte quando se torna autônoma, ou seja, quando
assume um novo ponto de partida [...] é uma reduplicação da vida”. Dessa forma, o
espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à
mensuração e à reflexão dos projetos idealizados, pois trata‐se de um espaço vivido,
81
com todas as parcialidades da imaginação, onde as lembranças como também os
esquecimentos estão alojados.113
Para se analisar os aspectos estéticos das obras de artes é importante perceber
a confluência da memória expressa na relação do artista com o passado, posto que, os
elementos que compõem a criação da imagem revelam na cultura visual as
referências que são dotadas de significados sobre as coisas. Se o artista não escapa ao
modelo político e nem ao ideológico, é porque ele está inserido no contexto social.
Por outro lado, se a estética da arte modernista, assume contornos de maior
compromisso com temas sociais e experimentação artística, ela revela o ser na
diferença, porém tende a uma representação do espaço convencional. Considerando
que no primeiro momento do modernismo (anos 20), a busca foi por uma renovação
nas artes nacionais, vista como a superação do academismo chamado de passadismo,
nesse mesmo período a arte se restringiu ao universo da figuração e da literatura. Por
exemplo, os artistas que participaram do primeiro movimento modernista, marcado
pela Semana da Arte Moderna de 1922, ainda estavam elaborando a questão da
ruptura que se principiou na esfera literária. Porém, o conservadorismo estético da
Missão Francesa114 refreava a eclosão de uma arte com contornos “nacionais”. Mas,
paulatinamente, essa questão irá se alargar na busca de uma simbologia própria e na
ruptura de paradigmas, através da necessidade de delinear as diferenças.
Mas, a incorporação de novos procedimentos e práticas artísticas de outras
culturas não poderiam significar submissão e comprometer os projetos de identidade
nacional. Por isso, a necessidade da busca de contornos identitários “mais
brasileiros” nas formas de representação, começa com um viés marcadamente
nacionalista, tais como: Movimento Pau Brasil, Movimento Antropófago, Verde‐
amarelismo, Movimento Anta, Integralismo etc., que, por sua vez será reforçado em
30, estabelecendo um debate sobre o nacional popular. Também, nesse período, se
evidencia a presença da paisagem e do homem brasileiros. De acordo com Carlos
113 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo Martins Fontes, 1993. 114 MISSÃO FRANCESA. Cf. Zanini. Op. Cit.
82
Zilio115 “a arte brasileira sistematiza uma posição em relação à cultura brasileira”.
[imagens 22, 23 e 24: p. 173]
Dessa forma, a temática do popular e do nacional, se tornam uma presença
constante na trajetória epistemológica da noção de cultura, presentes na história da
cultura brasileira. A busca da essência brasileira, sobre o que é nacional, define‐se,
segundo Renato Ortiz, “como a conservação daquilo que é nosso, isto é, a memória
nacional seria um prolongamento da memória coletiva popular.”116 A memória
nacional entendida como história que está além do sujeito, pois não se concretiza no
seu cotidiano, e a memória coletiva como sendo da ordem da vivência.
Na segunda fase do modernismo, os artistas buscavam representar suas obras
apropriando‐se das práticas populares e apresentado‐as como expressões da cultura
nacional, mas sempre no espaço do indivíduo. Ou seja, o modernismo brasileiro se
volta a um movimento social e aos problemas sócio‐políticos e se estrutura numa
figuração de cunho mais social, onde o papel da imagem tem um poder central.
O Modernismo então promoveu uma re‐interpretação da identidade e da
cultura nacional, pois se a principal característica do modernismo foi a ruptura com a
tradição, esse fato se revela nos manifestos que querem romper com quase todas as
concepções anteriores de Brasil, por outro lado, os modernistas não querem formular
uma imagem de Brasil que não fosse tributária aos seus trabalhos. Por isso eles
buscam compreender a “brasilidade” através de um mergulho na realidade.
Estabelecendo assim uma concepção do nacional cuja tônica também pode ser
resumida em: “Para atingir o ideal de nacionalidade basta conquistar o que não
temos. “
Nesse sentido, os modernistas pensavam que bastava encontrar algo que
distinguisse e particularizasse o Brasil. Dentro dessa busca, se estabelecem dois
olhares, do modernismo para a modernidade: o primeiro que buscava ser moderno e
o segundo que buscava ser brasileiro. Dessa forma, os olhares modernistas se 115 ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari. Rio de Janeiro: Relume‐Dumará, 1997. 116 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1998.
83
afastam da concepção da identidade brasileira vigente, mergulhando no passado
para revisar a história e buscar um outro olhar. Olhar esse que acabou por suavizar
(mesmo que superficialmente), o peso da compreensão racista e determinista,
característica mais evidente no Brasil do período, no que se referia à nacionalidade.
[imagens 27, 54, 55 e 64: pp. 174, 184 e 187]
A leitura da cidade por outros olhares
A cidade é vista de diferentes maneiras, mas dentro da referência
determinante, da construção das memórias oficiais, faz‐se necessária uma breve
incursão sobre o que pensavam os legisladores, os políticos, os urbanistas, os
arquitetos e os construtores da cidade na década de 30. Embora não seja o objetivo
dessa pesquisa, mesmo assim faz‐se necessária uma reflexão sobre a importância da
cidade sob a perspectiva administrativa, pois esses aspectos irão refletir diretamente
sobre a questão do patrimônio cultural.
A exemplo dos diferentes olhares, podemos perceber que há um leque
bastante diversificado nas esferas de poder. Por exemplo, os juristas brasileiros
olham para a cidade a partir da perspectiva do lote privado quando muito,
justificavam a aplicação de algumas restrições administrativas ao exercício da
propriedade urbana, culminando num processo de reforma jurídica que começa,
justamente, na década de 1930117. Os conceitos de herança cultural e o princípio de
função social da propriedade, referem‐se à parcela desse patrimônio apropriado por
um determinado segmento cultural que passa a ter para a sociedade um significado.
Por isso a cidade de 30 em sua transição e na definição de uma face e na
consolidação dos mitos, revela os discursos da época através do estudo das imagens
e também da arte pública e nesse sentido, também dos processos de urbanização,
sobretudo os que visavam o “embelezamento” da cidade e da criação de uma
estética alinhada aos interesses vigentes. Considerando que produção dos discursos
117 Cf. ROLNIK, Raquel. São Paulo. São Paulo: Publifolha, 2003.
84
institui uma memória dominante regida por uma lógica de progresso, as imagens
escolhidas para ser o cartão de visitas da cidade, ou melhor, as representações da
“chegada do progresso”, visam o resgate das tradições em que se nota um ferrenho
regionalismo, que produz imagens com a finalidade de estabelecer marcos.
Através da análise de conjuntos iconográficos compostos por retratos,
paisagens, cenas urbanas, alegorias realizadas para festas públicas, esculturas, dentre
outros, evidencia‐se como o caráter das representações se diversificava naquele
momento. Nas representações do período, as imagens da cidade se estabelecem
como uma categoria do fenômeno urbano, e o espaço urbano torna‐se um dos
suportes da memória social da cidade.
Na leitura da cidade, as identidades impressas nas experiências estéticas
requerem reflexão. Nesse panorama, o artista traduz a dimensão de seu tempo. As
artes da cidade traduzem o indizível, revelando sutilezas de nossa cultura e nela as
identidades impressas. No grande momento da modernidade as tensões tendem a
ser compreendidas como construções históricas – conscientes ou inconscientes –
através de um projeto político que condiciona o pensamento:
A modernidade latino americana é uma adaptação antropofágica dos modelos europeus que começou na colônia como um anti‐mecanismo de dominação e depois se transformou em mecanismo de hegemonia. A arte latino americana é uma arte que se safa (escapa) do modelo e se desloca, fica diferente. Essa é uma característica da arte latino americana, sempre. Nós somos sempre excluídos.118
O modelo de identidade como construção histórica é muito interessante, posto
que as cidades são reveladoras, são o palco das mudanças históricas, nelas o que se
preserva ou o que se modifica, são referências para entender seus habitantes e as
mudanças históricas que se perpetraram. Sendo que, a possibilidade de
entendimento das raízes que originam nossa cultura e os entremeios que a dissolvem
podem ser dimensionados através da arte.
118 ESCOBAR, Tício. A resistência da arte nos tempos globais Palestra proferida no Seminário da ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte em 28/09/2004.
85
A arte é uma realidade social. A sociedade precisa do artista, este supremo feiticeiro, e tem o direito de pedir‐lhe que ele seja consciente de sua função social. Mesmo o mais subjetivo dos artistas trabalha em favor da sociedade. Pelo simples fato de descrever sentimentos, relações e condições que não haviam sido descritos anteriormente [...], representa um impulso na direção de uma nova comunidade cheia de diferenças e tensões, na qual a voz individual não se perde em uma vasta unissonância.119
Nas formas representacionais da cidade, buscou‐se delinear um universo
criado por imagens, visando identificar a construção de significados. O
aprofundamento se estabeleceu na análise da representação da cidade, verificando
que a iconografia urbana impõe uma extraordinária variação de sentidos.
A idéia de nação e de produção cultural foram princípios para a compreensão
da elaboração da metrópole, que como vimos, nasce permeada de identidades
criadas para uma idéia de modernização – ou seja de progresso e todos outros clichês
que permeiam a “invenção das tradições” no universo paulista. O período em
questão é marcado por vários acontecimentos significativos, como o aparecimento
das inovações tecnológicas, que repercutiram não só no cotidiano das pessoas, como
também no campo das artes. Com a introdução das mudanças tecnológicas, muito
semelhante a que estamos vivendo atualmente, os anos 30 vivenciaram a difusão das
facilidades da “vida moderna” e os avanços tecnológicos da época que têm na
imagem difundida em sua força legitimadora:
A cultura de massas dos anos 30 permeou‐se na intimidade da vida cotidiana como nunca havia acontecido em processos civilizatórios anteriores, provocando um grande deslocamento na forma de conceber as artes visuais até então. Sendo que a representação tornou‐se mais importante que a experiência e a realidade começou a ser vista pela ótica legitimadora da imagem registrada.120
119 FISHER ERNEST. A necessidade da arte, pp. 56‐57 120 BECHARA FILHO, Gabriel. Imagem e Sociedade nos anos 30. Conc. João Pessoa, v.5, n7, p‐188 Jan/jun.2002
86
Moderna, Nacional e Estrangeira
O repertório de imagens de São Paulo, na década de 30, foi justamente
construído nesse processo da grande urbanização e representou o imaginário
regionalista que elegeu São Paulo como o cartão de visitas do Brasil.121
Os beneficiários e artífices desse processo de urbanização enxergavam a nova
cidade como reflexo de seu imaginário. Por isso, toda a produção dos discursos
instituiu uma memória dominante, regida por uma lógica de progresso. As imagens
escolhidas , ou melhor, as representações da “chegada do progresso” resgatam essas
tradições.
A partir desse processo, uma profusão de monumentos serão erigidos pela
cidade com o propósito de reforçar os mitos. Assim como os edifícios serão como
metáforas do crescimento da cidade, com destaque para a verticalização que aparece
valorizada como referência de crescimento, como por exemplo, na divulgação
promovida acerca da inauguração do edifício Martinelli122, e também das questões
envolvidas na busca de uma imagem de metrópole. [imagens 21, 22, 27: pp. 172, 173 e 174]
Nessa pesquisa, a cidade do olhar se volta para aspectos da vida urbana e
busca resgatar uma cidade humanizada, em meio às máquinas e o “rolo compressor
do Estado”. É esse olhar que vai buscar o desvelamento da paisagem urbana,
procurando nesses espaços da memória, os lugares das memórias encobertas.123
121 SCHPUN RAISA, Mônica. Luzes e Sombras: São Paulo na obra de Mário de Andrade. Artigo originalmente publicado em Rivista di Studi Portoghese i brasiliani II Pisa/Roma. Instituti Editoriali e Poligrafici Internazionali, 2000, p.105‐123. 122 Edifício Martinelli inaugurado em 1929. O Edifício Martinelli, foi o primeiro arranha‐céu da cidade de São Paulo, além de ter sido o prédio mais alto da América Latina no final da década de 1920. O seu proprietário chamava‐se Giuseppe Martinelli, imigrante italiano que fez fortuna no Brasil. Construído entre 1925 e 1929, totalmente de concreto armado, o Edifício Martinelli, com 30 andares e 130 metros de altura, revela uma mistura de estilos europeus tão ao gosto da época. Tinha 1.267 dependências entre salões, apartamentos, restaurantes, cassinos, night clubs, o famoso Cine Rosário, barbearia, lojas, uma igreja e o luxuoso Hotel São Bento. Para provar que o prédio era seguro, o proprietário instalou‐se na cobertura. Era o início do movimento de verticalização da cidade. Disponível em: www.aprenda450anos.com.br. Consulta em 1312/2006. 123 Se as representações revelam contradições sobre o imaginário, por outro lado são os museus que revelam o confronto entre os artistas do Brasil e de fora. Essa análise se restringe a São Paulo, onde podemos observar que os primeiros museus se consagram sobretudo à questão do esquecimento na história, a questão do lapso, dos egos e da construção de um memorial do esquecimento.
87
Colocar a arte como linguagem nacional sobrepõe a questão da nacionalidade,
ou natio, posto que a cultura tem sempre uma ligação com o local, assim com a cidade
com sua origem. Porém, a arte pode transcender tanto o lugar quanto a origem.
Em São Paulo podemos verificar a contribuição de diferentes etnias e culturas
na formação do imaginário. Mas nos anos 30, toda uma simbologia construída re‐
significará essa questão. E vários projetos e modificações no espaço vão segregar e
excluir os incômodos e ameaças (como misérias, loucuras, e ideologias contrárias).
O entendimento da cidade de São Paulo, dentro dessa análise, buscou desvelar
o imaginário da “metrópole fabricada” que se revela antes mesmo de São Paulo se
transformar em uma cidade cosmopolita. A elaboração da metrópole Paulista se
estrutura com a finalidade bem delineada de representar a idéia de modernização, de
progresso e crescimento ‐ cânones estadonovistas ‐ que definiram o Rio de Janeiro como
o lugar das tradições e São Paulo como o lugar das inovações.
Dentro da definição de cultura utilizada pelos intelectuais estadonovistas, o
sentido de construir a nacionalidade e de retornar às “raízes do Brasil” pôde forjar
uma “unidade cultural” fundindo cultura e regime no quadro nacionalista.
Na tentativa de “desconstrução” da história oficial da cidade no período,
buscou‐se visualizar fragmentos de memórias esquecidas; através das narrativas, das
imagens e da literatura considerada marginal, que revelam outros ângulos.
Através de aspectos da memória popular encontrou‐se a contra‐mão dos
padrões criados para representar a metrópole, ou seja, através do imaginário, tentou‐
se aproximação com memórias e culturas excluídas do projeto modernizador.
As analogias entre o oficial e canônico, tiveram o objetivo de identificar o que
escapou a essa regra, para entrar nos recônditos dessas culturas, desse universo
fragmentário de textos e imagens paralelos.
Nesse sentido, imaginário e a representação, podem ser vistos como universos
que se inter‐relacionam, da mesma forma que a indústria cultural se utiliza tanto de
elementos da cultura erudita como da cultura popular. Analisou‐se aspectos da
urbanidade, verificando fragmentos de memórias esquecidas, na invenção das
88
tradições na cidade como um organismo vivo, para tentar entender como funcionam
essas articulações onde os determinismos culturais criam falsas tradições ou
tradições parciais, revelando que, a maioria dos projetos urbanísticos, foram
violentando a cidade em um momento que emergia um discurso de novas tradições.
No período, entre 20 e 40, São Paulo é remodelada por surtos urbanísticos
dentro de padrões forjados e inautênticos. Muitas transformações vão ocorrer na
perspectiva urbanística, revelando suas ambigüidades e fazendo modificações
substanciais no panorama urbano.124 Nessas modificações estruturais dos espaços
serão removidos os chamados incômodos e dessa forma ocorrerá um deslocamento
dos sentidos. [imagens 14, 20: pp. 169 e 172]
E ficam as perguntas: Para onde foram as memórias que escaparam? Onde
estão as memórias que, embora não tenham sido legitimadas por instâncias de poder,
de alguma forma, sobreviveram?
Se considerarmos que a identidade brasileira, foi sendo construída sempre
privilegiando um setor social, dado que é revelado nas imagens produzidas
oficialmente, assim como no olhar romântico que perdurou tanto. As imagens oficiais
ainda estão presas, vinculadas ao romantismo e ao simbolismo. É portanto, esse olhar
oficial que dissemina uma linguagem para se retratar a cidade como paradigma do
progresso.
Mas, onde estão as imagens que revelam a cidade que esse ideal progressista
tentou encobrir, se as fotografias e monumentos são registros de temporalidade e de
construções? Estão nas chamadas produções marginais, que escaparam, inclusive, às
mudanças estéticas e rupturas fabricadas no modernismo e se estabeleceram em
esferas que não tiveram grande visibilidade, como na obra de ilustradores, de artistas
considerados menores, e na produção literária considerada inferior. Também estão
124 O mais invasiva, será o Surto Urbanístico de Prestes Maia (1937). Projeto que sob a égide do Estado Novo desenvolve cenários para a cidade de São Paulo, utilizando uma gama de intelectuais em posição de funcionários públicos a serviço desse mesmo Estado e da consolidação de corporações (de engenheiros, arquitetos, advogados) Cf. TOLEDO, Benedito L. Prestes Maia e o Projeto das Grandes Avenidas. Op. Cit.
89
presentes nos reclames publicitários e nos ritos do cotidiano, que sobreviveram e que
escaparam à massificação. Por isso, através de uma arqueologia de imagens (não
canônicas) da cidade, elas se revelam e revelam aspectos de uma outra cidade, que
também existiu concomitante a essa cidade ideal. Para Walter Benjamin125, “a
experiência é o arcabouço dos momentos da vida em que o sujeito se inteira de si
mesmo, por meio da atualização de um tempo perdido na memória ‐ a qual retorna
para redimensionar o presente, abrindo novas perspectivas para o novo”. Assim, a
narrativa é uma forma de alimentar o sujeito de experiência, já que nela é resgatada
uma memória coletiva, vinda de lugares distantes ou de um tempo longínquo que é
incorporada à memória daquele que ouve e que, portanto, pode transmití‐la a outros
‐ os quais, por sua vez, a ouviram recontada de maneira diversa. Portanto, cada
ouvinte que narra uma história é seu co‐autor, pois ao narrar vai somando a ela
elementos próprios de sua experiência pessoal: ʺA experiência propicia ao narrador a
matéria narrada, quer esta experiência seja própria ou relatada. E, por sua vez, essa
transforma‐se em experiência daqueles que ouvem a estória. 126
A memória da cidade
A memória da cidade perpassa por vários momentos de vivência e
esquecimento, relacionadas ao espaço‐temporal e características políticas inseridas
nesse contexto. São essas dimensões que engendram o processo histórico da cidade.
Os símbolos urbanos podem ser, apagados, demolidos e reinventados. Em geral,
tendem a dissolver grupos sociais e culturais, incompatíveis com a época e a
representação buscada:
Decifrar a escrita das cidades é resgatar o perdido no espaço urbano. Tornar a cidade legível torna‐se uma tarefa difícil [...] Apagar os traços que caracterizam uma cidade, arte, arquitetura, planejamento urbano, praças e monumentos, significa esmigalhar os símbolos do espaço urbano que coloca em risco as diversas criações da dimensão cultural gerada pela cidade. A escrita das cidades
125 BENJAMIN. Walter. Op.Cit. 126 Idem.Ibidem.
90
coloca‐se sob diferentes formas de manifestação representativa. A literatura, o urbanismo, a política, a arte e a economia, constituem‐se especificações da produção de conhecimentos nas cidades. 127.
As mudanças urbanísticas e sanitaristas ao mesmo tempo em que remodelam
o espaço, deslocam os indesejados. As cidades são feitas por camadas sobrepostas em
que um tempo muitas vezes aniquila o outro. As estruturas de poder e de dominação
cultural se revelam em cenários onde as identidades foram construídas – imaginadas
e representadas – quando o nacionalismo brasileiro elegeu São Paulo como
representante do novo, da tecnologia, a “Locomotiva do Brasil.” [imagem 11: p. 169].
Essa “locomotiva” passou sobre espaços sociais que emergiam da cultura
popular, suprimindo do cenário oficial, os lugares, histórias, memórias e essências.
Dessa forma, criou estruturas calcificadas em controle, poder, legitimação de valores
e imbricamentos com a chamada cultura erudita que se proliferou calando
expressões espontâneas e ao mesmo tempo criando mecanismos legitimizadores
desse poder, em camadas, começando pelos mecanismos de reprodução e controle
do Estado.
Essas estruturas de poder e de dominação cultural foram tão enraizadas em
preconceitos e estratificações que segregaram expressões culturais legítimas e de
raízes antropológicas. Ao criar mecanismos de padronização do pensar e de
aculturações contemporâneas autorizadas, a cultura chamada erudita mudou o tom
e incorporou elementos numa exaltação nativista, valendo‐se das imagens e de mitos
para disseminar uma ideologia nacional que se sustentou em teorias evolucionistas
fragmentando a sociedade em estratos primitivos, arcaicos e modernos que no
universo da cultura dominante se enredou pelo viés do preconceito, a ponto de
rejeitar tudo o que pareça popular, interpretando de forma etnocêntrica e
colonizadora os modos de viver do primitivo, do rústico e do suburbano. Nesse
sentido, as tradições populares, ficaram como um universo paralelo da cidade de São
Paulo, cada vez mais alinhada aos interesses de modernização. 127 FONSECA, Luiz Arrovani .in: Ensaios de História. Franca: Unesp, 1996
91
O significado de um nacionalismo brasileiro da perspectiva unificadora,
apesar de pedagógico é superficial. Como também, o paradigma do homem
brasileiro foi idealizado e as tradições inventadas. Porém, temos que considerar que
o modernismo travou um diálogo tenso com essa tradição estando imerso nela,
vivendo em um ambiente europeu e querendo olhar o Brasil de fora, por mais que se
buscasse referências para se reinventar o Brasil. O período é marcado por
transformações e o cenário não escapou à regra ‐ sendo modificado por aspirações
européias – dissociando portanto a proposta de revolução estética do panorama
geral, que exclui a arquitetura, o urbanismo e os monumentos, que por sua vez
sofreram outras transformações.
O modernismo mostrou que o plano cultural e político são indissociáveis: transformar uma nação‐latente em uma nação‐sujeito supõe um empreendimento em ambos os níveis. Raros foram os participantes da semana de arte moderna que não se alinharam, logo depois com militantes do terreno do nacionalismo: seja conservador, progressista, patriótico ou esclarecido. Menotti Del Picchia, um dos que optaram pelo nacionalismo conservador, menciona a Semana da Arte Moderna como o “primeiro sintoma espiritual da transmutação de nossa consciência” 128
Daniel Pecáut nos alerta para a questão da legitimidade do poder intelectual
que se fundamenta nesse período ‐ embora os intelectuais se firmassem como uma
“categoria social sem vínculos” ‐ pertenciam a uma classe que ostentava um saber
sobre o social, reconhecido e valorizado. Fator que lhes davam um poder legitimador
sobre elaborações e análises sociais, por sua vez, preso a vínculos institucionais e sem
engajamento e compromisso com o público. Eram representantes de uma elite que
agia legitimada pela ciência e por instâncias do poder, combinando o “cientificismo”
com o nacionalismo e nessa tendência tirando partido para definições de
especificidades nacionais, conforme suas interpretações e tendências. Daí surgiam as
128 PÉCAUT, Daniel. A geração dos anos 1920‐1949. In: Os intelectuais e a política do Brasil. São Paulo: Ática, 1989 . p. 27
92
correntes e manifestos que, embora em ordem antagônica, situavam‐se dentro de
uma mesma tônica.
Na verdade o intelectual brasileiro, apresentava comumente três perfis: o de advogado (eram numerosos os doutrinários de tendência autoritária com formação jurídica); o de engenheiro (freqüentemente caracterizado pelo positivismo e inclinado para uma visão técnica do poder) e do homem de cultura. 129
A cópia cultural, a legitimidade, a ideologia eram estruturas que
amalgamavam os tijolos da construção dessa brasilidade que se fundamentava em
construções históricas utilizando elementos de força popular. Um bom exemplo está
na publicidade e nos estereótipos que são carregados de ideologia. Uma
peculiaridade pode ser assinalada em Mário de Andrade e sua busca com conotações
parcializadas – a viagem da redescoberta do Brasil, transcende São Paulo. Porém, há
um outro lado, que buscava raízes e acabava por construir memórias:
O que se via em São Paulo nesse momento era uma correria sôfrega para escavar raízes tradicionais e restabelecer uma “memória” de tinturas coloniais; um empenho pelo resgate e identificação com uma cultura popular, mormente de recorte “sertanejo”; uma busca das áreas periféricas ao centro, à busca de espaços livres para corridas e esportes do público para façanhas e animação popular para o Carnaval e as novas celebrações; e um curioso modernismo parisiense, que ensinava a desprezar a velha Europa moribunda e a amar a América e a magia dos trópicos 130
Se por um lado, o olhar modernista se torna importante quando se afasta da
compreensão de identidade brasileira mergulhada no passado, buscando retirar o
peso da compreensão racista e determinista – característica mais visível no Brasil, no
que se refere à nacionalidade. Por outro lado, quem patrocina eventos do
modernismo são os políticos:
Para se pensar a invenção da tradição nacional‐popular brasileira, pois nele figuram os principais elementos a serem analisados: as relações entre intelectuais/ elite e “populares”; a valorização do popular; a criação de uma nova identidade nacional;
129 PÉCAUT, 1989. Op. Cit. P. 34 130 SEVECENKO, op.cit. p. 255
93
as teorias de mestiçagem racial e cultural, a “redescoberta do Brasil” pelo modernistas, a unidade da pátria construída a partir do Rio de Janeiro e suas relações com o regionalismo de várias vertentes do discurso nacional. 131
A elite precisa reconstruir uma hegemonia paulista – pois até então era o Rio
de Janeiro a referência de brasilidade. E o que irá construir essa hegemonia paulista é
a profusão de monumentos que reforçam cânones e que são produções artísticas
modernistas, como no caso de Brecheret e outros modernistas. Nesse período a crítica
literária nasce seduzida pelo gesto renovador do modernismo. Os estudos que foram
feitos estão impregnados por visões transmitidas pelos próprios agentes da época.
Na construção da memória o tom é polêmico e controverso. Os intelectuais buscavam
compreender a chamada “brasilidade” através de um mergulho na realidade. Mas
qual realidade era essa:
[...] os sentidos de modernidade e modernização tem sido, com bastante freqüência, reduzidos a esquemas ideológicos desenvolvimentistas do Estado Brasileiro pós 1930, os sentidos do modernismo, como uma tendência geral, foram também homogeneizados a partir de valores, temas e linguagens do grupo de intelectuais e artistas que fizeram a semana da arte moderna de 1922. Boa parte da crítica e de histórias culturais literárias, produzidas desde então, construíram modelos de interpretação, periodizaram, releram o passado cultural do país, com lentes desse movimento de 1922, atados em demasia em uma “noção” de vanguarda (vanguardas estéticas, revolucionárias, vanguarda do pensamento nacional ou consciência do nacional popular), tais esquemas, em flagrante anacronismo, ocultaram processos culturais relevantes que se gestavam na sociedade brasileira a rigor, desde a primeira semana do século XIX. 132
Ou seja, pode‐se dizer que já havia um “pré‐modernismo antes do marco
oficial”. Nesse contexto são considerados como aspectos negativos a análise que
periodiza o processo, negando a contribuição do universo social, cultural, religioso e
político que não se enquadravam nos cânones de 22. Assim como a redução das
131 VIANA, Hermano. O samba da minha terra. In: O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p.36 132 HARDMAN, 1989, Op.Cit. p. 290
94
relações internacionais na cultura brasileira a eventuais contatos entre artistas
brasileiros a movimentos estéticos europeus. A definição estética, para o sentido de
modernismo, abandonou outras dimensões culturais e sociais, políticas e filosóficas,
que alteram significados e concepções antigo/moderno muito antes de 1922, como se
as mesmas não tivessem existido, e como se o “modernismo” não prescindisse de um
processo.
Hardman133 analisa essa questão, acrescentando que, desde o século XIX, uma
série de pensadores já se inscrevia num movimento sociocultural estruturado em
filosofias positivistas, darwinistas e materialistas, um amplo mosaico literário que
abrigou também outras esferas, como movimento operário, que foram responsáveis
por mudanças, inclusive lingüísticas, estéticas e temáticas da literatura pré‐
modernista. Porém, se o modernismo no exterior foi uma revolução estética e
tecnológica, no Brasil continuou insistindo na ambigüidade do chamado “pré‐
modernismo”. Sendo que, o cosmopolitismo, o urbanismo, o erotismo, os mitos da
civilização moderna, os elementos que afirmavam um estilo novo “fabricado”,
sugeria impasses entre arte/natureza e arte/indústria:
[...] a configuração de imagens e representações relacionadas ao universo do maquinismo moderno na cultura brasileira da virada de século, no interior do continuum mental feito de múltiplas e contraditórias combinações. Nesse processo, diferentes correspondências poderiam ser pesquisadas; por exemplo, as afinidades entre o discurso modernizador de setores do Estado (a engenharia de obras públicas ocupando, aí, um lugar de “vanguarda”), o discurso evolucionista‐progressista da imprensa operária emergente (seja na orientação social‐democrata, seja na vertente anarco‐sindicalista) e o discurso estético‐literário moderno de literatos, ensaístas e críticos de estilo, aparentemente tão dispares.134
O modernismo se integra na face ambígua do discurso, na contramão
modernizadora do Brasil. Porém, na história social, as coisas continuavam as
mesmas. A ambigüidade do modernismo está na ruptura e na reinvenção e todos os
133 HARDMAN, 1989, Op.Cit. p. 290 134 Idem.Ibidem. p.292
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desdobramentos da dicotomia tradição/modernidade. Os nacionalismos mediados
pelos intelectuais credenciados marcam o movimento integralista, mas também o
antropofágico.
Essa tomada de consciência de raízes culturais não excluía a intervenção do intelectual no sentido de fazer o povo ingressar na era da civilização. Pelo contrario, a senha era, como definiu Otávio de Faria, “civilizar por cima”. Esta constituiu outra vertente da construção da identidade nacional. 135
Nessa estrutura os urbanistas participam intensamente, representando o lado
positivista e atuando largamente nas intervenções urbanas, praticamente
reconstruindo a cidade ou autorizando práticas “modernizantes” que por sua vez,
eliminavam o que não deveria ser lembrado. Além de medidas que visavam
“controle social” eram justificativas para pura xenofobia, observada em medidas
saneadoras, e que também tinham como objetivo, tirar do cenário da metrópole
idealizada, os mais desfavorecidos e as memórias “desagradáveis”. A cidade que
segrega e exclui, é um palco de ações políticas e interpretações tendenciosas. A
expressão “Ideologia do Estado” revela que o Estado é o agente da construção
nacional e não a sociedade civil. Muitos dos intelectuais deixaram nas entrelinhas de
seus trabalhos visões parciais muito reveladoras, como analisa Daniel Peucot:
Em seu romance O Estrangeiro de 1926, Plínio salgado ridiculariza e maltrata os russos e italianos que vão abrindo caminho em São Paulo em detrimento dos brasileiros. Em Amar Verbo Intransitivo, Mário de Andrade não fica atrás, lamentando a proliferação de estrangeiros de todos os tipos “na pátria dos bandeirantes.” 136
Pouco espaço também no período para intelectuais imigrantes que
“desapareciam do cenário” ou eram obrigados a uma sobrevivência difícil. Porém,
eles formavam entidades de contestação à margem dessa elite.
135 PECAUT, 1989. Op. Cit. p.39 136 [apud] PÉUCOT, 1989, p.41. Cf. Mário de Andrade. Amar, verbo intransitivo. A obra tem como finalidade a crítica aos costumes burgueses, com suas mazelas e hipocrisias. Escrita entre 1923 e 1924, foi publicada em 1927, e seu texto caracteriza‐se pela violação dos hábitos narrativos vigentes à época.
96
Embora tenham tido, em período anterior, muita força para ir contra todas as
correntes, intervir em aspectos sócio‐culturais e políticos, mesmo às avessas os
anarquistas e comunistas eram perseguidos exaustivamente, pois tinham
mecanismos para divulgar outros olhares – não autorizados.
Na cidade as formas de controle e dominação se proliferavam de várias
formas, era a cidade das medidas preventivas, do olhar vigilante e do olhar
autorizado, desde que se reforçassem cânones da representação oficial.
Dentro dessa análise, também nota‐se o intenso envolvimento dos intelectuais
com a fundação de corporações (OAB, Academia de Medicina, Conselho de
Arquitetura) que foram criados na década de 1930, conferindo às elites as condições
para criar todas regras e ter o controle “das tradições institucionalizadas”. Dessa
forma o intelectual se insere na estrutura orgânica da sociedade e do poder que tem
como pressuposto combater estruturas – o regime pós 30 era anticomunista
obsessivo. E excluía os “nacionalistas progressistas” dos círculos cooperativos com a
organização nacional. Esse regime manteve controle total sobre o espaço público e
sobre a vida social em todas as suas esferas utilizando‐se, largamente, do “poder da
imagem” para sua difusão:
O reconhecimento dado pelo regime de 30 ao papel dos intelectuais na “redescoberta do Brasil” e na construção científica da identidade brasileira, não estava menos propenso ao realismo do que os pensadores sociais – mas necessitava destes para fazer a propaganda nacionalista. 137
Segundo Pécaut, são o nacionalismo e a organização, duas noções inseparáveis
que compõem a arquitetura de um regime político. E essa organização é o vínculo do
Estado com o povo. A organização é também a consagração de um Estado de
compromisso e da promoção de intervencionismos em nome do “bem comum”. Mas,
na realidade essa organização era a negação da democracia política, pois era um fim
nela mesma. O apelo de uma organização social sob a égide do Estado.
137 PÉCAUT,1989. Op. Cit. p.39
97
A administração e controle locais na cidade nega a democracia, pois nem
todos são cidadãos, posto que nessa cidade da vigilância e do controle, os cidadãos
são selecionados por requisitos pré‐estabelecidos:
O modernismo, especialmente na sua versão paulista ou concentrada em São Paulo, trabalhou a relação entre cultura erudita e cultura popular segundo um vetor decididamente mitopoético. Cultura popular é entendida pelo autor de Macunaíma e pelo autor de Manifesto Antropofágico, como expressão de sensibilidade tupi, articulada em lendas, mitos e ritos recontados pelos cronistas, pelos jesuítas e por alguns antropólogos contemporâneos.138
O Imaginário Nacional e suas várias fases na idealização da Metrópole Paulista
Uma cidade de gosto europeu e costumes parisienses onde tudo fosse
afrancesado como sinal de sofisticação. A ideologia de branqueamento, assim como
todas as terríveis teorias evolucionistas estão presentes no século XIX e adentram o
século XX numa evidente contradição.
Embora busquem um discurso de retorno às origens e rupturas com as
tradições, o ideal da paulicéia dos anos 20 é ser uma cidade modernizada, e dessa
forma ela vai negar seu passado escravagista, e se apresentar como erudita,
afrancesada, veloz, movimentada, com prédios altos e fluxo intenso de homens de
negócios e oportunidades. Com uma arquitetura refinada, dentro dos padrões
europeus, do neoclássico ao eclético ou historicista. A cidade seguia construindo seus
espaços como também apagando histórias e memórias, erigindo assim uma
metrópole dentro dos paradigmas da modernidade, para se transformar na
representação da modernidade, do alinhamento cultural com as forças dominantes,
do progresso e da industrialização. Embora a literatura e as artes ansiassem por uma
identidade particularista, ela, a cidade, era sempre espelhada nos moldes
considerados civilizados: Tupi or not tupi...139
138 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia das Letras ,1996. p.333 139 Alusão ao Manifesto Pau Brasil, referente a trocadilho com frase de Shakespeare. Cf. AMARAL, Aracy.
98
Como vimos, a tradição da representação do nacional teve várias fases e se
desenvolveu em moldes reproduzidos nos períodos romântico/naturalista onde se
buscava o êxtase diante da natureza, porém sempre pelo olhar do outro. O exótico
como marca registrada é exatamente o que o europeu seleciona por exótico, a
diferença se estabelece ainda pelo viés de fora. A exemplo disso é interessante
observar como os viajantes fazem sucesso e como muitos “nacionais” vêem a
natureza de acordo com a representação do europeu.
Nesse paradigma de “tradição” e fazendo uma retrospectiva, temos a imagem
do índio utilizada como emblema naturalista. Essa imagem singular que se criou do
índio é uma imagem forjada pelo europeu. A Imagem de Moema, de Victor
Meirelles, é um bom exemplo dessa representação dentro de padrões europeus.
Assim como é significativo o fato da marinha mercante, posteriormente, adotar esse
emblema – sendo representada como uma índia, mas uma índia de “feições
renascentistas.”140
O estereótipo persiste; a forma como a nação fabrica o nacional pode ser
percebida como uma fala persistente. As metáforas são fortes e muitas vezes
impedem que a realidade seja vista. Essa é a fórmula da representação que vai se
disseminar nos mecanismos de “publicização”.
Dentro do panorama da nacionalidade, as representações têm o poder de
refletir quando não temos palavras. Por isso, se estabelece na esfera de uma tradição
histórica. A “invenção”, dentro de uma concepção pragmática, cria a realidade: “o
mundo é minha vontade e minha representação”. A criação da realidade através da
linguagem tem a percepção como um reflexo da realidade. Nesse sentido, verifica‐se
uma tendência para a construção de identidades individuais onde alguns aspectos
devem ser considerados: a linguagem como mediadora do conhecimento e a
memória coletiva. Assim como a questão da legitimidade e o efeito da socialização
140 Referência ao símbolo da marinha mercante brasileira (grifo meu) Cf. NOVAIS, Fernando, ALENCASTRO, Felipe (org). História da Vida privada no Brasil .vol 2 . São Paulo: Cia das Letras, 1999.
99
do conhecimento. A produção do conhecimento histórico relaciona‐se quase sempre
a questões voltadas à religiosidade, por oferecerem uma transcendência rápida. Por
exemplo, a ciência como verdade está sempre associada a um poder.
As cidades brasileiras vão se formando sob essas tendências relacionadas aos
nacionalismos, que se fundem as culturas “superviventes” criando um mosaico de
brasilidades. Nesses moldes a cidade de São Paulo, surge carregada de um ideal
progressista, uma contra‐resposta, uma auto‐afirmação dentro de um panorama de
complexos de inferioridades reforçados pelas teorias evolucionistas do século XIX.
Busca‐se como referência urbanística, cidades projetadas como Paris de Haussman, e
até os projetos urbanísticos arquitetônicos surgem carregados de uma ideologia
eurocêntrica; imitar a França é tentar se igualar ao modelo – e isso se reproduz em
escalas variadas141. No projeto de Vargas, os ideais de modernização irão ensaiar
alguns passos no campo da arquitetura e dos projetos. Mas é o neo‐clássico a
arquitetura que o poder escolhe para estabelecer seus monumentos e esse é um
marco tradicionalista e conservador que revela a estética dominante.
A nação como artefato cultural – construções de memórias
É na narrativa oficial da nação que se produzem as instituições da memória: os
documentos, os monumentos e as imagens. A nação é um artefato cultural e como
artefato pode ser utilizado. Nesse sentido, o nacionalismo se apropria do chamado
“residual”, e reinventa tradições partindo dos elementos presentes na esfera social.
Nessa “nação‐mosaico”, as peças são selecionadas de acordo com o que se
pretende e as imagens são composições dirigidas. Esse “mosaico” é composto de
141 Georges Haussmann (1809‐1891), prefeito de Paris, responsável pela implementação de um dos primeiros planos urbanísticos (moderno). Caracterizado como grandes operações cirúrgicas, as transformações urbanas lideradas por Haussmann que seguiam um conceito de “embelezamento estratégico”. Dentre diversas modificações também marcadas pela criação de vários parques na cidade, sendo estes desenvolvidos pelo seu colaborador Jean Charles Adolphe Alphand. – foi referência de Prestes maia em seu projeto urbanístico para São Paulo. Cf. TOLEDO, Benedito Lima. Prestes Maia e as origens do urbanismo em São Paulo. São Paulo, Empresa das Artes, 1996.
100
estratégias: a narrativa da nação (história, literatura); as imagens da nação; o discurso
musical; os estudos do cotidiano e a construção do imaginário.
Os rituais e a cultura popular são incorporados ou subtraídos de acordo com
as conveniências, origens e tradições. Os mitos e as mitologias políticas são utilizados
no sentido de reforçar estruturas de poder. No contexto de produção de imagens,
importam alguns fatores, como por exemplo, a comunidade religiosa, que tem uma
estratégia de narrativa da história nacional, onde enfatiza as tradições e
atemporalidades e também cria ícones sobre a natureza das coisas, a criação do
tempo e o improviso. O imaginário nacional se reforça nas imagens canônicas. Dessa
forma a imagem individual é manipulada. Uma curiosidade é que dentro desse
imaginário, no ângulo coletivo, a imagem se atrela à manipulação. Por exemplo: a
imagem de Tiradentes imberbe, esvaziada desse conteúdo, pode exercer um
estranhamento. Nesse sentido, a imagem não canônica fica destituída de valor. Na
invenção das tradições o que funciona é a repetição. A força da imagem está na carga
narrativa embutida e nas aproximações imagéticas. Por exemplo: Cristo e Tiradentes.
Na relação entre identidades nacionais e memórias, um fator preponderante
está na questão da produção de imagens como reflexo do nacionalismo, que se
estabelece no processo de criação/fabricação dessas memórias. Nação e narração
estão imbricadas na visão dos intérpretes.
Dentro desse panorama, a cidade de São Paulo foi um projeto que se
concretizou como uma metrópole através de imagens produzidas com um foco
direcionado, ou seja, foi uma metrópole inventada por imagens oficiais. Dentro de
um ideal de busca por uma representação da cidade futurista, os símbolos do
progresso destituíram (e destruíram) os lugares da memória “não oficial”. Apagando
do mapa, igrejas, povoados, bairros, lugares de fé, reminiscências da escravidão,
marcos de natureza espontânea, como lugares de festas populares, entre outros.
São Paulo, portanto, se expandiu em um projeto idealizado de cidade, que se
ajustava em medidas de exclusão, de eliminação de marcos e elementos que não
interessam, dando total visibilidade a uma forma ideal de cidade, que por sua vez,
101
estava em consonância com a representação da modernização, da novidade, da
máquina, da tecnologia, das fábricas e verticalização dos edifícios. Ou seja, da
construção dos espaços públicos dentro de ideais privados. Essa idéia de cidade será
disseminada no projeto de “modernização do Brasil”. Esse conceito carregado de
simbologias e narrativas nacionalistas estabeleceu graves desequilíbrios sociais, pois
foi justamente esse ideal de cidade fabricada e disseminada que acabou funcionando
como um grande imã, que atraiu ilusões. A busca pelos ideais tão propagados de
progresso e crescimento foi a construção do lugar das utopias. A cidade de São Paulo
passa a ser o “El dorado” de outros estados. A cidade das utopias:
No Brasil, onde imperou desde os tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje. 142
A DissemiNação das IdentiCidades
Sobre os critérios da construção cultural no nacionalismo e o conceito de nation
ness143 que se estabelecem as particularidades citadinas. A cidade de São Paulo, ao se
consolidar como metrópole, não se estabelece como um espaço público, nem de
minorias, mas como um espaço das elites, “dos homens bons”, dos automóveis e das
avenidas que privilegiam a circulação de veículos, das instituições, do comércio
autorizado. A cidade que disciplina os corpos tem na arquitetura um de seus mais
fortes mecanismos de controle e segregação que se reproduz no espaço – sobretudo
no espaço público (o hospital, a escola, o presídio, o hospício, o cemitério).
Essa estrutura urbana se estabelece em uma malha criada para colocar cada
qual no seu lugar. Nessa esfera, a cultura popular sucumbe à cultura de massas que
142 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 1936 p.105. 143 Nation‐Ness, bem como nacionalismo, são artefatos culturais de um tipo peculiar. Para compreendê‐los é preciso considerar com cuidado, como se tornaram entidades históricas, de que modo seus significados se alteraram no decorrer do tempo, e por que. inspiram uma legitimidade emocional tão profundaʺ p. 12 A nação é uma comunidade política imaginada ‐ e imaginada como implicitamente limitada e soberana.” Cf. ANDERSON, Benedict. Op. Cit. p. 14.
102
está se consolidando, pois as representações legitimadas pelos mecanismos oficiais
autorizam o que deve ser lembrado através da produção de memórias disseminadas
na localidade. Homi Bhabha fala sobre a sensação de pertencimento que o nation ness
dissemina e também sobre a questão emocional que suscita essa apropriação:
A nação preenche o vazio deixado pelo desenraizamento de comunidades e parentescos, transformando essa perda na linguagem da metáfora. A metáfora, como sugere a etimologia, transporta o significado de casa e de sentir‐se em casa através da meia passagem (...) através das distâncias e diferenças culturais que transpõem a comunidade imaginada de povo‐nação. 144
A cultura constrói a nacionalidade brasileira, e esse processo de construção do
estado‐nacional ocorre concomitante à criação da historiografia enquanto instituição.
As concepções nacionais serão criadas e vão permanecer através de estereótipos e de
imagens representativas. A difusão da cultura se dará através da comunicação.
Dentro de um discurso que perpassa pelo nacionalismo, Bhabha descreve a nação
ocidental como uma forma obscura, porém universal, de viver o que ele chama de
localidade da cultura e que se estabelece em torno da temporalidade, cria o
pertencimento e articula as diferenças e as identificações culturais do que pode ser
representado. Esse autor procura formular as estratégias de identificação cultural e
de “interpelação discursiva” que funcionam em nome de um conjunto (povo ou
nação), que foram sujeitos a uma série de narrativas sociais e literárias.
Dentre os aspectos que devem ser enfatizados, situa‐se a dimensão temporal
dentro das identidades políticas, assim como as poderosas fontes simbólicas e
afetivas da identidade cultural, que constroem significados enquanto categoria
sociológica e entidade cultural – os seus intérpretes têm o poder de disseminação
desses valores. Nessa análise, a narrativa sempre carrega uma carga imagética – a
localidade e a espacialização do tempo histórico, que são fontes para uma
humanização da localidade:
144 BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. p. 199.
103
A metáfora recorrente da paisagem como paisagem interior (inscape) da identidade nacional enfatiza a qualidade da luz, a questão da visibilidade social, o poder do olho de naturalizar a retórica da afiliação nacional e suas formas de expressão coletiva. (...) tempo nacional torna‐se concreto e visível no cronotópo do local, do particular, do gráfico, do princípio ao fim.145
Nessa narrativa nacional, os retalhos, os restos da vida cotidiana são
transformados em signos de uma cultura nacional coerente, porém na produção da
nação como narração ocorrem rupturas na temporalidade:
O processo histórico antropológico a ser analisado prioritariamente (...) pode ser pensado como um exemplo de “invenção da tradição” ou de “fabricação de autenticidade” brasileiras (..) a autenticidade não é um traço inerente ao objeto ou ao acontecimento que se declara autentico; trata‐se de fato de uma construção social que deforma parcialmente o passado. 146
É através dessa deformação que a ambivalência conceitual da sociedade
moderna se torna o lugar de escrever a nação – ou reescrever. Nessa representação
existem ambivalências, de diferenças culturais e formas de vidas que lutam para ser
representadas e que podem ser associadas aos retalhos da vida cotidiana que se
estabelecem em construções de signos nacionais e de sujeitos históricos,
fundamentadas numa pedagogia, que tem sua autoridade narrativa na “tradição do
povo.”:
As “Comunidades Imaginárias” recebem identidades essencialistas. Isto porque a unidade política da nação consiste em um deslocamento da ansiedade do espaço moderno irremediavelmente plural – a representação da territorialidade moderna da nação se transforma na temporalidade arcaica do tradicionalismo, convertendo território em tradição e convertendo o povo em um. 147
Analisar as formas de identidade cultural a partir dos que estão na periferia ou
na contramão dessa história, pode revelar essências, dentro da perspectiva
145 BHABHA, op.cit. p. 205 146 VIANA, Oliveira. 1995. Op. Cit.p 35 147 Idem.Ibidem. p.211
104
foucaltiana148, e abrir um caminho para analisar a exclusão social como o substrato
revelador de significados ou de memórias, como uma possibilidade para rever o
processo simbólico, partindo do imaginário social – nação, cultura e comunidade –
para o viés das memórias esquecidas, dentro do processo de individuação, para
tentar compreender a contradição social e resgatar os espaços esquecidos no
desenvolvimento da urbanização. Em outras palavras seria: verificar as sobras dos
retalhos que foram esquecidos e não entraram na colcha. Verificar o que escapou às
identidades desenvolvidas pelo poder, por sua vez, tem raízes na Cultura do
Romantismo. “Os intelectuais que estudam em universidades européias são uma
geração formada pela cultura iluminista”. Por isso, as lacunas nessa tradição podem
estar, como revela Elias Saliba 149 “à margem das fontes tradicionais, como por
exemplo nos ilustradores brasileiros que eram liberais e não tinham compromisso
com a cultura romântica. 150
É possível lembrar através do que foi esquecido, pois é através do
esquecimento que a identificação problemática de um povo nacional se torna visível.
Nessa dinâmica, é preciso esquecer dos lugares de outrora; das marcas; da
simbologia; do pelourinho; do espaço da forca; da escravidão. É uma tradição de
negações – negar nossa africanidade cultural, nossa mestiçagem étnica, negar que
temos ligações que sobrevivem (ou supervivem), apesar de nossa cultura se
fundamentar em memórias autorizadas. Dentro desse pensar, verificamos um
deslocamento dos lugares da cidade de acordo com os critérios do lembrar/esquecer:
Ser obrigado a esquecer – na construção do presente nacional, não é uma questão de memória histórica; é a construção de um discurso sobre a sociedade que desempenha a totalização problemática sobre a vontade nacional. Aquele tempo estranho – esquecer para lembrar – é um lugar de “identificação parcial” inscrita no plebiscito diário que representa o discurso performativo do povo. 151
148 Cf. FOUCAULT. Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 149 SALIBA. Elias. Raízes do Riso. São Paulo: Cia das Letras, 2002. 150 Idem.Ibidem 151 BHABHA,1998. Op. Cit. p. 226
105
Na narrativa da nação, as pedagogias de vida contestam as histórias perplexas
de povos vivos, culturas de resistência, territórios da memória popular que
sobrevivem e ficam à margem – na diferença cultural:
Há que se lembrar ainda que todas as referências urbanas de São Paulo eram utilizadas pelos cronistas macarrônicos de uma forma totalmente anárquica e desordenada. Apegavam‐se às denominações antigas, desdenhando as oficiais; gostavam sobretudo dos sobrenomes rebarbativos que permaneciam numa espécie de memória popular. Moacyr Piza chamava o largo Sete de Setembro pelo antigo e inoportuno nome de Pelourinho (...) Galeão Coutinho chamava a avenida Liberdade pelo seu nome mais antigo, de caminho para o sítio do Quebra‐Bunda”, também um antigo local de suplício de escravos recalcitrantes; a praça da Liberdade era designada por “Largo da Forca” , também lembrando o local onde, algumas vezes, foram executados alguns condenados à morte. 152
O viés do humor é uma resistência dessas memórias desautorizadas, mas
muito reveladoras, inclusive uma forma de resistência e de contestação. Como no
caso da narrativa de um cronista do período:
Silvio Floreal (...) tornou‐se logo inconveniente, pois num momento em que toda cidade elogiava o viaduto do Chá, como esplendor da vitória urbanística de São Paulo, filtrado pelo projeto de Jules Martin, ele concluía numa crônica que na verdade, tinha sido construído um autêntico “suicidouro municipal”. 153
Porém em relação a esses problemas de auto‐estima nacional, que por sua vez
se construiu numa busca de paradigmas de superioridade, analisamos que segundo
Schwars,154 nosso complexo de inferioridade, de sentimento de cópia e periferia está
na tônica do sentimento de inquietação que perpassa pela baixa auto‐estima.
A cópia é secundária em relação ao original, depende dela, vale menos etc. Essa perspectiva coloca um sinal de menos diante do conjunto dos esforços culturais do continente e está na base do mal estar intelectual (..) Por que dizer que o anterior prima pelo posterior, o modelo sobre a imitação, o central sobre o periférico, a infra‐estrutura econômica sobre a vida cultural e assim por diante? (...) O
152 SALIBA,2002. Op.Cit. p.186 153 Idem, Ibidem. p.187 154 Cf. SCHWARS, Roberto. Nacional por Subtração. In: Que horas são? Ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
106
espetáculo que a avenida paulista oferece ao contemplativo pode servir de comparação: a feiúra repulsiva das mansões em que se pavoneava o capital da fase passada parece perversamente tolerável ao pé dos arranha‐céus da fase atual, por uma questão de escala, e devido também à poesia que emana de qualquer poder quando ele é passado para trás. 155
Uma das buscas de todos os nacionalismos era o ideal de que passaríamos de
“atrasados ao sentimento de adiantados”, com ou sem o sentimento de ser cópia.
Esse rompimento com o primado da origem poderia nos levar a combater relações de
subordinação. Essas questões se sustentam e também se agravam com as teorias
evolucionistas, que criam categorizações e conseqüentemente, complexos de
inferioridade e superioridade, como observado no texto de meados do século XX de
Manuel Bonfim, chamado: A Inferiorização do Brasil ‐ onde esse autor discorre sobre
teorias evolucionistas e reforça recalques nessas categorizações156. No Brasil, esses
critérios totalmente revelados em anúncios publicitários, ou reclames, mostram que
as sociedades almejavam o ideal de branqueamento atrelado à beleza, à saúde e
respeitabilidade. Mesmo que na forma cosmética. “O Estado Novo mesmo mudando
para uma retórica racial disfarçada de democracia racial, não havia abandonado a
tese de branqueamento [apud]”.157
Mas o que se estabeleceu como uma estética brasileira? Existe uma forma de
entender a cultura brasileira ou os preciosismos de uma identidade nacional?
Existe uma razão nacional peculiar ao Brasil, onde a periodização pode ser um
guia, não uma prisão para estudar os registros literatos e iconográficos. Por exemplo,
ao se falar em romantismo no Brasil, deve‐se referir a uma forma de olhar que
atravessa vários períodos. Como vimos, é no período Romântico que se criam ícones
de brasilidade, mas eles perduram num esforço em encontrar “raízes” e unificar a
155 Iden.Ibidem.p.34. 156 Cf. Manuel Bonfim. A Inferiorização do Brasil. In: A América latina: Males de Origem, de 1905 e Efeitos do Parasitismo sobre as Novas Sociedades In: O Brasil na História de 1930; fragmentos de textos. [S.L: s.n]. 157 Seyferth 1991:. p.171 . [apud] por VIANA,1995 p. 73
107
própria elite, sobrevivem, até mesmo após a “revolução estética” proposta pelo
modernismo.
No âmbito da territorialidade, as cidades sofrem adequações de estilos,
preocupam‐se em seguir tendências estéticas. Porém, não se cria um espaço público
legítimo, pois a elite não acredita no espaço da cidade como “público” na acepção do
termo. A legitimidade e o reconhecimento de valores que formam um círculo de
regras próprias de legitimação desapropriam espaços, destroem referências,
modificam lembranças sem se preocupar com a essência dos lugares e tampouco
com a memória deles. Nesse sentido, as memórias inventadas são imortalizadas em
obras de referência, tanto na literatura do período quanto nas imagens produzidas.
Na dimensão da imagem, onde estão presentes elementos do sagrado e do
profano, o imaginário é revelado, quer seja em ilustrações religiosas ou erotizadas.
Por isso também, a propaganda e a ilustração são muito significativas em um país
com grande contingente de analfabetos.
Dentro das condições gerais de produção e difusão cultural, através da
reprodutibilidade, da modernização da imprensa, que se instaura em meados do
século, um novo jornalismo, também estabelecerá temas de identidade cultural. Essa
forma de difusão apropriada pelo Estado Novo irá utilizar o cientificismo como
legitimador de identidades. Essa força utilizará o impacto da ciência na vida
cotidiana das pessoas, desde o século XIX é legitimizadora e provedora do bem‐estar,
por difundir confortos tecnológicos associados a medidas salutares em questões
como: o surgimento da luz, do transporte, ou seja, de toda revolução tecnológica com
poder transformador no cotidiano das pessoas.
A tecnologia altera a percepção humana e as explicações “naturalistas” vêm a
tona. Porém, o naturalismo tinha um viés reacionário que justificava o racismo pelas
teorias evolucionistas. Reforçando e justificando preconceitos que eram
“cientificamente” difundidos como verdades absolutas.
108
Capítulo 3
O olhar da Memória
MULTIPLICIDADES
“O tempo é que é matéria do entendimento.” (ROSA, G.).
109
Mapas da Memória e do Esquecimento
O que ativa a memória dos imaginários pertence a ordem das matrizes
culturais. Por isso, por mais que haja um “direcionamento” do olhar através da
propaganda dirigida, sempre haverá também uma forma de “escapar” ao controle.
Se o olhar, em sua característica de alusão imaginária e desejo, desencadeia a
fantasia (individual ou coletiva), então é possível “ver além” do que foi estabelecido,
através dos elementos da expressão popular.
Dessa forma, se o vínculo de um indivíduo com a cidade é sempre intenso, e
gerador de múltiplas possibilidades de leituras, as imagens construídas e imaginadas
também são, sobretudo a partir dos fenômenos de ordem de uma cidade e da sua
realidade. Para averiguar o processo de construção de imaginários da cidade de São
Paulo foram selecionados alguns textos e imagens do período estudado, que foram
analisados, estabelecendo um estudo do registro visual das narrativas contidas nas
imagens. A metodologia adotada foi embasada na experiência de Armando Silva158
que forneceu parâmetros para mapear os significados e construções do imaginário
urbano nos anos 30. Em “Imaginários Urbanos”, Armando Silva, nos dá o caminho
desse olhar na contemporaneidade, que por sua vez remete a toda uma rede de
significados:
O estudo sobre o olhar levou‐me a compreender que o que qualifica o ponto de vista urbano é a exposição pública (...) daí se depreendem conseqüências importantes, pois tais conjuntos iconográficos não apenas cumprem a função de mostrar‐se, mas, simultaneamente, definem uma cidade: trata‐se de uma definição societal, na qual a cidade é vista por seus cidadãos, mas em também os cidadãos são recebidos e inscritos por sua própria cidade como exercício de escrita e hieróglifo urbano” 159
Como vimos, o território pode ser tanto o lugar da origem, como do
pertencimento, o espaço em que habitamos com os nossos, ou distante deles.
Portanto, o lugar sempre se relaciona com o sentimento de identidade. Porém, na
158 SILVA, Armando. Imaginários Urbanos. Trad. Mariza Bertolli. São Paulo: Perspectiva, 2001. 159 Idem. Ibidem.
110
formação da identidade cultural se o lugar de pertencimento for visto como definidor
das referências, poderá surgir uma lacuna nesse sentido, considerando que a
identidade cultural pode ser “produzida”. Por exemplo, se a nação for vista como
uma coesão social, que oculta e reprime diferenças em favor do “estado nacional” e a
afirmação territorial se estabelecer como uma conquista desse espaço nacional
teremos, portanto, em primeiro plano a questão das referências ao status do lugar e
em segundo da etnia. Nesse sentido, percebe‐se que o território é uma elaboração
simbólica e o conceito de nação uma construção política. Portanto, o território
relaciona‐se à representação:
O território tem um umbral a partir do qual me reconheço. Dentro dos seus horizontes posso defini‐lo como “eu com meu entorno”. Assim o território vive seus limites (...) o território funciona como mapa mental e daí o seu grande e diversificado poder de representação. 160
Para pensar a respeito da identidade cultural de maneira consciente, temos
que considerar que ela pode ser vista como uma construção, um estratagema político
como se deu nos anos 30, que se conformou num projeto estético. Por outro lado, o
imaginário pode “desconstruir” esses paradigmas, posto que a experiência estética
também se situa no campo das representações. Então a cultura pode ser vista através
da experiência estética, e pode ser compreendida como uma função, que se cumpre
dentro e fora da arte, na cidade ou no paisagismo e “no ver o mundo”. Nesse
sentido, as narrativas e suas estratégias de representação são definidoras de
memórias. Como nas palavras de Armando Silva: “o homem produz arte como um
terceiro, que interfere sobre si mesmo para imaginar‐se”161.
A arte então, se situa no campo simbólico, sendo o artista um “leitor cultural”.
Por isso, o artista tem o desejo do símbolo, ele é o contador do mito que pode revelar
os códigos psico‐sociais.
160 SILVA. Armando. Op.Cit. p.18. 161 Idem. Ibidem.p.66.
111
Embora a arte possa, como vimos, estar a serviço de um controle político, na
instância da difusão ela também pode escapar, pois o território cultural também é
penetrável pela arte. Através do imaginário podemos ir ao simbólico, que está
sempre presente nas lembranças afetivas:
O imaginário afeta, filtra e modela a nossa percepção da vida e tem grande impacto na elaboração dos relatos da cotidianidade, contada pelos cidadãos diariamente, e tais pronunciamentos, a fabulação, o segredo ou a mentira, constituem três outras estratégias de narração do ‘’ser urbano. Os relatos urbanos focalizam a cidade gerando vários pontos de vista. 162
O processo de compreensão do símbolo urbano como expressão possível de
ser deduzida da imagem da cidade, entendida como construção social de um
imaginário, prescinde de uma separação das categorias: mito, rito e constructo.
Ou seja, para compreender o aspecto urbano de uma cidade é necessário
passar pelo entendimento de certos sentidos de urbanização, pois a cidade não só
significa, mas ritualiza, estabelecendo diversas mediações entre o público e o
privado, que se interpenetram. Por exemplo: na toponímia as diversidades ao longo
do tempo se revelam. As mudanças e re‐significações podem ser um caminho para
entender a cidade através de sua relação com os ritos e os lugares de memórias, tanto
coletivas quanto individuais.
Uma cidade não é só topografia, mas também utopia e delírio. Uma cidade é local, aquele lugar privilegiado por uso, mas é também o local excluído, aquele local despojado da normalidade social. Uma cidade é dia, o que fazemos e percorremos, mas dentro de certos cuidados e certas emoções. Uma cidade é limite, até onde chegamos, mas é também abertura, desde onde entramos, uma cidade é imagem abstrata, a que nos faz evocar algumas de suas partes, mas também é iconografia no cartel surrealista ou uma vitrina que nos faz vivê‐la a partir de uma imagem sedutora. Uma cidade pois é uma soma de opções de espaços, desde físico, o abstrato e o figurativo, até o imaginário. 163
162 SILVA. Armando, passim. 163 Idem. Ibidem. p.78
112
Segundo Armando Silva, “refletir sobre os comportamentos sociais, desde os
imaginários, implica em perceber matizes pré‐conceituais a partir dos quais se
percebe o mundo. O parentesco entre imaginários e estruturas é o mesmo que entre
a linguagem e sociedade ou entre liberdades individuais e expressões coletivas”.
O autor chama de “constructos imaginários”, a percepção das aproximações
entre os “fantasmas coletivos e os sentidos e saberes sociais”, que por sua vez, podem
ser percebidos na relação estética entre os cidadãos com a cidade. Estabelecendo
possibilidades de transcender o urbanismo e penetrar num imaginário que se revela
nos lugares da memória que se relaciona aos desejos e aos códigos grupais de ver, e
de viver e habitar as cidades. Portanto, os modos grupais de ver e representar a
cidade através da arte são os sentidos que revelam realidades e culturas, muitas
vezes esquecidas.
Os movimentos artísticos, surgidos com as vanguardas no inicio do século,
embora tenham sido introjetados por uma elite, podem revelar caminhos de
expressão baseados em estratégias estéticas e na busca de significações, ao longo da
história. Esse olhar busca entender a cidade, como uma construção imaginária, por
suas expressões, pois a cidade é também a construção dessa uma mentalidade
urbana:
O que faz uma cidade diferente da outra não é só a capacidade arquitetônica que ficou para trás após o modernismo unificador em avançada crise, mas os símbolos que seus próprios habitantes constroem para representá‐la. E os símbolos mudam com as fantasias que uma coletividade elabora para fazer a urbanização de uma cidade. 164
Nessa reflexão conduzida a partir do pensamento de Armando Silva, percebe‐
se que a construção da imagem urbana é estabelecida pela projeção imaginária que,
por sua vez, ultrapassa sua extensão física e as diferentes representações visuais.
Portanto, a urbanização passa pela dimensão estética e os ‘fantasmas sociais’ têm
participação na construção do espaço físico e dos símbolos urbanos. Assim como
164 SILVA. Armando .Op.Cit
113
memória é também um elemento constitutivo do espaço urbano, posto que o
recordar e representar são atributos que revelam as metáforas coletivas.
Assim, as representações podem nascer tanto da geometria de uma cidade e
da construção física do espaço, bem como, de um mundo cromático da cor urbana ou
de símbolos e modos de viver a cidade.
Por isso, a cidade é arte em seu sentido espacial, pois a arquitetura é uma arte
visual e a história das formas corresponde à história da arte na cidade. Já os
imaginários urbanos revelam as formas como os habitantes inventam formas de vida
para criar sua cidade, na qualidade do acontecimento estético e político. As formas
externas da cidade encontram elos com o ser coletivo urbano.
Para entender as dimensões culturais da cidade, buscamos as influências do
período na dimensão histórica, interpretando a cidade como uma forma de arte, quer
dizer, como uma forma inventada que rivaliza, interroga e dialoga com os arquitetos,
projetistas e operadores físicos. Mas tal forma só será validada se for assimilada por
seus habitantes que são os responsáveis por fazer da cidade uma experiência estética
construída a partir do viver cotidiano. Portanto, o sentido da arte é uma construção e
o sentido estético também se constrói historicamente.
Estudar a cidade, sob os signos da arte, transcende o mapeamento simbólico
das arquiteturas para um reconhecimento da construção das formas imaginárias que
habitam a mente de seus cidadãos pela interiorização dos espaços vividos. Por isso,
observar a cidade a partir de dimensões culturais consideradas abstratas e simbólicas
é uma possibilidade de olhar sem o direcionamento do “ver oficializado”.
A memória urbana se constrói através de suas metáforas. Compreender o urbano de uma cidade passa, por assim dizer, pelo entendimento de certos sentidos de urbanização. A compreensão do símbolo urbana, entendida como construção social de um imaginário, requer um esforço de observação e segmentação enquanto experiências que emergem da própria cotidianidade165.
165 SILVA, Armando. Op. Cit. p. 225.
114
Com o objetivo de relacionar arte e cidade no período de 30, foram construídas
algumas redes de pensamento, uma espécie de mapeamento das memórias que se
estabeleceram através dos lugares das lembranças impressos na cidade. Buscando
contextualizar aspectos da memória, literatura e imagens.
Foram analisados, como fontes dentro dos critérios apontados nesse estudo,
dois trabalhos, sendo o primeiro, a sensível obra de Ecléa Bosi166, cuja pesquisa na
área de psicologia social, tornou‐se uma referência para a questão da memória e do
imaginário. A pesquisa se valeu dos dados colhidos em dinâmicas de oralidades, do
trabalho de campo dessa autora, e esses dados foram utilizados como fonte. Esses
registros, chamados pela autora de “lembranças de velhos”, foram analisados e deles
foram selecionados alguns elementos narrativos que possibilitaram uma leitura
imagética da cidade de São Paulo, no período de 20 a 40. Dessa forma, elementos de
história oral, embora por um viés terciário, foram utilizados como fontes primárias.
Nos depoimentos afetivos cujos fragmentos foram selecionados, a cidade é a
referência da memória, ou seja, toda memória das narrativas apresenta‐se pontilhada
de localizações no espaço urbano. Porém, muitas dessas referências, dizem respeito a
lugares que já não existem mais. Os lugares, como veremos mais adiante, ficaram
apenas na lembrança, por esse motivo, também foi possível estabelecer alguns
pressupostos acerca da questão do patrimônio. Paralelamente, e numa ordem de
entrecruzamentos das informações, foram trabalhadas as narrativas literárias de
Sylvio Floreal167, que é o segundo trabalho utilizado na pesquisa. Esse autor é um
cronista do final dos anos 20, considerado escritor marginal, ou inferior, pela moral
da época. No livro, Ronda Noturna 168 o referido autor contextualiza seus contos
sobre a boemia paulistana, revelando o universo dos excluídos das memórias
“desautorizadas”.
166 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994. Várias informações que se seguem são extraídas desse livro, sobretudo a parte de Lembranças. 167 Sylvio Floreal, pseudônimo de Domingos Alexandre, que foi pedreiro, depois do funcionário do correio e jornalista. Nascido na cidade de Santos, em data incerta. Teve parte de sua formação através de núcleos de organização anarquista. 168 FLOREAL, Sylvio. Ronda Noturna. Op. Cit.
115
Após o levantamento de dados significativos para esse estudo, buscou‐se, nos
registros de interpretações metafóricas, a localização dos lugares, personagens e
imagens, com as quais se identificavam as lembranças e os acontecimentos da vida
da cidade, pela perspectiva de lugares esquecidos e/ou proibidos. Estabeleceu‐se,
portanto, dois mapas de memórias afetivas, classificados como: Mapa das
Recordações, com os depoimentos do livro de Ecléa Bosi e Mapa dos
Esquecimentos, com dados levantados da obra de Sylvio Floreal, que revelou
particularidades da boêmia paulistana e dos excluídos das memórias.
Através do entrecruzamento dos dados selecionados e mapeados, das duas
obras e dos aspectos narrativos referentes aos lugares da memória e do
esquecimento, foi realizado um estudo, no sentido de tentar uma aproximação com
os significados culturais do período e tentar entrar no universo imaginário através de
ilações com as imagens.
A finalidade dessa amostragem foi levantar questões acerca do imaginário e
das circunstâncias culturais da cidade nos anos 30. Estabelecendo confrontações de
memórias, narrativas e representações que revelavam a cidade do período. Buscou‐
se, posteriormente, uma aproximação da malha simbólica a partir das narrativas e
das estruturas criadas nas lembranças dos lugares, com o objetivo de entender as
passagens, estruturas e referências das lembranças reveladas e dos lugares do cenário
urbano e dos modos de viver na cidade. Nesse universo polissêmico, buscou‐se
entender aspectos relacionados à construção da memória individual e da memória
coletiva.
116
Mapa das Recordações
“Recordar é passar duas vezes pelo coração.” (GALEANO).169
Os aspectos da dimensão do imaginário na representação social e da memória
são os sentidos que revelam os significados dos lugares e se organizam através da
morfologia urbana. Foram recolhidos das narrativas, recortes e frases, escolhidas pela
referência aos espaços da cidade relacionados a aspectos da memória, do imaginário
e das representações. Algumas passagens das “lembranças de velhos”, do livro de
Ecléa Bosi, permitiram dimensionar a cidade dentro de um mapa afetivo.
Para um entendimento mais pontual, algumas frases que remetem a lugares e
fatos foram recortadas e analisadas. O agrupamento se deu através de uma seleção
de categorias e dos conceitos utilizados para análise.
1. No espaço urbano, os monumentos são representações de uma história oficial
Nas narrativas, as citações sobre marcos históricos, prescindem de memórias
afetivas e se confundem na finalidade da obra e no sentido do espetáculo ou
através da relação com o local e pessoas próximas:
[...] no Centenário da independência, quando começou o Monumento do Ipiranga: quem fez foi o escultor espanhol Jimenez, amigo de meu pai. O rei da Bélgica veio na época do Centenário e se hospedou no Hotel Terminus, atrás do Teatro Municipal. (p.163)
2. As ruas revelam dimensões do imaginário
O espaço rua é o lugar das crianças, das brincadeiras, das festas populares e
religiosas (São Vito, Acheropita), dos vendedores de ruas. [imagem 13: p. 169]
A Rua Conselheiro Nébias era uma maravilha por que a gente brincava de amarelinha, pegador, de lenço atrás, podia atravessar a rua correndo...( p.96)
169 GALEANO, Eduardo. O livro dos Abraços. Porto Alegre: L&PM, 2005.
117
Na frente da casa passavam os vendedores de castanhas, cantarolando. E o pizzaiolo com latas enormes, que era muito engraçado e vendia o produto dele cantarolando...(p.98)
3. Espaços do campo na cidade
Referem‐se a paisagens sem definições como “espaços de outrora” (referência de
um universo rural em meio à metrópole) e toponímia também aparece de forma
poética: [imagem 14: p. 169]
A rua não tinha calçada. As crianças ficavam à vontade naquelas ruas antigas. Eram ruas de lazer (...) Os terrenos baldios grandes sempre se faziam parques para a meninada. Meus irmãos jogavam futebol juntos. (p. 125) Na Bela Vista, os carroceiros calabreses se recolhiam as seis horas. Quando chegavam, guardavam os animais nas cocheiras na rua Treze de Maio, na Rua Rui Barbosa e na Pereira Barreto, que antigamente se chamava Rua do Sol. Aí tinham seus cortiços e suas baias onde punham ração para os animais (...) Liam o Fanfulla e usavam brincos de ouro numa orelha só. (p. 227)
4. A casa e o bairro, relaciona‐se a condição social
Separações étnicas, espaços de ascensão e de declínio, revelam preconceitos. O
lugar da identidade, o endereço como referência de classe social. Lugares de
profissões, ofícios que agregam grupos. As diferenças revelam que já nascemos
inseridos em uma cultura: [imagem 46: p.181]
Eu não morava numa casa, morava num quarto numa vila...( p.96) Aquele bairro ficou horrível, era uma maravilha os campos elíseos, aquelas ruas quietas, aqueles jardins...( p. 99) Nasci no Brás, na rua Carlos Garcia, 26, no dia 30 de novembro de 1906. Meus pais vieram da Itália, meu pai era toscano e minha mãe veneta, meu pai era alfaiate e minha mãe costureira. (p.124) Essa rua Carlos Garcia é nas imediações do comércio de cereais, no Brás, perto da Santa Rosa, Benjamin de Oliveira, Cantareira...‐ Na minha infância o bairro fino mesmo era a avenida Paulista e a avenida Angélica e imediações [...] Para esse lado de cá do Brás, Cambuci, Belenzinho, Mooca, Pari, tudo era uma pobreza, ruas sem calçadas, casas antigas, bairros pobres, bem pobres...(p.151)
118
Nasci na Avenida Paulista em 1900 numa travessa chamada Antonio Carlos [..] Meus pais vieram para cá como imigrantes da Europa. Da hospedaria de imigrantes eles já eram tratados para uma fazenda no Estado de S.Paulo (p.154) Nasci no Largo da Sé onde ainda existe a Casa Baruel ...(p. 177) Aluguei uma casa no Paraíso, rua Abílio Soares, 165. Ali eu era Dona Risoleta, todos me chamavam de Dona Risoleta. (p. 390)
5. Modos de Morar – Referências de condições societárias e de modos de viver
revelam as relações afetivas e familiares, impressas na organização do cotidiano e
na conformação dos lugares: [imagem 44: p.180]
Meu marido construiu uma casa num terreno que tinha na Rua Jerônimo de Albuquerque, essa casa tinha dois dormitórios e um bom banheiro, meu marido desenhou a mobília (...) As pinturas ficaram lindas (afrescos): na parede da sala de jantar havia painéis formando quadros (...) a sala em cima tinha uma barra de rosas amarelas pintadas pelo colega de fábrica do meu marido, chamado Alfredo Volpi (p.114) Essa é uma casa de recordações, porque meus filhos nasceram nela, é a casa da primeira comunhão, noivado, casamento... (p. 98) [...] a casa dava pra rua, mas tinha quintal; lembro da sala, dos dormitórios. (p.152)
Papai construiu a cada da Rua Barão de Tatuí, esquina com a Alameda Barros, em 1905, para onde mudamos e ficamos até 1926. Foi a casa que marcou minha vida, em todo sonho ou pesadelo, volto para lá. (p. 297)
6. Lugares da divisão social revelam os deslocamentos, a xenofobia, o racismo
Nessas narrativas percebe‐se claramente que os deslocamentos reforçam e criam
preconceitos e a tradição de negação de origens consideradas inferiores está
sempre presente. [imagem 29: p. 175]
Pretos no Brás tinha muito pouco. A maior parte eram descarregadores de sacos lá no mercado pequeno, um mercado de peixe na Ladeira do Empório Toscano, perto do Parque D.Pedro. Nós não sabíamos onde moravam aqueles pretos. Deviam morar no alto da Mooca [...] Eram lugares descampados depois do monumento. (p. 144)
119
Na Rua São Bento ficava a Leiteria Ferreira, uma leiteria chique. Gente de cor só podia comprar no balcão, não deixavam entrar e se sentar, mesmo que fosse mulato bem claro. (p. 388)
7. As fábricas, as oficinas, os espaços do trabalho
Revelam as relações do mundo do trabalho e das diferenças sociais e também um
universo onde o trabalho infantil é muito comum: [imagem 35 p.177]
Com dez anos comecei a trabalhar numa oficina de costura da rua Apa (imagem)... Lá na Santa Cecília [...] Com doze anos trabalhei numa oficina na Rua Duque de Caxias [...] eu saia da José Paulino e ia até lá a pé, tudo era calmo...(p.103)
Quando trabalhava nem para o centro da cidade eu ia, minha vida era da Marques de Itu para o Bom Retiro (...) meu marido trabalhava no Cambuci, na Masucci, Petrarcco e Nicoli – uma oficina de gravação de metal. ”(p.140)
8. Organizações e sindicatos – festas públicas
Observa‐se a dimensão do privado e do particular na esfera da vida pública, onde se
confundem as memórias oficiais com as memórias “desautorizadas”: [imagem 40: p. 179]
Os operários do Brás, festejavam o Primeiro de Maio, fazendo piqueniques no Parque Antártica, as famílias se reuniam na grama, cantavam, brincavam. A maior parte do primeiro de maio na praça eram paulada. Quando os comícios alteravam chegava a cavalaria [..]e desmanchavam o comício com cassetete...(pag.124) O primeiro de Maio era muito festejado pelos operários. O governo não queria que os operários fossem para a rua e que o Primeiro de Maio fosse muito festejado. Então quando eles faziam as grandes manifestações, que eu me lembro, mandava as patas de cavalo em cima do povo pra dispersar. O povo se reunia na Praça da Sé e os soldados batiam com as espadas. (p. 161)
120
9. A cidade, vista como bucólica, com moças nas janelas
Diferentemente da metrópole do crescimento e da velocidade, a narrativa é quase
sempre voltada a aspectos bucólicos da cidade:
[...] as moças das casas que ficavam nas janelas da Rua Rodrigo e Silva, esquina com Tiradentes. (p.59) [...] quando eu era pequeno só havia sobrados na cidade. Para se ir até o centro era preciso atravessar um matagal, que é hoje onde está o Parque D.Pedro [...].” (p.147)
10. As ruas de comércio, as vitrines, a moda, os espaços de compras
A referência de status, na dimensão do consumo e a eficácia da propaganda voltada
para esse fim, ficam claros. O anúncio como medida de qualidade já revela aspectos
do poder da cultura de massas na indução ao consumo:
Um dia seu Eugênio trouxe para mim um par de sapatos e um vestido do Ao Bom Marche, achei aquilo uma glória...(p.99) Quando conheci as lojas da cidade, era uma maravilha, a Barão de Itapetininga com as lojas finas, a Rua Direita com a Sloper, a Casa Alemã. (p.100)
11. A Escola, as oficinas de artes, os professores
Revelam aspectos do ensino, lembranças dos colégios e do aprendizado:
Aprendi a Ler no Grupo Escolar do Triunfo, na Alameda Cleveland, ali, depois da ponte do Bom Retiro (p.100). No Brás tinha a Escola Regina Margherita que alfabetizava em italiano. Eu aprendi a ler no Grupo Escolar do Carmo [...]. A Escola era no fim da avenida Rangel Pestana, perto da praça Clóvis. ” (p.147)
12. O espaço das festas públicas
A dimensão das festas de rua, sagradas e profanas, como o carnaval, as festas
religiosas, as procissões, e serestas: [imagem 15: p.170]
Lembro das serenatas lá na Rua Serpa Pinto, lá no Bom retiro... (p.105)
121
Íamos aos piqueniques no Parque Antártica com a família, depois do almoço íamos passear no jardim da Luz, que era uma beleza. (p.109) Ainda fui com meu marido nos bailes de carnaval da praça da república. Faziamos corso na Avenida Paulista [...] depois tinha o corso na Avenida Rangel Pestana, naquela avenida grande, ela ia quase na Penha [...]passava pelo Arouche, pela Rua Rego Freitas [...] todos os sábados na Avenida Paulista tinha corso... (p.110) Os mocinhos e as mocinhas passeavam à noite no Largo da Concórdia e na Rangel Pestana, de um lado os rapazes do outro as moças. (p. 140) [...] havia no Brás uma festa de Rua, a de São Vito Mártir. Iluminavam a rua do Gasômetro, a Santa Rosa, a Assunção, as imediações da Igreja. Armavam palanques para um concurso de bandas. Os fogos eram uma coisa extraordinária. A imagem de São Vito ficava na Igreja do Lucas. Tinha também a festa de São Cosme e São Damiano. (p.149)
13. A moda – distintivos sociais e de gostos e culturas
As mulheres andavam de chapéu e luva na cidade, como num passeio... (p.107)
14. A “Semana de Arte Moderna” como um evento restrito a elite
Pouco soube dos modernistas porque estava completamente desligada da alta sociedade. (p. 293)
Corriam muitos boatos em São Paulo sobre os modernistas. Fomos espiar na calçada um baile do Clube Spam (Sociedade Paulista de Arte Moderna) e vimos a entrada das amizades de Dona Olívia, a gran‐finagem de São Paulo. (p.296)
15. Calamidades públicas
Curiosamente narradas quase sempre numa representação romântica: [imagem 56:
p.184]
Quando chovia muito a Baixada do Bom Retiro virava a Veneza brasileira. A enchente tomava conta de tudo. As famílias todas tinham barco e durante a noite passeavam nas ruas inundadas. (p.108)
122
O rio Tamanduateí enchia fácil, era muito estreito [...]No Cambuci a enchente era uma brincadeira...” (p.143)
16. Esferas da diversão pública ‐ cinema, teatros, cafés [imagem 42 p.179]
Toda semana íamos ao cinema que tinha no Bom Retiro – O Marconi... e também no Cine Rosário na São Bento. (p.109) Desde pequeno gostava de teatros, operetas, o teatro sempre foi minha maior paixão. Era o teatro do Cassino Antártica, o Boa Vista, o Santana. E o circo. O circo hoje tem mais luxo, mas o circo daquele tempo era o verdadeiro circo onde existia Chicharrão, Piolim, Irmãos Queirollo que faziam a ponte humana... (p.144) Com uns doze anos fui pela primeira vez ao cinema, lá na rua Major Diogo. (p. 154). Quando eu trabalhava na Confeitaria Fasolli, existia na Praça João Mendes um cinema, chamava‐se Cine Congresso, pagava‐se oitocentos réis a entrada. (p.168).
17. Lugares da Fé – igrejas, espaços de cultos, sacralizações do urbano [imagem 41:
p.179]
Levei a menina na capelinha do Sumaré, na Avenida Dr. Arnaldo, capela milagrosa de Nossa Senhora de Fátima... Fomos ao primeiro Congresso Eucarístico no Anhangabaú... (p.117) Fiz primeira comunhão com os padres beneditinos na Igreja de São Bento. (p.149)
18. Medidas Sanitaristas
Nunca se referem ao lugar, pois eram destinadas a profilaxia e remoção de
indesejáveis:
Perto da minha casa (Brás) vinham duas vezes por semana os mata‐mosquitos, fardados de amarelo e com bonezinho. ” (p.150)
19. As revistas, jornais e as noticias de grande impacto [imagem 69 p.188]
O acesso à informação as notícias veladas, e as “re‐velações”:
[...] mas lia as revistas, eu sei tudo, A cigarra, as crianças liam O Tico‐Tico, não lia jornal mas lembro do crime da mala... (p. 103)
123
Na época lia muita revista de cinema A Scena Muda, Eu Sei Tudo. E os folhetins da Fanfulla. [...] No Brasil houve uma revolta comunista em 22 que abafaram, sei que fuzilaram muita gente. (p. 163)
20. Revolução – espetáculos de conflitos bélicos na cidade
Vai explodir o depósito de pólvora do hospício da Rua Tabatinguera – onde tinha um quartel.,(atravessamos todo Cambuci). (p.111) Na Revolução de 24 o povo assaltou o Mercado Municipal. O povo em geral, eles saquearam os armazéns do bairro, lá na Mooca. (p.116) Quando eu servia no bar, os gaúchos entravam de bota e bombacha e gritavam: Bota ai uma garrafa de vinho! Vocês paulistas não prestam, vocês deviam ser fuzilados! (p.128)
21. Impressões da Era Vargas – os “efeitos” da campanha Getulista [imagens 8,9,10 p.p
168]
O Getúlio fez leis que se executam até hoje para o movimento operário. Ele foi um dos melhores presidentes que o Brasil já teve (p.146) Não tínhamos direitos [...] só depois que veio o Getúlio, que Deus o abençoe! Ele lutou contra a classe patronal, capitalista... (p. 167) São Paulo era contra Getúlio, os revolucionários lutavam contra os legalistas, mas eu era a favor do Getúlio. Achava ele bom. As coisas que ele criou para os pobres vigoram até hoje. (p.385).
124
Mapa dos Esquecimentos
Os lugares e as memórias proibidas
Sylvio Floreal e a crônica do lugar. Em “Vícios, misérias e esplendores da cidade de
São Paulo170 “o imaginário urbano é narrado pela perspectiva da chamada boemia.
As crônicas desse autor possuem uma narrativa reveladora de um universo de
imagens de uma cidade esquecida, mas que ainda existe e ainda continua esquecida.
Revela a cidade por ângulos diversos. São Paulo, como lugar de anseios e buscas,
memórias da exclusão. Os lugares dos boêmios, dos miseráveis, das prostitutas. As
imagens com as quais se identificam as ruas, as lembranças e os acontecimentos
dramáticos da vida da cidade. Nesses fragmentos, a cidade foi mapeada pelos seus
lugares de esquecimento, de memórias incômodas.
1. Os cabarés e casas de prostituição – o consumo de drogas e outros vícios
Hoje graças a civilização que tudo transforma, melhorando aqui, piorando acolá, temos, além daquelas casas, em número infinito, vários cabarés localizados em diferentes pontos da cidade... (p. 33) O uso da cocaína, vício da elite; o jogo, os bordéis ‐ 270 bordéis e 1770 prostitutas de todas as idades. (p.38) A cocaína, esse olímpico veneno (...) é de há muitos anos usada nas atmosferas penumbrosas das garçonieres por alguns indivíduos que se desgraçaram em Paris, torrando fortunas na aquisição desses vícios... (p.33)
2. Dos usos “diferenciados” dos lugares públicos e dos nomes dos lugares
[imagem 37: p. 178]
O viaduto do Chá, o suicidouro construído pela municipalidade... (p.34) Na explanada Municipal, os lampiões espalhavam seus brilhos de um vermelho irritante, empastando o ar encinzeirado da noite. Homens e mulheres desses que trocam a luz do dia pelas trevas, partiam em peregrinagem aos cabarés e as casas do vício. (p.36)
170 FLOREAL.Sylvio. passim.
125
3. Dos coronéis que resistiram ao tempo
São Paulo, lugar das ambições desmedidas, do enriquecimento, a cidade barões
do café, dos coronéis, e dos golpistas.
Contudo ainda não desapareceram da tela da vida deste vasto cinematógrafo de povos, que é São Paulo uns tipos interessantes, com certas tintinhas de bizarrice, que tiveram suas origens no seio da casta tradicional de fazendeiros. Ainda perduram, porém, metamorfoseados através de sérias transformações e modificados pelo antigo feitio pelas influencias morais de nossos dias (p. 38) O coronel é o que protege e garante a manutenção da fêmea chique, “mamífero de luxo” verdadeiro escoadouro de dinheiro... (p.38) São pródigos os coronéis de puro sangue que descendem em linha reta de uma fidalguia coronelífica. Mas há também entressachada nos que são verdadeiros e puros, uma cáfila de pseudos‐coronéis que se impingem artimanhosamente por verdadeiros e fintam, caloteiam e passam calota na maciota. (p.39)
4. Da prostituição em todas as esferas sociais [imagem 38 p.178]
As donas de pensões chiques, cabarés e outros antros onde a evanidade se berganha santamente por cédulas da caixa de conversão.(p. 39) (...) as aves de arribação e luxúria, as filhas de Eva, que fizeram votos de viver a custa de sexo, explorando Abéis e Cains, seus desventurados irmãos. As ilustres fulanas quase sempre loiras, para atrair o ouro, fascinadas pela rubínea fama há muito criada pelo café; deslocam‐se até do recanto mais ignorado do mundo e vem até aqui(...) Profissionais do madalenismo, industriadas no mister de subtrair dinheiro com a gazua do sorriso, astutas aparecem, instalam‐se esplendidamente e lançam seu nome felino na praça. (p.45)
5. Dos sonhos de enriquecimento e ideais de progresso
São Paulo tem a desdita de gozar fama de cidade rica e perdulária! (p. 43) A opulência de São Paulo conglorada atraiu e atrairá levas de gentes vindas das mais remotas plagas do mundo, cuja ambição é mais funda que o lendário tonel das Daiades... (p. 43)
126
6. Dos Albergues ‐ lugar dos excluídos, dos párias, de ex‐escravos
Os freqüentadores do Albergue Noturno e do Albergue Municipal, lugares da
mendicância e dos que buscam o abrigo para passar as noites. Estrangeiros,
bêbados e desempregados mas, sobretudo, muitas mulheres, ex‐escravas que
citam o nome das famílias a que pertenciam e que as abandonaram.
Rua Asdrúbal do Nascimento, n. 28 – Albergue noturno – sete horas da noite. Desfilam os párias, os hilotas, os mendigos, os malandrinhos por ofício, vagabundos por tara e bêbedos por fatalidade(...) mulheres ruínas ambulantes carcomidas pela sífilis (...) pretas e mulatas esfarrapadas, encarquilhadas (...) fui escrava da família tal, fulano e sicrano mamaram em meu peito e hoje passam na rua e fingem que não me conhecem (p.53)
7. Dos lugares da aristocracia, das galerias, da fusão de gentes [imagem 42: p.179]
Sobre os lugares do luxo e da opulência: Higienópolis, Avenida Paulista, Bailes
do Trianon, Automóvel Club , Mappin
[...] venerandas famílias que moram na Avenida Paulista, Higienópolis e outros arrabaldes aristocráticos. Freqüentam o automóvel club e os Bailes do Trianon, as festas de rigor em que os velhos e matronas ostentam sua indumentária (...) gastam seu precioso tempo; os rapazes no Bar Municipal, de parceria com suas amantes, e as meninas casadoiras no Mappin e outros lugares chiques onde se toma chá (p.53). O Triangulo durante o dia é uma quermesse de tipos exóticos, arrogantes, jactanciosos, que dissimulam cinicamente a origem plebéia...(p. 57) Evoco os bairros materialmente limpos, onde habita de mistura com uma casta de sangue levemente azul de fazendeiros, a legião de banqueiros e industriais de sangue violentamente vermelho. E desfilam em cardumes encardidos, logo após, os bairros da miséria – as suburras. Se os bairros aristocráticos são interessantes na fachada (...) os bairros pobres (...) das fábricas, são interessantes nas minúcias, nas reentrâncias e na alma. (p. 58) É tarde de um sábado na Rua Direita (...) uma avalanche de homens, mulheres que fixaram esse dia em seus hábitos, para dar um ar de sua graça e infinita vaidade, aflui para esse trecho do triângulo. (p. 93)
127
Passam elegâncias improvisadas, atitudes berrantes, postiças, gestos imitados e decalcados, maneiras forçadas, exóticas, e mesuras, tiques, sestros e cacoetes plagiados de afogadilho, de outras civilizações e diferentes povos...(p.93) A Rua Direita reorgita de povo. Entro na Confeitaria Fasoli. O vasto salão sempre cheio de homens e mulheres, delira entusiasticamente, animado pela música que toca sempre uns pout pourris nervosos e fox trots saltitantes à jazz band. (p.97)
8. Lugares dos estrangeiros
Os espaços das diferenças culturais e dos preconceitos. Aborda e a miscigenação e
os lugares de estrangeiros que vivem à margem de uma sociedade, sobre os
aglomerados de raças, que ele chama de “deslocados de sua origem.”
Tipos que foram escroques em Paris, batedores de carteira de Monte Carlo e San Sebátian, contrabandistas de Havre e Gênova, falsários de Londres e Nova York, cáftens da Rússia Polônia e adjacências (...) dos aventureiros esporádicos que apeiam (...) na estação da Luz, já temos o necessário para merecer o epíteto de “capital artística”. (p.57) Os filhos do Sol Levante, os japoneses, já construíram seu bairro, o seu minúsculo Japão em São Paulo. (p. 58). Na Rua Conde de Sarzedas onde os japoneses vivem mui japonesamente infringindo todas as leis de higiene. (p. 59).
9. Tabernas e outros lugares de vícios e encontros
Os profissionais das tabernas desobrigam‐se cumprindo sua fé de ofício. Começam a sórdida paz das tascas a beber de tudo (...) E os bas‐fonds, onde essa corja se reúne, fervilham como pântanos em combustão. Acotovelam se aos guinchos, aos berros, dejetando ditos obscenos, do mais baixo calão... (p.63) Na rua 25 de Março, na baixada do Mercado e nas ruas São Nicolau, Maria Beneditta, Lourenço Gnecco e outras travessas escuras e fedorentas, funciona uma chusma de botequins pestilenciais, cada qual contando na sua folha corrida, uma esplendida legenda negra de rolos, forrobodós e assassinatos. (p. 65) As travessas e becos adjacentes ao mercado, à noite, quando essa corja se dispõe a beber e perturbar o silencia de quem dorme, dão a impressão pavorosa,... (p.65).
128
As tabernas que existem na rua Anhangabaú, Seminário, Quintino Bocaiúva, esquina com Senador Feijó, Largo do Riachuello e Piques (...) gozam da freqüência de uma clientela mais polida. De mistura com negralhões, mestiços, mulataços e “fêmeas” desbocadas e sujas, vêem‐se os chauffers, carroceiros, carregadores, garçons, guarda‐cívicos e secretas, postos em disponibilidade (...) para confabular com escroques, cáftens, ladrões e desordeiros. (p..66) Nas tascas da Rua Riachuelo e circunvizinhanças , se agrupam outros terroristas do copo que medem suas forças com a polícia constantemente... (p.66) No largo dos Piques, os botequins cheios de sua gente (...) a porta das tabernas, jaziam bêbados dormindo no solo... (p.67).
10. Os corpos disciplinados: a prisão e o hospício
Avenida Tiradentes n. 5 cadeia pública(...) é um casarão colonial, austero, decrépito, cansado (...) construído em 1851, e pelos inestimáveis serviços que tem prestado, trabalhando dia e noite, já lhe assiste o direito de ser uma ótima e galharda ruína. (p. 71) O Juqueri (...)De esfuziada desfilam corpos imprecisos, envoltos numa plúmbea cerração de malefício, pelos horizontes (..) há gritos de lamentos, estertores, desfalecimentos, delírios, convulsões. (p. 83) E o hospício de Juqueri, surgiu aos meus olhos tal como ele é (...) os loucos em suas mis‐en‐scenes da demência, calmos, resignados, pareciam personagens da arte do silêncio, filmando uma película cômica.(p.84)
11. As feiras livres e dimensões da cultura no espaço público [imagem 13 p. 169]
Os pregões dos vendedores ambulantes eram algumas marcas das novas sonoridades
urbanas. O pregão “Batat’assat’ô furnunn! Foi reproduzido por Mário de Andrade no
poema “Noturno” do livro Paulicéia Desvairada (1921) [imagens 17, 18, 19, 20: pp. 171 e 172]
Todos os bairros, os sujos e até mesmo os presuntivamente limpos, possuem os seus grupos de garotos, composto em sua maioria de pretinhos e mulatinhos que, de gargantas rebeldes, ao entrave da mais forte rouquidão, berram cabritescamente, anunciando as delícias e gulodices que trazem em seus samburás e vasilhames. (p.113) Os vendedores dessas indígenas iguarias (pipoca, pinhão e amendoim), depois da meia‐noite, e após terem calcorreado as ruas, onde contam com fregueses certos, e não havendo mais função de
129
circo de cavalinhos e cinema, escolhem como ponto de encontro, um botequim no Largo do Piques,...(p.114) Entre os vários pontos onde as feiras livres se instalam, o largo do Arouche é o mais interessante, devido a sua topografia.. Diversos bairros aristocráticos confinam nesse largo. E aos sábados, quando funciona a feira, uma grande quantidade da população chique vem até ela, acompanhadas de criadas que sobraçam desbeiçados samburás, sovadíssimas cestas e gastos balainhos. (p. 120.) [...] paro em frente a um herbanário. Há uma desordenada mistura de folhas secas, raízes, cascas de pau, frutas esquisitas e exóticas, figas de todos os tamanhos e cores, chifres de veado e bode, unhas de cabra, couros de animais, pêlos e uma infinidade de outras bugigangas milagrosas que servem para bruxaria e maléficos. (p. 122)
130
Referência dos lugares das Narrativas
O Viaduto do Chá – Projetado pelo engenheiro francês Jules Martin e inaugurado em 1892, o
viaduto ligava a encosta do velho centro, das ruas São Bento e Direita, com o morro do Chá.
O costume de atirar‐se do Viaduto sobre a Rua Formosa foi relatado por vários cronistas,
dentre eles há o registro de um bilhete de um suicida, nos seguintes termos: “Bendito sejas,
Viaduto Paulista! Sem tu não poderia eu passar desta para melhor, embalado pela brisa que
te circunda. Adeus! Até para a eternidade és o passadiço de útil eficiência!”
Automóvel Club – fundado em 1908 e instalado no Palacete Martinico à rua São Bento.
Tinha por finalidade promover o automobilismo, organizar concursos e conseguir dos
poderes públicos a abertura de novas estradas e conservação das antigas. Sua sede foi um
dos centros de convivência da elite paulistana.
Belvedere Trianon – projetado pelo escritório do arquiteto Ramos de Azevedo, foi
inaugurado em 1916 por Washington Luís. Com seu restaurante e sua confeitaria, converteu‐
se em ponto de encontro da sociedade paulistana para festas, homenagens políticas e bailes
de carnaval.
Bar Municipal – Instalado no hall lateral do teatro municipal (1911), o bar funcionava
mesmo sem a apresentação de qualquer sessão de teatro. Acabou por adquirir a fama de
promover “muitos danos morais” à juventude dourada, ou ainda, uma “feira de amores
caros” por se consagrar como a passarela e a vitrine das cortesãs, suplantando o palco dos
velhos cafés‐concertos.
Mappin Stores – Loja de departamentos localizada à rua XV de Novembro n.26, inaugurado
em 1913. Estava a serviço de uma elite enriquecida pela economia cafeeira que procurava
moldar o seu gosto e padrão de consumo, de acordo com os ditames das capitais européias.
Em 1919 inaugurava sua instalaçoes na Praça do patriarca num edifício reformado pelo
escritório Ramos Azevedo. Possuía também um salão de chá, ricamente ornamentado.
131
Ponte Grande – construída em estrutura metálica e inaugurada em 1866, cruzava o Rio Tietê
e promovia a ligação entre a avenida Tiradentes e a Rua Voluntários da Pátria. Depois que
concluíram a Ponte das Bandeiras (1942) a Ponte Grande foi demolida.
O Triângulo – localizava‐se na confluência das ruas São Bento, Direita e XV de Novembro. O
local foi o centro comercial e político de São Paulo até a Segunda Guerra, reunindo as lojas
mais chiques e os cinemas, os melhores hotéis e restaurantes, bancos e escritórios, além das
sedes do Partido republicano Paulista (PRP) e do partido democrático (PB) bem como as
redações dos principais jornais: O Estado de São Paulo, Diário Popular e Correio Paulistano.
O largo dos Piques ou baixada dos Piques, correspondia à atual Praça da Bandeira e era
constituído de duas partes distintas: o largo do Bexiga e o Largo dos Piques. No primeiro
desembocavam as ruas do Bexiga (atual Santo Antônio) e Santo Amaro e a travessa de Santo
Amaro (atual Travessa do Ouvidor), no segundo as ladeiras de São Francisco e do Ouvidor
(atual José Bonifácio) as ruas de Santo Antônio (atual Rua Dr. Falcão Filho) e formosa. Além
da Ladeira da Memória e do Piques (atual Rua Quirino de Andrade). Na virada do século o
local era densamente povoado por imigrantes italianos.
Confeitaria Fasoli – Confeitaria Paulicéia e Rotisserie Sportsman – localizadas na rua XV
de Novembro, era um local freqüentados pela sociedade paulistana.
Asylo dos Alienados de Juquery – Hospital Psiquiátrico, projetado por Ramos de Azevedo
em 1898. A primeira colônia agrícola do Asylo dos Alienados de Juquery, abria suas portas
para abrigar os mais diversos tipos excluídos da sociedade de então: mendigos, marginais,
negros e doentes mentais. O nascimento do Juquery inaugura a medicina alienista de
aviltamento científico e ocorre num cenário republicano ligado ao mercado, transparecendo
a característica higienista do momento – que tem como conceito de limpar as ruas, sanear a
imagem e o espaço urbano, tirando da vista tudo que implique estorvo: prostitutas,
mendigos, pobres, negros, enfim, um grupo de pessoas que não correspondiam a produção,
representante de um “proletariado degenerado”.
132
A experiência estética na representação da cidade
Se o espaço é capaz de exprimir a condição do ser no mundo, a
memória escolhe os lugares privilegiados de onde retira sua seiva.
Merleau Ponty.
O cruzamento de elementos narrativos dos trabalhos que foram selecionados e
mapeados referem‐se, de modo geral, a aspectos da cidade. Os dados levantados
para análise de aspectos do lembrar/esquecer, forneceram elementos para vários
questionamentos acerca da função social da memória. As considerações sobre
identidade cultural, tais como: a lembrança de gerações passadas, a forma como são
transmitidos os conhecimentos pela oralidade e a forma como a história oficial tenta
suplantar ou se utilizar dessas memórias, foram os dados analisados.
Essas referências, muitas vezes revelaram aspectos surpreendentes,
oferecendo um panorama das “memórias esquecidas”. Nesse contexto percebeu‐se
que as memórias oficiais são celebrativas e, geralmente, se sobrepõem as memórias
afetivas, além do que a moralidade dos costumes, também cria lacunas e hiatos nas
narrativas cotidianas.
Na crônica urbana de Sylvio Floreal, a cidade se revela em recônditos de
segredos que, por pudores da época são apagados do contexto das memórias
autorizadas, são assuntos proibidos pela moralidade da época.
Por outro lado, os recordadores, de Ecléa Bosi, situam a cidade vista da
perspectiva de diferentes origens, que se estabelecem em São Paulo através de suas
vivências e lembranças.
Nessa “costura” dos lugares da memória de idosos e da memória de
narrativas marginais, pode‐se mapear uma cidade com contornos diferentes, mas que
muitas vezes convergem. Porém é pertinente observar, que os suportes materiais da
memória, são geralmente destruídos, e um dos fatores encontra‐se nos
deslocamentos criados por reformas urbanísticas que acabam por “apagar” o espaço
da geração anterior ao promover deslocamentos culturais. ”Lembrando que, a
133
memória das sociedades antigas se apoiava na estabilidade espacial e na confiança
em que os seres da nossa convivência não se perderiam. Constituíam valores ligados
a práxis coletiva” [apud].
Nos depoimentos analisados, por várias vezes os narradores, se referiam aos
lugares que situavam suas memórias com a constatação ou com o desconhecimento
que esses lugares não mais existiam. Nas palavras de Marilena Chauí, prefaciadora
do trabalho de Ecléa Bosi, encontramos uma definição para as angústias sobre os
remanejamentos dos lugares de outrora:
Já não existe mais (....) essa frase dilacera lembranças como um punhal e cheios de temor ficamos esperando que cada um dos lembradores não realize o projeto de buscar uma rua, uma casa, uma árvore, guardadas na memória, pois sabemos que não irão encontrá‐las nessa cidade onde os preconceitos da funcionalidade demoliram paisagens de uma vida inteira”.[apud]
A memória social, assim como a pessoal, apresenta o que Ecléa Bosi chamou
de pontos de amarração, como algo que se aproxima das relações transversais não
localizáveis. Entre os paulistanos, o “vôo do zepellin sobre o viaduto... As festas de São Vito
e Nossa Senhora Aquiropita... [imagens 21 e 54: pp. 172 e 184]
Experiências de várias gerações que carregam memórias da cidade e que se
referem aos velhos lugares, que são inseparáveis dos eventos que neles ocorreram.
Percebe‐se com isso, que os acontecimentos e lugares participam da trama da
memória. Há uma certa convergência, que a autora denomina como focos de
memória, em certas referências e lugares. Por exemplo, em São Paulo, os ícones da
urbanidade paulista são citados por quase todos os narradores, tais como: o Viaduto
do Chá, a Rua Direita, o Museu do Ipiranga, o Parque Siqueira Câmpos, o Trianon,
Teatro Municipal, a Avenida Paulista, a Avenida Angélica, o Jardim da Luz, a
Cantareira...
Essa constatação resume o que foi observado por muitas vezes durante o
percurso dessa pesquisa, que a memória oficial oprime e modifica os espaços, tirando
com isso as bases materiais da lembrança e criando os deslocamentos culturais, para
134
se criar uma história prótese, oficial e celebrativa. Nesse sentido, a memória política
nos dá a dimensão da introjeção de juízos de valor, que são usados como referência
para a releitura do passado, sempre com a predominância de uma visão que é
invadida por uma memória que tira da outra o sentido. Fato que não deixa de ser um
processo de “transculturação” disfarçado em projeto educativo, como vimos, ou em
planos urbanísticos, com suas medidas “profiláticas e embelezadoras”.
Dentro do pensamento que cria a dicotomia dominante/dominado, é
interessante destacar a narrativa de fatos relacionados às comemorações populares
do “Primeiro de Maio”, que eram protestos e festas populares sempre “invadidas
pela polícia” para dispersar o povo. Percebe‐se nesse contexto como a estratégia do
governo se utilizou desse rito popular para criar seus contextos de dominação, posto
que, na Era Vargas, a mesma data passa a ser uma celebração estruturada nas esferas
políticas do governo, que “institui” a mesma data para celebrar as “benesses” das
políticas públicas para os trabalhadores. Ou seja, o aparelho de controle do governo
se apropria da esfera da tradição popular, para estabelecer e implantar ideologias
contrárias e seus métodos de dominação, usando a mesma forma ou raiz cultural.
Mas isso acabava se desvanecendo, quando o lembrador registra o fato pela memória
afetiva e pela vivência. Nesse sentido, a memória busca a expressão da dimensão
emocional dos acontecimentos. Como bem registra Eclea Bosi, pensando na questão
das permanências, quando diz: “Fica o que significa...”[apud].
Porém, verificamos que a perda da totalidade do espaço e do tempo leva à
perda do lugar e com isso do “direito” à memória. Ao questionar as contradições
ideológicas e estéticas na dimensão das narrativas analisadas, define‐se a cena
pública, misturando memórias pessoais com as oficiais e revelando imaginários.
A substância social da memória revela que o lembrar é tanto individual como
social. Mas, o tempo da memória é marcadamente social, o tempo se estrutura na
oficialidade das cronologias estabelecidas. Nas lembranças, os espaços da cidade,
têm vários tempos, revelando uma cidade de dimensões humanas e temporalidade
cíclica. Nesses fragmentos de narrativas, as representações do imaginário revelam
135
forte carga simbólica, que se estabelecem nas representações imagéticas vinculadas
pelo simbólico, onde o imaginário é o condutor das emoções: “ouvir é sentir” e
“lembrar é rever”.
A questão da transmissão cultural é um fato digno de registro, os imigrantes e
filhos, que recebem seus valores e crenças pela oralidade, muitas vezes reproduzem
em suas narrativas um processo de grande nostalgia pelos lugares de origem, ou
mesmo da busca pela representação do lugar de origem dos pais imigrantes. Esse
fato é muito interessante, sobretudo, quando verificamos em representações do
período, ou mesmo lugares de utopia, de cidades imaginadas como suas, por
pertencimento ou legado.
Outro fator relevante está na toponímia da cidade, pois os nomes são muitas
vezes referências de lugares que já não são mais encontrados. São os lugares do
esquecimento. As representações urbanas também revelam estratificações sociais e
percebemos que as rupturas e mudanças que acontecem com as vanguardas não
atingem sequer uma esfera de cidadãos letrados, se resumindo a uma elite.
Sobre as narrativas, podemos interpretar instâncias da vida social e afetiva,
que se estrutura no espaço e relaciona os modos de vida com as origens e instâncias
da vida coletiva. É interessante ressaltar que na questão das desigualdades sociais,
considerando que os lembradores de Ecléa Bosi, eram de diferentes origens, porém,
quase todos de classe média e alguns de origem operária, porém, para todos sem
distinção, a semana da arte moderna de 22, foi narrada sempre com grande
distanciamento, coisa de “gran‐finos”, como muitos diziam. Até mesmo pelos
freqüentadores do teatro e das óperas do municipal era fato isolado. Esse dado, por
sua vez, revela uma faceta da vida social onde a cultura erudita se estabelece na
esfera popular e não o contrário. Percebe‐se tanto nos relatos quanto nos silêncios, as
divisões de classes e a ausência popular nos eventos da elite. Sobre os teóricos da
memória171, devemos considerar que a pesquisa se estrutura na fenomenologia e
171 Cf. Bérgson, Halbswachs, Bartllet, Stern. Para maior aprofundamento nos temas abordados, esses os autores são as fontes que estruturam as análises sobre memória. Dentre as teorias fundamentais
136
dialoga com questões do tempo e da percepção nas representações. É interessante
apontar que, nas narrativas, foram registrados os lugares que identificam a cidade de
São Paulo pelo olhar individual, que percorre os símbolos urbanos, toponímias,
iconografias, compostas de imagens construídas e imaginadas a partir dos
fenômenos de ordem, registros de interpretações metafóricas, localização dos lugares
e personagens da lembrança, misturando acontecimentos da memória coletiva com
as lembranças pessoais.
Estabelecendo uma analogia, sobre os modos de imaginar a cidade e os
lugares da memória, foram mapeados os lugares da construção social da imagem
urbana e dessa forma se obteve referências para pensar as representações e os
elementos para selecionar e interpretar algumas imagens, que foram as portas para se
penetrar na malha simbólica, objetivando verificar nas narrativas desse tempo, nos
recônditos da memória e do esquecimento.
Nesse sentido, o artista é o um tradutor dessa dimensão do simbólico, posto
que, se a interpretação parte das representações narrativas, estabelece, em um
segundo momento, uma representação visual da cidade, buscando nas experiências
estéticas, estabelecer e pontuar as reflexões desenvolvidas a partir da carga
imagética. Com esse objetivo, tentou‐se uma aproximação e percepção das estéticas
simbólicas, através do entrecruzamento das informações extraídas dessas
lembranças, que foram os critérios usados na seleção das imagens. A intenção foi de
tentar através da arte os elos culturais da comunidade, nas memórias reveladas.
Buscou‐se, portanto, emprestar uma linguagem à imagem e desta forma
adentrar no território cultural. Ou seja, do imaginário ao simbólico e do simbólico ao
real. A partir desse caminho se iniciou um exercício de crítica, no sentido de buscar
elementos para as interpretações das imagens.
que estruturam o trabalho, destacam‐se as de Bérgson, que, relaciona o princípio central da memória com a conservação do passado que por sua vez, sobrevive quer chamado pelo presente, quer pelas formas de lembranças, quer em si mesmo em estado inconsciente. Cf: Henry Bergson. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
137
Imagens dos Lugares – o campo simbólico
O artista como revelador dos campos simbólicos também pode ser intérprete
ou “fabricante” da realidade social, ao traduzir o imaginário para o campo das
representações e dessa forma re‐significar, e também atuar no campo semântico.
Na produção de imagens, é preciso conectar o processo cultural de um dado
momento histórico ao trabalho da memória, diretamente relacionado aos registros da
história pessoal e oficial, que alinha estereótipos e mitos e perpassa por diferentes
esferas da cultura e das questões do poder. Porém, lembrando que arte e a política
estão imbricadas desde a origem, assim como mito e linguagem.
Sendo assim, a memória como função social exige desdobramentos de
intencionalidades sobre a função da lembrança. Porém, temos que considerar que as
tradições podem ser inventadas172 e as memórias sobreviventes podem ser
consideradas inúteis. Ou seja, existe uma memória voltada para a ação e uma outra
que apenas revive o passado:173
A memória é faculdade épica por excelência. Não se pode perder no deserto dos tempos, uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para outra mão. A história deve reproduzir‐se de geração em geração, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos. 174
Em sociedades antigas os guardadores da tradição eram os velhos, pois essas
sociedades se estruturavam na oralidade e na lembrança. Em nossa sociedade os
velhos são quase excluídos de participação. Nesse sentido, é impossível não fazer
uma analogia sobre as circunstâncias da história em que há grandes rupturas e
invenção de tradições, onde é conveniente que esses “elos” com o passado, não
tenham voz. Isso talvez possa explicar as sociedades que desconsideram seus
172 HOBSBAUWM. E. A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1984. 173 O conceito de velho como ultrapassado e inútil se dá tanto na esfera da cultura material, como do elemento humano. Os velhos são o continuum, são o elo com o outro tempo. Sendo que na diáspora africana, cada velho que morre e uma biblioteca que se apaga. Porém nas sociedades industriais, os velhos como categoria social, são vistos como desnecessários, pois não podem mais trabalhar. 174 BOSI, Ecléa. Op.Cit.
138
lembradores. E dessa forma, ignoram a memória dos velhos, que passam a não ter
voz, por não se inserirem no mercado.
A função da memória é resguardar o conhecimento do passado, que se organiza e
ordena o tempo. Na arte de narrar pela arte, temos que considerar o conhecimento
passado através da matéria trabalhada e organizada. O sentido da memória também
inclui o trabalho das mãos, a tradição da manufatura, ou seja, no trabalho ou na arte
a arte de narrar, há sempre uma relação entre alma, olho e mão. O narrador está
presente ao lado do ouvinte e a sustentação da história está na organização da
matéria e da vida humana.
A arte também relaciona o ato de lembrar através da matéria. Para “lembrar
através da arte”, devemos considerar que, mesmo quando a memória coletiva se
desenvolve a partir da troca e dos laços de convivência, é o individuo que recorda,
em suma, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”
[apud].175
Nas lembranças, os espaços sociais são mapeamentos dos lugares da memória e
do esquecimento. Na divisão da cidade, os lugares podem ser relacionados como
espaços da memória coletiva e os lugares das lembranças afetivas.
Embora, na questão do tempo a memória se confunda em muitas instâncias. Os
“lugares da memória urbana” podem ser divididos da seguinte forma:
1. Os lugares do poder: Monumentos: os heróis, os marcos de feitos políticos:
documentos; edifícios; nomes de Ruas e Praças (toponímia); Lugares cívicos;
Símbolos do Poder: a águia, a serpente, o condor...
2. Os lugares da Cultura, dos costumes, da memória afetiva: Os lugares da
criança – a rua como lugar das brincadeiras; espaços de outrora – paisagens
sem definição de lugar; as festas de rua; o povo nas ruas: vendedores
ambulantes, feirantes, crianças; a moda; a organização das casas, mesas, e
cotidiano.
175 [apud] BOSI, Ecléa.
139
3. Os lugares do Esquecimento: os lugares proibidos, que não estão em
consonância com a moral da época, os lugares da manifestação dos operários,
os lugares dos símbolos do que o estado tentou reprimir, marcas de locais de
agremiações proibidas, lugares da exclusão, lugares da perplexidade, de
guerras e tortura etc.
Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado. Como transmitiríamos aos nossos filhos o que foi a outra cidade, soterrada embaixo da atual, se não existem mais as velhas casas, as árvores, os muros e os rios de outrora? 176
Na narrativa da memória coletiva, a relação de afetos se estabelece com os
objetos como se fossem elos, ou testemunhas de outro tempo e quando há
cumplicidade, ou seja, quando se divide a lembrança, ela se transforma em uma
realidade social. Um grupo é, portanto, o suporte da memória quando se estabelece
a identificação:
Cada geração tem, de sua cidade, a memória de seus acontecimentos, que permanecem como pontos de demarcação em sua história. O caudal das lembranças, correndo sobre o mesmo leito – a cidade de São Paulo – guarda, esses episódios notáveis, que ouvimos sempre retomados na fabulação de seus moradores. 177
Na relação tempo e memória, as etapas do lembrar são dividas por marcos,
onde a significação da vida se concentra: a cidade, a casa, o lugar, um rito de
passagem, as festas. Mas o tempo social absorve o tempo individual. Porém a
memória individual parte do olhar e do ver , do que se viu e ouviu. Nesse sentido, a
memória grupal se dá a partir das construções de múltiplos olhares. Se podemos
reagrupar em nossa subjetividade lembranças de espaços sociais diferentes, podemos
também sobrepor imagens no mesmo espaço social.
176 BOSI, Ecléa, op. cit..p.413. 177 Idem. Ibidem.
140
Nos espaços da Memória, a casa é o centro do mundo e a cidade cresce a partir dela em todas as direções. “ Fixamos a casa com as dimensões que ela teve para nós e causa espanto a redução que sofre quando vamos revê‐la com olhos de adulto. Para enxergar as coisas nas suas antigas proporções, como posso tornar‐me de novo criança? (...) Algumas pessoas, em geral os artistas, guardam essa possibilidade.178
Os objetos que se relacionam ao campo da memória são o sustentáculo do
lembrar, são a cultura material, e eles transmitem noções de identidade. Na cidade,
temos na dimensão dos lugares, as marcas de nossos diferentes tempos de vida e
passagens, e quando reencontramos os objetos das lembranças sentimos um grande
conforto. Os velhos lugares são inseparáveis dos eventos neles ocorridos, como por
exemplo: a casa, as ruas do trajeto para a escola, o bairro da infância, o centro da
cidade são descritos de modo dispersivo nas lembranças várias, mas sempre com
alguns focos ou lembradores que desencadeiam emoções. Por exemplo: o viaduto do
chá, a catedral, a rua direita, o Trianon, a Avenida Paulista, o Jardim da Luz, a
Cantareira. São lugares descritos sob vários pontos de vista. Alguns lugares são
evocados como lugares da velha São Paulo: a Penha, centro de devoção, o Hotel D
‘Oeste, a Confeitaria Fasolli, a Casa Alemã, a Farmácia Baruel, o Parque Antártica,
onde os operários dançavam nas festas do Primeiro de Maio, o Anhangabaú, o Vale
do Povo nos comícios, o Prédio Martinelli. Com todos esses pontos desenhamos um
mapa afetivo da cidade.
O planejamento funcional combate esses recantos. Na sua preocupação contra os espaços inúteis, elimina reentrâncias onde os párias se escondem do vento noturno, os batentes profundos das janelas dos ministérios onde os mendigos dormem. Mas a cidade conserva seus terrenos baldios, seus desvãos, o abrigo imemorial das pontes onde se pode estar quando se é estrangeiro e desgarrado. 179
178 BOSI, Ecléa, passim. 179 Idem.Ibidem.
141
Porém, mesmo com as mudanças espaciais e deslocamentos, os vínculos não
se desfazem Nesse sentido, verifica‐se a força da tradição local da imagem. A
memória devolve aos lugares de outrora, significados muitas vezes perdidos pelos
deslocamentos, mas re‐significados no lembrar. Na memória política, ou ideológica,
os juízos de valor entram nas narrativas, os lembradores querem definir seu lugar na
história dos acontecimentos. Porém, nas diferenças entre estratificações sociais,
percebe‐se inserção ou alheamento, de acordo com o lugar e o gênero.
Na passagem temporal, podemos observar que grupos sociais que não tinham
participação na esfera dos debates na República Velha, no Estado Novo encontram,
de certa forma, um lugar, mesmo que um lugar de utopia, divulgado como ideal.
Nesse sentido, a década de 30 é o marco de mudança no panorama da
divulgação, que “insere” o popular através de medidas difusoras de falácias e
simulacros. Por isso, em todas as narrativas analisadas na esfera da memória
individual, a ação do governo Vargas quase sempre está carregada de aspectos
positivos. É o substrato de memória coletiva, construída, que por sua vez mistura
narrativas memorialistas com marcações pessoais nas identificações ideológicas. O
que nos chama a atenção nesse fato é que a “ilustração” também cria memórias.
A lembrança de certos momentos públicos (guerras, revoluções, greves...) pode ir além da leitura ideológica que eles provocam na pessoa que os recorda. Há um modo de viver os fatos da história, um modo de sofrê‐los na carne que os torna indeléveis e mistura com o cotidiano, a tal ponto que já não seria fácil distinguir as memórias históricas, das memórias pessoais e familiares (...) As crises econômicas que rondaram São Paulo no fim da década de 20 nos são pintadas ao vivo pelas recordações de aperturas familiares que angustiam quase todos os entrevistados...”(BOSI, 464)
142
As Estéticas Simbólicas
Como se reconhece uma cidade? Pode ser pela paisagem urbana e suas
referências físico‐naturais e também por suas construções. Uma cidade se constrói
por expressões da mentalidade urbana. Portanto, uma cidade do ponto de vista da
construção imaginária deve responder por condições, tanto naturais quanto
construídas para usos sociais. Nesse sentido, o que faz uma cidade diferente de outra
são os símbolos que se constroem para representá‐la. E o que caracteriza a memória
nacional, é o fato dela não ser propriedade particularizada de nenhum grupo social, e
se definir como universal e dessa forma se impor a todos os grupos.
Nesse sentido, segundo Renato Ortiz, a memória coletiva não pode ser
particularizada ao passo que a memória nacional é universal. Por isso, o nacional não
pode se constituir como um prolongamento dos valores populares, mas sim como
um discurso de segunda ordem. Sendo assim, tanto a memória nacional como a
identidade nacional são construções que dissolvem a heterogeneidade da cultura
popular na univocidade do discurso ideológico. Com isso, a memória nacional
“fabricada” opera uma transformação simbólica da realidade social e por esse fato,
ela não coincide com a memória particular. É, portanto, através da relação política
que se constitui a identidade que se estrutura no jogo de interação entre o nacional e
o popular. Embora as ideologias culturais se defrontem permanentemente,
realizando reordenamentos espaciais de acordo com suas orientações, onde o olhar
político e o olhar histórico podem ocupar o mesmo ângulo na esfera da arte.
A arte é o absoluto, mesmo quando trabalha com o passado. O retro, o revival populista podem ser programas estéticos cuja validade só pode ser julgada pelo repertório de respostas aos problemas semânticos formais que propõem, pelas questões que deixam em aberto e pela forma como se relacionam (...) A arte tem a sua disposição todas as delícias da arbitrariedade, pode praticar a intransigência, ser a‐histórica e historicista ao mesmo tempo, abominar a moda e trabalhar com ela: Baudelaire queria “o poético no histórico e o eterno no transitório” 180
180 SARLO. Beatriz. Paisagens Imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 2005 .p.57.
143
O intelectual e o artista são os mediadores simbólicos dessas construções.
Tanto no campo das palavras, ou do universo literário, como também na construção
imagética, mas essa, por sua vez, sempre se apóia na interpretação que relaciona o
particular e o universal, o singular e o global. Na questão da identidade entre cidade
e arte, temos que observar que toda arte é atividade tipicamente urbana e não apenas
inerente, mas constitutiva da cidade181. Portanto, todo trabalho artístico, de alguma
maneira dialoga com a cidade e também com emoções, memórias e culturas. A arte
revela relações com a cidade numa multiplicidade de sentidos.
A partir da arte e suas relações com a cidade, com as identidades, a
arquitetura e os lugares da memória, se torna possível identificar tensões e
aproximações em relação ao espaço/vida e as temporalidades históricas. Se o “ver é
datado” o olhar é sempre contemporâneo, e as imagens são possibilidades de
entendimento de outros olhares e de outros tempos.
O espaço urbano visto da perspectiva da cidade de São Paulo, considerada
como a mais moderna do Brasil e palco do modernismo, foi analisado em um
período da estruturação da indústria cultural, onde as imagens dessa cidade estavam
sendo “reinventadas.” Os aspectos políticos e culturais do espaço público também
revelam as multiplicidade de olhares sobre o que se chamou de “Invenção das
Tradições.”182 Para verificar as construções ideológicas que dão suporte à idéia de
nação e as práticas que configuram o espaço público, deve‐se observar os
monumentos e rituais, pois o que se delineia no momento de construção da imagem
da cidade, perpassa pelo imaginário e por suas representações, para a construção dos
marcos culturais que, por sua vez, irão sofrer as transformações do cotidiano. Por
isso, devemos entender o espaço público sempre pela perspectiva da prática social e
de suas memórias:
A memória social e os monumentos são como resultados de um complexo conjunto de atividades, que – embora não sendo redutíveis quase que exclusivamente a este aspecto – participam da
181 ARGAN.G.C. A 1988, Op. Cit. 182 HOBSBAUWN. Eric. Op.Cit.
144
produção de várias fases da nação e ganham nesse contexto, uma importante significação política” 183
Sendo assim, a construção social do espaço público se estabelece através das
“reconfigurações” das fronteiras simbólicas e através da vivência urbana e das
memórias.
O sociólogo, Antonio Arantes184 indaga como se infiltram nos espaços políticos
da cidade, os lugares tanto de moradia como de comércio e outras atividades, que
são construídos pelas inúmeras pessoas, que erguem nas ruas o seu principal lugar
de referência pessoal.
Como se formam esses significados que carregam paisagens étnicas, históricas,
e noções de território e de lugar, que são tradicionalmente inscritas no espaço urbano
e passam a ser deslocadas ou recolocadas pela mobilidade das pessoas na relação
tempo‐espaço?
Nessa perspectiva, a nação se atrela também às imagens do lugar, às novas
formas de relacionamento na diferença e nas questões da identificação à distância,
tanto pelas imagens quanto pelas representações da estética do lugar, que se
estabelece no modo como se estrutura a vida social, as identidades e o sentimento de
participar da nação através do espaço. São os marcos de lugar ou de vida social os
“constructos185” identificadores da paisagem e dos símbolos que constituem os
processos sociais. Verificamos que a formação da noção de lugar no espaço público,
passa por processos formadores de fronteiras simbólicas em relação à paisagem 183 ARANTES, Antonio Augusto. Paisagens Paulistanas: Transformações do Espaço Público. Campinas: Unicamp e Imprensa Oficial, 2000. p. 10 184 ARANTES, A. Op. Cit. 185 Constructo, com origem etimológica no latim, pelo particípio passado do verbo construo, is, struxi, structum, ere, traduz: 1. o que foi construído, o que foi enunciado, o que foi elaborado; 2. o que foi amontoado, acumulado. É substantivo masculino, que se refere ao que é elaborado ou sintetizado com base em dados simples, especialmente um conceito.Em verdade, o verbete constructo sugere a adjetivação da forma de pensar resultante de uma somatória de linhas de pensar. Usa‐se em filosofia o verbete constructo com o significado de um conceito que está sendo verbalizado, que está em processo de construção discursiva. O constructo, como resultado de um conjunto nem sempre mensurável de elementos discursivos que integram a idéia, a linha ou a forma de pensar, pode ou não ser adotado como elemento constitutivo de uma crença justificada. Fonte: www.nest.com.br
145
urbana. Com isso, a “cara” do lugar, se dá com a criação de marcos culturais e
configura o espaço público visto também como lugar político de celebrações oficiais e
de ritos populares. Na paisagem urbana são os espaços que carregam as identidades:
Uma rua ou a fachada de uma casa, uma montanha ou uma ponte ou um rio, o que quer que seja, são mais que um ‘último plano’. Eles também possuem uma história, uma personalidade, uma identidade que deve ser levada a sério. Eles influenciam os caracteres humanos que vivem nesse último plano, criam uma atmosfera, uma noção de tempo, uma certa emoção. Eles podem ser feios ou belos, jovens ou velhos; eles certamente estão presentes [...]186
Nessa reflexão sobre os “lugares”, articulam‐se a questão dos marcos físicos,
que carregam sentimentos e memórias e que territorializam as experiências sociais,
fornecendo referências de tempo e estabelecendo na visualização da cidade a
possibilidade de perceber a experiência humana, pois os lugares e os acontecimentos
são retirados da memória.
186 ARANTES. A. Augusto, Op.cit.
146
Capítulo 4
OLHARES
“[…] el artista es un hombre que bruscamente ve.” (BORGES, J. L.).
147
Arte e Política na cidade de 30
O tema da Cultura Brasileira e da Identidade Nacional, na Era Vargas,
relacionados a aspectos da cidade, com lugar das expressões e referências, foi o
recorte que se estabeleceu, para a seleção das imagens. Em uma análise que buscou
relacionar nas representações os símbolos, que tanto podem revelar diferentes
imaginários como também as estruturas das ideologias dominantes refletidas no
panorama urbano. Nesse contexto, os artistas e intelectuais do Brasil, revelaram em
sua produção, diferentes realidades, relacionadas a aspectos da construção e da
interpretação da identidade nacional.
A partir da intensificação da urbanização e da industrialização, o enfoque se
amplia para definir o que viria a ser “o povo brasileiro” e por extensão qual seria o
“lugar do povo”. Essa questão revela a busca por uma definição dos padrões ideais,
tanto do brasileiro, como das cidades brasileiras. Nesse panorama de definições
estéticas é que emerge uma cultura de caráter nacional, com seus desdobramentos
nacionalistas.187
Em áreas específicas do campo da cultura, como por exemplo, na produção de
imagens, o que rege o discurso é a formação de uma rede para divulgação das
estratégias do governo. Portanto, no universo simbólico as relações entre Estado e
Cultura, desenvolvem um “mercado de bens simbólicos”, associando identidade
nacional e cultura popular, através de movimentos políticos, com intensa
participação de intelectuais. Essa relação entre o nacional e o popular se manifestará
no Estado e também na estrutura da formação da linguagem ideal para atingir as
massas.188 Os intelectuais do período, buscam compreender as crises e os problemas
sociais e elaborar uma identidade “adequada” ao Novo Estado Nacional. Através da
transformação da infra‐estrutura econômica começam a pensar numa sociedade que
se moderniza. Nessa aproximação entre o nacional e o popular, a questão da
187 LEITE, Sebastião Uchoa, Cultura Popular: esboço de uma Resenha Crítica” Revista da Civilização brasileira, n.4. set 1965,pp.269‐289. 188 ORTIZ, Renato. Op. Cit.
148
memória é muito significativa e, se insere na questão abordada sobre a memória
coletiva e a memória nacional. Sendo que e a memória nacional se estabelece como
um prolongamento da memória coletiva popular, como bem define Renato Ortiz:
A memória coletiva é da ordem da vivência, a memória nacional se refere a uma história que transcende os sujeitos e não se concretiza imediatamente em seu cotidiano [...] a memória nacional, por outro lado, se vincula à história e pertence ao domínio da ideologia [...] A memória coletiva se aproxima do mito e se manifesta portanto, ritualmente. A memória nacional é da ordem da ideologia, ela é produto da história social, não da ritualização da tradição.189
Nas análises sobre a articulação entre arte e política nos anos 30, constatou‐se
que, se por um lado o efervescente modernismo, com seus manifestos e movimentos,
traduziu a busca por inovações propondo rupturas190, no âmbito político se articulou
o golpe e os projetos culturais políticos, no período do governo provisório,
reprimiram as expressões consideradas como afrontas à ordem social e, ao mesmo
tempo, divulgaram uma série de imagens produzidas com fins ideológicos. Porém, é
fato que, desde a Revolução de 1930 em São Paulo, os acontecimentos políticos e
189 ORTIZ, Op. Cit., p. 135. 190 Divisão do modernismo: após atingidas as metas da Semana, o grupo de 1922 entrou num processo de desagregação: estavam unidos em torno do repúdio ao que não queriam e agora dividiam‐se em correntes à procura de uma identidade mais definida. As principais são as que se seguem: Corrente primitivista ou anarcoprimitivista, encabeçada por Oswald de Andrade, que propôs‐se remontar às fontes originais da civilização brasileira, anterior à colonização portuguesa, e ao primitivismo, sem compromisso com a ordem social estabelecida. Considerava a moral cristã uma moral de escravos e suas posições foram apresentadas inicialmente no ʺManifesto do Pau‐Brasilʺ (1924), com a divisa ʺTupi or not tupiʺ, e retomadas na Revista de Antropofagia e no ʺManifesto Antropofágicoʺ (1928), que se opôs ao movimento Anta (1927) da Corrente nacionalista, que se posicionava contra a influência européia a favor de uma literatura de motivos brasileiros, folclóricos e indígenas. Englobou os seguintes movimentos: o verde‐amarelismo (1925), de tendências políticas direitistas e que via na poesia pau‐brasil uma imitação mal‐feita do dadaísmo francês; o movimento Anta (1927), que, inspirado nas obras de Euclides da Cunha e Oliveira Viana, entre outros, buscava analisar os problemas da vida brasileira; derivou daí o movimento integralista de Plínio Salgado; o movimento da bandeira (1936), de filosofia autoritária, que desembocou no Estado Novo. Corrente desvairista, que preconizou a criação de uma língua nacional e a renovação da poesia por meio dessa língua, além de advogar a liberdade da pesquisa estética. Teve como figura central Mário de Andrade. Corrente do sentimentalismo intimista e esteticista, definida no próprio nome e representada pelos poetas Guilherme de Almeida e Ribeiro Couto. Quando o modernismo chegou ao ponto decisivo de seu ciclo histórico, por volta de 1930, começaram a surgir outras orientações, valores, pesquisas, buscas artísticas. Disponível em: br.geocities.com/edterranova/escola5.htm Consulta em 26/06/2006.
149
sociais se conjugaram no ambiente artístico e cultural, e os artistas e intelectuais
começaram a participar mais ativamente da política. [imagens 65 a 69: pp. 187 e 188]
Dentro desse panorama político e social, a disputa pelo poder repercutiu na
agitação criativa que, por sua vez, tentou formular um novo rumo para o país,
buscando encontrar novas expressões artísticas. Verificou‐se que, embora as
preferências e posições adotadas pelos artistas estivessem longe de um consenso,
todos eles tenderam a uma busca de soluções para as lacunas entre arte e sociedade,
premidos por uma necessidade de tomar posição frente aos problemas de seu tempo.
As representações das associações de artistas e intelectuais
As associações de artistas nos anos 30 visavam criar espaços para a promoção
da Arte Moderna. Nesse recorte da produção intelectual e da produção de imagens,
foram selecionadas três associações que se estruturam no período recortado. Em 1932
surgem respectivamente a Sociedade Pró‐Arte Moderna (SPAM) e o Clube dos
Artistas Modernos (CAM); em 1934, o Grupo Santa Helena.
Os dois primeiros grupos eram associações que reuniam artistas da elite, e
tinham por objetivo a difusão da arte moderna, porém ambos ficavam restritos a um
círculo da intelectualidade elitizada. Embora com mais projeção do que as poucas
associações não institucionais de artistas, esses grupos contribuíram, de certa forma,
para a continuidade das pesquisas em arte e mais ainda para a fomentação de
debates sobre temas relacionados à sociedade brasileira.
Se antes, o vínculo entre arte e circunstância social parecia inexpressivo, a
partir do surgimento de associações de artistas para promoção da arte moderna, a
arte passou a ser pensada em sua conexão com os acontecimentos sociais e políticos
que ocorriam no Brasil e no mundo. E as iniciativas particulares, por sua vez,
tornaram possível maior liberdade de expressão, inclusive política, para os artistas de
São Paulo. Segundo Mário Pedrosa, na interpretação de Otília Arantes [apud]:
150
As idéias políticas revolucionárias vieram à tona com a crise das instituições e a crise econômica do café que deram por um momento, sobretudo em São Paulo, ligeiros sintomas de vacância de poder. Oswald de Andrade, numa profissão de fé comunista, rompeu com a própria classe, a aristocracia do café, vencida e decadente, convertido por um momento à ideologia do Partido Comunista de então e à revolução proletária. Ao lado e em oposição à Sociedade Paulista de Arte Moderna, fundada por antigos promotores da Semana, já agora acusados de grã‐finos, aristocratas e reacionários, lança‐se o Clube de Arte Moderna, Flávio de Carvalho, seu organizador e animador, intelectual de alta têmpera, artista de múltiplas possibilidades, rico e desabusado (...) enche o meio paulistano com os ecos de suas atividades e seus desafios. (...) O ambiente de alta tensão social e de crise institucional não permitia mais as explosões puramente estéticas ou culturais da Semana. 191
A Sociedade Pró‐Arte Moderna192 promovia atividades culturais em um tempo
em que a crise política e institucional assolava o Estado de São Paulo. Os sócios da
SPAM, eram em sua maioria artistas e intelectuais pertencentes à elite paulistana, e já
reconhecidos, porém não houve entre eles o interesse direto por temas políticos.
Embora, suas ações e manifestações artísticas modernas, tenham incomodado e
provocado reações indignadas de outra esfera modernista que compunha, sobretudo,
o staff da imprensa conservadora – que eram os integralistas.193 A Sociedade
191 ARANTES, Otília. Op.cit. 192 SPAM – A Sociedade Pró Arte Moderna era constituída por um grupo de artistas que promovia atividades culturais em um tempo em que a crise política e institucional assolava o Estado de São Paulo. A reunião de inauguração da SPAM ocorreu na Casa de Gregori Warchavchik, no dia 23 de novembro de 1932. Eram membros do Spam: Paulo Mendes de Almeida, Paulo Prado, Olívia Guedes Penteado, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Lasar Segall, Antonio Gomide, Hugo Adami, Tarsila do Amaral. Guignard, DiCavalcanti e Portinari e Lasar Segall.Cf. MICELI, S. Nacional Estrangeiro. São Paulo: Cia das Letras, 2003.. 193 O integralista José Bonifácio de Souza Amaral, que já condenara publicamente o Teatro da Experiência de Flávio Carvalho no CAM, escreveu um artigo na Secção Livre do Diário Popular denunciando as atividades subversivas dos membros da SPAM. Diz Paulo Mendes de Almeida: “(Em 21 de fevereiro de 1934), José Bonifácio publicou uma tremenda objurgatória contra a Sociedade, a que deu o título de ‘Os fins secretos da Spamolândia’, onde revelou traços de xenofobia ao colocar em seu artigo que a associação era um conglomerado de ‘estrangeiros de nacionalidade um pouco incerta’, e outros neo‐brasileiros desafetos de nossas tradições, e outros ainda, embora pertencentes ao tronco racial mais antigo’ – todos empenhados num programa de dissolução dos costumes. E terminava com um apelo às autoridades: ‘No meu entender,a polícia de São Paulo devia fechar a SPAM com mais razões do que teve para fechar o Teatro da Experiência’. [...]Cf. MICELI, S. Nacional Estrangeiro. São Paulo: Cia das Letras, 2003..
151
produziu duas exposições: a primeira, em 28 de abril de 1933, trazia peças de
coleções particulares194. A segunda exposição ocorreu no final de 1933 onde também
participaram artistas residentes no Rio de Janeiro, entre eles: Guignard, Di Cavalcanti
e Portinari.[imagens 25, 26, 27, 48 e 54: pp. 174, 182 e 184]
Essas exposições não incomodaram tanto os setores conservadores, mas
mesmo assim há referências acerca de problemas com a SPAM que, de certa maneira,
está vinculado ao fato de Lasar Segall encabeçar a comissão executiva da
Sociedade.195 Em geral, a sociedade de SPAM, cuja sede do ficava no palacete
Campinas, ao lado da Praça da República, promovia muitas festas com o objetivo de
obter recursos para realizar exposições de artistas.
Porém, essas festas foram alvo de crítica e protestos indignados, tanto pela
polícia do Governo Provisório como pelos setores conservadores da sociedade civil.
Consta que, o baile de carnaval em 1933, teve a intervenção da polícia em função de
manifestos acerca da Revolução Constitucionalista que continha críticas ao Governo
Provisório, reveladas em uma música de carnaval. No segundo baile, realizado no
início de 1934, houve reações indignadas de setores conservadores, que viam a
SPAM como uma ameaça aos costumes, ou seja, a associação de artistas modernos
era vista como contrária aos “valores da família, da religião e do civismo”.
E esse foi motivo de muitos protestos contra essa Sociedade, que sofreu a
intolerância do meio social paulista, como também pelas disputas políticas que se
abriam no contexto histórico e social colaborando para o fim de suas atividades.
Dentre os motivos de ordem moral há também um motivo político relacionado ao
fato de Lasar Segall (artista que esteve à frente da comissão executiva do SPAM
desde sua formação), ser estrangeiro. Fator esse que causou tensões e divergências no 194 Coleções de de Olívia Guedes Penteado, Samuel Ribeiro, Paulo Prado, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral. Nela se podia ver Picasso, Léger, Brancusi, Lipchitz, DeChirico, Le Corbusier, entre outros artistas importantes e também nomes de destaque na cena paulista, tais como: Anita Malfatti, Victor Brecheret, Lasar Segall, Antonio Gomide, Hugo Adami, Tarsila do Amaral. Cf: www.macvirtual.usp.br 195 Nesse momento do Varguismo os estrangeiros já estavam sob suspeição. Cf. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Livros Proibidos, Idéias Malditas: o DEOPS e as Minorias Silenciadas. São Paulo: Estação Liberdade,1997.
152
grupo, levando‐o a deixar a sociedade após uma série de acusações contra sua pessoa
e contra o expressionismo. Após a saída de Segall, os membros da comissão
executiva decretaram o fim da Sociedade, em 1934.
O Clube dos artistas Modernos, o CAM196, “causou incômodos mais densos”
e acabou sendo fechado pela polícia sob a acusação de difundir idéias subversivas. O
CAM foi alvo de perseguição sistemática dos aparelhos do governo e também dos
integralistas, sendo muito atacado pelos poderes instituídos e pelas forças
reacionárias. Porém, difundiu várias idéias modernas de transformação estética e
política da sociedade para a formação “do homem do futuro”.
O Grupo Santa Helena, que se formou em 1934, era composto basicamente por
operários que se reuniam em um edifício da antiga Praça da Sé n. 43 (e
posteriormente 247)197, chamado Palacete Santa Helena, local onde se reuniam
artistas que expressavam suas obras através do contexto de sua classe social, em
aspectos da cena urbana e da paisagem em suas obras pictóricas, revelando a cidade
em suas representações, com rigor e técnica acadêmicas. Foram chamados de
“operários da pintura” e de artistas proletários, em sua maioria estrangeiros ou
descendentes. E retrataram a cidade pelo olhar dessa condição. Em suas
representações deixaram um legado simbólico sobre a cidade do período, muitas
vezes bem distintos das imagens da memória oficial, sobretudo se comparados com
relação às representações da metrópole, revelando em seus trabalhos, uma outra
cidade e dimensões do cotidiano. Algumas obras, desses grupos de artistas, foram
selecionadas para se ter um panorama das representações da cidade nos anos 30.
196 O CAM foi fundado por Flávio de Carvalho, Antônio Gomide, Carlos Prado e Di Cavalcanti em um prédio da Rua Pedro Lessa, número 2, próximo ao Viaduto do Chá, região central de São Paulo no final do ano de 1932. Do início ao fim de sua curta existência, o CAM elaborou e executou propostas consideradas ousadas. O objetivo principal do Clube, como centro irradiador de cultura, foi veicular a produção artística moderna e propor debates sobre temas atuais no meio social e artístico da cidade de São Paulo. Em pouco tempo, o CAM ganhou fama nacional. Cf. MICELI, S.. Op.cit. 197 O Grupo Santa Helena era formado por, Alfredo Volpi, Mário Zanini, Francisco Rebollo,Fúlvio Penacchi, Aldo Bonadei, Clóvis Graciano, Penacchi, Humberto Rosa, Alfredo Ruzzo Rizzotti, Manuel Martins.Cf. AJZENBERG, Elza (org) Et. Al.. Operários na Paulista: MAC/USP e Artistas Artesãos. São Paulo: MAC/USP, 2002.
153
A produção artística de vários artistas desse período, sobretudo acerca de
imagens urbanas, revelou aspectos simbólicos, muito diferentes das imagens
divulgadas pelo aparelho estatal. A cidade de São Paulo, pelo olhar dos artistas do
período, independente das estruturas formalistas, no campo da produção simbólica
revelam uma cidade, cujo cotidiano, muitas vezes parece revelar outro tempo
histórico. As artes visuais relacionadas à cidade nesse período, são praticamente
contrárias às imagens da cidade do poder. Esses artistas abordam aspectos da
cultura popular em sua produção simbólica muito significativos. Desde os ritos
sociais, até representações do espaço. Nesse momento, se estabelece uma a ruptura
com a linguagem do poder do totalitarismo, até mesmo em obras que apresentam
simples paisagens, preocupadas com linguagens acadêmicas. Percebe‐se que, atrás
de um aparente exercício formal, se estabelece uma ruptura com os valores em voga.
Nesse sentido, a função social da arte se estabelece na revelação de outras realidades
que vai entrar nos recônditos da vida e de esferas da sociedade, que rompem com
representações burguesas e mostram um universo proletário, dos operários, das
lavadeiras, dos varredores de rua, dos cortiços, das praças e feiras, filas, casamentos,
enterros. Dimensões de uma vida privada, que escapam aos ideais do poder e de
suas estratégias de difusão e controle, revelando um processo social distinto do que é
divulgado pela propaganda oficial. Uma produção visual que historiciza outros
olhares e outras realidades. [imagens: 44, 45, 46 e 64: pp. 180, 181 e 187].
Dessa forma, a vanguarda no Brasil se revela, além dos aspectos de libertação
formalista, mas sim pelo fato de escapar à coersão e ao cerceamento ideológico
através da produção simbólica. Ainda, que o conteúdo das formas não se libertem
dos suportes e expressões mais tradicionais, a ruptura se estabelece através da
rejeição aos valores que estão no centro da dominação do pensamento acerca das
imagens e das memórias produzidas. Nesse sentido, a produção plástica rompe com
as estruturas e revela outra realidade. Numa construção plástica impregnada de
símbolos e discussões sociais impressas. Que por sua vez, reflete um distanciamento
dos modelos ideais de representação
154
Estratégias do projeto ideológico
A orientação autoritária do governo Vargas, estabeleceu estruturas de
repressão e também de doutrinação, para construir sua base de sustentação política.
As técnicas de difusão da imagem e da propaganda nos meios de comunicação social
foram os rituais da nova ordem, que se assentavam sobre a divulgação de imagens,
que criavam um apelo sensorial com as conotações que se queriam difundir,
utilizando‐se, para esses propósitos, a imagem em larga escala. Essa estratégia foi
muito funcional, pois também atingia um grande número de analfabetos, e também
causava comoção. O resultado foi muito eficiente, sobretudo nas modelações das
expressões da vida social, influenciando idéias e valores, comportamentos e práticas.
Nesse âmbito, a fotografia no panorama da cidade e do imaginário urbano
entra como um recorte utilizado, como uma poderosa ferramenta de registro e
modernização do Estado, conforme observamos, sua presença é constante na
imprensa e mídias em geral. O contexto de produção de imagens fotográficas
propagandísticas das ações do Estado, ocorridas a partir de 1930, demonstra que a
fotografia foi utilizada para a construção de uma idéia da nação e do regime político.
No Estado Novo ocorre uma sistematização do uso e difusão da fotografia
encomendadas pelo governo brasileiro. Sendo o produto mais específico dessa
iniciativa, os álbuns feitos pelos governos estaduais, em edições luxuosas,
cuidadosamente preparadas e impressas na Europa, visando a propaganda da
administração do governo do estado de São Paulo, lançado por ocasião da III
Conferência Nacional de Educação em 1929, com fotografias de fachadas de edifícios
escolares, com as quais se buscava criar uma idéia da monumentalidade das
construções, relacionadas com a própria idéia da qualidade do ensino público, assim
como as reformas urbanas ocorridas no início do século XX.198
198 KOSSOY, Bóris. Origens e Expansão da Fotografia no Brasil: século XIX. Rio de Janeiro: MEC; Funarte, 1980. P. 95
155
As estruturas de controle e difusão da imagem
Em 1931 foi criado o Departamento Oficial de Propaganda (DOP),
posteriormente substituído pelo Departamento de Propaganda e Difusão Cultural
(DPDC), em 1934, cuja finalidade consistia no controle da informação e da cultura, e
no uso de recursos com fins políticos, tais como: cinema, radiotelegrafia e outros
processos técnicos, no sentido de empregá‐los como instrumentos de difusão.
Essa estrutura de controle foi ampliada e fortalecida através da estruturação
de um projeto político‐ideológico de combate e eliminação de forças contrárias ao
regime. Buscava‐se então, mais do que nunca, o caminho da legitimação. Nesse
contexto, a propaganda estatal alcançou um grande nível de produção e
sistematização da informação e tornou‐se também uma importante ferramenta na
esfera da defesa nacional, diretamente ligada à idéia de manutenção da ordem e
unidade da nação. Conciliando sua coercitiva a uma “função educativa” junto às
massas. E dessa forma, divulgou os parâmetros da ʺnova ordemʺ, através da
publicidade oficial do Estado, além de um rígido controle das informações.
Sobretudo na produção e divulgação dos discursos direcionados à construção da
imagem do regime, de suas instituições e do chefe do governo, identificando‐os com
o próprio país e o povo. [imagem 9: p. 168]
Todo esse aparelho era diretamente subordinado à Presidência da República e
visava a centralização e fiscalização de todos os jornais e revistas do país, cerceando
amplamente qualquer iniciativa de liberdade de expressão.
Além de orientar o funcionamento e o conteúdo das mensagens veiculadas
pelos meios de comunicação, também produzia e difundia seus produtos: livros,
folhetos, cartazes, cinejornais, programas de rádio com noticiários e inúmeros
musicais, além de fotografias para uso na imprensa, em publicações diversas ou em
exposições, cerimônias cívicas etc. O DIP possuía as seguintes divisões: Divulgação,
Radiodifusão, Cinema e Teatro, Turismo, Imprensa, além de Serviços Auxiliares.199
199 Sobre a questão da imagem no estado novo. Cf: ACHILLES, Aristheu. 1938. ʺO Departamento Nacional de Propagandaʺ, Revista do Serviço Público. Rio de Janeiro, v.4, n.1, out., p. 54‐61. Estudos
156
Além de controlar toda difusão das imagens e fotografias, a Divisão de Divulgação,
também atuava junto à imprensa nacional e estrangeira fornecendo matérias e
imagens, produzidas nessa estrutura do governo, que possuía um arquivo
fotográfico e um laboratório para produzir e distribuir imagens para todos os jornais
do país, além de estar disponível para consulta e uso dos correspondentes
estrangeiros. As imagens difundidas tinham por objetivo produzir um cenário, cuja
dinâmica de transformação justificava a produção de uma documentação fotográfica
que registrasse mudanças. Muitos fotógrafos eram contratados pela administração
pública, e o resultado de seu trabalho era a produção de um conjunto de imagens
sobre a arquitetura brasileira nesse período. A produção de imagens da cidade
privilegiava as transformações urbanas, cenas do cotidiano, de costumes e de festas
representando a visão que a administração pública do período e os seus fotógrafos,
construíram sobre a cidade. Portanto, a produção e o uso das imagens da cidade,
produzidas pelo poder, consistem em uma etapa fundamental para a compreensão
das vias formativas do imaginário urbano da metrópole.
A “Revista São Paulo” e a propaganda ideológica
Nessa esfera de produção, controle e distribuição de imagens fotográficas:
como veículo de propaganda governamental. Destaca‐se, a “Revista São Paulo: orgam
documental das realizações paulistasʺ, que constituiu um dos primeiros veículos de
propaganda política com uma roupagem modernizadora, surgido no período. [imagem
50: p. 182]
A “Revista São Paulo” tinha em sua equipe de redação: Cassiano Ricardo e
Menotti Del Picchia (modernistas/integralistas). E prestava‐se, sobretudo, à difusão
dos feitos políticos do Governador Armando Salles de Oliveira. O formato de revista
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 14, 1994, p.p. 241‐263. Cf: CARVALHO, Maria Cristina Wolff de, e WOLFF, Sílvia Ferreira Santos. Arquitetura e fotografia no século XIX. In: FABRIS. Annateresa, (org). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1999. p.. 298
157
(44x30 cm), favorecia a apresentação de uma qualidade de imagens muito definida e
se destacava por privilegiar a imagem em relação ao texto. Embora os exemplares
não tragam identificações indicando uma participação direta da máquina estatal, a
modernização administrativa e a atuação do Estado são alguns dos eixos temáticos
da revista. Como diferencial e traço distintivo da Revista São Paulo, destaca‐se a
presença da fotomontagem. Na edição das imagens, identificadas pelas
fotomontagens, a estrutura era composta por planos, sendo que o primeiro e o
segundo planos, eram usados como uma ʺmolduraʺ de um elemento de maior valor
visual sobre imagens secundárias. Nesse recurso, a justaposição quase nunca era
natural, pois os elementos possuíam vários tamanhos. Porém, a estrutura utilizada
na fotomontagem tinha o objetivo de conduzir e determinar a leitura do conjunto, e
dessa forma destacar aspectos considerados mais relevantes. 200
A Revista São Paulo, embora voltada para a difusão das atividades do Estado,
enfatizando a presença de uma máquina administrativa ʺmodernaʺ, também centrou
sua atenção sobre a cidade enquanto símbolo. Nesse sentido, a cidade que se
apresentava ao leitor, tinha nos elementos de repetição a tônica do símbolo da
modernização, como por exemplo: edifícios em obras, instrumentos de ação do
Estado e multidões. No primeiro número, a capa apresenta uma fotomontagem com
três imagens que se articulam por justaposição, destacando a imagem do
bandeirante, que parece observar o conjunto formado pelo perfil dos telhados de
galpões industriais e suas chaminés (imagens secundarias). [imagem 49: p 182]
Nesse momento a figura do bandeirante, já se alinha ao tema da construção do
Monumento às Bandeiras201, como símbolo eleito pelos editoriais. Destaca‐se como
conceito da época, o valor da liderança, que por sua vez, é associado diretamente ao
papel do Estado de São Paulo no desenvolvimento nacional, tendo como marco as
200 MENDES, Ricardo. A revista S.PAULO: a cidade nas bancas. Unicamp, 1994. (trabalho apresentado no V Congresso Brasileiro de História da Arte). 201 Monumento às Bandeiras
158
realizações “modernizadoras” na cidade. Dentro de um projeto político nacional que
ficará evidente com a publicação do “Manifesto do Movimento Bandeira.”202
A cidade através desse “olhar” é articulada como um espaço de socialização e
não de produção. As massas que ocupam as imagens são as que estão presentes em
manifestações políticas, como desfiles, eventos públicos, até mesmo o carnaval,
desde que com o apoio oficial e associados à presença do Estado. Dessa forma o
“corpo” da cidade era figurado por suas instituições e as multidões dispostas como
objeto de sua ordenação. Outro símbolo recorrente na publicação da Revista São
Paulo são os edifícios em obras: as construções e a idéia de progresso, pelo viés da
cidade em obras e do crescimento urbano. [imagens 64: p. 187]
Por isso, desde o primeiro número, a imagem inicial é formada por obras de
engenharia civil. A figura ʺedifício em obraʺ e referências à intensa verticalização são
aspectos importantes associados à imagem da cidade. Há uma profusão de
montagens com arranha‐céus, desde o primeiro número, que aparece sob a chamada:
ʺO sentido paulista da vida brasileira quer dizer: organizaçãoʺ .
O destaque para as obras, ou a cidade em construção, expressa o projeto
político da revista, que era a consolidação de uma idéia da cidade em crescimento
que tinha como destaque o caráter empreendedor do governo. Toda simbologia
presente na construção da imagem da cidade de São Paulo, utilizada e divulgada
pela revista, relaciona‐se a uma idéia de natureza controlada, e da identificação da
cidade como um organismo, sendo o espaço urbano identificado como o universo do
trabalho. A cidade de São Paulo é destacada como “o maior centro industrial da
América Latinaʺ, e esse dado será sempre presente nas matérias da revista associado
ao intenso ritmo de crescimento da cidade e ao processo de modernização. Todos os
números da revista, sem exceção, destacam o crescimento da cidade em todos os
aspectos. A simbologia dessa representação de progresso é associada às máquinas, às
ferrovias e ao porto. Na concepção da cidade como espaço de socialização, a revista
sempre enfatiza o aparelho estatal. [imagem 64: p. 187] 202 Movimento Bandeira de 1936 , de filosofia autoritária, que desembocou no Estado Novo.
159
Raramente, o homem aparece, evita‐se a associação de crescimento ao trabalho
humano, sendo essa uma função de máquinas. Por isso, nas raras vezes em que o
homem aparece, está sempre subordinado às máquinas . Nessa estrutura de destacar
aspectos da velocidade e crescimento, a linguagem visual da revista se aproxima dos
elementos valorizados pelos modernistas da década de 20. A revista também revela
uma exaltação ao cinema, expressa no próprio projeto gráfico, apresentando cenas
urbanas na forma de cartazes de filmes e elege a ferrovia como a representação da
máquina do Estado, sendo “São Paulo a Locomotiva do Brasil.” A produção da visão
urbana tem como fundo a mesma idéia do postal, que destaca a imagem de marcos
da cidade e nunca o uso social do espaço urbano. Na representação visual da cidade,
a revista posiciona‐se de forma significativa na produção iconográfica local da
primeira metade do século, tanto no campo da fotografia como da imagem impressa
e se distingue através da formação de um repertório visual sobre a cidade,
enfatizando a valorização de alguns símbolos urbanos, como velocidade e presença
da máquina e novas tecnologias, criando uma simbologia de modernização. A
Revista São Paulo representa um marco dessa produção visual sobre a cidade, que
destaca a paisagem urbana enquanto processo simbólico, relacionado à formação da
“metrópole” e estabelece moldes para a fotografia urbana.
A arte como reveladora de essências
Percebe‐se que em todas essas esferas de representação, seja do artista plástico
ou do fotógrafo, existe uma camada cultural mais especificamente orientada ou
intencionada que determina o gosto, e compreende as idéias sobre arte e preferências
artísticas, conhecimentos técnicos, modos convencionais de representação, normas e
tradições iconográficas e até certas predileções estilísticas comuns a artistas de um
mesmo círculo cultural. Embora também haja casos de concepções artísticas que
escapam à análise conduzida segundo modelos culturais determinados, e que
constitui a contribuição pessoal e inovadora do artista. Porém, na composição do
conteúdo cultural da obra, em relação aos esquemas culturais do tempo, a memória
160
visual do artista em seus processos retém, evoca e utiliza as imagens correspondentes
a fenômenos, cujo significado já se reconheceu na ordem do conhecimento
intelectual. Esses processos de estruturação cultural podem ser perceptíveis através
da arte. No processo chamado de “redução fenomenológica”, coloca‐se entre
parênteses os conteúdos culturais enquanto noções, para apreender ao vivo, a
estrutura que os organiza naquilo que se pode chamar de plano ou de nível da
percepção imediata. Por exemplo, o lugar que diversas culturas destinam à arte em
seus sistemas culturais é exatamente aquele que destinam a “fenomenização” ou
visualização de seus valores. Ou seja, existe uma espécie de narrativa visual na arte,
correspondente ao processo histórico que pode ser reveladora de processos. Nesse
sentido, o ato de “fazer arte”, visto como uma seqüência de operações mentais e
manuais, revela um conjunto de experiências culturais de diferentes origens, que se
compendia na unidade do objeto e se oferece como um todo à percepção. O
dinamismo estrutural da obra de arte é o da relação funcional entre a operação
técnica e o mecanismo da memória e da imaginação. Portanto, o processo artístico
pode ser tão consciente como o processo intelectual e pode revelar através da forma,
as estruturas do pensamento filosófico e científico de cada época.
É sempre a arte avançada e nunca a tradicionalista que indica à historiografia novos campos e novas linhas de pesquisa; é sempre um problema do presente que determina a problematicidade do passado. Não se faz história a não ser dos fenômenos que continuam; Entender um fenômeno significa reconstituir uma série dos fenômenos que o precedem e o motivaram (...) A força da arte está em atingir com interesse atual um ponto do passado e torná‐lo presente. O que se poderia tornar presente seria o passado? Na arte poder‐se ia dizer que nada se cria, tudo renasce.” 203
Nesse sentido, temos no caminho da epistemologia o princípio do “ver para
compreender”. E dessa forma podemos buscar mecanismos para identificar,
interpretar e proteger a cultura, a memória e as identidades, impressas no lugar onde
vivemos.
203 ARGAN. Op.cit. p.37
161
Representações visuais da cidade
O imaginário urbano e seu suporte visual de representação da cidade revela
ao longo de uma tradição de imagens, vários processos históricos, que enfocam a
cidade de acordo com os diferentes períodos. A representação do imaginário visual
da cidade se dá através de cenas urbanas, que são mais do que representações dos
espaços urbanos, pois representam as atividades características da cidade.
Fazendo uma analogia da imagem visual de São Paulo com as referências
extraídas da literatura e das narrativas de lembradores, temos um referencial das
linguagens visuais da modernidade (mas sem enfoque na imagem verbal e sim na
questão do imaginário). Por esse caminho, tentou‐se uma aproximação com a cidade
no período de 1930, dentro das dissonâncias encontradas entre as questões estéticas e
ideológicas. Buscando na representação artística, todas as variáveis da identidade
cultural impressas, através da morfologia urbana.
Se a cidade, tendo na urbanização a revelação de seus processos sociais, deve
ser compreendida dentro da esfera da história social e cultural, a mesma deve ser
considerada como um “ser social” e com isso torna‐se possível buscar o
entendimento de suas representações pela própria sociedade que a institui e que a
transforma continuamente.
Por isso, a cidade em permanente transformação tem relação direta com a
morfologia da paisagem e se relaciona a um conjunto de significações que estabelece
seu universo simbólico.204 Ou seja, os atributos formais do espaço/cidade estão em
consonância direta com as relações sociais que se estruturam a partir do imaginário.
A cidade portanto, deve ser entendida como artefato, como campo de forças e como
imagem. Nesse sentido, podemos situar a cidade como um produto historicamente
produzido, posto que e os espaços e as estruturas da cidade são resultados de esferas
de poder. Considerando, que as relações de dominação produzem diferentes forças
econômicas, políticas, sociais e culturais, em permanente tensão, e a cidade como um
204 MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Morfologia das Cidades Brasileiras: Introdução ao Estudo Histórico da Iconografia Urbana. In: Revista USP, São Paulo (30)) Junho/Agosto 1996. p.p144‐155
162
produto é um vetor desse campo de forças, onde a cultura material é produzida pelas
práticas sociais que se submetem a relações de poder.
Mas, devemos considerar que a cidade é também representação, por isso as
práticas sociais que produzem os artefatos também se reproduzem neles, através das
representações sociais. Dessa forma pode se relacionar a complexidade das imagens
com o imaginário que perpassa pelas questões da memória, da ideologia e da
estética. Sendo assim, a imagem visual nem sempre coincide com a representação.
Porém, a transformação experimentada na cidade, tanto nas atividades
produtivas quanto nas relações sociais, apresenta a imagem como quadros fixos da
memória. Nesse sentido a morfologia deixa de ser um componente da cidade como
ser social, passando a ser apenas uma representação cosmética e artificial, tal qual um
cenário.
As imagens que foram selecionadas para esse estudo, são suportes das
representações. Porém, não se buscou nessa seleção de imagens registros de um
suposto real externo e objetivo, para avaliar a correspondência com as narrativas,
pois isso seria utilizar as imagens como ilustração. A seleção iconográfica objetivou
estabelecer uma construção discursiva através das imagens que, por sua vez,
dependem das formas históricas e da percepção dos conceitos e valores do período.
Para as interpretações, foram consideradas algumas premissas, sendo que a
primeira é que não há polaridades entre real e imaginário, posto que a imaginação é
sempre considerada como uma propriedade marginal e negativa, cuja justificativa
pode estar relacionada a uma tradição do conhecimento.205
Na questão da imagem utilizada como referencial, temos que considerar que o
conceito de verdade é outro tópico, embora o valor da imagem tenha quase sempre 205 A tradição de associar o imaginário ao desprestígio tem sua origem nos gregos antigos que preocupados em conceituar o conhecimento, liberando‐o das aparências do sensível, associaram imaginação à ilusão e engano. A dicotomia real/imaginário só começou a ser superada quando a imaginação ganhou foros de cidadania em fins do século XIX, com os horizontes abertos pela psicanálise, para além dos estados de consciência. Mais tarde, a psicologia, a sociologia, a filosofia e a antropologia viram na imaginação uma fonte geradora poderosíssima. Por isso não há como dissociar a imagem do real e as práticas de representações. Cf. artigo: MENESES, Ulpiano T. Bezerra: Revista USP, São Paulo (30)) Junho/Agosto 1996. p.p 144‐155
163
um caráter probatório. A imagem urbana seria mais “histórica” se pudesse
comprovar a coincidência de traços nela presentes com os dados objetivos da cidade.
Porém, é um equívoco achar que o valor histórico esteja na fidelidade das imagens.
O valor documental das imagens deve referir‐se ao universo das
representações sociais e pela possibilidade de entender o imaginário, e não apenas à
capacidade de confirmação de traços empíricos. Porém essa questão não anula a
necessidade de registrar na imagem traços empíricos, tais como: características
específicas de um certo espaço, arquiteturas, indumentárias, narrativas de ações.
Esse universo de fatos, embora emblemático, não deve substituir de forma
alguma o universo das representações sociais.
Por isso, a cidade não pode ser conhecida profundamente apenas pela
documentação iconográfica, mas sim pelos diversos olhares que a focam por diversos
ângulos e que revelam matizes tão dissonantes e ao mesmo tempo, polissêmicos.
A cidade emerge, por inferências e o olhar pode desvelar universos e
diferenças. O olhar, portanto, institui seu próprio objeto. Mas a imagem não só é
instituída historicamente, como é também referencial do dimensionamento histórico,
estabelecido através do estudo do circuito de suas variáveis. Nesse sentido, o artista,
pode ser tanto um interprete como um construtor da realidade social, pois ele
consegue atingir os universos simbólicos que ordenam as histórias e que estabelecem
as memórias em relação ao passado que serão partilhadas pela coletividade.
Na análise das imagens selecionadas, por se tratar de um conjunto muito
diversificado de estudos voltados ao entendimento da cidade de São Paulo nos anos
30, foi necessário estabelecer cortes na investigação, sem que isso representasse
perdas na confrontação de imagens do período pela vertente modernista e
nacionalista, que esteve dos dois lados do poder, como atuante e como representante.
Por isso, optou‐se por um recorte, que perpassa por algumas das principais
vertentes que situam a questão da produção das imagens no período analisado.
Porém, não foram aprofundadas as investigações acerca das fontes
selecionadas, posto que as mesmas foram apresentadas com o objetivo de somente
164
mapear a produção de imagens de origens diferenciadas, quer seja de associações de
artistas, ou relacionadas a um ideário de difusão propagandística do Estado Novo.
Sendo que o critério de seleção foi o mesmo para todas as fontes: a temática da
cidade de São Paulo, analisada sobre os contrastes da representação e suas diferentes
nuances. Na seleção das imagens procurou‐se captar a ambiência cultural e a
dinâmica do cotidiano da cidade, para que dessa forma fosse possível levantar um
panorama de imaginários simbólicos sobre a cidade.
165
Imagens, Imaginários e Representações
Imagem 1 MUSA, João. Pátio do Colégio ‐ s/d – fotografia p/b. Fonte: O centro de São Paulo. Catálogo da Bolsa de Mercadorias e Futuros, 1996.
Imagem 2 BENEDITO, Nair . Rua Libero Badaró s/d ‐ Fotografia p/b O centro de São Paulo. Catálogo da Bolsa de Mercadorias e Futuros, 1996.
166
Imagem 3 BENEDITO, Nair. Pátio do Colégio ‐ s/d – Fotografia p/b Fonte: O centro de São Paulo. Catálogo da Bolsa de Mercadorias e Futuros, 1996.
Imagem 4 ROSENTHAL. Hildegard. Praça Ramos de Azevedo , 1940. Monumento a Carlos Gomes. Pormenor Evocativo da Ópera Condor (Escultor Luigi Brizzolara). Fotografia p/b
167
Imagem 5 FIGUEIREDO, Fabiana. Praça da Sé s/d ‐ Fotografia p/b O centro de São Paulo. Catálogo da Bolsa de Mercadorias e Futuros, 1996.
Imagem 6 FIALDINI. Rômulo. Rua 15 de Novembro s/d ‐ Fotografia p/b Fonte: O centro de São Paulo. Catálogo da Bolsa de Mercadorias e Futuros, 1996.
Imagem 7 FIALDINI. Rômulo. Rua 15 de Novembro s/d ‐ Fotografia p/b Fonte: O centro de São Paulo. Catálogo da Bolsa de Mercadorias e Futuros, 1996.
168
Imagem 8 Getúlio pai dos pobres Fonte: CPDOC/ FGV
Imagem 9 Fonte: CPDOC/ FGV
Imagem 10 Álbum Getúlio para crianças Fonte: CPDOC/ FGV
169
Imagem 11 ROSENTHAL. Hildegard. Bonde na Praça do Correio , 1940. ‐ Fotografia p/b Fonte: Cenas Urbanas. Catálogo do Instituto Moreira Salles. s/d
Imagem 12 s/a. Brincadeiras na Rua, s/d Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 13 fotografia – homem da vassoura Fonte: NOVAIS, Fernando, ALENCASTRO, Felipe (org). História da Vida privada no Brasil – vol 2 . São Paulo: Cia das Letras, 1999.
Imagem 14 [S.n] Rua da Abolição 124, São Paulo, s.d. Cortiço no Bexiga. Fonte: NOVAIS, Fernando, ALENCASTRO, Felipe (org). História da Vida privada no Brasil – vol 2. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
170
Imagem 15 VOLPI, Alfredo. Procissão – 1940 óleo sobre tela Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 16 PRADO, Carlos. Procissão – 1941 óleo sobre tela Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
171
Imagem 17 fotografia ROSENTHAL. Hildegard. Zona Cerealista ‐ Ao fundo, o Mercado Municipal, 1940. fotografia p/b. Fonte: Cenas Urbanas. Catálogo do Instituto Moreira Salles. s/d
Imagem 18 fotografia ROSENTHAL. Hildegard . Pontos de Encontro ‐ Feira Livre, 1940. fotografia p/b.Fonte: Cenas Urbanas. Catálogo do Instituto Moreira Salles. s/d
Imagem 19 fotografia ROSENTHAL. Hildegard . Zona Cerealista – á esquerda, o Mercado Municipal. A feirante com suas compras aguarda o bonde , 1940. fotografia p/b. Fonte: Cenas Urbanas. Catálogo do Instituto Moreira Salles. s/d
172
Imagem 20 fotografia [s.n]. Largo da Memória, São Paulo, 1914. fotografia p/b. Piques. Lugar onde se organizavam os leilões de escravos. Fonte: NOVAIS, Fernando, ALENCASTRO, Felipe (org). História da Vida privada no Brasil – vol 2 . São Paulo: Cia das Letras, 1999.
Imagem 21 fotografia [s.n].Edifício Martinelli e Zepellin. São Paulo, 1938 Fonte: NOVAIS, Fernando, ALENCASTRO, Felipe (org). História da Vida privada no Brasil – vol 2. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
173
Imagem 22 AITA, Zina. Homens Trabalhando, 1922.
Imagem 23 AMARAL, Tarsila. São Paulo [Gazo], 1924 Coleção Particular Reprodução fotográfica: Romulo Fialdini
Imagem 24 AMARAL, Tarsila. São Paulo, 1924 Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo/Brasil Reprodução fotográfica: Romulo Fialdini
174
Imagem 25 PORTINARI, Cândido. Mestiço, 1934. Óleo sobre tela.
Imagem 26 GUIGNARD. Família do Fuzileiro Naval, 1938. Óleo sobre tela. Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP
Imagem 27 GUIGNARD. A. Os noivos, 1937. Óleo sobre tela. Museus Castro Maya ‐ IPHAN/MinC (Rio de Janeiro)
175
Imagem 28 SEGALL, Lasar. 1932 . Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 29 SEGALL, Lasar. Mãe Negra, 1930. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 30 SEGALL, Lasar. Paisagem Brasileira , 1925. Óleo sobre tela. Museu Lasar Segall ‐ IPHAN/MinC (São Paulo, SP) Reprodução fotográfica: Romulo Fialdini
176
Imagem 31 VOLPI, Alfredo. Esquina, 1932. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 32 VOLPI, Alfredo. Feira do Cambuci , 1930. Óleo sobre tela Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 33 REBOLLO, Francisco. Casa terraço, 1937. Óleo sobre tela Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
177
Imagem 34 REBOLLO, Francisco. Praça Clóvis, 1944. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 35 REBOLLO, Francisco. Rua do Carmo, 1936. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 36 PENACCHI. O Circo, 1942. Óleo sobre tela Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
178
Imagem 37 CARVALHO, Flávio de. Viaduto Santa Ifigênia à noite, 1934. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 38 CARVALHO, Flávio de. A Inferioridade de Deus, 1931. Óleo sobre tela. Coleção Gilberto Chateaubriand ‐ MAM RJ Reprodução Fotográfica: Paulo Scheuenstuhl
Imagem 39 GRAZ, John – 1927. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
179
Imagem 40 AMARAL, Tarsila. Casamento, 1940. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 41 PANCETTI. O Enterro, 1945. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 42 GOBBIS, Vittorio. Interior: Projeto de Decoração para Baile Carnavalesco em São Paulo, 1937. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
180
Imagem 43 ABRAMO. Vila Operária, 1935. Serigrafia. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 44 ABRAMO. Meninas de Fábrica, 1935. Serigrafia. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 45 PRADO, Carlos. Varredores de Rua, 1935. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
181
Imagem 46 pintura REBOLLO. Lavadeiras, 1937. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 47 pintura DI CAVALCANTI. Mulheres Protestando, 1941 Óleo sobre tela. Coleção Particular Reprodução fotográfica: autoria desconhecida
182
Imagem 48 pintura ADAMI, Hugo Fábrica, 1930. Óleo sobre tela. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida
Imagem 49 fotomontagem O Bandeirante ‐ Revista São Paulo ‐ 1936 (1ª Capa) Fonte: Arquivo CPDOC ‐ FGV
Imagem 50 fotografia Sentido paulista da vida brasileiraʺ n.1 ‐ Revista São Paulo ‐ jan.1936 Fonte:Arquivo CPDOC/FGV
183
Imagem 51 pintura PRADO, Carlos. A Fila, 1943. Óleo sobre tela. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
Imagem 52 ‐ pintura CARNICELLI, Mick. Rua Apa, 1944. Óleo sobre tela. Reprodução fotográfica: autoria desconhecida. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo/Brasil.
Imagem 53 DI CAVANCANTI. Seresta, 1930 . Coleção Particular. Reprodução fotográfica: Romulo Fialdini.
184
Imagem 54 PRADO, Carlos. Violeiros, 1932. Óleo sobre tela. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
Imagem 55 MARTINS, Manuel. Feira ‐ s/d. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
Imagem 56 MARTINS, Manuel. Alto da Cantareira, 1937. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
185
Imagem 57 MARTINS, Manuel. Praça da Sé, 1940. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
Imagem 58 ZANINI. Tietê, 1940. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
Imagem 59 ZANINI. Rua com figuras, 1939. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
186
Imagem 60 PANCETTI. Paisagem de Rua de Santana, 1939. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
Imagem 61 REBOLLO. Arredores de São Paulo, 1938. Óleo sobre tela. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
Imagem 62 ZANINI. Vista da Ponte Grande, 1935. Óleo sobre tela. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
Imagem 63 MARTINS, Manuel. Vista da Vila ‐ s/d. Óleo sobre tela. Reprodução Fotográfica: autoria desconhecida.
187
Imagem 64 fotografia Cartões postais exaltando as realizações do governo Vargas, editado pelo DIP, 1937/1945. Rio de Janeiro. CPDOC/ FGV.
Imagem 65 Escolas desfilam na Quinta da Boa Vista comemorando o Dia da Pátria, 1943. Cartões postais exaltando as realizações do governo Vargas, editado pelo DIP, 1937/1945. Rio de Janeiro. CPDOC/ CDA Vargas.
Imagem 66 Manifestação cívica, no Dia do Trabalho, em homenagem a Vargas, 1941. Cartões postais exaltando as realizações do governo Vargas, editado pelo DIP, 1937/1945. Rio de Janeiro. CPDOC/ FGV.
188
Imagem 67 Cartões postais exaltando as realizações do governo Vargas, editado pelo DIP, 1937/1945. Rio de Janeiro. CPDOC/ FGV.
Imagem 68 Cartões postais do governo Vargas, editado pelo DIP, 1937/1945. Rio de Janeiro. CPDOC/ FGV.
Imagem 69 A Sinfonia da Metrópole ‐ Revista São Paulo. s/d. Fonte: NOVAIS, Fernando, ALENCASTRO, Felipe (org). História da Vida privada no Brasil – vol 2. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
189
Considerações Finais O estudo das relações entre arte e sociedade, que se estruturou nessa pesquisa
através do olhar, foi buscar no campo simbólico e imaginário, as diferentes
representações da cidade, reveladas através da memória narrativa e visual, para
interpretar a relação “lugar‐identidade” e a construção dos sentidos.
Através das representações, buscou‐se adentrar no universo simbólico por
atalhos do imaginário, encontrados na história “vista por dentro”, no cotidiano e nos
diferentes olhares, que revelaram a cidade por diferentes realidades, através de uma
incursão pelos espaços das memórias esquecidas.
Buscou‐se entender esses diferentes “olhares”, por vários ângulos, dentro da
perspectiva da história, da arte, do intelectual, do político, do artista e da diversidade
de origens do habitante daquele espaço‐tempo que se transportam no tempo através
da lembrança. Nessa trajetória, considerou‐se a memória por suas vertentes:
individual, coletiva e oficial (ou introjetada). Sendo que a individual parte de quem
lembra; a coletiva refere‐se ao sentimento da lembrança de todos, ou da referência
comum, relativos a um grupo e uma temporalidade ou ciclo de vida; e a oficial, são
as memórias produzidas e disseminadas pelo poder, sempre apoiadas em discursos
dominantes e na formatação de verdades, que circulam como absolutas, geralmente,
ancoradas em cientificismos.
Essas diferentes facetas da memória foram confrontadas na tentativa de
interpretar aspectos da cidade, e revelaram uma rede de polimorfias e polissemias do
espaço urbano. Nesse sentido, a construção da imagem da cidade de São Paulo,
apresentou várias fases contrastantes, mesmo estando vinculada a um projeto de
elaboração da identidade nacional.
Os critérios utilizados para a construção das idéias de unificação simbólica se
estabeleceram a partir das rupturas, desencadeadas pelas chamadas vanguardas
artísticas. Sendo que, a cidade de São Paulo se transformou no espaço “ideal”, ao se
adequar a uma estética futurista, que correspondia tanto ao ideal modernista quanto
190
ao projeto modernizador: se conformando numa imagem de cidade do futuro, do
movimento, das máquinas e do crescimento.
A concepção de uma identidade coletiva foi elaborada sistematicamente a
partir da ação política do Estado, que se valeu amplamente das mudanças
provocadas pelo modernismo, como a busca por referências nacionais, para elaborar
seu projeto modernizador para o Brasil. Com isso, a memória coletiva da nação
definiu‐se estreitamente vinculada à construção de uma história e de uma estética
brasileiras, com traços distintivos, porém ambíguos. Se por um lado buscou‐se
encontrar traços que particularizassem o Brasil, tanto na simbologia passadista como
na natureza e nos manifestos de retorno, por outro lado, foram desenvolvidos seus
ícones particulares, inspirados em cientificismos e modelos ideais, na dinâmica das
novidades atreladas à concepção de modernidade. O projeto de (re)construção da
história nacional, como vimos, envolveu a produção cultural entrelaçando
“modernismos e nacionalismos”.
No campo da representação e identificação do lugar, as representações oficiais
desses ideais de modernização, desenvolveram‐se pela disseminação da idéia
“progresso”, voltada para uma exaltação do urbano e da metrópole como a
representação do crescimento e das oportunidades.
Na esfera dos modernismos e suas dissidências, vimos que todas as questões
acerca da arte e da cidade, transitaram entre o plano estético ligado às
transformações da cidade, e os modos de vida urbano, relacionados a uma visão
vinda de fora, até mesmo para estabelecer diferenças. Mesmo no processo de
reinvenção do nacional e no desenvolvimento de traços particulares, o olhar
legitimador era sempre “estrangeiro”. Com isso, verificou‐se que, a já consolidada
“tradição de negação de raízes”, mesmo em plena busca por critérios particularistas
nacionais, foi reforçada pelo governo. Na esfera dessa rejeição dos valores que não
interessavam, negavam‐se origens, etnias, lugares, traços, fatos, artes, memórias. E
uma nova memória era construída no espaço urbano, através dos deslocamentos e re‐
significações e dos marcos de lembranças difundidos.
191
Olhando todo esse quadro cultural pela dicotomia dominante/dominado,
percebemos que a cultura dominante sempre suprime o que não quer do outro e
extrai o que se pode “aproveitar”. Nesse contexto, percebemos as estratégias de
conformação social, nas políticas públicas e nos projetos de urbanização.
Um dos exemplos mais claros dessa questão pode ser revelado nas medidas
adotadas para o “branqueamento da população brasileira”, que se estabeleceu no
século XIX, e originou a vinda da mão‐de‐obra européia. Percebe‐se, no período, que
ao mesmo tempo em que ocorre a abolição da escravidão, se estabelece de forma
quase imediata, a negação da mesma. Isso se revela nos detalhes, como, por
exemplo, na letra do Hino da República em 1890, carregado por emoções
progressistas e sem a menor preocupação com a realidade: “Nós nem cremos que
escravos tenha havido outrora, em tão nobre país” [apud] 206. Esse dado se relaciona
diretamente a primeira fase da criação dos símbolos nacionais, alinhada aos
cientificismos que privilegiam as teorias raciais e que, por sua vez, embasaram os
totalitarismos. Nesse período já há uma clara negação do que não se deve lembrar.
Dentro dessa dinâmica, que chamamos de “tradição de negações” na Era Vargas,
houve uma sistematização do que veio a se chamar: “nacionalismo pedagógico”,
onde vários segmentos no aparelho administrativo governamental, foram os
responsáveis pela disseminação de estratégias para a eliminação de representações
da chamada cultura popular, ao mesmo tempo em que se utilizaram de elementos
desse mesmo universo popular, adaptados para a cultura de massas e estruturados
em representações produzidas com finalidades coercitivas. Ou seja, ao mesmo tempo
em que se proíbe manifestações de culto africano, o mestiço é eleito como a
representação do brasileiro e o samba como a música nacional.207
Na leitura do imaginário, os rituais e a cultura popular foram, em alguns
aspectos, incorporados pela ideologia coercitiva implantada pelo poder público, de
acordo com as conveniências de uso de origens e tradições. Nesse sentido, muitos
206 CANCLINI, op.cit. 207 Cf: VIANA, Hermano. O Mistério do Samba, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/ UFRJ, 1989
192
mitos foram resgatados e utilizados no sentido de reforçar as estruturas de poder.
Por isso, para tentar entender aspectos do imaginário, foi necessário “desconstruir”
essas idéias e imagens nacionais e buscar nas simbologias o que restou dessas fontes
populares. Foi através da arte que escapou ao controle e também das memórias
afetivas, que a cultura popular pôde preservar suas referências.
Vimos, portanto, que na narrativa oficial da nação, as instituições da
memória, os documentos, os monumentos e as imagens são, em sua maioria,
produtos com finalidades de controle, que criaram uma dinâmica de invenção de
tradições, onde o que funciona é a repetição do que é autorizado para lembrar, e o
que não interessa será excluído dos registros oficiais. Para exemplificar, verificamos
que a memória afro‐brasileira quase não tem registros históricos na cidade de São
Paulo. Os espaços da escravidão, assim como os espaços dos ritos afros, foram
proibidos, apagados, esquecidos. Não faz parte da tradição historiográfica oficial
registros sobre o local do mercado de escravos, o pelourinho, ou onde as etnias
africanas moravam e como se re‐inseririam numa sociedade em que foram excluídos
e negados. Nesse sentido, o que foi negado, apagado, reinventado, somente
sobreviveu na esfera cultural, nas malhas do simbólico e na tradição oral. Até a
toponímia das cidades é modificada de acordo com as intencionalidades. Mas, ainda
assim, sobrevive na memória popular. No urbanismo esse fator se deu através da
supressão dos lugares de memória africana ou de aglomeração e miscigenação étnica,
que não eram aceitos pelos padrões, e que foram removidos através de medidas
chamadas “higienistas”. Como também dos estrangeiros indesejáveis, e toda a leva
dos que não “interessam” aos ideais de nação que estão sendo formatados.
Sendo assim, os valores e memórias, desprovidos de forças, são os lugares do
esquecimento e da transculturação. Muda‐se o nome do lugar, o contexto, deslocam‐
se os indesejados, inventam‐se memórias, constroem‐se tradições.208
208 Ao contrário de parte dos registros iconográficos dos cenários urbanos dispostos sem que houvesse a presença de gente, as imagens das habitações populares feitas na época[...]por vezes flagram detalhes das construções e das atividades cotidianas, no geral mulheres envolvidas na lavagem de roupas na espécie de quadrilátero central, e sugerem o que havia de mais significativo na organização
193
Dentro desses exemplos, situa‐se a idealização do brasileiro, elegendo o
mestiço, como a raça forte, o herói nacional, numa linguagem emblemática, diante da
constatação da impossibilidade de realização do que se idealizou no século XIX, de se
construir de uma nação de brancos, (e para isso várias políticas instauraram seus
métodos). A representação do brasileiro ideal passa a ser a do “mestiço com carimbo
nacional”. Mas, ainda assim, o preconceito resiste e transparece na forma cosmética,
na publicidade, e mais uma vez revela essa tradição de negações de origens. [imagem
25: p. 174]
Portanto, a identidade nacional foi disseminada dentro da idéia de uma nação
que tinha um povo forte, pacífico, norteado pelos valores e qualidades dos
bandeirantes e unidos pelo mesmo governo. Sendo assim, o bom brasileiro deveria
ser branco ou o “mestiço ideal”, desde que católico, trabalhador, pacífico, forte,
cordial, alienado e obediente.
A estrutura da construção da idéia de um universo de pertencimento, que se
proliferou criando mecanismos legitimizadores do poder, foi estabelecida por
camadas, começando pelos mecanismos de reprodução de valores, que foram
disseminados e controlados pelo Estado, responsável por definir e difundir as
representações convenientes e as memórias autorizadas. Essas camadas de poder e
de dominação cultural estavam tão enraizadas em preconceitos que segregaram
expressões culturais, criando mecanismos de padronização do pensar, e com isso
promoveram uma espécie de “transculturação”. 209
Mas, a cultura popular, mesmo assim, ainda resiste na segregação, na periferia
e no isolamento, na organização dos modos de viver e na tradição oral.
de suas vidas: o convívio apertado pela pobreza, a mistura de gerações, as atividades feitas em conjunto [...] vislumbres de uma cultura urbana e popular nascida na composição multiétnica das cidades da época. Cf: WISSENBACH. M. Cristina. Da escravidão à liberdade dimensões de uma privacidade possível. In: NOVAIS F. e SEVECENKO. N.(orgs.) Historia da Vida Privada. Vol. 3. São Paulo: Cia das Letras, 1998. 209 BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira e culturas brasileiras. In: A Dialética da Colonização. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
194
Na concepção antropológica da cultura podemos perceber os fenômenos
simbólicos pelos quais se exprimem a vida brasileira, que é o imaginário do povo,
desde os ritos indígenas, africanos, expressos nas festas populares e manifestações de
religiosidade. Essas micro‐instituições culturais resistem e conseguem se estabelecer
na contramão das culturas oficializadas, pois sobreviverem nos hábitos suburbanos e
rústicos, nas culturas indígenas, negras, caboclas, escravas, na força das culturas que
se produziram sob o peso da dominação. São nessas memórias sobreviventes, que
encontramos os resíduos que resistem ao tempo e aos mecanismos de negação e de
coerção, impostos pelo sistema dominante.
[...] é preciso reter o conceito antropológico do termo cultura
como conjunto de modos de viver, de ser, pensar e falar, de uma dada
formação social; e ao mesmo tempo, abandonar o conceito de cultura
como mundo da produção escrita provinda de instituições de ensino e
pesquisa superiores, pois a cultura restrita ao ambiente acadêmico é,
geralmente, desprovida de vivências situando‐se numa esfera que
produz discursos marcados, tematizados, tecnicistas e excludentes.210
Nesse sentido, cabe repensar o processo de formação da cultura erudita, que
viveu e ainda vive sob o limiar da escrita e da vertente culta e de fundo colonizador,
que acabou por estigmatizar a cultura popular como correspondente aos estados de
primitivismo, atraso, demora, subdesenvolvimento. Esse olhar distanciado, ainda
persiste nas esferas do saber autorizado.
Por sua vez, a cultura de massas é o que rege a sociedade de consumo e dita
padrões de comportamento através da difusão da informação, onde os bens
simbólicos são fetichizados e o desejo é incentivado pelos meios de difusão. A
imagem e a comunicação do que vem de fora são consumidas maciçamente (e o olhar
de fora ainda é legitimador do ideal), e determina os modos de comportamento, a
moda, a organização do cotidiano. Por isso, a cultura para as massas também tem
210 BOSI, Alfredo. Passim.
195
como estratégia negar origens e raízes etnicamente dominadas e criar escalas de
valores de acordo com critérios de padrões de vida considerados “melhores” numa
escala medida pelos padrões de consumo. Essa indústria cultural se estruturou
através de instituições do próprio Estado, cuja finalidade era transmitir
conhecimento e proporcionar um lazer controlado que selecionava, segregava e
incentivava a produção industrial e o consumo de bens, aceleradamente. Mas faz‐se
necessário considerar as imbricações entre essas duas culturas (popular e erudita)
dentro de esferas ideológicas e carregadas de preconceitos. Nesse panorama, criou‐se
uma representação forjada da cidade e do cotidiano, com uma iconografia fabricada e
superficial. Porém, fora dessa “oficialidade” das memórias permitidas, temos um
universo a ser desvelado que “supervive” fora da padronização, e que pode ser
interpretado por detrás das aparências, pois se encontra no imaginário, ou no
conceito antropológico de cultura:
Uma teoria da cultura brasileira, se um dia simbólica cultura existir, terá como sua matéria prima o cotidiano físico, simbólico e imaginário dos homens que vivem no Brasil, Nele sondará teores e valores. Na cultura popular não existem divisões entre a esfera material da existência e a esfera espiritual ou popular implica os modos de viver, o alimento, o vestuário, a relação homem‐mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as relações de parentesco, a divisão das tarefas durante a jornada e simultaneamente, os cantos, as danças, as crenças, os jogos, a caça, a pesca, o fumo, os provérbios, os modos de cumprimentar, as palavras tabus, os eufemismos, o modo de olhar, o modo de sentar, o modo de andar, o modo de visitar e ser visitado, as romarias, as promessas, as festas do padroeiro, o modo de criar galinha e porco, os modos de plantar feijão, milho, mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de rir e chorar, de agredir e consolar. (211)
Porém, na atualidade, a cultura popular em muitas instâncias foi reduzida em
macumba pra turistas, na expressão de Oswald de Andrade212. Esse dado, na esfera
211 BOSI, Alfredo. 2000, op. cit. p.324. 212 Expressão de Oswald de Andrade na crônica ʺBilhete abertoʺpublicada no Correio da Manhã, nos anos 40. O C. R., a quem ele se dirige, é nada mais nada menos que o poeta Cassiano Ricardo, então diretor do DIP, departamento de imprensa e propaganda do governo getulista, que exercia a função de censor dos meios de comunicação.
196
contemporânea, aparece claramente na produção de “souvenirs made in Brasil”, pois
o poder econômico parece ter abolido manifestações reduzindo‐as à função de
“folclore/espetáculos para turismo” e de ter “industrializado” até o artesanato. Mas
ainda há um caminho, apesar do uso abusivo que a cultura de massas faz da cultura
popular, ela ainda não foi capaz de interromper o dinamismo da vida arcaico
popular, que resiste na re‐interpretação dos elementos do imaginário. E nesse
caminho, é possível re‐estabelecer relações entre o artista e a vida popular pelas
estéticas simbólicas.
Segundo a análise de Canclini213, a modernidade considera que as divergências
político‐ideológicas estão no acesso desigual aos bens. Esse questionamento se
estabelece na incerteza, em relação ao sentido e ao valor da modernidade, que deriva
dos cruzamentos socioculturais em que tradição e modernidade se misturam. Sendo
assim, a modernização passa a ser uma força dominadora que opera por substituição
do tradicional e se reflete nos processos políticos. Nessa dinâmica analítica, percebe‐
se que tanto na esfera das tradições quanto da modernização, buscou‐se a construção
de “objetos puros”. Ou seja, os tradicionalistas pensaram a cultura da perspectiva
nacional e popular, vista como autêntica, procurando preservá‐la. Já os
modernizadores conceberam a arte pela arte, o saber pelo saber, sem fronteiras
territoriais e confiando à experimentação suas fantasias de progresso. As diferenças
entre esses campos e a estrutura de organização de bens e instituições criaram uma
divisão dos lugares da cultura. O resultado disso está na constatação de que o
processo de modernização fortaleceu a indústria cultural e diminuiu o papel das
culturas, tanto erudita quanto popular, promovendo transformações através do
modernismo cultural e da modernização social, que foi um estratagema usado na
formatação das metrópoles. Porém, é fato que a cultura de massas promove uma
espécie de fusão do erudito com o popular para criar a raiz de uma força coercitiva.
213 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. Trad. Heloísa Cintrão. São Paulo: Edusp, 1997.
197
Nesse sentido buscamos olhar para o “lugar da cultura” para questionar as
categorias e tentar entender as diferentes e contrastantes concepções da modernidade
que se reflete nas artes, na arquitetura e na economia.
A modernidade é vista como uma máscara. Um simulacro urdido pelas elites e pelos aparelhos estatais, sobretudo, os que se ocuparam da arte e da cultura, mas que por isso mesmo os torna irrepresentativos e inverossímeis. As oligarquias liberais que no final do século XIX e início do XX, teriam feito de conta que constituíam Estados, mas apenas organizaram algumas áreas da sociedade para promover um desenvolvimento subordinado e inconsistente; fizeram de conta que formavam culturas nacionais e mal construíram culturas de elite, deixando de fora enormes populações indígenas e camponesas que evidenciam sua exclusão e em mil revoltas e na migração que “transtorna” a cidade. Os populismos fizeram de conta que incorporavam esses setores excluídos, mas sua política igualitária na economia e na cultura, sem mudanças estruturais, foi revertida em poucos anos ou se diluiu em clientelismos demagógicos. 214
Porém, o caminho do entendimento tem que perpassar pela desconstrução
dessa tradição de negações, que dissemina “cegueiras” e tentar viabilizar condições
para que memórias apagadas se manifestem e encontrem seu espaço, assim como as
questões identitárias sejam desmascaradas, e as diferenças e desigualdades sejam
revistas por um olhar atento, sensível e revelador que permita ver o outro sem a
máscara da indiferença ou da competitividade. Nesse caminho, a arte é um dos
grandes tipos de estrutura cultural e sua análise deve dizer respeito à matéria e ao
processo, pois em cada objeto se reconhece um sentimento das noções que o artista
tem em comum com a sociedade da qual faz parte. Ainda que a arte seja usada como
instrumento político, ela será sempre reveladora. Assim como a cidade, palco das
mudanças históricas, onde o que se preservou e/ou se modificou são referências para
entender as mudanças que se perpetraram ao longo dos tempos. Por isso, a
preservação das diferenças e das identidades da cidade, são aspectos muito
importantes. A cidade apesar de ser um produto cultural não é uma mercadoria,
como tem sido vista na contemporaneidade, pelos que não se atêm ao fato de que, o
214 CANCLINI.Nestor Garcia. Op.Cit. p‐23
198
deslocamento/expulsão da população dos lugares empobrece a identidade dos
bairros e gera deslocamentos irreversíveis. Desse modo, criam‐se operações que
transcendem a questão da arte na esfera estética, e passam por estratégias que
definem posições, através de construções culturais que são condicionadas por
agentes que transcendem o artístico e o simbólico. Se o processo de modernização
diminuiu o papel do erudito e do popular tradicionais, na atualidade isso se
repercutiu intensamente na lógica de mercado, que tem como tônica dominante a
espetacularização que a mídia promove, e a arte passa da esfera do estético para uma
esfera mercadológica e vai sendo moldada por diversas estratégias, seja da ordem
culta ou popular, de acordo com a forma que seus próprios teóricos a projetam e
definem seu lugar social. A cultura de massas, por sua vez, origina a obsessão pelo
consumo, por promover a substituição e/ou barganha dos afetos e do
reconhecimento, e se transmuta no poder da aquisição de bens e na competitividade,
causando uma rede de equívocos e de violências, que são geradas por essa vertente
do pensamento contemporâneo e que se refletem de forma “trágica” em todo quadro
social. Nesse sentido, as cidades sob domínio do capital e desprovidas de memória
poderão se transformar em enormes shopping centers, dominadas pela arquitetura
capitalista e pelo rito do consumo. Embora, a fidelidade das representações da
cultura e da arte popular tenham se comprometido em face as inúmeras fusões do
erudito e da cultura de massas, elas revelam uma sociedade onde as diferenças e
dissonâncias estão na regência das interações. Por isso, não podemos perder o olhar
que apreende as transformações do mundo e que refaz as identidades muito mais
sob o elo das vizinhanças e das afinidades do que por fidelidade às origens e
tradições. Através das possibilidades abertas pelo caminho da transdisciplinaridade
as cidades, a cultura, a identidade, a memória e conseqüentemente o patrimônio, têm
que ser repensados215.
215 Cf. MORIN, Edgar. A cabeça bem‐feita: Repensar a reforma e reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
199
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