UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA MESTRADO EM GEOGRAFIA HUMANA
RENATO ALVES DO NASCIMENTO
A PAISAGEM NARRATIVA DO NORDESTE E DOS
NORDESTINOS NOS FILMES DE VLADIMIR CARVALHO
(Verso Original)
So Paulo 2012
UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA MESTRADO EM GEOGRAFIA HUMANA
A PAISAGEM NARRATIVA DO NORDESTE E DOS
NORDESTINOS NOS FILMES DE VLADIMIR CARVALHO
Renato Alves do Nascimento
Dissertao de Mestrado desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana da Universidade de So Paulo, sob a orientao do Prof. Dr. Manoel Fernandes de Sousa Neto, para a obteno do ttulo de mestre.
So Paulo 2012
FOLHA DE APROVAO
Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Geografia
Mestrado em Geografia Humana
A PAISAGEM NARRATIVA DO NORDESTE E DOS
NORDESTINOS NOS FILMES DE VLADIMIR CARVALHO
Aprovada em .............. / ............... / .................. Pelos membros da Banca Examinadora: ................................................................................................... Prof. Dr. Manoel Fernandes de Sousa Neto (Orientador e Presidente da Banca) .................................................................................................... Prof. Dr. Antonio Carlos Robert de Moraes (Professor Titular do Departamento de Geografia da FFLCH/USP) .................................................................................................... Prof. Dr. Joo de Lima Gomes (Membro Externo - Docente da UFPB)
So Paulo SP 2012
Dedico: A JOS FELIPE SOBRINHO e RITA FELIPE ALVES (meus pais) pelo amor e pela coragem de terem sado do campo para a cidade no af de ver os filhos alfabetizados; A ANADETE ALVES (esposa) pelo amor, dedicao, pacincia nas minhas ausncias e por compartilhar tambm de prazerosos momentos geo-cinematogrficos;
Ao Senhor JOS PERES DA SILVA (in memoriam), amigo e cinfilo que me levou ao Cine So Jos pela primeira vez; Ao Professor PAULO ROSA (in memoriam) o primeiro a me dar crdito no dilogo entre cinema e geografia.
CRDITOS INICIAIS
Essa pgina de crditos muito importante para mim, devido ao enorme
dbito contrado antes, durante e depois dessa pesquisa, com uma infinidade
de amigos. So dbitos impagveis do ponto de vista financeiro que procuro
aliviar, me colocando a disposio de todos, e inscrevendo-os nesta pgina,
como uma simples lembrana ou um singelo reconhecimento a:
MANOEL FERNANDES (Professor doutor da USP), um autntico mestre da geografia e da histria, um inconteste orientador alm de amigo e companheiro que sem a sua parceria jamais concretizaria esse mestrado; GUIA MENDES (Poeta e escritor), amigo, irmo, companheiro de todas as horas, meu guru, meu mestre, professor das primeiras imagens e revisor de quase tudo que escrevo; MNICA TELES (Mestra em Geografia), amiga e companheira que compartilhou comigo as primeiras agonias e alegrias nessa trajetria acadmica; JOUBERTO LOPES (Analista desenvolvedor de Java), amigo, companheiro e irmo de todos os momentos em Sampa, alm de meu tradutor oficial do ingls e consultor para os assuntos de informtica; VANDA RGIS DE PAIVA (Mestra em Geografia), amiga, companheira de grandes momentos, e dos primeiros passos na geografia, que sempre acreditou em mim e uma das responsveis por este mestrado; LIVALDO CORDEIRO (Mestre em Navegao), amigo, irmo, companheiro, meu guru de assuntos diversos e internacionais, que sempre acreditou em mim e junto com Vanda foi tambm responsvel nesse projeto; CLUDIA MONTENEGRO (Mestra em Psicologia), amiga, companheira de trabalho, consultora psicolgica de vrios momentos, responsvel por esse mestrado, sempre atenta e generosa com a minha capacidade em desenvolver essa pesquisa; MARY LEADEBAL (Administradora), amiga e companheira da UFPB que est sempre pronta para ajudar, seja em perodos favorveis como em tempos difceis; VANESSA PESSOA (Estudante de Comunicao), amiga e companheira de universidade que editou as imagens e produziu o DVD que faz parte dessa dissertao;
ADEILDO VIEIRA (Jornalista e Msico), amigo e companheiro de labuta e de viagens musicais e audiovisuais que esteve sempre pronto quando precisei; EDUARDO MORETTIN, HENRI PIERRE e ISMAIL XAVIER (Professores Doutores da ECA), com quem aprendi muito sobre documentrios, foram grandes colaboradores neste projeto e compreensveis quando precisei viajar as pressas para Joo Pessoa, me ausentando de algumas discusses; ANTONIO CARLOS ROBERT DE MORAES (Professor Titular da USP), um verdadeiro mestre da geografia e da histria, um novo amigo que contribuiu muito com essa pesquisa, tanto nas agradveis e enriquecedoras aulas como na qualificao; JOO DE LIMA GOMES (Professor Doutor da UFPB), um verdadeiro mestre no cinema paraibano, companheiro de jornadas cinematogrficas, que sempre colaborou na minha trajetria profissional e acadmica, assim como nessa pesquisa, principalmente na qualificao; LCIA DE FTIMA GUERRA, (Professora Doutora da UFPB e Pr-reitora), uma verdadeira mestra em gesto pblica e em liderar pessoas, que contribuiu muito na minha trajetria profissional e acadmica, sempre compreensiva, acreditou e foi responsvel tambm por esse projeto; MRCIO FERREIRA NERY CORRA (Mestre em Geografia), amigo e colega da disciplina de Teoria Geogrfica, que me inspirou no ttulo da Cena 01, quando me presentou com um livro sobre cinema e geografia, com uma mensagem que dizia: A vai aquele livro que lhe falei. Tenho certeza que lhe ser muito til. Portanto, use e abuse do seu talento em cinematografar o espao e geografizar o cinema. Ambos foram teis, o livro e a mensagem; DARLAN (Violonista e Mestre em Msica), KELLY (Estudante de Arte) e DELYAN (Estudante do Ensino Fundamental), filho, nora e neto que moram no meu corao e foram, tambm, a razo de ter superado as dificuldades e a distncia longe do nosso lar; URBANO, SANDRA e MATEUS amigos que me proporcionaram momentos super agradveis e gastronmicos em So Paulo; JOO BATISTA (Tcnico em Som) e JOS GERALDINO (Assistente de Estdio), amigos e colegas da UFPB que sempre esto prontos quando preciso;
Sem esses amigos eu no seria capaz de ter desenvolvido essa
pesquisa, at porque, mesmo sendo funcionrio da UFPB, no tive a felicidade
de ser contemplado com nenhum financiamento.
R O T E I R O
CRDITOS INICIAIS ................................................................................... 04
SINOPSE .................................................................................................... 07
ABSTRACT .................................................................................................. 08
ARGUMENTO / ABERTURA ....................................................................... 09
CENA 01 Plano Geral: Geografizando o cinema e cinematografando o espao/paisagem .................................................................................... 13
Tomada 1: Uma paisagem movimentada pelo cinema ....................... 13 Tomada 2: Que diabos tem a ver cinema com geografia? ............... 18 Tomada 3: Quem faz o que com cinema e geografia ......................... 20 Tomada 4: Uma paisagem que conta histrias ................................... 27 Tomada 5: Vladimir Carvalho e suas paisagens nordestinas ............. 33 Tomada 6: O Nordeste e os nordestinos nas telas do cinema ............ 37
CENA 02 Close em Vladimir Carvalho ..................................................... 51 Tomada 01 Uma experincia marcante ........................................... 51 Tomada 02 Onde tudo comeou? .................................................... 52 Tomada 03 A empatia pelo cinema documentrio ........................... 54 Tomada 04 Da teoria prtica ......................................................... 56 Tomada 05 Diz-me com quem andas e te direi quem s .............. 67
CENA 03 - Plano sequncia em Romeiros da Guia .................................... 73
CENA 04 - Planos de Detalhes em A Bolandeira ........................................ 90
CENA 05 - Travelling em O Homem de Areia ............................................. 102
CENA 06 Panormica com Flashback na paisagem narrativa dos 3 filmes ........................................................................................................ 115
THE END com Flash Foward ...................................................................... 140
CRDITOS FINAIS ..................................................................................... 148
BNUS ........................................................................................................ 155 01 Figura I - Croqui do percurso dos Romeiros da Guia .................. 156 02 Figura II Croqui da localizao do engenho de A Bolandeira .. 157 03 Figura III Croqui do trajeto realizado por J. Amrico, montado a cavalo, tomado de sua autobiografia em O Homem de Areia .......... 158 04 Filmografia de Vladimir Carvalho ................................................. 159 05 Transcries do filme A Bolandeira ............................................. 165 06 Roteiro Decupado do filme Os Romeiros da Guia ....................... 169 07 Transcries do filme O Homem de Areia .................................. 177 08 Transcrio da entrevista com Vladimir Carvalho ....................... 192 09 Glossrio dos termos tcnicos da linguagem flmica .................. 201
7
SINOPSE A paisagem narrativa um conceito abstrato de movimento que se concretiza na observao da paisagem fsica, histrica e geogrfica, assim como na paisagem flmica. Aqui, a paisagem geogrfica analisada sob o ponto de vista de uma geografia retrospectiva, numa leitura de narrativizao, a partir das imagens de filmes documentrios. Essa leitura feita no intuito de compreender como o Nordeste e os nordestinos so representados no discurso imagtico da narrativa flmica. Para isso, foram analisados os documentrios Os Romeiros da Guia (1962), A Bolandeira (1968) e O Homem de Areia (1982), focados no espao, na paisagem, na sociedade e suas relaes poltico-econmico-cultural e histrica do Nordeste brasileiro, sob o olhar do cineasta Vladimir Carvalho, realizador dos respectivos filmes. A nossa concepo de paisagem narrativa est fundamentada nos conceitos e descries de David Lowenthal, com a importncia da simplicidade e subjetividade na pesquisa cientfica; Jean Marc Besse, na valorizao da paisagem, apresentando uma viso antropolgica para o desenvolvimento das culturas visuais; Jorge Luiz Barbosa, na afirmao de que o cinema constri as representaes da realidade de maneira singular sobre o que se v (a forma) e o que se apreende do visto (o contedo); e, principalmente, com as teses de Ana Francisca de Azevedo que enxerga a paisagem como narrativa com uma presena de referncia original, capturada pela arte do cinema em operaes de narrativizao ideolgica e de estetizao, para reconfigurar a experincia de representao e contemplao da paisagem.
Palavras-chave: Geografia Paisagem Nordeste Cinema Documentrio - Vladimir Carvalho.
8
ABSTRACT
The narrative landscape is a movement abstract concept that is realized in observation of the physical, historical and geographical landscape, as well as the cinematic landscape. At this article, the geographical landscape is analyzed from the standpoint of a geography retrospect, a narrativization reading, starting at images of documentary films. This reading is done in order to understand how the Northeast and it's people are represented in the imagery speech of film narrative. For this, we analyzed the documentary Os Romeiros da Guia (1962), A Bolandeira (1968) and O Homem de Areia (1982), focused on space, landscape, society and it's historic and culture-economics-politics relations with brazilian Northeast, under the perspective of the filmmaker Vladimir Carvalho, director of the respective movies. Our narrative landscape design is based on the concepts and descriptions of David Lowenthal, in consideration of simplicity and subjectivity in scientific research; Jean Marc Besse, in appreciation of landscape, presenting an anthropological vision for the development of visual cultures; Jorge Luiz Barbosa, in the assertion that the film builds representations of reality that is unique about what you see (shape) and what is learned about (content); and, mainly, with the thesis of Ana Francisca de Azevedo, who sees the landscape as a narrative with an original reference presence, caught by the cinema's art of ideological narrativization operations and aesthetization, to reconfigure the acting experience and contemplation of the landscape.
Key-words: Geography - Landscape - Northeast Cinema Documentary - Vladimir Carvalho.
9
ARGUMENTO / ABERTURA
Estudos sobre cinema e geografia tm se tornado mais frequentes nos
ltimos tempos. Numa consulta despretensiosa, possvel se encontrar uma
infinidade de textos, artigos, crnicas, monografias, dissertaes e teses.
A ligao entre cincia e arte certamente no privilgio apenas da
Geografia. H cada vez mais disciplinas, particularmente das cincias humanas, que
trilham por esse caminho: histria, sociologia, filosofia, arquitetura, psicologia, letras.
Na geografia, estudos com cinema tomam como referncia a categoria ampla
de espao e os conceitos de regio, territrio, lugar e paisagem para fazer a
conexo com o tempo/espao do cinema.
Nesse estudo, seguimos caminho semelhante com a categoria ampla de
espao e o conceito central de paisagem, mas, sempre que necessrio, outros
conceitos so referidos nas discusses, bem como categorias de espao-tempo,
impossveis de ficarem margem quando o assunto cinema ou geografia.
Est evidente pelo ttulo do nosso trabalho que o conceito central o de
paisagem. Aqui a paisagem apropriada no sentido de narrativa, ou seja, uma
paisagem narrativa que discorre, descreve e conta histrias, seja a paisagem
narrativa cinematogrfica ou a paisagem narrativa fsica, analisada do ponto de vista
de uma geografia retrospectiva. Ademais, a paisagem narrativa que est em
evidncia nessa investigao a paisagem narrativa do Nordeste e dos nordestinos.
Outra caracterstica nesse estudo que abordamos exclusivamente o cinema
documentrio e no o cinema de fico e comercial, comum e mais utilizado na
maioria das pesquisas do gnero. Adotamos especificamente o cinema
documentrio nacional, e muito em especial o cinema nordestino e paraibano do
documentarista Vladimir Carvalho, por entender que so obras contundentes e
significativas, principalmente para o estudo da histria e da geografia.
Nosso set de filmagem e investigativo se dar a partir de trs documentrios
de sua extensa filmografia: Os Romeiros da Guia (1962), A Bolandeira (1968) e O
Homem de Areia (1982), ambos com eventos, fatos e personagens eminentemente
paraibanos.
No intuito de tornar esse estudo menos maante e de mais fcil leitura, sem
perder naturalmente seu vnculo acadmico, optamos por introduzir na discusso a
nossa experincia de espectador e de realizador de registros audiovisuais. Para
10
isso, resolvemos inicialmente mudar a concepo do sumrio a fim de que ele
parecesse um roteiro cinematogrfico em que os captulos so denominados de
Cenas e os subcaptulos de Tomadas. Finalmente demos aos ttulos nomes de
elementos da linguagem cinematogrfica, fazendo sempre que possvel uma juno
com os temas geogrficos.
O primeiro captulo ou Cena 01: Geografizando o cinema e cinematogrando o
espao/paisagem, composto por 6 tomadas. Na primeira delas fazemos uma
retrospectiva experiencial como espectador de cinema, que se estende de 1960 a
1980, e que, segundo nossa anlise, tinha um ritual que alterava costumes, espaos
e paisagens.
Na tomada 02 um pouco dessa experincia ainda persiste, agora com
preocupao acadmica, e comeamos a ver que cinema e geografia, ao contrrio
do que muita gente pensa, guardam uma relao muito prxima.
Na terceira tomada, j anunciada essa nossa descoberta, vamos demonstrar
que h muitos estudiosos da geografia trabalhando com cinema sob as mais
variadas perspectivas, entre eles Jorge Luiz Barbosa, Wesceslao Machado de
Oliveira Jnior, Stefani Eduardo Baider, Pedro Geiger, alm da gegrafa portuguesa
Ana Francisca de Azevedo, com a qual compartilhamos a mesma linha de
investigao, e cujo conceito de narrativizao adotamos para embasar a nossa
pesquisa.
Na quarta tomada, instigados pelo conceito de paisagem narrativa,
continuamos com a reviso bibliogrfica e encontramos vrios estudiosos do
conceito. Mas, entre eles, destacamos os principais nomes que fundamentam essa
nossa investigao: Jean Marc Besse, Milton Santos, David Lowenthal e a prpria
Ana Francisca de Azevedo.
Na penltima tomada desta cena, apresentamos os documentrios
selecionados para anlise, o porqu da escolha, e quais as paisagens de Nordeste
de maneira geral o autor escolheu para filmar.
Na sexta e ltima tomada, tentamos por outro lado identificar que Nordeste foi
filmado pelo cinema, e qual a viso dos cineastas sobre a regio por eles retratada.
No segundo captulo ou Cena 02, procuramos saber quem Vladimir
Carvalho, sua origem, suas incurses por vrios estados brasileiros, sua fixao na
capital federal, para por fim iniciar, de maneira sinttica, uma reviso de toda sua
produo cinematogrfica. Para isso, subdividimos a Cena em 5 tomadas.
11
Na primeira, descrevemos nossa experincia trabalhando ao lado do cineasta,
visando com isso fornecer ao leitor peculiaridades acerca do estilo do
documentarista.
Na segunda tomada, discorremos sobre sua origem familiar e suas vivncias
na terra natal Itabaiana, na Paraba, bem como referimos a acontecimentos que
marcaram a sua trajetria e que esto, de certa forma, nas paisagens narrativas dos
seus filmes.
Na terceira tomada, tratamos de desvendar os contatos que Vladimir teve
com o universo literrio e como espectador de cinema que o levaram a optar pelo
documentrio.
Na quarta tomada, intitulada Da teoria a prtica, o leitor vai conhecer como
Vladimir Carvalho iniciou sua trajetria de cineasta como assistente de direo no
filme Aruanda, de Linduarte Noronha, obra representativa do movimento
cinemanovista dos anos 1960, alm de suas primeiras incurses como diretor,
seguido de uma breve anlise de todas as suas obras.
Na quinta e ltima tomada, sob o ttulo de Diz-me com quem andas e te direi
quem s, apresentamos as parcerias e os contatos que Vladimir manteve durante a
sua trajetria e que marcaram definitivamente as suas obras. So contatos com o
Partido, como era assim chamado o Partido Comunista na poca, com artistas do
conhecido Avant-Garde da Bahia, com o CPC da UNE, com msicos, artistas
plsticos, polticos e cineastas da envergadura de Glauber Rocha, Eduardo Coutinho
e Arnaldo Jabor.
Em seguida procedemos a anlise de trs filmes, divididos em 3 Cenas sem
subcaptulos ou Tomadas. Na Cena 03 Plano sequncia em Os Romeiros da Guia,
analisamos o documentrio observando todas as suas caratersticas, identificando
os elementos da gramtica flmica, a proposta narrativa e o contexto da ideia dos
diretores Vladimir Carvalho e Joo Ramiro Mello.
Na Cena 04 Planos de Detalhes em A Bolandeira, como na anterior,
desenvolvemos a anlise utilizando a mesma abordagem, at porque os detalhes na
narrativa esto tambm numa sequncia. Como se sabe, A Bolandeira um curta-
metragem em que a narrativa est apoiada num poema cujos versos esto ligados
s imagens em planos detalhistas.
Na Cena 05 Travelling em O Homem de Areia, estudamos esse longa-
metragem, de narrativa estruturada em flashback, sobre a vida do escritor, jurista,
12
poeta e poltico Jos Amrico de Almeida. um filme de muito movimento, por isso
optamos, por assim dizer, em analis-lo maneira de um travelling, movimento de
cmera que pode ser feito em qualquer direo. Evidentemente isso no significa
que deixamos de lado os aspectos histricos, contextuais e estticos do filme.
Na Cena 06 Panormica com Flashback na paisagem narrativa dos 3 filmes
-, realizamos uma anlise abordando alguns trechos dos filmes que so mais
representativos para o nosso conceito de paisagem narrativa. Para isso, decifrar as
cenas, planos e sequncias da narrativa flmica foram essenciais para compreender
as representaes do ponto de vista das paisagens narrativas histricas e
geogrficas. Essa anlise se deu luz dos conceitos e tericos do cinema, como
Christian Metz, J. Dudley Andrew, Antnio Costa, Bil Nichols, Joo Batista Brito,
entre outros, e os da cincia geogrfica citados anteriormente. Por isso o ttulo
sugere uma panormica que visualiza os trs filmes a um s tempo e um flashback
porque fazemos um movimento de ida e volta nos documentrios e nas teorias
selecionadas para a pesquisa.
Por ltimo o leitor encontra, semelhana dos filmes e como concluso ou
Consideraes finais desta dissertao, o The End com Flash Foward, em que
fazemos uma sntese do que estudamos e consideramos fim do presente trabalho.
Assim, o flash foward uma prospeco ou uma sugesto de continuidade para a
discusso sobre cinema e geografia, sobretudo ou particularmente em relao ao
nosso cinema.
Por ltimo, as referncias bibliogrficas esto postas como Crditos Finais e
os anexos como Bnus. Os bnus so comumente encontrados nos DVDs
comerciais e ajudam a entender melhor como foi a produo dos filmes, entre outras
informaes de bastidores. Essa nossa ideia nos bnus que representam os
anexos, inclusive inserimos um Glossrio com os termos tcnicos correntes no
cinema e na linguagem audiovisual, que foram utilizados ao longo do nosso texto.
Enfim, este estudo busca fortalecer o dilogo ainda um pouco tmido existente
no estudo da geografia e cinema, no que diz respeito a abordagem de filmes como
recurso investigativo, principalmente em se tratando de cinema documentrio
nacional. Em sntese, o leitor vai se deparar com uma viso multifacetada da
geografia terica e emprica, no liame com a arte cinematogrfica, numa leitura de
paisagens narrativas do nordeste e dos nordestinos, sob o olhar de Vladimir
Carvalho.
13
CENA 01: PLANO GERAL - GEOGRAFIZANDO O CINEMA E
CINEMATOGRAFANDO O ESPAO / PAISAGEM
TOMADA 01 UMA PAISAGEM MOVIMENTADA PELO CINEMA
J passa um pouco das treze horas e a praa est tomada de transeuntes
que se movimentam nas mais diversas direes. A maior convergncia do
movimento para o templo do entretenimento de todo domingo tarde, ao lado da
praa. A frente do templo parece um mercado persa. Jovens e adolescentes se
aglomeram para comprar, vender e trocar revistas, gibis, almanaques e livros de
bolso. No difcil encontrar aqui as mais recentes novidades, relquias e
preciosidades do mundo das Histrias em Quadrinhos. Os vendedores de balas,
bombons, chocolates e cigarros esto apostos e atentos aos gostos e desejos dos
fregueses do lugar. Os tabuleiros, a tiracolo, esto repletos de confeito de mel,
pirulito, chiclete Ping-Pong, chocolate Galak e cigarros Gaivota, Continental e
Hollywood com filtro. O homem da pipoca e do algodo doce no para de trabalhar.
A fila dos compradores contnua e ningum entra no templo sem ter o que
mastigar.
Esse aglomerado cultural se desenvolvia da praa at a frente do cinema e
culminava l dentro, antes do incio das sesses do domingo. poca, o acesso
sala de cinema se dava em torno de 30 minutos antes de comear a sesso. Era um
tempo suficiente para degustar um gibi de poucas pginas e depois, ao final do
filme, trocar por outro na sada e levar para ler em casa. Era tempo suficiente
tambm para comentar a ansiedade de ver o novo filme ou discutir sobre os filmes
passados, seus heris, bandidos, ou as lindas donzelas.
Era essa a paisagem tpica dos domingos tarde, que se construa nos
espaos entre a Praa Clementino Procpio e o Cinema Capitlio na cidade de
Campina Grande, na Paraba, nos finais dos anos 1960 at meados da dcada
seguinte. Essa paisagem s era possvel pela fora atrativa do cinema, com o seu
universo flmico, que deixava todos extasiados em suas mais diversas nuances e
narrativas.
L dentro, o espao era delineado em outra situao. Os espectadores
acomodados em suas cadeiras, lendo, conversando, namorando, chupando balas,
comendo pipocas, entre outras guloseimas, aguardavam o momento das cortinas se
14
abrirem, como se fosse um teatro, para visualizao da grande tela. Essa abertura
s acontecida aps o terceiro toque de uma suave e agradvel vibrao do som de
gongo chins que, simultaneamente, convergia com o apagar das luzes. A msica
clssica ou instrumental que desde a entrada do pblico j massageava nossos
ouvidos, agora sumia para dar lugar aos sons cinematogrficos.
A partir da a sala se enchia com uma enorme tela branca que recebia um
canho de luz e cores atravessando toda a sua extenso e modificando o espao
para uma viagem de sonhos, fantasias e realidades projetadas atravs da pelcula
em 24 fotogramas por segundo. Realidades tambm, porque podamos saber das
notcias do Brasil e do mundo atravs do Canal 100. Um jornal cinematogrfico que
era exibido antes dos traillers e do filme principal. A exibio acontecia por conta da
legislao que, a partir do Decreto n. 21.240 de quatro de abril de 1932, obrigava os
cinemas a exibirem os filmes informativos de curta-metragem antes do filme de
longa-metragem, motivo principal do espetculo1. O Canal 100 marcou uma poca
do auge do cinema e da ditadura militar, em que as notcias eram sempre dos atos
do governo, mescladas com algumas matrias de moda e cultura tendenciosas.
vlido observar que essas tendncias j eram um prenncio das estratgias do
conceito de indstria cultural2 to em voga hoje.
Mas, a grande sensao do jornal, que levava a plateia loucura e euforia,
era o momento do futebol em que partidas de grandes clssicos brasileiros eram o
destaque na telona. Numa produo cinematogrfica, plasticamente bem elaborada,
os melhores lances podiam ser apreciados em ngulos e planos que seriam
impossveis de ser vistos ao vivo num estdio. Nos sensacionais gols, nas
impiedosas cobranas de faltas, nas defesas espetaculares dos goleiros a sala
parecia que ia abaixo com o estouro dos gritos e vibraes da plateia. Quando a 1 Sobre o Canal 100, origem e trajetria, h pesquisas e textos importantes. Para mais conhecimento leia-se COIMBRA, Octvio Cmara de Melo. Canal 100: Um cinejornal e a memria social. Dissertao de Mestrado, UFRJ, 1988; FILHO, Kleber Mendona. O Canal 100 Captou o Imaginrio do Futebol. Disponvel em: http://www.cf.uol.com.br/cinemascopio/artigo.cfm?CodArtigo=60, Acesso em 15/06/2012; MAIA, Paulo Roberto de Azevedo. Canal 100 A trajetria de um cine jornal. Disponvel em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/download/2228/1329. Acesso em 15/06/2012. 2 Conceito utilizado pelos pensadores alemes da Escola de Frankfurt, Teodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1975), que empregaram o termo pela primeira vez no captulo O Iluminismo como mistificao das massas, no ensaio Dialtica do Esclarecimento, escrito em 1942, e s publicado em 1947. Disponvel em: http://andrelemos.info/com104/labels/resenha%20de%20aula.html. Acesso em 11/05/2012. Uma leitura importante sobre o conceito pode ser conferida em ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira Cultura brasileira e indstria cultural. So Paulo: Brasiliense, 2001.
15
partida era Vasco e Flamengo ou Santos e Corinthians no tinha como evitar o
alvoroo. Essa euforia se explica porque apesar de termos assistidos a copa de
1970 pela televiso, bom lembrar que, na poca, no tnhamos jogos televisados
ao vivo, nem tampouco televiso acessvel como hoje.
Aps o jornal, o filme comeava e outro espao se configurava de acordo com
o gnero, tema ou enredo. Nesta poca o grande espetculo ficava por conta dos
westerns italianos, as comdias e filmes romnticos. Ringo, Django, Roy Rogers
eram nosso heris maiores, talvez porque os tiros, exploses e emboscadas eram
s contra os maus e forasteiros e as balas perdidas no atingiam inocentes.
Essas paisagens e cenrios tambm eram possveis de serem vivenciadas,
com menos pompa, no Cine So Jos ou no Cine Avenida. O primeiro localizado
em um bairro de classe mdia, com o mesmo nome do cinema, e o segundo em
bairro de classe alta, na poca Bairro da Prata (hoje rea comercial), mais prximo
do centro da cidade. Menos pompa porque em ambos as telas eram menores que a
do Capitlio e o espao fsico, interno e externo, era menor e no tinha praa na
frente. Desse modo, o mercado persa se organizava ao longo das suas caladas e
dos prdios vizinhos. No So Jos no tinha cortinas para a abertura da tela e a
campainha no era suave como a do Capitlio, mas a compensao estava no
preo que era mais acessvel. O Cine Avenida tambm no tinha cortinas na tela,
mas a campainha era mais agradvel e a compensao estava tambm no preo do
ingresso. Havia tambm o Cine Babilnia localizado no centro da cidade, com os
requintes do Capitlio, s no tinha praa na frente e o comrcio se organizava na
calada. De qualquer forma, podia-se assistir ao mesmo filme em qualquer um deles
e a opo estava na condio financeira do momento. O importante para a maioria
dos jovens e cinfilos da poca estava, realmente, no ritual dos domingos em ir para
o cinema, no importava qual deles.
Ainda nesses anos, outros espaos eram modificados pela fora do cinema.
Em frias, ia para uma cidadezinha pacata e distante 70 quilmetros de Campina
Grande, Cubati, no serto paraibano. L, nos sbados noite, o mercado pblico se
transformava no templo da imagem e do som. Os bancos de feirantes, toldos e
barracas eram desarmados para dar lugar aos tamboretes3 e cadeiras trazidos de
3 Tamborete uma espcie de banco feito de madeira, com 3 ou 4 pernas, muito comum no Nordeste brasileiro.
16
casa, a fim de construir um ambiente de sala de cinema. A parede principal do
mercado ganhava uma tela de lenol branco e um dos bancos da feira apoiava o
projetor de um comerciante do lugar, amante do cinema, que militava pela diverso
da stima arte e ganhava uns trocados extras.
Aqui, se o filme no tivesse ao com muito tiro, vingana, traio, amor no
final e um heri vencedor, o Senhor Toinho Pre (como era conhecido) nem trazia,
porque seno no outro sbado ningum ia ao cinema, para se vingar do filme ruim
que ele trouxe anteriormente. Ou seja, um filme que no tivesse uma narrativa linear
empolgante no era um filme de verdade, para a grande maioria daquele pblico.
Esses eram espaos e paisagens construdos atravs do cinema comercial
que, com certeza, muita gente vivenciou nas grandes cidades e nos interiores deste
pas.
No h como negar que o cinema nasceu e se desenvolveu para a vida social
juntamente com a grande cidade, e que a sua histria se cruza com a geografia das
cidades. Segundo BARBOSA (2000), a imagem dos lugares criada/reproduzida pelo
cinema se torna parte constitutiva da prpria cidade. Dessa forma, ainda de acordo
com Barbosa, depois das experincias dos irmos Lumire, as salas de exibio
foram se transformando em verdadeiros templos de entretenimento das massas
urbanas e se tornaram espaos de referncia da cultura moderna.
Havia outros espaos construdos para o cinema de arte, para os filmes ditos
marginais ou underground, que se organizavam em associaes de bairros,
universidades e outras entidades que alimentavam a prtica da sala de cinema
independente ou cineclubes, como eram mais conhecidos. Nesses espaos o
pblico era resumido, seleto e composto, via de regra, de intelectuais, jornalistas,
artistas, estudantes universitrios e tambm populares.
Nestes lugares a paisagem era diferenciada, tanto do ponto vista esttico
quanto tcnico, com projetores de 16mm para filmes de curta- metragem, pois j
havia uma grande produo de filmes nesta bitola. As sesses eram seguidas de
debates coordenados, geralmente, por um estudioso de cinema e apreciador das
teorias flmicas e cinematogrficas. O ritual das sesses era quase sempre o
mesmo: o responsvel por ter encontrado o filme fazia a sua apresentao e
contava como tinha conseguido a pelcula. Fato que se configurava num feito
herico, porque o cinema de arte no se encontrava com facilidade, principalmente
fora do circuito do Sudeste, e os filmes mais apreciados eram os europeus e
17
soviticos. vlido um adendo aqui, porque no se pode negar que os cineclubes
funcionaram na poca, tambm, como ttica ideologista do Partido (PCB).
De qualquer forma os cineclubes foram impulsionadores, formadores e
fomentadores de crticos, professores de cinemas, cineastas, diretores e tcnicos
que se consagraram no exerccio da profisso e so reconhecidos at hoje.
Cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Eduardo Coutinho ou
os paraibanos Linduarte Noronha, Vladimir Carvalho e Manfredo Caldas comearam
suas trajetrias nos cineclubes.
Esses trs espaos descritos, construdos a partir da influncia do cinema e
de filmes, so apenas uma pequena amostra do universo paisagstico que a arte
cinematogrfica configurou e continua configurando espacialmente por meio da sua
magia da imagem em movimento.
Hoje, o cinema continua cumprindo com a sua misso de causar as mais
diversas sensaes nos espectadores, como tambm modificando, construindo e
alterando espaos e paisagens. Aos poucos, da dcada de 1980 para c, o cinema
se transferiu das grandes salas, praas e mercados para ocupar os shoppings
centers. Nesses templos modernos quase impensvel a falta de uma sala de
cinema. H shoppings com mais de dez salas exibidoras, modernas e sofisticadas,
para atrair uma clientela de gostos diversificados, bem como espectadores assduos
e amantes da stima arte.
Claro que a paisagem outra. O pblico tem novos e variados gostos e
comportamentos. Para isso, as salas e as exibies tambm mudaram para se
adequar aos desejos do pblico e nova estrutura criada a partir do prprio cinema,
porque ele tambm produz seu pblico. Na frente destas salas no se vendem nem
se trocam mais gibis e revistas. O acesso sala s se d dez ou quinze minutos
antes do incio do filme. O Canal 100 h muito desapareceu das telas. Os jovens
entram no cinema s pressas, porque no tm mais o tempo para as literaturas,
apenas para a pipoca e o refrigerante vendidos por empresas vinculadas do
cinema, com preos acima do mercado. E quando se entra na sala, no tem mais
campainha nem cortinas, porque o filme comea logo. Algumas vezes so exibidos
dois traillers, ou no mximo trs, depois de alguns comerciais de empresas
multinacionais instigando o consumo dos seus produtos ps-modernos.
Nesse sentido, a magia anterior ao filme e construo da paisagem
externa dos templos dos cinemas dos anos 1960, 1970 e incio de 1980, tambm
18
se tornaram efmeras. Na verdade, foram metamorfoseadas pelos novos
conglomerados econmicos que concentram as atividades sociais, culturais,
econmicas e polticas em seus templos fechados, como nos burgos do perodo
medieval, porm com uma roupagem nova denominada shoppings centers.4
No entanto, os espaos e paisagens internos aos filmes continuam vivos,
ativos e em constante aperfeioamento, com novas tcnicas digitais e sem alterar os
verdadeiros propsitos do espetculo flmico e cinematogrfico, que expressar e
representar nossas vivncias e relaes com o espao, a natureza e o prprio ser
humano.
Nossa convivncia naquela poca, naqueles espaos e paisagens foram
marcantes na nossa vida e formao. De tal maneira que, ao chegar na
universidade, encantado tambm pela geografia desde os primeiros letramentos,
tentei imediatamente vincular as duas coisas geografia e cinema.
TOMADA 02 - QUE DIABOS TEM A VER CINEMA COM GEOGRAFIA?!!!
Essa foi uma das primeiras reaes que vivenciei, no incio dos anos 1990,
quando declarei que pretendia concluir meu curso de bacharelado em geografia com
uma monografia sobre cinema e geografia.
Vrios colegas disseram: T louco! Fazer trabalho com cinema coisa l da
comunicao.
O mais impressionante foi que ouvi coisas desse tipo no s de colegas do
curso, mas tambm de alguns professores. Por outro lado, alguns deles no me
desanimaram, mas alegavam: Acho uma ideia fantstica, s no sei como fazer a
vinculao e nem me atrevo a lhe orientar.
Isso me deixou inquieto e angustiado, porque eu no conseguia desvincular
as semelhanas e o parentesco entre a arte cinematogrfica e a cincia geogrfica.
Para mim, era um casamento perfeito quando se tratava de analisar, representar ou
criticar o espao, a paisagem e o tempo nas relaes sociedade/natureza.
4 Sobre os Shoppings Centers h uma considervel literatura sobre o tema: MESQUITA, Dilma. Shopping Center: a cultura sob controle as relaes atuais entre literatura e sociedade de consumo. Rio de Janeiro: gora da Ilha, 2002; IWACOW, Ana Elisabeth. O comportamento jovem e os shoppings centers um objeto para a publicidade. Tese de doutorado em Cincia da Comunicao pela Unisinos, 2003; PADILHA, Valquria. Shopping center a catedral da mercadoria. So Paulo: Boitempo, 2006.
19
Ainda imaturo, no conseguia enxergar as demais categorias e conceitos
inerentes aos dois, que me possibilitassem por um lado contra-argumentar as
desfeitas, e por outro vislumbrar a forma de elaborar um projeto.
Eis que, certo dia, cursando uma disciplina com um dos mais recentes
professores contratados, falei da minha vontade. Ele prontamente me surpreendeu,
indagando: At que enfim algum t enxergando arte e cincia num corpo s. E
emendou: isso a garoto, o que voc pensa fazer?.
Fiquei um pouco atordoado. Afirmei que no tinha certeza, mas via nos filmes
muita geografia, principalmente nos documentrios, reportagens e nos filmes da
National Geographics, assim como via na geografia muita coisa de cinema, s no
sabia como unir os dois temas.
Depois de alguns encontros e conversas, chegamos a um denominador
comum, proposto por ele, que era demonstrar que o vdeo era um importante
instrumento de registro de fenmenos geogrficos. Essa pesquisa resultou no meu
trabalho de final de curso. Era algo como um gegrafo com a cmera na mo e o
espao na cabea, parafraseando Glauber Rocha. A proposta foi intencional, j que
eu trabalhava no ncleo de cinema da UFPB, como videomaker, e andava
registrando e produzindo vdeos sobre o trabalho extramuros da universidade. A
monografia recebeu destaque e foi publicado num Caderno de textos da Pr-reitoria
de Extenso5.
Fiquei empolgado e no consegui mais desvincular a geografia do
audiovisual, passando a desenvolver inmeros trabalhos tanto num como no outro,
ou com os dois juntos. Isso foi concretizado tambm na licenciatura e depois numa
especializao em psicopedagogia, ambas realizadas na UFPB.
Essa unio me empolgava muito, e ainda empolga, porque no conseguia me
deter apenas no cinema enquanto entretenimento ou enquanto recurso de ilustrao
pedaggica ou ainda como instrumento de registro da memria e da identidade de
um lugar ou de costumes de um povo.
O cinema para mim tem um efeito alm da imagem, da narrativa e do discurso
audiovisual. Uma sala de cinema, por exemplo, tem a fora de modificar a paisagem
5 NASCIMENTO, Renato Alves. O vdeo como instrumento de registro de fenmenos geogrficos. Srie Extenso, doc. 9 PRAC/COEx/NUDOC. Joo Pessoa: Cartex, 1996.
20
de um lugar e os hbitos de uma populao de maneira muito sutil, como vivenciei
nos anos de 1960 a 1980, conforme descrevi aqui.
Por isso quando comecei a estudar geografia e trabalhar com cinema,
reportei-me quelas pocas e passei a tentar responder algumas questes, como:
Ser que o cinema realmente modifica paisagens e lugares? Porque mesmo que as
pessoas mudem os seus hbitos e costumes, com novas tecnologias inclusive, o
cinema continua com a magia de concentrar multides? Ser que alguns filmes
como documentrios e reportagens mudaram realmente a paisagem geogrfica de
certos lugares ao divulgar as imagens e representaes dos mesmos? Qual a
importncia da paisagem cinematogrfica em relao paisagem geogrfica
enquanto narrativa, identidade e memria de um lugar ou de um povo?
So questes que passaram a me inquietar e que hoje buscamos responder,
ou pelo menos entender parte delas, ao longo da nossa investigao.
O mais interessante nessa histria que s recentemente pesquisando para
o mestrado me dei conta da quantidade de trabalhos existentes em torno da
geografia e do cinema. Alm, claro, do cinema com outras cincias como a
histria, a sociologia, a psicologia, a arquitetura e a filosofia, por exemplo.
O melhor que essa juno de cincia e arte no nenhuma novidade na
geografia, mesmo sendo um dilogo de certa forma ainda tmido. H muitos estudos
e pesquisadores que trilham por esse caminho com vises bastante interessantes e
distintas.
TOMADA 03 - QUEM FAZ O QUE COM CINEMA E GEOGRAFIA
Numa breve revista em trabalhos sobre geografia e cinema e seus
respectivos autores, encontramos diversas abordagens e temas interessantes, alm
de preocupaes com a pesquisa do cinema na geografia. A gegrafa portuguesa
Ana Francisca de Azevedo, entre outras consideraes, alerta que Geografia e
Cinema como domnio de investigao recai sobre a anlise do cinema como
produto cultural que interfere na definio da interaco entre os indivduos e o
espao reflectindo estruturas sociais e ideolgicas. (AZEVEDO, 2006, p.65-66)
Ela aponta ainda que essa abordagem definida por autores como Zoon
(1984), Gold (1985), Lukinbeal e Kennedy (1993), Zeimmerman (2005). Nessa
seara, a prpria Ana Francisca nos seus estudos de Geografia e Cinema analisa a
21
paisagem cinematogrfica como representao cultural, do mesmo modo que Gandy
(2004). Estudos sobre o efeito da indstria cinematogrfica e da produo de filmes
no desenvolvimento econmico e na promoo de regies e lugares, tambm so
notrios na geografia pelos estudos de Holloway e Millington (1999). H ainda
trabalhos que so pautados nos aspectos geopolticos dos filmes, como os de
Jenkin (1990); Godfrey (1993) e Klauss (2005), assim como estudos sobre a anlise
do efeito das foras hegemnicas e contra-hegemnicas na representao dos
lugares realizados por Rose (1994) e Macdonald (1994).
Sendo assim, desde os anos 1980 temos uma considervel variedade de
diferentes perspectivas de abordagens tericas e metodolgicas na investigao da
geografia no cinema.
Para Azevedo (2006) observvel que as anlises de carter mais
sociolgico definem um conjunto de abordagens voltado para os aspectos do papel
do filme na produo e reproduo de valores dos grupos dominantes, apontado por
Burgess e Gold em 1985. Por outro lado, as anlises de carter cognitivista definem
abordagens voltadas para os aspectos do papel do cinema enquanto mediador das
relaes entre o indivduo e o ambiente, como to bem enfatizado por Aitken em
1991.
Enquanto sintoma de importantes alteraes ocorridas e verificadas no mbito
da Geografia Humana, Azevedo (2006) indica que os estudos do cinema em
geografia refletem duas grandes tendncias: a) o desenvolvimento das abordagens
Humanistas e dos Estudos da Paisagem; b) o desenvolvimento dos Estudos Scio-
culturais:
Os primeiros tm como problemticas de anlise as representaes de paisagem e o significado dos lugares nos filmes, pelo que as aproximaes metodolgicas manifestam um pendor mais interpretativo, estando mais associadas s humanidades, Histria da Arte, Crtica Literria, e Esttica. Os segundos, centram as problemticas de anlise nas polticas scio-culturais subjacentes a cada filme, analisando relaes de subordinao e domnio que trespassam a construo do significado flmico, pelo que as aproximaes metodolgicas esto mais associadas Sociologia e aos mtodos de anlises qualitativa (AZEVEDO, 2006, p. 65)
Essa natureza bipolar dos estudos e investigao geogrfica em cinema,
desenvolvida nas ltimas dcadas, enfatizada por Christina Kennedy e Christopher
Lukinbeal (1997), acusando a necessidade de uma eroso nos quadros tericos e
22
metodolgicos bipolares que, na verdade, revelam a naturalizao de ideologias
baseadas numa racionalidade bipolar. De acordo com Azevedo (2006), a proposta
de carter eminentemente holstica no conjunto de estudos e investigao neste
domnio, at porque:
Estruturadas as problemticas em torno dessas tendncias de investigao, a interpenetrao dos diferentes quadros tericos, funda um domnio de investigao cuja riqueza advm, antes de mais, do aprofundamento do dilogo intradisciplinar, dentro de uma disciplina cuja vitalidade radica na prpria porosidade transdisciplinar (AZEVEDO, 2006, p. 66).
Essa afirmao notria aqui no Brasil onde j existe uma considervel
investida nos estudos de cinema e geografia, assim como em vrios outros campos
cientficos. Jorge Luiz Barbosa, professor da Universidade Federal Fluminense, por
exemplo, desde meados de 1980 desenvolve pesquisas e produz textos sobre
geografia e cinema como arte de representao do espao e da paisagem
geogrfica. Entre os seus inmeros trabalhos destaca-se As paisagens
crepusculares da fico cientfica: a elegia das utopias urbanas do modernismo, sua
tese de doutorado (2002), que atravs dos filmes Metrpolis (1927), Alphaville
(1965), Blade Runner (1982) e Matrix (1999) busca compreender a paisagem urbana
como produto de concepes ticas e estticas que atravessam as prticas dos
sujeitos em situao, anunciando a metrpole como um espao social habitado por
utopias do Ser atravs da existncia.
Outro que desde a dcada de 1990 tambm escreve e pesquisa sobre cinema
o professor da Unicamp Wenceslao Machado de Oliveira Jnior. Os seus trabalhos
apontam preocupao com o cinema na perspectiva de representao do espao e
da paisagem urbana, mas tambm como recurso para pesquisa, a exemplo do texto
O que seriam as geografias de cinema? (2011) em que ele prope uma pesquisa
com as imagens e os sons de cinema, indicando para a criao de geografias
oriundas do encontro entre os universos culturais de cada um de ns e as imagens e
os sons de cada filme. Sua tese de doutorado Chuva de cinema: natureza e culturas
urbanas, de 1999, um estudo em que as interpretaes ocorrem na atmosfera das
chuvas dos filmes Antes da Chuva (1994) e Blade Runner (1982), as quais so
importantes para as suas criaes. O foco do trabalho centrado nos tempos que a
23
chuva cria e nas portas de entrada que ela pode ser no entendimento das muitas
temporalidades inventadas no cinema, como criaes poticas.
O gegrafo Stefani Eduardo Baider destaque tambm neste contexto, uma
vez que desenvolveu uma pesquisa de mestrado intitulada A geografia dos cinemas
no lazer paulistano contemporneo: redes e territorialidades dos cinemas de arte e
multiplex, apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
(FFLCH) da USP (2009) e orientada pelo professor Jlio Csar Suzuki. Baider
recorreu, alm da bibliografia acadmica, aos guias semanais de jornais, e realizou
entrevistas em campo com frequentadores dos diversos tipos de cinema. As
questes abordaram as caractersticas dos pblicos e os motivos da escolha dos
cinemas, entre outras. O objetivo foi a partir de um levantamento das salas cinema
da cidade procurar entender como elas esto distribudas espacialmente e quais as
repercusses sociais dessa distribuio no espao urbano paulistano.
H ainda trabalhos como o do gegrafo Pedro P. Geiger, pesquisador
associado do LAGET da UFRJ, que trilha por uma linha mais filosfica como no
texto Cinema, Arte e a Geografia no cinema de David Lynch (2004). Aqui as
correspondncias entre Geografia e Cinema so aprofundadas na tentativa de cobrir
os temas do espao vivido e das representaes do espao, onde o foco maior
procurar discutir as relaes entre Geografia e Cinema em uma perspectiva filosfica
das relaes Arte/Cincia.
Podemos encontrar tambm trabalhos com a preocupao do espao rural no
cinema, como o do mestrado de Valesca Souza Farias da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, intitulado Cinema e Geografia: a idealizao do rural (2005).
Aqui h uma discusso de como o cinema retrata os movimentos de resistncia dos
insurgentes da histria brasileira. Para isso, a autora analisa os filmes O drago da
maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha, produzido em 1969, e Cabra
marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, filmado em 1964 e s finalizado em
1984, depois que a equipe foi perseguida pelos militares e algumas latas de filmes
apreendidas e destrudas na represso s ligas camponesas e aos cineastas que
estavam resgatando a histria do assassinato do lder campons Joo Pedro
Teixeira. Os dois filmes foram produzidos no perodo da ditadura militar e fizeram
parte de grandes momentos de discusses cinematogrficas. O primeiro foi
realizado sob a gide do movimento do cinema novo. O segundo, pelo Centro de
Cultura Popular da Unio Nacional dos Estudantes/UNE, no auge das Ligas
24
Camponesas. O objetivo da autora foi proporcionar uma compreenso a respeito da
construo cinematogrfica mundial, particularmente a americana, de como o
cinema pode interferir na sociedade ou evidenci-la, e entender a forma como o
cinema se apropria do espao geogrfico para construir suas narrativas.
Geografia e cinema: paisagens e imagens do semirido nordestino, esse
tema foi um trabalho de graduao de Pedro Paulo Pinto Maia Filho (2008),
orientado pelo gegrafo e professor Doutor Caio Augusto Amorim Maciel, na
Universidade Federal de Pernambuco. O texto tem como objetivo compreender
como as paisagens do semirido nordestino, retratadas pela produo
cinematogrfica recente (perodo 1996-2006), podem adquirir status de
representantes de um quadro geral, contribuindo para a re-significao da ideia de
serto na sociedade brasileira. Os autores analisaram os filmes Baile Perfumado
(1996); Central do Brasil (1998); Eu, Tu, Eles (2000); Cinema, Aspirinas e Urubus
(2005); O cu de Suely (2006) e rido Movie (2006), a fim de compreender como o
cinema nacional se apropria do semirido no s como cenrio, mas tambm como
parte da trama, tornando evidente a importncia simblica das paisagens e imagens
do Nordeste seco na cultura brasileira.
Alm desses trabalhos, h uma infinidade de textos voltados para o estudo de
cinema e geografia, com as mais distintas abordagens, tais como: Geografias de
cinema: do espao geogrfico ao espao flmico (2010), de Alexandre Aldo Neves,
dissertao de mestrado em Geografia na Universidade Federal da Grande
Dourados; Da geografia s imagens do cinema: uma discusso sobre espao e
gnero a partir de Pedro Almodvar (2011), de Karina Eugenia Fioravante,
dissertao de mestrado em Geografia na Universidade Estadual de Ponta Grossa;
Cinema, geografia e sala de aula (2006), de Rui Ribeiro Campos, professor da
Unicamp (uma breve anlise com indicao de filmes para o emprego de
audiovisuais na sala de aula pelos professores de Geografia); Periferia no cinema:
narrativas territoriais da periferia (2011), de Daniella Guimares Barcellos,
dissertao de mestrado na Universidade Federal Fluminense; A geografia das
imagens: discutindo o espao pblico no filme de Eric Rohmer (2009), de Alice
Nataraja Garcia Santos, do programa de ps-graduao em geografia da UFRJ; O
territrio em cena: Geografia, cinema e imperialismo (2008), de Manoel Fernandes
de Sousa Neto, do departamento de Geografia da USP; Geografias de Cinema: A
espacialidade dentro e fora do filme (2007), de Antonio Carlos Queiroz Filho,
25
pesquisador do Laboratrio de Estudos Audiovisuais da Unicamp; entre outros que
seria quase impossvel enumerar aqui.
Um fato visvel que na grande maioria desses estudos, textos e pesquisas
dos filmes escolhidos, analisados e retratados so do gnero de fico. Quando se
utiliza de documentrios, particularmente nos estudos de geografia, sempre de
forma tmida ou fazendo comparaes com outro de fico, a exemplo de Cabra
Marcado para morrer (documentrio) com O drago da maldade (fico), no trabalho
de Valesca Souza Farias, citado anteriormente.
Diante desse panorama que decidimos analisar Cinema e Geografia a partir
de filmes documentrios. sabido que o uso de filmes documentrios foi prtica
comum dos gegrafos nos anos 1950-1960 para ilustrar e retratar diferentes lugares,
os quais eram considerados como uma janela sobre a realidade. (AZEVEDO,
2006, p. 59)
No Brasil, durante os anos de 1967 at 1989 o governo militar criou o Projeto
Rondon com o objetivo de promover o contato de estudantes universitrios
voluntrios com o interior do pas. O projeto oportunizava aos estudantes
desenvolver pesquisas em diversas reas e realizar atividades assistenciais em
comunidades carentes e isoladas. As aes e atuaes desenvolvidas pelo Projeto
Rondon impulsionaram a produo de registros documentais no s escritos como
de imagens fotogrficas e at cinematogrficas. Em 1989, quando foi extinto, o
projeto tinha envolvido mais de 350 mil estudantes e professores de todas as
regies do Brasil, o que gerou um acervo documental de grande valia6. A prtica
desses registros foi, tambm, uma forte aliada na credibilidade e valorizao dos
documentos imagticos no mbito acadmico e profissional nas diversas cincias,
principalmente nas disciplinas de Histria e Geografia.
S a partir da dcada de 1980 a investigao geogrfica em cinema passa a
ser preocupao como campo de estudo na perspectiva crtica da utilizao de
filmes enquanto representao rigorosa do mundo, dos lugares e das pessoas em
seus ambientes e com suas culturas.
6 Em 1970 o Projeto Rondon foi organizado como rgo autnomo da administrao direta e, em 1975, transformado em Fundao Projeto Rondon. As atividades, inicialmente desenvolvidas apenas durante frias escolares, evoluram com a criao do campus avanado, dos centros de atuao permanentes e de operaes regionais e especiais. O Projeto Rondon foi retomado mais de quinze anos depois de sua extino pelo governo federal e a pedido da Unio Nacional dos Estudantes (UNE), em Tabatinga (AM), a 19 de janeiro de 2005. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_Rondon. Acesso em 23/06/2012)
26
Essa preocupao foi notria no s na geografia mas em diversas
disciplinas, questionando o lugar do filme documentrio no seu conjunto de
representao, como descrio objetiva da realidade. At porque um filme
caracteriza sempre um olhar sobre o espao de forma subjetiva e determinada do
seu realizador, como muito bem enfatiza Barbosa (2000):
O processo de criao do cinema apoiou-se largamente na captura de formas espaciais. Desde a origem do cinema, o espao tornou-se um recurso de ambincia dos personagens, de localizao das tramas dos roteiros e de ndice de relaes e sentimentos. Essa particularidade da arte cinematogrfica faz com que autores a exemplo de Antonio Costa, definam o cinema como dispositivo de organizao de espaos para determinar papis que envolvem o diretor, ator e o prprio espectador (BARBOSA, 2000, p. 80)
O renomado cineasta italiano Pier Paolo Pasolini afirma que o cinema se
constitui de uma linguagem no convencional, diferente da falada e escrita, porque
expressa o mundo no por meio de smbolos, mas atravs de uma realidade prpria.
E Barbosa conclui:
A criao dessa realidade prpria se constitui a partir das representaes do espao que o cinema constri de maneira singular, tecendo envolvimento entre o que se v (a forma) e o que se apreende daquilo que visto (o contedo). O registro cria seus objetos de elucidao, fazendo do sensvel e do inteligvel uma s matria constitutiva da linguagem-imagem. (BARBOSA, 2000, p.81)
Na verdade, o confronto entre o filme de fico e o filme documentrio como
descrio objetiva da realidade sempre foi latente nas artes e nas cincias. Na
geografia os questionamentos se davam na evocao de um sentido de lugar e a
explorao das qualidades estticas da paisagem, como elementos apelativos para
a fixao de audincia e representaes enviesadas da realidade (AZEVEDO,
2006). Isso por que:
No filme documentrio, o nvel de realismo objetivo proposto na realizao do filme dava a idia de que o retrato factual produzido durante o processo de criao da manufatura no era alvo de manipulao. (...) Atestava-se para o nvel de subjetividade do realizador e como a narrativa condiciona a forma em que as audincias percebem o espao retratado (AZEVEDO, 2006, p. 60-61).
27
As discusses sobre o que real e o que fico nunca se esgotaram. Mas o
entendimento da importncia de ambos na narrativa cinematogrfica como
representao do espao/paisagem geogrficos, e nas relaes da sociedade com
os seus lugares foi amenizado, e h um maior reconhecimento acadmico e
cientfico da leitura crtica dessa mdia nas diversas cincias, particularmente na
geogrfica contempornea. Isso por que, quando se utiliza de recursos ficcionais no
filme documentrio, via de regra, na tentativa de proporcionar mais realismo a
determinado fato, situao ou personagem retratado.
No h como negar que todo conhecimento necessariamente subjetivo
tanto quanto objetivo, e os desdobramentos do mundo que so puramente materiais
e factuais, costumeiramente parecem muito ridos e inanimados para se assimilar.
Sendo assim, um pouco de investida na subjetividade numa pesquisa geogrfica ou
numa obra de arte no nenhum pecado quando o intuito primar por mais
realismo ao objeto focado. David Lowenthal nos ensina que atrs dos simples fatos,
exigimos experincias novas, de primeira mo, opinies e preconceitos individuais,
e complementa quando trata das produes geogrficas, vislumbrando que: As
geografias memorveis no so textos de compndios, mas estudos interpretativos
incorporando um acentuado ponto de vista pessoal. (LOWENTHAL, 1982, p. 137)
Nesse sentido, a nossa anlise do cinema documentrio est assentada
numa leitura critica contextual, esttica e tcnica, mas tambm geogrfica, tomando
como categoria ampla o espao e como conceito principal a paisagem.
TOMADA 04 - UMA PAISAGEM QUE CONTA HISTRIAS
A nossa anlise est pautada num conceito de paisagem, entendido aqui
como de narrativizao (AZEVEDO, 2010), ou seja, uma juno de narrativa com
visualizao, na busca de compreender a paisagem flmica e a paisagem geogrfica
como paisagens que narram, mostram e contam histrias. Uma paisagem de
narrativa flmica que descreve, identifica e representa a memria de um determinado
lugar e dos processos de relao entre o espao, a sociedade e a natureza. Uma
paisagem narrativa geogrfica que por si s uma narrativizao de um
determinado espao, de um contexto histrico e de uma geografia retrospectiva.
Em nossa opinio, essa paisagem uma constante no cinema documentrio
ao se apropriar da paisagem geogrfica, que j narrativa, e construir o seu
28
discurso narrativo. O conceito de narrativizao apresentado por AZEVEDO
(2010), quando trata da erotizao do punctum barthesiano da paisagem atravs
dos filmes, alegando que leva a recodificao da percepo do lugar confrontando o
assunto com a no dialtica, o no recuperado e o no inteligvel do passado, com
uma inscrio particular do lugar, sendo assim:
While activating the sense of a lost object, the film caption of the land functioned as a referent saturated by the operations of anideological narrativization of place and by its aesthetization. In a moment when the organization of experience denounced new forms of embodiment of space, the politics of image and the new Technologies of representation seam to reconfigurate the experience of landscape contemplation (AZEVEDO 2010, p. 433 - grifo nosso).7
A ideia de paisagem, a nosso ver, uma construo que nasceu com um
paradigma cultural concebido, desde cedo, a partir das relaes totalitrias e
acabadas, entre ser humano (sujeito) e o meio ambiente fsico (objeto). Essa
concepo est, de certa forma, posta no primeiro relato no incio deste texto
quando dos nossos constructos nas paisagens em movimento das praas e dos
cinemas dos anos de 1960 a 1980.
Com efeito, h um pressuposto nessa ideia que decorre do esforo
empreendido por ns na busca da subjetividade, no exerccio discreto de se
expressar com posicionamentos e resultados, diante de um conjunto de prticas e
vivncias do espao. Esse exerccio com a paisagem uma comunicao de
primeira ordem do corpo com a terra, o lugar, a vida, os seres, numa re-leitura e re-
escrita do espao de uma geografia da experincia, como enfatiza Azevedo (2008).
A autora lembra que essa tarefa no privilgio s de gegrafos e da
geografia, mas de todos aqueles que se encontram envolvidos na ativaco daquilo
que Dona Haraway designa pela cincia como cultura pblica (AZEVEDO, 2008, p.
12). Nesse sentido, a partir do momento em que algum est simplesmente a olhar
para uma dada poro do espao j um artifcio para modelar e interpretar a
paisagem, em estado natural, antes de se tornar um trabalho de arte ou da cincia.
7 Enquanto ativa os sentidos do objeto perdido, a captura cinematogrfica do lugar funciona como uma referncia saturada pelas operaes de uma narrativisao ideolgica do lugar e pela estetizao. No momento, quando a organizao da experincia denuncia novas formas de personificao do espao, as polticas de imagens e as novas tecnologias de representao vem para reconfigurar a experincia de contemplao da paisagem (Traduo de Jos Jouberto Fonseca Lopes e grifo nosso)
29
Para Azevedo (2008), aqui o incio de um processo pelo qual o espao
convertido em paisagem pelo observador.
Uma converso mental que tem vindo a ser efectuado de forma recorrente h sculos e na qual a arte e as tcnicas de representao se especializaram. Posteriormente, o desenvolvimento de uma cultura visual, do movimento e da viagem contribuiu para a naturalizao desta ideia, uma ideia que simultaneamente foi sendo legitimada por uma ordem de conhecimento (AZEVEDO, 2008, p. 18).
A noo de paisagem inicialmente compreendida como construo cultural foi
evoluindo atravs da incorporao de sistemas de signos geogrficos. Nesse
sistema, o termo original de paisagem surgiu de Landschaft, termo germnico que
no conjunto de inflexes semiticas teve inmeros significados noutras lnguas
europeias. Azevedo alega que Kenneth Olwig afirmou que a primeira inflexo
semitica do termo ocorreu em resposta importao pelas artes de um termo pr-
moderno associado ao territrio de um grupo ou comunidade.
Usada desde o Renascimento para a designao artstica de um conjunto de representaes pictricas de natureza, a deslocao desta ideia veio inverter o sentido original do termo, o qual, na cosmologia orgnica do feudalismo, estava associado a valores comunitrios de uso e de controlo da terra e a um sentido de pertena a um territrio agrrio colectivo a que os indivduos se ligavam por laos de sangue. Posteriormente, e j sob o efeito das artes cenogrficas, este termo veio a significar a aparncia de uma rea e, mais especificamente, a representao de um cenrio, passando a ser entendido paralelamente como representao e como realidade material. (AZEVEDO, 2008, p. 20)
Jean Marc Besse, em seu livro Ver a Terra (2006), ao analisar a paisagem
alm da esttica, afirma ser a noo de paisagem na modernidade um dos
postulados mais disseminados atualmente e talvez o menos discutido. Essa noo
faz dela essencialmente uma representao de ordem esttica e que tem sua
origem, antes de tudo, pictrica. Besse comenta ainda que:
De fato, trs termos so encadeados (representao, esttica, pintura) para afirmar que a paisagem , de maneira geral, uma construo cultural, que ela no um objeto fsico, que ela no deve ser confundida com o ambiente natural, nem com o territrio ou o pas. A paisagem da ordem da imagem, seja esta imagem mental, verbal, inscrita sobre uma tela, ou realizada sobre o territrio (in visu ou in situ) (BESSE, 2006, p. 61).
30
Para esse autor, na medida em que se concebe a paisagem como uma
construo cultural, necessrio fazer jus a outros olhares culturais lanados sobre
a natureza e outros universos de significao, outras prticas e outros conceitos.
Isso porque h o olhar do cientista, do mdico, do engenheiro, do religioso, do
peregrino, entre tantos outros. Com efeito, esses diferentes olhares sejam eles
estticos, tcnicos, cientficos, polticos ou religiosos, surgem no interior de uma
dada cultura, numa modalidade que pode ser descrita historicamente e
sociologicamente. Segundo Besse:
Parece, consequentemente, mais razovel encarar a questo da paisagem no mbito de uma indagao antropolgica geral sobre o desenvolvimento e as transformaes das culturas visuais do que encar-las de modo restritivo somente no interior da esfera esttica. (...) os intercmbios entre a cincia e a arte, no concernente paisagem, so muito mais freqentes e muito mais profundos do que geralmente se supe (BESSE, 2006, p. 62).
Nesse sentido, a paisagem um signo ou um conjunto de signos, que
preciso aprender a decifrar, descrever numa perspectiva, alm da emoo, num
esforo de interpretao que , tambm, um exerccio de conhecimento. Na
verdade, Besse afirma que a ideia que h de se ler a paisagem e que ler a
paisagem extrair forma de organizao do espao, extrair estruturas, formas,
fluxos, tenses, direes e limites, centralidades e periferias. (BESSE, 2006, p. 64)
Uma anlise geogrfica da leitura da paisagem toma como ponto de partida
que a paisagem o resultado, o efeito, ainda que indireto e complexo de uma
produo, mesmo sendo a paisagem uma dimenso do visvel. A paisagem um
produto objetivo, do qual a percepo humana s capta, de incio, o conjunto
exterior. (BESSE, 2006, p. 65)
De fato, as paisagens humanas esto inscritas em todos os lugares. Essas
inscries ou impresses so paisagens que interessam aos estudos das cincias
humanas, particularmente aos gegrafos. O renomado gegrafo Milton Santos, em
sua obra A natureza do espao (2009), nos ensina que paisagem e espao no
so sinnimos uma vez que a paisagem o conjunto de formas que, num dado
momento, exprimem as heranas que representam as sucessivas relaes
localizadas entre homem e natureza. O espao so essas formas mais a vida que as
anima. (SANTOS, 2009, p. 103). Ele afirma ainda que a paisagem histria
31
congelada, mas participa da histria viva e que numa perspectiva lgica paisagem
j o espao humano em perspectiva (SANTOS, 2009, p. 106).
Como diz Besse (2006), a paisagem, aos olhos do gegrafo, uma
impresso e que ele no o nico a encarar a paisagem desse modo. Esta
abordagem tambm a do historiador, que coloca como princpio da anlise
histrica, no que concerne paisagem real, que a paisagem um testemunho
humano (BESSE, 2006, p. 67).
Esse testemunho humano ser, sem dvida, alvo das nossas anlises
flmicas, at porque imagens cinematogrficas so textos codificados que veiculam
complexas construes geogrficas, mas permitem decifrar o contexto cultural em
que foram produzidas. Como bem enfatiza Azevedo (2012), o cinema proporciona a
compreenso do envolvimento do ser humano com o ambiente, pois apresenta-nos
uma matriz de cdigos visuais e de smbolos cuja explorao permite a anlise das
mais diversas problemticas que marcaram a construo da ideia de paisagem na
cultura ocidental (AZEVEDO, 2012, p. 01).
Ainda, para ela, analisar essa construo da ideia de paisagem na cultura
ocidental implica a compreenso da prpria experincia de paisagem em distintos
contextos e a sua apropriao pelos discursos geogrficos em diferentes perodos
(Ibid, p. 01). A representao dessa paisagem foi fixada atravs de convenes
artsticas e importada para a cincia e, particularmente, uma composio atrativa
para o movimento de legitimao da arte cinematogrfica, tanto do ponto de vista
ficcional quanto documental.
For that, filmic technicians worked complex techniques as framing, editing or depth of Field, which allowed a higher degree of realism in the act of registering intertwined moments of time and space transforming the act of shooting in a coherent narrative (AZEVEDO, 2010, p. 432).8
Sendo assim, a nossa concepo de paisagem narrativa coerente ser
fundamentada nos conceitos e descries que foram expostas aqui, desde David
Lowenthal, com a importncia da simplicidade e subjetividade na pesquisa cientfica;
Jean Marc Besse, na valorizao da paisagem com uma viso antropolgica para o 8 Para isso, profissionais de cinema trabalham em tcnicas complexas de frames, edio ou profundidade de campo, que os permite um degrau maior de realismo no ato de registrar momentos entrelaados de tempo e espao transformando a cena em uma sequncia narrativa coerente". (Trad. Jos Jouberto Fonseca Lopes)
32
desenvolvimento das culturas visuais; Jorge Luiz Barbosa, na afirmao de que o
cinema constri as representaes da realidade de maneira singular sobre o que se
v (a forma) e o que se apreende do visto (o contedo); e, principalmente, com as
teses de Ana Francisca de Azevedo sobre a paisagem como narrativa com uma
presena de referncia original, capturada pela arte do cinema em operaes de
narrativizao ideolgica e de estetizao, para reconfigurar a experincia de
representao e contemplao da paisagem.
Nas anlises dos filmes selecionados, no tocante s questes de ordem
tcnicas, estticas e de linguagem audiovisual, a nossa experincia ser
fundamental, mas faremos luz de tericos da literatura da arte cinematogrfica,
tais como Christian Metz (A significao no cinema - 2004); J. Dudley Andrew (As
principais teorias do cinema - 2002); Antonio Costa (Compreender o cinema -
1989); Joo Batista Brito (Imagens Amadas Ensaios de crtica e teoria de
cinema - 1995); Bill Nichols (Introduo ao documentrio - 2005); Silvio Da-Rin
(Espelho partido tradio e transformao do cinema documentrio - 2004);
Joo de Lima Gomes (Aspectos do cinema documentrio - 1992); Andr
Gaugreault e Franois Jost (A narrativa cinematogrfica - 2009); Nobert Alcover e
Luiz Urbez (Introduccin a la lectura del film - 1976); entre outros.
Do mesmo modo sero basilares as leituras flmicas das experincias e obras
de cineastas como Serguei Einseinstein: A greve (1924), O Encouraado Potemki
(1925), Outubro (1927); Dziga Vertov: Srie Kinonedelia (1919), O aniversrio da
Revoluo (1919), Srie Kinopravda (1925), A sexta parte do mundo (1925), O
Homem com a cmera (1929); Robert Flaherty: Nanook (1922), O oleiro (1925),
Moana (1925), Tabu (1931), O homem de Aran (1934); Linduarte Noronha: Aruanda
(1960), O cajueiro nordestino (1962), O salrio da morte (1971); Glauber Rocha:
Barra Vento (1962), Deus e o diabo na terra do sol (1963), O drago da maldade
contra o santo guerreiro (1968), A idade da Terra (1980); e o prprio Vladimir
Carvalho. Esses nomes sero referenciados sempre que necessrio, especialmente,
em cada anlise dos documentrios nos captulos seguintes.
Conscientes da importncia da imagem cinematogrfica na construo das
suas narrativas com a paisagem geogrfica, que nos apropriamos do cinema
documentrio de Vladimir Carvalho, enquanto discurso flmico da histria e dos
contextos scio-poltico-cultural do Nordeste. Essa apropriao se d na curiosidade
33
de identificar quando e como os seus filmes, escolhidos por ns, representam a
paisagem do Nordeste e dos nordestinos na concepo desse cineasta.
TOMADA 05 - VLADIMIR CARVALHO E SUAS PAISAGENS NORDESTINAS
Para analisar esse conceito de paisagem no cinema documentrio e a
geografia, escolhemos trs filmes de Vladimir Carvalho: dois de curta- metragem e
um de longa-metragem. Trata-se dos curtas Os Romeiros da Guia (1962) e A
Bolandeira (1968), e o do longa O Homem de Areia (1982). A escolha dessas obras
se deu devido ao contedo documental e a paisagem representativa do Nordeste e
dos nordestinos, particularmente a Paraba, que os filmes retratam.
Os Romeiros da Guia um registro documental sobre uma procisso
realizada por pescadores que se deslocam em suas embarcaes, na travessia de
um brao de mar, para a devoo Nossa Senhora da Guia, entre as cidades de
Lucena e Cabedelo, na Paraba. O documentrio aborda o lado religioso e o profano
da romaria, com um toque dramtico e ficcional que o torna mais sensvel
realidade tratada.
A Bolandeira faz um resgate histrico da decadncia dos engenhos de acar
no Nordeste. No filme, Vladimir Carvalho parte de uma pea da engrenagem que
move o engenho, feita de madeira, conhecida como bolandeira (o que deu nome ao
filme), para construir a narrativa. O discurso flmico, alm das imagens em
movimento, tambm ilustrado com pinturas de engenhos antigos de Rugendas,
Vischer e Franz ainda com o uso da mo-de-obra escravizada, e um poema do
poeta paraibano Jomar Morais Souto sobre o sacrifico dos trabalhadores na
fabricao do acar e da rapadura.
O Homem de Areia um filme denso, forte, enigmtico e poltico. Nele,
Vladimir dar a conhecer a figura de Jos Amrico de Almeida, sua influncia no
governo de Getlio Vargas e de Joo Pessoa, bem como sua atuao enquanto
governador do Estado. Longe de ser apenas uma apologia ao lder poltico
paraibano, poeta, jurista, escritor e precursor do romance regionalista com o livro A
Bagaceira (1928), o documentrio resgata a histria conturbada da poltica
paraibana com imagens e paisagens de um Nordeste multifacetado e estereotipado,
mas atrelado a fatos da conjuntura nacional obscuros na histria brasileira.
34
So filmes que podem ser considerados como clssicos na filmografia
paraibana, tanto pelo teor e importncia histrica como pelo formato. Os trs
documentrios foram rodados e finalizados em 35mm e em preto e branco. Os dois
curtas foram filmados sem captao de som direto, apenas o longa teve o som
captado em sincronia, com microfone Nagra, top de linha em equipamento sonoro
na poca. So documentrios tradicionais e de narrativa linear, que tm a assinatura
inconfundvel de Vladimir Carvalho e o seu modo muito peculiar de conceber um
fato, uma histria ou um tema especfico.
Definir especificamente um modo de filmes ou o gnero adotado, sempre foi
tarefa difcil para cineastas e estudiosos. Bill Nichols, autoridade conhecida
internacionalmente no campo do documentrio e de filme etnogrfico, professor de
cinema na San Francisco State University, esboou uma pretensa classificao para
os modos de documentrio. So seis as denominaes convencionadas por ele:
potico, expositivo, observativo, participativo, reflexivo, performtico. Esses modos
podem ser utilizados apenas como parmetro argumentativo para uma espcie de
subgnero do documentrio (conceito adotado por ele), mas que so bastante
flexveis e se interpenetram quando da tentativa de considerar ou definir uma obra
documental, como o prprio Nichols esclarece:
A ordem de apresentao desses seis modos corresponde, aproximadamente, cronologia do seu surgimento. Portanto, pode parecer fazer uma histria do documentrio, mas imperfeitamente. A identificao de um filme com um certo modo no precisa ser total. Um documentrio reflexivo poder conter pores bem grandes de tomadas observativas ou participativas; um documentrio expositivo pode incluir segmentos poticos ou performticos. As caractersticas de um dado modo funcionam como dominantes num dado filme: elas do estrutura ao todo do filme, mas no ditam ou determinam todos os aspectos de sua organizao. Resta uma considervel margem de liberdade (NICHOLS, 2005, p. 136).
Mas o que caracteriza esses subgneros de documentrio proposto por
Nichols (2005)?
Um documentrio de modo potico enfatiza associaes visuais, qualidades
tonais ou rtmicas, passagens descritivas e organizao formal. Trata-se de um
modo muito prximo do cinema experimental, pessoal ou de vanguarda.
35
Um documentrio de modo expositivo procura dar nfase ao comentrio
verbal e a uma lgica argumentativa. Esse modo o que a maioria das pessoas
identifica como sendo um documentrio geral.
Um documentrio de modo observativo prioriza o engajamento direto no
cotidiano das pessoas que representam o tema do realizador, conforme so
observados por uma cmera discreta.
Um documentrio de modo participativo enfatiza a interao do realizador e o
tema. A narrativa construda com entrevistas ou outras formas de envolvimento
ainda mais direto. Geralmente ilustrado com imagens de arquivo para examinar
questes histricas.
Um documentrio de modo reflexivo procura chamar a ateno para as
hipteses e convenes que regem o cinema documentrio. Com uma narrativa
metalingustica, esse tipo de produo agua a conscincia do espectador para a
construo da representao da realidade impressa no filme.
Um documentrio de modo performtico prioriza o aspecto subjetivo ou
expressivo do prprio engajamento do realizador com seu tema e a receptividade do
pblico a esse engajamento. Dessa maneira rejeita ideias de objetividade em favor
de evocaes e afetos. Geralmente os filmes desse modo compartilham
caractersticas com filmes experimentais, pessoais e de vanguarda, mas com uma
vigorosa nfase no impacto emocional e social sobre o pblico.
Com esses parmetros de classificao, podemos dizer que Os Romeiros da
Guia um documentrio de modo expositivo com segmento potico. J A bolandeira
um documentrio de modo potico com segmento expositivo. Enquanto que O
Homem de Areia um documentrio de modo participativo com segmentos reflexivo,
observativo, expositivo e potico.
Desse modo, buscamos analisar e compreender como Vladimir Carvalho,
cineasta paraibano radicado em Braslia, se utiliza das paisagens do Nordeste e dos
nordestinos para realizar os seus filmes. Ao mesmo tempo procuramos entender
como se d a narrativa dessas paisagens, enquanto representao da paisagem
geogrfica do Nordeste e do seu povo com as suas crenas, culturas e vivncias,
assim como pelo discurso criado de espao hostilizado tambm pela natureza.
A primeira vista percebvel que os filmes de Vladimir Carvalho, nas suas
mais diversas abordagens, tm sempre uma preocupao com o trabalho em si, as
tcnicas empregadas pela produo humana e, particularmente, com os
36
trabalhadores de maneira geral e o processo de explorao da mo-de-obra. Por
isso, na leitura das narrativas e paisagens impressas nos filmes escolhidos, levamos
em considerao os aspectos contextuais, histricos, econmicos, polticos e,
obviamente, geogrficos, como tambm os aspectos tcnicos e estticos de cada
obra.
A escolha dessas obras se deu, alm do j exposto, por identificar durante a
nossa pesquisa a pouca importncia que foi dada aos filmes na poca em que foram
lanados e/ou quando a crtica especializada se reporta produo de Vladimir
Carvalho. So quase trinta filmes realizados na sua carreira e esses trs so os
menos comentados de acordo com as fontes investigadas por ns, tais como:
Cinemateca Brasileira, Nudoc/UFPB, Arquivo Nacional, MIS, sites de busca da USP,
Unicamp, UFRJ, Unesp, UnB e os sites convencionais da web.
Com efeito, no h nenhum artigo, texto ou estudo aprofundado sobre
nenhuma dessas obras. Encontramos pequenos releases ou notas de jornais,
revistas e catlogos de festivais. H maiores informaes sobre esses filmes no livro
de Wills Leal intitulado A histria do/no cinema paraibano, e na tese de mestrado
de Jos Marinho na ECA/USP, h uma pequena abordagem sobre a produo de
Os Romeiros da Guia.
Essa lacuna nos instigou mais ainda a trabalhar com os filmes e dar mais
visibilidade s obras, porque entendemos ser de fundamental importncia para os
estudos de cinema documentrio, para a geografia paraibana e para a paisagem
nordestina e dos nordestinos representados nos trs documentrios.
Outro critrio que nos levou a fazer essa escolha o fato de que neles a
presena e a representao do Nordeste e dos nordestinos divergem da forma e do
contedo com que esses personagens so representados nos filmes mais
divulgados e conhecidos de Vladimir Carvalho. Por exemplo, no seminal e polmico
Pas de So Saru (1971) os elementos narrativos, personagens e paisagens so de
um Nordeste seco, devastado, de um povo sofrido pobre e miservel. Em
Conterrneos Velhos de Guerra (1990), um dos seus filmes mais representativos da
carreira, o Nordeste e os nordestinos esto fora da sua terra, como judeus errantes,
e discorrem sobre sofrimento, trabalho duro e mal remunerado, injustias e mortes,
culminando numa situao tambm de miserabilidade.
A nosso ver, nos filmes escolhidos, esse Nordeste no est posto diretamente
nas paisagens, mas sim de forma sutil no discurso diegtico. Neles, o Nordeste e os
37
nordestinos se apresentam num patamar mais digno do carter de um povo por
demais sofrido e submisso, mas que no reclama da sua sina, so felizes, e at
cantam e danam como em Os Romeiros da Guia. Ou so representados na
inteligncia tcnica de construir, com madeira, uma engrenagem de moinho de
engenho que ganha vida na narrativa flmica em imagens e versos de um poeta
nordestino renomado.
Nessa mesma direo, O homem de Areia o filme onde a expresso mais
nobre de um nordestino intelectual, poeta, escritor, jurista, poltico de
reconhecimento nacional exposto sem apologias, recebendo crticas de seus
adversrios, mas imponente nas suas concepes, posturas e viso de Nordeste e
de Brasil, ou seja, uma paisagem de Nordeste e de nordestinos que no se encontra
nos filmes mais destacados de Vladimir Carvalho. Neste filme h sim uma
representao de uma regio seca, de povo pobre e sofrido, apenas numa
sequncia que ilustra a autobiografia de Jos Amrico quando da sua viagem ao
serto feita, ainda, montado a cavalo.
Nesse sentido, esse Nordeste e nordestinos um pouco diferentes dos
propalados - no s nos filmes de Vladimir Carvalho mas na maioria das expresses
artsticas -, que nos interessa e o foco das nossas anlises do espao e da
paisagem narrativa, flmica e geogrfica.
TOMADA 06 - O NORDESTE E OS NORDESTINOS NAS TELAS DO CINEMA
Os holofotes da poltica, da economia, da cultura e principalmente do cinema
sempre estiveram com o foco voltado para a regio Nordeste. Os interesses de cada
segmento neste espao do Brasil so os mais diversificados e diferentes. Algumas
caractersticas como o preconceito, a pobreza, a misria e a seca alimentam, at
hoje, o discurso dos que se utilizam e/ou se beneficiam do Nordeste e dos
nordestinos enquanto locus e povo de contradies.
Para muitos pesquisadores, estudiosos do assunto, o Nordeste uma regio
vtima dos processos naturais que a tornaram um espao sofrido pelas secas
constantes, descaso de governantes, consequentemente um lugar subdesenvolvido,
pobre, de pessoas rudes e ignorantes. Assim sendo, torna-se um rico arsenal para
38
os prprios nordestinos extrair usuras do poder pblico com discursos demaggicos,
complacentes e apelativos9.
O historiador Albuquerque Jnior (2001), no seu livro A inveno do
Nordeste e outras artes, procurou contribuir com a desmistificao deste conceito
inventado sobre a regio Nordeste e o esteretipo do seu povo. Albuquerque Jnior
afirma que essa inveno de um Nordeste seco e pobre, com gente de baixa
estatura, diferente e mal adaptada, comeou nos meados da dcada de 1910,
oriunda da runa da antiga diviso geogrfica entre Norte e Sul.
No incio dos anos vinte, a percepo do intelectual que desembarca no Recife, vindo dos Estados Unidos, de que a prpria paisagem, o prprio fsico da regio, alterara-se profundamente. Seria outra, a sua crosta. Outra, a fisionomia. (...) O espao natural do antigo Norte cedera lugar a um espao artificial, a uma nova regio, o Nordeste, j prenunciada nos engenhos mecnicos ciclpicos usados nas obras contra as secas, no final da dcada anterior (ALBUQUERQUE JNIOR, 2001, p. 39).
Antes disso, os problemas do Nordeste no eram vistos, ou sequer existiam
para o Governo Federal ou para as prprias elites nordestina
Top Related