A imprensa no Brasil não surgiu em 1º de junho de 1808MESSAGI Jr, Mário – Doutorando/Unisinos – UFPR/PR
Resumo: A historiografia brasileira (Rizzini, 1957. Lustosa, 2003. Werneck, 1983. Melo de
Souza, 1986) aponta, usualmente, o dia 1º de junho de 1808 como a data de nascimento da
imprensa no Brasil. Na primeira edição do Correio Braziliense, em 1808, Hipólito José da
Costa data o primeiro texto com o 1º de junho, o que induz a leitura de que seria esta a data
de circulação do periódico. No entanto, nem o mês da capa remete à data da circulação,
nem o dia refere-se ao periódico como um todo, mas apenas ao primeiro texto. Era o dia em
que Hipólito começou a escrever o jornal. Demonstrar este equívoco com dados
consistentes e explicar as razões de seu acontecimento é o que pretende o autor deste texto,
o doutorando pela Unisinos Mário Messagi Júnior. A discussão não é crucial na história do
jornalismo no Brasil, mas é pertinente, sobretudo no ano em que se comemora o
bicentenário da imprensa no Brasil.
Palavras-chave: história do jornalismo, bicentenário da imprensa no Brasil e Correio
Braziliense.
Os primeiros jornais do Brasil
A Gazeta do Rio de Janeiro, publicada pela primeira vez em 10 de setembro de
1808, e o Correio Braziliense, cuja data do primeiro número é usualmente apontada como
sendo 1º de junho de 1808 (Lustosa, 2003. Werneck, 1983. Melo de Souza, 1986), são
considerados os dois primeiros jornais no Brasil. A data atribuída ao Correio é uma
impossibilidade histórica, oriunda de uma leitura voluntariosa e, involuntariamente,
anacrônica. Na primeira edição do Correio, a notícia mais atual é de 15 de junho de 1808.
Correio Braziliense, junho de 1808, página 78.
É evidente que Hipólito José da Costa Pereira Furtado, em Londres, onde estava
em auto-exílio escrevendo o periódico, não poderia noticiar um fato ocorrido em 15 de
junho até o dia 31 de maio, última data possível para redigir um jornal para circular no dia
seguinte. Portanto, é impossível que a data de fundação da imprensa no Brasil seja 1º de
junho de 1808. O erro é, provavelmente, resultado da leitura anacrônica da página 3 do
periódico, datada de “junho de 1808”.
E também do texto de apresentação, na página 3, datado de 1 de junho, dia em que
foi escrito provavelmente, o que era a prática com todos os outros textos do periódico.
Como o hábito usual da imprensa contemporânea e da grande maioria dos jornais
ao longo da história da imprensa no Brasil é colocar na capa a data da publicação, o recorte
acima foi interpretado como a data de publicação. Na falta de um dia específico, até pela
periodicidade mensal do Correio, foi atribuído o primeiro dia do mês, data do primeiro
texto. No entanto, a notícia de 15 de junho desmente esta data. Na segunda edição, datada
de julho, Hipólito repete o procedimento.
Correio Braziliense, julho de 1808, página 143.
Correio Braziliense, julho de 1808, página 81.
E na edição de agosto, faz a mesma coisa.
Correio Braziliense, agosto de 1808, página 199.
Correio Braziliense, agosto de 1808, página 153.
Portanto, é razoável concluir que o mês que Hipólito põe na capa, ao contrário do
que era usual e da prática contemporânea, se refere ao mês de cobertura ainda que ele
publique notícias de meses anteriores, sobretudo as que chegam de longe e, pelo grau de
desenvolvimento dos transportes na época, chegam atrasadas. A capa da primeira edição
deve ser lida como “documentos, acontecimentos e textos doutrinários de junho” ou “até
junho”.
Esta organização no Correio remete a uma relação do autor com sua obra que
pouco tem a ver com informações periódicas de consumo rápido, tendência que o
jornalismo já começava a trilhar no século XIX. Hipólito produz algo perene. Diz Dines:
Nada sugere a descartabilidade ou a fragmentação. Tudo induz à perenidade. Seja no tocante ao teor, seja nos recursos voltados para a consulta e a referência. Exemplo da ênfase são as capas rigorosamente uniformes, como frontispícios de livro. Servem para marcar as edições que iniciam os volumes (...) Quanto à organização das páginas, segue a organização semestral, tal como o índice que o redator organiza com a minúcia que lhe é peculiar. (Apud Costa, 2001: xxiv)
Sendo obra de referência, é compreensivo que Hipólito organize seu trabalho
pensando na coleção completa, encartada. Quando os volumes são colocados juntos, como
uma única obra, parece muito mais razoável a data remeter ao mês de cobertura. Assim, a
recuperação de informação é privilegiada. O Correio se insere mais próximo da cultura
livresca do que da cultura periodística. Hipólito pensa como bibliotecário de sua própria
obra. Por isso, é compreensível tal organização. Também por este motivo o 1º de junho,
data considerada inaugural da imprensa no Brasil, é uma impossibilidade histórica.
O prazo limite de notícias, ao longo das primeiras edições, é normalmente o dia
15 do mês anotado nas capas. Na primeira edição, este é o dia da última notícia publicada.
Como o texto de abertura da primeira edição, onde Hipólito expõe seu projeto para o
Correio Braziliense, data de 1º de junho de 1808, tudo indica que, num periódico mensal,
esta seja a data em que ele começou a escrever a primeira edição do Correio no primeiro
dia do mês. Levou 15 dias para terminar a redação, passando, em seguida, a acompanhar o
processo de composição e impressão, que deveria levar, portanto, outros 15 dias, fechando
o mês.
As quatro rubricas que organizam o Correio por assuntos, a saber: Política,
Commercio e Artes, Literatura e Sciencias e Miscellanea, estão organizadas
cronologicamente, de forma, inclusive, a permitir uma leitura diacrônica dos
acontecimentos. Por vezes, a diacronia se instaura num acontecimento, que inicia e se
esgota. No trecho seguinte, tratando de outro tema, a data é anterior. Mas se um assunto
está sendo tratado ele se esgota em ordem temporal. Esta lógica compreensiva, voltada à
demanda de explicar ou, para usar um termo que provavelmente agradaria mais Hipólito,
esclarecer os leitores rege a forma do conteúdo do Correio. A rubrica Literatura e Sciencias
é a mais distante da lógica cronológica compreensiva que permeia o texto.
É evidente que Hipólito, um periodista neófito e um pensador liberal ligado ao
pensamento iluminista, priorizou o resultado, o conteúdo final do Correio e não o processo
de sua fabricação, aspecto no qual se limitou a organizar o próprio tempo. Isto é relevante
por que interfere na rapidez com que o texto é composto, impresso e transportado. O
material não era organizado conforme a ordem de chegada, mas de forma a ter coerência de
conteúdo. Também não há espaço fixo e o tamanho de cada rubrica varia de edição a
edição. Se política na edição de junho toma 14 páginas, na de julho atinge 29. Tudo isso
leva à conclusão de que o processo de composição e impressão não poderia se adiantar
muito antes ao processo de redação. Ou seja, seria possível compor algumas páginas, mas
poucas, antes do final da redação. Além disso, Hipólito tinha que supervisionar o trabalho
dos impressores ingleses, que compunham em uma língua estrangeira para eles, o
português. Isso provocava muitos erros e aumentava o trabalho do redator, que na segunda
edição pede desculpas e justifica tais erros.
Correio Braziliense, julho de 1808, página 81.
Adiantar a impressão seria ainda
menos provável. O prelo mais moderno
no momento em que Hipólito está
redigindo o Correio é o Stanhope (ao
lado, em fotografia feita em Munique,
Alemanha), inventado pelo lord Charles
Stanhope (1753-1816)1, terceiro Earl
Stanhope (Thomson, 1818), por volta de
1795. O prelo foi um avanço considerável
nas técnicas de impressão e continuou
hegemônico, copiado mundo afora, por
muito tempo. O que isto significa em
termo de produtividade? Na melhor das
hipóteses, 250 impressões por hora. Cada
1 Filantropo inglês, que concebeu por volta de 1795 um prelo, para publicar as suas obras, que pela primeira vez era totalmente construído em ferro, excluíndo a cruz em madeira onde assentava. As suas principais inovações foram a pressão regulável através de um alavanca, as calhas oleadas onde desliza o cofre e a capacidade, dada a sua força de pressão, de imprimir de uma vez só toda a superfície da forma. Devido a um contra-peso no braço (alavanca de pressão) regressava automaticamente à sua posição inicial. Com estas melhorias no sistema de prensagem e na entintagem (feita manualmente com as chamadas "balas"), a sua utilização permitia já uma produção de 100 exemplares à hora. A sua penetração no restante continente europeu foi muito rápida, tendo chegado a França em 1814, estando já à algum tempo ao serviço do jornal
edição do Correio exigia 40 impressões, duas páginas por folha. Ou seja, uma tiragem de
apenas 200 exemplares levaria 32 horas de prelo, sem contar as mudanças de placa de
impressão, finalização e empacotamento. Em menos de duas semanas após o fim da
redação do periódico seria impensável tê-lo pronto para embarcar para o Brasil. Os barcos
também tinham freqüência irregular. Mas se Hipólito conseguisse despachar seu jornal em
tempo mínimo, ele chegaria ao Brasil no início de setembro, pois a travessia de navio
levava mais de dois meses.
Por tudo isso, a data de surgimento do Correio Braziliense pode ser assinalada
como começo de julho ou, com otimismo, fim de junho. A chegada da imprensa ao Brasil
não poderia ser antes do começo de setembro de 1808. O 1º de junho de 1808 é apenas o
dia em que o Correio começa a ser escrito, data que usualmente não é utilizada para
assinalar o surgimento de uma obra impressa. Assim, o periódico de Hipólito e a Gazeta do
Rio de Janeiro, redigida pelo frei Tibúrcio José da Rocha, são contemporâneos, sendo
impossível com os dados obtidos pelo trabalho de pesquisa para esta tese afirmar, com
certeza, qual começou a circular antes, pela imprecisão sobre a chegada do Correio ao
Brasil.
A Gazeta do Rio de Janeiro, pelo contrário, adota a regra padrão e anuncie já no
primeiro número quando irá circular.
inglês "Times". O escritor e também impressor Honoré de Balzac descreve ao longo das páginas do livro "Ilusões Perdidas", editado em 1837, as transformações e consequências da importação para França deste tipo de prelo. Com um prelo semelhante trabalharam as célebres famílias de Didot, em França, Giambattista Bodoni, em Parma e Baskerville em Inglaterra. Em Portugal foi Joaquim António Xavier Annes da Costa, administrador da Imprensa Régia na segunda década do sec. XIX, que introduziu os prelos de Stanhope, mandando construir, pelo modelo de dois provenientes de Inglaterra, treze prelos daquele tipo. Na mesma empresa, mas denominada agora, e desde 1823, por Imprensa Nacional, existiam ainda em 1863, seis prelos manuais à Stanhope, construídos em Lisboa. Na Imprensa da Universidade de Coimbra existiam, em 1877, dois prelos do sistema Stanhope. (extraído do site do Museu Virtual da Imprensa, do Porto, em Portugal. http://www.imultimedia.pt/museuvirtpress/, consultado em 18 de janeiro de 2008)
Gazeta do Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1808, página 4.
Assim, o mês mais provável para a chegada de imprensa no Brasil é setembro. E a
única data precisa confiável é o 10 de setembro, dia em que começou a circular a Gazeta.
É muito provável, porém que o Correio tenho circulado antes, no começo de
setembro de 1808. De qualquer forma, junho é uma impossibilidade.
Referências bibliográficas
Abreu, Alzira Alves de. A imprensa em transição. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1996.
Terrou, F., Albert, Pierre. História da imprensa. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
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