UNIVERSIDADE DE MARÍLIA - UNIMARFACULDADE DE COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
ROSELY DE FÁTIMA JURADO
A MÍDIA TELEVISIVA A SERVIÇO DA ARTE E
DA IDENTIDADE NACIONAL:
HOJE É DIA DE MARIA
Marília – SP
2008
ROSELY DE FÁTIMA JURADO
A MÍDIA TELEVISIVA A SERVIÇO DA ARTE E
DA IDENTIDADE NACIONAL:
HOJE É DIA DE MARIA
Universidade de Marília - UNIMAR
Marília – SP
2008
ROSELY DE FÁTIMA JURADO
A MÍDIA TELEVISIVA A SERVIÇO DA ARTE E
DA IDENTIDADE NACIONAL:
HOJE É DIA DE MARIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação, Área de
Concentração em Mídia e Cultura, da
Universidade de Marília – UNIMAR, para
obtenção do Título de Mestre em Comunicação.
Área de Concentração em Mídia e Cultura – Linha
de Pesquisa: Ficção na Mídia, sob a orientação da
Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory
Universidade de Marília - UNIMAR
Marília – SP
2008
Universidade de Marília – UNIMAR
Reitor Dr. Márcio Mesquita Serva
Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação
Pró-reitora Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory
Programa de Pós-graduação em Comunicação
Coordenadora
Rosângela Marçolla
Orientadora
Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory
UNIVERSIDADE DE MARÍLIA – UNIMAR
Rosely de Fátima JURADO
A MÍDIA TELEVISIVA A SERVIÇO DA ARTE E DA IDENTIDADE NACIONAL:
HOJE É DIA DE MARIA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação, Área de
Concentração em Mídia e Cultura, Linha de Pesquisa Ficção na Mídia - Universidade de
Marília – UNIMAR – para a obtenção do Título de Mestre em Comunicação.
Data da Defesa: 15 de dezembro de 2008.
Banca Examinadora
Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory Instituição: UNIMAR
Avaliação:___________________________ Assinatura:_______________________
Profª. Drª. Ana Maria Gottardi Instituição: UNIMAR
Avaliação:___________________________ Assinatura:_______________________
Profª. Drª. Nelyse Apparecida Melro Salzedas Instituição: UNESP - Bauru
Avaliação:___________________________ Assinatura:_______________________
Avaliação Final:_________________________________________________________
Marília, 15 de dezembro de 2008.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom do Amor, que sustenta a existência humana!
À orientadora, Profª. Drª. Suely Fadul Villibor Flory, pelo apoio, incentivo e orientação
durante toda a pesquisa e pela confiança depositada.
Aos Professores Drª. Rosângela Marçolla, Dr. Romildo Sant’anna, Drª. Nícia R. D’Ávila, Drª.
Lúcia Marques e Drª. Maria Cecília Guirado, pela ajuda, orientação e as valiosas
contribuições ao longo do cumprimento das disciplinas que contribuíram para a construção
deste trabalho.
Aos meus amados filhos, Tatiana e Marco Aurélio, que são a razão do meu viver, das minhas
conquistas, pela compreensão, carinho demonstrados em todas as horas, pelas diversas vezes
em que não foi possível dar-lhes a atenção merecida, tendo que me dedicar ao trabalho.
À minha mãe, pelo exemplo de trabalho, dedicação, generosidade, doação, especialmente por
ter me ensinado o valor do estudo. E à minha irmã, pela amizade, apoio e compreensão.
À minha amiga Clara, com quem por ironia ou força do destino, compartilhei dúvidas e
acertos. Estivemos juntas nos apoiando do princípio ao fim e em todos os momentos.
À Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, por fornecer o Projeto Bolsa Mestrado,
junto à Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas e Diretoria de Ensino de Botucatu,
garantindo o sustento financeiro necessário à realização desta dissertação de mestrado.
Especialmente à gentil e atenciosa funcionária Renata.
Aos alunos, colegas, funcionários e direção das escolas “Baida” e “Imessm” pela amizade,
compreensão, paciência e apoio incondicional em todos os momentos.
Às professoras Drª. Ana Maria Gottardi e Drª. Andréia C. F. B. Labegalini pelas consideráveis
contribuições no Exame de Qualificação de Mestrado.
À professora Drª. Nelyse Apparecida Melro Salzedas pelo grande incentivo, confiança e
contribuições.
Salmo 121
1 Elevo os meus olhos para os montes; de onde me vem o socorro?
2 O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra.
3 Não deixará vacilar o teu pé; aquele que te guarda não dormitará.
4 Eis que não dormitará nem dormirá aquele que guarda a Israel.
5 O Senhor é quem te guarda; o Senhor é a tua sombra à tua mão direita.
6 De dia o sol não te ferirá, nem a lua de noite.
7 O Senhor te guardará de todo o mal; ele guardará a tua vida.
8 O Senhor guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre.
JURADO, Rosely de Fátima. A MÍDIA TELEVISIVA A SERVIÇO DA ARTE E DA
IDENTIDADE NACIONAL: HOJE É DIA DE MARIA. 2008. 176 f. Dissertação
(Mestrado em Comunicação). Universidade de Marília - UNIMAR, Marília, 2008.
RESUMO
Esta pesquisa procura demonstrar que a produção televisiva pode ser um vetor de
disseminação da arte e cultura, como se pode verificar por meio da análise da microssérie
Hoje é Dia de Maria, tanto em seus aspectos temáticos quanto nos processos estruturais da
construção do texto narrativo. Este trabalho estrutura-se em quatro capítulos e mostra que a
microssérie coloca-se a serviço de um processo antropofágico dos contos de fadas e de outros
elementos da cultura brasileira, apresentados num repertório, cujo espaço utiliza-se da
intertextualidade. Configura-se um jogo de participação em que as personagens saem de uma
história a fim de participarem de outras, interagindo de modo a integrarem uma visão
conjunta de nossa identidade nacional. A constituição do repertório promove o resgate da
cultura popular num diálogo com a mídia televisiva, permitindo que ela passe a ser encarada
como fato da cultura contemporânea e como um fenômeno de massa, que abre oportunidades
para que o receptor possa alçar vôos pela imaginação, identificando-se com as narrativas do
cotidiano e com as tradições folclóricas. O constante enfrentamento entre o bem e o mal,
numa relação audiovisual e musical, adquire papel significativo entre os mistérios que
envolvem o homem nos diversos momentos de sua existência. As tradições são reexaminadas
pela recepção, nas relações que se estabelecem entre emissores e receptores, pois os estudos
culturais legitimam as práticas sociais e culturais. Os espaços domésticos e os contextos
socioculturais formam a conexão das operações de sentido ou ainda da saturação deste,
sublinhando a construção de um texto televisivo de qualidade, provando que há espaço para a
arte e para a cultura na mídia televisiva e do quanto essa constatação pode ser útil no espaço
escolar para a construção de sentidos para a busca de uma identidade nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Mídia; Televisão; Cultura; Identidade; Educação; Interação -
Recepção.
JURADO, Rosely de Fátima. THE TELEVISION MEDIA ON THE SERVICE OF ART
AND OF NATIONAL IDENTITY: TODAY IS MARY’S DAY. 2008. 176 f. Dissertation
(Master’s in Communication). University of Marília, UNIMAR - Marília, 2008.
ABSTRACT
This research has demonstrated that the television production may be a dissemination vector
of art and culture, as it can be verified by means of analysis of micro-series “Today is Mary’s
Day”, as in its thematic aspects as in structure processes of the construction of narrative text.
That paper has structured in four chapters and has shouved that the micro-series is placed to
the service of an anthropophagic process of fairy tales and other elements of Brazilian culture,
shouved in a repertory, whose space uses the intertextuality. It is formed a participation play
in which the characters leave out a story in order to participate to other ones, interacting so as
to integrate conjunct view of our national identity. The constitution of the repertory has
promoted the ranson of popular culture in a dialogue with the television media, allowing that
it passes to be seen as a fact of a contemporary culture and as a phenomenon of mass that
opens opportunities for that the receptor can raise flights by imagination, identifying with
everyday narratives and folkloric traditions. The constant facing between the good and the
bad in relation to the audiovisual and musical one acquires significative role among the
misteries that involve the man in several moments of its life. The traditions have been
reexaminaded by means of reception in relations that establish among senders and receptors,
so the culture studies legitimate the cultural and social practices. The homely spaces and
sociocultural contexts have formed the links of the sense operations or else of this saturation,
underlining the construction of a television text of quality, proving that there is a space for art
and culture in television media and of all that this evidence may be useful in the school space
for the formation of senses to get a national identity.
KEY WORDS: Media; Television; Culture; Identity; Education; Interaction - Reception.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Despejados (1934) – Portinari................................................................................ 17
Figura 2 – Maria peregrina – Hoje é Dia de Maria (2005) – TV Globo................................. 17
Figura 3 – Domo – cenário de 360 graus em Hoje é Dia de Maria......................................... 24
Figura 4 – Milharal.................................................................................................................. 25
Figura 5 – Terra do Sol a Pino................................................................................................. 25
Figura 6 – Fornalha.................................................................................................................. 25
Figura 7 – Vilarejo....................................................................................................................25
Figura 8 – Bosque.....................................................................................................................25
Figura 9 – Lavoura de Trigo.....................................................................................................25
Figura 10 – Casa de Maria........................................................................................................25
Figura 11 – Casa da Madrasta...................................................................................................25
Figura 12 – Paisagem com Corvos – Vincent Van Gogh.........................................................26
Figura 13 – Cenário da Morte de Dom Chico Chicote.............................................................26
Figura 14 – Menina com Tranças e Laços – Cândido Portinari...............................................26
Figura 15 – Brodowsky – Cândido Portinari............................................................................26
Figura 16 – Retirantes – Cândido Portinari..............................................................................26
Figura 17 – Robert Rauschenberg – Movimento Art Pop…………………………….….…..27
Figura 18 – Obras de Arthur Bispo do Rosário........................................................................28
Figura 19 – Alguns dos figurinos de Maria adulta e de Rosicler..............................................28
Figura 20 – As marionetes sem fio de Catin Nardi...................................................................29
Figura 21 – Mecânica que movimenta o relógio.......................................................................29
Figura 22 – Jean Tinguely – Arte Cinética...............................................................................29
Figura 23 – O Bibliotecário, de Giuseppe Arcimboldo............................................................30
Figura 24 – Dom Chico Chicote...............................................................................................30
Figura 25 – Maria criança por Carolina de Oliveira e, adulta por Letícia Sabatella.................36
Figura 26 – O Pai - por Osmar Prado,.......................................................................................36
Figura 27 – A Madrasta, por Fernanda Montenegro.................................................................37
Figura 28 – Joaninha criança – filha da madrasta – por Thainá Pina.......................................37
Figura 29 – Joaninha adulta – por Rafaella Oliveira................................................................38
Figura 30 – Pássaro Incomum – o Amado encantado...............................................................38
Figura 31 – Amado, por Rodrigo Santoro.................................................................................38
Figura 32 – Nossa Senhora da Conceição, por Juliana Carneiro da Cunha, protetora............ 39
Figura 33 – Zé Cangaia – por Gero Camilo..............................................................................39
Figura 34 – Quirino, o saltimbanco, por Daniel de Oliveira.....................................................40
Figura 35 – Rosa, por Inês Peixoto, faz a irmã de Quirino.......................................................40
Figura 36 – O Maltrapilho, por Rodolfo Vaz............................................................................41
Figura 37 – Homem de Olhar Triste, por Rodolfo Vaz............................................................41
Figura 38 – Mendigo – mais uma interpretação de Rodolfo Vaz.............................................42
Figura 39 – Mascate, o Salim – por Rodolfo Vaz.....................................................................42
Figura 40 – Vendedor, Senhor Morruga – por Rodolfo Vaz....................................................43
Figura 41 – Retirante, por Nanego Lira....................................................................................43
Figura 42 – Menina Carvoeira, por Laura Lobo.......................................................................44
Figura 43 – Asmodeu Original, por Stênio Garcia...................................................................45
Figura 44 – Asmodeu Bonito, de João Sabiá............................................................................45
Figura 45 – Asmodeu Sátiro, de Ricardo Blat..........................................................................46
Figura 46 – Asmodeu Brincante, por Antônio Edson...............................................................46
Figura 47 – Asmodeu Mágico, por André Valli.......................................................................47
Figura 48 – Asmodeu Velho, por Emiliano Queiroz................................................................47
Figura 49 – Asmodeu Poeta, por Luiz Damaceno....................................................................48
Figura 50 – Da esquerda para a direita, os Asmodeus: Sátiro, Bonito, Poeta, Brincante, Velho,
Mágico e à frente, Asmodeu Original.......................................................................................48
Figura 51 – Os Cangaceiros, por Mauro Ricca, Ilya São Paulo e Aramis Trindade.................49
Figura 52 – Os Executivos, por Charles Fricks e Leandro Castilho.........................................50
Figura 53 – A Camponesa, por Mônica Nassif, indica à Maria ...............................................50
Figura 54 – O Príncipe, por Rodrigo Rubik..............................................................................51
Figura 55 – Mucama, por Denise Assunção.............................................................................51
Figura 56 – Ceição, por Juliana Carneiro da Cunha.................................................................52
Figura 57 – Ciganinho, por Philipe Louis.................................................................................52
Figura 58 – Cortejo que acompanha o casamento da Madrasta com o Pai.............................111
Figura 59 – Folia Reisado Flor do Oriente.............................................................................111
Figura 60 – Um dos tradicionais estandartes da festa, que tem origem ibérica......................111
Figura 61 – O rabequeiro Mestre Salustiano e seu filho Pedro..............................................112
Figura 62 – Mestre Salu e Pedro participam da cena em que Maria encontra os
Retirantes................................................................................................................................112
Figura 63 – Chegada de Maria ao vilarejo; celebração da festa de São José..........................112
Figura 64 – Participação da banda Santa Cecília e dos Cirandeiros de Parati na cena da Festa
de São José..............................................................................................................................112
Figura 65 – Reza das mulheres da Umbigada Paulista antes da gravação..............................113
Figura 66 – Os integrantes dançam batendo de leve o ventre uns nos outros.........................113
Figura 67 – Enquanto uma integrante da Umbigada entoa os cânticos os demais
dançam....................................................................................................................................113
Figura 68 – Índios Xavantes da Aldeia Pimentel Barbosa, em Água Boa – MT ...................114
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES
INICIAIS..............................................................................................15
1. HOJE É DIA DE MARIA: A MICROSSÉRIE COMO ESPAÇO DE QUALIDADE
NA
TELEVISÃO.....................................................................................................................20
1.1- Hoje é Dia de Maria – a arte e a cultura popular na
TV...................................................20
1.2- Cenários, personagens, originalidade e identidade
regional..............................................23
2. DIALOGANDO COM A CULTURA
POPULAR...........................................................54
2.1- A construção do repertório da microssérie Hoje é Dia de
Maria......................................54
2.2- A qualidade na TV para uma cultura de
massa.................................................................55
2.3- A linguagem regional – identificação do
receptor.............................................................58
2.4- Os
desafios.........................................................................................................................59
2.5- Crenças populares (ditados e
provérbios)..........................................................................65
2.6- Danças e músicas
populares..............................................................................................71
3. REVESTINDO-SE DE MITOS: OS CONTOS DE FADA E O
MARAVILHOSO..................................................................................................................
..93
3.1- Contos de fada e mitos
europeus.......................................................................................93
3.2- O maravilhoso: mitos indígenas e
africanos....................................................................110
3.3- Um processo de emancipação através da arte e das raízes
populares..............................115
4. A MÍDIA TELEVISIVA E A CULTURA POPULAR: AS POSSÍVEIS
LEITURAS............................................................................................................................
119
5.1- Contos de
fada.................................................................................................................119
5.2-
Folclore............................................................................................................................131
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Hoje é Dia de Maria – o encontro possível da mídia
televisiva e da arte...................................................................................................................139
REFERÊNCIAS....................................................................................................................143
APÊNDICE – SEGUNDA JORNADA - PELOS CAMINHOS DA ARTE: O CONTO
MARAVILHOSO, DOM QUIXOTE, PORTINARI,DEGAS E TOULOUSE......................154
ANEXO 1 - Ficha Técnica – Hoje é Dia de Maria – Primeira Jornada.................................159
ANEXO 2 - Ficha Técnica – Hoje é Dia de Maria – Segunda Jornada.................................167
ANEXO 3 - ESTRUTURAS POÉTICAS DOS DESAFIOS (Versos e Estrofes).................174
ANEXO 4 - REISADO – As Danças são Numerosas............................................................180
ANEXO 6 - CONTOS DE FADAS: uma conexão entre Literatura e Matemática nas Séries
Iniciais (Exemplo de atividade aplicada)................................................................................183
Jurado, Rosely de Fátima J95m A mídia televisiva a serviço da arte e da identidade nacional: Hoje é Dia de Maria./ Rosely de Fátima Jurado -- Marília: UNIMAR, 2008. 191f.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comuni- cação, Educação e Turismo, Universidade de Marília, Marília, 2008.
1. Mídia 2. Televisão 3. Cultura 4. Identidade 5. Educação 6. Interação-Recepção I. Jurado, Rosely, de Fátima Jurado II. A mídia televisiva a serviço da arte e da identidade nacional: Hoje é Dia de Maria.
CDD – 302.23
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A presente pesquisa foi concebida a partir da observação e seleção de programas
televisivos de qualidade e do quanto essa constatação pode ser útil aos alunos e professores no
espaço escolar para a construção de sentidos para a busca de identidade nacional, para
perceber e analisar os diferentes pontos de vista, resultantes de diferentes leituras. É muito
comum ouvir das pessoas que este ou aquele programa é um “horror”, e que televisão “é
somente para quem não tem o que fazer”, porém é possível perceber uma contradição muito
grande nestas manifestações.
Se as programações fossem tão ruins assim, como explicaríamos o significativo
aumento na venda de aparelhos de televisão cada vez maiores e de alta tecnologia?
Certamente, um fato liga-se a outro. Nas residências, o mais comum é encontrar um aparelho
de televisão em cada quarto, por isso não se computa mais apenas um aparelho por família;
muitos espaços como salas de espera de consultórios, clínicas, rodoviárias, aeroportos,
hospitais, bares, lanchonetes, restaurantes, entre outros estabelecimentos, possuem aparelhos
de televisão e os mantém ligados, prova de que o número de telespectadores vem aumentando
a cada dia e o investimento em novas tecnologias também.
O alcance da comunicação televisiva amplia-se cada vez mais, tornando-se necessário
analisar e incrementar a qualidade da programação televisiva. Nosso trabalho propõe-se a
mostrar, primeiramente, a microssérie Hoje é Dia de Maria1, como espaço de qualidade na
televisão, apresentando suas características artísticas e culturais, com cenários e personagens,
que se inserem no contexto cultural brasileiro, a partir de uma identidade regional.
O repertório contribui para mostrar a qualidade na TV para uma cultura de massa,
compondo-se de diálogos que incorporam as crenças, os desafios, os ditados, os provérbios,
as danças e as músicas populares, apoiando-se na linguagem regional.
As narrativas desenvolvidas na microssérie configuram-se a partir de mitos, contos de
fada, contos folclóricos e populares incorporados na trama narrativa num processo de
emancipação. Emancipação esta, que proporcionou a criação de Hoje é Dia de Maria –
Segunda Jornada, mostrando novos percursos, quebrando expectativas por analogias e
diferenças e expondo a exploração do homem pelo homem e a situação perigosa de uma
criança numa sociedade violenta.
1 Tenho o objetivo de destacar o título da microssérie, de modo que toda vez que referenciá-lo o farei em itálico:Hoje é Dia de Maria. As demais obras, a título de destaque, seguirão o mesmo padrão.
15
As diferentes manifestações de identidade que compõem a história cultural de um
povo são mostradas num jogo de diálogos e de montagens pela mídia televisiva, tornando
possíveis diferentes e novas leituras em sala de aula. Acrescente-se, ainda, que as análises das
duas jornadas de Hoje é Dia de Maria permitem estudos críticos, enfoques comparativos, o
resgate da memória cultural brasileira, ampliando os horizontes de jovens e adultos.
A microssérie, como texto da moderna literatura brasileira baseada nas raízes mais
profundas do imaginário popular, mistura as pinturas de Portinari e as cantigas de Villa-
Lobos. Além de operar com formas populares, utiliza-se também das idéias de escritores
clássicos da literatura universal, construindo um repertório complexo, ligado a uma busca de
identidade regional e nacional.
O autor da microssérie mostra a miscigenação, através dos traços fisionômicos e
anatômicos que marcam a composição das personagens, além de estabelecer um conflito
entre diversas formas culturais produzidas em tempos diferentes. O repertório resgata
contos de fada, crenças populares, desafios, ditados, provérbios, mitos cristãos, indígenas
e africanos, o conto maravilhoso, as telas de Portinari, a exploração e a robotização do ser
humano.
A Rede Globo de Televisão buscou nos contos infantis, na oralidade e nas
manifestações culturais do nordeste brasileiro, o tema para compor sua trama. O cenário, as
vestes dos personagens são frutos de reciclagem de produtos fora de uso. As histórias
narradas interpenetram-se e permitem novas leituras do passado no presente e do imaginário
no contexto da realidade cotidiana. Com isso, a microssérie, além de fazer uma bricolagem
com os contos infantis e com as manifestações populares, atenta para o meio ambiente e opera
com a poética do imaginário, fazendo em muitas cenas um trabalho com as telas de Portinari
entre outros.
Na era da eletrônica, ocorre muitas vezes um processo entre as produções artísticas e a
cultura de massa. Os contos infantis e as telas de Portinari comunicam-se com o receptor, as
manifestações populares constroem a verossimilhança que permite a fusão de horizontes de
expectativa entre o texto televisivo e seus receptores. Convencem? Transportam o expectador
para o imaginário? Constroem uma obra de arte midiática?
O objetivo desse estudo é analisar a construção do repertório da microssérie Hoje é
Dia de Maria que traz o mítico, o religioso, a cultura popular e a arte para o espaço
televisivo, demonstrando que mídia televisiva e qualidade não são excludentes. Para tanto,
serão analisadas as duas jornadas da microssérie Hoje é Dia de Maria, com a finalidade de
discutir o processo midiático, pesquisar os processos simbólicos e estudar os processos
16
intertextuais como produtores de sentido e da história, inseridos no contexto da identidade
nacional.
Os programas televisivos têm buscado na arte e na cultura popular temas para elaborar
a trama da história, utilizando-se da mitologia, dos contos de fadas e da arte como elementos
produtores de sentido. Isso aconteceu com a série da Rede Globo de televisão, Hoje é Dia de
Maria. A construção do repertório, que configura o espaço textual, utiliza-se da
intertextualidade com várias histórias contidas em livros infantis, fazendo com que os
personagens saiam de uma história a fim de participarem de outras, construindo um processo,
algumas vezes de intratextos, intertextos e metatextos que afloram nos diálogos ainda que
singelos e aparentemente ingênuos.
A produção, ao trabalhar os cenários e as personagens, buscou uma coerência interna
sustentada pela verossimilhança. Uma das táticas trabalhadas foi a da metamorfose e da
metaforização dentro dum tempo imaginário, no qual tudo é possível.
Circulando o olhar pelas imagens pictóricas, num primeiro momento elas se
apresentam silenciosas aos nossos olhos. No entanto, levam-nos a discursar e exprimir
palavras, que surgem da nossa interioridade, do nosso pensamento. Olhamos para a imagem,
também ela nos olha, nos perscruta, nos desvenda, nos desnuda e nos questiona.
De repente, essa mesma imagem esfacela-se na imaterialidade do nosso imaginário.
Ela não é mais única, torna-se um folheado de imagem-lembrança.
Exemplificando uma tela de Portinari marcará a metamorfose e a metaforização com a
criação de um espaço que mimetiza a pobreza e a opressão social, marcantes na pintura do
artista e determinantes na configuração do espaço social da microssérie.
Figura 1 - Despejados (1934) Portinari Figura 2 - Hoje é dia de Maria (2005) TV Globo
17
A construção artística e a desconstrução tornam-se uma arma poderosa, um
instrumento de capacidade inesgotável que o texto procura, na medida do possível, acobertar
para que ninguém veja.
Desde a década de setenta, a televisão tem se mostrado hábil ao tematizar a realidade
nacional, a qual tem sido motivo de discussões e comentários entre os autores e diretores da
ficção televisiva.
A idéia de ligação da microssérie com o popular, de ser essa fonte determinante da
montagem, da concepção artística e do texto televisivo é que explica a resistência ao
existente, ao estabelecido como regra, é garantido pela criação de imagens, o que nos são
proporcionadas em Hoje é Dia de Maria.
A metodologia utilizada apóia-se na pesquisa folkcomunicacional2, bem como no
aparato teórico da Estética da Recepção, de Wolfgang Iser (1996; 1999) e Hans Robert Jauss
(1979), do conto maravilhoso, do estudo de caso, da pesquisa bibliográfica, e da leitura e
análise da linguagem verbo-visual, tendo como ponto de chegada a microssérie Hoje é Dia de
Maria.
A obra O Ato de Leitura, de Wolfgang Iser (1999), valoriza a consciência imaginativa
do leitor, lembrando que é no momento da leitura que o receptor entra em contato com
experiências que ainda não conhecia para viver uma transformação. É o momento em que
se envolve com os pensamentos do outro, configurando-se o dialogismo (BAKHTIN,
1987) através da concretização da alteridade autor/receptor. Este baseia sua leitura em
suas experiências de vida, assumindo papel atuante e não apenas de decodificador.
Edgar Morin (1997) analisa as conseqüências sociais, psicológicas e espirituais da
penetração da cultura de massas no mundo ocidental durante os anos 60 – 65, focalizando
os mitos, produzidos industrialmente, que condicionam os valores existenciais do público
consumidor, transformando a mitologia da felicidade numa problemática da felicidade. O
termo neurose ganha um novo sentido na obra, passando a designar um compromisso
entre o mal e a realidade, através de fantasias, mitos e ritos, propondo um passeio pelas
avenidas da cultura de massas.
Arlindo Machado (2001) propõe-se a examinar a programação televisiva brasileira em
comparação com a de outros países, para mostrar que há uma televisão de qualidade,
embora, geralmente, ela seja apresentada como um meio degradado e degradante, como
2 Folkcomunicação é o estudo dos processos comunicacionais das manifestações da cultura popular e do folclore.É possível saber mais sobre o assunto com a leitura de:BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos eexpressão de idéias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
18
reflexo da própria sociedade em que está inserida. Para o autor, deve-se pensar em
televisão sob uma perspectiva valorativa, e para isso é preciso analisar programas, que
podem desempenhar um papel positivo dentro da cultura, seja como um fenômeno de
massa, seja como uma forma de expressão da civilização ocidental. Intelectuais e o
próprio público recusam-se a perceber que há inteligência, criatividade e espírito crítico
no que é produzido pela televisão, e que a demanda comercial e o contexto industrial não
impedem a existência de produção de qualidade, embora, por contingências econômicas,
nem sempre seja possível fazer muitos programas para um público mais exigente, mas
pouco numeroso.
A análise da microssérie Hoje é Dia de Maria far-se-á em quatro capítulos e, têm a
intenção em abordar a originalidade e a identidade regional na constituição dos cenários e
personagens utilizando-se da arte e da cultura popular em constante diálogo. Assim, será
possível a identificação do receptor pela presença da linguagem regional, de desafios,
crenças populares, danças e músicas populares. O popular reveste-se ainda de mitos
através de contos de fadas de contos maravilhosos numa constante busca da emancipação
utilizando-se da arte e das raízes populares. E para finalizar, conclui-se que a microssérie
é um programa televisivo de qualidade, que apresenta inúmeras leituras, as quais devem
enriquecer o processo de ensino e aprendizagem nas escolas para a formação de leitores e
indivíduos mais críticos e mais presentes do cotidiano.
19
CAPÍTULO 1
HOJE É DIA DE MARIA: A MICROSSÉRIE COMO ESPAÇO DE QUALIDADE
NA TELEVISÃO
1.1- Hoje é Dia de Maria – a arte e a cultura popular na TV
A televisão brasileira vale-se da criatividade e do empenho dos profissionais que
trabalham com essa mídia para criar e desenvolver seus programas, que devem ser atrativos
para o mercado publicitário, que financia os negócios da área, bem como para os profissionais
de roteirização, produção e direção, que formam o primeiro grupo especializado. Outro grupo
de profissionais são os especialistas na manipulação e operação de equipamentos e demais
recursos técnicos da televisão, que atuam nas áreas de áudio, vídeo, luz, câmera, edição, entre
outras. Muitas outras categorias profissionais colaboram na elaboração e desenvolvimento dos
programas, recrutados para atender a determinados gêneros de produção. Com esse leque de
profissionais, “a televisão brasileira conquistou projeção mundial, exportando programas para
mais de uma centena de países, o que traduz o reconhecimento da competência e criatividade
dos nossos produtores audiovisuais” (MELO, 2003). Qualquer que seja a categoria de um
programa de televisão, ele deve sempre entreter e pode também informar e educar. Pode ser
informativo e educativo, mas deve também ser de entretenimento.
Os programas televisivos são formados de representações que podem ser verdadeiras
ou ficcionais. São verdadeiras quando correspondem a um fato e o dia-a-dia é o principal
elemento para a imagem representada por presentificar os objetos ausentes, mas existentes. Se
ficcionais, não correspondem a fatos, porém o repertório e as estratégias são referenciais, o
objeto imaginário não existe empiricamente, mas se apóia em dados previamente
estabelecidos, que possuem função reguladora, não são presentificados pela representação,
mas devem ser descobertos ou produzidos. Os roteiros ficcionais, vários advindos de obras
clássicas e de programas com interfaces com o cinema e com o teatro, são exemplos do
estreito relacionamento da TV com as artes: literatura, artes plásticas, artes cênicas e música.
20
Percebe-se também, o contínuo intercâmbio de informações entre os diferentes canais
de comunicação, de muitos conteúdos creditados, originalmente, à cultura popular, que são
apropriados pelas mídias, tornando cada vez mais tênues as fronteiras entre os produtos
culturais produzidos pelos diferentes agrupamentos sociais. Portanto, o trânsito desses
elementos culturais não ocorre automaticamente, nem é destituído de mediações e de
sensíveis alterações, quer na forma, quer no conteúdo. Os novos conteúdos são incorporados
por uma negociação simbólica e, assim, ganham importância na compreensão das identidades
grupais e das dinâmicas culturais, devido à divulgação feita pelas mídias.
A microssérie Hoje é Dia de Maria, do roteiro de Carlos Alberto Sofredini, adaptada
por Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho, direção geral de Luiz Fernando
Carvalho, foi veiculada em duas jornadas pela Rede Globo de Televisão. A Primeira Jornada
estreou em 2005, no dia 11 de janeiro e terminou no dia 21, apresentada em 8 capítulos, de
terça à sexta, às 23h00. Hoje é Dia de Maria – Primeira Jornada retrata a vida de Maria que,
órfã de mãe, incentiva o pai, que bebe muito, a casar-se novamente para livrar-se de seus
assédios, porém passa a ser explorada e maltratada pela madrasta. Decide ir embora de casa e
sair em busca das franjas do mar. Enfrenta as dificuldades do sertão, o sol a pino, inclusive as
maldades de Asmodeu3, que tenta de todas as maneiras, impedi-la de seguir sua jornada, mas
Maria não se deixa vencer pela maldade e, cheia de fé, de bondade e de inocência, ajuda a
quem pode pelo caminho. Asmodeu adianta o tempo e Maria transforma-se numa linda
jovem. Desperta o amor e para o amor, mas um encantamento a impede de viver por completo
esse amor, pois seu amado é pássaro durante o dia e homem à noite. O pai a reencontra, pede-
lhe perdão, porém já está no limiar de suas forças. Morre. Maria sofre muito com a morte do
Pai e com o desaparecimento do Amado. Encontra-o, porém Asmodeu faz o tempo voltar e
Maria, criança novamente, reencontra sua família, agora completa, pai, mãe e irmãos. E então,
com a ajuda de Ciganinho, um garoto que ajuda no sítio, alcança as franjas do mar. A ficha
técnica mostra que a composição do elenco da microssérie contou com atores contratados,
atores convidados e ainda com um elenco de apoio. Confira-se a ficha técnica no Anexo 1.
A idéia original de Hoje é Dia de Maria - Segunda Jornada foi de Luiz Fernando
Carvalho, escrita por Luís Alberto de Abreu e por Luiz Fernando Carvalho, direção de Luiz
Fernando Carvalho. Foi veiculada pela Rede Globo de Televisão de 11 a 15 de outubro do
mesmo ano, com 5 capítulos, de terça à sábado, às 23h00. A obra oferece ao espectador a
oportunidade de entrar em contato com o processo de produção literária da série, e de reviver
3 Asmodeu é a representração do Satanás, isto é, do mal. Ele transforma-se em outras seis personagens namicrossérie e tenta ludibriar Maria e todos que a cercam. Falarei mais sobre a personagem no sub-item 1.2.
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na jornada de Maria, carregada de simbolismo, as raízes mais profundas do imaginário
popular. Nessa jornada, a história de Maria sofre uma atualização em seu percurso e em suas
dificuldades. Maria foi engolida pelo mar e chega à cidade. Reencontra a menina carvoeira ao
ser engolida pelo gigante e descobre a realidade do mundo nos destroços dentro do gigante.
Um binóculo é o ponto de passagem de Maria até a cidade e lá recomeça uma nova jornada.
Reencontra Asmodeu, agora com diferentes disfarces. Enfrenta as explorações e as
dificuldades do mundo urbano. Encontra Dom Chico Chicote, uma leitura do Dom Quixote,
de Cervantes, um herói da literatura que passa a ser o responsável pela sua proteção a partir de
então. Asmodeu traveste-se de Asmodéia. Dom Chico Chicote apaixona-se por Alonsa, e
chama-a de Rosicler. Ela ajuda Maria e Dom Chico Chicote a enfrentarem as injustiças,
porém desaparece com a chegada da guerra e retorna no final da história quando deixam
Maria seguir o que lhe resta sozinha. Sempre recorrendo ao mundo da imaginação e à fé em
Nossa Senhora Aparecida, Maria segue sua jornada. Como tudo não passou de ilusão e
alucinação, Maria, sob os pedidos e orações da avó, sobrevive a forte febre. O elenco de Hoje
é Dia de Maria – Segunda Jornada também contou com um grande grupo de atores e
especialistas, como se pode constatar no Anexo 2.
Na microssérie Hoje é Dia de Maria, a arte e a cultura popular são as imagens representadas
que presentificam os objetos ausentes, mas existentes e que possibilitarão ao telespectador um
novo conhecimento e, para quem já o possuir, uma ampliação, ou renovação, isto é, um novo
olhar pela diferenciação dialógica e intertextual.
Carlos Rodrigues Brandão, professor e pesquisador da UNICAMP, atua na área de
Antropologia, principalmente nos temas: cultura, cultura popular, educação popular
educação ambiental e é autor de diversos livros. Numa entrevista, durante o programa
Salto para o Futuro (http://www.tvebrasil.com.br – s/d.), é perguntado a Brandão - “Qual
seria o papel da escola e da mídia, se elas pudessem trabalhar a favor dessas classes
populares, dessa cultura popular, no sentido de estar junto, de promover, de incorporar, de
se reconhecer...” - quanto ao papel da mídia, ele responde:
Brandão: Essa é uma questão muito complexa. Eu poderia responder a você com aminha própria experiência. Eu poderia dizer o seguinte: Alguns dos melhoresaprendizados que eu tive e sigo tendo a respeito de culturas populares, inclusive deoutros povos, de lugares onde eu nunca fui, foi através da mídia, foi através devídeos, de filmes, de programas culturais na televisão. Eu mesmo tenho umacoleção de discos de músicas etnográficas de povos indígenas do Brasil. E deoutros lugares, vários do mundo, músicas indígenas, de camponeses. Não fossemesses recursos, eu nunca ouviria essa música. Algumas dramatizações de culturaspopulares, às vezes, prestam um serviço muito grande, porque trazem e colocam a
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frente de milhões de pessoas alguma coisa que é uma “retradução” de experiênciasculturais. Mas, por outro lado, muito das piores coisas que eu tenho vistoacontecerem no mundo das culturas populares também, através, não só da mídia emsi, mas de uma associação entre o interesse de apropriação das culturas popularescomo mercadoria, esse que é o problema fundamental. E, misturada com umaespécie de domesticação midiática das culturas populares, há uma tendência, porexemplo, a tomar grupos de Bumba-Meu-Boi, de São Luiz do Maranhão, quesecularmente se apresentam em suas comunidades, em dias próprios e com todauma significação ritual, e colocar aquilo na porta do hotel. Ou colocar aquilo paraser filmado pela televisão e, de repente, ser cortado e aparecer em 3 minutos, comose tudo aquilo acontecesse segundo o olhar do programador da televisão. O que nóschamamos transformar o ritual, o que uma comunidade cria e vive, alguma coisaque ela cria a respeito dela mesma para ela mesma vivenciar num espetáculofragmentado, deslocado, muitas vezes até perdido do seu sentido original para umaplatéia assistir. (BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Entrevista concedida aoprograma Salto para o Futuro – TVE BRASIL.)
O trecho citado, da entrevista de Brandão no programa Salto para o Futuro, mostra de forma
clara a importância da presença da arte e da cultura na mídia televisiva. A construção da
protagonista “Maria” em Hoje é Dia de Maria faz uma transcodificação que expõe a milhares
de pessoas a diversidade cultural brasileira, pois a extensão territorial de nosso país
impossibilita, à grande maioria da população, a troca de experiências e o conhecimento das
diferentes manifestações culturais regionais, por isso a mídia televisiva é um importante
veículo para essa expansão cultural.
Tanto os cenários, como os personagens revestem-se da originalidade e identidade
regionais do nordeste brasileiro, do encontro das riquíssimas fábulas e contos populares e
ainda das cirandas infantis de Villa-Lobos. A cultura popular, a dramaturgia e o talento dos
artistas envolvidos na produção televisiva uniram-se, criando e recriando emoções,
profundamente arraigadas às nossas tradições, em busca de um roteiro que possibilitasse à
Rede Globo de Televisão a apresentação de uma microssérie que fosse representativa da
cultura regional brasileira e primasse pela qualidade, provando que é possível fazer trabalho
artístico na televisão.
1.2- Cenários, personagens, originalidade e identidade regionais
A microssérie Hoje é Dia de Maria era um projeto que percorreria o país, contando
histórias populares. Por esse motivo esperou dez anos para ser colocado em prática, pelo
alto custo que teria em viagens. O diretor Luiz Fernando Carvalho começou a estudar uma
opção teatral mais acessível ao público e mais envolvente. O domo é uma cobertura
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hemisférica, usado no Rock in Rio, em Jacarepaguá e foi a solução para a criação de um
cenário de 360º, o que possibilitou um efeito de animação, com os cenários sendo
mudados conforme os lugares por onde Maria, a protagonista, ia passando. As oficinas
foram montadas ao redor da estrutura, nelas é que aconteceram as criações do mundo
maravilhoso com a pequena Carolina Oliveira vivendo a saga de Maria, que sai em busca
das “franjas do mar” para fugir dos maus tratos da madrasta.
A iluminação necessitou de equipamentos específicos, que foram fabricados a partir da
reforma dos que estavam em desuso na emissora. Montaram um ciclorama, um painel que
circundou o domo por dentro com cenários desenhados, pintados à mão pela equipe do
pintor Clécio Régis. A cada uma das sete principais mudanças de paisagem previstas –
Milharal, Terra do Sol a Pino, Fornalha, Vilarejo, Lavoura e Bosque -, o ciclorama é
repintado sem ser desmontado. Em determinadas paisagens, a cenografia é objeto
principal dentro do domo, como a casa de Maria, e a pintura encarrega-se dos elementos
que dão perspectiva àquele cenário. Em outras, o jogo se inverte. A casa da Madastra, por
exemplo, foi pintada no painel e a cenografia ficou incumbida de fazer a ligação com
elementos tridimensionais. O portão e o jardim da casa pintada, por exemplo, eram
materiais – madeira, capim e flores – e foram montados dentro do domo. Também foi
construído um grande balão de luz central, no formato de cebola, e outros três menores,
todos pendurados no alto, além de lâmpadas especiais. Foi construída uma passarela no
alto para a luz “passear” pelo ciclorama, sem risco de sombras.
A estrutura do domo é de ferro, o que produz eco. Para solucionar esse problema foi
preciso montar uma cortina de madeira forrada com espumas grossas nas laterais e esticar
um lençol branco no alto, feito uma espécie de tenda árabe. Os figurinistas utilizaram
lona, palha, metal, os mais diversos materiais, inclusive reciclaram muitas peças do acervo
da emissora.
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Figura 3 – Domo – cenário de 360 graus em Hoje é Dia de Maria
Figura 4 – Milharal Figura 5 – Terra do Sol a Pino
Figura 6 – Fornalha Figura 7 – Vilarejo
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Figura 8 – Bosque Figura 9 - Lavoura de Trigo
Figura 19 – Casa de Maria Figura 11 – Casa da Madrasta
Percebe-se a influência de obras de arte no cenário e em alguns personagens. Para
exemplificar é possível observar que a obra “Paisagem com Corvos” de Vincent Van Gogh,
aparece como pano de fundo na cena da trágica morte de D. Chico Chicote. De acordo com a
crítica, considera-se esta paisagem um presságio do suicídio de Van Gogh. A composição do
quadro mostra caminhos divergentes que se perdem ao longe e a presença dos corvos acentua
a sua expressividade trágica.
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Figura 14Menina com Tranças e Laços -12/1955 - Desenho a grafite, crayon e lápis de cor/papel 34.5 x 20cm / Rio de Janeiro, RJ
Figura 16Retirantes 12/1959Pintura em óleo e madeira 90x 70,5cm / Rio de Janeiro, RJ
Figura 15Brodowsky 1932Pintura em óleo e madeira.47 cm/ Rio de Janeiro, RJ
Figura 12 - Paisagem com Corvos – Vincent Van Gogh
Figura 13 - Cenário da morte de D. Chico Chicote
A personagem Maria - criança é inspirada no quadro “Menina com tranças e laços”, de
Cândido Portinari, de 1955. Sob o mesmo título e similares, Portinari produziu
aproximadamente 297 obras, nas quais expressa a vida de nossa gente e nossa cultura, o que
sugere a diversidade étnica. As obras de Cândido Portinari estão repletas do tema “infância” e
temas sociais do povo brasileiro.
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Os objetos cenográficos são constituídos de materiais recicláveis ou objetos já
utilizados, em frangalhos, que, quando colocados lado a lado, possibilitam o nascimento de
um novo objeto. Essas idéias são partilhadas por aqueles artistas que, na segunda metade do
século XX, trabalharam com objetos da indústria de consumo. Mesmo descartados pelo uso,
esses objetos carregam sua história, forma ou alma. Um exemplo de artista que trabalha sob
essa concepção é Robert Rauschenberg, do movimento Art Pop, que utiliza objetos prosaicos
do cotidiano em justaposições incomuns, re-processando imagens da cultura de massa.
Figura 17 – Obras de Robert Rauschenberg - Movimento Art Pop
A obra de Arthur Bispo do Rosário4 também atribui destaque especial aos objetos do
cotidiano, criando novas idéias e novos significados, através da forma como eram arranjadas
na composição. O uso de materiais como papel, sucata, fibra de vidro, tecidos, marmitas de
4 Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba, Sergipe, (1911 ou 1909 – 1989) Sua vida foi escolhida comoenredo para o filme “O Senhor do Labirinto”, obra homônima do livro da escritora Luciana Hidalgo.
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alumínio etc., demonstra uma concepção Dadaísta presente nas cenas da “Gata Borralheira e
o Sapatinho Encarnado”, da Primeira Jornada e nos figurinos de Maria adulta. O uso desses
materiais é, segundo depoimento de Luiz Fernando, uma tentativa de representar as
contradições do mundo moderno.
Figura 18 – Obras de Arthur Bispo do Rosário
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Figura 19 – Alguns dos figurinos de Maria adulta e de Rosicler
A presença de bonecos manipuláveis, criados pelo tradicional grupo mineiro de teatro
Giramundo, as marionetes sem fio de Catin Nardi, o uso do stop motion para dar vida a
objetos inanimados e os efeitos de animação do cenário remetem às concepções artísticas da
arte Cinética de Jean Tinguely que trabalha com obras mecânicas que se movimentam
(Métamécanisme). Essas concepções artísticas alinham-se, visualmente, na produção
televisiva criando novas possibilidades de leitura para o telespectador.
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Figura 20 - As marionetes sem fio de Catin Nardi
Figura 21 – Mecânica que movimenta o relógio Figura 22 - Jean Tinguely - Arte Cinética
O figurino de D. Chico Chicote, personagem da Segunda Jornada, tem a cabeça
formada por um livro aberto que nos lembra a obra “O bibliotecário”, de Giuseppe
Arcimboldo, artista do século XVI, cuja idéia principal se refere ao homem como parte da
importância da obra de Cervantes na literatura ocidental e do livro no mundo contemporâneo.
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Figura 23 - O Bibliotecário, de Giuseppe Arcimboldo Figura 24 – Dom Chico Chicote
Toda história pressupõe um texto narrativo, o que situa o homem na temporalidade de
uma produção textual marcada pela narratividade. É uma existência recíproca. Um texto
narrativo, independentemente do(s) sistema(s) semiótico(s) presente(s) na sua estrutura, relata
eventos reais ou fictícios. As restrições modais que dependem da intencionalidade, sucedem-
se no tempo e no espaço, representando estados sofridos por agentes individuais ou coletivos,
situados no espaço de um mundo empírico ou possível. Alguns autores classificam os textos
narrativos em naturais e artificiais, naturais os que representam o real e, artificiais, os
inspirados no real.
O espaço, um dos elementos estruturais da narrativa, indispensável no mundo narrado,
é um espaço físico e social, seja realista ou fantástico, constituindo-se em cenários onde
ocorrem os fatos e situam-se os agentes. O outro elemento estrutural relevante do texto
narrativo é o tempo:
Tempo – cronologia, que marca a sucessão dos eventos; tempo concreto, do tempocomo dureé na acepção bergsoniana deste termo, que modela e transforma osagentes; tempo histórico, que subsume o tempo – cronologia e o tempo concreto,que configura e desfigura os indivíduos e as comunidades sociais. (AGUIAR ESILVA, 2002, p. 204).
Uma história para ser contada precisa ser criada, inventada, ou ainda, reinventada. O
texto de Field (2001) aponta critérios que mostram o processo que possibilita o
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desenvolvimento de uma obra. A pesquisa inicia-se pelo assunto, e sucessivamente a ação, os
personagens, os objetos e cenários também são definidos. Encontrando a história e
personagens, os roteiros seguirão uma linha de ação narrativa e, cada cena, cada fragmento
leva a algum lugar, movendo-se para frente em termos de desenvolvimento da história. Um
roteiro lida com imagens visuais, um romance, com a vida interior, uma peça teatral, utiliza-se
de diálogos, e a estrutura, é um contexto que “segura” tudo em seu lugar, é uma “ferramenta”
que ajuda a construir a história sob a forma dramática.
O capitulo 5, do livro de Field (2001) - “O que compõe um bom personagem?”,
mostra que o “bom personagem é o coração, a alma e o sistema nervoso do seu roteiro,” e
completa dizendo que os espectadores experimentam emoções e são sensibilizados por meio
dos personagens, pois exprimem suas esperanças, sonhos e medos.
Ao falar sobre a vida de um homem, os filósofos falam que esta é medida pela soma
total de suas ações; então “ação é personagem”, porque uma pessoa faz o que ela é e, não o
que ela diz. Para essa observação é necessário analisar quatro elementos: a necessidade
dramática, que é o modo como o personagem quer vencer, ganhar, conseguir ou alcançar
durante o transcurso no roteiro. Os obstáculos que surgem para alcançar a necessidade
dramática geram o conflito, que é essencial para o enredo; o ponto de vista, a maneira como o
personagem vê o mundo, a partir daí é ativo e vai agir de acordo com o seu ponto de vista, e
não simplesmente reagir; a mudança, é a transformação que o personagem atravessa ao longo
do roteiro; e a atitude, que pode ser positiva ou negativa, superior ou inferior, crítica ou
ingênua, alegre ou triste, fraca ou forte, boa ou má, corajosa ou covarde, pessimista ou
otimista.
Ao analisar a necessidade dramática de Maria durante a primeira jornada, percebe-
se que ela quer alcançar o seu tesouro e, para tanto, guarda uma “chavinha” e precisa chegar
até as “franjas do mar”. É uma menina alegre, ingênua e cheia de sonhos. O pai é viúvo, e
Maria, bonita e muito nova, é assediada por ele, como no conto infantil Pele de Asno, pela
falta de lucidez provocada pela bebida. É o obstáculo que dá inicio aos conflitos do enredo.
Ela sugere ao pai que se case com a vizinha viúva, assim surge o segundo obstáculo. Com o
casamento do pai, Maria ganha uma madrasta, como a sugerida pela história de Cinderela.
Começa a ser escravizada pela madrasta, fazendo os trabalhos no campo, os afazeres
domésticos e não lhe sobra mais tempo para brincar. Suas forças se esgotam e ela morre.
Renasce ao ser encontrada pelo pai, mas sai para sua jornada em busca de seu tesouro pois
não consegue mais conviver com a madrasta e sua filha Joaninha. Enfrenta muitas
dificuldades, a seca do sertão, o sol forte, a sede, a maldade das pessoas, o desânimo de quem
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desiste, a falta da noite, o cansaço, as meninas carvoeiras que venderam a sombra ao demônio
e cuja sina é trabalhar. Acrescente-se, ainda, as artimanhas de Asmodeu – o diabo -, que se
apresenta de diferentes formas para atrapalhar sua jornada. É desafiada e desafia Asmodeu
que quer sua sombra. Maria perde sua chavinha, Asmodeu encontra-a e apodera-se dela,
fazendo o tempo avançar. Maria perde a infância.
De repente, vê-se adulta e continua sofrendo com as artimanhas de Asmodeu. Começa
a trabalhar como bóia-fria na derrubada da cana, reencontra-se com a madrasta e Joaninha. O
príncipe desaparecido, filho do fazendeiro, retorna, e este faz uma grande festa para
comemorar o retorno do filho e para que este escolha uma esposa. A Madrasta e Joaninha
vestem-se em trajes de domingo e vão, porém Maria não tem o que vestir e nem o que calçar.
Maria consegue um belo traje, porém só poderá usá-lo até meia-noite. Ao fugir do baile perde
um pé do sapatinho. Maria é a escolhida pelo príncipe para ser sua esposa, mas para isso terá
que passar por uma prova de servidão, como lavar, passar, cozinhar. Passa pela difícil prova e
deverá casar-se com o príncipe. Porém, não está feliz! Na hora do casamento ouve o piado do
Pássaro Encantado, como querendo impedí-la de casar-se. Desiste do casamento.
Maria dá seu vestido e seu sapato à Joaninha e sai em busca do Pássaro Encantado.
Encontra-o ferido com uma flecha cravada em seu corpo. Porém seu amado tem a sina de ser
pássaro durante o dia e um belo rapaz somente depois que o sol se põe. Maria encontra os
saltimbancos, aceita o convite em acompanhá-los e desperta o amor de Quirino, mas não pode
correspondê-lo, pois ela ama o Pássaro Encantado e ele também a ama. Quirino, enciumado e
com inveja desse amor, prende o Pássaro numa gaiola. O Pai reencontra Maria e morre pouco
tempo depois. Asmodeu, senhor dos descaminhos, inconformado com o fato de não conseguir
impedir Maria de ser feliz, chora e faz suas lágrimas transformarem-se em gelo e neve até que
Amado fique preso no gelo e venha a falecer. Asmodeu, revoltado, devolve a infância de
Maria, assim que ela consegue trazer de volta à vida o Pássaro Incomum. Maria sente-se
perdida, sem rumo, Asmodeu continua a persegui-la. Ela faz o caminho de volta e reencontra
sua família, mas Asmodeu quer jogar uma maldição em Maria e no Ciganinho.
Maria, psicologicamente, apresenta-se como inocente, sonhadora, alegre e sempre
acreditou em seu sonho, o que configura o ponto de vista5, segundo Field (2001). Generosa ao
perdoar o assédio do pai, justificando-o diante da imagem de Nossa Senhora Conceição
dizendo “É que ele é assim de lua, de rompante, de brabeza...” e ainda pede proteção a ele e à
5 FIELD (2001) apresenta em seu livro Os exercícios do roterista: exercícios e instruções passo a passo paracriar um roteiro de sucesso, uma abordagem prática, das páginas 43 – 49; as categorias que compõem um bompersonagem: a necessidade dramática, o ponto de vista, a mudança e a atitude, são elementos importantes para aanálise do desenvolvimento das personagens.
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mãe falecida. Sua inocência não a deixa perceber a verdadeira intenção da vizinha, quando se
aproxima oferecendo-lhe mel, nem mesmo quando seu pai lhe diz “Pui a tarzinha agora te dá
mel? Pui ao despois há de te dar fel...”. Maria crê na Senhora que aparece sobre uma pedra do
outro lado do ribeirão, onde lava uma enorme pilha de roupa, que diz poder ver a imagem de
sua mãe na superfície das águas do rio e ainda diz palavras como “Arreda a tristeza que seu
dia há de chegar”, é quando Maria fala de seu sonho e ouve atenta o que a Senhora diz:
“Entonce põe tenção nelas: Escuite! Num é deitando pranto que elas vão pro mar... Escuite
bem: elas vão cantando!.....”, neste momento reforça a sua fé e acredita ainda mais em seu
sonho de chegar às franjas do mar. Maria não tem mais a alegria de antes, mas mesmo diante
das dificuldades da seca e do sol intenso, não desiste de seu sonho. Aceita e acredita nos
encantamentos que a acompanham em sua jornada. Só não se deixa levar pelas aparências e
nem pelas ofertas tentadoras do Demônio, logo o reconhece e tenta impedi-lo de fazer mal às
pessoas. Desperta para o amor, continua a buscar seu sonho, mas quer a companhia de seu
Amado Encantado. Não aceita o amor de Quirino, é sincera com ele e com o Amado. Não
desiste, e enfrenta as dificuldades sem se revoltar, continua sonhadora, alegre e sempre em
busca da realização do seu sonho.
A mudança mostra que a personagem Maria, durante o roteiro, tinha uma vida alegre,
brincava, ajudava o pai nos afazeres da casa, tinha o seu carinho. Depois que sofre o assédio
do pai fica assustada, com medo, insegura e preocupada. Fica ainda mais abatida depois que o
pai se casa com a vizinha viúva. Suas forças são vencidas pelo cansaço do trabalho escravo
que lhe é imposto e, nem seus sonhos, ou suas orações são suficientes para levá-la a suportar
tanto. Depois de renascida, ao ser encontrada pelo pai, continua boa, meiga e ingênua, firme
em sua fé e em seu propósito enfrenta com coragem e inteligência as dificuldades encontradas
durante sua jornada. Devido à sua bondade, interrompe seu caminho para ajudar Zé Cangaia,
um amigo que conhecera no mesmo momento em que ele se deixa levar inocentemente pela
tentação do Demônio. Asmodeu avança o tempo, Maria transforma-se numa bela jovem e
começa a ter sensações novas. Começa a trabalhar na lavoura, mas não perde sua bondade e
sua meiguice, não se entregando à luxúria e à riqueza. Descobre o amor com o Pássaro
Encantado. Fica muito feliz por reencontrar o pai. A angústia e a tristeza tomam conta de
Maria com a ausência do Pássaro Encantado. Sai sozinha à procura do Amado. Asmodeu a faz
retornar à infância e ela descobre que é o Ciganinho o seu anjo protetor e seu grande amor que
virá a ser o Pássaro Encantado. Maria sofre apenas mudanças físicas e sentimentais, porém
seu caráter e seus princípios continuaram os mesmos.
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A atitude mostra que Maria, apesar de toda sua fragilidade, inocência e ingenuidade,
mostra-se forte e corajosa ao buscar uma saída para deixar de sofrer o assédio do pai. Não
desiste de seu sonho – encontrar seu tesouro nas franjas do mar. Suporta toda a humilhação e
os serviços pesados impostos pela madrasta e não deixa de ser uma pessoa boa. Apesar de
oscilar entre momentos de alegria e tristeza, vitórias e derrotas, suas atitudes são sempre
corajosas e boas, Maria não deixa, em nenhum momento ou circunstância, de ser solidária e
justa. Enfrenta o Demônio com inteligência, sabedoria e coragem. Fragiliza-se com o novo
corpo e com os novos sentimentos e, mesmo assim, consegue perceber que o Príncipe, apesar
de rico, não é seu verdadeiro amor. Desiste do casamento, encontra no Pássaro Encantado, seu
verdadeiro amor. Segue seu caminho mesmo diante de tantas angústias, pois seu sentimento
de amor e de fé supera qualquer obstáculo, mesmo nos momentos de insegurança. O amor que
sente e sua bondade não lhe permitem suspeitar que Quirino tenha sido o responsável pelo
desaparecimento do Amado, e sai à procura do Pássaro. Reúne todas as suas forças, suporta a
morte do pai e a fúria do Demônio. Para salvar o Amado enfrenta, com coragem, o Demônio,
e consegue reaver sua chavinha. Com esta, com o calor da fogueira e seu sentimento de amor,
traz seu Amado de volta à vida. O Demônio, enfurecido, faz o tempo voltar para Maria. Ela,
novamente criança e sem a memória do tempo de antes, não perde sua coragem, sua
inocência, sua ingenuidade, sua alegria e encontra Ciganinho, e em sua companhia seguem
juntos e finalmente alcançam as franjas do mar. Maria, em todo o percurso da microssérie
mantém do princípio ao fim a atitude alegre de uma criança, a atitude positiva de uma pessoa
do bem e, apesar de sua ingenuidade, apresenta-se forte, otimista e corajosa, como toda
pessoa que tem convicção do que quer e sabe o que busca.
Na microssérie Hoje é Dia de Maria, a personagem “Maria”, oferece ao espectador a
oportunidade de entrar em contato com o processo de produção literária da série, e de reviver
na jornada de Maria, carregada de simbolismo, fundada nas raízes mais profundas do
imaginário popular.
É uma obra de dramaturgia, por isso é um exercício intelectual e de imaginação
(BACHELARD, 1989) que ao longo da história criou personagens inesquecíveis, referenciais
no arcabouço de significados de cada cultura, que reconstroem e revitalizam o inesgotável
manancial criativo das lendas e narrativas brasileiras.
Apresentada em oito episódios, a primeira jornada começa com a perda da mãe. Maria
conhece logo cedo a dor e sua primeira vida não resiste à maldade, morrendo devido às
maldades da madrasta. Sopra o vento sobre o milharal que cobre sua cova, como ocorre num
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conto popular A Menina e o Figo6 bastante conhecido. A lágrima do pai devolve-lhe a vida.
Ela renasce para buscar seu destino. Protegida por Nossa Senhora vira santa peregrina,
atravessando o Brasil. Um pássaro a acompanha. Conhece o Demônio, que, com sua magia,
escraviza crianças, explora os ingênuos e tenta destruir a alegria de Maria roubando-lhe a
infância. Maria resiste. Tem fé e busca a imensidão. No corpo da mulher adulta, ainda é
seguida pelo Pássaro Encantado, o amor que, com seu apoio e constância, dá-lhe forças para
manter a fé cristã. Maria desvenda a farsa de um casamento que a uniria ao poder e à riqueza,
sonho da madrasta. Quase no altar, percebe que o noivo não é gente e que todo aquele luxo
decora o castelo da mentira. Foge. O Pássaro encantado é perseguido e ferido, mas ela
consegue livrar-se da armadilha sedutora da ascensão social. Dois artistas do povo a acolhem
com criatividade e afeição - são os mambembes, a alma dos nossos artistas. O saltimbanco
Quirino apaixona-se por Maria, mas descobre que seu amor não é correspondido porque ela
ama o Pássaro. Enlouquecido pelo ciúme, seqüestra o Amado. O Demônio faz o resto e o
enterra na neve. Com o calor de seu corpo e seu sentimento de amor, Maria ressuscita o
Amado. Continua seu caminho e retorna ao tempo em que a mãe era viva.
Tudo foi sonho? Nada aconteceu? Depende do coração e das asas da imaginação. Na
dureza do trabalho, e pior, no desemprego, no sofrimento, na violência, mas também no
aconchego do lar, na poesia, na amizade, na gentileza, na simplicidade, sempre existe uma
Maria.
Hoje é dia de Maria é a viagem num só tempo, poética e trágica, da inocência de uma
menina rumo à maturidade e às descobertas da vida moderna, com toda a corrupção e o
sofrimento que ela contém. Partindo do nosso folclore, sua peregrinação ultrapassa
fronteiras e encontra outros povos, o que é importante e verdadeiro, é universal. Sua
mensagem é o esforço humano para manter vivos o amor e a esperança, apesar de tudo.
Maria é apresentada em duas fases, criança e adulta. Quando criança é representada por
Carolina de Oliveira. Sagaz, esperta e viva. Maria é decidida e tem uma coragem bastante
temerária. Sua trajetória do interior sertanejo em busca do mar coincide com o rito de
passagem da infância para a idade adulta, do mundo lúdico à descoberta do amor. Com sua
infância roubada por Asmodeu, Maria se torna um pouco mais reflexiva e emotiva. Quando
adulta Maria é representada por Letícia Sabatella. Contudo, sua vivacidade e perspicácia
infantis insistem em não deixá-la.
6 O conto popular que retrata a história de uma menina que é enterrada e que nasce sobre seu corpo um capinzalé recontado de diferentes formas e por diferentes autores como: A menina e o figo (COELHO, 1879, in 1985, p.198-9); A menina enterrada viva (CÂMARA CASCUDO, 2000); A menina dos cabelos de capim(GUILHERME (2000). Será apresentado no Capítulo 3 – 3.1, p. 80).
37
Figura 25 – Maria criança por Carolina de Oliveira e, adulta por Letícia Sabatella
O Pai é interpretado por Osmar Prado, homem fraco, é incapaz de persistir em seus objetivos.
Sua trajetória consistirá na busca da filha para se redimir dos maus tratos da madrasta e do
assédio dele à filha. Em sua acidentada caminhada, acaba sempre sucumbindo às tentações de
Asmodeu.
Figura 26 – O Pai, por Osmar Prado
A Madrasta, de Fernanda Montenegro, é a face nociva e obscura da figura materna.
Extremamente avarenta e completamente egocêntrica, seu sonho é enriquecer e, para isso, está
disposta a fazer qualquer coisa. Seu lado negativo é contrabalançado por sua inabilidade em
fazer com que suas tramas dêem certas, o que a torna cômica. No fundo, é uma tola contra a
qual tudo parece conspirar.
38
Figura 27 – A madrasta, por Fernanda Montenegro
Joaninha é uma personagem apresentada também em duas fases. Quando criança, interpretada
por Thainá Pina, filha da Madrasta, sua existência resume-se a comer e comer. É um estorvo
na vida da mãe.
Figura 28 – Joaninha criança – filha da madrasta - por Thainá Pina
Depois de crescida, representada por Rafaella Oliveira, continua comendo sem parar. Sempre
acompanhada da mãe, morre de inveja quando o Príncipe se apaixona por Maria.
39
Figura 29 – Joaninha adulta – por Rafaella Oliveira
Amado, representado por Rodrigo Santoro, é aquele que Maria busca sem perceber e que
esteve sempre ao seu lado, encantado como Pássaro Incomum. Dividindo o papel de par
romântico de Maria adulta, o Pássaro causou verdadeiro rebuliço entre os integrantes do
Giramundo. Sua confecção exigiu um verdadeiro trabalho de equipe: enquanto Ulisses
Tavares desenvolveu o corpo e Sophia Felipe articulou patas, garras, cabeça e crista, Eduardo
Félix suou para encontrar a asa ideal em formato de “leque” e o rabo da ave. Todos esses
elementos são manipulados através de 20 fios. A marionete ostenta pesados 12 kg para um
boneco que “voa”. Seu peso é sustentado pela mesma grua que eleva os manipuladores
durante as evoluções da ave. Encarna a melhor paixão, a juvenil.
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Figura 30 – Pássaro Incomum – o Amado encantado Figura 31 – Amado, por Rodrigo Santoro
Nossa Senhora da Conceição – por Juliana Carneiro da Cunha. Protetora, sua imagem consola
Maria nos momentos de tristeza e saudades. Diz à Maria que continue buscando, sempre
seguindo o seu coração.
41
Figura 32 – Nossa Senhora da Conceição, por Juliana Carneiro da Cunha
Zé Cangaia – Gero Camilo representa o sujeito tolo de tão ingênuo e bom-caráter, vê o mundo
com os olhos lúdicos e irresponsáveis de uma criança. Vende apitos de barro num vilarejo, o
que mal dá para a comida. Troca sua sombra – o que equivale a vender sua alma ao demônio
por um sanduíche, mas depois consegue recuperá-la com a ajuda de Maria.
Figura 33 – Zé Cangaia – por Gero Camilo
Quirino, o saltimbanco, interpretado por Daniel de Oliveira, é ágil com as palavras e gestos, e
provoca a todos na platéia. Apaixona-se por Maria à primeira vista. De palhaço alegre e vivaz,
torna-se melancólico e ciumento, pois seu amor não é correspondido.
42
Figura 34 - Quirino, o saltimbanco, por Daniel de Oliveira
Rosa, por Inês Peixoto, faz a irmã de Quirino, é sua companheira no palco e na vida
mambembe. Improvisa e faz graça para platéia com sua sanfona. Transforma-se em grande
amiga de Maria e vê a sorte das pessoas nas cartas de tarô.
Figura 35 - Rosa, por Inês Peixoto
No figurino do Maltrapilho, havia acessórios pendurados, aleatoriamente, o que deu a idéia de
que ele carregava o mundo. Como na obra de Arthur Bispo do Rosário que criava novas
idéias e novos significados com objetos do cotidiano, através da forma como eram arranjadas
na composição. Assim como o Mendigo, o Homem de Olhar Triste, o Mascate e o Vendedor,
são alguns dos guardiões que acompanharão Maria em sua trajetória. São figuras atemporais e
líricas, que têm linguajar metafórico, poético e cômico, próprio dos poetas e narradores
populares. Todos eles representados por Rodolfo Vaz.
43
O Maltrapilho, depois de ter o ferimento na perna cuidado por Maria, desaparece
deixando uma corda feita de trapos de pano.
Figura 36 - O Maltrapilho, por Rodolfo Vaz
O Homem de Olhar Triste ajuda Maria a livrar o Morto de ser espancado pelos
Executivos.
Figura 37 – Homem de Olhar Triste, por Rodolfo Vaz
O Mendigo pede água à Maria, que mata a sede dele com o único “tantinho” de água que
levava em sua cabaça e ele conta a ela que a noite está com os Índios.
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Figura 38 - Mendigo – também por Rodolfo Vaz
O Mascate, mais um dos protetores de Maria, dá a ela o belo vestido e os sapatos
encantados com os quais ela vai ao baile de comemoração pelo regresso do Príncipe.
Figura 39 – Mascate, o Salim - por Rodolfo Vaz
O Vendedor, Senhor Morruga, é um Português, esse vendedor ambulante vende as mais
diversas bugigangas. Como protetor do Pai, dá-lhe coragem para que não desista de seguir o
seu caminho, escutar o seu coração e reencontrar Maria para pedir-lhe perdão.
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Figura 40 – Vendedor , Senhor Morruga – Rodolfo Vaz
O Retirante, por Nanego Lira, acompanhado de sua família, desiste de ir à direção ao
mar, pois, como a noite foi roubada, não consegue atravessar o sertão.
Figura 41 – Retirante, por Nanego Lira
A Menina Carvoeira – representada por Laura Lobo, assim como outras crianças trabalha
cortando lenha para a fornalha. Maria percebe que nenhuma das crianças carvoeiras tem
sombra. Dentre as várias obras já citadas nesta pesquisa, não poderia deixar de incluir a poesia
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de Manuel Bandeira – Meninos Carvoeiros7 -, que também retrata a exploração da mão-de-
obra infantil e uma vida de miséria.
Figura 42 - Menina Carvoeira, por Laura Lobo
O Asmodeu, o talzinho que persegue Maria, apresenta-se de sete formas, e o que não
falta são apelidos para o diabo. Coisa-ruim, Tinhoso, Lúcifer, Cramulhão, Satanás, Belzebu,
entre outros. Asmodeu é a matriz que origina outras seis personagens, todas loucas atrás da
sombra da menina. Na Bíblia, é citado em Tobias como o demônio que se apaixona por Sara e
mata todos os maridos dela, não a deixando consumar o casamento. Mas Sara conhece Tobias,
que é ajudado pelo anjo Rafael e consegue vencê-lo. Já o Asmodeu persa, considerado o chefe
dos demônios e tem a missão de encher os corações humanos de raiva e inveja. Na
demonologia, é um dos reis do inferno e seu mês correspondente é Novembro. O nome
Asmodeu vem do hebraico Asmoday ou Acheneday e aparece no zoroastrismo, antigo sistema
religioso-filosófico que influenciou o cristianismo, islamismo e judaísmo e tem o princípio
básico de que o bem e o mal estão inerentes a todos os elementos do universo. É uma figura
que surge em diferentes aparências, que sempre enganam. Em Hoje é Dia de Maria, o
Asmodeu original, representado por Stênio Garcia, é manco e tem um andar curvado.
Aparenta ser um bicho primitivo, tem chifres, pés de bode e tronco de homem. É muito
animalesco e trabalha com os sentidos, o tato e o olfato. É arrogante e se crê mais poderoso e
perspicaz do que é de fato. Costuma comprar a sombra das pessoas que, ingenuamente, não
7 A poesia “Meninos Carvoeiros”, de Manuel Bandeira pode ser lida no sitehttp://www.jornaldepoesia.jor.br/manuelbandeira02.html. Acesso em 05 nov. 2008.
47
sabem que estão vendendo a alma ao diabo. Depois de ser enfrentado por Maria, tenta a todo
custo desviá-la de seu caminho. Para ludibriar a menina e aos que a cercam, é capaz de
transformar-se em outras personalidades. No ápice de sua crueldade, chega a roubar a infância
dela. Os outros seis Asmodeus têm um figurino menos demoníaco, mas todos são tinhosos,
com um elemento sedutor que os caracteriza.
Figura 43 - Asmodeu Original, por Stênio Garcia
O Asmodeu bonito, de João Sabiá, impressiona as mulheres pela sua beleza, chega a
enganar a Madrasta.
Figura 44 - Asmodeu Bonito, de João Sabiá
O Asmodeu sátiro, de Ricardo Blat, aproveita-se da tristeza do Pai e oferece
companhia em troca de sua sombra.
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Figura 45 - Asmodeu Sátiro, de Ricardo Blat
O Asmodeu brincante, interpretado por Antônio Edson, tem como arma a simpatia e a
alegria, que quase enganam Maria.
Figura 46 - Asmodeu Brincante, por Antônio Edson
O mágico, interpretação de André Valli, por sua vez, com seus jogos performáticos
enrola o Pai, diz a ele que a filha está morta.
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Figura 47 – Asmodeu Mágico, por André Valli
Asmodeu velho, de Emiliano Queiroz, assedia o Pai, quase coloca o encontro dele com
Maria por água abaixo com suas palavras de desestímulo.
Figura 48 – Asmodeu Velho, por Emiliano Queiroz
O Asmodeu poeta, representado por Luiz Damasceno, tem a palavra como arma de
sedução, que usou com simplicidade para conquistar a simpatia de Maria.
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Figura 49 - Asmodeu Poeta, por Luiz Damasceno
Figura 50 – Da esquerda para a direita, os Asmodeus: Sátiro, Bonito, Poeta,Brincante, Velho, Mágico e à frente, Asmodeu Original
Os cangaceiros, inspirados nos samurais, usaram roupa metalizada. A lona deu idéia de
couraça. Não houve compromisso em situá-los no tempo e no espaço. Os cavalos foram feitos
em resina e colocados sobre rodinhas, o principal deles foi revestido do tecido de uma manta
feita à mão por uma tribo do Norte da África, doada pelo próprio Luiz Fernando Carvalho. Os
51
outros foram recobertos com materiais reciclados, como tampinha de garrafa, marmitas de
alumínio, chapas de off set, adereços de carnaval e feltros que sobraram de figurinos da
emissora. Os animais da história são bonecos, são marionetes, feitos de madeira, pintados ou
revestidos com fios de linha ou placas de alumínio. O grupo Gira Mundo se encarregou da
confecção e manipulação de aves, pássaros e répteis, também pelas cenas em que as sombras
ganharam vida própria. Trata-se de um boneco chapado, de papel, com varinhas fininhas, que
foi manipulado com luz atrás. Sua criação foi baseada em desenhos de cordel. A maior parte
das peças ligadas ao cenário e à arte foram feitas à mão e foram comprados com encomenda
especial 40 apitos de barro, que não são mais feitos no Nordeste. Representados por Marco
Ricca, Ilya São Paulo e Aramis Trindade, os Cangaceiros ameaçam matar o Pai quando esse
se recusa a pagar propina para cruzar o sertão, mas desistem quando se dão conta de que o
fardo que aquele homem carrega já é pesado demais.
Figura 51 – Os Cangaceiros, por Marco Ricca, Ilya São Paulo e Aramis Trindade
Os Executivos são representados por Charles Fricks e Leandro Castilho, com feições de
boneco. Proíbem que o Morto seja enterrado e o espancam até que algum parente pague sua
dívida.
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Figura 52 – Os Executivos, por Charles Fricks e Leandro Castilho
A Camponesa ( Mônica Nassif), indica a Maria como invocar o Demo, para que esta
possa reaver a sombra do amigo Zé Cangaia.
Figura 53 – A Camponesa, por Mônica Nassif
O Príncipe, Rodrigo Rubik, se encanta por Maria no baile e a pede em casamento. Usa uma
máscara, pois não tem rosto.
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Figura 54 – O Príncipe, por Rodrigo Rubik
A Mucama, Denise Assunção, trabalha na fazenda do Príncipe.
Figura 55 – Mucama, por Denise Assunção
Conceição, a Ceição, também representada por Juliana Carneiro da Cunha, é a mãe de Maria,
mesmo aparecendo viva somente no final da microssérie, esteve presente desde o início na
figura de Nossa Senhora Conceição e da Camponesa.
54
Figura 56 – Ceição, por Juliana Carneiro da Cunha
O Ciganinho, representado por Philipe Louis, aparece como tal somente na jornada de
Maria criança e a ajuda a alcançar as franjas do mar. Somente nesse momento Maria
percebe que ele é seu Anjo da Guarda.
Figura 57 – Ciganinho, por Philipe Louis
A microssérie Hoje é Dia de Maria apresenta uma brasilidade associada a uma
ideologia de heterogeneidade com outras literaturas em que a principal característica é a
oralidade e os detalhes aparecem para ilustrar a narrativa e para ser a narrativa num constante
diálogo intertextual que valoriza a diversidade com um formato estético totalmente inovador.
A trilha sonora composta pelas cirandas de Villa-Lobos, é também um elemento que constitui
os momentos vividos e as ações praticadas pelas personagens; outra marca de brasilidade é o
55
chorinho Carinhoso, do mestre Pixinguinha, os repentes, os desafios, os jogos de linguagem,
as cantigas de roda infantis, são elementos que mostram a cara do país e fazem referência à
nossa história como nação. A trama gira em torno da menina Maria que em sua jornada
metaforiza o percurso do herói em busca pelo conhecimento do mundo e de si (JOLLES, A.
1976). Os elementos da dura realidade mostrados pelos contos, as cantigas, os folguedos, os
cangaceiros, as vítimas do trabalho infantil nas carvoarias, índios em cerimônias dançantes e
os demais contrastes sociais da vasta cultura brasileira são alguns dos recursos empregados na
busca de uma identidade nacional espelhada em nossa cultura. Trata-se de uma criação de
estrutura e linguagem televisivas novas que promovem o resgate da cultura popular de grande
diversidade e identidade, muitas vezes tão esquecida entre nós brasileiros, como mostra o
próximo capítulo.
CAPÍTULO 2
DIALOGANDO COM A CULTURA POPULAR
56
2.1 - A construção do repertório da minissérie Hoje é Dia de Maria
A construção de um repertório estabelece critérios de seleção que permitam a elevação
dos níveis de audiência, pois mesmo o produto mais sofisticado e seletivo encontra na
televisão um público de massa, o que desloca o conceito de “elitismo”8. É o resgate da
inteligência, a criatividade e o espírito crítico que deixaram de ficar reprimidos em
abordagens tradicionais, permitindo que a televisão passe a ser encarada como fato da
cultura contemporânea.
A heterogeneidade do meio social dificulta o consenso sobre a interação entre
produtores e receptores. A equacionalização da grande variedade de valores e a oferta de
um número maior de “qualidades” é produzir “TV de qualidade”. Segundo Geolf Mulgan
(apud MACHADO, 2001), a boa utilização dos recursos expressivos do meio, explorando
os recursos da linguagem, inovando-os; e a promoção, como num ritual coletivo, de
diferentes aspectos pedagógicos, de valores morais, construtores de conduta juntamente
com a comoção nacional em torno de grandes temas coletivos e a valorização das
diferenças, respeitando as individualidades, as minorias e os excluídos, é produzir TV de
qualidade.
O repertório de Hoje é Dia de Maria apóia-se nos contos de fada e nos contos
maravilhosos, revestidos de criatividade e atualizações. Os contos de fada é uma variação
do conto popular ou fábula, transmitidas oralmente, e o herói ou heroína tem de enfrentar
grandes obstáculos antes de triunfar contra o mal. Envolvem, pelas suas próprias
características, algum tipo de magia, metamorfose ou encantamento.
É nessa diversidade que ocorre a expressão de uma sociedade multicultural, porém não
são cânones, apenas oferecem pontos de ancoragem para a reflexão e avaliação do que a
TV produz. Hoje é Dia de Maria é um repertório pensado especificamente para a TV,
levando em consideração questões próprias do meio, uma perfeita síntese do popular e do
erudito, do simples e do sofisticado, da inovação de linguagem e da acessibilidade a um
público mais amplo.8 “O Elitismo provém, não da prosperidade ou de funções sociais específicas, mas de um vasto e complexo corpode símbolos, inclusive de condutas, estilos de vestimenta, sotaque, atividades recreativas, rituais, cerimônias e deum punhado de outras características. Habilidades e aptidões que podem ser ensinadas são conscientes, enquantoo grande vulto de símbolos que forma o verdadeiro elitismo é inconsciente.” (REZK, 2000)
57
2.2- A qualidade na TV para uma cultura de massa
A qualidade na televisão é uma questão de mudança de enfoque, é um fenômeno de
massa de grande impacto na vida social moderna, que produz com criatividade,
inteligência e causa inquietação. A TV é a oportunidade de expressão dos anseios, das
dúvidas, das crenças, das descrenças, das inquietações e das descobertas de uma
civilização, inclusive abrindo oportunidades para que o receptor possa alçar vôos pela
imaginação.
Muitas são as teorias ligadas à vida cotidiana, à cultura popular, ao espaço público e
aos mecanismos de mediação entre emissores e receptores, que apresentam uma idéia de
televisão com a qual nos identificamos e ainda possibilita a formação de mentalidades
criativas para a televisão do futuro; como diz Arlindo Machado (2001, p. 13), a TV “[...] é
e será aquilo que nós fizermos dela”.
A discussão sobre a qualidade da TV começou nos anos 80, quando a expressão
“quality television” aparece pela primeira vez no contexto intelectual britânico, com Jane
Feuer (Apud MACHADO, 2001, p. 22), devido ao seriado Hill Street Blues; mas ninguém
define, de forma clara, o que seria “qualidade”. Porém, não é possível fazer analogias com
as tradições culturais literária, teatral, musical ou de artes plásticas, pois a TV é uma
produção em série de objetivos comerciais, apesar de contar com a função respeitável de
sua contribuição em difundir obras de uma cultura secular e legítima, produzidas por um
passado respeitável a um público leigo e que não tem acesso à cultura, aos estudos e à
fruição erudita da arte.
Cada evento televisivo constitui um enunciado diferente, segundo semioticistas, pois
dependem da intencionalidade, da economia, de diferentes campos de acontecimentos e de
segmentos de telespectadores, apesar de a TV ter em comum a imagem e o som,
constituídos eletronicamente, inclusive a transmissão. A produção desses enunciados
necessita de diferentes modos de trabalhar a matéria televisual. Esses modos de trabalhar
são chamados de gêneros por M. Bakhtin (1981). Para ele, o gênero é o que garante a
comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades
futuras, pois organiza idéias, meios e recursos expressivos bem definidos numa cultura.
58
Os gêneros televisuais são muitos, e a microssérie Hoje é Dia de Maria tem sua forma
fundada no diálogo e oferece um amplo leque de possibilidades aos realizadores,
demandando diferentes modalidades de recepção.
A TV é herdeira direta do rádio, por isso se funda, primordialmente, no discurso oral.
Apesar de falar-se muito em “civilização das imagens”, a partir da segunda metade do
século XX ela ainda é um meio bem pouco visual. Ultimamente os recursos gráficos
computadorizados são mais utilizados, mas a maioria dos programas utiliza-se de uma
talking head (cabeça falante) como suporte para a fala de algum protagonista além de que
é uma forma mais barata e que oferece menos problemas para a transmissão e para a
produção, podendo apresentar-se em diferentes formas de diálogo.
Segundo Bakhtin (1981), o diálogo surgiu na Grécia antiga com Sócrates, para quem o
diálogo é o alicerce da verdade. “A verdade não nasce, nem se encontra na cabeça de um
único homem; ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de sua
comunicação dialógica”. (BAKHTIN, 1981, p.94) O processo dialógico apresenta
procedimentos variados, como a síncrese, que é a confrontação de dois ou mais pontos de
vista sobre um mesmo assunto, e a anácrese, que é o método de provocar a palavra do
interlocutor, forçando-o a colocar-se e externar a própria opinião.
Há diferentes formas de narrativas, a seriada surgiu nas formas epistolares de literatura
e nas míticas. Mais tarde, com o folhetim e também com o radiodrama (ou radionovela)
firmou-se uma narrativa fragmentada em capítulos e que despertou grande adesão por um
público cada vez maior, sem acesso a bens culturais por questões econômicas e regionais.
A primeira versão audiovisual foi com os seriados do cinema, que configurou-se como
modelo básico da serialização audiovisual para a televisão.
Diferentemente do cinema, a recepção da TV não assume uma forma linear,
progressiva, com efeitos de continuidade, pois o espaço de recepção da TV leva o
espectador a desviar a atenção com muita freqüência da tela, o que é comum em espaços
domésticos, fazendo com que o espectador perca o fio da meada. Por esse motivo, as
programações da TV são recorrentes, circulares, reiteram idéias e sensações a cada novo
plano, usam a técnica da “collage”. O intervalo comercial, o “break”, além de existir por
razões econômicas, tem o papel de explorar os “ganchos de tensão” para absorver a
dispersão e provocar o suspense – técnica do folhetim -; tanto o corte como o suspense
abrem brechas para a participação do espectador, convidando-o a prever o posterior
desenvolvimento do entrecho.
59
Segundo Lorenzo Vilches (Apud MACHADO, 2001), cada novo episódio na serialização,
repete elementos já conhecidos e que fazem parte do repertório do receptor, e ao mesmo
tempo introduz algumas variantes ou até mesmo elementos novos.
A repetição é vista, segundo Kivy (Apud MACHADO, 2001), em seu livro The Fine
Arts of Repetition, como uma forma íntima que utiliza a música e a repetição dos temas
ligados às personagens, configurando-se como a técnica de repetição de padrões
geométricos na arte da tapeçaria. Para Iuri Lotman (1978), a repetição no verso poético
(fonológica, rítmica) é um recurso de produção de sentido. Já para Umberto Eco (1979,
p.286) “[...] a graça, a ternura ou o riso nascem somente da repetição, infinitamente
cambiante, dos esquemas, nascem da fidelidade à inspiração básica e requerem do leitor
um ato contínuo e fiel de simpatia”. Entre tantas definições do uso da repetição, Osmar
Calabrese (Apud MACHADO, 2001) afirma que a produção seriada é uma espécie de
“estética da repetição”, baseando-se na forma dinâmica que brota da relação entre os
elementos invariantes e os variáveis. Essa “estética da repetição” agrupa-se em três
categorias: as que são fundadas nas variações em torno de um eixo temático; as baseadas
na metamorfose dos elementos narrativos e as estruturadas na forma de um
entrelaçamento de situações diversas. (Apud MACHADO, 2001, p. 90)
Em cada episódio das narrativas seriadas é extraído o maior número de jogos entre as
variantes e invariantes em torno do tema central, ao longo do processo de repetições,
quase como se fossem encenações diferentes da mesma história.
Os papéis que personificam o bem e o mal, no plano temático, também vão sofrendo
contínua redefinição ao longo do seriado. A metamorfose que ocorre nessa personificação
modifica ou ameaça modificar o rumo posterior dos acontecimentos, a memória dos
episódios anteriores ou a própria unidade temática e estilística da série. Há uma estrutura
fortemente repetitiva, de um lado, mas de outro, a falta de estabilidade garante a
variabilidade infinita das combinações iconográficas, temáticas e narrativas.
O entrelaçamento de um grande número de situações paralelas ou divergentes resulta
numa complexa trama de acontecimentos não necessariamente integrados. A produção dá-
se ao mesmo tempo em que a recepção, ou com uma pequena diferença de tempo – que
permite incorporar ao programa os acidentes do acaso e as demandas da audiência, através
da expansão, enxugamento ou supressão das tramas paralelas.
Os processos de fragmentação e embaralhamento da narrativa proporcionam a riqueza
da serialização televisual, pois é uma busca de modelos de organização mais complexos,
menos previsíveis e mais abertos ao papel ordenador do acaso.
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Em Hoje é Dia de Maria percebemos uma narrativa seriada teleológica, pois apresenta várias
narrativas entrelaçadas e paralelas que se sucedem mais ou menos linearmente ao longo dos
capítulos. Resume-se num único conflito, estabelece um desequilíbrio estrutural no início e
evolui tentando restabelecer o equilíbrio perdido que só é atingido nos capítulos finais. A
menina perde a mãe e para livrar-se do assédio do pai, provocado pela bebida, incentiva-o a
casar-se, pensando que isso resolveria seus problemas. Porém, engana-se. Com os maus tratos
da madrasta decide sair de casa em busca das franjas do mar. Enfrenta com amor e inocência
as dificuldades do sertão, a fúria e as tentações do demônio. Nunca desiste do seu sonho, não
perde a esperança.
Essa diversidade é um processo dialógico de um gênero televisivo com as crenças populares e
será mostrada no próximo item.
2.3 - A linguagem regional – identificação do receptor
As narrativas são freqüentes no dia-a-dia e têm grande importância na vida humana.
Integram um universo de palavras e de outros símbolos e deles se valem para atuar sobre
os indivíduos. O homem recorre à narração como forma de traduzir impressões e
sentimentos, de registrar acontecimentos banais ou de grande impacto, de formalizar ritos
sagrados ou profanos. Os relatos se caracterizam pelo verídico e têm finalidade utilitarista.
Há outros que se distinguem por serem ficcionais e por traduzirem a compreensão que a
humanidade tem a respeito do mundo e de si mesma. Nesse grupo se incluem as narrativas
provenientes da oralidade e as produzidas pela tradição literária, cujas semelhanças não
apagam as diferenças que existem entre elas. As fábulas, lendas, casos de assombração
trazem, em sua origem, a espontaneidade e anonimato próprio de produções coletivas; as
narrativas estéticas – romances, novelas, contos – sublinham a artificialidade de sua
produção e apontam para a existência de um sistema que agrega as obras literárias.
A escrita de narrativas literárias (BENJAMIN, 1993) resulta de um ato deliberado do
escritor que demonstra sua preocupação com o emprego da linguagem, com a estrutura do
texto, com a receptividade de sua produção. O escritor, ao fazer suas escolhas, reafirma ou
contesta convenções literárias e depende para sua divulgação e publicação, além do
produtor do texto, editores e distribuidores de livros, críticos literários e promotores da
leitura, entre os quais estão os professores.
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Ao comparar as narrativas orais com as literárias, a complexidade destas são ressaltadas, mas
não diminui a importância daquelas. Ambas as modalidades integram a cultura de um povo,
de um país ou de uma região e têm a função de evidenciar, criticar e renovar comportamentos
sociais ou individuais. Assim, podem ser um eficaz instrumento de leitura do outro e do
mundo, sobretudo pela sedução que exercem sobre ouvintes e leitores.
A estrutura narrativa da microssérie baseia-se na tradição oral e os personagens apresentam
uma dicção que parece ser a soma de todos os regionalismos nacionais. Apresenta um
trabalho que é um verdadeiro desafio, a linguagem e a identificação do personagem e do
receptor está na fala, nos gestos, na expressão corporal e comportamental, que extrapola
qualquer possibilidade de estereotipação e proporciona a interação com o espectador. Esse
espírito inovador que valoriza a cultura popular brasileira e sua diversidade é exercício pleno
da função social da televisão.
2.4 - Os desafios
O desafio, de origem medieval, é uma tradição folclórica, também conhecido como
“repente”, é uma mescla entre poesia e música na qual o improviso é predominante – a
criação de versos “de repente”. Presença marcante no nordeste brasileiro, possui diversos
modelos de métrica e rima, e seu canto costuma ser acompanhado de instrumento musical.
Quando o instrumento usado é o violão, denomina-se cantoria; quando é o pandeiro, o
repente é chamado de Coco de Embolada, como é o caso em Hoje é Dia de Maria quando
esta desafia Asmodeu.
Os primeiros repentistas não tinham qualquer compromisso com a métrica e muito
menos com o número de versos para compor as estrofes, todavia o interlocutor respondia
rimando a última palavra do seu verso com a última do parceiro.
O repente deu origem à literatura de cordel no Brasil (LUYTEN, 2005), o que não
ocorreu de forma harmoniosa, pois a oralidade, precursora da escrita, buscou de maneira
penosa uma forma estrutural. Atualmente a literatura de cordel é escrita em composições
que vão desde os versos de quatro ou cinco sílabas ao grande alexandrino, de 12 sílabas.
Até mesmo os princípios conservadores defendidos pelos nossos autores ortodoxos
referem-se a uma tradição brasileira e não portuguesa ou espanhola. Os textos dos autores
contemporâneos apresentam um cuidado especial com a uniformização ortográfica, com o
62
primor das rimas, com a beleza rítmica e com a preciosidade sonora. Era o início de uma
literatura tipicamente nordestina e por extensão, brasileira, não havendo mais, nos nossos
dias, qualquer vestígio da herança peninsular.
Quanto ao número de versos e sílabas que os desafios apresentam, isto pode ser
verificado no Anexo 3.
Na microssérie Hoje é Dia de Maria a pequena enfrenta Asmodeu, este sugere que ela
o desafie depois que respondesse suas três perguntas, que são as adivinhas: têm conteúdo
dúbio e desafiador, também chamado de “O que é, o que é?”
Asmodeu:Uma casa tem quatro cantos, cada canto tem um gato; cada gato vê três gatos.Quantos gatos tem na casa?
Maria:Quatro!
Asmodeu:Onde é o centro do mundo?
Maria:É aqui mesmo onde a gente tá. Das dereita tem metade do mundo, das esquerda temoutra metade.
Asmodeu:Quantos dias se passaram desde Adão até hoje?
Maria:Sete dias! Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo!
Em seguida é a vez de Maria, que cantará um desafio, baseado em trecho da peleja de
Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Mutum. Zé Cangaia, que é justamente o motivo que levou
Maria a desafiar Asmodeu, toca um pandeiro. A esse desafio dá-se o nome de Coco de
Embolada, Embolada ou ainda Coco; surgida no nordeste brasileiro, é uma arte especialmente
popular. Consiste em uma dupla de cantadores que, ao som enérgico e batucante do pandeiro,
montam versos bastante metrificados, rápidos e improvisados, onde um tenta denegrir a
imagem do que lhe faz dupla com versos ofensivos, famosos pelos palavrões e insultos
utilizados. O ofendido deve improvisar uma resposta rápida e ao mesmo tempo bem bolada.
Caso não consiga, seu par é coroado triunfantemente. Não deve ser confundido com o repente,
onde a música e a resposta são lentas, melodiosas e o tema principal é a vida cotidiana.
Maria, usando a sextilha, começa o desafio. Asmodeu responde aos versos usando
quatro versos de sete sílabas:
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Maria:Seu demo nunca encontreiQuem desmanchasse esse enredoÉ quadra que mete medoEssa que eu vou cantá.Quem a paca cara compraCara a paca pagará.
Asmodeu:Menina, tô apertadoQue só um pinto num ovoMenina, a história da pacaPode repetir de novo?
Maria:Digo uma e digo dezNo falar eu tenho pompaPresentemente num achoA quem meu martelo rompaCara a paca pagaráQuem a paca cara compra.
AsmodeuEita, hoje num é meu dia,Nem meu ano, nem meu mêsMenina, se faiz favorRepete a paca outra vez!
(Zé Cangaia começa a tocar mais rápido. Maria apressa o ritmo.)
MariaArre, que tanto pedidoDesse demo capivaraNum tem quem cuspa pra cimaQue não lhe caia na cara...Quem a paca cara compraPagará a paca cara...
AsmodeuMenina, agora aprendiCantarei a paca jáOcê pra mim é passarinhoNo bico de um carcará...Quem a paca... capa... pacaPapa... pa... ca... pacará
Percebe-se que Maria usa um trava-línguas em seu desafio. Os trava-línguas fazem
parte das manifestações orais da cultura popular, são elementos do nosso folclore. Trava-
línguas é um conjunto de palavras formando uma sentença que seja de difícil articulação em
virtude da existência de sons que exijam movimentos seguidos da língua que não são
freqüentemente utilizados. Além de aperfeiçoadores da pronúncia, servem para divertir e
provocar disputa entre amigos. São embaraçosos, provocam risos e caçoadas.
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Maria faz a inversão dos versos a cada vez que repete os versos para Asmodeu,
dificultando cada vez mais a articulação devido à semelhança sonora produzida pela
combinação das palavras:
Quem a paca cara compraCara a paca pagará
Cara a paca pagaráQuem a paca cara compra
Quem a paca cara compraPagará a paca cara
A jornada de Maria, carregada de cultura popular, ainda lhe reserva outros momentos
com desafios. Como, por exemplo, ao encontrar-se com os saltimbancos é notada e desafiada
por Quirino; novamente o improviso toma conta da cena, agora com a sanfona de Rosa como
instrumento musical:
Quirino:Maria! Eu sô rapaz direito, de bom preceito, que nunca tira proveito...
Maria:Ocê é sujeito mal feito, muito desfeito e mal satisfeito!
Quirino:É esse o meu conceito?
Maria:É, não!Ocê é cabra sem jeitoUm cinturão sem fivelaUma casa sem ter genteUma porta sem tramelaUm sapato sem ter donoUm anzol sem ter barbela
As Décimas – dez versos de sete sílabas, presentes também na microssérie, são usados
por Maria e Quirino, requerem longo fôlego deles, é uma das modalidades mais usadas pelos
poetas de bancada e pelos repentistas.
Quirino:Uma casa gotejentaDuas menina chorandoTrês criada acalentandoQuatro mulher ciumentaCinco molho de pimentaSeis relho de couro cru
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Sete praga de urubuOito xale de parteiraNove velha cozinheiraDez cantora como tu.
Maria:Dez cantador como tuNove velha cozinheiraOito xale de parteiraSete praga de urubuSeis relho de couro cruCinco molho de pimentaQuatro mulher ciumentaTrês criada acalentandoDuas menina chorandoUma casa gotejenta
Rosa, além de tocar, é chamada por Quirino para participar do improviso junto dele e
de Maria. Elas cantam e dançam. A música e a dança são alegres, com um leve duplo sentido.
Quirino:Essa roseira o que é que dá?Ô, Rosa!
Rosa:Dá laranja e manacá,Gabiroba e limão,Dá goiaba e dá mamão,Mas a Rosa ela não dá!
Quirino:Ô, Rosa!Assim ocê qué me matá!Ô, Rosa!Essa roseira o que é que dá?
Maria:E dá caju e dá cajáDá folha, talo, espinhoEla dá até carinhoMas a rosa ela não dá.
Sob o som da sanfona tocada por Rosa, Quirino e Maria declamam:
Quirino:Recolhei agora vosso risoPurque no caminho do paraísoA emoção também já foi prantada.Das veis, tristeza tá no rumo da alegriaE a dor do dia-a-diaEnsina o prazer de conquistáA coisa amada.
Maria:A minha história num tem nada diferente.É igual a tanta genteQue é nascida nesta terra.
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Gente da roça, com coragem pro trabaio.Na vida num tem ataioNem descanso nessa guerra.
Inda menina,Perdi minha mãe querida.Foi-se embora dessa vida.No coração fez ataio fundoE num rompante se desfezToda famia.Cada vez um irmão partia,Triste me larguei no mundo.
Mai num perdi nunca uma esperança nobreQue é o alimento do pobreQuando tudo lhe falta.Trago na alma verdade que num esqueço:Num importa o mau começoSe o final posso mudá!
E assim fui caminhando pelos anos,No mundo peregrinando,Buscando as franjas do mar,Mai ante disso curo o coração ferido.Reencontro o amor perdidoE meu pai hei de encontrá.Purque o que vale tanta luta sem amô...Tanta terra sem uma frô...No sertão desabrochá...Eu num seui bem qualé a grandeza do universo...Mai num hai palavra ou verso...Que é maior que... o verbo... amar.
Todos os povos possuem suas tradições que são transmitidas pela oralidade e pela
imitação de geração em geração. A essa cultura de origem popular dá-se o nome de folclore,
que significa saber tradicional popular, com status de história não escrita de um povo. À
medida que a ciência e a tecnologia se desenvolveram, todas essas tradições passaram a ser
consideradas frutos da ignorância popular; entretanto, o estudo do folclore é fundamental de
modo a caracterizar a formação cultural de um povo e seu passado, além de detectar a cultura
popular vigente, pois o fato folclórico é influenciado por sua época. As características de
tradicionalidade, oralidade e anonimato podem não ser encontradas em todos os fatos
folclóricos (MELO, 2001) como no caso da literatura de cordel, apesar de ser originariamente
oral, o autor é identificado e a sua transmissão deixou de ser somente oral. Hoje é Dia de
Maria apresenta a caracterização da cultura popular de modo a nos fazer pensar e valorizar
essa cultura pela sua espontaneidade e criatividade.
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2.5- Crenças populares (ditados e provérbios)
Os provérbios e os ditados populares constituem uma parte importante de cada cultura,
são expressões que através dos anos se mantêm imutáveis aplicando exemplos morais,
filosóficos e religiosos. Em Hoje é Dia de Maria os provérbios, ditados e crenças
populares são integrados aos diálogos e explicam, muitas vezes, o desenvolvimento da
ação dramática com caráter prático e popular, expressando de forma sucinta uma idéia, um
pensamento e um ensinamento. Ninguém sabe quem os escreveu. De uma forma geral os
provérbios mais longos e complexos têm origem em passagens históricas ou literárias,
procedem de pensadores consagrados ou de poemas famosos, e são eruditos. Já os mais
curtos e simples, são muitas vezes de origem desconhecida, de tradição oral, são os
provérbios populares.
A definição de provérbio que encontramos nos dicionários o apresenta como uma frase
curta, de origem popular que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou uma regra social
ou moral; ditado popular; sentença moral; máxima expressa em poucas palavras; anexins,
rifão etc. São definições que nos conduzem a algumas verdades: a moral, por exemplo, é um
conjunto de valores como a honestidade, a bondade, a virtude, considerados universalmente
como norteadores das relações sociais de conduta dos homens. Os provérbios são, em geral,
moralizantes. O ditado popular: ditado é uma verdade de valor geral, que unido à palavra
popular, tem-se como a verdade do povo, a voz do povo; máximas são regras ou princípios
morais. Devido ao caráter popular dos provérbios, estes são considerados a “voz do povo”, a
“voz da verdade”, o qual se pode comprovar com um provérbio bastante comum: “A voz do
povo é a voz de Deus”. A origem dos provérbios se fixa na sabedoria popular e por isso fazem
parte do folclore cultural de cada povo. Os provérbios não possuem data nem autor. Suas
manifestações vêm de geração a geração concretizando-se do passado ao presente. São formas
cristalizadas pela comunidade, conhecidos por uma coletividade e, não podem ser abreviados,
nem reformulados; além do provérbio, como uma máxima, há a figura de Deus como
autoridade, que denota valores de verdade, expressando a voz do povo, manifestando a
sabedoria popular num determinado meio social.
Os enunciados proverbiais constituem um tipo de gênero discursivo, formado, em sua
maioria, por estruturas curtas e binárias, o que facilita a memorização, pois possuem, além da
estabilidade temporal, rimas, figuras de linguagem e simetria sintático-semântica. Para que o
provérbio não perca sua verdade absoluta e seu caráter de citação de autoridade, é preciso ser
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reconhecido e compartilhado por seus interlocutores, que devem ser capazes de desvendar os
implícitos para revelar seu sentido. Destarte para que os provérbios sejam entendidos como
tais é preciso que haja uma competência discursivo-pragmática, inclusive naqueles que
possuem operadores argumentativos, uma vez que, assim como os provérbios, uma verdade é
institucionalizada num lugar comum.
Para exemplificar, cito algumas passagens da microssérie.
Quando Maria tenta convencer o Pai a casar-se com a vizinha viúva diz:
Maria:Ah, mó de que ela é boazinha a conta inteira. Puis se inté me deu mel pra cume!Pai:Pui a tarzinha agora lê dá mel? Pui ao despois há de te dar fel...
No momento do casamento do Pai:
Molecada:Sol e chuva, casamento de viúva!
Quando Nossa Senhora aparece no ribeirão para dar forças à Maria:
Senhora:Porque das veiz bondade tem de sê fortaleza, tem de tê gana de lutá pra numfenecê! O que há de ser tem muita força, Maria. Arreda a tristeza que seu dia há dechegar.
A madrasta chamando a atenção de Maria ao vê-la descansando e brincando com uma
bonequinha depois dos afazeres:
Madrasta:Ocê precisa de coro como eu preciso de oro! (...)Larga essa porqueira e vem comigo. Ócio é pai do vício e trabaio é benefício!
O Pai tenta agredir a madrasta quando percebe que ela fora a causa do desaparecimento de
Maria. Ao levantar a mão ela diz:
Madrasta:Sua alma é sua palma! Encosta um tico de dedo n’eu e ocê vai vê onça!
Maria vai embora de casa em busca das franjas do mar, no caminho encontra o Maltrapilho,
ajuda-o e ele faz uma recomendação:
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Maltrapilho:E ocê tome tento, menina, que esse é um mundo que ta pra ser feito e, no fundo detudo, um defeito é degrau importante na escada do perfeito. Torto, pobre oumalfeito, todo vivente pode andar reto, porque humano não é ruim nem bom,humano é ser incompleto.
O Pai decide seguir em busca de Maria, a Madrasta vocifera:
Madrasta:Vorta pra trás, já! Reboco de igreja veia! Sapé pobre de tapera! Pau torto que deucupim! Vorta! Vorta! e vorta!
No País de Sol a Pino, Maria encontra o Mendigo e dialogam:
Mendigo:Tô aqui desde que o mundo é mundo. Você é que não percebeu. Tenho sede.Maria:Cada um é que sabe da sua sede.Mendigo:É verdade. E quem decide quem tem mais sede é quem tem a água.(...)Vou lhe dar coisa mais preciosa que a água. Vou lhe dar o rumo: segue o sol e sol esol até encontrar os índios... É eles que têm a noite!
Ao chegar ao povoado Maria tenta impedir Asmodeu de ludibriar Zé Cangaia para conseguir
sua sombra:
Asmodeu:Menina que num fecha o bico num casa com rico!Maria:Fecha o bico já morreu! Quem manda no que digo sou eu!(...)Me arrespeite primeiro, comprador de sombra, varapau de galinheiro!(...)Entonce tira o seu pé de bode de riba da minha (sombra)!
Ainda no povoado, Maria tenta convencer Zé Cangaia a desfazer o trato com Asmodeu:
Maria: Eu vô lá querê pão que o diabo amasso?(...)Quando a cabeça num pensa, o corpo padece. Ocê vai vê!
Depois de conseguir a sombra de Zé Cangaia, despedem-se e Maria continua sua jornada:
Zé Cangaia (sobre a amizade):
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Ó, menina, e foi das mio! Daqueles que já num tem muito uso hoje em dia... Épedra que num tem muito uso hoje em dia... É pedra que n um gasta... e é tomemdelicado de flor... Amizade nossa palavra é que não sei dizê... Sei sentir só. (...)
Asmodeu que observa a cena diz pra si:
Asmodeu:Vai cantando, vai... Proveita o curto tempo que é seu! O lote de tempo mais longovai ser é meu! Purque eu sou aquele que entorta os caminho, que amarga as águanos pote, que azeda o vinho e que pranta a mágoa no fundo do coração humano!Proveita seus ano de menina, e essa alegria boba de vida. Proveita purque suainfância já tem dono e num demora desaparecer! Despois vai sê só ocê, eu e omundo! Ai de ocê, que cruzô os meu caminho!
Asmodeu tenta novamente enganar Maria, esta percebe e se afasta dele. Ele não desiste, e vai
até o Pai:
Asmodeu:Se ocê é vivaiz e com esperteza não lê pego, vou batê prego onde a madeira racha:seu pai! Primeiro lê deixo só no mundo, despois ocê num se sustenta!Pai:Dia! Assim tenho vivido: precurando remanso, corro estrada e vereda semdescanso. E o seor? Por que anda sozinho?Asmodeu:Vinho que tenho bebido é amargo! Eu me largo por esses caminhos, por circos efeira, fazendo truque e magia. Sem eira nem beira vivo meus dia!Pai:Entonce, senta a meu lado, amigo, que esperança também é abrigo. O que morrerenasce: isso é preceito certo. Óia e vê: esse córgo que agora corre já foi deserto.
A Madrasta alia-se a Asmodeu para conseguir a tal “chavinha do tesouro”, negocia
informações com ele:
Madrasta:Ocê mais um baita bolo de dinhero, que boniteza é bom, mai cansa e num enchepança!
Quirino apaixona-se por Maria, porém esta não pode correspondê-lo por já ter dono o
seu coração. Asmodeu aproveita-se da tristeza de Quirino e tenta influenciá-lo:
Asmodeu:... insista na disputa! Veja, palhaço, o que a vida ensina: vence na guerra quemmelhor peleja, vence no amor quem melhor domina.
Amado e Maria conversam e ela está com maus presságios.
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Amado:Não deixa o coração com seus presságios te prenunciar alguma coisa ruim, porqueo destino pode te escutar e realizar o teu temor assim. Quem mantém vivo o seuamor nunca terá o tormento de partir.
Rosa vê o futuro de Maria na borra de café e fala sobre alegria e tristeza na vida de Maria:
Maria:Na minha vida, o mal e o bem parece coisa que é unha e carne.
Depois que Quirino prende Amado, durante a apresentação da trupe, ele e Maria declamam:
Quirino:Recolhei agora vosso riso purque no caminho do paraíso a emoção também já foiprantada. Das veiz, tristeza tá no rumo da alegria e a dor do dia-a-dia ensina oprazer de conquistá a coisa amada.(...)Maria:Mai num perdi nunca uma esperança nobre que é o alimento do pobre quando tudolhe falta. Trago na alma verdade que num esqueço: num importa o mau começo seo final posso mudá!
Durante a apresentação o Pai reconhece a filha, pede-lhe perdão, Maria, emocionada, em
lágrimas:
Maria:Razão num tenho, motivo argum. Amor meu, pai, é empenho de apagá erro,dissorvê mágoa. Amor é água pura que lava.
Asmodeu insiste para que Quirino aceite sua ajuda para ter o amor de Maria:
Asmodeu:Pra se consegui um amor sem tamanho num se fica medindo os meio. Num se temcoisa grande com corage pequena, rapaiz. Vai, Quirino! Atiça a vontade que jácomeçô morá dentro de ocê! Vai, cumpre e ta feito!
Quirino confessa o feito a Maria e pede-lhe perdão. Maria decide ir embora à procura de
Amado:
Maria:Depois do fim tem sempre mais caminhá! E amizade é riqueza que num se perde.
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Asmodeu faz o tempo retornar, Maria volta a ser criança e ao fazer o caminho de volta
encontra o Mascate e Maria escolhe um de seus produtos:
Mascate: Escoieu bem! O que está encoberto é mistério, e o mistério tem sempremaior valor.
Maria reencontra o maltrapilho na estrada de Sol a Pino e fala pra ele de sua tristeza
em não chegar às franjas do mar e que estava voltando pra sua vida de antes:
Maltrapilho:Se o sór nasce toda manhã num qué dizê que ele traz sempre o mesmo dia! E se ocêvorta pelos caminhos já trilhado ocê vorta diferente. E nem os caminhos num sãomais os mesmo. Arrepare bem.
Sentada à beira de um rio Maria vê a imagem da Nossa Senhora da Conceição e faz
suas lamentações sobre seu caminho de volta:
Senhora:Menina, na vida tem duas época boa, época de oro! A primeira ta lá nos começo davida e a gente recebe de graça. A segunda a gente tem de buscá, tem de fazê...
Maria segue o caminho olhando e reconhecendo a paisagem, enquanto Asmodeu segue
as pegadas de Maria:
Asmodeu:Custo, mai lê dobrei! Demorô, mai venci. Vorta pra quela vidinha, vorta pra quelecachaceiro que é seu pai. Vorta pra sua madrasta e aprende na pele que quemnasceu pra roê sabugo nunca há de prová broa de mio!
Asmodeu percebe que fez o tempo voltar demais, pois Maria reencontra toda sua família:
Asmodeu:Diacho! Ô, réiva! Será que meti os pé pelas mão! Nas gana de impedi a união como amado dela, devorvi a infância de Maria in ante da mãe morrê! Mai deixe’stá! Vôfazê tudo de novo. E dessa vez num erro!
Além do grande número de ditados e provérbios com presença marcante e muito bem
colocados nas situações da microssérie, o autor explora a oralidade acentuada no povo que
representa. Numa dosagem espetacular apresenta ainda danças e músicas populares, as quais
serão tratadas a seguir.
73
2.6- Danças e músicas populares
O espaço liga-se à realização musical, que dialoga com o seu entorno ganhando um
sentido de tridimensionalidade. Assim o sistema Kinésico, que é o conjunto dos elementos
motores invocados pelo intérprete durante a performance, proporciona a relação
audiovisual que acompanha toda a interpretação musical.
O espaço e os gestos adquirem papéis significativos na interpretação musical. O palhaço é um
bom exemplo de estereopercepção. Exprime o trágico da condição do artista popular, que
deve transformar a sua própria humilhação em motivo de riso da platéia o que é possível pela
fusão intersemiótica dos elementos plásticos e sonoros, da montagem dos cenários e do uso de
objetos com alta carga semântica e mítica: como por exemplo a caracterização de Dom Chico
Chicote na segunda jornada e os espaços em que aparece.
A série foi baseada no trabalho de Câmara Cascudo, Heitor Villa-Lobos e Portinari.
Luís da Câmara Cascudo foi o maior folclorista deste País, além de historiador, antropólogo e
jornalista dos mais eminentes. Apesar de sua infância ter sido de guardada entre cuidados
exagerados, o contato durante a juventude com os modernistas abriu-lhe os olhos e os ouvidos
para o homem comum nas suas crenças e costumes, seus cantos e suas danças, suas músicas e
suas técnicas, sua vida e sua morte, passou a ser uma legenda no estudo do saber do povo.
Heitor Villa-Lobos é um dos artistas brasileiros mais conhecidos no mundo, um compositor
erudito que bebeu em fontes populares para criar uma obra universal; sua trajetória musical se
confunde com a história musical do Brasil; sua vida representa a mistura de todas as culturas
brasileiras, graças às viagens com a família, que o colocou em contato com o folclore musical
brasileiro, universalizado em suas obras. Cândido Portinari foi o pintor brasileiro a alcançar
maior projeção internacional. Manifestou sua vocação artística desde criança, e a opção pela
temática social foi o fio condutor de sua obra, que retrata o povo brasileiro, a aldeia, as
brincadeiras de menino, as plantações de café, o sofrimento provocado pela natureza, as
conseqüências trazidas aos camponeses devido às grandes secas no Nordeste. Suas pinturas
têm caráter expressionista e figurativista. Destacou-se também nas áreas de poesia e política.
Baseando-se no trabalho desses grandes nomes, a série utilizou como avanço a linguagem
televisiva. Esse avanço não significou a perda de brasilidade, usou intervenções musicais,
cantadas em solo, duetos e em coros. Foi uma narração diferente, sem deixar de lado a noção
74
de fabulação e de espetáculo. Ver a microssérie passou a idéia de um folhear de livros da
carochinha e o texto cantado assume a função de contar a história. Rescala compôs a música
com base nas tradições das cantigas e cirandas do cancioneiro popular brasileiro e o que
contou na obra não foi o virtuosismo vocal dos intérpretes, foi a narrativa através da música,
que torna a saga de Maria mais cativante. A prática social de contar nas sociedades do século
XXI (LOPES, 2004), no que concerne aos atos de comunicação, é produto de uma
transformação que envolve agentes propulsores de recriação das práticas realizadas desde as
origens da arte de contar. A linguagem exerce uma ação, tanto na produção científica e
técnica como na produção artística, e o produtor tem suas amarras nos condicionamentos da
sociedade em que vive.
A cantoria é uma tradição oral que nos veio, primordialmente, da Idade Média
européia. Desde a época das cruzadas, tivemos os trovadores, menestréis e jograis que iam
de uma localidade a outra, cantando seus longos poemas, os quais eram de amor, de fatos
passados ou recentes, que relatavam a história dos povos na época de formação da
nacionalidade. A cantoria da microssérie é exatamente isso, mostra ainda que os
cantadores sempre foram os comunicadores ideais do povo, pois além da mobilidade e
conhecimento da arte de versejar, têm prestígio e credibilidade no meio popular. É uma
aproximação cada vez mais perceptível entre os meios de comunicação de massa. Há um
interesse crescente em divulgar as coisas relacionadas com o povo, e nota-se uma maneira
natural de interação. Sem dúvida, os grandes folcloristas do passado tiveram um imenso
valor e contribuíram muito para a divulgação das coisas inerentes ao povo brasileiro, mas
a televisão tem o poder de divulgar a uma audiência extremamente ampla, a memória
cultural de nosso povo.
Essa memória cultural é muito bem representada no trabalho desenvolvido por Heitor
Villa-Lobos, foi somente com ele que a música nacionalista introduziu-se e consolidou-se
pra valer. A música erudita, no Brasil dos primeiros séculos de colonização portuguesa,
vinculava-se à Igreja e à catequese, teve um grande impulso com a chegada de D. João VI
ao Brasil, quando José Maurício Nunes Garcia destacou-se como o primeiro e grande
compositor brasileiro. Mesmo com as salas de concerto e manuscritos apontando o
crescimento das atividades musicais, ainda no século XIX, falar em música erudita
brasileira era motivo de riso. Nessa época, ignoravam-se compositores como Alberto
Nepomuceno e Brasílio Itiberê da Cunha, pela brasilidade presente em suas composições,
e admitia-se Carlos Gomes graças ao sucesso europeu. É a partir de Villa-Lobos que o
Brasil descobre a música erudita e o país passa, desde então, a produzir talentos em série:
75
Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Radamés Gnatalli, Camargo Guarnieri, Guerra-
Peixe, Cláudio Santoro e Edino Krieger são alguns desses expoentes.
Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), carioca, foi incentivado a cursar medicina, mas a
música, o empecilho para os planos de sua mãe, esteve sempre presente em sua vida desde
a infância. Seu contato com a música nordestina se deu quando, durante a infância,
acompanhava seu pai à casa de Alberto Brandão e presenciou várias reuniões de
cantadores e seresteiros. Foi inevitável seu fascínio pela arte popular; apesar da proibição
dos pais, Heitor fez seus estudos às escondidas. Com a morte do pai e a difícil situação
financeira que a família tivera que enfrentar, Villa-Lobos acabou conquistando grande
liberdade, aproximou-se dos chorões e pagava-os com doses de pinga, que eram pagas
com a venda de exemplares da biblioteca do falecido Raul Villa-Lobos. A partir daí fez
grandes amizades importantes para sua carreira musical. Dos 18 aos 23 anos, viajou pelo
Brasil apresentando-se como músico e teve um contato intenso com o folclore brasileiro.
Ao retornar ao Rio de Janeiro avoluma suas composições sob a influência folclórica e
sertaneja. Foi um dos mais importantes participantes e atuantes da Semana da Arte
Moderna de 1922. O teatro Municipal de São Paulo foi o primeiro palco erudito a receber
as obras de Villa-Lobos. Vai para a Europa, mostra seu trabalho e em 1930, regressa ao
Brasil com maturidade e com consciência de seu valor; fez uma turnê pelo país
percorrendo 66 cidades, organizou a Cruzada do Canto Orfeônico no Rio e teve
importante atividade como educador e divulgador musical. Quando Secretário da
Educação Musical, no governo de Getúlio Vargas, tornou obrigatório o ensino de música
nas escolas.
A microssérie começa apresentando a pequena Maria brincando de balanço feito em
uma árvore, rindo, e bailando ao som da cantiga do grandioso Villa-Lobos - Que lindos
olhos. É interrompida ao ser chamada pelo Pai. Inicia-se a história. A partir daí temos um
desfile de cultura popular musical.
Que lindos olhosQue lindos olhos
Tem você
Que ainda hojeQue ainda hoje
Eu reparei
Se eu reparasseSe eu reparasse
76
Há mais tempo
Eu não amavaEu não amavaA quem amei!
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O cortejo do casamento da Madrasta com o pai de Maria é realizado pelo grupo Reisado Flor
do Oriente, de Duque de Caxias, Baixada Fluminense. É um grupo tradicional que faz parte
da Folia de Reis, uma das manifestações folclóricas mais ricas e mais apreciadas em
diferentes estados brasileiros, como em Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Paraná, Espírito
Santo, Guanabara, Rio de Janeiro, e principalmente, no Nordeste. O Reisado tem sua origem
primária na Festa do Sol Invencível, comemorada pelos romanos e depois adotada pelos
egípcios. A festa romana era comemorada em 25 de dezembro (calendário gregoriano) e a
egípcia em 6 de janeiro. No século III, ficou estabelecido que dia 25 de dezembro fosse
festejado o nascimento de Cristo e 6 de janeiro o dia de reis. No Brasil, foi introduzido no
Brasil - Colônia pelos portugueses no século XIX. É um espetáculo popular das festas de natal
e de Reis, cuja ribalta é a praça pública, a rua, às vezes, as residências. No interior é uma
dança do período natalino em comemoração ao nascimento do menino Jesus e em
homenagem aos Reis Magos: Gaspar, Melquior e Baltazar, que levaram ouro, incenso e mirra,
que representam as três dimensões de Cristo – realeza, divindade e humanidade.
O Reisado caracteriza-se pelo uso de muitos adereços, trajes com cores quentes e
chapéus ricamente enfeitados com fitas coloridas e espelhinhos. Todos acompanham uma
bandeira, estandarte da folia, um quadrado de madeira com a adoração dos Magos,
ornamentada com flores e espelhos, carregada pelo alferes. É composto de 4 a 6
mascarados que dão vida, hilaridade e rebuliço à brincadeira. Eles também devem
75
proteger o Menino Jesus e confundir os soldados de Herodes. Os acrobatas e
declamadores representam os soldados perseguidores do Menino. O Reisado tem ainda
rei, mestre-sala, alferes, a burrinha, o boi, o Jaraguá, o caipora, a ema. Dependendo da
região podem aparecer personagens diferentes. Uma orquestra de violas, banjos, violões,
zabumba, triângulo, pandeiros, maracás e sanfonas pulsam na regularidade de um
organismo, com acordes que orientam as vozes e ordenam a evolução do espetáculo. As
músicas são chamadas de toadas e têm características próprias, geralmente compostas
pelos próprios membros, às vezes chegam a ser gravadas por grandes nomes da Música
Popular Brasileira, como Milton Nascimento, que gravou "Calix Bento", Martinho da Vila
("Folia de Reis"), Mazaropi ("Tristeza do Jeca"), e Trio Parada Dura ("Viagem dos
Magos"), com o nome de Folia de Reis. As danças são numerosas e variadas, constam
alguns exemplos no Anexo 4.
Reza um costume que, no "Dia de Reis", deve-se escrever o nome dos três reis magos em um
pedaço de papel branco e colocá-lo na porta de entrada da casa, para que haja durante todo
ano, fartura, saúde e felicidade. O Dia de Reis também é conhecido como o "Dia de
Gratidão". Integra também os costumes a confecção do Bolo Rei - O bolo-rei teria surgido no
tempo de Luís XIV, o Grande, Rei Sol, rei da França de 1643 a 1715, para as festas do "Ano
Novo" e do "dia de Reis".
A história narrada nos cantos é contada por um solista e um coro responde a ele em uníssono
por repetidas vezes. Na microssérie Hoje é Dia de Maria o Mestre Tião fez versos sobre a
trama por se tratar de um evento que não comportaria as composições já existentes.
Após o casamento, a pedido da Madrasta, o Pai vai para os rumos da cidade em busca
de empréstimo bancário. Maria começa a realizar os afazeres de casa, com um regador
molha sua roseira, enquanto entoa a música de Villa-Lobos – “Rosa Amarela”.
Olha a rosa amarela, RosaTão bonita e tão bela, Rosa
Olha a rosa amarela, RosaTão bonita e tão bela, Rosa
Iá Iá meu lenço, oh Iá IáPara me enxugar, oh Iá Iá
Que essa despedida, oh Iá IáJá me faz chorar, oh Iá Iá
Iá Iá meu lenço, oh Iá IáPara me enxugar, oh Iá Iá
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Essa despedida, oh Iá IáJá me faz chorar, oh Iá Iá!
Exausta, entra na casa, pega sua bonequinha começa a cantar “Formiguinha”, também de
Villa-Lobos. Acaba por cochilar. É brutalmente despertada pela madrasta que pede-lhe que
fique tocando os pássaros para que não biquem as frutas.
Ah! Ah!Formiguinha da roça endoideceuCom a dor de cabeça que lhe deuAi pobre! Ai pobre formiguinha
põe a mão na cabeçae faz assim!e faz assim!
Ah! Ah!Formiguinha da roça endoideceuCom a dor de cabeça que lhe deuAi pobre! Ai pobre formiguinha
põe a mão na cabeçae faz assim! e faz assim!
Enquanto toca os pássaros canta “Xô, xô, passarinho”, de Villa-Lobos, porém exausta,
adormece ali mesmo. A madrasta, quando a vê dormindo, agride-a. Maria foge correndo,
mas falece. Sobre ela, nasce um capinzal.
O pai retorna da viagem, ao saber do acontecido sai desesperado e inconformado à procura da
filha. Guiado por uma borboleta e pelos seus instintos começa a ouvir a voz de Maria
entoando a canção “Xô, xô, passarinho” – Villa-Lobos. Acaba por encontrar o corpo da
pequena recoberto pelo capim.
Jardineiro do meu paiNão me corte os cabelos
Que meu pai me penteavaMinha madrasta me enterrou
Jardineiro do meu paiNão me corte os cabelosPelos figos da figueira
Que o passarinho bicou
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Maria decide sair em busca de seu “tesouro” sem se importar em enfrentar a Terra do
Sol a Pino. Enquanto caminha, seguida por um Pássaro estranho, canta “Constante”, de Villa-
Lobos.
ConstançaMeu bem constança
Constante sempre sereiConstante até a morteConstante eu morrerei
ConstançaMeu bem constança
Constante sempre sereiConstante até a morteConstante eu morrerei
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Ao aproximar-se de um rio Maria ouve a música “Sapo Jururu”, de Villa-Lobos: é um
Maltrapilho que canta e toca uma sanfoninha com os pés. Ela aproxima-se com receio, porém
participa da cantoria.
Sapo Jururu na beira do rioQuando o sapo grita: ó, Maninha
é porque tem com frioA mulher do sapo, também tá lá dentro
Fazendo rendinha, ó Maninha, pro seu casamento(última vez)
Sapo Jururu na beira do rioQuando o sapo grita: ó, Maninha
é que tá com frio!
O Pai decide sair à procura da filha, enquanto anda um tanto desconsolado, canta a
música “Chuá, chuá”, de Pedro de Sá Pereira e Ari Pavão.
--------------E --------Db7---- Gbm ------B7------- Gbm--- B7------ EDeixa a cidade formosa morena /--- Volta pro ameno e doce sertão------------Abm7----- Db7---- Gbm -----B7-------- Gbm---- B7------- EBeber a água da fonte que canta /--- Que se levanta do meio do chão
-----------------------Db7------ Gbm ------B7 --------Gbm --B7- Bm7-- E7Se tu nasceste cabocla cheirosa /----- Buscando o gozo do seio da terra
---------------A------ D------ Abm --------Db7----- Gbm---- B7------ EVolta pra vida serena da roça /----- Daquela palhoça do velho sertão
---------------------Db7 ----Gbm -----B7------- Gbm---- B7------ EA lua branca de cor prateada /---- Faz a jornada no alto dos céus
--------------Abm7------ Db7------ Gbm--- B7 ------Gbm----- B7-------- EComo se fosse uma pomba altaneira / ---Da cachoeira fazendo escarcéus-----------------------------Db7----- Gbm ----B7----- Gbm ----B7 -Bm7- E7
Quando essa lua lá na altura distante /---- Lira ofegante no poente a cair-------------------A ---------D -------Abm7 ---------Db7------ Gbm --------B7----- E
Dá-me essa trova que o pinho descerra / Que eu volto pra serra, que eu quero partir
-----------------Gbm7 --B7 ----Gbm7----- B7--------- E------------- Bm7E a fonte a cantar: chuá . . .chuá / E as águas a correr: chuá . . .chuê . . .
------E7 ----------A---------- -D ------Abm7 -------Db7 ------Gbm7 ----B7-------- EParece que alguém que cheio de mágoa / Deixasse quem há de dizer que a saudade--------
Abm7 --Gbm----- B7------ ENo meio das águas rolando também (bis)
Maria encontra-se com os Retirantes. Eles estavam cantando uma música triste – “Valei-nos”,
composição de Tim Rescala para a microssérie. A cena contou com a participação dos
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rabequeiros Mestre Salustiano e de seu filho, o percussionista Pedro Salustiano, integrando o
quadro de personagens, ambos tocam bumbo e rabeca.
Maria segue pelo caminho indicado pelo Mendigo, adormece e acorda ao ouvir um
compasso ritmado de sons produzidos por chocalhos presos aos tornozelos, bater dos pés
no chão com o passo caidinho, um som estranho de uma flauta que o primeiro da fila toca
e de gritos. São os índios. Eles se apresentaram mostrando a própria cultura.
Depois de encontrar a noite, Maria entoa “Cai, cai balão”, de Villa-Lobos, e encontra
um grupo de crianças que trabalham sem cessar numa carvoaria.
Cai cai balãoCai cai balão
Na rua do sabãoNão cai nãoNão cai nãoNão cai não
Cai aqui na minha mão
(3vezes)
Chegando ao Vilarejo, Maria acompanha a festa celebrada para São José – padroeiro
das chuvas; os personagens cantam durante uma procissão a música “Meu Divino São
José” – de domínio popular, contando com a participação da Banda Santa Cecília e
Cirandeiros de Parati.
Maria e Zé Cangaia caminham pela estrada depois de vencerem o desafio com Asmodeu, ela
canta os primeiros versos de “Constante” – Villa-Lobos. É o momento em que se despedem e
Maria segue seu rumo.
Sozinha, mas sob o olhar de Asmodeu, Maria segue sem percebê-lo, cantando a
música “Alecrim”, de domínio popular.
AlecrimAlecrim dourado
Que nasceu no campo sem ser semeado(Bis)
Foi meu amorQuem me disse assimQue a flor do campo
É o alecrim(Bis)
AlecrimAlecrim aos molhos
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Por causa de tiChoram os meus olhos
(Bis)
Foi meu amorQuem me disse assimQue a flor do campo
É o alecrim(Bis)
AlecrimDo meu coração
Que nasceu no campoCom essa canção
(Bis)
Foi meu amorQuem me disse assimQue a flor do campo
É o alecrim(Bis)
Ao amanhecer, depois de dormir recostada a uma árvore, Maria desperta e ouve ao longe um
som de viola. Vai até ele, apenas um violeiro canta e dança um fandango ao redor de uma
fogueira à beira da estrada, em homenagem a São João, a música é de cunho popular. A maior
parte das músicas cantadas no fandango não possue autor conhecido, são consideradas muito
antigas pelos tocadores. O fandango (http://www.museuvivodofandango.com.br. Acesso em
25 abr 2008)) tem uma história controversa e longa. Para alguns pesquisadores teria origem
árabe, que viriam da Península Ibérica, quando Espanha e Portugal ainda não eram reinos de
fronteiras definidas. Existe ainda uma vertente que identifica a origem do fandango na
América Latina, de onde teria partido para a Espanha no início do século XVIII. Uma de suas
definições mais antigas e de uso generalizado é a de fandango como um baile ruidoso.
Encontramos referências a baile e conjunto de danças chamadas por esse nome, ao longo de
Portugal, Espanha e França. No Brasil, teve suas origens e influências ibéricas miscigenadas
com outras matrizes culturais, assumindo regionalmente, com o mesmo nome de fandango,
aspectos e características completamente diferentes. O termo fandango designa, em terras
brasileiras, o auto marítimo do ciclo natalino, encontrado em alguns estados nordestinos, e o
baile sulista, encontrado no Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. No interior de São Paulo,
na região de Sorocaba, há também uma variante de dança sapateada, herdada dos tropeiros,
assemelhada à catira ou cateretê. O fandango encontrado nos litorais paulista e paranaense,
independente de suas origens, não seria apenas fruto de uma herança musical chegada ao sul
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do Brasil pelos portugueses. Essa teria se miscigenado com a música que aqui já havia,
também de violas e rabecas, nas vilas e caminhos desde os tempos da capitania de São
Vicente. Sua musicalidade transitou por terra e mar, pelos canais e ilhas que interligam o
litoral paranaense ao de Cananéia e Iguape, em São Paulo, na região conhecida como
Lagamar, estendendo-se até o litoral norte de São Paulo. O fandango aqui apresentado é
compreendido então como uma manifestação cultural popular brasileira, fortemente associada
ao modo de vida caiçara, onde dança e música são indissociáveis de um contexto cultural
mais amplo. Sua prática sempre esteve vinculada à organização de trabalhos coletivos -
mutirões, puxirões ou pixiruns - nos roçados, nas colheitas, nas puxadas de rede ou na
construção de benfeitorias, onde o organizador oferecia como pagamento aos ajudantes
voluntários, um fandango, espécie de baile com comida farta. Para além dos mutirões, o
fandango era a principal diversão e momento de socialização dessas comunidades, estando
presente em diversas festas religiosas, batizados, casamentos e, especialmente, no carnaval,
onde comemoravam-se os quatro dias ao som dos instrumentos do fandango. As coreografias,
uma grande roda ou pequenas rodas de fileiras opostas, pares soltos e unidos. Os passos
podem ser valsados, arrastados, volteados, etc., entremeados de palmas e castanholar de
dedos. O sapateado vigoroso é feito somente pelos homens, enquanto as mulheres arrastam os
pés e dão volteios soltos.
Maria passa por homens e mulheres que trabalham ao longo da estrada que param o
trabalho para vê-la passar pulando e cantando “Que lindos olhos”, de Villa-Lobos; é o
momento em que perde a chavinha numa poça d’água. Sem se dar conta, segue seu caminho.
Que lindos olhosQue lindos olhos
Tem você
Que ainda hojeQue ainda hoje
Eu reparei
Se eu reparasseSe eu reparasseHá mais tempoEu não amavaEu não amavaA quem amei!
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A Madrasta se deixa levar pelos encantos de um belo rapaz, que nada mais é que o Asmodeu
disfarçado, que, com gestos galantes, a toma pela mão e começa a dançar ao som de “Senhora
viúva, viuvinha”, de Villa-Lobos.
Dizei senhora viúvaCom quem quereis se casarOu é com o filho do conde
Ou é com o seu generalGeneral, general
Morreu meu maridoNo meio das flores
Acabou-se a alegriaAcabou-se os amores
Morreu meu maridoNo meio das flores
Acabou-se a alegriaAcabou-se os amores
Não é nenhum desses homensEles não são para mim
Eu sou uma pobre viúvaIchi, coitada de mim
Ai de mim! ai de mim!To reto de lutoDe luto fechado
Semanas inteiras eu tenho chorado
To reto de lutoDe luto fechado
Semanas inteiras eu tenho chorado
Dizei senhora viúvaCom quem quereis se casarOu é com o filho do conde
Ou é com o seu generalGeneral, general!
À beira do precipício, o Pai está prestes a tirar a própria vida quando ouve em seus
pensamentos o canto “Xô, xô passarinho”, a mesma que ele ouvira quando encontrara Maria
enterrada.
Maria, agora adulta pela magia de Asmodeu, segue seu rumo e nele encontra-se com
bóias-frias que trabalham na colheita do trigo, entoando a canção “Na corda da viola”, de
Villa-Lobos.
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Na corda da viola todo mundo bate,Na corda da viola, todo mundo bate,Na corda da viola todo mundo bate,Na corda da viola todo mundo bate;
As costureiras fazem assim...Os carpinteiros fazem assim...Os marceneiros fazem assim...
Na corda da viola todo mundo bate,Na corda da viola, todo mundo bate,Na corda da viola todo mundo bate,Na corda da viola todo mundo bate;
As costureiras fazem assim...Os carpinteiros fazem assim...Os marceneiros fazem assim...
O moço de nome Príncipe retorna, e seu pai decide fazer uma grande festa para que o filho
possa escolher uma jovem para desposá-la. Todas as moças do vilarejo comparecem,
inclusive Maria. A animação da festa, a música e a dança ficaram por conta do grupo da
Umbigada Paulista. A dança é uma pancada, de leve, nas danças de roda e que significa o
convite ou a intimação para que o umbigado substitua o dançarino encarregado do solo, do
canto. No fandango e no lundu, em Portugal, a umbigada tem o mesmo propósito, como
também acontece na dança da punga, no Maranhão e nos cocos de roda ou bambelôs e até
mesmo em certos sambas. Já no batuque paulista a umbigada aparece durante a dança e não
como um convite à substituição de quem está cantando na dança de roda. A umbigada foi
trazida para o Brasil pelos bantos, escravos africanos, que também trouxeram o batuque e o
samba.
Antes, porém, da realização do casamento Maria passa por um teste enquanto isso a Mucama
canta para Maria uma música que fala sobre as qualidades da esposa para merecer o marido,
foi composta especialmente para a microssérie narrando as cenas que mostram Maria no teste
dos afazeres de casa.
Depois de encontrar seu Amado, o Pássaro encantado, Maria entoa uma melodia que
fala sobre o desabrochar do amor enquanto acompanha saltitante a trupe em seu trajeto. A
música foi composta especialmente para a cena da microssérie.
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O sexto episódio inicia com a cena em que Maria canta a música “Candeeiro” – Villa-Lobos,
andando e pulando por entre as árvores, enquanto a narradora direciona os futuros
acontecimentos.
Candeeiro entrai na rodaEntrai na roda sem pararQuem pegar o candeeiro
Candeeiro há de ficar
Co-có-ró-cóCandeeiro sinhá
Eu não sou castiçalCandeeiro sinhá!
(Bis)
Depois de encontrar-se com o Amado e terem sido observados por Quirino sem que
percebessem, Maria canta para uma pequena platéia atenta na abertura do espetáculo uma
canção de amor e saudade composta especialmente para a trama.
Maria não consegue dormir, está com maus pressentimentos. Amado, preso na gaiola
começa a cantar com muita paixão e sentimento, uma cantiga de ninar. A música é “A
Floresta Amazônica”, também conhecida por Melodia Sentimental, de Heitor Villa-
Lobos. Maria levanta-se, começa a caminhar e entoa a mesma música que seu Amado,
cheia de doçura.
Acorda, vem ver a luaQue dorme na noite escura
Que surge tão bela e brancaDerramando doçuraClara chama silenteArdendo meu sonhar
As asas da noite que surgemE correm o espaço profundoOh, doce amada, despertaVem dar teu calor ao luarQuisera saber-te minhaNa hora serena e calma
A sombra confia ao ventoO limite da espera
Quando dentro da noiteReclama o teu amor
Acorda, vem olhar a luaQue dorme na noite escuraQuerida, és linda e meigaSentir meu amor e sonhar!
91
O Pai apresenta-se como Palhaço Bendegó na trupe de Rosa e Quirino e, canta a música “A
paz do meu amor” (Prelúdio n.2), de Luiz Vieira, agradando a todos e, principalmente, a
Maria.
Você é issoUma beleza imensaToda recompensa
De um amor sem fimVocê é isso
Uma nuvem calmaNo céu de minh’alma
É ternura em mim
Você é issoEstrela matutina
Luz que descortinaUm mundo encantador
Você é issoParto de ternura
Lágrima que é puraPaz do meu amor
Você é issoEstrela matutina
92
Luz que descortinaUm mundo encantador
Você é issoParto de ternura
Lágrima que é puraPaz do meu amor!
Quirino confessa a Maria que ele é culpado do desaparecimento de Amado. Ela decide ir
embora à procura de seu amor. Como despedida de Maria da trupe, Quirino canta de
improviso a música “Amargura”, de Eduardo Souto, em homenagem a Maria.
Maria segue pela estrada à procura do Amado cantando a música “Constante”, de
Villa-Lobos.
Quando Maria desvencilha-se de Asmodeu que continua perseguindo-a, ela continua
sua jornada e recomeça a cantar a música “A Floresta Amazônica” (ou Melodia
Sentimental), de Heitor Villa-Lobos, como se esperasse uma resposta de seu Amado.
Durante a caminhada Maria reencontra as crianças carvoeiras, que se aproximam
cantando alegremente “De dia o galo canta na crista do sol nascente pra todo mundo
acordar, é de manhã, é de manhã, de manhazinha...”, de domínio popular. Elas ficaram
livres do poder de Asmodeu depois que ele fez o tempo voltar pra infância de Maria.
Despede-se da menina carvoeira e segue sua jornada cantando “Constante”, de Villa-
Lobos.
Enquanto caminha, já muito próxima de sua casa, Maria entoa a música “Você diz que
sabe tudo”, de Villa-Lobos, pulando e cantando muito feliz por perceber os primeiros
flocos de polvilho no ar e que poderá reencontrar sua família completa.
Você dia que sabe tudoMas não sabe namorar
Quero que você me diga olê lê!Quantos peixes tem o mar
Quero que você me diga olê lê!Quantos peixes tem o mar
Quantos peixes tem o marEu não posso te dizer
Que o mar é muito grande olê lê!Tenho medo de morrer
Que o mar é muito grande olê lê!Tenho medo de morrer!
93
Apesar da felicidade de Maria em reencontrar sua mãe, seu pai e seus irmãos, não
desiste do seu sonho em encontrar as franjas do mar. Ciganinho, o menino que conhecera e
que soube ter sido o seu protetor durante toda sua jornada, oferece-se e a acompanha até as
franjas do mar. Enquanto deslumbram-se com a paisagem, a microssérie encerra-se ao som do
coral de Villa-Lobos com a música “Vida Formosa”.
O moreno é meuNão é de mais ninguém
Quem tiver invejaOra faça assim também
Menina, minha meninaEntre dentro desta roda
Diga um verso bem bonitoDiga adeus e vá-se embora
Ai JuquinhaJuquinha meu bemA vida é formosa
Para quem amores tem
Ai JuquinhaJuquinha meu bemA vida é formosa
Para quem amores tem
Um, dois, trêsQuatro, cinco, seis
Sete, oito, novePara doze faltam três.
Ter obras de Villa-Lobos na microssérie é valorizar o popular no erudito, ele era um
amante da natureza do Brasil, e isto pode ser verificado em seu pensamento: “O Brasil é um
dos países mais privilegiados do mundo. O povo tem uma intuição musical profunda. Tudo
canta sem querer. O mar, o rio, o vento, a criatura” (PRESENÇA DE VILLA-LOBOS, v. 7,
1972. p. 89) Luiz Fernando Carvalho usa o termo “ancestralidade” quando define suas
inspirações artísticas na produção de Hoje é Dia de Maria. E é essa definição que
possibilitou-nos levantar trabalhos valiosos da nossa cultura musical e de algumas
manifestações populares de danças. Como é um entrelaçamento cultural, o próximo capítulo
possibilitará uma viagem por alguns contos de fada e o maravilhoso e o quanto
enriquecedores são em nosso cotidiano.
94
CAPÍTULO 3
REVESTINDO-SE DE MITOS: OS CONTOS DE FADA E O MARAVILHOSO
3.1- Contos de fada e mitos europeus
De origem celta (NOVAES COELHO, 1987), os contos de fadas são uma variação do conto
popular ou fábula. Por serem narrativas curtas, são transmitidas oralmente, e o núcleo
problemático é existencial, é a busca da realização pessoal Os obstáculos ou provas
constituem-se num verdadeiro ritual de iniciação, para que o herói ou heroína tenham de
enfrentá-los antes de triunfar contra o mal. Caracteristicamente podem contar ou não com a
presença de fadas, mas envolvem algum tipo de magia, metamorfose ou encantamento.
95
As fadas são entidades fantásticas, características do folclore europeu ocidental. Apresentam-
se como mulheres de grande beleza, imortais e dotadas de poderes sobrenaturais, capazes de
interferir na vida dos mortais em situações-limite.
As primeiras referências às fadas surgem na literatura cortesã da Idade Média e nas novelas de
cavalaria do Ciclo Arturiano, tomando por base textos-fontes de origem reconhecidamente
céltico-bretã que destaca o amor mágico e imortal conforme destaca Novaes Coelho (1987, p.
34):
Na maioria das tradições, as fadas aparecem ligadas ao amor, ou sendo elaspróprias as amadas, ou sendo mediadoras entre os amantes. A partir dacristianização do mundo, foi esse último sentido que predominou, perdendo-secompletamente aquela outra dimensão “mágica”, sobrenatural.
Ao longo dos últimos 100 anos, os contos de fadas e seu significado oculto têm sido
objeto da análise dos seguidores de diversas correntes da Psicologia. Para Cashdan (2000, p.
25), "embora o atrativo inicial de um conto de fada possa estar em sua capacidade de encantar
e entreter, seu valor duradouro reside no poder de ajudar as crianças a lidar com os conflitos
internos que elas enfrentam no processo de crescimento", sugere que os contos seriam
"psicodramas da infância" espelhando "lutas reais", vinculando os contos de fadas aos
conflitos internos infantis:
Cada um dos principais contos de fadas é único, no sentido em que trata de umapredisposição falha ou doentia do eu. Logo que passamos do "era uma vez",descobrimos que os contos de fada falam de vaidade, gula, inveja, luxúria,hipocrisia, avareza ou preguiça - os "sete pecados capitais da infância". Embora umdeterminado conto de fada possa tratar de mais de um "pecado", em geral um delesocupa o centro da trama. (CASHDAN, 2000, p. 28)
Ainda, segundo Cashadan (2000, p.31), as crianças podem utilizar os contos de fadas na
resolução de seus próprios problemas:
O modo pelo qual os contos de fada resolvem esses conflitos é oferecendo àscrianças um palco onde elas podem representar seus conflitos interiores. Ascrianças, quando ouvem um conto de fada, projetam inconscientemente partes delasmesmas em vários personagens da história, usando-os como repositóriospsicológicos para elementos contraditórios do eu.
Cashadan (2000, p. 48), apresenta quatro etapas na jornada do ser existencial no conto
de fadas, a travessia, o encontro, a conquista e a celebração, cada etapa é uma estação no
caminho da auto-descoberta:
96
A TRAVESSIA: "leva o herói ou heroína a uma terra diferente, marcada poracontecimentos mágicos e criaturas estranhas";o ENCONTRO: "com uma presença diabólica – uma madrasta malévola, um ogroassassino, um mago ameaçador ou outra figura com características de feiticeiro";a CONQUISTA: "o herói ou heroína mergulha numa luta de vida ou morte com abruxa, que leva inevitavelmente à morte desta última";a CELEBRAÇÃO: "um casamento de gala ou uma reunião de família, em que avitória sobre a bruxa é enaltecida e todos vivem felizes para sempre".
Os contos nascem e renascem a cada encontro para contar histórias em processos
comunicativos construídos pelas pessoas que deles participam. É um convívio de tradição e
inovação, apresenta variações que se diferem quanto às palavras empregadas, à seqüência, à
introdução de novos elementos e quanto ao próprio conteúdo das histórias. O contador
também é autor, pois existe certo grau de criatividade com doses de originalidade.
Narrar é intercambiar experiências, por isso, as melhores narrativas escritas são as que
menos se distinguem das histórias orais e o senso prático é uma das características de muitos
narradores natos. O narrador é visto como um homem que sabe dar conselhos, isto é, sugere
uma continuação da história narrada, é uma arte - a sabedoria, hoje em extinção. Figura entre
os mestres e os sábios, sabe dar conselhos, não para alguns casos, como o provérbio, mas para
muitos casos, como o sábio. Assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir
dizer. É o homem que tem o dom de contar sua vida e a dignidade de contá-la inteira. É a
figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.
“Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo” (BENJAMIN, 1993, p.205),
e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. A história se gravará na memória
do ouvinte quando esse a assimila com sua própria experiência, e ainda poderá recontá-la à
sua maneira. Diferente da informação, que só tem valor no momento em que é nova, a
narrativa conserva suas forças e, depois de muito tempo, ainda é capaz de se desenvolver.
Quem escuta uma história está em companhia do narrador, mesmo quem a lê
compartilha dessa companhia, pois o grande narrador tem sempre suas raízes no povo,
principalmente nas camadas populares. O conto de fadas, exemplo disso, sobrevive
secretamente na narrativa e revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para
libertar-se do pesadelo mítico; ensinou e continua ensinando, que o mais aconselhável é
enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância.
A média de mensagens recebidas por dia é muito grande e a lembrada é muito
pequena, por isso, os comunicadores profissionais de quaisquer áreas tomam muito cuidado
97
na transmissão daquelas julgadas de real importância. Estudos revelam que, para obter os
efeitos desejados, a mensagem deve estar na razão direta do interesse suscitado.
Os meios de comunicação de massa demonstram grande interesse em divulgar as
coisas relacionadas com o povo. Os jornais e revistas abrem suas páginas e o cinema, a
televisão e o rádio dedicam mais tempo à cultura popular. Diversas novelas de televisão e
filmes baseiam-se em assuntos que, antes, eram considerados campo de ação exclusiva de
pesquisadores folcloristas. Há muitas críticas a essa atuação da imprensa por acharem que
essas ações irão concorrer para o desvirtuamento das manifestações “puras”.
Muitos escritores deram atenção à cultura popular de seu tempo, especialmente a partir
da década de 30, apresentavam seus personagens como eles realmente poderiam ter sido,
procuravam incluir em seus romances todos os elementos culturais próprios às suas condições
sociais.
Jovens pesquisadores da cultura popular no Brasil interessam-se não apenas pelos
fatos em si, mas também, pelo que eles podem significar como expressão de vivência de um
grupo social. Analisar as manifestações folclóricas de um povo ou de uma comunidade pode
trazer muitos benefícios para ambas as partes: o pesquisador e o pesquisado. O meio de
comunicação que garante a sobrevivência das histórias de tradição oral é o “de boca a boca”,
transmitindo de geração em geração.
A literatura é única, como arte e exercício humano de comunicação e interpretação do
mundo. Independente de classificações e denominações, as narrativas inserem-se como
literatura infantil ou como formas culturais de expressão, didaticamente divididas para
estudos de diferenças e de conteúdos em: literatura – estudada pelos gêneros narrativos
(épico, lírico e dramático); narrativas – romance, novela e conto. O romance apresenta uma
narrativa com vários fios condutores e tramas que se completam com vários personagens em
enredos entrelaçados; a novela é uma narrativa com uma linha cujo desenvolvimento caminha
para um ponto comum: o clímax da história, a revelação da verdade. O conto é uma narrativa
com poucos personagens, conflito bem condensado, com unidades de tempo, espaço e ação.
Possui pouca profundidade psicológica e é um corte na vida da personagem, enfocando uma
situação limite, não permitindo grandes divagações, ou um número muito grande de
personagens. A narrativa mais utilizada pela literatura infantil é o conto, que se subdivide
segundo o conteúdo e finalidades de ensinamentos recebidos em formas de tradição oral.
No século XVII, a sociedade era, sobretudo, formada por camponeses. Eles
trabalhavam e se distraíam juntos. Os contos ditos em voz alta eram, antes de tudo, destinados
98
aos adultos (que, na sua maior parte, não sabia ler). Para o povo, era a ocasião de exprimir a
dura realidade, mas também de sonhar e mudar de vida durante uma história.
Naquela época, a palavra oral ainda primava sobre a escrita, sendo o livro de difícil
aquisição. Alguns contos, porém, vieram a público em pequenos libretos azuis a baixo preço.
Vendidos pelos mercadores ambulantes, eles ficavam ao lado dos objetos da vida cotidiana.
Ocorre que as crianças mais ricas passavam a infância com as amas, provenientes do povo.
Estas últimas relatavam em língua popular esses contos que se transmitiam oralmente de
geração em geração.
As histórias de tradição oral classificam-se em: contos de fadas, contos maravilhosos,
fábulas, lendas e mitos. André Jolles (1976, p.145) define outras categorias literárias advindas
das histórias de tradição oral e as classifica como: legendas, sagas, mitos, contos, chistes,
anedotas, lendas. Chega a afirmar que “[...] talvez as formas simples constituam a base da
teoria literária [...]”. Para ele, formas simples fazem parte de um resgate das raízes dos povos,
são as criações coletivas de autoria desconhecida, nascidas da natureza humana e sustentadas
pela linguagem.
As formas cultas são artificiais, podem ser derivadas das simples, com personagens,
ambiente, espaço e tempo determinados por um autor identificado, responsável pela obra; as
formas simples guardam para si a naturalidade, e cumprem um papel folkcomunicacional na
sociedade, que é manter essas formas através do tempo e do espaço.
Segundo o mesmo autor, os contos populares são os que se referem à moral ingênua
do ser humano, são eles: contos maravilhosos, de encantamento, de fadas ou fábulas.
Os contos maravilhosos, originários do Oriente, além de muito antigos eram
apreciados pelos adultos e mais tarde foram adaptados para as crianças e incorporados à
literatura infantil. Semelhantes aos contos de fadas, os contos maravilhosos apresentam
situações que ocorrem fora da nossa compreensão de tempo e espaço; designa tudo o que não
é explicável pela razão; os fenômenos não obedecem às leis naturais do planeta; possuem
características mágicas sem a presença de fadas; dá ênfase aos aspectos materiais, sensórios e
sociais do homem. Os temas referem-se sempre à satisfação dos desejos do corpo, o
enriquecimento e a conquista do poder.
Nelly Novaes Coelho (1981, p.153), diz que a literatura nasceu do “maravilhoso”, e
dele também nasceram personagens com poderes sobrenaturais que se deslocam, contrariando
as leis da gravidade, sofrem metamorfoses contínuas, defrontam-se com forças do Bem e do
Mal personificadas, sofrem profecias que se cumprem, são beneficiadas com milagres,
assistem a fenômenos que desafiam as leis da lógica.
99
A metamorfose mais marcante como representação do Mal, em Hoje é Dia de Maria, é
a presença de Asmodeu Original, o Sete Peles. Ele aparece no caminho de Maria no momento
em que explora o trabalho infantil das crianças carvoeiras, negocia as sombras das pessoas
sempre em troca de algo que elas necessitam, tornando-as suas escravas. Maria o reconhece
pela sua atitude no vilarejo, quando quer a sombra de Zé Cangaia. É o momento em que trava
uma batalha com Asmodeu por tentar ajudar Zé Cangaia, para que não seja trapaceado.
Asmodeu começa a persegui-la e impedi-la de seguir seu caminho para chegar às franjas do
mar, tenta atrapalhá-la de todas as formas, inclusive em constantes metamorfoses: Asmodeu
Bonito, Asmodeu Velho, Asmodeu Mágico, Asmodeu Brincante, Asmodeu Sátiro e Asmodeu
Poeta. Outra representação do Mal é a Madrasta, fingindo-se de boazinha convence Maria de
que deveria ser a nova esposa de seu Pai, porém transforma-se numa vilã, explora os serviços
da menina a ponto de levá-la ao esgotamento.
O Bem é representado por Maria, tanto criança quanto moça, pois ela perdoa, tem fé,
ajuda a todos que encontra pelo caminho. Sofre as profecias, mas é beneficiada pela magia,
com os personagens que surgem em sua trajetória, o Maltrapilho, o Homem de Olhar Triste, o
Mendigo, o Mascate e o Vendedor, inclusive outras pessoas que a ajudam: os cangaceiros e os
índios. A presença de Nossa Senhora é marcante do princípio ao fim da microssérie.
O Pássaro Encantado, também representante do Bem, é protetor, companheiro, e ama
Maria. É vítima de uma profecia, durante o dia é pássaro e à noite um belo rapaz.
Os contos, tanto os de fadas como os maravilhosos, proporcionam o amadurecimento
da criança para entender o mundo, através das mensagens transmitidas pelas histórias.
Perrault (2004), entre outros, fez desses contos um gênero literário. Ele dizia que não
os inventava, mas que buscava os contos nas fontes francesas, recuperando componentes
medievais e do Renascimento italiano. Tais fontes, segundo ele, eram bastante ricas para que
se parasse de uma vez por todas de copiar os Antigos. Ele não copiava, ele interpretava, pois
seus relatos eram muito mais elaborados do que os contos populares orais, e assim, mostrava
como renovar as fontes de inspiração.
Revisitando a história de Charles Perrault – Pele de Asno – percebe-se facilmente as
características do conto maravilhoso, a presença das forças do Bem e do Mal em busca da
satisfação dos desejos do corpo e da conquista do poder. No conto, após a morte da mãe, a
filha vê-se assediada pelo rei, seu pai, que a queria desposar custasse o que custasse, porque
conta a história que a rainha ao morrer pede ao rei que prometa casar-se novamente apenas
com uma mulher que se igualasse a ela em beleza e virtude. Parecia que a rainha, esperava
que ninguém fosse melhor do que ela e que o rei ficaria viúvo para sempre. Mas este era
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pressionado pelos ministros para casar-se novamente, pois a princesa, uma mulher, sua única
filha, poderia vir a casar-se com um príncipe estrangeiro, já que o rei não tinha filhos que o
sucedessem, e o povo preocupava-se com a sucessão da coroa.
O rei procurou por toda parte aquela que pudesse substituir sua esposa, mas foi tudo
em vão, ninguém se igualava a ela em beleza e virtude. Foi então que notou que sua filha era
extraordinariamente bela e inteligente, ficou irremediavelmente atraído e declarou seu
interesse em desposá-la. A jovem princesa desfaleceu com tão horrível proposta e lançou-se
aos pés do rei, seu pai, suplicou-lhe para não cometer tamanho crime. Para evitar a situação é
beneficiada com o milagre.
A microssérie “Hoje é Dia de Maria – Primeira Jornada” -, apresenta o pai, fora de si
por encontrar-se na situação de viúvo, saudoso, lamentando-se da vida, abandonado pelos
outros filhos mais velhos, vê-se sozinho com a filha mais nova “Maria”, que brinca sozinha
no quintal. Conduzido pela embriaguez, chama Maria aos gritos e aos berros e este atende
prontamente ao chamado do pai, vai para dentro da casa, e ao entrar, o pai toma-a para si; a
partir daí começa a notar a beleza e formosura de Maria. A jovem menina, cheia de virtude e
pudor, implora ao pai para não fazer isso, dirige-se ao seu quarto e conversa com a imagem de
Nossa Senhora da Conceição. Quando novamente é assediada pelo pai, como que por um
milagre é salva por um pássaro.
O que se lê nas histórias é o que se conhece de relatos de vítimas da erotização de
relações pai-filha e a consciência de estarem sendo arrastadas a uma situação criminosa. E em
ambos os casos, as meninas tentam fugir do trágico destino. Em “Pele de Asno”, a jovem
princesa o faz disfarçando-se na pele de um asno que a torna irreconhecível para que possa
fugir e mais tarde poder encontrar sua felicidade.
A microssérie também nos remete ao conto “Pé de Zimbro”, de Philipp Otto Runge
(1777 – 1810), mais conhecido pelo estranho título “Minha mãe me matou, meu pai me
comeu”, em que a madrasta da história mata o menino e o transforma em um ensopado,
saboreado inocentemente pelo pai. A irmãzinha, Marlene, junta os ossinhos da criança e
enterra junto ao pé de Zimbro onde está também a mãe. Da mesma forma como em Hoje é
Dia de Maria, depois de morrer o menino se transforma em um elemento da natureza, uma
ave (Maria vira um capinzal), e depois renasce em sua forma humana para seguir seu
caminho. Na microssérie o conto foi adaptado pelo dramaturgo Luiz Alberto de Abreu em
parceria com Luiz Fernando Carvalho, que por sua vez, é reescritura do conto popular “A
menina enterrada viva”, recolhido por Câmara Cascudo (1986), no Rio Grande do Norte. O
escritor Ricardo Guilherme (2000) também reescreveu o mesmo conto, porém sob o título “A
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Menina dos cabelos de Capim”; baseando-se no conto popular “Os Figos da Figueira”, ele
recria com extrema sensibilidade e poesia esta narrativa ibérica que atravessou o Atlântico e
foi incorporada pela tradição oral brasileira. A primeira versão portuguesa foi registrada por
Coelho (1879, in 1985, p.198-9), intitulada “A Menina e o Figo”. A trama representada em
Hoje é Dia de Maria fica bastante clara no conto A Menina Enterrada Viva, recolhido por
Câmara Cascudo, como podemos observar na reprodução a seguir.
A Menina Enterrada VivaEra um dia um viúvo que tinha uma filha muito boa e bonita. Vizinha ao viúvoresidia uma viúva, com outra filha, feia e má. A viúva vivia agradando a menina,dando presentes e bolos de mel. A menina ia simpatizando com a viúva, emboranão se esquecesse de sua defunta mãe, que a acariciava e penteava carinhosamente.A viúva tanto adulou, tanto adulou a menina que esta acabou pedindo que seu paicasasse com ela.- Case com ela papai. Ela é muito boa e me dá mel!- Agora ela lhe dá mel, minha filha, amanhã lhe dará fel. Respondia o viúvo.A menina insistiu e o pai, para satisfazê-la, casou com a vizinha.Obrigado por seus negócios, o homem viajava muito e a madrasta aproveitou essasausências para mostrar o que era. Ficou arrebatada, muito bruta e malvada, tratandoa menina como se fosse a um cachorro. Dava muito pouco de comer e a faziadormir no chão em cima de uma esteira velha. Depois mandou que a menina seencarregasse dos trabalhos mais pesados da casa. Quando não havia coisa algumaque fazer, a madrasta não deixava a menina brincar. Mandava que fosse vigiar umpé de figos que estava carregadinho, para os passarinhos não bicarem as frutas.A pobre menina passava horas e horas guardando os figos e gritando:- Xô! Xô! Passarinho! Quando algum voava por perto.Uma tarde estava tão cansada que adormeceu e quando acordou os passarinhostinham bicado todos os figos. A madrasta veio ver e ficou doida de raiva. Achouque aquilo era um crime e, no ímpeto do gênio, matou a menina e enterrou-a nofundo do quintal. Quando o pai voltou da viagem a madrasta disse que a meninafugira da casa e andava pelo mundo sem juízo. O pai ficou muito triste.Em cima da sepultura da órfã nasceu um capinzal bonito. O dono da casa mandouque o empregado fosse cortar o capim. O capineiro foi pela manhã e quandocomeçou a cortar o capim, saiu uma voz do chão, cantando:
Capineiro de meu pai!Não me cortes os cabelos...Minha mãe me penteou,Minha madrasta me enterrou,Pelo figo da figueiraQue o passarinho picou...,Xô! passarinho!
O capineiro deu uma carreira, assombrado, e foi contar o que ouvira. O pai veiologo e ouviu as vozes cantando aquela cantiga tocante. Cavou a terra e encontrouuma laje. Por baixo estava vivinha, a menina. O pai, chorando de alegria, abraçou-ae levou-a para casa. Quando a madrasta avistou de longe a enteada, saiu pela portaafora, e nunca mais deu notícias se era viva ou morta. O pai ficou vivendo muitobem com sua filhinha. (CÂMARA CASCUDO, 2000)
Em “Hoje é Dia de Maria – Primeira Jornada”, Maria fragilizada pelo assédio do pai
deixa-se convencer pela vizinha viúva, que observa de longe as cenas de assédio, de que as
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atitudes do pai são devidas à sua viuvez, que ele está necessitando de uma esposa, e que ela, a
vizinha viúva, é uma boa pessoa e a mais adequada para ele. Trata a menina com muito
carinho e atenção. A menina então, convence o pai a casar-se com uma viúva, como mostram
as cenas a seguir:
Ao fugir, Maria se esconde no meio do milharal e a madrasta se aproxima.
Madrasta:Ah, mai me dá um dó...
Maria assusta e se encolhe:Ai, ai, num judia não...
Madrasta:Ah, mai que medo é esse nesses tantão de tanto? Teje serena que nóis num veio natenção de lê fazê ninhuma judiaria...
A madrasta oferece a Maria um favo de mel embrulhado em palha:Tó.
Maria nem se mexe.
A madrasta insiste:É mel... Ara, pegue... E vancê cuida que quem ta querendo lê dá mel ta nargumprepósito de lê fazê marvadeza? Pegue logo isto daqui vai ponha argum doce noamargo do seu choro...
Enquanto Maria chupa o favo de mel, a madrasta intencionada fala:Puis é isso... Um home feito o nhor seu pai... ainda tão moço... num haverá de ficáviúvo nesses tanto de tempo... Haverá de arrumá uma cumpanhera mó de acarma ofacho... E adespoi vancê, uma crilinha ainda tão fracotinha, pra dá conta suzinha decuidá dos arranjo dum sitião que nem esse, tá certo?... Havera de tê mais braço, móde lê ajudá na sirviçana, tá certo? Antão...Maria, convencida pela vizinha viúva, muito tímida e cautelosa tenta convencer opai em casar-se.
Maria:Tava querendo lê preguntá por que causo é que o nhor pai num ajusta casamentocom aquela viúva dali?
Pai, surpreso:Foi?
Maria:Quela que mora ali pertico, naquela tapera da curva do estradão.
Pai:E por que havera?
Maria:Ah, mó de que ela é boazinha a conta inteira. Puis se inté me deu mel pra cumê!
Pai:Pui a tarzinha agora te dá mel? Pui ao despois há de te dar fel...
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O casamento ocorre e com muitos festejos. O Pai sai de viagem para a cidade embusca de empréstimo bancário. No momento de sua partida, Maria está regando suarosa amarela, só pára para acenar ao Pai. Quando ainda se via o Pai ao longe, numacurva do estradão, imediatamente a Madrasta, transforma-se em outra pessoa,aproxima-se de Maria.
Madrasta:Mai ói pra isso gente! Se tem argum cabimento ficá cuidando dessa bobage de rosa.Vancê inté parace que é meio já-já da cabeça, Maria. Vá bamo vê. Pare de ficá meoiando com esses ói granado e vai já cuidá da roça de milho que é de muito maiorserventia. E trate de ponha pressa no trabaio que vancê inda tem muito que fazê. (Enum tom bem carinhoso, vira pra Joaninha e diz) Vá, Joaninha, vamo descansá maium pouco, que o sór inda nem se levanto dereito...
E assim, a Madrasta continua explorando os serviços de Maria. Ela cozinha, dábanho em Joaninha, lava enormes pilhas de roupas nas margens do ribeirão, cuidadas plantações, sequer pode parar para brincar, pois a Madrasta não lho permite e,manda Maria ficar espantando os passarinhos de uma árvore frutífera para que nãobiquem os frutos. Maria canta a música Xô, xô, passarinho , de Villa-Lobos,enquanto os espanta, porém, suas foras se esgotam, ela dorme, e os passarinhos sepõem a bicar os frutos. A Madrasta aproxima-se.
Madrasta:Ah, siá mãe da preguiça!... Eu não lê falei que era pra num deixá os bicho bicá asfruitas? Sojeitinha treme-treme... Eu não le falei que a Joaninha tem ojeriza demamão bicado de passarinho? Pui agora vancê vai vê... (Bate em Maria) Leve,Sinhá desavergonhada... Tome...
Maria:Num fai ansim cumigo... Num fai... Num fai ansim... Ai, ai, ai...
Maria se põe a correr para um descampado, gritando em pânico.
Madrasta:Vorte aqui, peste, e é já e já! Vorte nos pé que é pra mó de eu te ensiná,desgracionada...
Maria, absolutamente exaurida, com a respiração difícil, cai de costas no chão, edesfalecendo vai dizendo “Num fai ansim cumigo... num fai...”, e uma borboletaamarela pousa em seu peito, enquanto lá na casa a velinha, que representa sua alma,tremula, quase apagando, e a Madrasta aproxima-se, com um sopro forte a apaga.Sobre o local onde morreu Maria, nasce um lindo capinzal da cor do cabelo dela.
A situação fica ainda mais complicada para a pequena Maria, permanentemente
explorada pela madrasta, decide fugir dali em busca do seu tesouro.
Nas duas histórias, a de Charles Perrault – Pele de Asno e em “Hoje é Dia de Maria –
Primeira Jornada” as jovens sacrificam-se com a atitude tomada para se libertarem do
assédio de seus pais e poderem buscar a felicidade. São contos populares que mostram as
difíceis condições de vida de uma população despossuída de direitos e que enfrentam toda a
sorte de violência no cotidiano. Mostram a fragilidade da mulher diante da intenção e do
desejo carnal masculino do próprio pai, quando buscam desculpas para a atitude deles.
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Por isso, a única maneira que as jovens têm para enfrentar tamanho problema é fugir
para bem distante do pai, mesmo que para isso tenham que se expor às inúmeras dificuldades,
como as que se apresentam nas duas histórias.
Outra história de Charles Perrault, com presença marcante na microssérie é a de
“Cinderela”, que apesar de apresentar algumas diferenças por ter sido recontada e recriada
diversas vezes e por diferentes autores, em todas as versões – “Cinderela”, “Sapatinho de
vidro” ou “Gata Borralheira” – uma linda menina passa pela perda da mãe e o novo
casamento do pai – como conseqüência ganha uma “madrasta”, que mostra o seu mau caráter
assim que se casara. Ela tem duas filhas de caráter semelhante ao dela. Não suportava as boas
qualidades, bondade e beleza de Cinderela, por isso a explora, encarregando-a dos afazeres
domésticos e privando-a de conforto.
O mesmo ocorre em Hoje é Dia de Maria, assim que a Madrasta casa-se com o Pai de
Maria começa a explorá-la nos afazeres da casa e do sítio, porém poupa sua filha, uma garota
que só come e brinca, além de não possuir a mesma beleza e nem o mesmo caráter de Maria.
Ainda em “Cinderela”, acontece o baile em que filho do rei convida as jovens nobres
do reino, porém são dois dias de baile. Cinderela demonstra interesse em ir ao baile, mas é
ridicularizada pela madrasta e suas filhas, que ficaram sem comer por dois dias para caberem
melhor em suas vestes. A madrinha, que era a fada, ajudou Cinderela providenciando com
uma varinha de condão e alguns objetos, o transporte e a roupa, um vestido de ouro e prata,
todo enfeitado com pedras preciosas e um par de sapatinhos de vidro, porém com a
recomendação de que deveria retornar antes da meia-noite, pois o encanto seria desfeito.
Chegando ao baile, sua beleza chamou a atenção de todos, inclusive a do jovem Príncipe que
a convidou para dançar, porém antes da meia-noite foi embora como sua madrinha lhe havia
recomendado. No dia seguinte, mais enfeitada do que a primeira vez, Cinderela foi a baile, o
Príncipe não saiu do seu lado, no entanto ela somente lembrou-se da recomendação da
madrinha ao ouvir a primeira badalada da meia-noite; saiu correndo e acabou perdendo um
dos seus sapatinhos de vidro, que o príncipe pegou e tentou segui-la, sem sucesso. Alguns
dias depois ele, apaixonado, anunciou que se casaria com aquela cujo pé coubesse no
sapatinho. Durante os testes, depois de fazerem o possível para que o pé das filhas da
madrasta entrasse no sapatinho, mas não conseguirem, Cinderela quis prová-lo, pois o
reconhecera. Foi motivo de riso e zombaria, mas, para surpresa de todos, o sapatinho entrou
sem nenhum esforço. Cinderela as perdoou, casou-se com o príncipe e abrigou-as no palácio.
A microssérie Hoje é Dia de Maria recria a história de Cinderela. Maria, adulta, pela
maldição lançada sobre ela por Asmodeu, começa a trabalhar na colheita do trigo numa
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fazenda cujo filho do proprietário tinha desaparecido misteriosamente e todos tinham a
esperança de seu retorno por nunca terem encontrado seu corpo. Na microssérie o jovem
apenas tem o nome de Príncipe. Eis que ele retorna ao casarão e seu pai decide fazer um baile
para comemorar seu retorno e convida as pessoas do vilarejo, inclusive as moças para que seu
filho escolha uma delas para ser sua esposa. Como em Cinderela, Maria deseja ir ao baile,
mas não tem trajes adequados para isso.
Maria:Donde é que vão ansim, tuda embronecadas?
Madrasta:Donde é que vamo?! Na festa, e donde haverá de sê?
Maria:Festa?!
Madrasta:Mai só mermo uma borralhera feito vancê é pra num sabê da festa que vai tê hojeno terrero da casa-grande... Comes, bebes e danças e tudo...
Maria:Pra mó de quê, si inda nem tamo no São João?!
Madrasta:O nhô fazendero é que ta dando esse fandango pra mó de festejá a vorta do nhôPríncipe... E o povo tudo ta dizendo que é nessa festa que o moço Príncipe vaiescoiê uma moça distinta pra mó de se casá, né, bem?Maria:É mermo?! Pui tomem vô!Madrasta:Ansim?! Pui vai fazê um figurão... Nesses feitio o nhô Príncipe vai mermo garrauma baita paixão por riba de vancê...
A sua madrinha na microssérie é representada pelo Mascate, de forte sotaque árabe,
denominado “Salim”, vem andando pelo carreirinho, oferece a Maria um lindo vestido e um
par de sapatinhos para que ela possa ir ao baile, porém avisa-a de que o encantamento
acabaria à meia-noite.
Mascate:Batarde, morena bonita! Qué um laço de fita, um pano bordado, um pente de ossoou qu’eu leve um recado prum moço direito que traz junto ao peito um cravoencarnado?
Maria:Só queria saber se por um acauso o nhor num haverá de trazê aí nesse seu bauzão,que é um delúvio de grande, né verdade? O nhor num haverá de trazê aí um vestidolindo como os amor...? E tomém um par de sapatinho encarnado.
O Mascate tira do baú um embrulho e o entrega a Maria.
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Mascate:Adeus, moça bonita... Só guarde esse aviso: meia-noite acaba a dança, acaba o riso.Na primeira badalada, juízo! Na segunda, corre, e na última em casa esteja!Salamaleikum, assim seja!
Maria abre o embrulho e dentro dele há um vestido da cor do céu, com todas as suas
estrelas, e um par de sapatinhos encarnados. Foi ao baile, a sua presença chamou a atenção de
todos pela sua beleza, inclusive a do rapaz de nome Príncipe, que a convidou para dançar.
Despertou a inveja de todos. Ao soar a primeira badalada do relógio anunciando meia-noite,
Maria desespera-se, foge. Na fuga perde um dos pés do sapatinho. O Príncipe o pega, com
muito carinho guarda-o, porém na manhã seguinte seu capataz sai à procura da jovem que o
encantara. Quando o Capataz aproxima-se do casebre segurando o sapatinho encarnado a
Madrasta o agradece e chama Joaninha, sua filha, dizendo que o ele havia encontrado o
sapatinho que ela havia perdido no fandango. Porém, ele desconfia e pede o outro pé, a
Madrasta confusa, diz que ele também está perdido. Nesse instante surge Maria com o outro
pé nas mãos perguntando se era aquele e é acusada pela Madrasta de roubo, e arranca-lhe o
sapatinho das mãos. Tenta calçá-los em Joaninha, sem sucesso. O capataz desconfia. Enfim, é
em Maria que sevem os sapatinhos. Ela segue até o casarão calçada nos seus sapatinhos
encarnados.
Em Hoje é Dia de Maria, ela precisa passar por três provas, a da cama, da mesa e do
banho. Maria, desconfiada, cumpre todas as provas: lava uma quantidade absurda de roupas
no rio, passa com ferro a carvão uma pilha de roupas, cozinha um enorme caldeirão de
comida, leva um enorme balde cheio de água até a banheira em que se encontra o Príncipe e,
põe-se a esfregar as costas do rapaz com uma esponja. Quando está acabando de forrar uma
enorme cama de casal, muito cansada, e sempre sob os olhos vigilantes da Mucama que canta
o tempo todo versos sobre a servidão da esposa para com o marido, senta-se na cama. A
Mucama aproxima-se de Maria, canta os últimos versos, o que significa que Maria fora
aprovada:
Mucama:Servidão é o segredo,Menina, do bom proceder.
Ao contrário da história de Cinderela, que se casa com o príncipe e “foram felizes para
sempre”, em Hoje é Dia de Maria, quando chega o momento do casamento, Maria aceita a
mão do Príncipe e é por ele conduzida até o Padre. Ao ouvir os piados de dor e tristeza
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emitidos pelo Pássaro, no momento da troca das alianças, mostra-se indecisa, e sob o olhar de
todos, abandona a sala em passos largos para estupefação dos presentes e corre em direção ao
seu casebre.
Em Hoje é Dia de Maria a história continua, e uma nova história surge. O filme O
Feitiço de Áquila (EUA: Ladyhawke, pt: A Mulher Falcão), produzido em 1985, dirigido por
Richard Donner, foi baseado no romance de Joan D. Vinge que conta a história de um amor
proibido, segundo uma lenda européia do século XIII, que tem o mesmo nome e apresenta
todos os elementos de uma boa fantasia, romance, aventura, coragem, amizade e como não
poderia faltar, um vilão. Na história, Isabeau, uma linda jovem, e Charles Navarre, capitão da
guarda, se amavam em segredo. O Bispo de Áquila, um homem de má índole, também
apaixonou-se pela jovem, porém não foi correspondido. Ao saber do romance e da fuga do
jovem casal durante a confissão do monge Imperius, um religioso de bons princípios e
cumpridor de seus deveres, porém beberrão, lançou uma terrível maldição sobre o casal, que
"Enquanto houver dia e noite, Isabeau e Navarre estarão sempre juntos, mas eternamente
separados", Navarre seria um lobo negro durante a noite e Isabeau um falcão durante o dia.
Phillipe Gaston, um ladrão conhecido por Rato pela sua irreverência, o único a conseguir
fugir do calabouço de Áquila, ao ser perseguido pelos guardas do castelo é salvo por Navarro
que o intima a ajudá-lo a entrar em Áquila para que possa vingar-se do Bispo. Gaston
descobre sobre a maldição e como poderia ser desfeita, pois Imperius diz que foi instruído por
Deus, de que bastaria Navarre e Isabeau estarem diante do Bispo durante o eclipse total do sol
para romper a maldição e se empenham para isso:
Imperius:- Dentro de três dias, na Catedral de Áquila, o Bispo ouvirá a confissão do clero.Basta que vocês o enfrentem – ambos, como homem e mulher, em carne e osso.Então a maldição será cortada. O Maligno recolherá seu prêmio e vocês doisestarão livres. (...) Impossível, enquanto houver noite e houver dia. Contudo, dentrode três dias, você terá sua chance. Dentro de três dias, haverá em Áquila um diasem noite e uma noite sem dia!
Após inúmeras peripécias, conseguem. A maldição é quebrada e todos são redimidos.
O Bispo transforma-se num lobo bem velho na história do livro, no filme ele apenas morre
pela espada de Navarre. Nas laterais da catedral, Phillipe viu que os sacerdotes reunidos
também sorriam de rostos aliviados e comemorando, ao verem o casal feliz que se abraçava,
envolvido pela luz do sol - sabendo que haviam testemunhado a derrota do mal e o triunfo da
fé, a vitória do amor.
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Na microssérie Hoje é Dia de Maria o Pássaro é ferido por uma das flechas atiradas
pelos guardas do casarão por ter se aproximado da janela no momento do casamento e emitir
piados como se quisesse impedí-lo de acontecer. O Pássaro Encantado foge ferido, Maria
ouve seus piados e isso a incomoda. Desiste do casamento e sai desesperadamente à procura
do Pássaro. Encontra-o ferido, ainda com a flecha crivada em seu peito, emite uns gemidos
estranhamente humanos e pia dolorosamente. Ela cuida dele com um carinho muito especial
enquanto profere palavras de conforto. Quando Maria retira por completo a flecha do corpo
do Pássaro, este se transforma num lindo rapaz, nu, cai de fraqueza, enquanto Maria sufoca
um grito de susto e espanto e se afasta perguntando:
Maria:Quem é ocê?
Amado:Sou aquele que velei seu sono e segui seus passos. E não vi encanto em voar livreno espaço, nem em estar perto do manto das estrelas, nem no canto dos pássarosnas manhãs. Quis andar... pela terra...(...)
Maria:E pur que minha voiz pergunta quem é ocê, se meu coração já lê conhece?
Amado:Ainda não sou nada! Nem ave que era nem homem completo. Sou o fruto dessaqueda que tanto sonhei. Por você quis ser homem. E agora estou perdido!Maria:Me diz: foi ocê que esperei sem sabê? Foi ocê que sonhei à noite sem lembrá demanhã? É aquele que meu coração... Cala, cala, coração meu! Aquieta, minhaalma! Ah!, o peso tão leve do amor me esmaga! Vem!
Amado:Não sou homem inteirado, completo ainda...
Maria:Inté to achano que um é a parte que falta ao outro.
Amado:Preciso de falá. Logo quebra a barra do dia, e com o sol vem a minha tristeza.Homem só sou na sombra da noite. Na luz do dia, minha sina é sê pássaro.
É o momento em que se percebe o cumprimento de uma profecia que se assemelha ao
feitiço de Áquila. A partir deste momento encontram-se todas as noites, instintivamente e sem
saber o porquê e se amam incondicionalmente.
Amado:Tua presença é bálsamo para esse meu castigo.
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Maria:Num diz isso! Deus num haverá de colocá nóis dois no mermo caminho pra mó desê, pra mim ou procê, um castigo... Nóis recebemo a bênção do amor divino...Apois num foi dos confim do céu que ocê veio?
Amado:Do céu... que escreve teu nome com as estrelas... Maria, o que sou, de onde vim,tão pouco sei!... Na vaga lembrança de mim mesmo, me perco! Só o que sei é quete amo, com amor profundo... e que esse amor, esse, sim, puro encanto, me liberta,como agora, do peso da longa jornada, da busca, que pensei desenganada.
O amor que sentem um pelo outro é o que motiva Amado a querer livrar-se do
encantamento, num de seus encontros Maria pergunta-lhe para onde iria com o nascer do sol,
e Amado responde:
Vou voar o mais alto que minhas forças me levarem e, lá, vou perguntar ao sol damanhã como é que um pássaro ganha substância humana. Pra sempre! E, amando,não perca nunca a lembrança do vôo.
Quirino descobre a quem Maria entrega o seu amor e revoltado por não tê-lo pra si
planeja separá-los, influenciado por Asmodeu faz uma gaiola para prender o Amado. Este e
Maria têm maus presságios, porém fazem juras de amor.
Amado:O seu amor não deve me abandonar no dia em que eu caminhar sozinho com o frioe com a morte.Maria:O que ocê ta falando?Amado:Falo dessa sina que teima em nos separar. Eu, metade homem e metade pássaro,sou escravo desse destino.Maria:E até quando vai esse destino?Amado:Até quando um novo sol chegar e sua força quebrar o encanto que me mantémpreso.(...)Maria:Entonce, promete que o amor da gente inda há de ser inteiro, no dia e na noite?
Quirino faz uma armadilha com um lenço de Maria para que o Pássaro se aproxime e
consegue prender o Amado, ainda em Pássaro. Dentro da gaiola, Amado faz uma prece à lua.
Amado:
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Lua, minha senhora. Você que rege os caminhos do mundo, que amadurece osfrutos da terra, que levanta as águas do mar... Você, tão linda, que lava a terra deluz, não me castigue por amar.
Rosa segue Quirino e encontra o Amado preso na gaiola, aproxima-se e ele pede-lhe
ajuda. Ela consegue o material pedido por ele. Entrega-lhe e quando a aurora começa a se
insinuar no escuro da noite, Amado asperge o sal sobre a tranca, as dobradiças e os ferros da
gaiola, depois, molha-os com o conteúdo de uma garrafa e faz uma invocação. O preparado
místico reage com o sol, escancarando a porta de ferro, que cai e Amado pode, enfim, livrar-
se daquela gaiola.
Amado:Sou atado ao destino, prometido a Maria desde muitas eras. Minha mãe lua, osventos todos do céu, os caminhos da terra, tudo o que vive e o que não vive sejuntou para que a gente se encontrasse. É sacrilégio ir contra esse amor. Longe deMaria vou morrer. De desamor, de tristeza, de falta de vontade de viver! Destinonosso, meu e de Maria, ou é amar ou é morrer.Rosa:Que é que posso fazê?Amado:Se quer me ajudar, traz o mais fino e puro sal do mar, dissolvido no orvalho danoite... quando soprar o vento leste com a força sagrada, eu vou me libertar e com asua ajuda.(...)Amado:Que os olhos impuros não vejam, porque aqui vai morar o que é sagrado. Senhoraminha, lua, soberana de todos os ciclos, de tudo que morre e renasce... Senhora mãeda terra, soberana dos ventos, dos metais, das águas e do mistério da vida... Vemsol, pai de tudo que é força, de toda transformação... Oh, noite, chega de segredos,que uniu amado com amada... Escuta-me, por fim, agora! E liberta-me a alma. Oh,dia cheio de graça, revela-me o mistério, a estranha sina dolorosa... de me perder doamor de minha amada. Oh, noite abençoada... Oh, dia enfeitiçado... Liberta-me!
Asmodeu, inconformado com os acontecimentos, faz nevar. O Pássaro fica congelado,
morre. Maria o encontra, aquece-o. O calor de seu corpo e de seu amor faz com que o coração
do Pássaro volte a bater. O gelo vai derretendo e Maria percebe uma fechadura na altura do
peito dele e se dá conta de que é do tamanho de sua chavinha. Abre, vê o coração do Pássaro
que bate ainda muito fraco, o pega em suas mãos, beija-o e devolve-o ao peito do Amado. O
Pássaro renasce e logo se transforma no Amado.
Amado:Ainda que toda noite durma e nenhum vivente possa presenciá esse milagre,ninguém há de duvidá: o Deus que acendeu a chama do amor num foi pra despoisapagá.Maria:Meu coração sabia e me guiô.
111
São muitas as histórias que se entrelaçam na microssérie de modo a valorizar a cultura
popular e suas crenças, e como não poderia deixar de ser, Maria traz consigo uma chavinha,
que guarda com muito carinho, pois fora presente de sua mãe, sempre dizendo que é a
“chavinha do tesoro”. Quando o pai a assedia, ela recorre à imagem de Nossa Senhora da
Conceição e segura firme numa pequena chave que traz junto ao peito, pendurada em seu
pescoço por um cordão e diz “[...] e com essa chavinha hei de encontrar meu tesoro que se
esconde em argum dos caminho das franja do mar.”
A chave é um elemento simbólico presente em diversos contos, significa mudança,
passagem de um estado para outro. Ela está presente na fábula “Barba Azul” como o principal
símbolo da verdade, ela abre a porta que mostra a verdadeira índole daquele horrível homem,
um assassino de suas mulheres, além de simbolizar também a desobediência da mulher, que
curiosa, abre a porta do quarto onde se encontram os corpos das esposas anteriores
assassinadas. Porém em Hoje é Dia de Maria, a chave abre o coração de Maria para o amor.
O contador tem consciência de seu papel social, mostra, com formas e intensidades
diferentes que tem uma relação mítica com a tradição, e coloca-se em jogo para reconstruir a
forma de transmitir o seu repertório usando o imaginário para além do cotidiano. Permite uma
reflexão social, traz um ponto de vista crítico e profético sobre o tempo presente e o que está
por vir, faz-nos viajar no tempo e no espaço.
Se narrar é colher os fatos da própria experiência transformando-os em experiência para os
ouvintes, o ato de narrar significa também o encontro com os mistérios que envolvem o
homem e a vida nos diversos momentos de sua existência. É uma herança de conhecimento,
memória coletiva, um conjunto de valores, de práticas simbólicas nos quais estamos
estabelecidos e regulados por regras vitais de comportamento para criar e re-criar.
3.2- O maravilhoso: mitos indígenas e africanos
Mito é a ação constante e individualizada de seres e de coisas que se dão no céu e na
terra (WILLIS, 2007). O mito transfigura os seres e os fenômenos naturais,
transformando-os em totens e tabus. Num sentido mais amplo o mito tanto se refere às
personagens sobrenaturais, como a objetos extraordinários ou regiões fantásticas, que
existem na mentalidade de tribos e povos. Eles contêm símbolos de sentido oculto ou
112
manifesto que coordenam os anseios e temores humanos com os grandes fenômenos
naturais. Existem mitos zoológicos, aquáticos, florestais e minerais, estes últimos relativos
a pedras e montanhas. Os mitos podem ser gerais, regionais, ou locais.
A lenda é uma narrativa popular inspirada em fatos históricos, transformados pela
imaginação ou pela tradição. Seus heróis são sempre homens ou mulheres consagrados na
história de um país, de uma cidade, ou nas diversas religiões. Elas estão sempre ligadas ao
tempo e ao espaço e geralmente se referem a fatos reais, em torno dos quais a fantasia cria
uma série de coisas irreais e até mesmo inverossímeis. Entre nós, figuras de cangaceiros,
de beatos e de heróis vivem cercados de um mundo de coisas imaginárias. Antônio
Conselheiro e Padre Cícero são exemplos elucidativos. O diabo é a grande personagem
das lendas, porque, embora ele não seja personagem histórico, simboliza a luta entre o
bem e o mal e, de acordo com a sabedoria popular, nas estórias o demônio sai sempre
derrotado.
A cultura popular nacional em Hoje é Dia de Maria apresenta-se através de expressões
vivas e dinâmicas do nosso folclore. O diretor Luiz Fernando Carvalho acredita em um
patrimônio genético do Brasil, e tenta resgatá-lo na microssérie. “Suas histórias, suas
raças, suas línguas, seus sons; tudo ainda vive, tudo me dá a sensação de que, como um
arquétipo, está à espera de reencarnar para continuar suas missões éticas e estéticas”
(CARVALHO, 2006).
Ao dar espaço para a participação de manifestações da cultura branca, negra e indígena, como
a Folia de Reis, o ritual dos Índios Xavantes, o batuque e a dança da Umbigada Paulista, a
rabeca de Mestre Salustiano e seu filho Pedro, entre outras, o diretor parece conseguir
reencarnar este arquétipo, tão renegado e esquecido pela sociedade moderna.
A Folia de Reis apresenta-se no cortejo que acompanha o casamento da Madrasta com
o Pai, é um grupo vestido de trajes vistosos e munido de belos estandartes. Declamam
versos, cantam e dançam. É o Reisado Flor do Oriente, de Duque de Caxias, Baixada
Fluminense. Eles fazem parte da Folia de Reis, folguedo religioso de origem ibérica em
que as pessoas visitam amigos e familiares e trocam presentes, para comemorar o fato de
o Menino Jesus estar entre os homens. O “Flor do Oriente” tem mais de 130 anos de
tradição passada de pai para filho e não costuma sair fora de época, mas os participantes
se envolveram de tal maneira com a gravação, que Mestre Tião chegou a fazer versos
sobre a trama. A Folia de Reis é uma festa conhecida em todo o país e ainda é comum nas
cidades do interior.
113
Figura 58 - Cortejo que acompanha o casamento da Madrasta com o Pai
Figura 59 - Folia Reisado Flor do Oriente Figura 60 - Um dos tradicionais estandartes da festa,
que tem origem ibérica.
Mestre Salustiano é considerado um dos maiores rabequeiros da América Latina. Mestre
Salustiano e seu filho percussionista Pedro Salustiano participam da cena em que Maria
encontra um grupo de retirantes. Ambos interpretam personagens e tocam bumbo e rabeca,
enquanto todos cantam "Valei-nos”, de Tim Rescala. Mestre Salustiano e Pedro também
tocaram forró ao vivo durante a gravação da cena em que Asmodeu brincante (Antônio
Edson) dança com uma boneca de pano para atrair a atenção de Mariazinha. Também foi
Pedro quem preparou os atores Antônio Edson e Carolina Oliveira para essa dança, assim
como deu aula de pandeiro para Gero Camilo, que interpreta Zé Cangaia.
114
Figura 61 - O rabequeiro Mestre Salustiano e seu filho Pedro Figura 62 - Mestre Salu e Pedro participam da cena
em que Maria encontra os retirantes.
Quando Maria chega ao Vilarejo onde ela encontra Zé Cangaia, está sendo celebrada a
festa de São José e conta com a participação da Banda Santa Cecília e Cirandeiros de
Parati. As Festas de São José acontecem em todo o país, principalmente nas cidades
pequenas, e contam com a parte religiosa (novena, missa solene, procissão) e festejos
populares (leilão de ofertas, rifas etc.).
115
Figura 63 – Chegada de Maria ao Vilarejo; celebração Figura 64 – Participação da banda Santa Cecília e os da festa de São José Cirandeiros de Parati, na cena da Festa de São José.
A Umbigada Paulista é uma dança da comunidade negra de origem africana, o grupo participa
das cenas da volta do Príncipe, fazendo contraponto às festas da nobreza branca, o baile e o
casamento. Possuem uma dança sensual que, assim como o batuque e o samba, foi trazida ao
Brasil pelos escravos africanos. A dança é uma pancada, de leve, que se dá com o ventre nas
danças de roda. A Umbigada é também chamada de Samba Rural Paulista e influenciou o
carnaval da região.
116
Figura 65 – Reza das mulheres da Umbigada Paulista antes de Figura 66 - Os integrantes dançam batendo de leve o
gravação ventre uns nos outros.
117
Figura 67 - A integrante da Umbigada entoa os cânticos e os demais dançam.
Os dez índios que participam da cena em que Maria liberta a noite presa dentro de um coco
são da Aldeia Pimentel Barbosa, em Água Boa (MT). É uma tribo que ainda mantém suas
tradições e remetem aos primórdios da civilização brasileira. Apesar da resistência inicial, já
que costuma ser uma tarefa feminina, os índios Xavantes montaram suas próprias tangas com
arranjos de palha. No resto do corpo, usaram uma pintura tradicional da cultura indígena.
Figura 68 – Índios Xavantes da Aldeia Pimentel Barbosa, em Água Boa – MT
118
A Lenda da Noite é um mito indígena tipicamente brasileiro, é uma lenda que pode ser
encontrada em diferentes versões, porém em todas elas a presença do coco (ou caroço de
tucumã) é fundamental no desenrolar da narração, como na reprodução a seguir:
“No começo do mundo só havia o dia. A noite estava adormecida nas profundezasdo rio com Boiúna, cobra grande que era senhora do rio. A filha de Boiúna, umabela jovem, tinha se casado com um rapaz de um vilarejo nas margens do rio. Seumarido, um jovem muito bonito, não entendia porque ela não queria dormir comele. A filha de Boiúna respondia sempre:
- É porque ainda não é noite.- Mas não existe noite. Somente dia! - Ele respondia.Até que um dia a moça disse-lhe para buscar a noite na casa de sua mãe
Boiúna. Então, o jovem esposo mandou seus três fiéis amigos irem pegar a noitenas profundezas do rio.
Boiúna entregou-lhes a noite dentro de um caroço de tucumã, como se fosseum presente para sua filha. Os três amigos estavam carregando a tucumã quandocomeçaram a ouvir barulho de sapinhos e grilos que cantam à noite. Curiosos,resolveram abrir a tucumã para ver que barulho era aquele. Ao abri-la, a noitesoltou-se e tomou conta de tudo. De repente, escureceu.
A moça, em sua casa, percebeu o que os três amigos fizeram. Então, decidiuseparar a noite do dia, para que esses não se misturassem. Pegou dois fios. Enrolouo primeiro, pintou-o de branco e disse:
- Tu serás cujubin, e cantarás sempre que a manhã vier raiando. Dizendo isso,soltou o fio, que se transformou em pássaro e saiu voando. Depois, pegou o outrofoi, enrolou-o, jogou as cinzas da fogueira nele e disse:
- Tu serás coruja, e cantarás sempre que a noite chegar. Dizendo isso, soltou-o, e o pássaro saiu voando. Então, todos os pássaros cantaram a seu tempo e o diapassou a ter dois períodos: a manhã e a noite.”(A LENDA DA NOITE. Autor Desconhecido; Origem: Brasil.
<http://www.fontedeluz.com/main.php>. Acessado em 28 mar. 2008)
3.3- Um processo de emancipação através da arte e das raízes populares
Falar de cultura popular é levar em conta as tramas das criações, dos símbolos e dos
significados que realizam as conexões entre as várias manifestações populares, os
diferentes modos de ser e de representar-se. A relação entre as várias culturas mostradas
na microssérie leva-nos a refletir criticamente num processo de emancipação, inclusive
sobre a responsabilidade da educação e da escola na transmissão de um saber e de
vivências mais críticas e mais criativas a respeito de nossas culturas populares
(HOLANDA, 1995).
A cultura nada mais é do que um sistema de significados que expõem atitudes e
valores, nos quais expressam suas formas simbólicas, num processo constante de re-
119
criação; basta olharmos ao nosso redor para perceber a incorporação que ocorre nesse
processo de emancipação através saber cultural do qual somos parte e também o
partilhamos (CALADO, 2002). Somos naturalmente humanos, porém objetos de uma
natureza socializada pela cultura. A cultura habita as diversas tramas, saberes, sentidos,
significados, sentimentos que criamos, preservamos e com os quais transformamos nossas
maneiras de viver e de sobreviver, atribuímos identidades a quem somos. Isso só é
possível por compartilharmos palavras, saberes, idéias, visões de mundo, sistemas de
crenças, religiões, filosofia, artes, teorias e práticas.
Ao longo de nossa sinuosa história buscamos respostas às nossas perguntas, estabelecemos
sentidos para as nossas vidas, consagramos princípios para a nossa múltipla convivência e nos
impomos códigos e regras para podermos viver numa sociedade humana com tantas
divergências culturais. Cada um de nós é um elo, e um feixe de interações no aprender –
ensinar - aprender. Somos detentores de algum conhecimento singular a respeito de uma ou
algumas áreas do saber humano e, ao interagir com a própria vida e com o mundo,
aprendemos e re - aprendemos.
É preciso lembrar que a cultura desenvolveu-se a partir da possibilidade da
comunicação, o que significa que tudo o que o homem faz, aprendeu com os seus
semelhantes e sem imposições. A comunicação é um produto da cultura, mas ao mesmo
tempo não existiria cultura se o homem não tivesse a possibilidade de desenvolver meios
para expressar-se. A cultura serve de lente através da qual o homem vê o mundo e
interfere para a busca de sua satisfação.
Para poder falar em “emancipação” decidi consultar a definição do verbete, comecei pela
leitura do termo no Dicionário do Pensamento Marxista, editado por Tom Bottomore, e nele
Marx e os marxistas tendem a ver a liberdade em termos de eliminação dos obstáculos à
emancipação humana, isto é, “ao múltiplo desenvolvimento das possibilidades humanas e à
criação de uma forma de associação digna da condição humana” (BOTTOMORE, 1988,
p.123/124), assim cada indivíduo teria os meios de cultivar seus dotes e possibilidades em
todos os sentidos. As análises de Marx sobre a liberdade pessoal esbarraram nos limites da
sociedade capitalista, fincada nas leis de mercado.
Na Teoria Crítica (ADORNO, 2000) a cultura nas sociedades modernas ocidentais é destruída
pela produção capitalista para o mercado. Nesse ambiente, a cultura e a arte assumem um
papel ambíguo, servem de sustentáculo aos desejos de liberdade e felicidade, que são
inviabilizados nas sociedades modernas, mas projetam-nos em uma esfera ilusória que tenta
pacificar um desejo rebelde.
120
Num de seus últimos trabalhos, Garcia-Canclini (2008) observa que por mais acessível,
heterogênea e múltipla que seja a cultura mundializada não será capaz de construir pontes
num mundo rompido, ou seja, ela não é capaz de emancipar.
Diante de diferentes pontos de vista, ainda é possível mostrar há autores como Freire (2002) e
Santos (2003) que apontam práticas pelas quais o ser humano pode expressar seus potenciais,
suas capacidades e ter suas diferenças valorizadas. Nessa perspectiva institui-se um processo
de emancipação num contexto multicultural, busca-se nutrir uma sociedade emancipada.
O atual momento nos apresenta uma sociedade cada vez mais globalizada e tecnologicamente
avançada, porém, com a maioria da população exposta à exclusão e à violência. O
desenvolvimento da ciência atende mais aos interesses do mercado do que aos da espécie
humana, é a banalização do ser.
Paulo Freire apresenta uma reflexão quanto ao papel e o compromisso da ciência e da
tecnologia e propõe “A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de
resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das
mulheres” (FREIRE, 2001, p. 147), isto é, uma ciência e uma tecnologia que se coloquem a
serviço do processo de emancipação. E, Santos (2003), defende uma globalização condizente
com um projeto de sociedade que respeite as culturas locais, multicultural e emancipada.
Discorrer sobre emancipação é escrever sobre um conjunto de ações, utopias, lutas,
sonhos, projetos e ações humanas em busca da felicidade, da justiça, da liberdade e da
fraternidade, que só acontecerão pela conquista humana numa luta ininterrupta. Para isso,
a liberdade é condição imprescindível, como cita Freire (1989, p.35) “A libertação, por
isto, é um parto [...]. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na
e pela superação da contradição opressores - oprimidos, que é a libertação de todos”.
A primeira jornada da microssérie Hoje é Dia de Maria remete-nos para essa
libertação. Ao apoiar-se no conto Pele de Asno, revela o valor da mulher no seio da família, e
a força de um sentimento que leva à superação da dor. Cinderela (Gata Borralheira) mostra-
nos a libertação da mulher diante da violência doméstica quanto aos maus tratos, da busca do
verdadeiro amor e não a espera de um príncipe encantado. A fé está presente em todos os
momentos difíceis, de dor, de perda, de solidão, inclusive de decisão, ela representa
segurança, paz, acolhida, amor, o bem, companheirismo, solidariedade, confiança, todos na
figura de Nossa Senhora da Conceição. Asmodeu representa o mal, traz tristeza, provoca
discórdia, dor, insegurança, exploração do trabalho infantil, desgraças, inveja, perseguição.
Em Feitiço de Áquila temos a busca incessante do amor, uma busca que não mede esforços,
demonstra perseverança e paciência. Representada na pessoa de Maria, que já não é uma
121
Maria qualquer, como um “Zé Ninguém”, a mulher é a superação de um preconceito de
fragilidade, fraqueza e submissão, cada “dia” de Maria, é uma dificuldade vivida, porém,
enfrentada e vencida, são ações que demonstram a libertação, por isso, uma nova Cinderela,
aquela não se deixa abater pelas dificuldades e que crê, mesmo na mais primitiva sabedoria
popular, supera, traz a noite estrelada, traz a chuva pro sertão, desafia e vence Asmodeu, é
solidária, encontra e vive o amor.
O processo de emancipação é a superação, que traz ao mundo novos seres, não mais
opressores, nem oprimidos, mas a libertação. Como diz Freire (1989, p.30) “E aí está a grande
tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores”.
Em seguida Freire (2002) fala sobre a desumanização que é amplamente mostrada na
Segunda Jornada de Hoje é Dia de Maria.
A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada,mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção davocação do ser mais... Na verdade, se admitíssemos que a desumanização évocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar umaatitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre,pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”,não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmoque um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma“ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (FREIRE,2002, p. 30)
Nessa perspectiva, a emancipação é ter a condição humana de cada um ser o
protagonista de sua história, é apropriar-se e experimentar o poder de pronunciar o mundo, a
vivência. A emancipação consiste num fazer cotidiano e histórico permeado de desafios,
sonhos, utopias, resistências e possibilidades.
Maria foi a protagonista de sua história, a narradora deixa claro esse processo de
emancipação na trama de Hoje é Dia de Maria, quando finaliza dizendo “virou, mexeu, lutou
e mereceu” e faz referência à inocência como renovadora do mundo. E, “Tenho muita
história na gibeira, me encontro co ceis numa festa lá na beira das franjas do mar. Atrasá até
pode, só não pode é faltar. Inté.”. Nesse momento, a narradora remete-nos à Segunda Jornada,
na qual o autor expõe Maria a novos desafios, as personagens representam como se fossem
bonecos, como se atuassem mecanicamente, e a tecnologia é presença marcante na
robotização do ser humano. Porém, a Segunda Jornada de Hoje é Dia de Maria, é uma
indicação para um estudo futuro. A Segunda Jornada faz algumas analogias e aponta
diferenças que quebram expectativas sobre o novo ambiente e seus desafios; apresenta a
pequena Maria na cidade grande, esta com todos os seus encantos e desencantos; onde ocorre
122
a exploração do homem pelo homem e a criança exposta diante da violência da sociedade.
Coloco uma mostra deste estudo no Apêndice.
O próximo capítulo mostrará algumas das possíveis leituras que o professor,
independente da área de atuação e do nível de ensino, pode realizar em sala de aula
utilizando-se da mídia televisiva, mais especificamente, da tão rica obra como Hoje é Dia de
Maria. O professor poderá valer-se de todos os elementos que compõem a obra, desde
cenários, personagens, músicas, histórias, cultura popular, folclore, linguagem, entre outros,
inclusive num trabalho interdisciplinar.
CAPÍTULO 4
A MÍDIA TELEVISIVA E A CULTURA POPULAR: AS POSSÍVEIS LEITURAS
4.1- Contos de fada
Durante a execução desta pesquisa minha reflexão foi sobre a importância dos contos
de fadas na sala de aula e como utilizar este instrumento transformando-o em mais um
meio de entretenimento no cotidiano das crianças. Nesta reflexão considero de grande
valor salientar que os contos de fadas têm um grande poder lúdico sobre as crianças, bem
como em desenvolver a imaginação, a criatividade e momentos de reflexão. Para
Bettelheim (1985), nenhum tipo de leitura é tão enriquecedor e satisfatório do que os
contos de fadas, pois eles abordam os problemas interiores dos seres humanos e
apresentam soluções e ajudam a formar a personalidade, além de ampliar o repertório de
conhecimento sobre o mundo e possibilitar a transferência dos principais dramas das
crianças aos personagens, portanto, não podem faltar na educação.
123
Em todo trabalho com contos de fadas o professor deve, inicialmente, apresentar
primeiro as obras que mais se aproximam dos originais, traduzidos por escritores
conhecidos, somente depois apresentar as novas versões para que os alunos sejam levados
a diferentes reflexões. O professor deve explorar a “hora do conto” com criatividade e
criar um universo de magia e curiosidade, como por exemplo, sair do espaço da sala de
aula no momento da leitura; sentarem-se no chão, ou ainda forrar o chão com tapetinhos
“mágicos”, talvez manufaturados pelos próprios alunos numa aula de Educação Artística e
apresentar a história aos poucos, para criar mais suspense.
Os contos de fadas não devem ficar restritos apenas às séries iniciais, deve estender-se aos
adolescentes, pois esse tipo de leitura vislumbra um mundo que sabemos não ser real, mas
que sempre tem algo a ensinar, alertar, refletir e contribui para a formação de leitores críticos.
O conto mostra, de maneira subjetiva e algumas vezes objetiva, que a vida traz algumas
dificuldades, que mesmo o herói ou a heroína passam por diversas provas e essas devem ser
realizadas por eles mesmos, como diz Bettelheim (1985, p.173) “A única forma de nos
tornarmos nós mesmos é através de nossas próprias realizações”.
A escola também deve abordar nos contos de fadas o confronto entre o bem e o mal, pois
tanto as crianças como os adultos deparam-se com pressões da sociedade, e suas escolhas
devem ser pautadas de acordo com o pré-estabelecido por ela. Nesse instante surgem questões
como narcisismo, conflitos edipicos, rivalidades fraternas, egocentrismo, perdas, entre outras.
Nos contos de fadas, o confronto entre o bem e o mal se diferencia de outros textos, pois as
personagens, quando lidam com o mal, não usam a força bruta, mas sim a esperteza ou a
astúcia. O maniqueísmo1 que divide as personagens em boas e más, belas ou feias, poderosas
ou fracas, facilita a compreensão de certos valores básicos de conduta humana ou convívio
social. Isso tudo é transmitido através de uma linguagem simbólica e, durante o período
escolar, pode contribuir para a formação de uma consciência pautada na ética. Os alunos
necessitam de uma educação moral que de modo sutil e implícito os conduza às vantagens de
se ter um bom comportamento, não através de conceitos éticos abstratos, mas naquilo que lhes
parece correto e conseqüentemente significativo. No entanto, não é o fato de o malfeitor ser
punido no final da história que faz com que os contos maravilhosos e de fadas se tornem uma
experiência em educação moral. Neles, como na vida, a punição ou o medo dela é apenas um
meio de intimidação ao crime. A convicção de que o crime não compensa nos contos é1 O maniqueísmo é uma filosofia dualística que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou Diabo. A matériaé intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com a popularização do termo, maniqueísta passou aser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do Bem e do Mal. Sugestão de leitura, oartigo: LIMA, Raymundo. O Maniqueísmo: o Bem, o Mal e seus efeitos ontem e hoje. Psicanalista e professorda UEM, no site: http://www.espacoacademico.com.br/007/07ray.htm. Acesso em 04 nov. 2008.
124
mostrada de modo que a pessoa má sempre perde. Não é o fato de a virtude vencer no final
que promove a moralidade, mas de o herói ser mais atraente para o leitor.
A presença do narrador nos contos de fadas assume um papel fundamental para o
desenvolvimento do enredo e também para prender a atenção do leitor, no caso da televisão, o
telespectador. A microssérie Hoje é Dia de Maria apresenta uma narradora onisciente, na voz
de Laura Cardoso, além de fazer a apresentação durante a trama, leva o espectador a uma
viagem no tempo e no espaço. O cenário apresenta um espaço castigado pela seca, porém uma
menina ri descontraidamente enquanto brinca num balanço em uma árvore, a voz da narradora
dá início à trama dizendo “Longe, num lugar ainda sem luz, havia uma pobre família desfeita.
E... era uma vez uma menina chamada Maria...”.
A cada final ou começo de episódio a narradora está presente, como ao final do
primeiro episódio a narradora conclui e chama o espectador a interagir com a cena:
Antonce, de maneira que foi ansim por essa forma. Maria ganho estrada, envergocaminhada sem querer ver fim. E fingia que não sabia de nem da Terra do Sol aPino que secava bicho, homem ou menino. E... mai fecha a janela do zóio, dorme esonha... Que a noite lhe seja risonha e amanhã a gente continua quando caí o sol,arribá a noite e suspendê a lua. Inté.
Iniciando o segundo episódio a narradora retoma o final do anterior e apresenta o novo
personagem que, a partir de então acompanhará Maria. Mesmo assim, o leitor é convidado a
acompanhar “Antonce Maria foi tentar sua sorte no mundo, mai como no fundo ninguém ta
sozinho um Pássaro Estranho foi seu amigo. Antonce, caminha comigo, repara e vê o que
assucedeu. Então...”. A cena mostra Maria cantando e entrando na Terra do Sol a Pino
seguida pelo Pássaro Incomum. Nesse episódio Maria vive inúmeras aventuras, o encontro
com o Maltrapilho, com o Homem de Olhar Triste, com os Executivos, com os Retirantes,
com o Mendigo, com os Índios, com a menina Carvoeira e com Asmodeu, enquanto seu Pai
sai a sua procura e também vive cenas inusitadas. Para finalizar esse episódio a narradora diz:
E assim foi e assim será. Vai daí que Maria caminho, caminho. Seu pai se entortono seu rastro, mai como o mundo é também parte do bem e do mal, o bem encontroa sombra de um moço, entonce Maria arriscando o pescoço... Já desceu a noitenegra, o dia hoje foi luta e amanhã é outra escuta. Inté.
No início do terceiro episódio a narradora chama o espectador para que fique atento
aos acontecimentos, pois apesar de Maria viver momentos mágicos no anterior, agora tem
Asmodeu em seu caminho. A cena começa com Maria entrando num vilarejo no momento em
que acontece uma procissão em louvor a São José. A narradora:
125
Antonce, acerta os óio, alerta os ouvidos porque amigo é tesouro que nem por ourose faça trato com o Demo e nem coma no seu prato. Não sei, nem sempre é bão,mai num custa prestá atenção. Não sei como foi, como num foi, ta mai com ar dequem contou que viu e que mentiu, antão...
Finalizando o terceiro episódio, a narradora chama a atenção sobre as atitudes de
Maria para com Asmodeu, reforça a luta travada entre o bem e o mal.
Ai, ai, ai, ai, que Maria comprô richa com Asmodeu, o coisa ruim, e esse um numai de sussegá enquanto não embaraça com mil nó cego o caminho dela, tanto que...Mai é tarde, que sem alarde o tempo voa. Amanhã, amanhã quando fecha a luz dodia, de novo vai nascê a flor Maria no jardim de nossa história. Inté.
A narradora dá uma diretriz do que ocorreu para dar uma seqüência lúdica ao que se
segue, sempre inserida no contexto, inclusive pela linguagem utilizada. Introduz o quarto
episódio
Ah, de modos que Maria e as coisas já foram seguindo desse jeitinho, assim mesmocomo eu tô contando. Maria há de perdê e de ganhá coisa de muito amor, sua vida...mai peraí... cada coisa a seu tempo, cada tempo em seu canto, porque uma históriase faz de certeza e também de espanto... antão...
Maria é perseguida por Asmodeu, que também impede o pai de encontrá-la pelas suas
artimanhas. Maria perde sua chavinha. Asmodeu faz a roda do tempo girar e Maria perde sua
infância. A narradora finaliza o quarto episódio “E assim foi e como as coisas na vida que mal
me pergunte, a sorte vem, mas essa é pra outro dia. O que digo é só sinal que a história de
Maria segue e ainda ta longe o seu fim.”
O quinto episódio começa sem a presença da narradora, apenas as cenas bastam para a
história. Mas, ao finalizar a narradora comenta “Desculpe se na história pesa a tristeza, mai
nessa melancolia há requinte de beleza, de amor errado e sincero, mai não tarda não, amanhã
a história segue. Inté.”
Ao iniciar o sexto episódio a narradora o introduz com “Antonce que de manera que se
tô bem lembrada o desatino de Quirino, mai essa história anda a revelia e ai que se tem que
temperá a água fria da tristeza com o calor da interia, pois é assim que uma emoção boa vai
tocar o coração de Maria. Antão...”.
A narradora chama a atenção do espectador pelo grande número de cenas de dor,
tristeza e desencontros, porém “Se a gente chegou junto até aqui, agora tem que ir junto até o
final. Que posso fazê se das veiz na vida provação parece que não tem fim. Só dô um aviso,
prepara o coração. Amanhã a sorte, a roda da fortuna irá rodar. Inté.”
126
O começo do sétimo episódio dá-se com a indagação da narradora “Provação não tem
fim, a roda da fortuna virá ou não?”. Para finalizar a narradora faz analogias com a realidade
do mundo “A pois assim, a história mudô o rumo, parece inté que saiu do prumo e
inguarzinho que a vida as veiz faiz. E agora, como é que se labora com tanta reviravorta. Eita,
que a vida parece que é torta. O futuro de Maria é um presente que amanhã desembruio pros
ceis. Inté.”
Enfim, o oitavo e último episódio da primeira jornada de Hoje é Dia de Maria. A
narradora prepara o telespectador
Antonce, coração pronto, ouvido e zóio atento e alma sem desalento. Maria tantoprocuro, tanto busco que quase conseguiu. Quem seguiu passo a passo meu relato,comeu o melhor do prato e viu, quem não viu nem te viu sabiá, vai ver agora e nãohá de se esquecê. Antonce...
Finaliza como em todo conto de fadas... mas com uma diferença...
É a inocência que renova o mundo. Maria virou, mexeu, lutou e mereceu e até hojevive feliz com seu amado. Tenho muita história na gibeira. Me encontro co ceisnuma festa lá na beira das franjas do mar. Atrasá até pode, só não pode é faltar.Inté.Antonce, de maneira que foi ansim que tudo assucedeu. Êta que lá no fundo todomundo sabe que não é a espada, é a inocência que renova o mundo.
As histórias são compartilhadas tanto pelo narrador como pelos ouvintes num processo
de reelaboração, desde que aceito pela comunidade, pois esta seleciona, o povo participa da
criação e da transformação da cultura popular, da mesma forma como participa da criação e
da transformação de sua língua natal, assim as variações farão parte do repertório coletivo da
tradição.
Os indivíduos não se cansam de narrar, de ouvir, de vivenciar narrativas, há um
universo de histórias constituído pela tradição oral e literária. A escola deve apropriar-se
dessa atividade milenar e enriquecer o processo de ensino e aprendizagem. A interação dos
alunos com relatos populares e eruditos é a via para a formação de leitores e de indivíduos que
preservam o prazer de pensar, descobrir, interrogar, criticar e inovar. Essa formação transita
pela experiência de ouvinte e narrador de histórias do cotidiano.
Hoje é Dia de Maria reúne em seus episódios contos de fadas passados de mães e avós
para filhos e netos ao longo dos séculos, às vezes seguindo a moral das histórias, outras,
subvertendo-a. A mais significativa “subversão” está na personalidade de Maria, uma heroína
que passa longe das princesas passivas das fábulas tradicionais, que esperam seus príncipes
127
para salvá-las de todos os males. Maria escapa da Madrasta, enfrenta o diabo, diz não ao
Príncipe e se apaixona pelo Pássaro, seu protetor. Mas apesar destas diferenças, a saga de
Maria assemelha-se a de muitos heróis universais: há uma partida, uma tarefa a ser realizada e
um retorno - roteiro básico da experiência de todo ser humano. Este rito de passagem2,
chamado pelo mitólogo Joseph Campbell (1995) de “O Herói de Mil Faces”, está presente em
diversas culturas.
Na microssérie, como no conto de fada, há uma madrasta ruim, que toma o lugar da
mãe boa após a morte desta. Também expõe Maria aos trabalhos mais pesados, a maltrata, a
escraviza até que chegue ao esgotamento.
MADRASTAVá bamo vê. Pare de ficá me oiando com esses oi granado e vai já cuidá da roça demilho que é de muito maior serventia. E trate de ponha pressa no trabaio que vancêinda tem muito que fazê.(...)Deu conta de tudo? Entonce, xispa fazê a janta que Joaninha ta verde de fome.(...)enquanto poupa a própria filha.Madrasta (outro tom)Vá, Joaninha, vamo descansá mai um pouco, que o sór inda nem se levantodereito...(...) dirigi-se à Maria:Ocê precisa de coro como eu preciso de oro! Bem que a Joaninha foi me falar queocê tava forgando.MARIATô brincando um cadinho causa de que já terminei todas obrigação. Panela areada,louça lavada, roupa passada, criação tratada.MADRASTACarcule... E as prantação?(...)(Aproximando-se por trás) Ah, siá mãe da preguiça!... Eu não lê falei que era pranum deixá os bicho bicá as fruitas? Sojeitinha treme-treme... Eu não lê falei que aJoaninha tem ojeriza de mamão bicado de passarinho? Pui agora vancê vai vê...(Bate) Leve, Sinhá desavergonhada... Tome...MARIANum fai ansim cumigo... Num fai... Num fai ansim... Ai, ai, ai...MADRASTAVorte aqui, peste, e é já e já! Vorte nos pé que é pra mó de eu te ensiná,desgracionada...
A mãe volta depois na figura da fada madrinha, no caso da microssérie, a Nossa
Senhora da Conceição e a Camponesa.
2 Rito de passagem é uma celebração que marca mudança de status de uma pessoa no seio de sua comunidade. Otermo foi popularizado pelo antropólogo alemão Arnold Van Gennep no início do século vinte. Tambémchamado por monomito por Campbell no livro O Herói de Mil Faces, divide-se em três seções, valendo-se dedoze estágios para compor a Jornada do Herói.
128
SENHORAQue foi que lê fizero, pra vancê padecê tanta tristeza ansin, Maria?(...)MARIAUm tanto de tristeza, um tanto maió de sodade.SENHORASodade da mãe, né, não?MARIAA seora cunheceu a mãe? Como ela era? Gostava de quê? Ela era boa, num era?SENHORAEra boa como a terra que fai brotá tuda qualidade de semente; gostava dospassarinho, dos alimar, de ri e de cantá quando caía chuva miúda. E ela era assim...como calor de um abraço, como gosto sumoso de fruta madura... (...) Sua mãe lhevê de donde está: um lugar de onde toda vida brota, um lugar sem fim como aságuas do mar.MARIAE por que bondade assim, como a da mãe, tem de morrê?SENHORAPorque das veiz bondade tem de sê fortaleza, tem de tê gana de lutá pra numfenecê! O que há de ser tem muita força, Maria. Arreda a tristeza que seu dia há dechegar.(...)
MARIAB’a tarde, siá dona! A pergunta é sem preceito, mai a seora pode me indicá dereitoonde posso topá com um veio que é o cuisa-ruim?CAMPONESAIsso num é pregunta que se faça, e se fizé num hai resposta que se dê!MARIANum é por mal que procuro.CAMPONESAOcê tem o zóinho limpo como cristal de luz. Deus assim le conserve.CAMPONESAOutro! E ocê, menina, muito cuidado com o que seu coração lavora, porque o riscoé conseguir no futuro ou agora. segue inté a próxima encruziada e faz invocação.
Também há um baile, onde um Príncipe pretende encontrar sua amada. Maria,
auxiliada pela magia, recebe um vestido da cor do céu e sapatinhos encarnados, encanta o
nobre rapaz e deixa pasmas a Madrasta e sua filha, Joaninha. O sapatinho perdido é a forma
de o Príncipe reencontrar Maria, que, ao contrário das princesas dos contos, foge bem na hora
do casamento.
Na história de Charles Perrault – Pele de Asno – as forças do Bem e do Mal
demonstram na trama a busca da satisfação dos desejos do corpo e da conquista do poder. No
conto, o rei, viúvo, para atender ao pedido da esposa em seu leito de morte queria desposar a
filha, custasse o que custasse, pois apesar de procurar por toda a parte não encontrou uma
mulher que se igualasse em beleza e virtude à sua esposa, e notou que sua filha era
extraordinariamente bela e inteligente, ficou irremediavelmente atraído e declarou seu
interesse em desposá-la. Para evitar a situação a jovem é beneficiada com o milagre.
129
(...) Certo dia, sentindo que ia morrer, a rainha chamou o marido e lhe disse, aosprantos:- Meu fiel esposo e amigo, quero fazer-lhe antes de ir-me um pedido: se de novocasar...Nesse ponto, o rei a interrompeu, apertando-lhe as mãos e desfazendo-se emlágrimas, como que para dizer-lhe que jamais sequer pensara nisso.- Não, não, minha fiel esposa e amiga, em vez disso, peça-me que a siga na tumba!- O reino – continuou a rainha com tranqüila firmeza – precisa de sucessores e eusó lhe dei uma filha. Portanto, terá que se casar de novo, e eu lhe peço que só secase se encontrar uma princesa mais bonita e mais bem-dotada do que eu. Se mejurar isso, morrerei feliz e em paz.Parece que a rainha tinha muito amor-próprio, e que se forçou o marido a essapromessa, foi porque não cogitava que pudesse haver outra princesa que aexcedesse em beleza e dotes. Porém, o rei jurou a ela, alguns minutos depois,morreu.(...) O rei sofreu imensamente. Durante vários dias, só chorou e se lamentou. Mas,com o tempo, se foi conformando, e, certo dia, os seus ministros lhe mandaramuma representação, pedindo-lhe que se casasse de novo.(...) Enfim, não conseguindo mais esconder os seus sentimentos, declarou que só secasaria com ela.A jovem princesa, que era muito virtuosa, quase desfaleceu quando ouviu adeclaração do rei seu pai. Lançou-se-lhe aos pés e lhe suplicou eloqüentemente anão cometer aquele crime hediondo.(...) - Mas o que há, menina? Pois fique sabendo que isso foi ótimo. Envolva-se napele do asno e saia pelo mundo. Deus recompensa quem tudo sacrifica pela virtude.Vá. Tudo o que lhe pertence a acompanhará, eu lhe garanto. Fique com a minhavarinha de condão. Sempre que a bater no chão, verá surgirem as coisas de queestiver precisando.A princesa deu um abraço apertado na madrinha, suplicando-lhe que não aabandonasse jamais. Em seguida, envolveu-se na pele de asno, passou fuligem norosto e saiu do palácio despercebida.
A microssérie “Hoje é Dia de Maria – Primeira Jornada” apresenta o pai, fora de si
com a situação de viúvo, saudoso, lamentando-se da vida, abandonado pelos outros filhos
mais velhos, vê-se sozinho com a filha mais nova “Maria”, que brinca sozinha no quintal.
Conduzido pela embriaguez, chama Maria aos gritos e aos berros, que atende prontamente ao
chamado do pai, vai para dentro da casa, e ao entrar, o pai toma-a para si; a partir daí começa
a notar a beleza e formosura de Maria. A jovem menina, cheia de virtude e pudor, implora ao
pai para não fazer isso, dirigi-se ao seu quarto e conversa com a imagem de Nossa Senhora da
Conceição. Quando novamente é assediada pelo pai, como que por um milagre é salva por um
pássaro.
Casa do Sítio / Pátio / Exterior / ManhãzinhaO PAI, fraco, conduzido pela embriaguez e por uma saudade infinita dos bonstempos, começa a ter visões. O passado de sua história surge à sua frente, tãofresco e vívido como se tudo ali novamente estivesse. Os outros folhos, ainda
130
crianças, brincavam por ali. O PAI, ainda fraco, se ergue para avistar sua própriahistória, vivinha, diante de seus olhos:
PaiVorta, meus fio, e tudo... Vorta, minha... Vorta, minha muié... O que foi feitod’ocê, meus óio d’água? Ô, Deus, se o Senhor existe de verdade verdadera, por queé que o Senhor me levô ela de nóis? O que eu fiz pra merecê este castigo? Me levara mãezinha de Maria, meu amor... O mundo desandou que inté pareceu que sartôfora dos eixo. Tudo ficou ao desgoverno, desarvorado como planta sem raiz, casasem teto e corpo sem alma... Vorta, minha moça... minha senhora, minha rainha,cadê? Vorta, minha amada...
Casa do Sítio / Janela / Exterior / DiaVistas pela janela, sombras projetadas pela luz amarela do lampião escorregampelas paredes. A sombra do PAI agarra a sombra de MARIA, que se debate:
MariaAi, ai, ai... Num fai ansim, nhor pai... Num fai...
Casa do Sítio / Quarto de Maria / Interior / ManhãzinhaMARIA, com o rostinho inchado de chorar, conversa com a imagem de NossaSenhora da Conceição. Ela traz a mão fechada junto ao peito, ocultando umpequeno objeto que pende de um cordão preso em volta do pescoço.
MariaNum deve de sê curpa dele não, minha santa venerada. É que ele é ansim de lua, derompante de brabeza... A seora guarde ele com seu manto, me guarde tomem. Eguarde a mãezinha adonde ela ta. Diz pra ela que a farta é muita e que a sodade étanta...
Casa do Sítio / Roça de Milho / Exterior / ManhãzinhaMARIA está colhendo as espigas dos pés de milho. Está cansada, e as folhas domilho arranham seu rosto bonito. Largado ao lado da roça, o PAI bebe...O PAI percebe MARIA e se enternece.
PaiE só me sobrô a Maria tão-somente...
MariaLevanta, pai, bamo!
PaiOcê é a única coisa que eu tenho, Maria. A única frô que resto. Ocê é um cristal, ainocência num mundo de ruindade... uma moça fremosa, menina-muié...
Subitamente, o PAI segura MARIA e tenta beijá-la na boca. MARIA grita.
MariaNão! Pára, pai! Num fai isso!
Casa do Sítio / Roça de Milho / Exterior / Dia(...) o PAI agarra MARIA, que se debate, desesperada.
MariaAi, nhor pai... Num fai ansim cumigo não, nhor pai...
Pai(Violento, tentando beijá-la) Tome tenência que eu sô seu pai. Mi obedeça, siáMariquinha... Eu sô seu pai e sô seu dono...
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E assim, lutando, o PAI derruba MARIA entre os pés de milho. A menina choradeseperadamente.
MariaNão, nhor pai...
Pai
Pui vancê vai ficá sabendo quem é que manda...
A MADRASTA e JOANINHA estão atentas... De repente, como um anjo alado,surge um PÁSSARO, que, com seu bater de asas e seu vôo rasante, assusta o PAIcomo num safanão. MARIA se liberta do PAI e corre por entre as espigas demilho, chorando, desesperada. Assim como surgiu, o PÁSSARO desaparece. OPAI fica lá, enroscando-se nos pés de milho:
PaiVorta aqui já e já, minina fia do coisa-ruim...
O que se lê nas histórias é o que se conhece de relatos de vítimas da erotização de
relações pai-filha e a consciência de estarem sendo arrastadas a uma situação criminosa. E em
ambos os casos, as meninas tentam fugir do trágico destino. Em “Pele de Asno”, a jovem
princesa o faz disfarçando-se na pele de um asno que a torna irreconhecível para que possa
fugir e mais tarde poder encontrar sua felicidade.
- Minha menina, não se desespere! Nem tudo está perdido! – disse-lhe ela. – O reiestá obcecado e os nossos estratagemas falharam. Mas acho que se pedir a pele doasno que fornece todo o ouro que é o sustento da riqueza desta Corte, ele negará.Vá pedir-lhe a pele do asno.A jovem, alegre e cheia de esperanças, correu e foi pedir ao pai a pele do asno. Orei ficou espantado com aquele capricho, mas na hora ordenou que sacrificassem oasno, cuja pele foi dada à princesa.
Em “Hoje é Dia de Maria – Primeira Jornada”, a jovem menina convence o pai a
casar-se com uma viúva, que a ludibriara para o feito. A situação fica ainda mais complicada
para a pequena Maria, que decide fugir dali em busca do seu tesouro.
Nas duas histórias – Pele de Asno e Hoje é Dia de Maria - as jovens sacrificam-se
com a atitude que tomam para libertarem-se do assédio do pai e poderem buscar a felicidade.
São contos populares que mostram as difíceis condições de vida de uma população
despossuída de direitos e que enfrenta toda a sorte de violência no cotidiano. A fragilidade das
mulheres é mostrada diante da intenção e do desejo carnal masculino do próprio pai, quando
buscam desculpas para a atitude deles. Em “Pele de Asno” – o rei
(...) como já não estava muito no seu juízo perfeito, começou a sentir pela filha umamor profundo e forte, que não se assemelhava ao amor paterno (...)
132
E em “Hoje é Dia de Maria – Primeira Jornada” – a cena mostra
(...) MARIA, com o rostinho inchado de chorar, conversa com a imagem de NossaSenhora da Conceição.(...)
e diz:(...) Num deve de sê curpa dele não, minha santa venerada. É que ele é ansim delua, de rompante de brabeza... A seora guarde ele com seu manto, me guardetomem. E guarde a mãezinha adonde ela ta. Diz pra ela que a farta é muita e que asodade é tanta... (...)
Tomando-se ao pé da letra o ditado popular “Quem conta um conto... aumenta um
ponto”, descortina-se o mundo dos contos populares. Contos que foram criados e narrados
pelo povo, que nasceram da oralidade e do espírito inventivo de muitos. Suas idéias
contribuíram para alargar o campo da literatura oral. Não se sabe precisar quando esse
costume de contar histórias se instituiu como prática social, porém pode-se afirmar que é
muito antigo, de ordem universal, ocorrendo, portanto, em todas as civilizações, como vem
sendo comprovado por diferentes estudos etnográficos. Nas comunidades populares esses
contos eram e são, mesmo hoje, normalmente narrados não só para relaxar e divertir, para dar
conta de acontecimentos que escapam ao entendimento racional, assim o conto maravilhoso,
com seus elementos mágicos, explica o que a razão desconhece, mas para fazer as pessoas
refletirem sobre suas vidas pessoais e o contexto social em que estão inseridas.
A escola pode levar aos alunos a convergência entre o prazer de ouvir e de contar
histórias que, simultaneamente, enfatizem a natureza artesanal da produção, privilegiando a
história pessoal dos alunos, a percepção renovada de mundo e as possibilidades significativas
de uma história, levando a outras histórias como um convite ao passatempo e à fuga do
cotidiano. Isso exige o envolvimento reflexivo do leitor para que ele recrie a história que está
recoberta sob a que é narrada, sempre sugerindo novos e inusitados sentidos a cada nova
releitura. É uma opção de leitura da atualidade que pode ser recomendada aos alunos das
séries finais do Ensino Fundamental por apresentar a atemporalidade do conto, o tema, o
enigma inicial, a crítica à sociedade, o tom irônico do narrador e as diferentes etapas de
leitura, como entender, analisar, interpretar e aplicar, as quais fazem parte de um mesmo
exercício hermenêutico, devendo os alunos serem estimulados a narrarem episódios que
tenham por base problemas gerados no seio familiar e na sociedade em que vivem. Como
exemplo, ver com os alunos algumas cenas de Hoje é Dia de Maria e explicar os contos que
estão na base da trama. Fazer exercícios e entrevistas para que os alunos verbalizem seus
pontos de vista e suas atividades.
133
Cabe ao professor dinamizar a discussão, centrando-a na temática do conto
estimulando seus alunos a criarem seu próprio conto para apresentarem personagens ou
situações mediante as quais desmascarem condutas inaceitáveis, sob o ponto de vista da
convivência humana, da moral e da ética. Para fechar o circuito, que integra a manifestação de
narrativas orais e escritas, deve-se dar oportunidade ao aluno de apresentar sua narrativa e
que, já revisada pelo professor, seja divulgada entre a comunidade escolar.
Com a finalidade de completar a recepção, recomenda-se que o professor traga
exemplos de outras narrativas da tradição oral ou literária que se aproximem, sob o aspecto
temático, do conto. Inclusive, buscar complementar a interpretação com dados da biografia do
autor e do contexto estético-histórico-cultural de sua produção, para relacioná-los aos valores
e ideologias expressos no conto.
As atividades de transferência e aplicação, além de garantirem o espaço da produção
escrita e oral do aluno, visam responder às seguintes perguntas: Com que textos é possível
relacionar essa microssérie? Que diálogo há entre o texto televisivo e o contexto estético-
histórico-cultural do momento de sua produção?
Coloco como exemplo de atividade aplicada, um trabalho intitulado “Contos de Fadas:
uma conexão entre Literatura e Matemática nas Séries Iniciais”, Marina Alves da Cruz
Damião, Carlos Adriano Martins e Vivilí Maria Silva Gomes, do Centro de Ciências
Humanas, Universidade do Grande ABC – SP. <http://www.sbempaulista.org.br/epem/anais/
Comunicacoes_Orais%5Cco0071.doc. > (Anexo 5)
Diante de seu papel de dinamizador da aprendizagem e como participante da história
pessoal e da história de leitura de seus alunos, cabe ao professor enriquecer as experiências
que vivenciam coletivamente no espaço da sala de aula. Uma das formas de fazê-lo é
interligar o universo de narrativas, acolhendo as decorrentes de experiências pessoais e da
tradição oral para vinculá-las às narrativas de natureza estética. A leitura de diferentes contos,
que conseguem reunir o coloquial e o formal e esboçar a realidade humana em eventos
ficcionais, favorece esse trânsito, oportuniza o contato dos alunos com importantes
personalidades literárias e contribui para sua formação de leitores e de sujeitos críticos.
Incentivar os alunos a criarem novas histórias para a travessia de Maria com base em histórias
populares. Cada aluno lê suas sugestões, discute em pequenos grupos e no dia seguinte cada
grupo dramatiza seu roteiro.
Parlenda (do verbo parlar) ou trava-línguas, é uma forma literária tradicional, rimada
com caráter infantil, de ritmo fácil e de forma rápida. Usada, em muitas ocasiões, para
brincadeiras populares. Normalmente é uma arrumação de palavras sem acompanhamento de
134
melodia, mas às vezes rimada, obedecendo a um ritmo que a própria metrificação lhe
empresta. A finalidade é entreter a criança, ensinando-lhe algo. Algumas vezes, é chamada de
trava-línguas, quando é repetida de forma rápida ou várias vezes seguidas, provocando um
problema de dicção ou paralisia da língua, que diverte os ouvintes. Assim, pede-se a alguém
que repita uma parlenda, em prosa ou verso, de forma rápida - "fale bem depressa" - "diga
correndo" - ou que a repita várias vezes seguidas - "repita três vezes". As parlendas não são
cantadas e, sim, declamadas em forma de texto, estabelecendo-se como base a acentuação
verbal. Os portugueses denominam as parlendas cantilenas ou lengalengas. Na literatura oral é
um dos entendimentos iniciais para a criança e uma das fórmulas verbais que ficam,
indeléveis, na memória adulta.
Os trava-línguas são outro instrumento importante para ser utilizado na escola, pois
fazem parte das manifestações orais da cultura popular, são elementos do nosso folclore,
como as lendas, as parlendas, as adivinhas e os contos. O que faz as crianças repeti-los é o
desafio de reproduzi-los sem errar. Entra aqui também a questão do ritmo, pois elas começam
a perceber que, quanto mais rápido tentam dizer, maior é a chance de não concluir o trava-
línguas. Esse tipo de poema pode ser um bom recurso para trabalhar a leitura oral, com o
cuidado de não expor alunos com mais dificuldades. É nessa leitura que melhor se observa o
efeito do trava-línguas e, dependendo da atividade, passa a ser uma brincadeira que agrada
sempre. Os trava-línguas podem ainda ser escritos para criar uma coletânea de elementos do
folclore e pesquisados em diferentes fontes: livros, sites na internet ou revistas de
passatempos.
4.2- Folclore
O homem, “em sua verdadeira essência, é um homo festivus”, diz Havey Cox (1974, p.
20), busca sua caracterização identitária no cultivo dos folguedos, das aspirações visionárias e
na capacidade de fantasiar. São muitos e diferentes os registros que mostram a fabulosa
mistura de povos milenares e festeiros, como o indígena, o europeu e o negro vindo da África,
e o Brasil não poderia fugir a essa universalidade. Aqui fazemos festa por qualquer motivo e é
isso que não nos reduz a uma tribo de robôs.
Pensando na festa como experiência educativa, o olhar volta-se para as festas
populares, entendendo-as como momentos privilegiados das pequenas cidades e das
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populações das periferias das grandes cidades brasileiras, que interrompem a rotina de
trabalho para festejar com os vizinhos, amigos, co-participantes da mesma crença e das
mesmas tradições como num ritual. Para a antropóloga Mônica Wilson (apud Turner, 1974, p.
19), “os rituais revelam os valores no seu nível mais profundo (...) os homens expressam no
ritual aquilo que os toca mais intensamente”.
Desse modo, quando uma criança olha uma manifestação folclórica – dança ou música
-, assim que lhe for dada ocasião, saberá fazer o mesmo, é uma “situação de aprendizagem”,
termo usado por Carlos Brandão (1995) em seu livro O que é Educação. É comum ver muitas
crianças à volta de um grupo se apresentando, absortos em cada gesto e palavra, é o momento
em que se fazem aprendizes daquele ritual. Enquanto algumas crianças estão olhando e
querendo aprender, outras já estão inseridas nos grupos, o que possibilita a continuidade de
cada um dos grupos e da tradição que ele expressa e que o fundamenta.
É dessa forma que o povo escreve suas memórias, seus valores, seus códigos de
regras, suas crenças, suas angústias pelo árduo trabalho, suas esperanças e fantasias. Os
ingredientes que compõem a festa popular são também textos por meio dos quais as pessoas
simples manifestam tudo o que lhes toca mais profunda e intensamente. Proporcionam uma
outra forma de trabalhar, que se reveste de muita profundidade e importância nas festas
populares, pois as pessoas e os grupos populares não têm o domínio da escrita como forma de
expressão. Os textos são feitos em forma de dança, de cânticos rimados para facilitar a
memorização, são troças, lendas, ditados e muita comida gostosa.
Por isso, uma criança ou adolescente aprendendo a tocar um instrumento ou ensaiando
um passo numa dança, para também fazer parte da festa da sua família, vizinhança ou
comunidade, é uma pessoa que está aprendendo, assimilando uma compreensão de mundo e
buscando uma forma de nele se inserir. Participar de um ritual ou de uma festa supõe fazer a
sua parte, sempre intercalada com a parte do outro, ou dos outros. E isso tem muita
importância, em se tratando de educação. A vida também é assim: supõe diálogo, cooperação,
esperar a vez do outro, acreditar no outro. Ninguém é tão pobre e impotente diante da vida
que não lhe possa acrescentar um pouco de encanto. Ninguém é tão seguro e auto-suficiente
para poder encantá-la unicamente com suas forças e seus conhecimentos. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1997), volume 7, referente à Educação Física, aborda o
desenvolvimento do ser humano inserido num contexto cultural, como produtor e reprodutor
de cultura, aprendendo valores, conhecimentos e representações, ressignificando suas
intencionalidades e formas de expressões que podem ser chamadas de cultura corporal. O
professor deve localizar nos jogos, esportes, danças, entre outras manifestações, seus
136
benefícios fisiológicos e psicológicos e as possibilidades de utilização como instrumentos de
comunicação, lazer e cultura. Nos jogos, nas brincadeiras, nas danças, os alunos interagem
com os adversários e poderão desenvolver o respeito mútuo, a participação de forma leal e
não violenta, o desenvolvimento da capacidade de julgamento de justiça, atitudes de
solidariedade e dignidade. Cada região, cada cidade, cada escola tem uma realidade que deve
ser explorada e ressignificada de modo a contemplar os jogos, como bocha, malha, taco,
boliche e outros; as brincadeiras populares como amarelinha, pular corda, elástico, bambolê,
bolinha de gude, pião, pipas, esconde-esconde, pega-pega, coelho sai da toca, duro-ou-mole,
mãe-da-rua, cabo-de-guerra entre outros e as danças brasileiras (samba, baião catira etc.),
danças urbanas (rap, funk, pagode, danças de salão etc.), danças eruditas, danças
coreográficas, lengalengas, brincadeiras de roda, cirandas etc.
A escola tem responsabilidades e atribuições no que tange o assédio sexual e o
desenvolvimento sexual na infância e adolescência. A microssérie Hoje é Dia de Maria
apresenta três momentos importantes referentes à sexualidade na infância e na adolescência.
A personagem Maria é uma criança que representa a bondade, a solidariedade, porém, em
diferentes momentos e manifestações, a menina apresenta-se em cenas de demonstração de fé
e perdão, depois de sofrer o assédio do pai, tanto que, ajoelha-se diante da imagem de Nossa
Senhora da Conceição, e diz: “Num deve de sê curpa dele não, minha santa venerada. É que
ele é ansim de lua, de rompante de brabeza... A seora guarde ele com seu manto, me guarde
tomem. E guarde a mãezinha adonde ela ta. Dia pra ela que a farta é muita e que a sodade é
tanta...”. É uma cena trágica aos nossos olhos, mas infelizmente é do conhecimento da
maioria da população que esse tipo de assédio ocorre com muita freqüência, só que raramente
são denunciados. O que cabe à escola? No volume 10 dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(1997), que trata da Pluralidade Cultural e Orientação Sexual nos Temas Transversais, o
professor deve, inicialmente, propiciar um ambiente respeitoso, acolhedor, que inclua a
possibilidade de o aluno trazer para a sala de aula seu próprio repertório lingüístico e cultural;
deve abrir espaço para que a pluralidade de concepções, valores e crenças possam se
expressar, porém, não compete à escola, julgar como certa ou errada a educação que cada
família oferece. A única exceção refere-se às situações em que haja violação dos direitos das
crianças e dos jovens, como por exemplo, as situações de violência sexual contra crianças por
parte de familiares devem ser comunicadas ao Conselho Tutelar (que poderá manter o
anonimato do denunciante) ou autoridade correspondente. O professor, num trabalho com
crianças menores, deve realizar o estudo do corpo comparando o infantil e o adulto, o homem
e a mulher, incluindo os órgãos envolvidos na reprodução e zonas erógenas privilegiadas, em
137
sua anatomia externa, as reações corporais diante de estimulações sensoriais. O estudo será
ampliado e aprofundado de acordo com a idade, pois os alunos vão canalizando suas dúvidas,
às vezes polêmicas, sobre sexualidade, principalmente a partir da puberdade, e apresentarão
melhores condições de refletir sobre temáticas como aborto, virgindade, homossexualidade,
pornografia, prostituição e outras. Também analisar e comparar a abordagem dada ao corpo
pela ciência e o que veicula na mídia. No caso da microssérie Hoje é Dia de Maria, pode-se
trabalhar dúvidas, medos e informações ligadas à personagem Maria. É importante que se
possa oferecer um espaço dentro da rotina escolar para essas finalidades.
A boa formação do cidadão contempla, além de conteúdos convencionais, temas
morais que referenciem o princípio da dignidade do ser humano. É grande a diversidade das
pessoas que compõem a população brasileira, e esse é um dos motivos de preconceitos,
discriminações, que resultam em conflitos e violência. Por isso, o cotidiano da escola deve
priorizar o respeito mútuo, a justiça, o diálogo e a solidariedade. As atitudes da personagem
Maria revelam um comportamento ético, ela é solidária quando sai de casa em busca das
franjas do mar e encontra o Maltrapilho à beira do riacho, percebe que ele geme e tem um
ferimento na perna. Maria molha na água do riacho um pedaço do próprio vestido, limpa e
cuida do ferimento do rapaz. Justa e solidária, ao encontrar o Homem de Olhar Triste, e ao
seu lado um Defunto, tenta impedir os Executivos de baterem no morto por não ter saldado
uma dívida antes de morrer. De forma mágica, Maria usa a corda colorida encontrada no lugar
do Maltrapilho, consegue pegar o dinheiro dos Executivos e com esse mesmo dinheiro salda a
dívida do Defunto para, com a ajuda do Homem de Olhar Triste, enterram o corpo, inclusive
colocam uma cruz feita de gravetos.
O respeito mútuo, a justiça, o diálogo e a solidariedade estão presentes na cena em que
ainda no País de Sol a Pino no mesmo momento em que tira do embornal uma cabaça d’água
para beber ouve o pedido de um Mendigo que surge na beira da estrada “Dê um gole d’água
pr’amor de Deus.”. Depois de trocarem algumas palavras Maria leva a cabaça à boca, mas
pára indecisa, num gesto brusco, entrega a água ao Mendigo, que bebe até a última gota.
Agradece e também informa à Maria como conseguir encontrar a noite. Outro momento é
quando Maria chega num vilarejo em que acontece uma festa em louvor a São José, percebe a
presença de Asmodeu disfarçado num belo rapaz que tenta comprar a sombra de Zé Cangaia,
Maria tenta impedi-lo, porém não obtém êxito, pois Zé Cangaia se deixa levar pela vontade de
comer um sanduíche. Mesmo assim, quando Zé Cangaia percebe o erro que cometeu, Maria o
ajuda a enfrentar Asmodeu para obter a sombra de volta. Orientados por uma Camponesa que
diz a Maria “Ocê tem o zóinho limpo como cristal de luz. Deus assim lê conserve.” e diz a ela
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que tome cuidado com o que faz. Maria vence Asmodeu no desafio e consegue a sombra de
Zé Cangaia de volta. Também o momento do casamento de Maria com o Príncipe, ela vê o
Pássaro Incomum ser atingido por uma flecha atirada pelo capataz do Príncipe. Desiste do
casamento e sai à procura do Pássaro ferido. Encontra-o no chão perto da margem do rio,
abaixa-se com extremo cuidado, pega-o e traz junto ao colo, diz: “Ruidade que fizero co’essa
criatura de Deus! Corage, meu amigo, que vou curar essa ferida!” E começa a tirar a flecha
enquanto o consola e acarinha suas penas dizendo: “Tuda dor passa... Tuda dor se esquece.
Agora já te falta tão pouco. Corage, que tuda dor termina.” Esses são exemplos que
possibilitam ao professor analisar juntamente com seus alunos a identificação de situações em
que a solidariedade se faz necessária; as formas de atuação solidária em situações cotidianas e
em situações especiais; as providências corretas, como alguns procedimentos de primeiros
socorros; a sensibilidade e a disposição para ajudar as outras pessoas, quando isso for possível
e desejável, inclusive possibilitar aos alunos o conhecimento da possibilidade dos serviços
públicos existentes, como postos de saúde, corpo de bombeiros e polícia, e formas de acesso a
eles e o uso do diálogo como instrumento de comunicação na produção coletiva de idéias na
busca de solução de problemas.
Apesar das inúmeras manifestações culturais populares temos na microssérie Hoje é
Dia de Maria algumas festas, como a do casamento do Pai de Maria com a Madrasta, a festa
em louvor a São José, a festa do Príncipe para a escolha de uma noiva e a festa do casamento
de Maria com o Príncipe. São situações as quais nos leva a pensar em festa como uma grande
escola, na qual se aprende, antes de outras tantas coisas, como a vida em sociedade acontece –
seus valores, seus conflitos e suas possibilidades de interação e sociabilidade. “Enquanto
ritual, a festa reproduz de forma simplificada a sociedade que a produziu; ela desenvolve uma
espécie de pedagogia social”, diz Ribeiro Júnior (1982, p. 42). Uma criança que começa a
freqüentar uma festa começa, pois, a descobrir o que terá que fazer para melhor se inserir na
vida em sociedade.
Uma festa é uma representação da vida em sociedade, e entre seus componentes está a
conflitividade, diz ainda Ribeiro Júnior (1982, p. 45-48). A luta pelo exercício do poder
perpassa todas as instituições da sociedade e o mesmo ocorre com a festa. Também não é
possível pensar uma festa de 30 anos atrás sendo repetida hoje da mesma maneira. A história
muda, as pessoas incorporam novas visões de mundo e, por isso, “a cultura é dinâmica”,
lembra o antropólogo Roque Laraia (1986, p. 98-99): “os homens, ao contrário das formigas,
têm a capacidade de questionar os seus próprios hábitos e modificá-los”. É nesse ponto que se
percebe a dimensão educativa das manifestações da cultura popular, ao mesmo tempo em que
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marca os valores, as normas sociais e as tradições de um grupo, demonstra inovações,
mudanças, novas descobertas e novas concepções. É aprender o quanto há de riqueza e de
sabedoria a preservar e, ao mesmo tempo o quanto se aprende com as transformações da
história e coma lenta mudança das mentalidades.
“A festa popular é o grande e fecundo momento a nos ensinar que a arte de viver ede compreender a vida que nos envolve está na perfeita integração entre o velho e onovo. Sem o novo, paramos no tempo. Mas sem o velho nos apresentamos aopresente e ao futuro de mãos vazias”. (Pessoa, 2005, p. 39)
As práticas educativas da escola têm muito a aprender com as festas populares. Um
exemplo é apontar as festas populares em Hoje é Dia de Maria, ilustrando com as cenas e
conversando com os alunos. Tenta-se “prender” a criança na escola e “prender” sua atenção
no que se quer ensinar, desenvolvem-se diferentes e diversas teorias pedagógicas, apresenta-
se ultimatos aos pais, além de barganhar a presença por compensações financeiras (bolsas).
As festas populares não precisam de nada disso. As crianças e adolescentes as procuram,
espontaneamente e até às escondidas. Vão por gosto pela música, pela dança, pelo convívio
ou, quem sabe, numa hipótese ainda mais otimista, por um sentimento de pertença. Como
poderá a escola chegar a esse mesmo gosto e a esse mesmo sentimento? Os professores, que
estão “com a mão na massa” e, ainda, que estão muito mais próximos de cada uma das
diferentes realidades sociais e festivas, é que têm condições de responder a esta e a outras
perguntas. Principalmente, saber da importância de levar o aluno a valorizar a cultura de sua
região e país.
Pensando na inevitável indagação sobre o “como fazer”, Jadir de Morais Pessoa
(2005) apresenta três indicações substanciais:
A primeira é que a comunidade escolar tenha ocasiões concretas de conhecimento dasfestas, como elas realmente acontecem. Quem aprende, para depois passar a gostar,precisa aprender o certo. Assim acontecendo, os alunos e professores terão aoportunidade de compreender toda a fundamentação mítica, religiosa, artística,estética daquela festa. Esta primeira indicação pode acontecer, também, com ummovimento inverso: a festa indo à escola. Nesse caso, esses componentes dafundamentação da festa vão estar irremediavelmente diminuídos, por se tratar não doacontecimento da festa, em data e local próprios, mas de uma apresentaçãoexcepcional da festa. Mas, pelo menos, alguns elementos da festa (história, dança,música, vestimenta) poderão ser vistos pelos alunos e explicados pelos própriossujeitos que a constituem.A segunda indicação é quanto à possibilidade de serem desenvolvidas, nas escolas,releituras ou recriações das festas populares, seja por grupos de teatro ou pelospróprios alunos. Aqui vale o alerta dos folcloristas, no sentido de que essas recriaçõessão consideradas “para-folclore”. Ou seja, elas não são o fato folclórico em si, comono caso de um grupo de Reisado fazendo seu ritual próprio, sempre ensaiado,
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corrigido e avalizado por seus mestres, os guardiões daquela tradição. Mas, como oobjetivo é sempre pensar sobre o que a escola e seus sujeitos podem aprender com afesta, a reprodução desta, mesmo se feita por outros sujeitos, pode ser de grandeoportunidade. Recomenda-se, obviamente, que esses esclarecimentos sejam semprefeitos e que seja estimulado que, em outras ocasiões, as festas populares sejamconhecidas em seu ambiente e período próprios de realização.A terceira e última indicação é que, por um ou por outro caminho, depois deconhecida, a festa seja tomada também como situação de potencialização (ampliação)do conhecimento sobre a diversidade cultural brasileira (por meio de discussões,debates, reflexões, entrevistas, encenações, atividades de leitura e escrita, etc.). Se asfestas populares forem abordadas como momento de ócio, de lazer, de folga, debrinquedo, etc., já será um ganho, pois elas expressam a grande riqueza cultural denosso país. Mas elas podem “dar” muito mais: elas podem contar, de diversas formas,em diversas linguagens, em múltiplas cores, como nos tornamos uma nação e como ocapital está querendo nos fazer crer que não somos mais uma nação. Se a escola tomarparte nesta dramática tensão e, em especial, na forma como a cultura popular avivencia, aí o reconhecimento quanto ao seu papel de instituição produtora ereprodutora de conhecimentos, social e culturalmente referenciada, chegará à suaformatação mais completa.Concluindo por uma perspectiva um pouco mais didática – como classificar e falardas festas populares – salta logo à mente a clássica divisão das festas em ciclos, sendoos mais citados: ciclo das festas natalinas, ciclo carnavalesco, ciclo quaresmal e ciclodas festas juninas. É inegável o quanto esta classificação ajuda a organizar nossa idéiasobre as festas existentes nesse imenso Brasil. (PESSOA, 2005.)
A microssérie tem a presença marcante da Música de Heitor Villa-Lobos, o grande
responsável pela música e o Canto Orfeônico nas escolas na década de 30, foi um projeto
importante, consistente e sistemático. O Canto Orfeônico difundia idéias de coletividade e
civismo, princípios condizentes com o momento político de então, porém eram de caráter
folclórico, cívico e de exaltação. Ele também esbarrou em dificuldades práticas na orientação
de professores. Novas teorias sobre o ensino de Arte favoreceram o rompimento com a
rigidez estética reprodutivista da escola tradicional. A Educação Musical contrapôs-se ao
Canto Orfeônico e, o ensino de música passa a ter um novo enfoque, a música pode ser
sentida, tocada, dançada, além de cantada. Passou a utilizar jogos, instrumentos de percussão,
rodas e brincadeiras, proporcionando o desenvolvimento auditivo, rítmico, a expressão
corporal, a socialização e a improvisação e criação.
A editora Moderna publicou como sugestão, um projeto intitulado “Villa-Lobos e o
Folclore”, que pode ser trabalhado de 1ª. a 4ª. série do Ensino Fundamental com os objetivos
de ressaltar a importância de Villa-Lobos para a cultura brasileira, que os alunos conheçam o
folclore brasileiro a partir da música de Villa-Lobos e de sensibilizar os alunos para a
apreciação da música erudita nacional. Sugere, inicialmente, a leitura de textos informativos
sobre a vida e a obra de Villa-Lobos, inclusive um levantamento sobre o folclore brasileiro,
seus personagens, histórias, festas, vestimentas, alimentos, músicas etc., pelas obras de
Câmara Cascudo. Para a 5ª. série, um estudo mais profundo, relacionando a trajetória de
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Villa-Lobos e a era de Vargas. A imaginação criadora permite ao ser humano conceber
situações, fatos, idéias e sentimentos que se realizam a partir da manipulação da linguagem. É
função da escola fornecer instrumentos aos alunos para a compreensão de que o universo da
arte contém além da experiência estética, o conhecimento gerado pela necessidade de
investigar o campo artístico como atividade humana. Para que a aprendizagem da música
possa ser fundamental na formação de cidadãos é necessário que todos tenham a oportunidade
de participar ativamente como ouvintes, intérpretes, compositores e improvisadores, dentro e
fora da sala de aula, isto é, incentivando a participação em shows, festivais, concertos, eventos
da cultura popular e outras manifestações musicais. Isso levará o aluno a valorizar os
momentos importantes em que a música se inscreve no tempo e na história.
Pensar na formação de uma memória do povo brasileiro é pensar obrigatoriamente nos
elementos culturais que já fazem parte da nossa história e, as produções culturais têm a
capacidade de dirigir-se a um público mais amplo, que se envolve, se emociona e se identifica
com seus atores, dessa forma ajudam a compor a memória desse povo. Um dos objetivos
desse trabalho é compreender o processo de integração entre a cultura e a formação da
identidade coletiva. A memória é um elemento essencial e nos introduz no universo das
lembranças sociais, nas memórias que representam a formação, a preservação da cultura e da
identidade de um povo.
Cada indivíduo carrega suas lembranças pessoais, porém ele está inserido em um
contexto, vivendo em uma sociedade, e é nesse contexto que ele consolida suas lembranças. A
memória individual sofre influências das diversas memórias que nos rodeiam (MAFFESOLI,
2001). A junção dessas memórias tem um caráter prático. Para retomar seu próprio passado, o
ser humano freqüentemente precisa buscar apoio nas lembranças dos outros, reportando-se a
pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade. O
funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos, que são as
palavras e as idéias que o indivíduo não inventou e que emprestou de seu meio.
É curioso observar como as lembranças históricas construídas na infância são
influenciadas pela presença das lembranças das outras pessoas. Se o indivíduo se lembra de
um fato de infância, mesmo sem compreender num momento imediato seu sentido histórico, é
porque, naquela época, sentia que os outros indivíduos ao seu redor, os adultos, preocupavam-
se com aquilo. Mais tarde, então, ela passará a compreender melhor a importância de tal
acontecimento. As lembranças são reconstruídas no presente, pois retomam os fatos do
passado com a ajuda de dados emprestados do presente. Com o distanciamento temporal dos
acontecimentos, a lembrança destes parece ocorrer em conjuntos, mas a precisão vai se
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perdendo, bem como a individualidade de cada fato. A imagem, muitas vezes, é reconstruída
a partir de relatos e depoimentos, sem que o indivíduo se dê conta de que aquela não é uma
lembrança fiel, conservada pela sua memória. É importante observar, entretanto, que, ao lado
do efeito de atualização da memória do telespectador, é uma nova forma de recepção, pois
lembranças mais antigas juntam-se às mais novas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
HOJE É DIA DE MARIA – O ENCONTRO POSSÍVEL DA MÍDIA TELEVISIVA E
DA ARTE.
O ser humano é movido pelos imaginários que engendra e, Maria tem um percurso
construído coletivamente, isto é, agrega imagens, sentimentos, lembranças e experiências que
mergulham o homem em correntes imaginárias que o impulsionam às ações. O imaginário
ganhou espaço na mídia. Para Bachelard (1989), o termo imaginário é uma metáfora do
encontro entre natureza e homem; já para Maffesoli (2001), é uma força, um catalisador, uma
fonte comum de sensações, de lembranças, de afetos e de estilos de vida.
A exemplo de Maria, que viveu Pele de Asno, A Gata Borralheira, Pedro Malasartes,
Cinderela, fez desafios, cantorias, assim como uma geração inteira já sonhou o sonho dos
Beatles, divulgado pela indústria cultural. A idéia pode ser incorporada, distorcida, ampliada
ou imitada, pois no imaginário há sempre desvio no momento da identificação. É uma fonte
racional e não-racional de impulsos para a ação, é pelo imaginário que o ser constrói na
cultura. Maria sofre, é peregrina, tem o livre arbítrio, sonha, ama e acredita, acima de tudo, na
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esperança. Desde o início de sua jornada ela acredita e espera encontrar “gente completinha,
das boa e purinha como os amor, há de existi nesse mundo, sim sinhô...”.
Os cenários e as personagens revestiram-se da originalidade e da identidade nacionais
recriando os contos populares, apoiando-se nas cirandas infantis de Villa-Lobos criou um
roteiro representativo da cultura regional brasileira e dos demais contrastes sociais que
promoveu um resgate cultural identitário, muitas vezes tão esquecido entre nós.
A construção desse repertório levou em consideração as questões próprias do meio,
numa perfeita harmonia do popular com o erudito, num gênero fundado no diálogo que, além
de ampliar as condições dos realizadores, demandou diferentes modalidades de recepção. A
personificação do bem e do mal se redefine ao longo do seriado numa constante metamorfose,
e é justamente nesse processo de fragmentação e embaralhamento que paira a riqueza da
serialização televisual, recorrendo sempre à narração, marcada pela oralidade, nos gestos, na
expressão corporal e comportamental, como um verdadeiro desafio para a identificação das
personagens.
A imitação é um grande trunfo da tradição popular, apesar dos avanços científicos e
tecnológicos o estudo do folclore se faz necessário, pois é ele que caracteriza a formação
cultural de um povo, como a literatura de cordel, por exemplo, antes utilizava-se somente da
oralidade, com o tempo passou a utilizar-se também da escrita, mas não perdeu sua
característica de espontaneidade e de criatividade. Da mesma forma, ocorre com os
provérbios e ditados, ninguém sabe quem os escreveu, mesmo assim expressam
cotidianamente, de forma prática e popular, idéias, pensamentos e ensinamentos. Na
microssérie, os desafios, repentes, provérbios e ditados são explorados pelo autor de modo a
caracterizar a vivência popular numa dosagem espetacular.
As músicas e as danças trazem à microssérie um sentido tridimensional, proporcionam
um diálogo entre cenários, personagens, movimentos, narração e sonoridades que, além de
valorizar o erudito em conjunto com o popular, a nossa cultura musical, provoca um
entrelaçamento com as manifestações populares de danças.
Além dessas manifestações culturais populares, a microssérie apresentou muitas
histórias entrelaçadas que valorizaram as crenças, apresentou desde o início uma chave, cuja
simbologia é levar Maria em busca de seu sonho, e como todo bom contador, o autor teve
consciência de seu papel social, mostrou com formas e intensidades diferentes a relação
mítica com a tradição usando o imaginário para além do cotidiano. Permitiu uma viagem
reflexiva no tempo e no espaço, que envolve o homem e a vida em diferentes momentos de
sua existência coletiva, assim como os mitos, as manifestações da cultura branca, negra e
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indígena, apresentados na microssérie que também estão sempre ligados ao tempo e ao espaço
e geralmente se referem a fatos reais, em torno dos quais a fantasia cria uma série de coisas
irreais, até mesmo inverossímeis.
A comunicação é um produto da cultura, e a cultura é a lente pela qual o homem busca
suas satisfações e faz as interferências, porém o desenvolvimento da ciência atende a
interesses mercadológicos, o que provoca a banalização do ser, para isso, a pesquisa tentou
mostrar a importância em se conhecer e valorizar a cultura popular para que o homem possa
perceber que precisa interagir com a própria vida e com o mundo num processo de
emancipação.
Paulo Freire nos possibilita um projeto de educação popular que almeja a libertação,
humanização e emancipação humana. Sua pedagogia caminha “em torno de uma ontologia
social e histórica. Ontologia que, aceitando ou postulando a natureza humana como necessária
e inevitável, não a entende como uma a priori da História. A natureza humana se constitui
social e historicamente”. (FREIRE, 2002). “Vocacionado à Liberdade, o ser humano busca
responder através de sua disposição de cavar, sem cessar, espaços de autonomia, em vista de
um renovado compromisso com a causa emancipatória, seja no plano pessoal, seja no âmbito
coletivo” (CALADO, 2002). Freire busca ainda, realizar o sonho político a favor da
emancipação humana. Esta tarefa, no entanto, “não pode ser proposta pela classe dominante.
Deve ser cumprida por aqueles que sonham com a reinvenção da sociedade, a recriação ou
reconstrução da sociedade”. (FREIRE, 2001)
Nesse sentido, a emancipação humana não acontecerá por eventualidade, por
concessão, mas será uma conquista efetivada pela práxis humana, que demanda uma luta
ininterrupta. Assim, Freire não defende uma libertação enquanto ponto ideal, fora dos
homens, ao qual inclusive eles se alienam. A liberdade é condição imprescindível ao
movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos... “A
libertação, por isto, é um parto [...]. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só
é viável na e pela superação da contradição opressores - oprimidos, que é a libertação de
todos” (FREIRE, 2002). De tal modo que a superação dessa contradição é um processo que
traz ao mundo novos seres, não mais opressores, nem oprimidos, mas homens libertando-se.
A pedagogia do oprimido (2002), nesse contexto, constitui a pedagogia dos homens e
das mulheres empenhando-se na luta por sua emancipação. A origem da pedagogia do
oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, “deixa de ser do oprimido e passa a ser a
pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”. (FREIRE, 2002)
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A presença dos veículos de massa nas sociedades modernas está provocando impactos com
relação aos modos de ver e sentir dos grupos humanos e influenciando as mais variadas
práticas sociais. Um dos espaços onde a questão dos veículos de comunicação e das novas
tecnologias tem se colocado é na escola.
Muitas das dificuldades operacionais, metodológicas, pedagógicas, de relação
ensino/aprendizagem vividas pela escola são apontadas por especialista em educação como
decorrentes de um desajuste nos modelos que regem certos padrões discursivos
tradicionalmente vinculados à sala de aula e calcados na centralidade da palavra do professor.
Costumam-se opor este tipo de prática pedagógica às formas de os alunos operarem a
informação e o conhecimento decorrentes da rapidez, da simultaneidade e da forte presença
da linguagem icônica. Pesquisas recentes têm mostrado, no entanto, que existe grande
dificuldade para o estabelecimento de um possível diálogo entre o discurso institucional
escolar e as formas de linguagem institucionalmente não-escolares, dentre as quais podemos
incluir, genericamente, os meios massivos de comunicação.
Pensar a comunicação e a educação além da visão restrita da tecnologia da informação é
considerar a educação como simples matéria a sofrer tratamento tecnológico. Sob o olhar
sócio-antropológico, deve-se articular educação, comunicação, cultura e imaginário numa
dimensão complexa capaz de dar conta de uma interatividade imaginária. Acredita-se que a
escola necessita desenvolver uma pedagogia interativa. Para tanto, parti-se da interatividade
social, valorizando a cultura como a teia de significados construída pelos homens, repleta de
simbolismo. A Escola deverá favorecer uma comunicação que desperte o homem para o
reencantamento do mundo. A educação necessita perceber a cultura como um instrumento
indispensável no âmbito das relações sociais, da comunicação e do processo educacional. No
caso específico da comunicação, é necessário valorizar além das expressões verbais comuns,
os gestos e os comportamentos.
Esse trabalho procurou mostrar que a televisão de qualidade é possível, e que ela é a
responsável pela democratização da cultura, faz a recuperação de contos infantis, contos
populares e contos folclóricos, além de recriar arte e cultura na mídia televisiva e aproximar
os brasileiros de suas origens.
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157
158
APÊNDICE
SEGUNDA JORNADA - PELOS CAMINHOS DA ARTE: O CONTO
MARAVILHOSO, DOM QUIXOTE, PORTINARI, DEGAS E TOULOUSE
Este apêndice é apenas uma mostra de um estudo futuro, pois o autor, utilizando-se da
voz da narradora ao finalizar a primeira jornada de Hoje é Dia de Maria quando diz
“Tenho muita história na gibeira, me encontro co ceis numa festa lá na beira das franjas do
mar. Atrasá até pode, só não pode é faltar. Inté.” proporciona ao leitor a certeza de que
outras histórias virão, e leva-nos a refletir a emancipação como processo, estudo este já
visto no terceiro capítulo desta pesquisa. Como todo processo não acaba o autor faz
algumas analogias e aponta diferenças que quebram expectativas sobre o novo ambiente e
seus desafios; o cenário é a cidade grande com todos os seus encantos e desencantos;
apresenta a exploração do homem pelo homem e expõe a criança diante da violência
social. É a mesma “Maria” em uma nova jornada com novos encontros, porém sempre
buscando respostas e sentidos.
1- Analogias e diferenças quebrando expectativas
A segunda jornada de Hoje é Dia de Maria foi ao ar com um elenco bem menor que a
primeira jornada; com cenários e figurinos de material reciclado, abordou temas como
desigualdade social e miséria, a corrupção entre os poderosos, a exploração do trabalho
infantil, a subjugação da condição feminina, porém com um diferencial, uma proposta
ousada: a narrativa musical. Com cerca de 50 músicas compostas originalmente para a
série, cantadas pelos próprios atores. O autor das canções é Tim Rescala, em parceria com
o escritor Luiz Fernando Carvalho.
O texto pode ser visto como teatro de bonecos, opereta infantil ou história em quadrinhos
travestida de cinema. Melhor classificar Hoje é Dia de Maria como um delírio estético
sonhado em partes pelo diretor Luiz Fernando Carvalho.
154
Ver a microssérie é como folhear livros da carochinha, de onde salta uma cidade de brinquedo
que a televisão convencional jamais ousaria retratar: uma estrutura dos principais centros
urbanos com ângulos expressionistas.
A primeira imagem dessa série é inspirada nas pinturas de Paul Klee. Ele foi um artista da
essência, suas pinturas, muita delas de pequenas dimensões, parecem tímidas, mas, diante de
um olhar mais atento, revelam-se grandiosas em imagens e sensações. Diz-se que ele pintava
o que os olhos não enxergavam: por isso seus temas não podem ser vistos, apenas sentidos
com a alma e com o coração. Atento às energias e às vibrações, ele buscava o mundo interior,
aquele que estava além das aparências.
São vinte telas presas a estruturas com alavancas giratórias que simulam o vaivém das franjas
do mar. Trata-se de uma obra de arte que fala, ou melhor, canta, como o texto cantado que
assume a função de contar a história.
2- Lutando contra os moinhos de vento
Os novos desafios de Maria na segunda jornada acontecerão na cidade grande. Depois
de se deixar levar pelas águas do mar, perde sua chavinha no vai-e-vem das ondas. É jogada
na areia de uma praia desconhecida. Porém, ao iniciar sua jornada, muito assustada, é
encorajada por uma mulher, a Lavadeira, que na verdade, é Nossa Senhora Aparecida.
Maria se depara com um Pato frustrado por não voar e uma cabeça invejosa, fadada à
imobilidade, logo em seguida sentem um cheiro estranho, é o Gigante. Escondem-se. Depois
ouvem o cortejo da morte, encontram a Parca, ela indica o caminho para chegarem até o
Gigante. Convencida de que está perdida por causa do sonho do Gigante, Maria decide
acordá-lo, porém acaba sendo engolida por ele. Mais do que um bicho-papão, o tal Gigante é
uma inusitada metáfora sobre metrópoles. Sem entender, Maria encontra-se mergulhada em
lixo, fumaça e escuridão, e lá está a Menina Carvoeira que explica à Maria que lá é o local
onde fica tudo o que a cidade joga fora, inclusive as pessoas. São novas facetas do mau.
Apesar de Maria achar que o que está vendo é apenas um pesadelo do Gigante, a Carvoeira
alerta Maria que esta é a realidade do mundo. E oferece um binóculo à Maria, que vê uma
cidade por ele e segue atraída pelas luzes.
155
Na cidade, a pequena Maria descobre a violência, a ganância e a guerra, porém tem
como alento a proteção de um nobre cavaleiro andante, Dom Chico Chicote, defensor da
poesia e da justiça, e ensina à Maria que “É pelo sonho que vamos!”.
Maria encontra Dom Chico Chicote quando foge de Asmodeu Cartola e de Asmodeu
Piteira e adormece recostada numa porta de geladeira enferrujada sem saber que lá vivia Dom
Chico Chicote, que ao perceber a invasão do beco onde vive tenta desafiá-la, porém ao
perceber que se trata de uma pequena garota, desculpa-se e se apresenta como nobre
cavaleiro, servidor dos sonhos, do amor e da poesia. Jura-lhe proteção. Maria sente fome.
Dom Chico Chicote tenta disfarçar à pequena a cruel realidade prometendo-lhe um banquete
inesquecível. Maria embarca na brincadeira que, só é interrompida pelo rapaz que leva sobras
de uma lanchonete ao andarilho. O encanto se quebra, Maria leva o sanduíche à boca, porém
percebe a fome dos demais e como compartilham da mesma fome e miséria, tira um pequeno
pedaço para si e divide o resto entre os companheiros.
Dom Chico Chicote é uma mistura de D. Quixote com Arthur Bispo do Rosário, um
mendigo poeta e sonhador que vive pelos becos da cidade. Maria continua criança e
Letícia Sabatella, que era sua versão adulta, será Alonsa, uma descendente de espanhola
suburbana por quem Dom Chico Chicote se apaixona.
A história de Dom Quixote mostra a fabulosa cena em que ele arremete contra um
gigante e é derrubado por um moinho de vento é, seguramente, a mais poderosa imagem
histórica de todo o período da primeira modernidade. O desencontro entre uma ideologia
senhorial, cavalheiresca, em que habita a percepção de Dom Quixote, à qual as práticas
sociais já não correspondem, senão de modo fragmentário e inconsciente de um lado, e de
outro, novas práticas sociais, representadas pelo moinho de vento, em vias de
generalização, mas às quais ainda não há correspondência de uma ideologia legitimadora
consistente e hegemônica. É como dizer que o novo não acabou de nascer e o velho não
terminou de morrer.
3- As telas de Portinari – a exploração do homem pelo homem, o homem – máquina
Os desenhos de Portinari representam um diário minucioso de todas as soluções e evoluções
imaginárias de sua obra. Mesmo naquele longo período em que esteve impedido de fazer uso
das tintas, por questões de saúde. Durante esse período, como única opção diante de sua
156
voracidade inventiva, seus desenhos adquiriram momentos de explosão total. Eles eram seus
guias espirituais no desenvolvimento de temas imediatos e futuros, anotações anímicas para
soluções telúricas. Retratando os pés e as mãos da realidade árida, registra vidas,
desespiritualizadas pela luta da vida. Porém sua fé na alma do homem prevaleceu, em
realidade, como seu axioma primeiro. O homem foi desde sempre a questão fundamental de
Portinari. A preocupação mais nítida de seu expressionismo manifestou-se o tempo todo
dentro de seu veemente protesto social-humanista.
O diretor da microssérie representou essa diversidade na escolha do tipo de seu personagem,
como em Portinari, está repleta do tema “infância”, e da influência de temas sociais do povo
brasileiro.
A segunda jornada retrata um momento histórico que mostra a manipulação do homem pelo
homem num momento capitalista que só visa o poder e o dinheiro, explora o trabalho humano
como se o homem fosse uma máquina, é usado apenas para servir ao poder. Depois será
descartado como uma peça velha, ou quebrada, ou apenas o troca por um mais novo e mais
barato. O patrão deixa de ser para ter, e o empregado deixa de ser para servir.
4- A criança e a violência da sociedade
Na cidade, Maria começa enfrentando o frio, a fome, o desamparo. Apesar de estar
encantada com as luzes e os movimentos desse novo mundo, percebe que está sozinha nesse
caos urbano. Encontra o Boneco, que pergunta-lhe qual é o seu sonho, ela diz que o seu
desejo é encontrar o caminho de volta, mesmo assim ele mostra-lhe todas as ofertas, é
chamada a um consumo frenético, porém o que sente é saudades da família.
Cansada e com frio adormece sob uma marquise. Acorda assustada ao ser cutucada
por uma bengala, desculpa-se, é Asmodeu Cartola, que sem perder tempo explica que para
sobreviver é preciso de capital, oferece-lhe teto, roupas limpas e pede-lhe que confie nele. Ela
desconfia quase o reconhecendo, mas ela o segue até o fabuloso mundo do teatro de
Variedades. Nesse teatro percebe-se a grande influência das bailarinas de Degas (Edgar
Hilaire Germain de Gas ou Edgar Degas), este ficou conhecido por muito pintar bailarinas,
cenas do cotidiano parisiense e cenas domésticas, entre outros, porém as famosas bailarinas o
tornaram um pintor de renome. Também a influência de Henri de Toulouse – Lautrec, que
registrava de forma inconfundível em suas telas a sua vida urbana e agitada de Paris. Os
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artistas de circo, as dançarinas, os freqüentadores dos bares e cabarés, as prostitutas e as
pessoas anônimas, eram os que mais lhe interessavam. O cartaz 'Moulim Rouge, la Gouche' é
um bom exemplo das transformações espaciais em suas pinturas. Essas obras geralmente eram
feitas para divulgar os espetáculos das casas noturnas, mas muitas vezes despertavam
controvérsias quando eram levadas para as ruas. Um dos mais importantes cenários para a
produção do pintor foi o cabaré Le Moulin Rouge, com suas dançarinas e o ambiente
decadente do bairro de Montmartre. Seus trabalhos são banhados numa luz artificial bruta,
que revela a irrealidade do mundo que o atraía. Os lúgubres pilares da pobreza, crime e
exploração aparecem amiúde através das imagens e desmentem a alegria superficial, o garbo e
hipocrisia da Belle Époque.
Maria encanta-se, entretanto fica com medo ao perceber a agressividade de Cartola
com a bailarina principal, a Boneca. Maria aceita fazer a faxina no local, mesmo ressabiada,
torna-se amiga de Boneca e vê a ruindade de Cartola ao descartar a Boneca por conta de um
erro durante a apresentação. Boneca já não acredita no amor nem na beleza de sua arte, sente-
se um brinquedo velho. Dr. Copélius, um artesão, recolhe cada pedaço da Boneca e a monta
com carinho. Dá-lhe corda e ela ganha vida.
Agora Maria substitui Boneca no palco, faz uma apresentação inocente, irrita Cartola,
porém o público diverte-se. Torna-se estrela do Teatro de Variedades, a Piano-baby. Trabalha
um mês sem ganhar um tostão, quer ir embora, porém Cartola tenta convencê-la a cantar e
dançar para Asmodeu Piteira para fazer fortuna. Maria reconhece os “cafutes marditos”
(Asmodeu) e sai correndo pela cidade. Eles perseguem Maria pelas ruas, estão preocupados
com o prejuízo que terão. Ela esconde-se num beco e reza para Nossa Senhora Aparecida.
Adormece recostada numa porta de geladeira enferrujada.
Dom Chico Chicote torna-se um fiel protetor de Maria, dividem a miséria e a fome,
ela enfrentará muitas outras aventuras e desventuras na cidade grande, mas terá ao seu lado
um cavaleiro da mais nobre estirpe.
Alonsa e Dom Chico Chicote apaixonam-se. Dr. Copélius tem uma relação paternal
com Maria. Na cidade, ela se depara com novas formas do diabo Asmodeu e com problemas
mais mundanos, os quais são facilmente reconhecíveis no cotidiano do espectador.
Na segunda jornada os autores e o diretor ainda tiveram a preocupação em trabalhar
com um conteúdo educacional que não deixasse de lado a noção de fabulação e de
espetáculo.
158
159
ANEXO 1
FICHA TÉCNICA – HOJE É DIA DE MARIA – PRIMEIRA JORNADA
ELENCO
Letícia Sabatella (Maria adulta)
Rodrigo Santoro (Amado)
Osmar Prado (Pai)
Daniel de Oliveira (Quirino)
NARRAÇÃO
Laura Cardoso
APRESENTANDO
Carolina Oliveira (Maria)
Emiliano Queiroz (Asmodeu velho)
André Valli (Asmodeu mágico)
Ricardo Blat (Asmodeu sátiro)
Marco Ricca (Cangaceiro)
Charles Fricks (Executivo)
Leandro Castilho (Executivo)
ATORES ESPECIALMENTE CONVIDADOS
Juliana Carneiro da Cunha (Mãe / Nossa Senhora da Conceição)
Gero Camilo (Zé Cangaia)
Stenio Garcia (Asmodeu original)
Rodolfo Vaz (Maltrapilho / Homem de Olhar Triste / Mendigo / Mascate / Vendedor)
Inês Peixoto (Rosa)
Mário César Camargo (Odorico)
Aramis Trindade (Cangaceiro)
Ilya São Paulo (Cangaceiro)
Antônio Edson (Asmodeu brincante)
Denise Assunção (Mucama)
João Sabiá (Asmodeu bonito)
Nanego Lira (Retirante)
Thaynná Pina (Joaninha)
Laura Lobo (Carvoeira)
Phillipe Louis (Ciganinho)
Luiz Damasceno (Asmodeu poeta)
159
Suzana Faine (Velha Carpideira)
Rafaella de Oliveira (Joaninha adulta)
Tadeu Mello (Vendedor de apitos)
Fernanda Montenegro (Madrasta)
AUTOR
Carlos Alberto Soffredini
ADAPTAÇÃO
Luís Alberto de Abreu
Luiz Fernando Carvalho
DIREÇÃO GERAL
Luiz Fernando Carvalho
ELENCO DE APOIO
Grupo de Teatro “Tá na Rua”
Folia de Reis “Reisado Flor do Oriente”, Duque de Caxias – RJ
Índios Xavantes da Aldeia Pimentel Barbosa – MT
Cia. Circo Branco (As Pastorinhas)
Grupo de Umbigada Paulista
Banda Santa Cecília e Cirandeiros de Parati
Adilson Lacerda Neto
Carlos Machado Filho
Rodrigo Rubik
MENINOS CARVOEIROS:
Allison Benício
Amanda Mariana
Ana Carolina Augusto
Caio Guaraná
Caio Polizzo
Catarina Viamonte
Daruan Góes
Gabriel Lira
Gabriela Peluso
Haynnah Moura
Henrique Tinoco
Jéferson Amaral
Kauã Santiago
Kemly Moura
Loren Ferreira
160
Lucas do Valle
Lucas Ramos
Luiza Monteiro
Maria Nasser
Olívia Torres
Stéphany Faria
Taluya Góes
Cauã Waismann
Gabriel Guilherme
Gabriel Lucas
Isabella da Cunha
Larissa Corrêa
Luisa Polizzo
Luiza Apolinário
Maria Gerk
Paulo Neviani
Sabrina Paraíso
RETIRANTES:
Ana Paula Secco
Ana Paula Pardal
Morena Cattoni
Zé Rescala
Nei Motta
Pedro Salustiano
Mestre Salustiano
MARIONETES:
Teatro de Bonecos Giramundo
MANIPULADORES:
Marcos Malafaia
Ulisses Tavares
Eduardo Félix
Sophia Felipe
Guilherme Amarante
Cássia Macieira
Maria Fontes
Giulianna Gamboji
Louisa Lopez
161
DIREÇÃO DE ARTE
Lia Renha
CENOGRAFIA
Lia Renha
João Irênio
CENÓGRAFOS ASSISTENTES
Marcos Ranzani
Milton di Biazi
FIGURINO
Luciana Buarque
FIGURINISTAS ASSISTENTES
Aline Moreira
Maribel Spinosa
Maria Cláudia Costa
EQUIPE DE APOIO AO FIGURINO
Wagner Lousa
Jaciara Grbzybowski
Nelson Barbosa
Fátima de Paula
Ilma Rosalina
Lídia Maria
Railda Marques Lima
Sueli Barreto Castro
FIGURINOS DE PAPEL
Jum Nakao
Silvana Marcondes
DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA
José Tadeu
DIREÇÃO DE ILUMINAÇÃO
Paulo Roberto Miranda
EQUIPE DE ILUMINAÇÃO
Orlando Vaz Pereira
Alexandre Domingos Reigada
Luciano Martiniano
162
Paulo Roberto Miranda
Eduardo de Freitas
André Luís da Silva
Alan Vargas
José Luiz da Silva
PRODUÇÃO DE ARTE
Jussara Xavier
PRODUTOR DE ARTE ASSISTENTE
Aline Esteves
EQUIPE DE APOIO A ARTE
Ricardo Cerqueira
PINTURA DO PAINEL
Clécio Regis
EQUIPE CLÉCIO REGIS
Cleber Regis
Cássio Murilo
Bruno Costa
Paulo Maurício
ARTISTA PLÁSTICO
Raimundo Rodrigues
EQUIPE DO ATELIÊ
Orlando Brasil
Tarcísio Ribeiro
Ofeliano
Maurício Santos
Helder Araújo
Dida Nascimento
PRODUÇÃO DE ELENCO
Nelson Fonseca
COREOGRAFIA
Denise Stutz
163
PREPARAÇÃO CORPORAL
Tiche Vianna
Ésio Magalhães
PREPARAÇÃO DE ATORES
Maria Clara Fernandez
PREPARAÇÃO VOCAL
Agnes Moço
PRODUÇÃO MUSICAL
Tim Rescala
DIREÇÃO MUSICAL
Mariozinho Rocha
CARACTERIZAÇÃO
Vavá Torres
EQUIPE DE APOIO A CARACTERIZAÇÃO
Pina Junior
Glória Maria
Mário Crivelli (máscaras e perucas)
Jadilson Cruz
Susete Duarte
EDIÇÃO
Carlos Thadeu
Pedro Duran
Paulo Leite
SONOPLASTIA
Iraumir Mendes
Irla Leite
EFEITOS VISUAIS
Toni Cid
Eduardo Halfen
Carlos Gonçalves
Alexandre Areal
Rafael Ambrósio
164
DIREÇÃO DE ANIMAÇÃO
César Coelho
ANIMAÇÃO
Pedro Iuá
Luciano do Amaral
Aída Queiroz
Alessandro Monnerat
Bruno Edde
Bernardo Mendes
EFEITOS ESPECIAIS
Marcos Soares
Marco Paula
CÂMERAS
Murilo Azevedo
Sebastião de Oliveira
EQUIPE DE APOIO À OPERAÇÃO DE CÂMERA
Luiz Bravo
Arismar Ferreira
EQUIPE DE VÍDEO
João Norton
Tiorbe de Souza
EQUIPE DE ÁUDIO
Carlos Roberto Moreira
Rogério Vasconcelos
Arione Nazário
GERENTE DE PROJETOS
Douglas Araújo
EQUIPE DE CENOTÉCNICA
Docacildo Viana
Edir Correia
SUPERVISÃO DE CONTRA-REGRA
Ronaldo Buiú
165
PESQUISA
Íris Gomes da Costa
Edna Palatnik
CONTINUIDADE
Lucia Fernanda
ASSISTENTES DE DIREÇÃO
Wanessa Machado
Mariana Pinheiro
PRODUÇÃO DE ENGENHARIA
Ilton Caruso
EQUIPE DE PRODUÇÃO
Luciana Vinco
Margareth Azeredo
Anderson Diniz
Marcos Pereira
Bárbara Duffles
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Guilherme Maia
GERÊNCIA DE PRODUÇÃO
Maristela Velloso
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO
César Lino
DIREÇÃO DE NÚCLEO
Luiz Fernando Carvalho
166
ANEXO 2
FICHA TÉCNICA – HOJE É DIA DE MARIA – SEGUNDA JORNADA
IDÉIA ORIGINAL
Luiz Fernando Carvalho
ESCRITO POR
Luís Alberto de Abreu
Luiz Fernando Carvalho
DIREÇÃO
Luiz Fernando Carvalho
ELENCO
Letícia Sabatella (Alonsa / Asmodéia)
Rodrigo Santoro (Dom Chico Chicote)
Osmar Prado (Dr. Copélius)
Daniel de Oliveira (Boneco / Policial / Soldado Desertor / Cavaleiro Branco / Cavaleiro de Fogo / Cavaleiro da
Noite / São Jorge)
Carolina Oliveira (Maria)
Laura Cardoso (Avó / Senhora dos Dois Mundos / Narradora)
Ricardo Blat (Asmodeu piteira / Gato)
André Valli ( Boneco / Asmodeu Rábula)
Rodolfo Vaz (Pato / Bêbado / Soldado)
Inês Peixoto (Boneca)
Rosa Marya Colin (Lavadeira / Nossa Senhora Aparecida)
Charles Fricks (Executivo / Soldado / Policial)
Leandro Castilho (Executivo / Soldado / Policial)
Denise Cabral (Participação nos coros)
Janaína Prado (Participação nos coros)
Maria Fernanda Vianna ( Participação nos coros)
Denise Assunção (Parca)
João Sabiá (Asmodeu Marinheiro / Soldado)
Tadeu Mello (Bêbado / Rapaz lanchonete)
Maria Clara Fernandez (Guardiã do Limiar)
Laura Lobo (Carvoeira)
Phillipe Louis (Ciganinho)
167
ATORES ESPECIALMENTE CONVIDADOS
Juliana Carneiro da Cunha (Mãe)
Stenio Garcia (Asmodeu Cartola / Asmodeu Juiz / Asmodeu Original / Zé do Riachim)
Carequinha (Tocador de realejo)
NARRAÇÃO
Laura Cardoso ( Narradora)
Fernanda Montenegro (como Dona Cabeça)
MARIONETES:
Teatro de Bonecos Giramundo
MANIPULADORES:
Guilherme Amarante
Thiago Reis
DIREÇÃO DE ARTE
Lia Renha
CENOGRAFIA
João Irênio
CENÓGRAFOS ASSISTENTES
Fernando Schmidt
Milton di Biasi
Marcus Ranzani
FIGURINO
Luciana Buarque
FIGURINISTAS ASSISTENTES
Patrícia Barbeitas
Maribel Spinoza
Flavinha Bittencourt
Silvana Marcondes
Andréa Ourivio
FIGURINISTAS ASSISTENTES
Derô Martin – aderecista
Adriana Emy Huruta – contramestra
Ilma Rosalina – guarda-roupeira
Carlos Eduardo – camareiro
Odilon Tavares – camareiro
168
Daniela de Sousa A. Silva – camareira
Fátima de Paula – camareira
Railda Lima – costureira
Regina Dallegrave – aderecista
Sueli Barreto – costureira
Denir Dominici – bordadeira
Lysandra Miguel – aderecista
COREOGRAFIA
Patrícia Taranto
DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA
José Tadeu Ribeiro
DIREÇÃO DE ILUMINAÇÃO
Paulo Roberto Miranda
EQUIPE DE ILUMINAÇÃO
Orlando Pereira
Alan Vargas
José Luís da Silva
Alexandre Frutuoso
Rodrigo H. de Araújo
Daniel Luiz de Carvalho
Renato Schimit
PRODUÇÃO DE ARTE
André Soeiro
PRODUTOR DE ARTE ASSISTENTE
Ricardo Cerqueira
EQUIPE DE PRODUÇÃO DE ARTE
Ricardo Nascimento
Genilson dos Santos
PINTURA DE ARTE E ADEREÇOS
Marília Paiva – supervisão de arte cenográfica
Toni Kemper – assistente de supervisão de arte cenográfica
Gilmar Muniz – confecção de bonecos articulados
Bigode – confecção de bonecos articulados
Newton Galhano – confecção de bonecos articulados
Antônio Lopes – confecção de bonecos articulados
169
Carlos Alexandre – confecção de bonecos articulados
Roger dos Santos – confecção de bonecos articulados
Pedro Paulo – pintor de arte
Sidnei Lessa – pintor de arte
Sebastião Renato – pintor de arte
Jaime dos Santos – pintor de arte
Adriano Silva – pintor de arte
Cláudio Moura – pintor de arte
Lysandra Miguel – aderecista
PINTORES DE ARTE
Clécio Regis
Cleber Regis
Cássio Murilo
Bruno Costa
Vicente Mota da Silva
ARTISTA PLÁSTICO
Raimundo Rodrigues
EQUIPE DO ATELIÊ
Maurício Santos da Silva
Helder Araújo
Dida Nascimento
Renata Richard
Chang Chi Chai
Renato Spinelli
Marcus Lima
Cláudio Moura
João Diório
René Amaral
Bruno Scarani
Sandro Scarani
Bruno Barros
PRODUÇÃO DE ELENCO
Nelson Fonseca
PREPEARAÇÃO CORPORAL
Luís Louis
Tiche Vianna
170
PREPARAÇÃO DE ELENCO INFANTIL
Maria Clara Fernadez
PREPARAÇÃO VOCAL
Agnes Moço
MÚSICOS
Vitor Gonçalves
Maurício Moço
Marcelo Caldi
PRODUÇÃO MUSICAL
Tim Rescala
DIREÇÃO MUSICAL
Mariozinho Rocha
CARACTERIZAÇÃO
Vavá Torres
EQUIPE DE CARACTERIZAÇÃO
Lindalva Veronez
Marli Toledo
EDIÇÃO
Paulo H. Farias
Carlos Kerr
SONOPLASTIA
Aroldo Barros
Irla LeitePedro Belo
EFEITOS VISUAIS
Capy Ramazzina
Eduardo Halfen
EFEITOS ESPECIAIS
Marcos Soares
Glauco Falcci
ABERTURA
Hans Donner
Alexandre Pit Ribeiro
Alexandre Romano
171
DIREÇÃO DE ANIMAÇÃO
César Coelho
EQUIPE DE ANIMAÇÃO
Gizella Werneck – Assistente de direção de animação
Pedro Iuá – animador
Luciano do Amaral – animador
Paula de Andrade – animador
Gabriel Vieira – animador
Rosária Moreira – animador
Erica Vale – animador
Marão – animador
Henrique Kopke – animador
Ary Monteiro Junior – animador
Alessandro Monnerat – animador
CÂMERAS
Murilo Azevedo
Sebastião de Oliveira
EQUIPE DE APOIO À OPERAÇÃO DE CÂMERA
Antônio Cordeiro
William Lopes Sarzedas
EQUIPE DE VÍDEO
João Norton
EQUIPE DE ÁUDIO
Carlos Roberto Moreira
Rogério Vasconcelos
Pedro Amorin
Paulo César Wenceslau
GERENTE DE PROJETOS
Douglas Araújo
SUPERVISÃO DE PRODUÇÃO DE CENOGRAFIA
Ronaldo Buiu
EQUIPE DE CENOTÉCNICA
Edir Correia
Elba Regina
Julio Batista
172
PESQUISA
Edna Palatnik
Íris Gomes da Costa
CONTINUÍSTAS
Lucia Fernanda
Regina Wygoda
PRODUÇÃO DE ENGENHARIA
Ilton Caruso
EQUIPE DE PRODUÇÃO
Rodrigo Leão
Karla Moreira
Ana Milani
Anderson Diniz
Bárbara Duffles
GERÊNCIA DE PRODUÇÃO
Roberto Costa
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Guilherme Maia
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO
César Lino
DIREÇÃO DE NÚCLEO
Luiz Fernando Carvalho
173
ANEXO 3
ESTRUTURAS POÉTICAS DOS DESAFIOS (VERSOS E ESTROFES)
Quanto ao número de versos e sílabas os desafios apresentam:
a) Parcela ou verso de quatro sílabas - é o mais curto, a própria palavra não pode ser longa do
contrário ela sozinha ultrapassaria os limites da métrica e o verso sairia de pé quebrado. É
uma modalidade que caiu em desuso. Quando os repentistas cantavam a parcela os versos
brotavam numa seqüência alucinante, cada um querendo confundir mais rapidamente o
oponente.
Exemplo:
Eu sou judeuPara o dueloCantar marteloQueria euO pau bateuSubiu poeiraAqui na feiraNão fica genteQueimo a sementeDa bananeira.
b) Verso de cinco sílabas – é uma parcela mais recente, embora não haja registro de sua
presença antes de Firmino Teixeira do Amaral, era cantada também em ritmo acelerado,
exigindo do repentista, grande rapidez de raciocínio. O exemplo a seguir é de autoria de
Firmino Teixeira do Amaral, e integra a peleja do cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum,
os mesmos que serviram de base para a microssérie Hoje é Dia de Maria:
Pretinho:No sertão eu pegueiUm cego malcriadoDanei-lhe o machadoCaiu, eu sangreiO couro tireiEm regra de escalaEspichei numa salaPuxei para um becoDepois dele secoFiz dele uma mala
174
Cego:Negro, és monturoMolambo rasgadoCachimbo apagadoRecanto de muroNegro sem futuroPerna de tiçãoBoca de porãoBeiço de gamelaLeque ladrão
c) Estrofes com quatro versos de sete sílabas – estas modalidades não foram as primeiras na
literatura de cordel, ao contrário, elas vieram quase um século depois das primeiras
manifestações mais rudimentares que permitiram, inicialmente, as estrofes de quatro versos de
sete sílabas:
O Mergulhão quando cantaIncha a veia do pescoçoParece um cachorro velhoQuando está roendo osso.
Não tenho medo do homemNem do ronco que ele temUm besouro também roncaVou olhar não é ninguém.
A evolução desta modalidade, a última estrofe de quatro versos acrescida de mais dois, o que
forma a nossa atual sextilha, se deu naturalmente:
Meu avô tinha um ditadoMeu pai dizia também:Não tenho medo do homemNem do ronco que ele temUm besouro também roncaVou olhar não é ninguém.
d) Sextilhas – esta modalidade passou a ser a mais indicada para os longos poemas
romanceados, principalmente a do exemplo acima, com o segundo, o quarto e o sexto versos
rimando entre si, deixando órfãos o primeiro, o terceiro e o quinto versos. É a modalidade
mais rica, obrigatória no início de qualquer combate poético, nas longas narrativas e nos
folhetos de época. Também muito usadas nas sátiras políticas e sociais. Uma prova de que a
sextilha é uma modalidade relativamente recente está na ausência quase completa dela na
grande produção de Leandro Gomes de Barros. A beleza rítmica que oferece ao declamador
fez com que os grandes poetas não conseguissem fugir à tentação de produzi-las. Para alguns,
175
as sextilhas, estrofes de seis versos de sete sílabas, foram criadas por José Galdino da Silva
Duda, 1866 - 1931. A verdade é que o autor mais rico nessas composições, talvez por se tratar
do maior humorista da literatura de cordel, foi José Pacheco da Rocha, 1890 - 1954. É uma
modalidade que apresenta nada menos de cinco estilos: aberto, fechado, solto, corrido e
desencontrado.
Aberto:Felicidade, és um solDourando a manhã da vida,És como um pingo de orvalhoMolhando a flor ressequidaÉs a esperança fagueiraDa mocidade florida.
Fechado:Da inspiração mais pura,No mais luminoso dia,Porque cordel é culturaNasceu nossa AcademiaO céu da literatura,A casa da poesia.
Solto:Não sou rico nem sou pobreNão sou velho nem sou moçoNão sou ouro nem sou cobreSou feito de carne e ossoSou ligeiro como o gatoCorro mais do que o vento.
Corrido:Sou poeta repentistaFoi Deus quem me fez artistaNinguém toma o meu fadárioO meu valor é antigoMorrendo eu levo comigoE ninguém faz inventário
Desencontrado:Meu pai foi homem de bem Honesto e trabalhadorNunca negou um favorAo semelhante, tambémNunca falou de ninguémEra um homem de valor.
e) Oito pés de quadrão ou Oitavas – são estrofes de oito versos de sete sílabas. A diferença
das estrofes de cunho popular para as de linha clássica é apenas a disposição das rimas, as
quais nas de cunho popular não há um único verso órfão, já nas clássicas sim, como no
exemplo a seguir de Casimiro de Abreu (1837 – 1860):
176
Como são belos os diasDo despontar da existência- Respira a alma inocênciaComo perfumes a flor;O mar – é lago sereno,O céu – um manto azulado,O mundo – um sonho dourado,A vida um hino de amor.
Na estrofe popular aparecem os primeiros três versos rimados entre si; também o
quinto, o sexto e o sétimo, e finalmente o quarto com o último, não havendo, portanto um
único verso órfão. Assim:
Diga Deus OnipotenteSe é você realmenteQue autoriza, que consenteNo meu sertão tanta dorSe o povo imerso no lodoApregoa com denodoQue seu coração é todoDe luz, de paz e de amor.
f) Décimas – são dez versos de sete sílabas, desde sua criação no limiar do nosso
século, as mais usadas pelos poetas de bancada e pelos repentistas. Excelentes para glosar
motes, esta modalidade só perde para as sextilhas, especialmente escolhidas para narrativas de
longo fôlego. As décimas foram escolhidas por Leandro Gomes de Barros para compor o
longo poema épico de cavalaria “A batalha de Oliveiros com Ferrabraz”, baseado na obra do
imperador francês Carlos Magno:
Eram doze cavalheirosHomens muito valorososDestemidos, corajososEntre todos os GuerreirosComo bem fosse OliveirosUm dos pares de fiançaQue sua perseverançaVenceu todos os infiéisEram uns leões cruéisOs doze pares da França.
g) Martelo Agalopado – estrofe com dez versos de dez sílabas, é uma das modalidades
mais antigas na literatura de cordel. Criada pelo professor Jaime Pedro Martelo (1665 –
1727), as martelianas não tinham, como o nosso Martelo Agalopado, compromisso com o
177
número de versos para a composição das estrofes. Alongava-se com rimas pares, até
completar o sentido desejado. Para exemplificar, os alexandrinos a seguir:
“Visitando Deus a Adão no ParaísoAchou-o triste por viver no abandono,Fê-lo dormir logo um pesado sonoE lhe arrancou uma costela, de improvisoEstando fresca ficou Deus indecisoE a pôs ao Sol para secar um momentoMas por causa, talvez dum esquecimentoChegou um cachorro e a carregou,Nessa hora furioso Deus ficouCom a grande ousadia do animalQue lhe furtara o bom materialFeito para a construção da mulher,Estou certo, acredite quem quiserEu não sou mentiroso nem vilão,Nessa hora correu Deus atrás do cãoE não podendo alcançar-lhe e dá-lhe caboCortou-lhe simplesmente o meio raboE enquanto Adão estava nas trevasDeus pegou o rabo do cão e fez a Eva.”
Com tamanha irresponsabilidade, totalmente inaceitável na literatura de cordel, o
estilo mergulhou, desde o desaparecimento do professor Jaime Pedro Martelo em 1727, em
completo esquecimento, até que em 1898, José Galdino da Silva Duda dava à luz feição
definitiva ao nosso atual Martelo Agalopado, tão querido quanto lindo. Pedro Bandeira não
nos deixa mentir:
Admiro demais o ser humanoQue é gerado num ventre femininoEnvolvido nas dobras do destinoE calibrado nas leis do SoberanoQuando faltam três meses para um anoA mãe pega a sentir uma molezaEntre gritos lamúrias e espertezaNasce o homem e aos poucos vai crescendoE quando aprende a falar já é dizendo:Quanto é grande o poder da Natureza.
Há, também, o martelo de seis versos, como sempre, refinado, conforme veremos
nesta estrofe:
Tenho agora um martelo de dez quinasFabricado por mãos misteriosasEnfeitado de pedras cristalinasDas mais raras, bastante preciosas,Foi achado nas águas saturninasPelas musas do céu, filhas ditosas.
178
h) Galope à Beira Mar – estes, de autoria de Joaquim Filho, versos de onze sílabas,
portanto mais longos do que os de Martelo Agalopado.
Falei do sopapo das águas barrentasDe uma cigana de corpo bem feitoDa Lua, bonita brilhando no leitoDa escuridão das nuvens cinzentasDo eco do grande furor das tormentasDa água da chuva que vem pra molharDo baile das ondas, que lindo bailarDa areia branca, da cor de cambraiaDa bela paisagem na beira da praiaAssim é galope na beira do mar.
À feição do Martelo Agalopado, há o Galope Alagoano, com dez versos de dez sílabas
cuja única diferença é a obrigatoriedade do mote “Nos dez pés de galope alagoano”.
i) Meia Quadra – versos de quinze sílabas, as rimas são emparelhadas e os versos são
assim compostos:
Quando eu disser dado é dedo você diga dedo é dadoQuando eu disser gado é boi você diga boi é gado Quando eu disser lado é bandavocê diga banda é ladoQuando eu disser pão é massa você diga massa é pão
Quando eu disser não é sim você diga sim é nãoQuando eu disser veia é sangue você diga sangue é veiaQuando eu disser meia quadra você diga quadra e meiaQuando eu disser quadra e meia você diga meio quadrão.
179
ANEXO 4
REISADO – AS DANÇAS SÃO NUMEROSAS E VARIADAS
Exemplificando, a dança do gingá com o entremeio da mãe velha apresenta os
seguintes passos:
1º passo: os figurantes acocoram-se e balançam e remexem os traseiros para os lados;
2º passo (da máquila): é um passo também exibido nos guerreiros e caboclinhos. Sua
execução é muito bonita e consiste num pequeno pulo, seguido por cruzamento das
pernas, com balanços alternados do corpo para os lados;
3º passo: costas com costas - os dois cordões colocam-se de costas um para o outro e, em
seguida, se ajoelham;
4º passo: os figurantes sapateiam na primeira parte da cantiga, depois executam evoluções
sincrônicas de voltas completas para um lado e a seguir para o outro. Esta figura é seguida
por ligeiros e também sincrônicos movimentos em que ora apóiam nas pontas dos pés, ora
nos calcanhares, finalizando com quatro rápidos tropéis;
5º passo: o dançarino faz pião com o calcanhar esquerdo e de uma volta rápida para o
mesmo lado. Em seguida, apoiando-se sobre o outro calcanhar, gira inversamente,
imitando o movimento de um corrupio;
6º passo, os dançarinos cruzam as pernas, ora a direita à frente da esquerda, ora esta
última à frente da direita, enquanto os pés se movimentam;
180
7º passo: idêntico ao passo anterior, executado, porém, não de modo lento e compassado,
mas com movimentos rápidos e quase pulados;
8º passo: consiste de sapateados, apresentando muitas variantes com diferentes nomes,
dos quais podemos citar os seguintes: a) passo 40 ou marcha três tropéis, batidos sem os
dançarinos saírem de seus lugares; b) três tropéis, batidos como antes, porém sendo três
para a frente e três para trás; c) quatro tropéis para frente e quatro para trás, de acordo com
o ritmo;
9º passo: é a dança mais comum e consiste em dois passos dirigidos para um lado e um
pouco para a frente, e dois outros dirigidos para o lado contrário e um pouco para trás,
com requebros do corpo para os lados aonde se dirigem os passos. O corpo vai virando
continuamente, de modo que os figurantes volteiam em movimentos independentes.
A Guerra: O mestre apita e o primeiro embaixador atende. Cruza espadas e iniciam
embaixadas de guerra, primeiro com o mestre, depois com o rei. Quando chega a vez do
segundo embaixador, as embaixadas já se tornam cansativas, repetindo-se as batidas de
espadas. Por fim, todos os figurantes, inclusive o rei e o mestre se empenham na luta e o
combate se torna geral.
As sortes: Todos os figurantes, até o próprio rei, atiram seus lenços aos donos da casa e à
assistência. Estes os devolvem com dinheiro dentro. Recolhidas as sortes, o mestre apita e
as filas de dançarinos se afastam para os lados. Então começam os entremeios. Estes são
composições teatrais, jocosas, burlescas, como o bumba-meu-boi, o cavalo-marinho etc.
Encerrados os entremeios, voltam às danças e cantorias de peças, sucedem-se as
embaixadas até que sejam apresentados novos entremeios. Note-se, de passagem, que os
personagens dos entremeios não tomam parte nas danças das embaixadas. São os
entremeios que dão maiores brilhos a esta dança dramática e são tão apreciados que
alguns são apresentados mesmo fora de sua época como, por exemplo, (o famoso bumba-
meu-boi, o boi simboliza o do presépio) que, inicialmente, era o principal entremeio do
reisado e é levado agora também nas Festas Juninas. Muitos destes entremeios, deliciosos
quadros independentes, revelam um espírito chistoso, outros se inspiram em motivos
míticos ou totêmicos, como o Zabelê.
181
Folharal: Nesta dança, o personagem oculta a cabeça sob uma cabaça donde pendem
longas folhas de samambaia, traja um camisolão coberto de folhas e capim. Aumenta seu
fantástico aspecto quando os longos cabelos de samambaia esvoaçam nos continues
rodopios dados pelo bailarino.
Zabelê: O dançarino disfarçado num saco pintado, usando máscara com bico, dança e
assobia, imitando o pássaro jacu.
Curiabá: O dançarino imita o macaco, se coça dançando e faz mil trejeitos engraçados.
Sapo Cururu: Agachado no chão, o dançarino coaxa e dá estranhos pulos.
Alma, Diabo e Miguel: É um entremeio que deixa a assistência suspensa e trêmula de medo.
A alma, envolta em lençol branco, desfiando um rosário, gemendo, aparece. Foge do Diabo
que, todo vestido de vermelho com rabo e garras afiadas, a persegue. Agarra-a, mas quando já
a arrasta para o inferno, interpõe-se no seu caminho o anjo São Miguel, geralmente
representado por uma moça, de asas brancas e espada em riste. Trava-se uma luta entre ele e o
Diabo que é vencido. Há um forte estouro de pólvora na sala e o Diabo aproveita a
oportunidade para desaparecer da cena. Suspiros de alívio na assistência. Entre inúmeros
outros, podem-se ainda citar o Lobisomem, o Matuto e o Fantasma, o Capitão de Campo, o
Pescador e a Sereia. E assim, os artistas que representam os entremeios aproveitam cada
embaixada para correrem aos baús por eles trazidos no cortejo, de onde tiram febrilmente suas
fantasias inesgotáveis.
182
ANEXO 5
Contos de Fadas: uma conexão entre Literatura e Matemática nas séries iniciais
Marina Alves da Cruz Damião1, Carlos Adriano Martins2 e Vivilí Maria Silva Gomes3
Centro de Ciências Humanas, Universidade do Grande ABCAv. Industrial, 3330, 09080-511 Bairro Campestre, Santo André, SP
Tel. (0XX11) 4991-9800 email: [email protected]
RESUMO
Este trabalho é o relato de experiência didático-pedagógica conectando o conto de fadas
Cinderela com algumas atividades relacionadas a conteúdos matemáticos. O público-alvo foi
uma turma de 37 alunos de 4ª série de uma escola pública municipal localizada no município
de São Paulo, cuja professora é uma das autoras deste relato. O envolvimento das crianças
com as situações-problema propostas foi o ponto alto da experiência que, além de
relacionarem o conto com a Matemática, permitiram o manuseio de material de mídia, como
jornais e revistas, com preços de objetos de vestuário associados ao seu cotidiano. Os
resultados despertaram na escola o interesse de outras professoras e da direção mostrando a
viabilidade da experiência que estimulou nas crianças o senso crítico, a autonomia e a
socialização do conhecimento, bem como um aprendizado matemático vinculado à sua
realidade.
1. INTRODUÇÃO1 Formanda do Curso de Pedagogia no 2º semestre de 2003 e professora da EMEF Olival Costa no Município deSão Paulo, SP.2 Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo; professor de Educação Ambiental, Biologia daEducação e Metodologia de Ensino e orientador de Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia da UniABC 3 Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo; ex-professora-assistente doutora do Instituto de Física daUniversidade de São Paulo; professora efetiva de Física da rede estadual de ensino do Estado de São Paulo;professora adjunta de Estatística Aplicada à Educação do Curso de Pedagogia da UniABC e supervisoracientífica no mesmo Curso.
183
O relato aqui apresentado é parte do trabalho de conclusão de curso efetuado por um
grupo de alunas do último semestre do Curso de Pedagogia da Universidade do Grande ABC
- UniABC, no 2º semestre de 2003, sendo uma delas a primeira autora deste artigo e a
professora da turma com a qual foi realizada a experiência4. Seguindo as orientações dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 2000) e sugestões de Smole e outros (2001) foi
proposta uma atividade que relacionasse a Literatura Infantil, no caso, um conto de fadas, com
conteúdos de Matemática. De acordo com Machado:
É certo que a Matemática apresenta dificuldades específicas, assim como qualquer
outro assunto. Tais dificuldades, no entanto, não parecem suficientes para justificar
tanta nitidez na diferenciação das pessoas no que se refere à postura diante da
Língua Materna e tão discriminadoras no caso da Matemática. A julgar pelas raízes,
as disciplinas em questão deveriam apresentar muito menos dissonância do que as
costumeiras, em questão de ensino.(2001, p.17)
2. METODOLOGIA
A experiência ocorreu no ano de 2003 com uma turma de alunos de 4ª série da
professora Marina em uma escola pública municipal localizada no Jardim Sapopemba na
cidade de São Paulo. A escola foi inaugurada em 1971, e é composta por 24 salas de aula das
quais quatro de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental. A turma contava com 37 alunos, a
maioria entre 10 e 11 anos de idade, sendo um aluno com necessidade especial de 16 anos e já
alfabetizado. O número de meninas somava 20 e de meninos 17. No dia da realização da
atividade, três não compareceram. A professora Marina trabalha há quatro anos na escola,
fazendo rodízio entre 3ª e 4ª série, com outra professora, já há 17 anos no magistério público.
O projeto para a realização da experiência foi proposto à escola e aceito e o objetivo era
estimular a criatividade dos alunos, seu senso crítico, sua autonomia e socialização através de
uma atividade interdisciplinar.
Primeiramente, foi solicitado aos alunos que trouxessem folhetos de propaganda,
revistas ou jornais que mostrassem objetos de vestuário, em geral, como roupas, sapatos,
bijuterias, etc, de preferência com preços, para o dia da realização da atividade. Nesse dia, o
material trazido foi recolhido e juntado ao que as professoras também trouxeram, a sala foi
organizada de forma a serem formadas duplas e, em seguida, a professora Marina expôs aos
alunos o que seria feito, conforme a seqüência a seguir.
4 Marina Alves da Cruz Damião, Regina Helena do Nascimento, Solange Sanches Defendi, Tâmara Alessandrade Souza e Vanessa de Brito Silva.
184
O material trazido foi distribuído para as diversas duplas, juntando de preferência um
menino e uma menina, e foi solicitado que o deixassem reservado embaixo da carteira. Antes,
porém, um tempo foi dado para que os alunos manipulassem o material e explorassem seu
instrumento de trabalho.
A história escolhida foi a de domínio de muitas crianças: o conto de fadas Cinderela.
Tal conto sempre chamou a atenção da professora desde menina o que lhe conferiu mais
facilidade na criação das situações-problema.
Iniciada a narração abriu-se espaço para intervenções e manifestações dos alunos
procurando-se incorporá-las o mais possível à narrativa. Ao término da narração foram
propostas aos alunos algumas situações-problema que contextualizassem as passagens da
história e onde a Matemática estivesse presente e que se relacionasse ao cotidiano do aluno.
Foram propostas várias situações-problema. A primeira envolveu a preparação da
Cinderela para o baile em um salão de beleza onde três tipos de salão eram fornecidos aos
alunos incluindo seus diversos serviços que deveriam ser escolhidos pelas duplas com os
respectivos preços, achando o total da despesa a ser paga pela fada madrinha da Cinderela. Na
segunda e terceira, deveriam se colocar no lugar da Cinderela e do Príncipe e escolher no
material trazido as diversas peças de vestuário e acessórios a serem utilizados no baile,
colocando os respectivos preços em cada um. Os alunos poderiam escolher em lugar de quem
gostariam de se imaginar. Na quarta, os alunos deveriam escolher os sapatos da Cinderela e
atribuir-lhe um valor, o que alguns já poderiam ter feito na situação anterior. Na quinta, foi
considerada a possibilidade de Cinderela utilizar todos os serviços fornecidos pelos salões.
Neste caso, os alunos deveriam fazer a conta dos gastos para cada salão e verificar em qual
salão gastaria mais. Feitas as contas, colocariam esses valores num gráfico de colunas – que já
havia sido trabalhado com as crianças, anteriormente - para comparar o preço total em cada
salão. Na sexta, os gastos totais com vestuário feitos por Cinderela e o Príncipe deveriam ser
representados em um gráfico. No que segue explicitam-se as situações na forma em que foram
colocadas para as crianças. Resumindo:
Situação-Problema 1: Para lavar, hidratar , escovar os cabelos, fazer um penteado, o
pé e a mão, quanto gastaria Cinderela? Escolha um salão de beleza dos três propostos e faça
as contas.
Situação-Problema 2: A Cinderela do conto de fadas vestia-se com deslumbrante
vestido cheio de tecidos e fitas. Imagine que você irá ao baile. Escolha nos folhetos as roupas
que irá vestir como: “lingerie”, calças, saias, blusas, vestidos, sapatos, bijuterias. Recorte com
o preço e calcule quanto você gastaria.
185
Situação-Problema 3: Além de Cinderela, todos no baile estavam bem vestidos,
principalmente o Príncipe. Escolha uma roupa nos folhetos, imaginando que você seja o
Príncipe que acompanhará a Cinderela ao baile. Faça as contas de quanto gastaria.
Situação-Problema 4: O Príncipe estava à procura da dona do sapatinho de cristal.
Escolha nos folhetos qual sapato ou sandália você gostaria de usar no baile e coloque o valor.
Situação-Problema 5: Faça as contas para saber o total de gastos em cada um dos
salões que Cinderela poderia escolher e coloque num gráfico. Em qual gastaria mais e em
qual gastaria menos?
Situação-problema 6: Nas compras, Cinderela e o Príncipe gastariam um valor cada.
Represente, em um gráfico, esses gastos. Quem gastou mais?
A atividade foi feita em duas aulas. Na primeira aula, foram resolvidas as três
situações iniciais. Na segunda aula, foram consideradas as restantes. Após, foi aberto um
espaço para discussão conjunta dos alunos. Os resultados são apresentados no próximo item.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Na distribuição dos folhetos, muitos trazidos pelos próprios alunos, estes já
demonstraram interesse na sua manipulação. Alguns folhetos apresentavam amostras de
perfumes, muito comuns em revistas femininas, que eram passados no pulso pelos alunos.
Estavam, assim, explorando e reconhecendo o seu material de trabalho. Como já conheciam a
história, faziam intervenções durante a narração do conto. É hábito da professora Marina
contar histórias variadas para os alunos, portanto, já estão acostumados a esse tipo de
atividade. O que não era costume era a inter-relação com a Matemática, fato novo para eles,
por isso na coleta de material foi colocado que fariam uma atividade diferente preparando-os
para isso.
Mesmo assim, os alunos mostraram-se ansiosos e mais agitados que de costume.
Houve a preocupação em escolherem os objetos mais bonitos e também de procurarem preços
que valessem à pena. Estavam atentos em encontrar no seu material os objetos necessários ao
vestuário da Cinderela e do Príncipe. Para isso, foi estimulada a troca de materiais entre as
duplas, o que provocou maior interação entre os alunos.
Depois da seleção e recorte do material, esses foram colados em folha de papel sulfite
e partiram para a etapa de contas. Alguns alunos tiveram muitas parcelas na conta o que
tornaram-nas um pouco difíceis com relação à obtenção do total gasto. A organização das
parcelas de acordo com o seu valor posicional e a localização da vírgula, foram outras
186
dificuldades observadas, pois trabalhavam com valores em reais e, portanto, com os decimais
até segunda casa. Nesses casos, a professora intervinha relembrando algumas estratégias já
antes trabalhadas com os alunos, orientando-os a desmembrarem as contas ou a usarem a
multiplicação para facilitar os cálculos.
A Figura 1 mostra os valores dos serviços fornecidos pela professora para os três
salões de beleza hipotéticos e registrados pela dupla de alunas Jéssica e Eloise. As alunas
escolheram o salão Center e o resultado para o total de gastos da Cinderela (situação-
problema 1) é apresentado na Figura 2. As alunas justificam a escolha por ser mais barato o
fornecimento dos serviços no salão.
Figura 1 – Opções de salão de beleza dadas aos alunos e registradas pelas alunas Jéssica e Eloise
Figura 2 – Registro e total de gastos a serem feitos por Cinderela no salão escolhido pelas alunas Jéssica e
Eloise
As Figuras 3 e 4 mostram as escolhas de vestuário feitas pela dupla de alunos Liliane
e Gabriel, para a Cinderela e o Príncipe, respectivamente, com o resultado da soma de Gabriel
na Figura 4 (situação-problema 2 e 3). Com a seleção, os alunos entraram em contato com os
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valores de mercado das roupas, seus desejos em relação à vestuário e, ao calcular o total de
gastos, a avaliação do seu custo final.
Figura 3 – Vestuário de Cinderela para o baile e escolhido pela aluna Liliane
Figura 4 – Vestuário do Príncipe para o baile escolhido pelo aluno Gabriel
A solução dada para a situação-problema 4 pela dupla de alunos Camila e Israel está
na Figura 5. A dupla escolheu os sapatos com os respectivos preços, reproduzindo o preço de
cada um.
Figura 5 – Escolha de sapatos para o baile feita pelos alunos Camila e Israel
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A dupla Caroline e Jacsuel deu a solução gráfica para as situações–problema 5 e 6 e
mostrada na Figura 6.
(a) (b)
Figura 6 – Resposta gráfica para o (a) gasto efetuado em cada salão se todos os serviços fossem utilizados e (b)
gasto total com vestuário de Cinderela e o Príncipe dados pelos alunos Caroline e Jacsuel
Ao final da aplicação da atividade a professora abriu espaço para a conversa e o debate
ouvindo a opinião de cada aluno. Alguns disseram que gostaram muito de trabalhar dessa
maneira. Outros disseram que acharam bem diferente e que por isso gostaram. Quanto ao que
aprenderam, disseram que foi de grande importância, pois puderam fazer escolhas de seus
próprios objetos, montando sua própria roupa para o baile e decidir sobre os valores dentro de
várias possibilidades.
Nas figuras que se seguem são apresentadas fotografias tiradas na sala de aula em
diversos momentos da realização da atividade, que também foi registrada em fita VHS. A
Figura 7 mostra a professora narrando a história para os alunos. A Figura 8 apresenta as
crianças envolvidas na seleção do material para solução das situações propostas, sob a
orientação da professora. A Figura 9 revela o momento da confraternização ao final do
trabalho.
Figura 7 – A professora narrando o conto de fadas
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Figura 8 – Os alunos em atividade na sala de aula
Figura 9 – A confraternização final
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os contos de fadas são muito apreciados pelas crianças sendo de fácil entendimento,
despertando o seu imaginário e os valores associados às suas vidas e também proporcionando
entretenimento. Sua associação com conteúdos, matemáticos, nesta particular experiência,
possibilitou um aprendizado mais envolvente onde a integração entre os alunos, tanto na troca
de conhecimentos como na discussão de valores, foi fundamental. O exercício do senso crítico
através da colocação de seus desejos, na escolha de sua roupa para um baile, em
contraposição às possibilidades, tanto de roupas como de preços, nas quais pudessem se
posicionar diante dos gastos a serem efetuados, resgatam valores relacionados à sua condição
familiar e social. Essas conexões reforçam o aprendizado matemático atribuindo-lhe
significado, um sentido. Os resultados dessa experiência foram tão positivos na escola em
que foi realizada que foi incorporada em seu projeto pedagógico.
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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, ParâmetrosCurriculares Nacionais: Matemática. 2.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
DCL . Difusão cultural do Livro. Conto: Cinderela, s/d
MACHADO, N. J. Matemática e Língua Materna: análise de uma impregnação mútua.5.ed. São Paulo: Cortez, 2001.
SMOLE, K.C.S.; ROCHA, G.H.R.; CÂNDIDO, P.T. e STANCANELLI, R. Era uma vez naMatemática: uma conexão com a Literatura Infantil. 4.ed. São Paulo: CAEM-IMEUSP,2001.
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