8/13/2019 a curadoria de exposies
1/17
Marilcia Bottallo
38 concinnitas
Panorama da Arte Brasilei ra, 1995(Aspecto da montagemcomos painis emforma de xis)Fonte: Arquivo MAM-SP
Foto: Rejane Cintro
8/13/2019 a curadoria de exposies
2/17
39
A curadoria de exposies
ano 5, nmero 6, julho 2004
A curadoria de ex
posies de arte moderna econtempornea e sua relao com a
museologia e os museus
Marilcia Bottallo*
Opresente artigo pretende analisar a questo da curadoria
de exposies de arte moderna e contempornea priorizando
a relao entre a produo artstica e o pblico intermediada
pelo museu. Propomos, como objeto de observao e
anlise, a realidade institucional doMuseu de Arte Modernade So Paulo e, mais particularmente, de duas exposies
especficas por meio da presena do curador como elemento
essencial no estabelecimento de discusses artsticas pelo
recorte curatorial.
Curadoria, museus, arte contempornea
Oconceito de curadoria que assumimos entendido como uma interfernciaativa e que forma parte do exerccio museolgico, j que a idia de recorte
uma das essncias tanto do processo colecionista como do expositivo. O
curador , nesse caso, ummediador que se caracteriza por sua influncia na
possibilidade de viabilizar o processo de produo de sentidos por meio das
exposies museolgicas.1
As duas exposies escolhidas como objeto de anlise marcamfases distintas
da produo artstica j institucionalizadas em So Paulo: moderna econtempornea. Enquanto a exposio de abertura do MAM-SP em1948, Do
Figurativismo ao Abstracionismo, comcuradoria de Lon Degand procura introduzir
a discusso sobre as renovaes plsticas emcurso na Europa por meio do
abstracionismo como forma de expresso, o Panorama de Arte Brasileira 1995
marca ummomento emque as linguagens plsticas contemporneas j possuem
aceitao institucional. Ambas cobremperodos distintos da prpria instituio
o primeiro gerido por Francisco Matarazzo Sobrinho at seu fechamento e doaoda coleo para a Universidade de So Paulo, e o segundo correspondente a uma
nova reabertura do museu e o reincio do processo colecionista que acentua o
novo perfil do MAM-SP ps-1963.
De acordo comWaldisa Rssio, museologia a cincia que busca estudar e
compreender os fenmenos vinculados ao fato museal que se caracteriza e
como a relao profunda entre o ser humano, sujeito que conhece, e o objeto,
parte da realidade qual o ser humano tambmpertence e sobre a qual temopoder de agir, relao esta que se processa emumcenrio institucionalizado e
ideal: o museu.2O museu no apenas umambiente receptculo dessa
possibilidade de relao , mas condio para sistematizar as formas de apreenso
* Marilcia Bottallo museloga especialista emDocumentao Museolgica do Museu deArqueologia e Etnologia da USP e professora docurso de Especializao emMuseologia do MAE-USP, mestre em Artes pela Escola deComunicaes e Artes da USP, membro doConselho de Orientao Artstica da Pinacotecado Estado de So Paulo.
1 Na verdade, h vrias definies do perfil docurador e da atividade curatorial dependendo dopas emque se inscreveme do tipo de museuemque atuam. Na Frana, Sua e alguns outrospases europeus identificada como a atividadepor excelncia do conservateur, e este pode,inclusive, dirigir umdepartamento ou a prpriainstituio. Empases como Estados Unidos eCanad o curator tem funes prximas s doconservador europeu. Assim, somente ao longo
dos anos 90, surge uma especificidade daatividade do curador na qual esse profissionalpassa a ser o responsvel pelo estudo dascolees objetivando a realizao de exposies.Restringindo-nos s atividades de pesquisa eextroverso da arte, via exposio (museolgica),o conjunto de aes que determinama curadoriadefine diferentes tipos de profissionais a partir,de um lado, do carter de seu vnculo comainstituio museolgica e, de outro, pelasmostras que organiza: temporrias ou de longa
durao; de acervo ou no.2 Rssio, Waldisa. Conceito de Cultura e sua inter-relao com o patrimnio cultural e apreservao. Cadernos Museolgicos. Rio deJaneiro, IBPC, 1990, p. 7.
8/13/2019 a curadoria de exposies
3/17
Marilcia Bottallo
40 concinnitas
do conhecimento e de recriao das diversas memrias, apresentando sua
interpretao sobre os fenmenos da realidade.3
A museologia, nesse caso, trabalha com o fenmeno de linguagens
sobrepostas, quais sejam: a museolgica e a artstica. Se assumirmos que,
nesse caso, uma linguagemcaracteriza-se pela operacionalizao da capacidade
de associar e produzir signos e estes, entendidos como representao do
objeto e do interpretante, elemento essencial do processo de conhecimento,
ento teremos que toda ao sempre uma representao e que esta sempre
parcial e nunca total.4
As artes moderna e, sobretudo, contempornea determinam para a
museologia vrios nveis de transformao de cunho ideolgico e esttico.
Alguns deles so: o fimdas categorias tradicionais, o uso de materiais, tcnicas
e suportes no convencionais, a negao da formao tradicional do artista
nas academias, a negao do entorno fenomnico e da permanncia e, para o
pblico, novas formas de apropriao do fenmeno artstico que incluem
diferentes tempos de apreciao, a reviso dos juzos baseados na sublimidade,
na graa e no belo, a independncia da obra de arte e, ainda, os
questionamentos que permitemanalisar valores intrnsecos da arte propostos
pela arte moderna.
Umberto Eco nos esclarece quanto impossibilidade do que classifica de
realizao esttica ser percebida homogeneamente a partir de suas
caractersticas relativas tanto estrutura como ao uso. De acordo como
autor, no estmulo esttico, o receptor no pode isolar umsignificante para
relacion-lo univocamente com seu significado denotativo: deve colher o
denotatum global. Todo signo que aparea ligado a outro e dos outros recebasua fisionomia completa significa de modo vago. Cada significado, que no
possa ser apreendido seno ligado comoutros significados, deve ser percebido
de modo ambguo.5
Assim, chegamos concluso de que a apreenso do potencial informativo
dos objetos apresentados nos museus ser continuamente distinta e depender
sempre do sujeito que olha e se apropria simbolicamente daquele objeto e
daquela construo que a exposio, na qual vrios objetos esto emrelaomtua e que desencadeiam, por sua vez, uma outra experincia: a museolgica.
Portanto, reforamos o aspecto de cenrio atribudo ao museu, que permite
perceber uma relao diferenciada com os objetos que abriga e que
excepcional, distinta daquela que se estabelece no embate, na relao coma
produo material na vida cotidiana.
A insero cada vez maior das grandes exposies no circuito das atividades
de lazer e o aumento significativo do nmero de visitantes nas exposies de arte incluindo arte contempornea as transformamemprodutos e que precisamde
umalto grau de profissionalizao para atingir seus objetivos.
3 Realidade entendida aqui como uma formade percepo exterior experimentadaimediatamente ou no, mas tambmcomo formade conhecimento de algo existente no tempo e/ou no espao, portanto, inclui o real dassensaes, o que difere de uma possvel definiodo conceito de Verdade.4 Caramella, Elaine.Histria da Arte. FundamentosSemiticos. Coleo Humus. Bauru, Edusc, 1998,pp. 65 e 66.5 Eco, Umberto. Obra Aberta. Forma eindeterminao nas poticas contemporneas. SoPaulo, Editora Perspectiva, Coleo Debates no4,pp. 84 e 85. Grifo do autor.
8/13/2019 a curadoria de exposies
4/17
41
A curadoria de exposies
ano 5, nmero 6, julho 2004
Dessa forma, ganha destaque a figura do chamado curador independente,
que a partir dos anos 80, e sobretudo durante os anos 90, torna-se o centro
de muitos debates de carter ideolgico e tico. Para Bernd Klser, Dentro
de umtal clima artstico, regido pela competio, no surpreendente que se
tenha desenvolvido o ofcio ambguo do organizador de exposies livre e
independente (...). Mas, excees parte, raro que ele seja to livre e
independente (j que prisioneiro de seus prprios interesses) quanto deveria
ser, por definio, no importando qual diretor de museu: pois os
patrocinadores, dos quais depende cada vez mais, medemo sucesso [de uma
exposio] na altura do nmero de visitantes, dos resultados nos meios de
comunicao e dos catlogos vendidos.6
Tadeu Chiarelli afirma que, no meio nacional, a figura do curador
independente profissional surge de maneira auspiciosa, j que foi atravs do
convite feito pela Fundao Bienal de So Paulo para que Walter Zanini
assumisse a curadoria da Bienal de So Paulo de 1981 [e de 1983, tambm]
(...) Quebrando a tradio da representao por pases, Zanini concebeu aquelas
duas edies da Bienal a partir de analogias por linguagens, permitindo ao
pblico vivenciar uma interpretao da arte contempornea, onde as divises
geopolticas foramsuplantadas por territrios poticos constitudos com
profunda argcia e sensibilidade. Esta transformao conceitual, no entanto,
em nenhum momento colocou em segundo plano as obras de arte
apresentadas.7
A definio do papel do curador e a polmica gerada em torno da
espetacularizao das exposies enfatizam a discusso sobre o
redimensionamento da produo artstica, tornando-a elemento de composiode algo maior: a exposio.
A exposio uma construo, umproduto diferente dos objetos, portanto,
crivada de valores que devemser trazidos tona. A caracterstica basilar e de
cujas implicaes pouco nos damos conta o carter da exposio como
conveno visual, organizao de objetos para produo de sentido (...) A
linguagemdo museu no pode, pois, ser tomada como linguagemnatural e
v procura de recursos que permitamuma comunicao imediata.8
Mari Carmen Ramrez ao pensar a formao de uma identidade artstica
latino-americana nos crculos do hemisfrio norte, emespecial, nos Estados
Unidos da Amrica, afirma que o papel do curador independente ou
institucional , sobretudo, elitista, j que eles so, acima de tudo,
reconhecidos institucionalmente como especialistas no mundo das artes,
estabelecendo o significado e statusda arte contempornea por meio de sua
aquisio, exposio e interpretao. Para ela, Nesse contexto de elite, oscuradores funcionaramtradicionalmente como rbitros do gosto e da qualidade.
A autoridade desse papel de rbitro deriva de umcritrio incondicional
6 Klser, Bernd. Le March de lArt et la Culture
dExposition durant les Annes 1980. LArt delExposit ion. Une documentat ion sur t rente
exposit ions exemplaires du XXe sicle. Traduo:Denis Trierweiler, Edition du Regard, 1998,p. 12.7 Chiarelli, Domingos Tadeu. As funes docurador, o Museu de Arte Moderna de So Pauloe o Grupo de Estudos emCuradoria do MAM.Grupode Estudos em Curador ia. So Paulo, MAM, 9, pp.15 e 16.8Meneses, Ulpiano Toledo Bezerra de. Do teatroda memria ao laboratrio da Histria: aexposio museolgica e o conhecimentohistrico. Anais do Museu Pauli sta. Histria ecultura material. Nova Srie, vol.2:1994, p. 22.
8/13/2019 a curadoria de exposies
5/17
Marilcia Bottallo
42 concinnitas
ultimamente ideolgico baseado nos parmetros restritivos do cnone
ocidental (isto , Primeiro Mundo) Modernismo/Ps- Modernismo.9
No entanto, Ramrez pondera que o curador vivencia a tenso de uma
contradio, pois a problemtica da identidade, no cenrio do mercado, s
pode ser pensada como umconstruto redutor. Por outro lado, prope que ele
pode ser o responsvel por acabar comas hierarquias no mundo das artes, ao
mesmo tempo emque democratiza o espao para a ao cultural.10
Por intermdio das curadorias, especialmente de arte contempornea e,
mais ainda, feitas emfuno de obras cujo pressuposto no a permanncia,
seja pelo uso dos materiais ou por ter apenas durao no tempo e no no
espao , ampliamo papel dos museus de arte moderna e contempornea,
retomando sua funo de laboratrio: local de experincia, de risco, j que as
novas poticas que manifestamno permitemao pblico a possibilidade de
uma relao museolgica do tipo tradicional.
Harald Szeemann afirma que o museu participou da fase positivista de
hipertrofia do objeto e a favoreceu de maneira decisiva. Mas, tambm, ele
igualmente integrou as obras que se recusavama ser obras, ou seja, chamados
a cooperar comele, os representantes da tendncia que nega o objeto para
reclamar no seu lugar o processo, quer dizer, a idia ou a manifestao
documental de umprocesso.11
De acordo comDebora J. Meijers, se h algumlugar onde o significado de
umtrabalho individual determinado, ento ele o local que lhe conferido
entre outros trabalhos.12Assim, o museu torna-se decisivo no estabelecimento
das possveis formas de representao e de apropriao individual da arte.
Ainda, a especulao sobre a arte na sua montageme colocao no cenriomuseolgico tendeu para o desenvolvimento das exposies que classificou
como a-histricas cuja caracterstica est em que apesar de todas suas
diferenas [elas] tmemcomumo fato de abandonar o tradicional arranjo
cronolgico. O objetivo revelar correspondncias entre trabalhos que podem
pertencer a perodos e culturas distintas. Essas afinidades superamos limites
cronolgicos bemcomo as tradicionais categorias de estilo implementadas
pela histria da arte. A classificao modelar emtermos de materiais tambm abandonada para que a empatia (Einfhling) finalmente torne possvel a
conexo entre uma cadeira do sculo XV comumretrato feminino de Picasso
e uma instalao de Joseph Beuys.13
Ao pretender criar vnculos entre as verdades permanentes ou imanentes
das obras de arte de todos os tempos, as curadorias de exposies a-histricas
revelamuma linha de raciocnio to particular, que poderiaminscrever-se como
instalaes ou criaes artsticas, e no como curadorias de exposio. Talopo recria uma nova fetichizao dos objetos artsticos assimcontextualizados.
Dessa forma, o curador pretende o lugar do artista ao criar teses artsticas que
9 Ramrez, Mari Carmen. Brokering Identities. ArtCurators and the politics of cultural
representation.Thinking about exhibi ti ons. Editedby Greenberg, Ferguson & Nairne, Routledge,London, 1996, p. 22.10 Id. ibid., p. 23.11 Szeemann, Harald (interprtation). changede vues dun groupe dexperts. Problmes dumuse dart contemporain en Occident.Museum,Unesco, vol. XXIV, no1, 1972, p. 11.12 Meijers, Debora J. The Museum and theahistorical exhibition. The latest gimmick bythe arbiters of taste, or an important cultural
phenomenon?Thinking about exhibitons. Editors:Greenberg, R., Ferguson, B. W., Nairne, S.,Routledge, 1996, London, p. 8.13 Id. ibid., p. 8.
8/13/2019 a curadoria de exposies
6/17
43
A curadoria de exposies
ano 5, nmero 6, julho 2004
defende comautoridade institucional, tanto para determinar valores pessoais
como se fossemprincpios ou verdades soberanas ou formais, e, ao faz-lo,
retira do pblico a capacidade de recriar contedos simblicos. Deixamos, assim,de trabalhar no ambiente da obra de arte contextualizada para especular sobre
o museu como linguagem, e esse tipo de exposio passa a constituir-se quase
como uma metalinguagem.
Debora J . Meijers, refletindo sobre as crescentes dvidas relativas s noes
de desenvolvimento cronolgico, categorizao emestilos e ao conceito de
evoluo trazido do sculo XIX, acentua o carter construtivo da exposio
museolgica quando afirma que umdesigner
de exposies que enxerga sua
atividade como arte no essencialmente diferente do historiador que se
torna cada vez mais ciente das dimenses literrias de suas consideraes
histricas.14
Do Figurativismo ao Abstracionismo
Conjugando esforos to dspares quanto a necessidade de renovao
artstica e a legitimao da burguesia nascente no mbito do poder local,
alguns grandes empresrios e membros de destaque de famlias influentes
acabampor encontrar interesses emcomumcomintelectuais e artistas de
So Paulo e assim, aps umperodo de debates, vo dedicar-se criao
dos grandes museus de arte de So Paulo: O MASP e o MAM.
Coma instalao do MAM-SP e a abertura de sua primeira exposio ao
pblico em1948, j havia conscincia, por parte de seus protagonistas, da
especificidade relativa ao arranjo do espao expositivo emummuseu, sobretudo
de arte moderna.
Embora tendo o MoMA-NY como parmetro, Francisco Matarazzo Sobrinho,
fundador e diretor presidente do MAM-SP, convida Lon Degand, crtico
belga que vivia na Frana, para ser o primeiro diretor artstico e curador da
mostra de abertura do Museu. Dessa forma, deixa claro que sua inclinao
para a produo e o pensamento plstico europeus, bemcomo uma viso e
interpretao da arte marcadas por meio da presena de umcrtico e professor
de histria da arte moderna que tambmdeixava explcita sua preferncia
pela produo europia emface da norte-americana. O cuidadoso processo
de preparao da primeira exposio visava criar umambiente e umforo de
debates de questes plsticas e artsticas, mas, sobretudo, sedimentar alguns
valores da modernidade.
Pensar a primeira exposio do MAM-SP Do Figurativismo ao
Abstracionismo pelo vis curatorial implica avaliar, emparalelo, umprincpio
de poltica institucional. Assim, sua primeira mostra traz uma exposiointernacional, commaioria de obras de artistas estrangeiros franceses,
sobretudo e pertencente a colecionadores particulares. Embora o esforo14 Meijers, Debora J ., op. cit., pp. 18 e 19.
8/13/2019 a curadoria de exposies
7/17
Marilcia Bottallo
44 concinnitas
feito para a aquisio de obras encomendadas por Ciccillo para formar uma
coleo adequada, a mostra de abertura do MAM-SP contou comapenas quatro
obras do seu acervo: dois mbiles de Alexander Calder, umguache de Fernand
Lger e umde Joan Mir.
Lon Degand define claramente seu posicionamento emdefesa da ento
nova arte o abstracionismo. Para ele, s existemduas categorias plsticas,irredutveis uma outra: figurao e abstrao. Assim, acredita que h menos
chances de equvocos. Afirma Degand que A abstrao pictural, ao contrrio
(...) [dos] ismos, no uma nova escola de pintura, mas uma nova concepo
de pintura, na qual diversas escolas j se incluem: orfismo, suprematismo,
neoplasticismo e outras, s vezes, semdenominao.15
Sua preocupao emcompreender e educar para o novo fenmeno faz
comque sua ao ganhe umaspecto bastante didtico, que cunha no s emseus artigos, mas, sobretudo, naquilo que nos interessa: a exposio
museolgica de abertura do MAM-SP. De alguma maneira, Degand sabe que o
aval do pblico para sua exposio importante para que seu trabalho tenha
legitimidade e continuidade. Tomando por base o movimento impressionista
francs de 1874, sua inteno era trazer conhecimento a respeito das
particularidades de cada uma das formas de expresso que foramsurgindo no
mbito da linguagempictrica.Para tanto, Degand divide sua exposio em trs partes: 1 Seo
Documentria, composta de reprodues coloridas mostrando a evoluo da
pintura e da escultura, do impressionismo ao cubismo; 2 Seo, reunindo
obras originais de artistas cuja produo seja praticamente no-figurativa;
3 Seo, obras de artistas totalmente abstratos.16
Por uma questo de mtodo, e seguramente influenciado pelo ambiente
europeu no qual se formou, Degand parte de uma viso evolucionista dahistria amparada no eurocentrismo, da qual assume o conceito de cronologia
e de desenvolvimento como processo cumulativo, e o aplica manifestao
15 Degand, Lon. Quest-ce que la peintureabstraite?Langage et signifi cation de la peint ureen figuration et en abstration. ditions delarchitecture daujourdhui, 1956, p. 97.
16 Ribeiro, Claudia M. B. De la Figuration labstraction Lon Degand au Muse dArtModerne de So Paulo. Alliance Franaise de SoPaulo. Memoire Nancy, 1993, indito, p.25.
Palestra Do Figurativismo aoAbstracionismo proferida por Lon Degandna inaugurao da exposio Arte Antigae Moderna em1949Fonte: Boletim Satma, 23
8/13/2019 a curadoria de exposies
8/17
45
A curadoria de exposies
ano 5, nmero 6, julho 2004
artstica. Apesar disso, ele no assume explicitamente que a arte abstrata
seja uma evoluo da figurativa, j que estava preocupado emse desvencilhar
do carter sectrio que lhe era imposto, tanto na Frana como no Brasil, por
sua defesa da nova arte. Sobre esse aspecto e usando de paradigmas prprios
do evolucionismo aplicado Histria no caso, histria da arte , Degand
afirma que a pintura abstrata no resulta nemde umprogresso, nemde um
recuo do pensamento pictrico (...) A pintura abstrata e a pintura figurativa
no se opem, como inimigas, seno no esprito dos sectrios. Elas diferem,
apenas isso. Nosso engajamento, ainda que apaixonado, emrelao pintura
abstrata, no implica nenhuma rejeio pintura figurativa.17
Com essa estrutura de pensamento sedimentada, Degand trabalha a
curadoria da exposio buscando demonstrar a tese da superioridade da arte
moderna, porque mais atual, emrelao s outras produes. Ao analisar os
resultados plsticos das produes figurativa e abstrata, Degand quer educar
o olhar do espectador, alegando que preciso lembrar que h uma tradio
antiga, a qual precisamos superar. A expresso de seu pensamento transmudado
para o espao de exposio revelou uma curadoria emque as formas artsticas
que lidamcoma figurao devemser entendidas historicamente como estgiosj superados, cujo valor documental, j que diziamrespeito a uma forma
de sensibilidade diferente da atual.
A proposta de Lon Degand no era a nica no mbito museolgico do
mundo no europeu, aproximando-se daquela estabelecida na mesma poca
pelo prprio MoMA-NY, que incorpora umdiscurso bemelaborado que visava
prestigiar a produo dos artistas locais. Para o prprio Degand aquele era
(...) umdos mais belos museus do mundo emseu gnero (...).18
Na proposta original de montagemda exposio feita por Degand, deveriam
vir para o Brasil tanto os pintores da Escola de Paris como alguns artistas dos
Estados Unidos selecionados por uma comisso formada por Leo Castelli,
Sidney Janis e Marcel Duchamp. No entanto, problemas com burocracia
internacional e falta de verbas para cobrir despesas comseguro e transporte
das obras cortarama participao americana.19
A partir de ento, Lon Degand parece sentir-se mais vontade emsuasescolhas e chega a afirmar emcarta enviada a Paulo Bittencourt que no lamenta
a ausncia da representao norte-americana na mostra de So Paulo, j que,
para ele, a jovempintura americana no vale grande coisa.20
Por outro lado, a declarada beleza que Degand via no MoMA-NY pode
inscrever-se na forma como expe a produo artstica local, valorizando-a a
ponto de tornar-se a demonstrao visual e pblica da disputa comParis em
relao primazia como vetor da arte moderna internacional. Assim, aoinventar uma tradio artstica moderna, o MoMA-NY sedimenta as balizas
de umconceito especfico de modernidade.
17 Degand, Lon., op. cit., p. 132.18 Amaral, Aracy. A Histria de uma coleo.Museu de Arte Contempornea da Universidade
de So Paulo. Perf il de um acervo. So Paulo,Techint, 1988, p. 17.
19 Emcarta enviada por Leo Castelli a Matarazzoem21 de julho de 1948, a seleo de artistascontava comos nomes de Jackson Pollock, RobertMotherwell, Mark Rothko, Reinhardt, Mark Tobey,alm de artistas consagrados, como Feininger,Man Ray, El Lissitzky, Malevitch, Piet Mondrian eoutros.20 Vera DHorta nos conta que, em funo damanuteno do bomrelacionamento diplomticoentre MAM-SP e MoMA-NY, Matarazzo ordena queesse trecho da carta seja riscado. Degand cede
ao apelo, e na verso oficial da carta esse trechodesaparece. Conferir: DHorta, Vera.Museu de ArteModerna.So Paulo, Drea Books and Art, 1994,p. 22. Citao da nota 24.
8/13/2019 a curadoria de exposies
9/17
Marilcia Bottallo
46 concinnitas
Quanto representao brasileira da mostra, ela se resumiu a trs artistas
apresentando uma obra apenas cada um, e, ressalte-se que todos eles viveram
emParis e eramconhecidos de Degand naquele ambiente. So eles: Waldemar
Cordeiro, Ccero Dias e Samson Flexor comumleo sobre tela cada um. Em
defesa de Degand pode-se dizer que a pequena representao brasileira
justifica-se, pois aqueles artistas eramalguns dos poucos, na poca, que
tinhamuma produo de carter abstrato.
A partir do momento emque sua inteno de trabalho naquela primeira
seo era essencialmente didtica, no hesita emvaler-se de imagens de
segunda gerao, ou seja, reprodues, mesmo emumambiente museolgico,
onde o primado do original umpressuposto. Apesar de propor uma marcada
pedagogia do olhar baseado no processo de evoluo das formas de
representao, no semmotivo que Degand criticado por ter realizado
uma exposio somente abstrata, traindo o ttulo da mostra.
Podemos inferir que, como para Degand era importante mostrar que a
produo abstrata efetivamente superior a outras, o impacto criado entre as
diferentes formas de apropriao dos objetos plsticos ajudaria o pblico a
compreender suas razes. No confronto entre originais e reprodues, assegunda e terceira sees seriamvalorizadas pela prpria diferena de suportes
e pela relao diferenciada que impe ao pblico o relacionamento com
originais emcomparao comas reprodues. Tratando a primeira parte de
sua exposio como qualificativo de Seo Documentria, Degand empurra
toda a produo plstica que vai do impressionismo ao cubismo para uma
espcie de pr-histria da arte moderna.
O trabalho de Degand no tarda emfazer surtiremreaes apaixonadasque redundamemsua sada do Museu apenas umano aps sua chegada. A
sada to prematura de Degand do MAM-SP ocorreu, cremos, porque seu mtodo
de trabalho foi efetivo, criando umambiente para a discusso sobre a abstrao
no meio paulista. No entanto, o debate que se cria no interessa ao ambiente
moderno que o mecenato paulista desejava, emfuno de sua necessidade de
afirmao cultural legitimada. Sua influncia, no entanto, percebida
rapidamente nos discursos pr e contra seu partido esttico, sempre baseadosna sua estrutura de raciocnio.
A atitude de Degand leva a pensar emdiferentes vnculos que umcurador de
exposies museolgicas pode manter coma instituio. Ainda que envolvido no
cotidiano do Museu por meio de seu cargo de diretor, o perfil de Degand est mais
prximo daquele de umcurador independente, j que sua causa lhe impunha o
abandono da coleo, exceto naquilo emque ela lhe interessava. Degand incorporou,
por meio da defesa de umpartido esttico definido, vrios aspectos do que devaser uma curadoria de exposies: seu recorte era claro, a disposio das obras
objetivava desenvolver visualmente uma proposta preestabelecida, o museu foi
8/13/2019 a curadoria de exposies
10/17
47
A curadoria de exposies
ano 5, nmero 6, julho 2004
usado como cenrio fundamental, e a institucionalizao da arte foi percebida
compoder de ratificao de seus valores.
A atuao de Degand mantmumaspecto positivo a ser cogitado nas
curadorias de exposio j que, almde suas escolhas que so inerentes ao
processo , ele consegue manter-se fiel aos propsitos da obra de arte no
espao museolgico sema instrumentalizar para finalidades extra-artsticas.
As crticas ao abstracionismo e suas tendncias somente forampossveis porque
sua exposio causou o desejado impacto, derivado de umcontato legtimo
comas obras de arte no cenrio museolgico, sustentando o princpio do fato
museal, e que, necessariamente, prope revises a partir dos vrios olhares
contemporneos.
Panorama de Arte Brasileira 1995
Se a arte moderna, por meio da abstrao, comea a desestabilizar a
noo de visualidade do pblico de So Paulo, as propostas plsticas que
surgem a partir da Bienal de 1951, dois anos apenas depois de
Do Figurativismo ao Abstracionismo, abrem caminho para novos valores
artsticos que alteram, de vez, as idias estabelecidas a respeito daquilo quepoderia ser, at ento, identificado como arte ou obra de arte. At ento,
estvamos no terreno da produo e de seus resultados plsticos. A partir
dessa data e ao longo dos anos, o pblico toma contato compropostas mais
hermticas, auto-referenciais, conceituais, orgnicas, imatricas e outras que
transferemo centro das atenes do produto artstico para o processo de
produo ou, mesmo, para o produtor.
Assim, o museu passa a vincular-se de maneira soberana com certasmanifestaes, pois, em muitos casos, o aval institucional que as
reconhece e legitima. Por outro lado, surge umproblema: como demonstrar,
por meio dos produtos artsticos, uma proposta esttica e conceitual que
no se supe por meio do produto acabado. Se o processo torna-se mais
importante do que a obra em si, como avaliar esses procedimentos quando
o pblico s tem contato com uma das partes de tal processo e, com
certeza, uma parte j no to valorizada, ao menos em relao sexpectativas do artista?
O Museu de Arte Moderna de So Paulo teve que reinventar sua vocao
como resultado de seu fechamento e posterior perda de sua coleo para a
Universidade de So Paulo, em1963. Assim, na poca de sua reabertura, em
1967, depara-se comuma nova realidade no campo das artes plsticas, da
cultura e dos investimentos nesses setores.
Para situar historicamente a importncia de Panorama da Arte Brasileira1995 cabe desenvolver umpouco o significado do projeto Panorama, criado
em1969 por Din Lopes Coelho, diretora do MAM-SP entre 1967 e 1982. O
8/13/2019 a curadoria de exposies
11/17
Marilcia Bottallo
48 concinnitas
MAM-SP contava comumacervo muito pequeno, e j no havia mais mecenas
e patronos dispostos a alimentar colees museolgicas e atividades
expositivas s suas expensas. A situao econmica do pas havia se alterado
e, tambm, as relaes do empresariado coma questo cultural. O MAM-SP
encontrava-se, ento, emuma situao constrangedora: procurava espao
para instalar o museu, mas no tinha acervo que justificasse uminvestimento
pblico emtal projeto. Almdisso, era preciso que houvesse exposies
abertas ao pblico. Dentro desse quadro, Panorama de Arte Atual Brasileira
surge como objetivo principal de retomar o processo colecionista do Museu,
por meio dos prmios de aquisio oferecidos s melhores representaes
do ano.J emsuas primeiras verses, o Panorama ganhou aceitao pblica via
imprensa e, muitas vezes, foi considerada uma exposio melhor do que a
Bienal. O ano de 1993 pode ser considerado uma linha divisria na histria
dos Panoramas, j que foi muito criticado pela imprensa, apressando mudanas
conceituais e estruturais. Uma srie de decises foi tomada, e seus resultados
vo condicionar o raciocnio da sua prxima edio, o Panorama de Arte
Brasileira 1995, que, desde ento, perde o Atual do ttulo. A mostra passa a
Panorama da Arte Brasilei ra, 1995(Aspecto da montagemcomos painis emforma de xis)Fonte: Arquivo MAM-SPFoto: Rejane Cintro
8/13/2019 a curadoria de exposies
12/17
49
A curadoria de exposies
ano 5, nmero 6, julho 2004
ser bienal, buscando maior excelncia nos seus propsitos de realizao, j
que facilitava a escolha do nome de um curador, uma curadoria mais
aprofundada e (...) o levantamento de patrocinadores.21
O Panorama da Arte Brasileira 1995, mostrado ao pblico entre 24 de
outubro e 26 de novembro, representa a retomada de umprojeto importante
do MAM-SP, de projeo nacional e comumconceito novo a partir da reviso
de seu papel no circuito artstico de So Paulo. Contando, pela primeira vez,
comuma curadoria, Comisso de Arte caberia apenas o papel de ratificar o
nome de umcurador responsvel pela organizao da mostra e os nomes da
Comisso de Premiao. Para a curadoria dessa verso do Panorama, foi
convidado o curador independente e membro da Comisso de Arte do MAM-SPIvo Mesquita.
Est claro que mesmo emumPanorama est inscrita a idia de seleo e
de valores. No entanto, quando no h umcurador, tais princpios podem
ficar subordinados falsa noo de generalidade que o conceito de panorama
sugere, ou seja, aquela da observao distante que permite conhecer toda a
sua extenso. Essa determinao aparece como algo quase estrutural ou
autnomo.No caso do Panorama 1995 essa situao se altera, e a presena do curador
evidencia o processo de escolha e o partido esttico-conceitual adotado.
Nessa vigsima terceira verso desde sua criao, o Panorama contou coma
participao de 36 artistas brasileiros e 96 produes de diversas linguagens.
Paralelo s artes plsticas, foi aberto espao para vdeos comerciais, videoarte
e uma pea de teatro, O Livro de J, de Antnio Arajo, assumida por Ivo
Mesquita como instalao-performance ou, ainda, site-specif work.Ao comentar o Panorama, Cacilda Teixeira da Costa afirma que [aquela]
edio da mostra (...) vai refletir uma nova poltica cultural adotada pelo
Museu, que pretende se afirmar como um espao para curadorias, que
consideramos sua vocao prioritria, embora no exclusiva.22
Quando faz tal declarao, Costa tem em mente uma definio muito
clara da importncia do papel do curador no processo de realizao de
uma exposio museolgica. No texto de abertura do catlogo, elanovamente se posiciona, sustentando que O Panorama apresenta-se,
pois, como um ponto de vista, o prisma adotado pelo curador para revelar,
atravs de uma amostragem, sua cosmoviso da arte no Brasil, a qual
espera-se que possibilite, ao mesmo tempo, revelar esta realidade e
acrescentar-lhe valor.23
Em conformidade com a noo de curadoria expressa por Costa, Ivo
Mesquita esclarece que, antes de definir a mostra por umtema ou procedera um mapeamento do Brasil artstico contemporneo, buscou-se definir
uma estratgia curatorial capaz de dar conta desta diversidade manifesta
21 Cintro, Rejane. Do Panorama de Arte AtualBrasileira ao Panorama de Arte Brasileira 1969-1997. 97 Panorama de Arte Brasileira.Museu deArte Moderna de So Paulo, 1997, p. 10.22 Depoimento prestado jornalista Anglicade Moraes. MAM de cara nova prepara uma virada.
O Estado de So Paulo, 22 de agosto de 1995.23 Costa, Cacilda Teixeira da. Panorama ePanoramas. Panorama de Arte Brasileira 1995.Catlogo MAM, So Paulo, p. 11.
8/13/2019 a curadoria de exposies
13/17
Marilcia Bottallo
50 concinnitas
nas linguagens que trabalham a visualidade, propondo o grupamento
de produes que, de alguma maneira, contenham umespri to do tempo
presente.24
Ivo Mesquita tem conscincia da importncia do papel do curador e
tenta demonstrar, ao longo do texto, que sua escolha arbitrria, mas
que se insere na busca de compreenso de uma nova dinmica do tempo,
ainda que trabalhando no mbito do territrio. O curador do Panorama 95
reflete sobre seu papel, marcando, no entanto, a diferena entre
arbitrariedade e autoritarismo. A partir de sua experincia em museus
canadenses e norte-americanos, pensa a questo inevitvel da excluso
como parte do processo de seleo. Ele demonstra muita conscincia arespeito da sobreposio de linguagens que acontece em uma exposio
museolgica. Ao destacar a importncia de seu papel como agente histrico
ratificador de valores tambm histricos , Mesquita procura jogar para
o plano da prpria arte a responsabilidade quanto s formas de recepo
por parte do pblico. Assim, diz que (...) o desenho de um panorama
assume o lugar do curador como ponto fixo de onde se observa a cena. A
curadoria, no entanto, procura preservar a mobilidade dos trabalhos,tornando-os visveis na integridade dos significantes que eles
constituem.25
Embora suas afirmaes no sejam excludentes, tambm se apresenta
como uma impossibilidade a oportunidade de visibilidade dos significantes
dos trabalhos de maneira integral. Ainda que saibamos, pela seqncia do
texto, que a preocupao de Mesquita est na busca de uma viso no
imperativa do papel do curador e, portanto, que a exposio seja (...)um territrio de descobertas e surpresas, sem uma direo nica a ser
seguida.26Esse objetivo s vivel a partir da clareza do recorte e dos
propsitos do curador, tornando-se, ento, uma possibilidade potencial.
Nesse ponto, cabe ressaltar a diferena entre a obra de arte individual,
inscrita no mbito de sua participao social, e sua reunio como recorte
por meio da exposio museolgica. Assim, preciso demonstrar que
uma exposio permite que as obras percebidas em conjunto, por meiodas estratgias de montagem e das escolhas conduzidas pela ideologia da
mostra, sejam reconhecidas de maneira necessariamente diferenciada em
relao a seu processo de produo original e as justificativas de partidos
estticos e conceituais individuais que lhe deram forma. Acreditamos que
essas so instncias distintas de interpretao do fenmeno artstico no
espao museolgico via exposio.
Dentro dessa linha de raciocnio, I vo Mesquita trabalha de maneiramultidisciplinar na montagem do Panorama 95, contando com o projeto
museogrfico do arquiteto Felipe Crescenti. Ivo Mesquita props a
24 Mesquita, Ivo. Panorama de Arte Brasileira,op. cit., p. 14. Grifo do autor.25 Id. ibid., p. 14.26 Id. ibid., p. 14.
8/13/2019 a curadoria de exposies
14/17
51
A curadoria de exposies
ano 5, nmero 6, julho 2004
exposio de maneira que pudesse refletir a construo de um mapa. A
montagem, porm, no poderia prever apenas a idia de conjunto, mas
tambm cuidar da compreenso de cada trabalho individualmente. Felipe
Crescenti procurou acompanhar o raciocnio da curadoria, j que, para
ele, o carter de uma exposio est relacionado com o partido curatorial.
A oportunidade de percepo ampliada e da surpresa no trajeto
expositivo facilitada pela prpria idia de curadoria, o que se coloca em
oposio a um critrio autoritrio. Mais uma vez necessrio reforar que
no se trata de criar relaes labirnticas relativas a formas ou conceitos,
pois o curador no um criador, no sentido artstico, mas, seguramente,
o condutor de uma proposta que vai tentar, com mais ou menos sucesso,demonstrar por meio do espao museolgico.
De alguma maneira, Mesquita retoma a fora discursiva de Degand
quando reflete sobre seu papel determinando que (...) as obras escolhidas
so os agentes que construiro o panorama da arte brasileira em 1995, o
meu panorama, instaurando um campo interrogante, que provoque o
visitante para encontrar sua interpretao.27
Est claro para o curador que sua interferncia ativa, e, por isso,tomou cuidado ao reiterar na seqncia que a curadoria assume a
visualidade como a melhor forma de comunicao e rejeita para ela o
papel de orientadora na interpretao dos trabalhos selecionados.28
Para adequar duas linguagens diferentes, arte e exposio museolgica,
Mesquita e Crescenti utilizam um recurso museogrfico especfico para o
Panorama. Eles no fazem agrupamentos de qualquer ordem temticos,
cronolgicos ou por linguagens e deixam que as obras se mostremcomo formas de presentificao de realidades. Dessa forma, o curador
acredita que, ao deixar as obras deriva no espao por sua conta e
risco, cria a circunstncia que permitir que a linguagem visual atue
como um veculo de comunicao autnomo. As obras na exposio, ainda
que presentificaes, no podemser percebidas apenas como umconjunto
de propostas individuais, mesmo quando produzidas especificamente para
a mostra. Ainda que supostamente deriva, sua presena remete, poranalogia, s ausncias e a seus critrios.
Ivo Mesquita acredita que a questo da presentificao to importante
para a arte contempornea, que at a coloca em xeque sob o ponto de
vista de sua relao com o espao: qual o lugar da arte? Assim, o curador
toma para si a responsabilidade de ser o construtor de um discurso visual,
o qual demonstra temer por sab-lo estruturalmente comprometido.
Mesquita refere-se no somente caracterstica da arte contempornea,mas tambm da exposio de arte na contemporaneidade, que sua existncia
no tempo, mas compouca ou quase nula durao no espao.27 Id. ibid., p. 14. Grifo meu.28 Id. ibid., p. 14.
8/13/2019 a curadoria de exposies
15/17
Marilcia Bottallo
52 concinnitas
Como exposio museolgica, cabe pensar, alm da construo do
discurso plstico, tambm os elementos utilizados como linguagem de
apoio a expografia. Relembramos que, enquanto as artes plsticas se
constituam de produtos tais como pinturas de cavalete, desenhos,esculturas e outros, os recursos utilizados acompanhavam tais propostas:
painis, molduras, bases, pedestais e outros eram utilizados em conjunto
com etiquetas explicativas, legendas e textos que auxiliavam no
entendimento da exposio. Ainda, cordes de isolamento, sinalizao
de proibies, vidros e vitrinas estabeleciam uma relao, questionvel
ou no, codificada pelo pblico, que percebia que aqueles produtos
deveriam constituir um discurso por meio do qual se torna possvel oacesso ao contedo da exposio.
A arte contempornea se prevalece desses recursos. Onde antes havia
molduras e base, agora h obras presas diretamente parede ou jogadas
pelo cho, fora do espao do museu muitas vezes s percebidas a partir
de dentro de seu espao nas janelas, no teto ou em lugar algum, como
as propostas imatricas. H artistas que no podem prescindir da
participao do pblico para completar o circuito de determinao daobra de arte enquanto tal. Portanto, muitas vezes, o trajeto precisa ser
uma atitude autnoma, uma escolha e, como tal, implica um certo
desconforto.
Assim tambm, o texto do curador tornou-se fundamental para que o
pblico possa situar-se no mbito da exposio j que legendas e etiquetas
tornaram-se recursos que mais frustram do que esclarecem o pblico, pois
seu contedo, orientado por padres internacionais, no ajuda nacompreenso de propostas plsticas no tradicionais.
O fato de revelar o museu como estrutura expositiva melhora a
compreenso da exposio enquanto construo. Assim, no se pode falar
em uma no-expografia. Ela existe, mas se comporta de maneira diferente.
Por outro lado, a falta de compreenso sobre o fenmeno artstico em
suas particularidades como linguagem pode, pelo excesso, impedir uma
aproximao que respeite a manifestao artstica naquilo que ela tem aoferecer como experincia. Portanto, a expografia, no mbito da arte
contempornea, prescinde do efeito decorativo. De qualquer forma, no
se pode mascarar que (...) toda forma de exposio induz sentimentos e
valores que transformam o objeto em anlise.29
Esses princpios sugeridos pela arte contempornea e sua necessrias novas
formas de exposio rompemno apenas como conceito de aura, mas coma
forma pr-moderna de sublimidade e de graa percebida nas artes plsticas.Portanto, o partido curatorial e suas escolhas orientamas formas de apropriao
da exposio, pois no se trata apenas de sobrepor obras individuais.
29 Menezes, Luiz. Oprimado do discurso sobre o
efeito decorativo.Cadernos de Museologia. Centrode Estudos de Socio-Museologia, Ismag,Universidade Lusfona de Humanidades eTecnologias, 1993, p. 29.
8/13/2019 a curadoria de exposies
16/17
53
A curadoria de exposies
ano 5, nmero 6, julho 2004
Panorama da Arte Brasileira 1995 coloca em evidncia a idia de
que o discurso contemporneo, ao quebrar a lgica da narrativa, impede
um raciocnio puramente analtico que possvel e desejvel em
outro momento e impe relacionamentos novos, sugerindo umasensibilidade que tem como base uma estrutura de outro carter. Eram
trabalhos que no se contentavam em ficar em sua especificidade e,
ao mesmo tempo, tambm transitavam de trabalhos formais para
narrativos. O hibridismo dessas linguagens poderia auxiliar o visitante
na busca de uma nova postura frente manifestao artstica
contempornea. Assim, a introduo de vdeos comerciais, filmes,
performances e pea teatral justifica-se, pois so diferentes meios nosquais h riqueza de informao visual.
A apropriao esttica da arte contempornea, exibida por meio de
Panorama 95, pode ser tomada como exemplar, pois faz eco com mostras
que permitem que a arte se apresente como linguagem, conformando-se
como um sistema apreendido parcialmente e no como uma sociologia
sobre a manifestao artstica e suas diferentes formas de expor.
Lidamos com dois sistemas sobrepostos e em dilogo: arte e museu.Dessa forma, seus significados so apreendidos, necessariamente, dentro
do mbito expositivo que permite a determinao de significados
particulares.
O curador de Panorama da Arte Brasileira 1995 constri a possibilidade
dessa relao estabelecida em forma de rede assumindo que deve explicitar
sua escolha que, embora seja sua, serve no para orientar ou dirigir o
espectador, tampouco para construir uma hermenutica da curadoria, mas,sim, para acirrar o grau de arbitrariedade que rege o territrio da arte
contempornea e a construo de discursos sobre ele.
Para reconhecer a arte como linguagem autnoma, no podemos exigir
a traduo de seus contedos ou sua subordinao a cdigos externos.
Essa, alis, uma impossibilidade estrutural.
No entanto, a museologia se prope como intermediria e ratifica
seu papel tornando-se um meio facilitador, seja pelo acesso pblico eprivilegiado produo artstica, seja pela possibilidade de
ressignificao dos objetos plsticos arranjados no espao por
determinao de uma curadoria.
O museu, de acordo com o conceito de fato museal, um cenrio
fundamental. Portanto, o espao da cenarizao. Tomando por base a
definio de Fayga Ostrower para espao, veremos que esse (...) ser o
referencial ulterior de todas as linguagens e que, em qualquer lngua, preciso recorrer a imagens do espao a fim de tomar conhecimento de
algo e comunic-lo a outros.30
30 Ostrower, Fayga. A construo do olhar.O Olhar. So Paulo, Companhia das Letras, 1988,p. 167.
8/13/2019 a curadoria de exposies
17/17
Marilcia Bottallo
54 concinnitas
Se a proposta da museologia a utilizao do recurso do cenrio para
proporcionar uma relao profunda entre ser humano e objeto, no se pode
negar que, como linguagem, deve cumprir umpapel em um sistema de
comunicao, no caso, no verbal.Em ambos os estudos de caso analisados procuramos demonstrar que
a exposio museolgica mais do que a simples exibio de obras de
maneira aleatria ou seguindo critrios ligados apenas a questes estticas,
dedesign ou da prtica do adereamento. A leitura feita por um curador
muito responsvel na medida em que pode ser facilitadora quando permite
uma observao atenta do fenmeno artstico e, alm disso, estimula a
possibilidade da crtica em relao s propostas feitas pela exposio epelo museu.
Ao mesmo tempo, o curador deve ser comprometido com a questo da
autonomia da arte e comos limites do processo de construo de conceitos,
j que, quando equivocada, pretensiosa ou excessivamente cenogrfica,
tambm pode constranger as possibilidades expressivas das obras
individuais, das obras no conjunto e de seu retorno no mbito mais amplo
da sociedade representada pelo pblico de museus.Ao longo dos anos, os museus e a prtica museolgica modificam a
atividade do curador, tornando-a algo especfico e diferente da atividade
do crtico, do historiador, do muselogo e outras profisses correlatas. Da
mesma forma, a atividade curatorial modificou-se substancialmente na
distncia que marca as exposies de Degand e Mesquita. Assim, apesar
de Lon Degand assumir uma tarefa sobretudo educativa, segue utilizando
uma linguagem e uma forma de raciocnio muito prprias da histria daarte pr-moderna para definir tanto uma produo artstica que j buscava
novos valores como sua prpria atividade. No caso de Ivo Mesquita,
encontramo-lo imerso em um perodo no qual a atividade curatorial ganhou
notoriedade, adeptos e crticos implacveis.
Por isso Degand fala em conceitos tais como representao, pintura
pura, contedos visveis e invisveis, iluso, significado...,31procurando
demonstrar que tal evoluo no perigosa na busca de um lugar para anova arte e sua inscrio na histria da arte e da cultura. Por sua vez,
Mesquita se utiliza de valores conceituais prprios da linguagem ps-
moderna, tais como transitividade, deslocamento, apropriao,
hibridizao, espetculo,32que procura trabalhar por meio de uma
curadoria que coloca em questo a idia do no-lugar.
Ao pensar a institucionalizao da arte, colocamo-nos a possibilidade
de aceitar que o museu restaura a perspectiva do debate tico relativo apropriao pblica dos valores da arte e da ratificao do prprio objeto
artstico.
31 Degand, Lon. op. cit.32 Id. ibid., p. 15.Gentilmente agradeo, a publicao deste artigoa Roberto Conduru.
Top Related