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A vida no trapézio ou um novo contrato social: a nova economia sem meio-termo

Paulo Pedroso

Robert Reich é um economista americano algo peculiar. Tem uma formação académica

“europeia” em economia (pela Universidade de Oxford, onde foi bolseiro) e

“americana” em direito (pela Yale Law School).

Para os padrões do seu país é um liberal, no sentido em que na Europa diríamos que é

de esquerda. Foi new democrat da primeira hora, muito próximo de Clinton, de quem

era amigo desde os anos sessenta, aconselhou-o, enquanto candidato presidencial, em

matérias económicas e foi por designado, após a vitória, Secretário do Trabalho (cargo

equivalente, entre nós, a ministro). Não quis continuar no segundo mandato do

Presidente, invocando incompatibilidades insuperáveis com a vida familiar, das quais

ouvimos falar bastante neste livro. Mas é inegável que se afastou progressivamente do

Presidente, embora do modo discreto que se impunha a dois amigos de juventude1.

Antes do trabalho com Clinton já tinha no currículo a passagem por duas equipas

presidenciais. Com Gerald Ford, foi assistente do procurador geral, representando a

administração junto do Supremo Tribunal Federal. Com Jimmy Carter, chefiou a equipa

de planeamento da Federal Trade Commission.

Enquanto académico, ensinou em Harvard, na Kennedy School of Government, de 1973

a 1992 e, desde a sua saída do governo, é professor da Universidade Brandeis, em

Boston.

A sua intervenção cobre todo o campo dos media. Já concebeu e apresentou programas

televisivos, mantém um comentário de rádio regular e é autor de múltiplos artigos de

opinião em diversos jornais e revistas, incluindo o New York Times, o Washington Post,

o Guardian, o Wall Street Journal, o Finantial Times ,a Time, a New Yorker, o USA

Today, o Los Angeles Times; o Boston Globe, a Harper’s Magazine, o London

Observer. Escreve regularmente em The American Prospect de que foi co-fundador.

Já depois de publicado O futuro do sucesso tentou a nomeação democrata para a

candidatura a governador do Massachussets, mas falhou, facto que pode não ser

totalmente alheio à sua actual visão da política americana e do Partido Democrático,

1 Um afastamento em crescendo página após página, isto é, dia após dia, evidente para o leitor

do seu “diário de ministro de Clinton”, (ver Locked in the Cabinet, Nova Iorque, Knopf, 1997).

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bastante mais pessimista do que quando ajudou a formular a primeira vaga americana

do discurso da “terceira via”.

Este é, a traços largos, o homem que escreveu o futuro do sucesso que tenho o prazer de

vos convidar a ler e a honra de tentar apresentar-vos.

Estais perante um livro de um economista, académico e político, que busca o

cruzamento entre a reflexão e a intervenção. E, a esse respeito, é uma obra bem

focalizada num problema real: o da guerra em curso nas economias avançadas e

especialmente nos EUA, entre a economia e a vida privada.

Para a exemplificar, o autor escolhe um acontecimento metafórico da sua vida pessoal –

que já tinha contado no seu “diário de ministro”. A curva na Estrada de Damasco, que

primeiro o derrubou das suas certezas e agora motiva as suas interrogações é descrita

sob a forma de um pedido de despertar:

“(…) uma noite, telefonei para casa e disse aos meus filhos que não chegaria a tempo de

lhes dar as boas noites. Já acontecera o mesmo cinco vezes seguidas. Sam, o mais novo,

disse que não havia problema mas pediu-me que o acordasse quando eu chegasse a casa.

Expliquei-lhe que chegaria muito tarde e que ele já estaria a dormir há muito tempo;

talvez fosse preferível falarmos na manhã seguinte. Mas ele insistiu. Perguntei-lhe

porquê. Ele respondeu que só queria ter a certeza de que eu já estava em casa. Ainda hoje

não sei explicar exactamente o que me aconteceu naquele momento. Mas, de repente,

percebi que tinha de deixar o meu emprego [de ministro]. (…)

O despertar que o meu filho solicitara despertou-me também e levou-me a fazer uma

opção explícita e consciente”(Robert Reich, O futuro do sucesso, Lisboa, Terramar, pgs.

15-16)

Este livro é sobre essa escolha. Com a qual milhões de americanos – e,

progressivamente, de cidadãos de todo o mundo economicamente mais avançado - estão

confrontados. Nele se propõe uma interpretação inovadora das tendências estruturais

que a tornam mais premente, se expõem opções sociais possíveis perante o problema e

são esboçadas perspectivas de intervenção política, nas quais se inclui uma autocrítica

do entusiasmo com a “terceira via” e os primeiros elementos para uma proposta de

superação da sua redução a um mero discurso.

Como se depreende do significado do acontecimento metafórico que abre o livro, a

perspectiva de Reich não é neutra, mas também não estamos perante um livro engagé,

feito de entusiasmos e desenhos de utopia. Reich quer continuar a ser um pensador do

sistema económico do capitalismo global, não se vê como um outsider, nem escreve

dessa perspectiva. Pelo contrário, O futuro do sucesso é a continuação implícita da

análise feita em O trabalho das nações, publicado em 1991. Concentrava-se, então, na

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análise das tendências históricas de evolução do capitalismo e na defesa de que o

trabalho é o factor nacional específico de riqueza num mundo globalizado. Apresenta,

agora, uma análise das dificuldades de compatibilização entre o sucesso profissional e

uma vida “vivível”. A contradição é realçada no título que os tradutores italianos

escolheram (L’infeliccitá del sucesso), embora com ele tenham perdido a dimensão

colectiva e propositiva da análise de Reich. Com efeito, se dá grande relevo ao

sofrimento individual que o seu próprio “despertar” simboliza, quer, mais ainda, ajudar

a encontrar a saída colectiva para o problema, recusando que seja resolúvel, para a

massa dos cidadãos, por opções individuais como a que o privilegiado economista e

político Robert Reich teve a felicidade de poder fazer, abandonando o governo,

regressando à cidade em que a família tinha a sua vida organizada e dedicando mais

horas a cuidar dos filhos.

Reich está convencido que tal saída colectiva existe e assume a sua procura como labor

de economista. Reconhece-se no seu intento o autor da apresentação a uma edição

americana de The wealth of nations (Nova Iorque, Modern Libray, 2000) que recordou

aos seus leitores que Adam Smith “chamava a si próprio filósofo moral e tentava

explicar porque é que os povos e as sociedades funcionam de determinada maneira e

como deviam funcionar” (Robert Reich “Introduction”, Adam Smith, The wealth of

nations, Nova Iorque, Modern Libray, 2000, pg. xv).

Essa ambição está presente em O trabalho das nações e neste O futuro do sucesso,

ficando-nos a sensação de que, para que a obra esteja completa, falta ainda um volume

dedicado mais exaustiva e sistematicamente a “como deviam” funcionar as sociedades

capitalistas do séc. XXI, embora Reich já nos tenha dado esboços do que tal volume

pode vir a ser, em dois livros posteriores a este (I’ll be short: Essentials for a decent

work society e Reason: why liberals will win the battle for America).

Em o futuro do sucesso, obtém-se um retrato que capta traços, por vezes fugazes, de

tendências de mudança realmente sólidas e, a vários níveis, abruptas; que enuncia

problemas e antecipa um futuro que não é automaticamente radioso, ao contrário do que

poderá ser levado a pensador um leitor enganado pelo título infeliz da edição francesa

do livro (Futur parfait. Progrès techniques, défis sociaux).

Como economista, pode filiar-se Reich na linhagem do “nacionalismo económico”, que

já teve rebentos pouco recomendáveis, mas nasceu de intenções nobres. De Adam Smith

não recebe a ideia de que o agregado dos interesses individuais organiza, só por si, a

sociedade de modo eficiente, mas essencialmente a preocupação moral, a defesa de que

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a nação é uma comunidade de valores. A um economista alemão do séc. XIX, que viveu

por longos anos nos EUA, Friedrich List, vai buscar a ideia de que a economia precisa

de ser competitiva para alimentar a solidariedade de destinos e os valores partilhados

pelos seus agentes2.

O papel de um sentimento moral comum, preventivo da dissolução de laços sociais no

capitalismo do séc. XXI, já fazia parte do núcleo central da tese de O trabalho das

nações. Aí fez a defesa do reforço do investimento social na comunidade, a par da

abertura económica à globalização, valorizando muito o papel da educação como

instrumento de valorização do trabalho, não sendo este último apenas o mais nacional

dos factores de produção de riqueza mas também a base do respeito social dos

indivíduos e, consequentemente, o factor primordial de integração social, de prevenção

da exclusão e de combate ao dualismo social.

A ética do trabalho assume para Reich o papel de princípio básico da solidariedade que

encontramos na fileira de obras, aberta por Max Weber3, que relacionaram a ética

económica puritana com a origem do capitalismo moderno. É também por essa razão

moral, mais do que por uma demonstração economicamente fundamentada, que acredita

– para o mal e para o bem – no futuro do trabalho, cujo “fim” anunciado não considera

moralmente aliciante nem com aderência à realidade.

Acha, pelo contrário, que se está a assistir apenas à sua mutação e nova segmentação, do

que resulta uma nova estratificação social.

O futuro do sucesso parte de duas constatações em relação ao trabalho dos americanos:

há uma tendência para que em cada ano o número de horas trabalhadas seja maior que

no ano anterior e que nas restantes economias avançadas; mesmo trabalhando mais,

quer que os europeus, quer que os japoneses, estão muito menos disponíveis que estes

para diminuir a duração da sua jornada de trabalho em troca de menores salários. O que

fará os americanos correr tanto?

Na tese de Reich é a crescente capacidade de inovação e a evolução tecnológica,

inseparáveis da globalização. Juntas, revolucionam a produtividade, tornam os bens e

serviços melhores, mais rápidos, baratos e fáceis de obter e intensificam a níveis sem

2 A ligação do trabalho de Robert Reich com o nacionalismo económico, em particular em O

trabalho das nações, é bem demonstrada por David Levi-Faur, numa análise comparativa com a obra fundadora da corrente, O sistema nacional da economia política, de Friedrich List, originalmente publicada em 1841. (cf. Levi Faur, David, “Economic nationalism: from Friedrich List to Robert Reich”, Review of International Studies, nº 23, 1997, pp. 359-370). 3 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, Lisboa, Presença, 1983 (ed.

original dos textos da obra em 1904-1905)

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precedentes a competição entre produtores e prestadores de bens e serviços. Assim

nasce uma nova era – a era dos negócios fabulosos – que tem nos consumidores,

permanentemente a fazer zapping entre produtores de bens e serviços, os principais

beneficiados.

Acontece que o preço do zapping dos consumidores é muito elevado para os cidadãos –

os mesmos – enquanto trabalhadores. Se, enquanto consumidores, estão a cada minuto

tendencialmente mais satisfeitos e melhor servidos, enquanto trabalhadores estão sob

maior stress, maior pressão e menor segurança no emprego e nas suas carreiras

profissionais. Até onde a contradição entre um e outro movimento poderá ir?

A nova insegurança dos trabalhadores tem, por comparação com a tradicional, um factor

de deslegitimação, a meu ver muito importante. Em grande medida, não resulta do

desencontro entre o volume de oferta de trabalho disponível na economia e o volume da

procura. Daí que coexista tão bem com economias com baixos índices de desemprego

como com economias na situação oposta. A nova insegurança está, outrossim,

relacionada, em primeiro lugar, com uma profunda segmentação dos mercados de

trabalho, que tende a ser também uma profunda segregação sócio-profissional.

Acresce que tal insegurança não se prende com a relação empregador-empregado. Na

visão de Reich é a decisão do consumidor que tende a guiar a decisão empresarial e é a

sua instantaneidade e exigência progressivamente maior na formulação das decisões de

consumo, que conduz os cidadãos-trabalhadores a confrontarem-se com a

imprevisibilidade acrescida do que estarão a fazer e de quanto ganharão a um prazo

cada vez mais curto. Isto é, como diz Adão a Deus, a propósito de ele e Eva terem

comido do fruto proibido, na versão do Génesis acolhida pelo Islão, “fomos nós os

inimigos de nós mesmos”(Alcorão, 7,23).

Gera-se, assim, sustenta Robert Reich, uma perigosa contradição social entre a

estabilidade e previsibilidade necessárias à vida familiar quotidiana, à educação dos

filhos e à estabilidade afectiva dos casais adultos e a instabilidade e imprevisibilidade a

que cada trabalhador está preso. O dilema não tem solução geral ao nível individual. Se

um trabalhador aligeirar o seu ritmo no trabalho, o seu nível de vida e o da sua família

estarão em perigo. Mas se o intensificar, a sua estabilidade afectiva e os seus deveres

(ou direitos?) familiares correrão riscos. Os seus filhos precisam de atenção e de sentir

respeito pela actividade e pela carreira dos pais.

A precaridade do estatuto dos trabalhadores no novo capitalismo tem sido objecto de

várias análises em diferentes quadrantes, apoiando-se Reich, no que se refere às suas

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consequências psico-sociais, na tese da “corrosão do carácter” associada às condições

sociais do trabalho. Richard Sennett descreveu o fenómeno4, Reich questiona a sua

origem. Julga que se está a assistir à dissolução da relação de dependência capital-

trabalho que marcou a revolução industrial e o desenvolvimento do capitalismo

moderno, pelo menos a partir do início do séc. XX, com um conjunto de conquistas

básicas dos trabalhadores, no domínio dos seus direitos colectivos. Em sua substituição,

a nova economia assenta na independência do capital em relação ao trabalho, reduzido

ao estatuto de variável fungível e volátil, substituindo-se à velha relação uma nova

dependência estrutural capital-consumo.

Se o produto e a sua apropriação simbolizou a era industrial da dependência (conflitual)

capital-trabalho, a marca e a sua cotação metaforizam a nova era da dependência

(concorrencial) capital-consumo.

A metáfora da nova economia é a de um conglomerado de marcas. A empresa como

local em que o capital investido e o trabalho incorporado se transformam num produto

com determinado valor acrescentado estilhaça-se, substituída pelo produto como

matéria que tem o valor da sua característica imaterial, a sua marca, independentemente

de quem e onde o desenvolveu e produziu. Assim, de um sistema de empresas

concorrentes, passa-se para uma cadeia de gestão de marcas, cuja preservação e

valorização é a medida do sucesso.

A marca deixa de ser a etiqueta de um produto para se reificar em definição do seu

sucesso. Ela detém o produto. Ela domina o trabalhador. Os que a possuem são

possuídos por ela e têm sucesso, os que a não têm, seguem, pelas leis de mercado, o

caminho inexorável da exclusão.

Um mundo assim será mais assimétrico que o actual, mesmo pensando apenas nas

economias avançadas. De um lado, estarão os detentores de marcas, incluindo os que

detêm “marcas pessoais” e do outro os “downsized”, os “outsourced”, etc. As duas faces

inseparáveis da mesma moeda futura, as raízes da nova estratificação social.

Reich já tinha concebido o modelo de estratificação social futura, que gera o que ora

apresenta, em O trabalho das Nações. Então previa que os trabalhadores a que chamava

“analistas simbólicos” seriam o grupo com maior expansão e mais sucesso, por

4 Ver Sennett, Richard, The corrosion of character – the personnel consequences of work in

new capitalism, Nova Iorque, Norton, 1998. Para uma análise no mesmo sentido, produzida no contexto académico da francofonia veja-se, por todos, Robert Castel, Les métamorphoses de la question sociale – une chronique du salariat, Paris, Fayard, 1995.

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contraponto aos trabalhadores da produção de rotina e aos dos serviços interpessoais.

Na sua definição da altura,

“Os analistas simbólicos resolvem, identificam e intermedeiam problemas, manipulando

símbolos. Simplificam a realidade, transformando-a em imagens abstractas que podem ser

reordenadas, objecto de malabarismo, objecto de experimentação, comunicadas a outros

especialistas e, finalmente, transformadas de novo em realidade. As manipulações são

realizadas com ferramentas analíticas, afiadas pela experiência. As ferramentas podem ser

algoritmos matemáticos, argumentos legais, expedientes financeiros, princípios

científicos, conhecimento psicológico sobre como convencer ou divertir, sistemas de

indução ou dedução, ou qualquer outro conjunto de técnicas que permitam fazer puzzles

conceptuais” (Robert Reich, O trabalho das nações, Lisboa, Quetzal, 1993, pp. 254-255)

Então punha a tónica no domínio da tecnologia, centrava-se no conteúdo do trabalho e

no facto de os “vencedores” do futuro serem trabalhadores do conhecimento, tese que

alimentou uma geração de discípulos mais ou menos assumidos. Mas a continuação da

investigação leva agora Reich a rever quem pertence a e como se define o grupo de

sucesso. Não é a sua actividade que o caracteriza, nem o domínio das tecnologias, nem

mesmo necessariamente a posse de conhecimento. Numa perspectiva schumpeteriana,

sustenta agora que é a capacidade de inovar que o distingue dos outros grupos de

trabalhadores. Passou a achar que aquilo que os define nem sequer é a manipulação do

conhecimento em vez da manipulação de objectos. Por isso já não lhes chama analistas

simbólicos, nem sequer trabalhadores do conhecimento, mas trabalhadores criativos.

Acha que a criatividade é o recurso escasso de que os novos profissionais de sucesso

dispõem e valorizam nas suas carreiras. Uma criatividade que desenvolvem segundo

dois perfis distintos, um orientado para a capacidade de imaginar o que não existe e

outro para a capacidade de fazer algo que existe chegar “bem” a quem o queira e possa

ter. Aos primeiros chama ”lunáticos”, aos segundos “psicólogos”. Eis como os define:

a) Os “lunáticos”: o grupo do “artista ou inventor, do designer, do engenheiro, do

génio financeiro, do lunático, do cientista, do escritor ou do músico – o

indivíduo que, em suma, é capaz de ver novas possibilidades num determinado

ambiente e que se deleita a explorá-las e a desenvolvê-las (Robert Reich, O

futuro do sucesso, pg. 72)

b) Os “psicólogos”, indissociáveis dos primeiros, que têm a personalidade “do

vendedor, do representante de talento, do mago, daquele que identifica

tendências, do produtor, do consultor, do lutador, em suma da pessoa que

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consegue identificar as hipóteses existentes no Mercado e que outras pessoas

podem querer ter, ver ou aproveitar, e que sabe como há-de concretizá-las (op.

cit. pg. 74)

Uma parte significativa dos trabalhadores criativos são os mesmos a que chamou no

passado analistas simbólicos, mas a mudança de designação não é apenas semântica,

decorre do aprofundamento e da transformação da análise da produção de valor. Numa

nova economia conduzida pelo consumidor, em que a capacidade de o manter sempre

atraído pela marca – que será a principal característica distintiva de um produto ou

serviço – é um factor fundamental da vantagem competitiva, também os trabalhadores

detentores de “boas marcas” individuais se separarão dos outros, porque serão os únicos

de que a marca precisa realmente, enquanto os restantes subsistirão nas cadeias de

subcontratação e do trabalho temporário espalhadas pelo mundo.

A “marca pessoal” é determinada pela criatividade individual, quer se expresse na

capacidade de inventar, quer na de desbravar caminhos que levem os inventos aos

consumidores e os interessem por eles. A exemplo do que antes se dizia dos produtos,

haverá o trabalho de massa, estandardizado e de baixo valor, por contraponto ao

trabalho diferenciado, dependente forte ou exclusivamente da qualidade do desempenho

individual e de elevado valor, sendo o último característico dos “trabalhadores

criativos”. Não será típico de nenhum sector ou actividade, mas sinal de um

desempenho específico, fulcral para o sucesso no mercado.

A criatividade será a chave para que se possa produzir mais rápido, melhor e mais

barato (e convencer o consumidor disso) e as relações que em torno dela se estabelecem

definirão as ligações de mercado. O que antecipa um futuro em que a empresa, no

sentido da revolução industrial, explode literalmente, substituída pela gestão de marcas

colectivas e individuais, que os consumidores – indivíduos ou empresas, tanto faz -

reconhecem e valorizam.

A produção do bem ou serviço passa a ser um processo quase oculto, fora da boca de

cena, permanentemente mutável entre agentes e entre regiões do mundo, numa óptica de

minimização absoluta de custos. O que conta é a montra, o que o consumidor vê. Na

montra está o valor da marca. Nesta, o valor da empresa. Neste, o interesse dos

accionistas. O trabalho é uma variável marginal:

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“Enquanto a prioridade for a maximização do valor das acções para os accionistas, as

empresas não poderão ser fiéis aos seus empregados nem assegurar-lhes estabilidade. A

noção de fidelidade morreu, porque os accionistas não conhecem a palavra e porque eles

são, efectivamente, os reis”( Robert Reich, “La notion de stabilité de l’emploi est morte”,

entrevista ao Le Monde de 5 de Setembro de 2001)

Reich faz-nos lembrar velhas críticas ao fetichismo do mercado. Fornece-nos mesmo

um cenário que antecipa a sua fetichização absoluta, uma vez que, na produção de valor,

o símbolo substitui o produto, a propriedade do símbolo a direcção da produção e a

relação com o cliente a própria produção. Do outro lado da moeda está a precarização

dos que ficam fora do jogo da criação, ainda que vinculados a um posto de trabalho e a

uma empresa. Robert Castel chamou a este processo a desestabilização dos

estabilizados. Reich salienta o significado da fragilização da poderosa classe média

americana, a perda de segurança económica daqueles que, desde a disseminação do

Ford preto fizeram a força da América do séc. XX. Desmaterializada a empresa, o

mercado “evoluirá” para o estado selvagem. O consumidor não é fiel ao seu fornecedor,

a empresa não é responsável pelos seus trabalhadores (no limite nenhum dos “seus”

trabalhadores é verdadeiramente “seu”) e estes não lhe são leais, navegam na sua

carreira profissional por sua conta e risco, pelo que também não são solidários com os

que caem fora de borda. Em rigor, estes “empregados” americanos de sucesso já não o

são bem, sendo antes free agents que têm o seu rendimento real, tornado imprevisível,

profundamente ligado ao seu desempenho e resultados.

Tal dinâmica de individualização radical e de centramento no imediato, repercute-se na

pessoa, na sua vida, nos seus valores. Sennett já escrevera que o desaparecimento do

“longo prazo” corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo.5 Reich,

secamente, faz-nos saber que os seus alunos “não contam com a lealdade de nenhuma

organização ou instituição, e quase nunca de outra pessoa…E também não esperam vir a

ser leais”(pg. 114).

Assim definida, a percepção da vida de um jovem americano evoluiu da expectativa de

perpétua melhoria do estatuto individual do nascimento até à morte e da força da

comunidade (que de Tocqueville a Weber vimos tão fortemente salientada como traço

distintivo da América do séc. XIX) para um percurso – cada vez mais longo e solitário -

no trapézio:

5 Sennett, Richard, op. cit., p. 24

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“Podemos subir muito alto, ou cair muito baixo; não podemos saber onde iremos parar

nem prever as oportunidades que se nos depararão, nem quando; sabemos apenas que

temos de trabalhar muito para tirar partido de todas elas” (Robert Reich, O futuro do

sucesso, pg. 167)

Aqui chegados, temos uma resposta para o que faz correr os americanos: a insegurança.

Estarão dispostos a pagar tal preço pela promessa de glória aos vencedores? As

tendências recentes indicam que sim.

A sociedade americana deixou-se colocar no trapézio e cada trapezista centra o máximo

de atenção em si próprio, ao mesmo tempo que deixa destruir progressivamente a rede

que poderia amortecer o impacto da queda que tanto teme. Assim, entre os que vivem

“lá em cima” e os que caem “cá em baixo” a fractura social tenderá a agravar-se. Os

excluídos não são apenas excluídos dos recursos, mas também das relações sociais.

A “comunidade dividida”, como Reich lhe chama, é uma designação eufemística da

segregação social intensa que se nota na sociedade americana e tenderá a aprofundar-se:

educação segregada (entre escolas de comunidades ricas e escolas de comunidades

pobres, seguida da que separa das outras as universidades com posição elevada no

ranking); saúde segregada (entre os afluentes beneficiários de seguros de saúde e os

outros); cidades segregadas (entre periferias luxuosas, centros urbanos decadentes e

bairros sociais cercados); protecção social segregada (entre os que conseguem garantir

pelo seu sucesso actual a sua segurança quando atravessarem o arame das suas vidas e

os que pelo seu insucesso actual terão ainda menor protecção social, quando dela

necessitarem).

Algumas críticas ao livro têm chamado a atenção para o facto de que Reich, ainda que

tenha razão, carreia provas frágeis em abono da tese de que a vida familiar e a coesão

comunitária estão a deteriorar-se. Assim como sublinham que, no limiar de insegurança

que analisa já não se inclui a fome que se sofre em tantas zonas do mundo e ainda há

menos de um século era temida nos próprios países industrializados6.

Tais críticas não enfraquecem a questão da insustentabilidade moral da “comunidade

dividida”. A mim, pareceu-me que poderia chamar-se-lhe sem eufemismos algo como

“o apartheid dolarizado”. Mas não se acuse o fotógrafo de empatia com o retrato:

“Não somos escravos das tendências actuais nem prisioneiros dos mecanismos de

discriminação. Podemos, se quisermos, garantir que as nossas obrigações mútuas como

6 Ver, por todos, Seabright, Paul, “Who is the villain?”, London Review of Books, 22 de Agosto

de 2002, pp. 24-25

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cidadãos ultrapassem a nossa utilidade económica e organizar a vida nesse sentido. Neste

domínio, tal como noutros aspectos da nova economia, temos opções a fazer”( Robert

Reich, O futuro do sucesso, pg. 269)

É o economista da escola histórica a falar, relembrando as obrigações mútuas dos

membros de uma comunidade. O defensor de uma sociedade que se organiza por

convicções e vontades altruístas e mecanismos refreadores do egoísmo e não pela

expectativa dos efeitos benéficos da mão realmente invisível. Talvez porque nunca

tenha existido ou, se existiu no séc. XVIII foi cortada pela evolução dos mercados.

Como propõe Joseph Stiglitz:

“A minha pesquisa sobre as consequências da informação imperfeita e assimétrica (em

que diferentes indivíduos sabem coisas diferentes), bem como outras que fiz no último

quarto de século, mostraram-me que uma das razões porque a mão invisível pode sê-lo é a

de que simplesmente não esteja lá. Mesmo nos países muito dsenvolvidos, os mercados

trabalham de modo significativamente diferente do que prevêem as teorias dos “mercados

perfeitos”( Joseph Stiglitz, The roaring nineties, Nova Iorque, Norton, 2003, pg. 30)

Reich não é optimista, mas recusa a paralisia. Num chat com leitores do USA Today,

afirmou que “o trabalho está verdadeiramente a ficar fora de controlo”, que “a lealdade

está morta” e que é tempo de um “novo progressismo” que volte a reformar o

capitalismo7.

Este livro inicia esse caminho, apresentando cerca de duas dezenas de propostas para

um “novo equilíbrio social”, que esquematicamente sintetizamos na Figura 1. A

fundamentação, o desenvolvimento e a articulação de cada um destes grupos de

propostas merece um capítulo da(s) obra(s) que complete(m) a série iniciada com O

trabalho das nações.

Muitas das ideias esboçadas no futuro do sucesso saem do catecismo tradicional da

“terceira via”, algumas com aplicações, ainda que localizadas ou apenas experimentais,

outras do domínio da imaginação teórica, mas todas contributivas de um objectivo

comum: inverter a corrida perigosa em que a sociedade americana embarcou nas últimas

décadas e melhorar a sustentabilidade social de longo prazo do seu modelo económico.

Não se pode dizer que o intento não seja arrojado. E, provavelmente, não será, pelo

menos nos EUA de hoje, popular.

7 Ver http://www.usatoday.com/community/chat/0109reich.htm

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Figura 1. Síntese das propostas para um novo equilíbrio social

“prote-

ger as

pessoas

de

choques

econó-

micos

súbitos”

1. Assegurar o pleno emprego – todos os que precisarem de um emprego tê-lo-ão. Se não

houver empregos no mercado, mobilizem-se empregos de serviço público.

2. Substituir o subsídio de desemprego por um seguro salarial, que dê segurança dos

rendimentos quando não pode haver segurança do trabalho. Esse seguro deve servir para

suavizar perdas abruptas de rendimento (ex: o seguro paga 50% da perda de rendimento

entre um ano e outro e o trabalhador contribui para ele com uma percentagem do aumento

de rendimento que tiver, nos anos de variação positiva).

3. Garantir a todos trabalhadores empregados um rendimento digno (ex: todos os que

trabalharem pelo menos 40 horas por semana durante um ano inteiro poderem aceder a um

suplemento de rendimento até ao limiar de metade do rendimento mediano).

4. Tornar portáveis os benefícios sociais complementares, eliminando os benefícios fiscais

que os ligam a um emprego em particular, ligando-os às pessoas; os recursos fiscais

obtidos pelo fim de tais benfícios poderiam apoiar na doença e na velhice os mais pobres.

5. Criar um seguro de comunidade, para o risco de deslocalização da base económica local

(ex: se uma comunidade perder num ano mais de 5% da sua base económica, obteria

automaticamente fundos para suavizar a transição) ou nacional (ex: criação de uma taxa

de 0,01% sobre as transacções financeiras globais rápidas – a taxa Tobin - para criar um

fundo de estabilização das moedas nacionais).

6. Melhorar as leis do comércio internacional no sentido de proteger melhor os agentes

económicos dos surtos de importações.

Alargar o

círculo

de

prosperi-

dade

1. Investir mais na educação.

2. Tornar os activos líquidos mais acessíveis (ex: dar a todos os cidadãos americanos uma

“almofada financeira” de 60 mil dólares aos 18 anos, financiada por um pequeno imposto

sobre as grandes fortunas

Prestar

cuidados

e atenção

aos mais

necessi-

tados

1. Pagar melhor e melhorar o estatuto social das pessoas que prestam serviços pessoais à

infância, aos idosos e aos deficientes, para que sejam mais qualificadas.

2. Tornar obrigatório o ensino pré-escolar a partir dos 3 ou dos 4 anos.

3. Garantir a escola a tempo inteiro a todas as crianças em idade escolar, de forma a serem

apoiadas enquanto dura a jornada laboral dos pais.

4. Encorajar, talvez obrigar, as empresas a proporcionar horários flexíveis ou a conceder uma

licença remunerada aos trabalhadores que apoiem uma criança ou um idoso em situação

de necessidade, por exemplo, tornando tais despesas totalmente dedutíveis nos impostos

sobre os rendimentos.

5. Apoiar financeiramente – porque a paternidade e a maternidade são também uma

responsabilidade social – todos os pais que resolverem ficar em casa a tomar conta de um

filho até aos 3 anos (ex: crédito de imposto reembolsável de metade do rendimento

mediano).

Inverter o

mecanis

mo

discrimi-

natório

1. Alterar o financiamento público da educação, por exemplo, substituindo nesse papel os

impostos locais sobre a propriedade por um fundo nacional para a educação, financiado

por um pequeno imposto sobre o rendimento dos cidadãos.

2. Modular o valor dos vouchers escolares com os rendimentos familiares.

3. Dar vouchers de apoio à habitação a todas as famílias pobres, permitindo-lhes obter casas

em comunidades mais abastadas

4. Adicionalmente, exigir a todos os promotores imobiliários que incluam nos seus

programas habitacionais destinados a comunidades de altos rendimentos, uma

determinada parcela de fogos para pessoas com baixos rendimentos.

5. Proibir as seguradoras de aplicar às pessoas prémios de seguro variáveis em função de

onde vivem, quanto ganham ou da sua constituição genética.

6. Reforçar a interacção entre comunidades ricas e comunidades pobres, por exemplo pela

acção de instituições de solidariedade e o apoio de universidades a escolas de meios

desfavorecidos

Fonte: Robert Reich, o futuro do sucesso, pp. 304-309

Page 13: A vida no trapézio ou um novo contrato social-a nova economia sem meio termo

13

Tal não impede Reich de as continuar a defender e a desenvolver. Em duas obras

posteriores avança nesse sentido, mas ainda sem a sistematização e o fôlego que se lhe

exigem.

Em 2002, publicou I’ll be short: Essentials for a decent working society. Nesse livro, o

“novo equilíbrio social” ganha uma designação mais próxima do seu conteúdo. Ao

baptizar a sociedade que gostaria de ver aparecer em contraponto com o cenário de

tendência, de “decent working society”, não apenas retoma um manifesto da

Organização Internacional do Trabalho, como nos diz algo mais sobre o novo contrato

social que quer, baseado no trabalho organizado de acordo com padrões de dignidade

moralmente aceitáveis, acessível a todos os que o desejem, materialmente compensador

e compatível com a vida familiar. Tudo isto complementado com uma rede de protecção

social que assegure uma vida minimamente digna, quando tudo o resto falhar.

Pode dizer-se de I’ll be short que é mais panfletário do que os trabalhos anteriores e do

que seria de esperar, mas tem que atender-se ao contexto em que foi publicado. Reich

estava em campanha eleitoral. Oxalá desenvolva e fundamente as ideias que aí defende,

até porque não é cómodo pensar que, como diz a abrir o futuro, vivemos num mundo

em que a injustiça e a quebra do contrato social permitem que o fosso social se continue

a agravar.

Sem entrarmos aqui na discussão do futuro dos sistemas fiscais – e o português é hoje

mais parecido com o americano do que com os seus congéneres europeus – uma das

afirmações que abrem I’ll be short dá que pensar sobre a necessidade de mudar algo

para combater as assimetrias sociais:

“Então, quem vai pagar? Faça uma aposta. Os americanos de rendimentos intermédios e

baixos.

Muitos americanos pagam em impostos indirectos e contribuições sociais mais do que nos

impostos sobre o rendimento. Nos primeiros estão incluídos a segurança social e os

pagamentos do Medicare. Paga-se impostos mais ou menos sobre os primeiros 80 mil

dólares do rendimento (o tecto sobe um pouco cada ano). Bill Gates deixa de pagar

impostos, em cada ano, alguns minutos depois da meia-noite”. (Robert Reich, I’ll be

short: essentials for a decent work society, Boston, Beacon Press, 2002, p. 3)

A denúncia é inequívoca. A terapia reichiana começa também a desenhar-se. E merece,

da sua parte, aprofundamento. Da nossa, enquanto leitores preocupados e

inconformados com o modelo de sociedade a que chegaram os EUA e para o qual a

Europa pode caminhar, exige reflexão, análise e crítica.

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Com as propostas que começou a esboçar em O futuro do sucesso e a visão que

desenvolve em I’ll be short, Reich quer dizer que há esperança de domar o touro

enraivecido.

É certo que, numa perspectiva europeia, muitas das propostas concretas que apresenta se

assemelham ainda a perspectivas de reforma progressista do Estado-Providência

tentadas com sucesso, ainda que relativo, em alguns países, como a Holanda, a

Dinamarca ou a Suécia. Mas o que parece mais relevante é o esforço de fundamentação

da necessidade de um novo contrato social. Recorde-se que o economista que escreveu

este livro é o mesmo que, introduzindo Adam Smith aos leitores e estudantes

americanos, recordou as semelhanças entre as questões económico-sociais de hoje e as

que se colocavam ao pai-fundador da economia:

“Neste tempo, como naquele em que Adam Smith escreveu, é importante que recordemos a

noção revolucionária central da sua obra – a de que a riqueza de uma nação não é medida pelas

suas riquezas acumuladas, mas pela produtividade e os padrões de vida do seu povo”. (Robert

Reich “Introduction”, Adam Smith, op. cit,. p. xx)

Ou seja, Robert Reich sustenta que a sua preocupação com os padrões de vida dos

americanos é, afinal, uma recorrência no pensamento económico e não apenas uma

consequência da nova economia. Esta apenas coloca novos problemas à comunidade.

Se o resultado se aproximar das propostas de Reich, então o futuro do sucesso não será

o que resulta das tendências que hoje existem, mas implicará outra regulação política.

Reich ficou, no entanto, mais céptico quanto às possibilidades do centro-esquerda em

que se filia poder adoptar as terapias necessárias para a nova situação, depois da sua

passagem pela administração Clinton. No prefácio à edição inglesa deste livro8 avisa os

britânicos e, através deles a Europa, dos custos de uma terceira via “mole” e da simples

emulação da evolução socioeconómica americana…

Recorda que o princípio orientador da “terceira via” é o de que os governos devem

estimular o funcionamento dos mercados, apoiar as pessoas para estas se adaptarem a

eles e neles encontrarem oportunidades e esperar que estas, em contrapartida, assumam

o dever moral de trabalhar, com empenho e mobilizando a suas capacidades. Mas,

8 Nesse prefácio retoma, com as adaptações necessárias à passagem do tempo e ao facto de

se dirigir ao público britânico, os argumentos expendidos em “We are all third wayers now”, The American Prospect, nº 43, Abril de 1999. A este propósito cumpre salientar o silêncio recíproco de Robert Reich e Anthony Giddens, ambos gurus da terceira via, de um e outro lado do Atlântico. Não se referem um ao outro, não se citam, não se incluem nas bibliografias, não colaboram nas mesmas obras colectivas. Mas não podem desconhecer-se mutuamente!

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recorda também, se a terceira via “coxear”, isto é, se ficar limitada à desregulação dos

mercados, começa a diferenciar-se dificilmente das terapias neoliberais e do cenário de

tendência para o futuro do sucesso.

Para que seja eficaz e diferente, a terceira via não pode resumir-se a um compromisso

moral, destituído de meios operacionais de apoio à participação de todos nas

oportunidades que a flexibilização dos mercados é pressuposta abrir. Para que essa

flexibilização não intensifique a fractura social, é necessário um Estado interveniente,

com acções de massa, na promoção da adaptabilidade das pessoas à mudança e da sua

participação efectiva nos mercados flexibilizados. Mas

“Fazê-lo credivelmente requer mais do que um compromisso filosófico. Exige dinheiro,

também. As escolas têm que ser suficientemente boas, as universidades verdadeiramente

acessíveis, a formação ao longo da vida actualizada, os cuidados de saúde prestados em

tempo e de boa qualidade e muitos outros apoios têm que ser desenvolvidos para que a

transição seja realista” (Prefácio à edição inglesa de O futuro do sucesso, Londres,

Vintage Books, 2002, pg. x).

Esse dinheiro, recorda, só pode obter-se por duas vias:

a) o financiamento do Estado, gerando défice e/ou dívida pública, mal tolerado

pelo mercado de capitais (bem como pela ortodoxia do equilíbrio orçamental e, entre

nós, do Pacto de Estabilidade e Crescimento);

b) o aumento de impostos, pedindo aos mais ricos, também os que mais ganham

com a nova economia e com ela se apropriam de mais recursos que financiem a

formação e a adaptação dos mais vulneráveis, que prescindam de uma pequena fracção

dos seus rendimentos acrescidos, o que igualmente não é bem recebido.

Logo, a terceira via enérgica não é bem vinda pelos maiores beneficiários da nova

economia. Estes desejariam, simplesmente, de acordo com o princípio liberal de que o

desenvolvimento dos interesses próprios gera o bem comum, que o Estado emagrecesse

e fosse esquecida a segunda dimensão da proposta da terceira via.

Por outro lado, também os que vêem a sua vida posta em risco pela flexibilização dos

mercados não constituem aliados naturais do projecto, tendendo a julgar que – como, na

prática, tem acontecido – essa segunda dimensão é só retórica de cobertura da acção

política centrada na primeira.

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Daí que Reich sublinhe que a terceira via não tem apoiantes naturais. Se quer afirmar-se

como projecto político do centro-esquerda para o futuro, tem que construir os seus

apoios.

Essa é a dimensão de manifesto que este livro também tem. Um manifesto desencantado

com os protagonistas do centro-esquerda à escala mundial, desafiados por Reich a

extrair as lições das suas experiências (e dos seus insucessos):

“A verdadeira lição para todos os governos de centro-esquerda é a de que há uma Terceira

Via legítima para enfrentar as pressões de uma economia dinâmica e globalizando-se

rapidamente. Mas a realidade política é a de que as nossas populações estão cada vez mais

divididas entre as duas vias velhas (…)

Os leaders da terceira via têm que negociar um novo contrato social entre os que têm

estado a ganhar e os que têm estado a perder. Os que ganham, em contrapartida de terem

aquilo de que necessitam para ficarem ainda melhor – passos adicionais no sentido da

desregulamentação, da privatização, do comércio livre e de mercados de trabalho flexíveis

– têm que aceitar a aplicação de uma parte do seu bem-estar adicional para preparar

melhor os que estão a perder. O acordo tem que ser explícito e apresentado como uma

opção: ou a maior parte dos nossos cidadãos entram juntos na economia global ou só um

pequeno número de privilegiados o fará e os que não o conseguirem terão que ser

apoiados por redes de protecção social e por protecção dos seus postos de trabalho.

Ficaríamos todos melhor se escolhêssemos o primeiro caminho.” (Robert Reich, op. cit,

pg. xii)

Infelizmente, não é claro que os leaderes europeus e americanos de centro-esquerda

estejam à escuta… ainda para mais depois da desastrosa aliança de Blair com Bush na

aventura iraquiana.

Reich tem o mérito de propor a clarificação dos objectivos do novo projecto para o

centro-esquerda que ajudou a teorizar e quer ajudar a desenvolver.

A sua crítica do deslizamento de Clinton de uma perspectiva global de transformação

social para uma mera soma de inconsequentes gestos simbólicos, incapazes de

transformar tendências pesadas, parece aplicável a vários dos governos e ex-governos

socialistas europeus que protagonizaram a segunda metade da década de noventa do séc.

XX.

Resta saber se a crítica de uma versão “desequilibrada” da terceira via, aberta às novas

dinâmicas de mercado, mas que claudica no seu projecto de sociedade, de melhoria da

adaptabilidade dos cidadãos aos novos desafios e de combate às assimetrias sociais é

apenas a crítica de uma interpretação concreta e circunscrita dessas ideias ou a

demonstração da fragilidade do projecto.

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O tacticismo que norteou Clinton e Blair nunca alimentou uma prática como a que

Reich defende, capaz de enfrentar o poder do capital liberal. Com Bill Clinton, o

Federal Reserve Board manteve a sua influência intocada, Alan Greenspan manteve-se

no controlo das operações e os “economistas do candidato” – recorde-se que Reich

chefiou a equipa que preparou a transição na área da economia entre a antiga e a nova

administração - foram remetidos para posições secundárias ou para a gestão das

questões sociais, como aconteceu ao próprio Reich.

Se pensarmos na Europa, vale a pena ter presente que a ortodoxia do Pacto de

Estabilidade e Crescimento e o monetarismo do Banco Central Europeu foram herança,

não geração dos governos de centro-esquerda, mas mantiveram-se influentes e, quiçá

determinantes, na queda de muitos desses governos, dado o bloqueamento que

introduziram na política económica e social. O olhar americano de Joseph Stiglitz sobre

o PEC e o BCE é, aliás, revelador:

“Os perigos de uma política monetária centrada na inflação não são, de modo nenhum,

puramente teóricos. Combater a inflação é, desde 1994, o mandato exclusivo do Banco

Central Europeu. Quando a União Europeia fez os planos da sua moeda comum, o euro,

preocupou-se com os problemas do passado, em vez de se preocupar com os do futuro

(…) Para levarem a mensagem para casa, os Estados-membros da UE receberam

objectivos fiscais estritos (…) Daí resultou que o banco central estava de mãos atadas

atadas quando a economia europeia desacelerou em 2001. Não só foi incapaz de baixar as

taxas de juro como os vários governos [europeus] foram incapazes de estimular a

economia através de reduções de impostos ou de despesas acrescidas – em contraste

marcado com os EUA, onde ambos, em termos gerais, acordaram na necessidade de

estimular a nossa economia quando, simultaneamente, ela deslizou para a sua própria

recessão” (Joseph Stiglitz, The roaring nineties, Nova Iorque, Norton, 2003, pg. 100-101)

A decisão, inicialmente táctica, de não enfrentar a ortodoxia monetarista, manietou o

centro-esquerda europeu, depois prisioneiro da sua paralisia.

Esse mesmo tacticismo e o seu esvaziamento do discurso ideológico levou muitos

protagonistas a desistir de influenciar ideologicamente as bases conservadoras de

esquerda (sindicatos à cabeça), limitando-se a esperar que estas se conformassem com o

facto de não terem alternativas.

A libertação do tacticismo propugnada por Reich não será fácil. Muitos dos seus amigos

não parecem ter ouvido em tempo os seus conselhos sobre liderança política:

“Quem quiser ser um verdadeiro leader define o centro. Não depende dos fazedores de

sondagens para lhe dizerem o que ele é, porque não pode dirigir-se as pessoas para onde

elas já estão”(Robert Reich, “The death of opposition in America”, The Observer, 15 de

Dezembro de 2003)

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Reich é, pelo menos, coerente. Deixa claro o que julga estar em causa. Quer um novo

patriotismo, assente em mais oportunidades para o conjunto dos cidadãos, defende uma

ideologia da ligação entre eles por obrigações comunitárias e propõe uma nova partilha

de recursos, que torne possível criar as bases para que mais flexibilidade económica

possa conjugar-se com mais segurança económica e uma vida melhor.

Fica a proposta à consideração do centro-esquerda do futuro, que continua a

desenvolver, quem sabe se em aproximações várias ao terceiro volume necessário da

trilogia que lhe peço aqui. O seu recente manifesto “anti-radcon”, como chama aos

conservadores radicais americanos, é mais uma peça, nesse edifício, embora centrada na

política americana. Mas a quem possa parecer que a crítica de Reich aos democratas é

amarga, convém recordar que ele acredita que o progressismo que representa vai ganhar

a América. O título Reason: why liberals will win the battle for America não deixa

margem para dúvidas.

Se, desde o início da sua colaboração com Clinton, Robert Reich perdeu ingenuidade e

optimismo, continuou a ganhar lucidez. Aplicando-lhe a sua própria antevisão do

mercado de trabalho, Reich é um trabalhador criativo do centro esquerda, um

“lunático”, mesmo que não seja um “psicólogo”. Oxalá o centro-esquerda encontre os

“lunáticos” e os “psicólogos” necessários para que outros existentes no mercado político

não transformem a sociedade do futuro no pesadelo que se lê nas linhas, mas sobretudo

em todas as entrelinhas deste livro.

Eis, em síntese, o futuro do sucesso. Se nada acontecer vai tornar-se cada vez mais

improvável que se possa ter, simultaneamente bem-estar familiar e profissional. Alguns

terão um deles e os outros, nenhum. Aos cidadãos reflexivos cabe aceitar esta fractura

ou mudar alguma das variáveis da equação, isto é, mudar o futuro do sucesso.

P.S. O editor Carlos Araújo, da Terramar e o Professor Júlio Mota, da Faculdade de

Economia da Universidade de Coimbra, convidaram-me para escrever uma

apresentação a um livro de Robert Reich sobre o futuro do emprego quando eu era

“simplesmente” ex-Ministro do Trabalho e da Solidariedade, deputado e porta-voz do

Partido Socialista. Entretanto, falsidades e calúnias envolveram-me num processo

judicial em que me foram atribuídos comportamentos monstruosos e uma decisão

judicial já declarada ilegal pelo Tribunal da Relação de Lisboa, levou-me, durante

quatro meses e meio ao cárcere. No momento em que termino este texto impende ainda

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sobre mim a suspeita da prática de actos horrendos que não pratiquei e repudio; suspeita

que, espero, já tenha sido vencida quando tiver este texto nas mãos. Mas nada apagará,

nunca, o sofrimento destes meses, que acabaram por ser também um tempo propício a

uma reflexão sobre o sentido da vida pessoal e da intervenção cívica, um tempo de

paragem, de valorização ainda maior da lealdade, da solidariedade e da confiança. Um

tempo para sentir o que pode acontecer numa sociedade em que tais valores entrem em

erosão. Mas também para perceber a sua importância ainda com maior clarividência.

O facto de que, no próprio dia em que a calúnia foi tornada pública, me tenha sido

renovado tal convite, conta-se entre aqueles gestos que não esquecerei e que

demonstram que o futuro não pode estar num mundo egoísta e amoral que a nova

economia pode ajudar a gerar, se nada fizermos para o impedir. O meu agradecimento a

Carlos Araújo e Júlio Mota transcende em muito o tempo deste pesadelo e é acrescido

pelo reconhecimento da paciência com que esperaram que recuperasse condições

psicológicas para, no meio da tormenta, concluir este texto.

*************

Algumas sugestões de leitura complementares de O futuro do sucesso

a) de Robert Reich

I’ll be short: Essentials for a decent work society, Boston, Beacon Press, 2002

Locked in the cabinet, Nova Iorque, Knopf, 1997

The work of nations: preparing ourselves for 21st century, Nova Iorque, Knopf, 1991

[versão portuguesa O trabalho das nações preparando-nos para o capitalismo do

século XXI, Lisboa, Quetzal, 1993]

(ed.) The power of public ideas, Cambridge, Harvard University Press, 1990

c) de outros autores

Castel, Robert, Les métamorphoses de la question sociale – une chronique du salariat,

Paris, Fayard, 1995

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Esping-Andersen, Gosta, Social Foundations of postindustrial economies, Oxford,

Oxford University Press, 1999

Sennett, Richard, The corrosion of character – the personal consequences of work in

the new capitalism, Nova Iorque, Norton, 1998 [versão portuguesa A corrosão do

carácter, Lisboa, Terramar]

Stiglitz, Joseph, Globalization and its discontents, Nova Iorque, Norton, 2002 [versão

portuguesa, Globalização, a grande desilusão, Lisboa, Terramar]