7/30/2019 Agatha Christie - Punio Para a Inocncia
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PUNIO
PARA AINOCNCIA
O veredicto assassinato. Porm, enquanto cumpre sua
pena de priso perptua por matricdio, Jacko Argyle morre
na priso. Dois anos mais tarde, um estranho abala a paz
da famlia Argyle. Poderia Arthur Calgary apresentar o
elemento que faltava na defesa de Jacko?. Teria Jacko sido
condenado por um crime que no cometeu? Mas se no foi
Jacko quem cometeu o crime, ento quem foi?
COLEO AGATHA CHRISTIE
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AGATHA CHRISTIE
PUNIOPARA A
INOCNCIATraduo de
BARBARA HELIODORA4 edio
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Ttulo original em ingls:
ORDEAL BY INNOCENCE
Capa:Rolt Gunther Braun
Diagramao:
Celso Nascimento
Reviso:
Sylvio Clemente da Motta Agatha Christie Limited, 1958
Direitos adquiridos para a Lngua Portuguesa, no Brasil, pelaEDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Maria Anglica, 168LagoaCEP: 22.461 Tel.: 286-7822
Endereo Telegrfico: NEOFRONT
Rio de JaneiroRJ
Proibida a exportao para Portugal
e pases africanos de lngua portuguesa.
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ORELHA DO LIVROPUNIO PARA A INOCNCIA
Calgary um homem de amplos conhecimentos, e uma
companhia agradvel. Um dia est diante do rio e precisa atravess-
lo. D com o barco, e com seu barqueiro. No chegaria, de outra
maneira, at o Recanto do Sol. Tudo parece muito mitolgico, mas a
vida est ali mesmo, repleta de sua realidade, e de sua violncia.
Uma casa com aquele nome: o leitor pensa logo em praia, prazer,
descompromisso. E encontra as sombras. As sombras
irresistivelmente reunidas em torno da lareira, onde as crianas se
aqueciam, e o amor, a proteo da Sra. Argyle era a chama de maior
constncia. Que fim levou o menino Jacko? Ele vingou, cresceu,
traiu, negociou. E foi visto, depois, na mesma noite em que sua me
adotiva se cobriu de mistrio e escurido. Qual a culpa de Jacko,
desajustado, tratante, criminosoentretanto, quem sabe, destrudo
por uma s inocncia? Ante o escuro, de novo, da priso.
Mas no foi s no Recanto do Sol que o Sr. Calgary se viucercado de sombras. Houve, antes, o dia do estrondo, choque,
impacto que lhe apagou todas as luzes da memria, atropelo, trapo
de Calgary atropelado. Sol ou vbora, bom ou ruim se lembrar mais
tarde, rever a cena, a seqncia inteira, o libi confirmado? Uma luz
incmoda, agora, este cidado. Gostariam de apag-lo/a: os outros,
todoscomo aceitar aquele que no esquece? O leitor acabar des-
cobrindo um assassino. No o de Jacko, porm. Pois este crime, nem
ele prprio o leitor pode estar certo de no ter cometido. Caso
se sinta culpado, o melhor ficar bem quieto no seu canto,
procurando entender por que lhe acontece isso. Ter mesmo que se
dar por muito feliz se tiver sido vtima, to-somente, de sua
conscincia, no da vbora que se enrosca pelos cmodos da casa e
desde o incio o olha no fundo dos olhos, sem a menor hesitao.
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CC
AA
PP
TT
UU
LL
OO
II
J era crepsculo quando ele chegou ao cais. Poderia ter
chegado muito antes, mas a verdade que havia protelado aquilo o
quanto lhe fora possvel.
Primeiro almoara com amigos em Redquay; a conversa leve e
inconseqente, a troca de mexericos a respeito de amigos comuns,
tudo aquilo no significara mais do que um pretexto para justificar o
fato de estar interiormente recuando ante o que tinha de fazer. Seus
amigos o haviam convidado a ficar para o ch e ele prontamente
aceitara. Porm, por fim, havia chegado o momento em que sabia
no poder continuar a adiar as coisas.
O carro que alugara estava esperando. Despediu-se e partiupara cobrir as sete milhas de trfego pesado da estrada da costa e,
depois, seguir para o interior ao longo da estradinha sombreada de
rvores que conduzia ao pequeno cais de pedra no rio.
Havia um enorme sino que seu motorista fez soar
vigorosamente para chamar o barco que estava na outra margem.
No vai querer que o espere, senhor?
No disse Arthur Calgary. J pedi um carro que mevir buscar daqui a uma hora para levar-me at Drymouth.
O homem recebeu a corrida e a gorjeta. E acrescentou,
espiando para o outro lado do rio atravs das sombras:
O barco j est vindo, senhor.
Com um suave boa-noite ele manobrou o carro e afastou-se
morro acima. Arthur Calgary ficou s, esperando no cais. S com
seus pensamentos e apreenses a respeito do que estava para
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enfrentar. Como era rude a natureza por ali, pensou. Dava para se
pensar nas bordas de algum lago escocs, longe de tudo e de todos.
No entanto, a poucas milhas de distncia estavam os hotis, as
butiques, os bares e as multides de Redquay. Refletiu, no pelaprimeira vez, sobre os extraordinrios contrastes da paisagem
inglesa.
Ouviu o suave chapinhar dos remos do barco que se
aproximava do pequeno cais. Arthur Calgary desceu a rampa
ngreme e entrou no barco que o barqueiro firmava com um gancho.
Era velho e deu a Calgary a estranha impresso de que ele e seu
barco se pertenciam mutuamente, eram um s, indivisveis.Uma brisa fresca chegou do lado do mar quando comeavam a
se afastar.
A noite est friadisse o barqueiro.
Calgary deu a resposta adequada. Chegou mesmo a concordar
que fazia mais frio do que no dia anterior.
Estava consciente, ou pelo menos julgava estar, de uma velada
curiosidade nos olhos do barqueiro. Era de fora. Era forasteiro que
aparecia depois da temporada propriamente dita. Alm do mais, o
forasteiro estava fazendo a travessia numa hora meio estranha, pois
j era tarde demais para tomar ch no bar junto ao cais. No levava
bagagem, logo no podia estar chegando para demorar. (Por que,
ficou imaginando Calgary, teria vindo to tarde? Seria realmente
porque, no subconsciente, estava tentando protelar aquele
momento? Deixar para o mais tarde possvel o que tinha de ser
feito?) Cruzando o Rubico, o rio... o rio... sua mente voltou-se para
um outro rio, o Tmisa.
Ele olhara para o rio sem v-lo (teria sido mesmo apenas
ontem?); depois se voltara para tornar a olhar para o homem que se
sentava sua frente mesa. Aqueles olhos pensativos traziam em si
alguma coisa que ele no havia chegado a ser capaz de compreender.Algo mantido em reserva, algo pensado porm no expressado...
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Suponho, pensou ele, que aprendem a jamais revelar o que
esto pensando.
A coisa toda era realmente assustadora quando se pensava
bem. Ele tinha de fazer o que devia ser feito, e depois... esquecer!Franziu a testa ao relembrar a conversa da vspera. Aquela voz
agradvel, tranqila, neutra, dizendo:
O senhor est inteiramente decidido a respeito do caminho
que vai tomar, Dr. Calgary?
Ele respondera, acalorado:
Que mais posso fazer? Por certo h de compreender isso?
Deve concordar! uma coisa que no posso recusar-me a fazer.Mas no conseguira compreender aquele olhar cinzento e
reservado e ficara um tanto perplexo com a resposta:
Todo assunto tem de ser encarado sob todos os pontos de
vista, considerado sob todos os aspectos.
Mas sem dvida sob o prisma da justia s pode haver um
ponto de vista!
Havia falado acaloradamente, pensando por um momento que
estava sendo feita alguma sugesto ignbil de se abafar o assunto.
De certo modo, sim. Porm h mais do que isso a
considerar. Mais do que, digamos, justia?
No concordo. H a famlia a considerar.
E o outro disse, rapidamente: Claro. Ah, sim, claro. Era
nelesque eu estava pensando.
O que parecera a Calgary a maior tolice! Porque se algum
estivesse pensando neles...
Porm imediatamente o outro continuara, com sua voz
agradvel e inalterada:
Isso inteiramente com o senhor, Dr. Calgary. O senhor
deve, naturalmente, fazer exatamente aquilo que sentir que deve
fazer.O barco chegou ao outro lado. Ele havia atravessado o
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Rubico.
A voz do barqueiro, com seu suave sotaque do oeste da
Inglaterra, disse:
So quatropence, senhor; ou deseja ida e volta? No disse Calgary. No vou voltar. (Como a frase
parecia fatdica!)
Pagou, depois perguntou:
Conhece uma casa chamada Recanto do Sol?
Imediatamente a curiosidade deixou de ser velada. O interesse
nos olhos do velho saltava de avidez.
Mas claro. ali, para a direita, d para ver no meio dasrvores. O senhor sobe a colina pela estrada, sempre direita, depois
pega o caminho do novo conjunto residencial. a ltima casa, bem
no fim.
Obrigado.
O senhor disse Recanto do Sol, no disse? Onde a Sr
Argyle...
Isso mesmo cortou Calgary. No queria discutir o
assunto.O Recanto do Sol.
Um sorriso lento e um tanto peculiar contorceu os lbios do
barqueiro. Repentinamente ficou parecido com um fauno velho e
safado.
Foi elaquem deu esse nome casa, durante a guerra. Era
casa nova, claro, tinham acabado de construir, no tinha nome.
Mas o terreno onde ela fica, aquele bosquezinho, chama-se mesmo
Recanto da Vbora! Mas Recanto da Vbora no ia servir para ela, no
para ser nome da casa dela. E ento chamou de Recanto do Sol. Mas
nssempre chamamos de Recanto da Vbora.
Calgary agradeceu bruscamente, disse boa-noite e comeou a
subir a colina. Todos pareciam estar recolhidos s suas casas, porm
teve a impresso de que olhos ocultos espiavam pelas janelas detodas as casas; todos olhando e sabendo para onde ele ia. Dizendo,
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uns para os outros: Ele vai para a Recanto da Vbora...
Recanto da Vbora. Como o nome devia ter parecido
horrivelmente apropriado...
Pois mais aguda que o dente da serpente...Ele cortou bruscamente seus pensamentos. Precisava con-
trolar-se e decidir exatamente o que iria dizer...
IIII
Calgary chegou ao fim da encantadora estrada recentemente
construda, com suas encantadoras casas novas de cada lado, cada
uma cercada por terreninhos precisamente iguais; cctus,
crisntemos, rosas, palmas, gernios revelavam o gosto individual do
dono de cada jardim.
No final da estrada havia um porto no qual se podia ler
RECANTO DO SOL em letras gticas. Ele abriu o porto, entrou e
subiu por um pequeno caminho. L estava a casa bem na frentedele, uma casa moderna, bem construda e sem personalidade, com
mansardas e varanda. Poderia pertencer a qualquer subrbio
residencial de boa categoria, ou a qualquer novo bairro residencial.
No ficava altura, na opinio de Calgary, da vista que descortinava.
Pois a vista era magnfica. O rio, naquele ponto, descrevia uma curva
de quase 360 em torno de uma ponta. Do outro lado, descortinava-
se colinas cobertas de rvores; um pouco mais abaixo o rio tornava a
dar uma curva e penetrava num vale de prados e hortas.
Por um momento Calgary olhou o rio, para cima e para baixo.
Aqui deveria ter sido construdo um castelo, pensou ele, um castelo
ridculo, impossvel, sado de um conto de fadas! Castelo de bolo de
aniversrio de criana. Ao invs, ali estavam bom gosto, controle,
moderao, muito dinheiro e nenhuma imaginao.
Por isso, naturalmente, no se poderia culpar os Argyles, j
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que eles haviam apenas comprado a casa, no a haviam construdo.
Mesmo assim, eles ou um deles (a Sr Argyle?) a haviam escolhido...
Ele disse de si para si: Voc no pode adiar mais nem um
momento... e apertou a campainha ao lado da porta,E ali ficou ele, esperando. Aps um intervalo razovel, tornou a
tocar. No ouviu qualquer rudo de passos no interior, porm, sem
qualquer aviso, repentinamente a porta se abriu.
Ele recuou um passo, assustado. Para a sua imaginao j
superestimulada, parecia que a prpria Tragdia estava ali parada,
cortando-lhe o caminho. Era um rosto jovem; na verdade era na
pungncia de sua juventude que residia a prpria essncia de suatragdia. A Mscara Trgica, pensou ele, deveria sempre ser uma
mscara jovem... desamparada, predestinada, com a desgraa se
aproximando inexoravelmente... com o futuro...
Controlando-se, ele raciocinou: Tipo irlands. O azul
profundo dos olhos, a profunda sombra em torno dos mesmos, o
farto cabelo negro, a melanclica beleza dos ossos do crnio e da
face.
A moa permaneceu ali, parada, alerta e hostil.
Disse, por fim:
Pois no. O que deseja?
Ele respondeu convencionalmente.
O Sr. Argyle est?
Est. Mas no recebe ningum. Quero dizer, ningum que
no conhea. E. ele no o conhece, conhece?
No. Ele no me conhece, porm...
Ento melhor o senhor escrever...
Desculpe, mas eu precisava realmente v-lo. Estou falando
com a... Sr.t Argyle?
Ela confessou com relutncia.
Sim, sou Hester Argyle. Mas meu pai no v ningum semhora marcada. melhor o senhor escrever.
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Vim de muito longe.Ela no se deixou comover
o que todos dizem. Mas eu pensei que finalmente esse tipo
de coisa tivesse acabado.E continuou, acusadora.
Suponho que seja jornalista?No, nada disso.
Ela o olhou desconfiada, como se no acreditasse.
Ento o que deseja?
Por trs dela, para o fundo do hallde entrada, viu um outro
rosto. Um rosto feio e inexpressivo. Para descrev-lo teria dito um
rosto igual a uma panqueca, um rosto de mulher de meia idade, com
o cabelo encaracolado de um amarelo acinzentado emplastrado noalto da cabea. Parecia sobrevoar, espreita, como um drago
protetor.
Trata-se de seu irmo, Sr.ta Argyle.
Hester Argyle inspirou violentamente. Disse, sem acreditar.
Michael?
No; seu irmo Jack.
Ela explodiu: Eu sabia! Sabiaque era a respeito de Jacko!
Por que no nos deixam em paz? Est tudo acabado, liquidado. Por
que continuar com tudo isso?
Nunca se pode dizer que uma coisa esteja realmente
acabada.
Mas isso est acabado! Jacko est morto. Por que no o
deixam em paz? Tudo isso acabou. Se o senhor no jornalista,
suponho que seja mdico, ou psiclogo, ou coisa no gnero. Por
favor, v embora. Meu pai no pode ser perturbado. Est ocupado.
Ela comeou a fechar a porta. Rapidamente Calgary fez o que
devia ter feito de sada, tirou a carta do bolso e ofereceu-a a ela.
Tenho aqui uma carta... do Sr. Marshall.
Ela hesitou. Seus dedos pegaram com relutncia na envelope.
Disse, com incerteza:Do Sr. Marshall, de Londres?
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Repentinamente a mulher de meia idade que estivera
espreitando no fundo do halljuntou-se a ela. Espiou na direo de
Calgary com desconfiana e a imagem de conventos distantes veio
sua lembrana. Claro que aquele deveria ser o rosto de uma freira!Exigia o branco engomado da touca, chapu ou l o que o
chamassem, para emoldurar severamente a face, bem como o hbito
negro e o vu. No era o rosto de uma contemplativa, mas da irm
leiga que espia com suspeita pela pequena abertura da porta pesada,
antes de permitir, de m vontade, a entrada e conduzir o visitante ao
parlatrio ou Reverenda Madre.
O senhor vem da parte do Sr. Marshall?inquiriu ela.Parecia mais uma acusao.
Hester olhava fixamente o envelope em sua mo.
Repentinamente, sem uma s palavra, deu meia volta e correu pela
escada acima.
Calgary ficou parado na porta, enfrentando o olhar acusador e
desconfiado do drago misto de irm-leiga.
Ele procurou um pouco por alguma coisa a dizer, mas no
conseguiu lembrar-se de nada. Assim sendo, manteve-se
prudentemente calado.
Dentro em breve a voz de Hester, fria e distante, desceu at
eles.
Papai disse que para ele subir.
Um tanto a contragosto seu co de guarda afastou-se. Sua
expresso de suspeita no se alterou. Ele passou por ela, pousou o
chapu numa cadeira e subiu as escadas at onde Hester o
aguardava.
O interior da casa deu-lhe impresso vagamente anti-sptica.
Poderia quase, pensou ele, tratar-se de uma casa de repouso
dispendiosa.
Hester guiou-o por um corredor, depois desceu trs degraus.Finalmente abriu uma porta e fez-lhe um gesto para que entrasse.
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Ela entrou logo aps, e fechou a porta atrs de si.
Estavam numa biblioteca e Calgary levantou a cabea com
sensao de prazer. A atmosfera ali era completamente diferente da
do resto da casa. Tratava-se de um cmodo no qual um homem viviae no qual ele tanto trabalhava quanto passava seu lazer. As paredes
eram forradas de livros, as cadeiras amplas, um tanto surradas
porm acolhedoras. Havia uma agradvel desordem de papis sobre
a escrivaninha, de livros sobre vrias mesas. Vislumbrou uma moa
deixando a sala por uma porta na outra extremidade, uma moa
bastante atraente. Depois sua ateno foi tomada pelo homem que se
levantou e veio saud-lo, com a carta aberta em suas mos.A primeira impresso que Calgary teve de Leo Argyle foi a de
que estava to desgastado, to transparente, que praticamente no
tinha presena material. O esprito de um homem! Quando falou,
sua voz era agradvel, porm destituda de ressonncia.
Dr. Calgary?disse.Sente-se, por favor.
Calgary sentou-se e aceitou um cigarro. Seu anfitrio sentou-se
em frente a ele. Tudo era feito sem pressa, como se em um mundo no
qual o tempo tivesse muito pouca importncia. Havia o leve trao de
um sorriso no rosto de Leo Argyle quando falou, batendo
delicadamente na carta com um dedo exange ao faz-lo.
O Sr. Marshall escreve que o senhor tem uma comunicao
importante a nos fazer, muito embora no especifique sua natureza.
O sorriso ficou um pouco mais marcado quando acrescentou:
Todo advogado evita sempre se comprometer, no ?
Ocorreu a Calgary, com um ligeiro choque de surpresa, que o
homem que o confrontava era um homem feliz. No de uma
felicidade alegre ou expansiva, como costuma ser normalmente a
felicidade, mas feliz dentro de algum refgio sombrio porm
satisfatrio e todo seu. Ali estava um homem ao qual o mundo
exterior no conseguia impingir-se e que estava contente que assimfosse. No sabia por que havia de ficar surpreso com isso, mas ficou.
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Calgary disse:
muita bondade sua receber-me. As palavras no passavam
de uma introduo mecnica. Julguei que seria melhor vir em
pessoa do que escrever. Fez uma pausa, depois disse, em repentino eexcitado estouro de agitao. difcil, muito difcil...
No h pressa.
Leo Argyle continuava polido e distante.
Inclinou-se para a frente; sua tmida maneira, estava
obviamente tentando ajudar.
J que traz esta carta de Marshall, suponho que sua visita
tem alguma ligao como meu infeliz filho Jacko, quero dizer, Jack.Jacko era como ns o chamvamos.
Todas as palavras e frases que Calgary preparara com tanto
cuidado o haviam abandonado. Ficou ali, sentado, enfrentando a
aterrorizante realidade do que tinha a dizer. Novamente gaguejou.
to difcil...
Houve um momento de silncio, depois Leo disse
cautelosamente:
Se que isso pode ajud-lo, ns temos plena conscincia de
que Jacko... dificilmente poderia ser considerado como uma
personalidade normal. Nada de que nos poder contar ser recebido
com muita surpresa. Por mais terrvel que tenha sido a tragdia,
sempre fiquei convencido de que Jack no era realmente responsvel
por seus atos.
Claro que no era. Era Hester; e Calgary teve um
sobressalto ao som de sua voz. Por um instante ele a havia
esquecido. Ela se havia sentado no brao de uma cadeira que ficava
um pouco para trs de seu ombro. Quando ele voltou a cabea, ela
se inclinou ansiosa para ele.
Jacko sempre foi uma coisa horrvel disse ela em tom
confidencial. Era a mesma coisa quando ele era pequeno, querodizer, quando perdia a cabea. Passava a mo na primeira coisa que
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encontrava e... e partia para cima...
Hester, Hester, minha querida. A voz de Argyle estava
muito perturbada.
Assustada, as mos da moa voaram para seus lbios.Enrubesceu e depois falou com a repentina falta de jeito dos muito
jovens:
Desculpedisse.Eu no queria, eu esqueci, eu, eu no
devia ter dito uma coisa dessas, no agora que ele j, isto , agora
que est tudo acabado e...
Completamente acabadodisse Argyle.Tudo isso coisa
do passado. Eu tento... todos ns tentamos... pensar que precisoconsiderar o rapaz como um invlido. Um dos desacertos da
natureza. Creio que essa a melhor maneira de express-lo. Olhou
para Calgary.No concorda?
Nodisse Calgary.
Houve um instante de silncio. A negativa incisiva deixou
atnitos os dois ouvintes. Ela sara com fora quase que explosiva.
Tentando mitigar seu efeito, ele acrescentou, canhestramente:
Eu, eu, desculpem. Mas acontece que ainda no
compreenderam.
Oh! disse Argyle, parecendo avaliar a situao. Depois virou-
se para a filha:
Hester, penso que talvez seja melhor, voc nos deixar.
Eu no vou sair! Tenho de ouvir, tenho de saber do que se
trata.
Pode ser desagradvel.
Hester exclamou, impaciente:
E o que importa que outra coisa horrvel Jacko possa ter
feito? Acabou.
Calgary falou rapidamente.
Por favor, acredite-me, no se trata de qualquer coisa que oseu irmo tenha feito, muito pelo contrrio.
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No vejo...
A porta no fundo da sala se abriu e a moa que Calgary apenas
vislumbrara antes entrou na biblioteca. Usava agora um mant e
portava uma pasta.Dirigiu-se a Argyle.
J vou indo. H mais alguma coisa?
Houve uma ligeira hesitao por parte de Argyle (sempre
hesitaria, pensou Calgary), depois ele pousou a mo no brao da
moa e trouxe-a para a frente.
Sente-se Gwendadisse ele.Este , hum, o Dr. Calgary.
Esta a Sr.ta Vaughan, que , que ... que j minha secretria halguns anos. A explicao saiu aps uma pausa e nova hesitao.
Acrescentou: O Dr. Calgary veio para nos dizer alguma coisa, ou
para nos perguntar alguma coisa, a respeito de Jacko.
Para dizer-lhes alguma coisa. interrompeu Calgary. E
muito embora no o percebam, a cada momento esto tornando mais
difcil para mim diz-lo.
Todos olharam para ele um tanto surpresos, mas nos olhos de
Gwenda Vaughan pde ver a chispa de algo que parecia
compreenso. Era como se eles fossem, momentaneamente, aliados,
e ela estivesse dizendo: , eu sei o quanto os Argyles podem ser
difceis.
Era uma jovem atraente, pensou ele, embora no assim to
jovem, talvez uns trinta e sete ou trinta e oito anos. Corpo cheio,
cabelos e olhos escuros, todo um ar de sade e vitalidade. Dava a
impresso de ser ao mesmo tempo competente e inteligente.
Argyle disse, com alguma coisa gelada em seus modos: No
tenho a menor conscincia de estar tornando as coisas mais difceis
para o senhor, Dr. Calgary. Por certo no foi essa a minha inteno.
Se quiser dizer do que se trata...
Sim, eu sei. Desculpem-me pelo que disse, porm apersistncia com a qual o senhor e sua filha esto continuamente
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salientando que as coisas esto acabadas, liquidadas. Elas noesto
terminadas. Quem foi que disse Nada fica bem terminado...
Enquanto no termina certo concluiu para ele a Sr.ta
Vaughan. Foi Kipling.Ela sacudiu a cabea para encoraj-lo eele sentiu-se agradecido.
Mas irei logo ao assunto continuou Calgary. Quando
tiverem ouvido o que tenho a dizer, compreendero minha...
relutncia. Mais ainda, minha angstia. De incio devo dizer algumas
coisas a meu prprio respeito. Sou geo-fsico e acabo de tomar parte
numa expedio Antrtida. S voltei Inglaterra faz poucas
semanas.A expedio Hayes Bentley?perguntou Gwenda.
Ele se voltou para ela agradecido.
Exato. A expedio Hayes Bentley. Estou dizendo tudo isso
para explicar quem sou e tambm por que perdi contato durante
aproximadamente dois anos com... os acontecimentos
contemporneos.
Ela continuou a ajud-lo.
Est querendo falar de coisas assim como julgamentos e
assassinatos?
Sim, Sr.ta Vaughan, era exatamente a isso que me referia.
Ele se voltou para Argyle.
Por favor, desculpe-me se isto doloroso, porm preciso
verificar com o senhor certas horas e datas. No dia 9 de novembro do
ano atrasado, cerca das seis horas da tarde, seu filho Jack Argyle (a
quem chamam Jacko), veio aqui e teve uma entrevista com sua me,
a Sra Argyle.
Com minha mulher, sim.
Disse-lhe que estava em apuros e pediu dinheiro. Isso j
acontecera anteriormente.
Muitas vezesdisse Leo Argyle, com um suspiro.A Sr.a Argyle recusou. Ele se tornou ofensivo e ameaador.
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Finalmente saiu, muito irritado e gritando, do lado de fora, que
voltaria e que ela ia ver se tinha ou no tinha de entregar a gaita.
Disse No vai querer que eu v para a priso, vai?, tendo ela
respondido Estou comeando a crer que isso seria a melhor coisaque poderia acontecer a voc.
Leo Argyle remexeu-se inconfortvel.
Minha mulher e eu havamos conversado a respeito. Ns
estvamos... estvamos profundamente insatisfeitos com o rapaz. J
o salvramos no sei quantas vezes, tentando dar-lhe uma nova
oportunidade. Havia-nos parecido que o choque de uma condenao
priso... a disciplina... Sua voz apagou-se.Mas, faa o favor decontinuar.
Calgary continuou:
Mais tarde, nessa mesma noite, sua mulher foi morta.
Atacada com um atiador de lareira e abatida. As impresses digitais
de seu filho estavam no atiador e uma considervel soma em
dinheiro havia desaparecido da gaveta na qual sua mulher o havia
colocado mais cedo naquele mesmo dia. A polcia capturou seu filho
em Drymouth. O dinheiro foi encontrado com ele, a maior parte em
notas de cinco libras, sendo que em uma delas havia um endereo
escrito que permitiu sua identificao, pelo Banco, como sendo uma
das que haviam sido entregues Sra Argyle naquela manh. Ele foi
acusado e julgado. O veredicto foi de assassinato premeditado.
Pronto. A palavra fatal havia sido dita. Assassinato... No
uma palavra que ressoe; uma palavra sufocada, uma palavra que
absorvida pelas cortinas, os livros, os grossos tapetes... A palavra
podia ser sufocada, mas no o ato...
Fui informado pelo Sr. Marshall, o advogado de defesa, que
seu filho proclamou sua inocncia, ao ser preso, de modo alegre,
para no dizer desrespeitoso. Insistia que tinha um libi perfeito
para a hora do crime, que havia sido previsto pela polcia entre assete e as sete e meia. Naquele momento, disse Jack Argyle, ele estava
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indo de carona para Drymouth, tendo sido apanhado por um carro
na estrada principal entre Redyn e Drymouth a cerca de uma milha
daqui, um pouco antes das sete horas. Ele no sabia qual era a
marca do carro (estava j bastante escuro naquele momento), mas setratava de um sed de quatro portas preto ou azul marinho, guiado
por um homem de meia idade. Todos os esforos foram feitos para
encontrar o carro e o homem que o guiava, porm no foi possvel
obter-se qualquer confirmao daquela afirmativa, sendo que os
prprios advogados ficaram convencidos de que se tratava de uma
histria fabricada s pressas pelo rapaz... e nem sequer
particularmente bem fabricada.No julgamento a linha principal de defesa foi o depoimento
de psiclogos que tentaram provar que Jack Argyle sempre havia
sido mentalmente instvel. O juiz teceu comentrios arrasadores
sobre tais depoimentos e seu sumrio era radicalmente contra o
prisioneiro. Jack Argyle foi condenado priso perptua. Ele morreu
de pneumonia seis meses aps ter comeado a cumprir sua pena.
Calgary parou. Trs pares de olhos estavam agarrados a ele.
Havia interesse e ateno nos de Gwenda Vaughan, mas ainda havia
suspeita nos de Hester. Os de Leo Argyle pareciam totalmente
privados de expresso.
Calgary disse: Podem confirmar se eu descrevi os fatos
corretamente?
Est perfeitamente corretodisse Leo,embora eu ainda
no perceba por que ter sido necessrio rememorar todos esses
fatos dolorosos que vimos todos tentando esquecer.
Desculpem-me, Mas era necessrio. Os senhores, pelo que
sei, no discordam do veredicto?
Admito que os fatos foram os que apresentaram, ou seja,
que se no se olhar para nada alm dos fatos, o que houve, em
termos rudes, foi assassinato. Porm se se olha para algo mais doque os fatos, h muitos atenuantes a serem considerados. O rapaz
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era mentalmente instvel, muito embora, infelizmente, no no
sentido legal da palavra. A jurisprudncia McNaughten estreita e
insatisfatria. Eu lhe garanto, Dr. Calgary, que a prpria Rachel,
minha finada mulher, seria a primeira a perdoar e justificar o infelizrapaz por seu ato impensado. Ela era uma pensadora avanada e
profundamente humana, tendo grande conhecimento de fatores
psicolgicos. Elajamais o teria condenado.
Ela sabia como Jacko podia ser terrvel disse Hester.
Era assim sempre... ele simplesmente no conseguia fazer nada para
alterar esse fato.
Quer dizer que ningum aquidisse Calgary lentamentetinha qualquer dvida? Dvida, digo, a respeito de sua
culpabilidade?
Hester fixou os olhos nele.
E como poderamos ter? claro que ele era culpado.
No realmente culpadodiscordou Leo.No gosto dessa
palavra.
E a palavra no realmente verdadeira.Calgary respirou
profundamente.Jack Argyle era inocente!
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CC
AA
PP
TT
UU
LL
OO
IIII
Deveria ter sido uma proclamao sensacional. Ao invs, foi
um fracasso. Calgary havia esperado perplexidade, alegria incrdula
em luta com incompreenso, perguntas apaixonadas... No houve
nada disso. Parecia existir apenas desconfiana e suspeita. Gwenda
Vaughan franzia a testa. Hester o encarava com olhos esbugalhados.
Bom, talvez fosse natural. Afinal de contas, uma afirmativa como
aquela no poderia ser assimilada toda de uma s vez.
Leo Argyle disse, hesitante:
Quer dizer que o senhor concorda com a minha atitude, Dr.
Calgary? No cr que ele tenha sido responsvel por seus atos?
Quero dizer que no foi ele!No compreende, homem? Nofoi ele. No podiater sido ele. A no ser por uma srie extraordinria
e muito infeliz de circunstncias, ele poderia ter provado que era
inocente. Eupoderia ter provado que ele era inocente.
O senhor?
Eu era o homem do carro.
Ele o disse com tal simplicidade que por um instante eles no
compreenderam. E, antes que se pudessem recuperar, houve umainterrupo. A porta se abriu e a mulher com o rosto feio entrou. Ela
falou com objetividade e preciso.
Enquanto passava, ouvi suas palavras. Ele diz que Jacko
no matou a Sra Argyle. Por que diz? Como est sabendo?
Seu rosto, que antes fora militante e feroz, repentinamente
enrugou-se e caiu.
Vou ficar tambm disse implorando. No posso estar
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fora sem saber.
Claro que no, Kirsty. Voc da famlia. Leo Argyle
apresentou-a. Miss Lindstrom, Dr. Calgary. O Dr. Calgary est
dizendo uma coisa incrvel.Calgary ficou atnito com o nome escocs de Kirsty. O seu
ingls era fluente mas havia nele algo de estrangeiro. Ela dirigiu-se a
ele acusadora.
O senhor no devia vir aqui dizer coisas assim para amolar a
gente. J tiveram seus problemas. Agora s perturba dizendo isso. O
que aconteceu foi vontade de Deus.
Ele se sentiu repugnado pela fcil complacncia da atitudedela. Era possvel, pensou ele, que ela fosse do tipo mrbido que
floresce com catstrofes. Bem, teria de ser privada de tal prazer.
Ele falou em tom rpido e seco.
s cinco para as sete naquela noite, na estrada principal de
Redmyn para Drymouth, eu apanhei um rapaz que estava pedindo
carona. Levei-o at Drymouth. Conversamos. Ele me pareceu ento
um rapaz simptico e interessante.
Jacko possua muito charme disse Gwenda. Todo
mundo o achava encantador. Era a violncia de seu temperamento
que o prejudicava. E era desonesto, naturalmente acrescentou
pensativa. Mas as pessoas sempre custavam a descobrir esse
aspecto.
A Sr.t Lindstrom virou-se contra ela.
No deve falar assim de quem est morto.
Leo Argyle disse com certa aspereza:
Faa o favor de continuar, Dr. Calgary. Por que no se
apresentou, na poca?
Isso mesmodisse Hester, que parecia no ter flego para
falar.Por que preferiu ficar de fora?
Houve apelos nos jornais, anncios. Como pde ter sido toegosta, to malvado.
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Hester, Hester disse o pai, controlando-a. O Dr. Calgary
ainda est contando sua histria.
Calgary dirigiu-se diretamente moa.
Sei muito bem como se sente. Sei o que eu mesmo sinto, oque sempre sentirei... Controlou-se e continuou.
Permita-me continuar minha histria. Havia muito trfego
nas estradas naquela noite. J passava bastante das sete e meia
quando deixei o rapaz, cujo nome eu no sabia, no centro de
Drymouth. Isso, pelo que compreendo, o inocenta completamente, j
que a polcia afirmou definitivamente que o crime foi cometido entre
as sete e as sete e meia.Seidisse Hester.Mas o senhor...
Por favor tenha pacincia. Para poder faz-la compreender,
devo voltar atrs um pouco. Eu estava passando dois ou trs dias no
apartamento de um amigo em Drymouth. Esse amigo, que da
Marinha, estava no mar. Havia-me emprestado tambm seu carro,
que guardava num estacionamento particular. Naquele dia
especfico, 9 de novembro, eu devia voltar a Londres. Tinha resolvido
ir pelo trem noturno e passar a tarde visitando uma velha ama de
quem toda a minha famlia gostava muito e que vivia numa casinha
em Polgarth, cerca de quarenta milhas a oeste de Drymouth. Cumpri
meu programa. Embora muito idosa e com tendncia para lapsos de
memria, ela me reconheceu e ficou muito contente de me ver, muito
excitada porque havia lido nos jornais a respeito da minha ida ao
Plo, como dizia. Fiquei pouco tempo, para no cans-la e, ao sair,
resolvi no voltar diretamente para Drymouth pela estrada da costa,
como fizera na ida, mas, ao invs, seguir em direo ao norte at
Redmyn para ver o velho Cnego Peasmarsh, que tem alguns livros
rarssimos em sua biblioteca, inclusive um tratado antiqssimo de
navegao do qual eu desejava copiar um trecho. O velho recusa-se a
ter telefone, que ele encara como obra do diabo, junto com o rdio, ateleviso, os rgos eltricos e avies a jato, de modo que tive de
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arriscar-me a encontr-lo em casa. No tive sorte. A casa estava toda
trancada e era evidente que ele estava fora. Passei uns momentos na
catedral, depois parti de volta para Drymouth pela estrada principal,
cobrindo assim o terceiro lado do tringulo. Eu havia planejado tudocom suficiente margem de tempo a fim de voltar ao apartamento
para apanhar a mala, deixar o carro no estacionamento e pegar o
trem. No caminho, como j lhes disse, peguei um, carona
desconhecido e, depois de deix-lo na cidade, continuei com meus
planos normais. Quando cheguei na estao ainda tinha um pouco
de tempo sobrando e resolvi atravessar a rua para comprar cigarros.
Ao atravessar fui apanhado por um caminho que virou umaesquina a alta velocidade e me derrubou.
Segundo o que disseram alguns transeuntes, eu me levantei,
aparentemente sem ter sofrido nada e me comportando de forma
perfeitamente normal. Disse que estava bem e, tendo de pegar meu
trem, corri de volta estao. Quando o trem chegou a Paddington
eu estava inconsciente e fui levado de ambulncia para um hospital,
onde foi constatado que sofria de uma sria concusso, com efeito
retardado, o que no absolutamente raro.
Ao recobrar os sentidos, alguns dias mais tarde, no me
lembrava nada a respeito do acidente ou da minha vinda para
Londres. A ltima coisa de que conseguia lembrar-me era o fato de
ter sado para visitar minha velha ama em Polgarth. Depois disso,
branco total. Senti-me melhor ao garantirem-me que isso acontece
com bastante freqncia. Nem eu mesmo e nem mais ningum tinha
a menor idia de que eu havia passado de carro pela estrada de
Redmyn a Drymouth naquela noite.
Havia muito pouco tempo at que eu tivesse de deixar a
Inglaterra. Fui mantido no hospital em repouso absoluto, sem acesso
a jornais. Sa do hospital direto para o aeroporto, de onde voei para a
Austrlia, e l me reuni aos outros membros da expedio. Houvealgumas dvidas a respeito de eu estar ou no em condies de ir,
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mas resolvi ignor-las.
Estava por demais envolvido por meus preparativos e
preocupaes para me interessar com reportagens sobre
assassinatos e, de qualquer forma, o interesse havia diminudomuito depois de efetuada a priso. Quando o caso chegou aos
tribunais e tudo foi publicado em detalhe, eu estava em alto mar, a
caminho da Antrtida.
Fez uma pausa. Os outros escutavam-no com a maior ateno.
Foi h cerca de um ms, logo depois de minha volta
Inglaterra, que descobri tudo. Estava precisando de papis velhos
para embrulhar umas amostras. Minha senhoria me trouxe umapilha de jornais que tinha guardado. Abrindo um deles sobre a mesa
vi nele a fotografia de um jovem cujo rosto me pareceu familiar.
Tentei lembrar-me onde o havia encontrado e quem seria. No
conseguia e, no entanto, tinha a lembrana de ter conversado com
ele, conversado a respeito de enguias. Ele havia ficado interessado,
fascinado mesmo, com a epopia da vida da enguia. Mas quando?
Onde? Li um pargrafo no jornal que dizia que o rapaz era Jack
Argyle, acusado de assassinato, e li tambm que ele havia dito
polcia que tinha ganho uma carona de um homem num carro de
quatro portas preto.
E nesse momento, repentinamente, aquele pedacinho
perdido da minha vida reapareceu. Eu tinha apanhado aquele rapaz
e o levado at Drymouth, onde me separara dele, para voltar ao
apartamento, e logo depois lembrei-me de atravessar a rua para
comprar cigarros. Tive uma rpida viso do caminho antes de ser
atropelado e depois... nada, a no ser quando acordei no hospital.
Continuava a no me lembrar de ter ido at estao e tomado o
trem para Londres. Li e reli o pargrafo. O julgamento havia
terminado havia mais de um ano, o caso estava quase esquecido.
Foi um rapazola que liquidou a me, foi como minha senhoriadescreveu o caso, vagamente. No sei o que aconteceu. Acho que foi
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enforcado. Fui procurar os arquivos das datas indicadas, depois
procurei a firma Marshall & Marshall, que havia feito a defesa.
Descobri que era tarde demais para meu depoimento poder livrar o
rapaz, que havia morrido de pneumonia na priso. Muito emborano fosse mais possvel fazer-lhe justia, poderamos fazer justia
sua memria. Fui com o Sr. Marshall polcia. O caso vai ser
apresentado Promotoria. Marshall tem muito poucas dvidas de
que de l o levaro ao Secretrio do Interior.
O senhor, naturalmente, receber dele um relatrio
completo, que s ainda no foi remetido porque eu estava ansioso
por ser o primeiro a comunicar-lhe a verdade dos fatos. Senti que erauma situao difcil que me cabia enfrentar pessoalmente. O senhor
h de compreender, e disso eu tenho a certeza, que sempre
continuarei a sentir uma imensa carga de culpa. Se tivesse sido um
pouco mais cuidadoso ao atravessar a rua... Ele se interrompeu.
Compreendo que seus sentimentos a meu respeito jamais podero
ser amistosos. Muito embora moralmente eu no seja culpado, todos
aqui, inevitavelmente, terode me culpar.
Gwenda Vaughan disse rapidamente, com a voz quente e
bondosa:
claro que no o culpamos. Foi s... uma dessas coisas
trgicas, incrveis, mas que acontecem.
Eles acreditaram no senhor?inquiriu Hester.
Ele olhou para ela surpreendido.
A polcia... acreditou no senhor? Por que razo o senhor no
poderia estar inventando tudo isso?
Ele sorriu um pouco, inconscientemente.
Eu sou uma testemunha de boa reputao e merecedora de
confiana respondeu delicadamente. No tenho qualquer
interesse no caso e minha histria foi examinada em todos os seus
detalhes; h os testemunhos mdicos e inmeros detalhes foramconfirmados por investigaes em Drymouth. No tenha dvida de
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que o Sr. Marshall foi muito cuidadoso, como costumam ser todos os
advogados. No quis trazer-lhes esta esperana enquanto no tive
bastante certeza de obter sucesso.
Leo Argyle remexeu-se na cadeira e falou pela primeira vez.E o que quer dizer exatamente com sucesso?
Peo desculpas disse rapidamente Calgary. No a
palavra adequada. Seu filho foi acusado de um crime que no
cometeu, foi julgado e condenado, morrendo na priso. A justia,
para ele, chegou tarde demais. Porm a justia que ainda poder ser
feita... quase que certamente o ser e providncias sero tomadas
para que seja feita. O Secretrio do Interior provavelmenteaconselhar a Rainha a conceder um perdo integral.
Hester riu.
Um perdo integral por alguma coisa que ele no fez?
Eu sei. A terminologia sempre parece absurda. Porm me foi
dado a entender que o hbito manda que uma indagao a respeito
seja feita nos Comuns e que a resposta deixe perfeitamente claro que
Jack Argyle no cometeu o crime pelo qual foi condenado, sendo
tudo amplamente divulgado pela imprensa.
Ele parou. Ningum falou. Sups que o choque houvesse sido
grande demais para eles. Mas, ao menos, fora um choque alegre.
Levantou-se.
Receiodisse ele hesitante,que no haja mais nada que
eu possa dizer... Repetir o quanto o sinto, como me sinto infeliz com
tudo isso, implorar seu perdo, tudo isso todos j devem saber mais
que bem. A tragdia que acabou com a vida dele sombreou a minha.
Mas ao menos falou quase que implorando por certo h de
significar alguma coisa saber que ele no cometeu aquela ao
terrvel, que o nome dele, o seu nome, ficar imaculado aos olhos do
mundo...?
Se esperava alguma resposta, no a recebeu.Leo Argyle estava mais desarmado que sentado em sua cadeira.
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Os olhos de Gwenda estavam no rosto de Leo. Hester olhava
fixamente para a frente, com seus imensos olhos trgicos. A Sr.t
Lindstrom resmungou algo inaudvel e sacudiu a cabea.
Calgary ficou sem saber o que fazer, junto porta, olhandopara os outros.
Foi Gwenda Vaughan quem assumiu o controle da situao.
Foi at ele, colocou a mo sobre seu brao e disse em voz baixa:
melhor o senhor ir agora, Dr. Calgary. O choque foi muito
grande. Precisam de tempo para assimil-lo.
Ele concordou com um aceno de cabea e saiu. No patamar a
Sr.ta Lindstrom reuniu-se a eles.Eu o acompanhareidisse ela.
Ele ainda percebeu, ao voltar-se para trs antes que a porta se
fechasse, que Gwenda Vaughan havia cado de joelhos junto
cadeira de Argyle. Ficou um pouco surpreendido.
Virada para ele, no patamar, a Sr.ta Lindstrom parecia um
soldado dos Regimentos de Guarda em posio de sentido e falou
com amargura.
No pode ele voltar vida. Por que trazer tudo de volta ao
pensamento dos outros? At ento, todos estavam resignados. Agora
vo sofrer. sempre melhor deixar as coisas quietas.
Ele revelava seu total desprazer.
Sua memria precisa ser limpadisse Arthur Calgary.
Bons sentimentos! Tudo muito bem. Mas o senhor no
pensa realmente no que isso significa. Os homens, eles nunca
pensam. Bateu irritada com o p no cho.Eu os amo a todos. Vim
para aqui, ajudar a Sra Argyle, em 1940, quando ela abriu uma
creche de guerra para crianas de casas bombardeadas. Quase
dezoito anos. E agora, mesmo ela morta, continuo aqui, para tomar
conta deles, para manter a casa limpa e confortvel, ter certeza que a
comida deles boa. Amo a todos eles, sim, amo, sim... e quanto aJacko... ele no prestava! Ah, sim, amava ele tambm. Mas nunca
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prestou!
Afastou-se repentinamente. Parecia ter esquecido que deveria
acompanh-lo. Calgary desceu lentamente a escada. Enquanto se via
atrapalhado com a porta da frente, que tinha uma fechadura que noconseguia compreender, ouviu passos leves na escada. Hester voava
por ela abaixo.
Ela destrancou a fechadura e abriu a porta. Ficaram-se
olhando os dois. Ele compreendia cada vez menos por que ela o
encarava com aquele olhar trgico e condenatrio. Ento ela disse,
mal sussurrando as palavras:
Por que voc veio? Mas por que voc haveria de vir?Ele a olhou, desamparado.
No compreendo. No deseja que limpem o nome do seu
irmo? No quer que lhe seja feita justia?
Ora, a justia!Parecia estar atirando as palavras nele.
Eu no compreendo...repetiu ele.
Tanta preocupao com a tal da justia! Que diferena faz
isso para Jacko agora? Ele est morto. No Jacko que importa.
Somos ns!
Do que que est falando?
No o culpado que importa. So os inocentes.
Ela agarrou o brao dele, fincando os dedos.
Somos nsque importamos. Ser que ainda no percebeu o
que fez com todos ns?
Ele ficou olhando para ela.
Da escurido da noite apareceu a figura de um homem.
Dr. Calgary?disse ele.Seu txi est aqui, senhor. Para
lev-lo a Drymouth.
O qu? Ah! Obrigado.
Calgary tornou a voltar-se para Hester, porm ela havia
entrado.A porta da frente bateu.
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CC AA PP TTUU LLOO II II II
Hester subiu vagarosamente a escada, empurrando para trs o
cabelo escuro que lhe caa na testa. Kirsten Lindstrom esperava-a no
alto.
Ele j foi?J; j foi.
Voc recebeu um choque, Hester. Kirsten Lindstrom pousou
uma mo delicada no ombro da moa. Venha comigo. Tome um
pouco de brandy.Tudo isso foi demais.
No creio que queira brandy, Kirsty.
Talvez no queira, mas faz bem.
Sem resistir, a moa deixou-se ser guiada pelo corredor at
pequenina sala de estar da prpria Kirsty. Pegou o clice que lhe era
oferecido e bebeu aos poucos. Kirsten Lindstrom disse, exasperada:
Tudo muito rpido. Devia ter prevenido. Por que o Sr.
Marshall no escreveu primeiro?
Suponho que o Dr. Calgary no deixou. Ele queria vir aqui e
nos comunicar pessoalmente.
Comunicar o qu, pessoalmente? O que que ele acha que
as novidades vo-nos fazer?
Suponhodisse Hester, numa voz estranha, sem timbre
que pensou que ficaramos satisfeitos.
Satisfeitos ou no, tinha de haver choque. No devia ter feito
assim.
Mas de certo modo ele foi corajoso disse Hester. A corsubiu-lhe s faces.Quero dizer, no pode ter sido uma coisa fcil
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de fazer. Vir e dizer a uma famlia que um membro dela foi
condenado por assassinato e morreu na priso sendo na verdade
inocente. sim, acho que ele teve muita coragem, mas mesmo assim
preferia que no tivesse vindoacrescentou.Isso o que todos ns preferimos disse a Sr.t Lindstrom
rispidamente.
Hester olhou para ela, seu interesse fazendo-a repentinamente
sair um pouco de suas preocupaes.
Quer dizer que voc tambm sente isso, Kirsty? Eu pensei
que talvez fosse s eu...
No sou nenhuma tonta disse cortantemente a Sr.taLindstrom. Sou capaz de pensar em algumas possibilidades que
parece que no ocorreram a esse seu Dr. Calgary.
Preciso ir ver papaidisse Hester, levantando-se.
Kirsten Lindstrom concordou.
Vai. Agora ele j teve tempo de pensar no que melhor fazer.
Quando Hester entrou na biblioteca Gwenda Vaughan estava
ocupada ao telefone. Seu pai chamou-a e Hester foi sentar-se no
brao da cadeira dele.
Estamos tentando falar com Mary e com Micky disse ele.
Eles precisam ser informados disto imediatamente.
Al disse Gwenda Vaughan. a Sr Durrant? Mary?
Aqui Gwenda Vaughan. Seu pai quer falar com voc.
Leo foi at o telefone e tomou-o.
Mary? Como vai? E Philip?... timo. Aconteceu uma coisa
realmente extraordinria... Achei que vocs precisavam ser
informados imediatamente. Um certo Dr. Calgary veio ver-nos. Trazia
uma carta de Andrew Marshall. sobre Jacko. Parece, realmente
extraordinrio, parece que a histria que Jacko contou nojulgamento de ter apanhado uma carona at Drymouth
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perfeitamente verdadeira. Esse tal Dr. Calgary o homem que deu a
carona... Ele parou, para ouvir o que a filha tinha a dizer na outra
extremidade do fio.Eu sei, Mary; no vou dar todos os detalhes a
respeito das razes pelas quais ele no se apresentou na poca. Foiacidentado, teve concusso. Parece que est tudo perfeitamente bem
comprovado. Telefonei para dizer que acho que deveramos todos ter
uma reunio aqui o mais breve possvel. Talvez ns consegussemos
que o Marshall tambm viesse para discutir o assunto conosco. Creio
que devemos procurar a melhor orientao legal. Ser que voc e
Philip?... Eu sei, eu sei... Mas eu realmente creio, minha querida,
que isto muito importante... Est bem... Telefone mais tarde, sepreferir. Vou tentar falar com Micky. Desligou.
Gwenda Vaughan foi para o telefone.
Devo tentar a ligao para Micky agora?
Se for demorar, ser que eu poderia telefonar antes,
Gwenda? Quero falar com Donalddisse Hester.
claro disse Leo. Voc vai sair com ele hoje noite,
no vai?
Iadisse Hester.
O pai dirigiu-lhe um olhar incisivo.
Voc ficou muito perturbada com tudo isso, querida?
No sei disse Hester. Eu no sei exatamente o que
que estou sentindo.
Gwenda cedeu seu lugar junto ao telefone e ela discou um
nmero.
Ser que eu poderia falar com o Dr. Craig, por favor? .
Quem fala Hester Argyle.
Aps alguns instantes de espera ela disse:
voc, Donald?... Estou telefonando para dizer que no vou
poder ir conferncia com voc hoje noite... No, no estou doente,
no, que, s que, bem, que ns... ns recebemos umas notciasmuito estranhas.
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Novamente o Dr. Craig falou.
Hester voltou a cabea na direo do pai. Cobriu o bocal com a
mo e perguntou:
No segredo, ?Nodisse Leo lentamente. No, no exatamente um
segredo, mas... bem, melhor pedir a Donald para no comentar,
por enquanto. Voc sabe que toda novidade piora quando contada.
, eu sei. Novamente falou no telefone. De certo modo,
pode-se dizer que so notcias boas, Donald, mas... um pouco
perturbadoras. Eu prefiro no falar nada pelo telefone... No, no
venha aqui... Por favor, no venha. Hoje, no. Amanh, a qualquerhora. sobre Jacko. , meu irmo. s que ns acabamos de
descobrir que afinal no foi ele quem matou mame... Mas, por favor,
no diga nada, Donald; no comente com ningum. Amanh eu conto
tudo... No, Donald, no... Hoje eu no posso ver ningum, nem voc.
Por favor. E no diga nada. Ela desligou o telefone e fez um gesto
mostrando que Gwenda podia falar agora.
Gwenda pediu um nmero em Drymouth. Leo disse com
delicadeza:
Por que voc no vai conferncia com Donald, Hester? Ia
ajudar voc a no ficar remoendo tudo isso.
No quero, papai. No posso.
Leo disse:
Voc falou, voc deu a ele a impresso de que no eram boas
notcias. Mas voc sabe que isso no verdade, Hester. Ns ficamos
surpreendidos. Mas ficamos todos contentes com o fato, muito
contentes... O que mais poderamos estar?
isso que vamos dizer a todos, no ?disse Hester.
Leo advertiu-a:
Minha filha, minha querida...
Mas no verdade, ?perguntou Hester.No so boasnotcias. apenas uma coisa tremendamente perturbadora.
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Mick est ao telefonedisse Gwenda.
Novamente Leo tomou-lhe o telefone da mo. Falou ao filho de
modo muito semelhante ao que falara filha. Porm a notcia foi
recebida de modo diverso do que o havia sido por Mary Durrant. Nohouve protesto, surpresa ou descrena. Ao invs, apenas uma pronta
aceitao.
Que diabo! disse a voz de Mick. Depois desse tempo
todo? A testemunha desaparecida! Puxa, o Jacko estava mesmo de
azar naquela noite, hem?
Leo tornou a falar e Mick escutou.
Simdisse ele,concordo plenamente. melhor ns nosreunirmos o mais depressa possvel e pegar o velho Marshall para
nos aconselhar tambm. Repentinamente ele deu um riso rpido, o
riso que Leo lembrava to bem no menininho que brincava no
jardim, debaixo da janela. Como esto as apostas? perguntou
Qual foi de ns que matou?
Leo deixou cair o fone e se afastou abruptamente do aparelho.
O que foi que ele disse?perguntou Gwenda.
Leo disse-lhe.
Parece-me um tipo tolo de brincadeira para se fazer numa
hora dessascomentou Gwenda.
Leo lanou-lhe um olhar rpido. possveldisse ele, com
suavidade,que no fosse bem uma piada.
IIII
Mary Durrant atravessou a sala e apanhou algumas ptalas
que haviam cado de um vaso de crisntemos. Deixou-as cair
cuidadosamente na cesta de papis. Era uma jovem de vinte e sete
anos, alta e de aparncia serena, cujo rosto sem sombra de marcas
ou rugas sugeria mais idade do que ela realmente tinha,
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possivelmente em funo de uma harmoniosa maturidade que
parecia fazer parte de sua personalidade. Era bonita, mas totalmente
destituda de encanto. Feies perfeitamente regulares, boa pele,
olhos de um azul vivo e cabelos claros penteados para trs,arrumados num grande coque na nuca. Esse penteado estava muito
em moda, mas essa no era a razo pela qual ela o usava. Era uma
mulher que sempre mantinha seu prprio estilo. Sua aparncia era
como a de sua casa, arrumada e bem cuidada. Qualquer tipo de
poeira ou desarrumao a perturbava.
O homem na cadeira de rodas que a observava enquanto
apanhava as ptalas e as colocava na cesta sorriu um sorrisoligeiramente tortuoso.
Sempre a mesma criatura arrumada disse ele. Um
lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. Ele sorriu com uma
conotao ligeiramente maliciosa, porm Mary Durrant permaneceu
imperturbvel.
Gosto das coisas arrumadas concordou. Sabe, Phil,
voc mesmo no iria gostar se a casa fosse uma baguna.
Seu marido retrucou com ligeira sugesto de amargura:
Bom, pelo menos eu no tenho qualquer oportunidade de
bagunar nada.
Pouco tempo depois de seu casamento Philip Durrant havia
sido vitimado por uma poliomielite paralisante. Para Mary, que o
adorava, ele se havia transformado em filho, alm de marido. Ele por
vezes sentia-se ligeiramente constrangido pela possessividade do
amor da mulher. Ela, no entanto, no tinha suficiente imaginao
para perceber que o prazer que sentia na dependncia dele por vezes
o irritava.
Ele continuou, rapidamente, como se temesse qualquer palavra
de comiserao ou piedade por parte dela.
Devo dizer que as notcias que seu pai deu so indescritveis!Depois de todo esse tempo! Como que voc consegue ficar calma
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assim?
Suponho que ainda nem compreendi bem... to fantstico.
A princpio eu no conseguia acreditar no que papai estava dizendo.
Se fosse a Hester no telefone eu apostava que tinha sido tudoinveno dela. Voc sabe como ela .
O rosto de Philip Durrant perdeu um pouco de sua amargura
quando disse:
uma criatura assustadoramente passional, que parte para
a vida em busca de problemas e sem dvida os encontrar.
Mary ficou indiferente anlise. O carter de outras pessoas
no a interessava. Ela disse, meio desconfiada: Acho que verdade, no ? No acha que esse tal homem ia simplesmente
imaginar tudo isso?
O cientista distrado? Seria agradvel pensar que sim
disse Philip,porm parece que Andrew Marshall levou o assunto a
srio. Garanto-lhe que Marshall, Marshall & Marshall tm suas
cabeas legais muito no lugar.
O que ser que isso vai realmente significar, Phil?
perguntou Mary Durrant, franzindo a testa.,
Philip respondeu: Vai significar que Jacko ser
completamente excludo de qualquer culpa, isto , desde que as
autoridades se dem por satisfeitas. E pelo que compreendi, no h
qualquer impedimento ou outra coisa no gnero.
Ai, ai disse Mary com um ligeiro suspiro suponho que
tudo seja muito bom.
Philip riu novamente, com o mesmo riso contorcido e amargo.
Polly!disse ele,voc ainda acaba me matando.
S seu marido jamais chamava Mary Durrant de Polly. O nome
era completamente inadequado sua aparncia imponente. Ela
olhou para Philip ligeiramente surpreendida.
No sei por que o que eu disse haveria de lhe parecer todivertido.
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Porque voc falou com tanta magnanimidade! respondeu
Philip. Parecia a Lady Fulana de Tal elogiando os trabalhos do
Bazar do Orfanato da Aldeia.
Mary retrucou, perplexa: Mas muito bom! Voc no vaiquerer dizer-me que achava timo ter um assassino na famlia.
No se pode dizer realmente nafamlia.
Bem, praticamente a mesma coisa. Quero dizer, foi muito
desagradvel, deixava todos ns embaraados. E todo o mundo
sempre olhando e querendo saber mais. Como eu odiei tudo aquilo.
Mas se saa muito bem disse Philip.Congelava todo o
mundo com o gelo azul dos seus olhos. Era o bastante para todos secalarem e se sentirem envergonhados. maravilhoso esse seu jeito
de jamais mostrar qualquer emoo.
Eu realmente detestava aquilo tudo. Era muito desagradvel
respondeu Mary Durrant, mas pelo menos estava tudo
aquietado, acabado. E agora... agora vai ver que vo remexer tudo de
novo. Que coisa cansativa.
disse Philip Durrant, pensativo. Ele mexeu um pouco
os ombros, com uma ligeira expresso de dor no rosto. Sua mulher
aproximou-se rapidamente.
Est com cibras? Espere um instante. Deixe eu mudar o
travesseiro um pouco. Pronto. Est melhor?
Voc devia ter sido enfermeiradisse Philip.
No tenho a menor vontade de cuidar de uma poro de
gente. S de voc.
Tudo foi dito com grande simplicidade, porm por trs
daquelas palavras havia uma real profundidade de sentimentos.
O telefone tocou e Mary foi atend-lo.
Al... ... ela... Ah, voc?...
Disse, parte, para Philip: Micky.
J... j soubemos. Papai telefonou... Bem, claro... ... Sei...Philip diz que se os advogados aceitaram porque deve estar tudo
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certo... Ora, Micky, no sei por que voc haveria de ficar to aflito...
No acho que eu seja assim to tapada... Ora, Micky, eu acho que
voc... Franziu a testa, irritada. Desligou. Ela recolocou o
fone no lugar. Sabe, Philip, eu realmente no compreendo oMicky.
O que foi que ele disse, exatamente?
Bem, ele parecia fora de si. Disse que eu era tapada, que
no estava compreendendo as... repercusses. Vai ser o diabo! Foi
isso que ele disse. Mas por qu? Eu no compreendo.
Quer dizer que ele est com a corda toda, no ?
Mas por qu?Bem, ele tem razo. Haver repercusses.
Mary encarou-o um tanto perplexa.
Voc quer dizer que vai haver uma nova onda de interesse
no caso? claro que eu fico muito contente que Jacko seja inocente,
mas vai ser bastante desagradvel se uma poro de gente comear a
falar sobre o assunto de novo.
Mas no se trata do que os vizinhos possam dizer. muito
mais do que isso.
Ela olhou para ele de forma inquisidora.
A polcia tambm vai interessar-se.
Apolcia?Mary falou com voz rspida.O que que eles
tm com isso?
Minha queridadisse Philip.Pense.
Mary caminhou lentamente para ir sentar-se ao lado dele.
No percebeu que esto novamente com um crime por
resolver nas mos?disse Philip.
Mas seria incrvel que eles fossem incomodar-se com isso,
depois de tanto tempo.
Isso s o que voc quer que eles achemcomentou Philip,
mas como raciocnio, est muito mal fundamentado. Mas com certeza disse Mary, depois de serem to
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estpidos, depois de cometerem um erro assim to clamoroso com
Jacko, eles no vo querer ficar falando nisso?
possvel que no queiram, mas provvel que tenham de
faz-lo! Dever dever. Ora, Philip, tenho certeza de que voc est enganado. Vai
haver um pouco de falatrio, mas daqui a pouco acaba.
Depois do que nossas vidas continuaro a ser felizes para
todo o sempredisse Philip com sua voz mordaz.
E por que no?
Ela sacudiu a cabea. No assim to simples... Seu pai
tem razo. Temos todos de nos reunir e conversar. E conseguirMarshall, como ele sugeriu.
Voc quer dizer... Ir ao Recanto do Sol?
.
Mas ns no podemos.
Por qu?
No possvel. Voc um invlido e...
Eu no sou invlidodisse Philip irritado. Estou forte e
bem de sade. Acontece apenas que perdi o uso das pernas. Poderia
ir a Timbuctu desde que tivesse o transporte adequado.
Mas eu estou certa de que ir ao Recanto do Sol faria mal a
voc. Ver toda essa coisa sendo remexida de novo...
No minha mente que est incapacitada.
No vejo como que poderamos deixar a casa. Tem havido
tanto roubo por a ultimamente.
Arranje algum para vir dormir aqui.
Isso fcil de dizer, como se fosse a coisa mais simples do
mundo.
Aquela velha, como o nome dela, pode vir aqui todos os
dias. Pare de apresentar empecilhos domsticos, Polly. Na verdade
voc quem no quer ir.E no quero, mesmo.
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No vamos demorar muito l disse Philip, para
reconfort-la.Porm creio que temos de ir. Este um momento no
qual a famlia tem de apresentar ao mundo uma fachada de unidade.
E temos de descobrir exatamente qual nossa situao.
IIIIII
No hotel em Drymouth, Calgary jantou cedo e foi para seu
quarto. Estava profundamente abalado pelo que se passara no
Recanto do Sol. Tinha esperado que sua misso fosse dolorosa e
tinha usado toda a sua fora de vontade para lev-la avante. Porm
tudo havia sido doloroso e perturbador de forma totalmente diversa
da que havia esperado. Atirou-se na cama e ficou remoendo tudo o
que acontecera.
A imagem que lhe ficara mais claramente fora a do rosto de
Hester no momento em que a deixou. Com que desprezo rejeitara seu
grito em defesa da justia! O que dissera ela? O que importa no oculpado, so os inocentes. E depois: Ser que ainda no
percebeu o que fez com. todos ns? Mas o que havia feito ele? No
conseguia compreender.
E os outros. A mulher a quem chamavam Kirsty. (Por que
Kirsty? Esse um nome escocs. Ela no era escocesa, devia ser
dinamarquesa ou norueguesa.) Ela havia falado com tal severidade,
como se o acusasse!
Houvera qualquer coisa de estranho, igualmente, em Leo
Argyle. Ficara retrado, alerta. Nem sequer a mnima sugesto de um
Graas a Deus meu filho era inocente!, que obviamente seria a
reao natural.
E aquela moa, a que era a secretria de Leo. Havia ajudado,
sido bondosa. Porm tambm ela havia reagido de modo estranho.
Lembrou-se do modo pelo qual ela se ajoelhara junto cadeira de
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Argyle. Como estivesse confortando-o, consolando-o. Mas
consolando-o de qu? Do fato de seu filho no ser um assassino? E
sem dvida, mas sem dvida alguma, havia ali sentimentos mais
fortes do que os de uma secretria; mesmo uma secretria de hmuitos anos... Que histria era aquela?O que ser que eles...
O telefone da mesa de cabeceira tocou. Ele atendeu.
Al?
Dr. Calgary? H algum aqui procurando pelo senhor.
Por mim?
Ficou surpreendido. Na medida em que lhe era dado saber,
ningum estava informado de que pretendia passar a noite emDrymouth.
Quem ?
Houve uma pausa. Depois o porteiro disse:
o Sr. Argyle.
Diga-lhe... Arthur Calgary interrompeu-se nessa altura,
quando estava a ponto de dizer que iria descer. Se, por alguma
razo, Leo Argyle o havia seguido at Drymouth e conseguido
descobrir onde ele estava hospedado, era de supor que o assunto
poderia ser constrangedor se discutido diante de toda a gente que
ocupava a sala do hotel. Ao invs, disse:
Quer fazer o favor de pedir a ele que suba?
Ele se levantou e ficou andando de um lado para outro at
ouvir baterem porta.
Atravessou o quarto e abriu-a:
Faa o favor de entrar, Sr. Argyle; eu...
Parou, atnito. No era Leo Argyle. Era um rapaz de vinte e
poucos anos, cujo rosto belo e moreno era marcado pela amargura
de sua expresso. Era um rosto sofrido, revoltado, infeliz.
No estava esperando por mim disse o rapaz. Estava
esperando meu pai. Eu sou Michael Argyle.Entre.Calgary fechou a porta. Como descobriu que eu
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estava aqui?perguntou, ao oferecer um cigarro ao rapaz.
Michael Argyle aceitou e depois deu um risinho breve e
desagradvel.
Essa foi fcil! Resolvi telefonar a todos os hotis principais,contando com a possibilidade de voc ter resolvido passar a noite por
aqui. Acertei no segundo.
E por que desejava me ver?
Michael Argyle disse lentamente:
Queria ver que tipo de sujeito voc era... Correu os olhos,
como que querendo avali-lo, dos ps cabea de Calgary, notando
os ombros um tanto curvados, o cabelo comeando a ficar grisalho, orosto fino e sensvel. Quer dizer que voc foi um dos tipos que
foram ao Plo na Hayes Bentley. Pois no parece ser muito rijo.
Arthur Calgary deu um ligeiro sorriso.
As aparncias s vezes enganam respondeu.Agentei
tudo muito bem. No necessariamente fora muscular que se
precisa. H outras qualificaes importantes: resistncia, pacincia,
conhecimento tcnico.
Que idade voc tem? Quarenta e cinco?
Trinta e oito.
Parece mais.
, acho que pareo. Por um instante uma sensao de
tristeza aguda o dominou, ao observar aquele rapaz viril que estava
sua frente.
Perguntou, abruptamente:
Por que voc queria me ver?
O outro franziu a testa.
normal, no ? Depois de ouvir as novidades que voc nos
trouxe. As novidades a respeito do meu querido irmo.
Calgary no respondeu.
Michael Argyle continuou:Voc veio um pouco tarde para ele, no veio?
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Vimdisse Calgary em voz baixa.Para ele j um pouco
tarde.
Por que foi que voc ficou na moita? Que histria de
concusso essa?Com toda a pacincia Calgary narrou-lhe tudo. Por estranho
que parea, sentiu-se reconfortado com o tom rude e agressivo do
rapaz. At que afinal aparecia algum que reagia violentamente por
causa do irmo.
Quer dizer que a questo toda dar um libi ao Jacko, no
? E como que voc sabe que as horas so as que voc diz que
eram? Tenho certeza absoluta a respeito dos horrios disse
Calgary com firmeza.
Mas pode ter-se enganado. Cientista s vezes d para ser
distrado a respeito de coisinhas como tempo e lugar.
Calgary pareceu divertir-se.
Voc est pensando na imagem do professor distrado de
fico, com as meias desparelhadas, sem noo muito clara do dia
ou do lugar, no ? Pois, meu rapaz, acontece que o trabalho tcnico
exige a maior preciso; quantidades, tempo e clculos da maior
exatido. Garanto-lhe que no h qualquer possibilidade de eu me
ter enganado. Peguei seu irmo logo antes das sete e deixei-o em
Drymouth s sete e trinta e cinco.
Seu relgio poderia estar errado. Ou voc poderia estar se
guiando pelo relgio do carro.
Meu relgio e o do carro estavam exatamente sincronizados.
Jacko podia ter dado um jeito de fazer voc se atrapalhar.
Ele inventava as coisas mais incrveis.
No houve truques. Por que que voc haveria de estar to
ansioso para provar que eu estou enganado?Um tanto acalorado,
Calgary continuou: Eu esperava ter dificuldade em convencer asautoridades de que haviam condenado um homem injustamente.
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No esperava que fosse to difcil convencer sua prpria famlia!
Quer dizer que nos achou todos difceis de convencer?
A reao pareceu-me um pouco... digamos, inesperada.
Micky olhou-o atentamente.No queriam acreditar em voc?
Bem... Parecia quase isso.
No parecia. Era. O que muito natural, se se pensar bem.
Mas como? Natural por qu? Sua me foi assassinada. Seu
irmo foi acusado e condenado pelo crime. Agora fica esclarecido que
era inocente. Devia estar contente, grato. Seu prprio irmo.
Ele no era meu irmo. Nem ela era minha me disseMicky.
O qu?
Ningum lhe contou? Somos todos adotados. Todos ns.
Mary, minha irm mais velha, em Nova York. Todo o resto, durante
a guerra. Minha me, como voc diz, no podia ter filhos. Ento
arranjou toda uma famlia por adoo. Mary, eu, Tina, Hester, Jacko.
Com todas as vantagens de casa luxuosa, passadio do melhor e
grandes quantidades de amor materno! Meu palpite que, no fim,
ela j tinha esquecido que ns no ramos realmente seus filhos.
Mas ela estava de azar no dia em que escolheu Jacko para ser um de
seus filhinhos queridos.
Eu no tinha a menor idia.
De modo que no adianta ficar falando de minha prpria
me ou meu prprio irmo comigo! Jacko no prestava para nada!
Mas no era um assassinodisse Calgary.
Ele falou de modo enftico e Micky, olhando para ele, acenou
com a cabea.
Muito bem. o que voc diz, o que insiste em dizer. Jacko
no a matou. Pois muito bem, ento quem a matou?Nessa voc no
pensou, no ? Pois trate de pensar agora. Pense um pouco... e vejao que est fazendo a todos ns...!
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CC AA PP TTUU LLOO II VV
muita bondade sua receber-me novamente, Sr. Marshall
disse Calgary, em tom de desculpa.
Nem por issorespondeu o advogado.
Como o senhor sabe, estive no Recanto do Sol e visitei afamlia de Jack Argyle.
Exato.
Creio que a esta altura j est informado a respeito da
visita?
Sim senhor, Dr. Calgary. Estou informado.
O que o senhor pode considerar difcil de compreender a
razo pela qual eu haveria de tornar a procur-lo... preciso que
compreenda que as coisas no correram exatamente como eu julgava
que correriam.
Noretrucou o advogado, possvel que no. Sua voz,
como sempre, era seca e destituda de emoo; porm alguma coisa
nela encorajou Arthur Calgary a continuar.
Quero que compreenda que eu pensava continuou
Calgary que com isso tudo ficasse terminado. Estava preparado
para uma certa quota de... como direi... ressentimento natural por
parte deles. Muito embora uma concusso possa ser classificada,
suponho, como um Ato de Deus, mesmo do ponto de vista deles, tal
sentimento seria perfeitamente justificado. Porm, ao mesmo tempo,
eu esperava que esse sentimento fosse contrabalanado pelo regozijo
que teriam pelo fato de o nome de Jack Argyle ser redimido. Pormas coisas no se deram como eu havia esperado. Longe disso.
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Compreendo.
Ser possvel, Sr. Marshall, que o senhor tivesse antevisto
algo do que realmente ocorreu? Seu comportamento, lembro-me
bem, deixou-me um tanto perplexo quando estive aqui da outra vez.O senhor estava realmente prevendo o tipo de reao que eu iria
provocar?
O senhor ainda no me disse, Dr. Calgary, qual a reao que
encontrou.Arthur Calgary puxou sua cadeira para a frente.Eu
pensei que estaria concludoalguma coisa, dando, poderamos dizer,
um final diferente a um captulo j escrito. Porm fui levado a sentir,
fui levado a ver, que ao invs de concluir alguma coisa, eu estavainiciandoalgo mais. Algo completamente novo. O senhor considera
que essa uma descrio vlida da atual situao?
O Sr. Marshall anuiu lentamente com a cabea.Simdisse
ele,podemos apresentar o caso nesses termos. Realmente pensei,
confesso, que o senhor no tinha compreendido inteiramente as
implicaes do seu gesto. E nem poderia t-lo feito, j que no
conhecia nada dos fatos ou das circunstncias, tendo lido apenas os
autos do processo.
Claro que no. o que percebo agora. E como o percebo!
Sua voz elevou-se quando continuou, excitado: No foi alvio que
sentiram, no foi gratido. Foi apreenso. Terror do que poderia vir a
acontecer agora. No isso?
Marshall respondeu, com cuidado:Eu me sinto levado a crer
que provavelmente o senhor est absolutamente certo. Lembre-se de
que no falo com conhecimento de causa.
E, nesse caso continuou Calgary, no posso mais
sentir que possa voltar ao meu trabalho tendo feito a nica
reparao que estava em mim fazer. Continuo envolvido no assunto.
Sou responsvel por ter trazido um fator novo para a vida de vrias
pessoas. No possoapenas lavar as mos da coisa toda.O advogado limpou a garganta. Esse, possivelmente, ser
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um ponto de vista um tanto imaginoso, Dr. Calgary.
No creio que seja, no na verdade. Cada um de ns tem de
assumir a responsabilidade por seus atos, e no s por seus atos
como tambm pela conseqnciade seus atos.H cerca de dois anos eu dei uma carona, na estrada, a um
rapaz. Ao faz-lo eu desencadeei uma srie de acontecimentos. No
creio que possa dissociar-me deles.
O advogado continuou a sacudir a cabea.
Muito bem, entodisse Arthur Calgary, com impacincia.
Diga que imaginao minha, se quiser. Porm meus
sentimentos, minha conscincia, continuam envolvidos. Meu nicodesejo era o de reparar alguma coisa que no esteve em minhas
mos evitar. Porm ainda no consegui fazer essa reparao. De
algum modo estranho eu consegui agravar a situao de pessoas que
j haviam sofrido. Porm ainda no consegui compreender
exatamente por qu.
No disse Marshall lentamente, no, o senhor no
perceberia por qu. Nos ltimos dezoito meses o senhor esteve
afastado da civilizao. No lia os jornais, os relatos nele publicados
a respeito dessa famlia. possvel que mesmo que estivesse aqui
no os lesse, porm teria sido impossvel no ouvir falar neles. Os
fatos so muito simples, Dr. Calgary. E no so confidenciais. Foram
tornados pblicos na poca. Podem ser resumidos da seguinte forma:
Se Jack no cometeu (como, segundo o seu depoimento, no poderia
ter cometido) o crime, ento quem o cometeu? Isto nos leva de volta
s circunstncias em que estvamos quando o crime foi cometido. O
que se deu entre sete e sete e meia da noite de um dia de novembro
em uma casa na qual a falecida estava cercada por membros de sua
famlia e seus empregados domsticos. A casa estava toda fechada e
trancada, e se algum de fora entrasse, teria de ter sido
necessariamente admitido pela prpria Sr Argyle ou ento teria deestar de posse de uma chave. A situao assemelha-se, sob alguns
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aspectos, com o caso Borden, na Amrica, no qual o Sr. Borden e
sua esposa foram abatidos a golpes de machado numa manh de
domingo. Ningum na casa ouviu coisa alguma, ningum foi visto se
aproximando da casa. O senhor pode ento perceber, Dr. Calgary,por que razo os membros da famlia ficaram, como o senhor diz,
mais perturbados do que aliviados com as novidades que o senhor
tinha a contar, no pode?
Calgary respondeu, pesadamente: Quer dizer que eles
prefeririam que Jack Argyle fosse o culpado?
Sem dvidadisse Marshall.Mas sem a menor sombra
de dvida. Se me permite apresentar a questo de modo um poucocnico, Jack Argyle era a soluo ideal para o desagradvel fato de
acontecer um assassinato na famlia. Ele havia sido uma criana
problema, foi um adolescente delinqente e um homem de
temperamento violento. Dentro do crculo familiar era possvel
encontrar-se atenuantes para ele, como de fato eles foram
encontrados. Era-lhes possvel chor-lo, sentir por ele, dizer a si
mesmos, uns aos outros e ao mundo em geral que no havia
realmente sido culpa sua, que os psiclogos explicavam toda a
situao muito bem! Sim, era realmente muito conveniente.
E agora...Calgary parou, de repente.
E agora disse o Sr. Marshall, tudo diferente,
naturalmente. Muito diferente. Uma diferena quase que alarmante,
poderamos dizer.
Calgary disse, com grande percepo: As minhas novidades
tambm no foram bem-vindas para o senhor, foram?
Devo admitir que verdade. Sim. Devo admitir que fiquei
perturbado. Um caso que havia sido encerrado satisfatoriamente...
sim, continuarei a usar a palavra satisfatoriamente, e est reaberto.
Isso a atitude oficial? perguntou Calgary. Quero
dizer, do ponto de vista policial, o caso ser reaberto? Mas sem dvida respondeu Marshall. Quando Jack
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Argyle foi considerado culpado com base em evidncias concludentes
(o jri s deliberou por quinze minutos), o assunto estava encerrado
aos olhos da polcia. Porm, agora, com a concesso de um perdo
integral pstumo, o caso est naturalmente reaberto.E a polcia far novas investigaes?
Diria eu que inevitavelmente. claro acrescentou
Marshall, esfregando pensativamente o queixo, que duvidoso
que, depois de tanto tempo e dadas as caractersticas peculiares do
caso, cheguem aalcanar qualquer novo resultado... Quanto a mim,
tenho, srias dvidas que o consigam. Podero ficar certos de que
algum na casa culpado. Podero mesmo chegar a ter uma idiabastante precisa de quem seja esse algum. Porm obter provas
concretas ser extremamente difcil.
Compreendo disse Calgary. Compreendo, sim, era
disso que ela estava falando.
O advogado disse, rspido:De quem o senhor est falando?
Da moarespondeu Calgary.Hester Argyle.
Ah, sim. A jovem Hester. O que lhe disse ela?
perguntou, com curiosidade.
Falou dos inocentesrespondeu Calgary.Disse que no
era o culpado que importava e sim os inocentes. Agora compreendo o
que estava querendo dizer.
O advogado lanou-lhe um olhar penetrante. Creio que
possivelmente o compreenda.
Queria dizer exatamente o que o senhor est dizendo
disse Arthur Calgary. Queria dizer que novamente a famlia est
toda sob suspeita.
Eu no diria novamenteinterrompeu Marshall. Nunca
houve tempo para se suspeitar da famlia. Jack Argyle foi cogitado
desde o incio.
Calgary ignorou a interrupo.A famlia ir ficar sob suspeitadisse ele,e poder ficar
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sob suspeita por muito tempo, possivelmente para sempre. Se um
dos membros da famlia for o culpado, eles mesmos possivelmente
nunca sabero qual deles. Podemos ficar olhando um para o outro,
imaginando... Sim, isso que ser o pior. Que eles mesmos possamficar sem saber quem foi...
Houve um silncio. Marshall ficou observando Calgary com um
olhar parado, avaliador, mas no disse nada.
uma coisa horrvel, sabe.disse Calgary.
Seu rosto magro e sensvel revelava as emoes que o
perturbavam.
realmente horrvel... Ficar ano aps ano sem saber, cadaum espreitando o outro, possivelmente com a suspeita a afetar os
relacionamentos entre eles. Destruindo o amor, destruindo a
confiana...
Marshall limpou a garganta.
Ser que o senhor no est pintando tudo com... cores
muito vivas?
No disse Calgary, no creio que esteja. Creio, talvez,
se me permite, Sr. Marshall, que estou vendo tudo um pouco mais
claro que o senhor. Por favor compreenda que eu sou capaz de
imaginar o que tudo isso pode vir a significar.
Novo silncio.
Significar continuou Calgary, que sero os inocentes
que viro a sofrer... E os inocentes no devem sofrer. S os culpados.
por isso... por isso que eu no posso lavar as mos nessa questo.
Nopossoir embora e dizer Fiz o que era certo, o reparo que estava
em mim fazer, servi causa da justia, porque o senhor compreende
que o que eu fiz no serviu causa da justia. No trouxe
condenao ao culpado, no livrou os inocentes da sombra da culpa.
Parece-me que o senhor est-se torturando um pouco
demais, Dr. Calgary. O que o senhor diz tem alguma base deverdade, sem dvida, porm no consigo ver exatamente o que...
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bem, o que o senhor possa fazer.
Nem eu. Nem eu disse Calgary com franqueza. Porm
mesmo assim tudo me diz que terei de tentar. E na realidade por
isso que eu vim procur-lo, Sr. Marshall. Eu quero, eu creio quetenho o direito de conhecer... as circunstncias gerais.
Ora disse o Sr. Marshall em tom um pouco mais
animado, no h segredos a respeito disso. Posso dar-lhe todos os
jatosque quiser. Mais do que fatos no estou em posio de lhe dar.
Nunca conheci ningum naquela casa muito intimamente. Nossa
firma representou a Sr Argyle durante vrios anos. Colaboramos
com ela no estabelecimento de uma srie de fundos e tratamos dealguns assuntos legais. Conhecia a prpria Sr Argyle razoavelmente
bem e conhecia tambm seu marido. Quanto atmosfera do Recanto
do Sol, ao temperamento e carter das vrias pessoas que l
moravam, minhas informaes so todas, como diria, de segunda
mo, por intermdio da prpria Sr Argyle.
Compreendo tudo isso respondeu Calgary, porm
tenho de comear em algum ponto. Pelo que soube, os filhos no
eram dela. Foram todos adotados?
Exato. A Sr Argyle foi, em solteira, Rachel Konstan, filha
nica de Rudolph Konstan, homem muito rico. Sua me era
americana e pessoalmente dona de grande fortuna. Rudolph Konstan
exercia muitas atividades filantrpicas e educou a filha no interesse
permanente desses projetos caritativos. Ele e a mulher morreram
num desastre de avio e Rachel passou a dedicar a imensa fortuna
que herdou dos pais ao que poderemos chamar, a grosso modo,
projetos filantrpicos. Sempre teve grande interesse pessoal nessas
beneficncias e chegou mesmo a realizar algum trabalho na rea dos
servios sociais. Foi justamente quando trabalhava num desses
projetos que conheceu Leo Argyle, que era professor em Oxford e
tinha enorme interesse por problemas econmicos e reformas sociais.Para compreender a Sr Argyle preciso ter em mente que a grande
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tragdia de sua vida foi o fato de no poder ter filhos. Como no caso
de muitas mulheres, tal incapacidade gradativamente veio a dominar
toda a sua vida. Quando, depois de visitar um sem-nmero de
especialistas, ficou claro que no podia ter a menor esperana de setornar me, partiu em busca da compensao que lhe fosse possvel.
Primeiro adotou uma menina de uma rea de favelas em Nova York,
que a atual Sr Durrant. A Sr Argyle dedicava-se quase que
exclusivamente a atividades de caridade relacionadas a crianas.
Quando eclodiu a guerra em 1939, ela fundou, sob os auspcios do
Ministrio da Sade, uma espcie de creche de guerra para crianas,
comprando para isso a casa que o senhor visitou, ou seja, o Recantodo Sol.
Ento conhecida como o Recanto da Vboradisse Calgary.
Exato. Era esse, eu creio, o nome original. E, possivelmente,
fosse em ltima anlise um nome mais adequado do que aquele que
ela escolheu, o Recanto do Sol. Em 1940 ela tinha l cerca de doze
ou dezesseis crianas, a maioria por ter anteriormente guardios
insatisfatrios, as outras por no poderem ser evacuadas com suas
famlias. L faziam tudo por essas crianas. Foi-lhes dada uma casa
luxuosa. Repreendi-a por isso, salientando como seria difcil para as
crianas, depois de vrios anos de guerra, deixar aquele ambiente de
luxo para voltar a seus prprios lares. No me prestou a menor
ateno. Estava mui