ANÁLISE COMPARATIVA: CASAS SANTA TERESA E ILHABELA
Neste trabalho são analisadas duas casas contemporâneas brasileiras construídas em contextos distintos, mas que possuem em
comum diversas semelhanças compositivas e o envolvimento de arquitetos paulistas formados na FAU-USP - Casa Santa Teresa
(2004) e Casa Ilha Bela (2008). A primeira foi construída no Rio de Janeiro, em um dos pontos mais altos do Morro Santa Teresa,
tendo sido projetada pelo escritório SPBR. A segunda, não construída, foi projetada pelo escritório Nitsche Arquitetos e também se
encontra em local de grande altitude, um morro da cidade de Ilhabela – São Paulo. (Figura 1).
Figura 1: Implantação e vista geral das casas: (a) Santa Tereza (2004). SPBR; (b) Ilhabela (2008). Nitsche
Fonte: LACERDA MENUZZI, 2016
CASA SANTA TERESA CASA ILHABELA Local: Rio de Janeiro - RJ
Ano: 2004
Local: Ilhabela - SP
Ano: 2008
Escritório SPBR Escritório Nitsche Arquitetos
Autoras: Ana Clara Lacerda Menuzzi e Ana Elísia da Costa
(a) (b)
Implantação e Partido Formal
Em comum, as duas casas estão implantadas em terrenos de grandes extensões, com acentuada declividade e limites
irregulares. Os desníveis dos dois terrenos e as visuais a serem exploradas são os principais condicionantes que definem e
aproximam os arranjos formais adotados: dois volumes perpendiculares, implantados em cotas de níveis diferentes, em que
a cobertura de um é o terraço de outro (figura 2). Nos dois casos, o volume transversal ao lote é implantado na sua cota
mais alta, impondo-se como uma espécie de “mirante”. Os seus volumes inferiores, contudo, possuem características
compositivas distintas - na Casa Sta. Tereza, este volume, suspenso do solo, transpassa os limites longitudinais do volume
superior, estando estes separados por um pilotis. A bi-orientação deste volume explora a orientação leste-oeste, a ventilação
cruzada e as visuais do jardim; na Casa Ilhabela, o volume inferior funciona como uma espécie de contenção do terreno para
a criação de um pátio de serviço semienterrado e como apoio parcial do volume superior.
A adoção do pilotis no arranjo da Casa Sta. Tereza pode ser entendido como uma transgressão tipológica, já que associa no
mesmo projeto dois arranjos de naturezas distintas – alas em “T” e base/pilos/mirante, como Le Corbusier veio a explorar
no edifício para alugar em Argel (COSTA, COTRIM, GONSALEZ, 2015). Uma transgressão também pode ser observada na Casa
Ilhabela, já que seu volume transversal sofre uma subtração em sua extensão, configurando um pátio marcado por uma
grande pedra natural e que transpassa os seus dois níveis. Assim, a casa também recorre a dois arranjos de naturezas
distintas – alas em “L” e pátio (Figura 2).
Figura 2: (a) Pilotis da Casa Santa Tereza (2004). SPBR; (b) Subtração da Casa Ilhabela (2008). Nitsche Arquitetos
Fonte: LACERDA MENUZZI, 2016
Em ambos os casos, os volumes possuem empenas cegas transversais que se contrapõem a superfícies envidraçadas
longitudinais, o que remete à tradição da arquitetura brutalista paulista. Brises móveis protegem as fachadas envidraçadas
das duas casas que sofrem grande incidência solar – fachadas leste e oeste do volume inferior da Sta. Teresa e fachada
oeste do volume superior da Ilhabela. Contudo, deve-se observar que no volume superior da Casa Sta. Teresa há uma
ambiguidade no tratamento dos elementos de arquitetura, oscilando entre conferir uma expressão volumétrica ou planar ao
mesmo, como demonstram: a) a estratificação das lajes que não seguem uma mesma projeção; b) as empenas laterais que
(a) (b)
se prolongam horizontal e verticalmente além dos limites do volume e que não se apoiam no solo; c) o “descolamento visual”
entre as empenas e o volume, através dos “negativos volumétricos” das escadas transversais (Figura 3).
Figura 3: Elementos compositivos recorrentes: (a) Santa Tereza (2004). SPBR; (b) Ilhabela (2008). Nitsche Arquitetos.
Legenda: empenas lajes brises
Fonte: LACERDA MENUZZI, 2016
Estrutura
As empenas transversais do volume superior da casa Sta. Teresa funcionam como grandes vigas que se apoiam em quatro
pilares que arrematam os vãos das escadas transversais. Esse conjunto é travado por três vigas invertidas na cobertura e
é complementado por uma coluna centralizada que apoia somente a sua laje de piso, juntamente com tirantes metálicos
(figura 4.b). O volume inferior, por sua vez, é sustentado por colunas centralizadas, configurando generosos balanços. Estas
colunas servem de apoio para vigas transversais que, invertidas na cobertura, sustentam vigas longitudinais que, por sua
vez, sustentam tirantes metálicos que alçam as lajes de piso do volume. Apesar da modulação sugerida no setor íntimo, o
sistema estrutural configura uma planta livre e independente da compartimentação interna. (Figura 4.c).
(a) (b) (c)
Figura 4: Sistema estrutural da Casa Santa Tereza (2004), SPBR: (a) Volume inferior; (b) Volume superior; (c) Não correspondência entre
modulação da planta do volume inferior da casa e modulação estrutural.
Fonte: LACERDA MENUZZI, 2016
(a) (b)
Em sentido contrário, uma rígida modulação longitudinal controla o arranjo compositivo e estrutural do volume superior da
Ilhabela. Em estrutura metálica, transversalmente, esta modulação configura um grande vão central e dois balanços nas bordas.
O volume inferior, por conter a topografia do terreno, é estruturado em concreto armado. (Figura 5). Em contraponto à casa
Sta. Tereza, em que a estrutura destaca-se por nunca estar embutida nas vedações internas, na casa Ilhabela os pilares e vigas
têm correspondência com as vedações, internas ou externas, como observado na figura 5, b.
Figura 5: Sistema estrutural da Casa Ilhabela (2008), Nitsche Arquitetos: (a) Volume inferior; (b) Volume superior; (c) Correspondência entre
modulação da planta do volume inferior da casa e modulação estrutural.
Fonte: LACERDA MENUZZI, 2016
Arranjo funcional
Ambas as casas organizam seus programas por níveis, mas com uma diferença essencial – a Sta. Teresa dilui o seu
programa principal nos dois volumes, contrapondo-se à Ilhabela, que concentra estas atividades no volume superior. Na
primeira, a disposição dos setores - social (pavimento superior), cozinha (pilotis), íntimo/ serviços (pavimento inferior) -
exige grandes deslocamentos horizontais e verticais e impõe à “cozinha-pilotis” o papel de espaço de transição. Com o setor
de serviços ocupando o volume inferior da Casa Ilhabela, o seu volume superior abriga o setor social e a cozinha (pavimento
inferior) e íntimo (pavimento superior), o que garante uma maior compacidade aos percursos internos. Em ambas, contudo,
observa-se que o zoneamento é guiado por algumas estratégias comuns: o social e o serviço são dispostos, respectivamente,
nas áreas mais e menos visualmente favorecidas; a privacidade do setor íntimo é garantida com a ocupação de volumes e/ou
níveis diferentes em relação aos estares e serviços. (Figura 6)
(a)
(b)
Zona íntima Zona de serviço Zona social
Figura 6: Zoneamento das casas - (a, b, c, d) Casa Santa Teresa (2004). SPBR; (e,f,g) Casa Ilhabela (2008). Nitsche Arquitetos
Fonte: LACERDA MENUZZI, 2016.
O sistema de circulação das duas casas apresentam sutis e importantes diferenças. Na Sta. Teresa, são dispostos dois
núcleos de circulação vertical – um de caráter mais público que conecta o pilotis ao estar; e outro mais privado que conecta
todos os quatro pavimentos da casa. Junto às empenas cegas, as escadas tangenciam transversal e/ou longitudinalmente
os volumes, não impactando o arranjo interno dos mesmos, onde são explorados percursos periféricos longitudinais. Na
Ilhabela, a circulação vertical – linear e periférica longitudinal - impacta mais o arranjo interno do volume superior, forçando
(a) (b)
(c) (d)
(e) (f) (g)
a configuração de uma circulação não espacializada no setor social e de um corredor no setor íntimo. Este corpo de
circulação se estende pelo pátio que compartimenta o volume, conectando as suas duas partes (Figura 7).
Nas duas casas, observa-se diferentes estratégias de inserção das cozinhas - num pavimento específico (Sta Tereza) e
integrada ao estar (Ilhabela). Contudo, a estratégia de concentrar os demais elementos de composição irregulares é comum
às duas residências, favorecendo a configuração de plantas livre ou flexíveis. Nos setores social, observa-se a configuração
de faixas de usos – escada/lavabo (Sta. Tereza) e escada/balcão da cozinha/lavabo (Ilhabela) - que se contrapõe às plantas
livres do estar. No setor íntimo das casas, observa-se núcleos de banheiros/closets no intermeio dos quartos e parcialmente
internalizados na planta (Sta Tereza) e banheiros internalizados na planta, compondo uma faixa de uso com a circulação e
escada que libera a planta para a disposição modular dos quartos (Ilhabela) (Figura 7).
Elementos irregulares Eixos de circulação
Figura 7: Elementos irregulares e circulações das casas: (a) Santa Teresa (2004). SPBR; (b) Ilhabela (2008). Nitsche Arquitetos
Fonte: LACERDA MENUZZI, 2016.
Espacialidade
Casas com arranjos volumétricos semelhantes, como as analisadas neste texto, podem ou não ter semelhanças espaciais.
Dessa forma, pretende-se analisar o percurso feito pelo usuário dentro dessas residências, a fim de avaliar a experiência
(a)
(b)
promovida pelo espaço. A análise foi realizada a partir de fotos e maquetes 3d, e contemplou os seguintes espaços: hall, sala
de estar, circulação íntima e dormitórios.
O hall é um espaço de grande relevância por representar a forma que o arquiteto pretende apresentar a residência a seus
usuários e a visitantes, e também por realizar a transição entre exterior e interior. Confrontando as duas casas, observa-se
que as experiências espaciais nos seus acessos são distintas, decorrente das características destes lugares – na Sta.
Teresa, observa-se que o pilotis-hall coberto promove o emolduramento da paisagem e sugere uma horizontalidade que é
contraposta à verticalidade parcial nos pontos em que este possui pé direito duplo. Esta experiência é menos expressiva na
Ilhabela pela ausência de um espaço de transição entre exterior e interior, sendo este apenas sugerido pelo balanço do
volume superior sobre a plataforma de acesso (Figura 8).
A sala de estar é o ambiente voltado à convivência de usuários e visitantes, e por isso costuma, em geral, ser uma área
dinâmica da casa. As salas das casas Santa Tereza e Ilhabela têm essa qualidade de dinamicidade espacial, uma vez que a
integração entre os ambientes e a integração entre interior e exterior promovida pelas grandes aberturas gera múltiplos
pontos visuais de interesse e uma consequente tensão multidirecional. Na casa Santa Tereza, as grandes aberturas estão
em fachadas opostas, explorando visuais para a paisagem do morro de mesmo nome (figura 9.a). Na casa Ilhabela, essas
grandes aberturas se voltam para a paisagem à oeste e para o grande pátio no interior da casa, à norte (figura 9.b).
V
V
(a) (b)
Figura 8: Espacialidade do hall nas residências: (a) Santa Teresa (2004). SPBR; (b) Ilhabela (2008) Nitsche Arquitetos.
Fonte: KON, 2008; LACERDA MENUZZI, 2016.
Figura 9: Espacialidade da sala de estar nas residências: (a) Santa Teresa (2004). SPBR; (b) Ilhabela (2008). Nitsche Arquitetos
Fonte: KON, 2008; LACERDA MENUZZI, 2016.
A circulação íntima de uma residência faz a transição de espaços dinâmicos, como a sala de estar, para os espaços mais estáticos,
os dormitórios. Nas duas casas, essa transição ocorre em corredores, cujas dimensões são dilatadas por grandes aberturas. Assim,
a tensão unidirecional que que a geometria desses espaços sugerem é amenizada pela tensão visual promovida pelas aberturas,
configurando múltiplos pontos focais, com exceção do trecho da Sta. Tereza que é fechado com elementos vazados (Figura 10).
(a) (b)
V
V
(a) (b)
Figura 10: Espacialidade das circulações íntimas nas residências: (a) Santa Teresa (2004). SPBR; (b) Ilhabela (2008). Nitsche Arquitetos
Fonte: KON, 2008; LACERDA MENUZZI, 2016.
Os dormitórios são espaços que demandam maior privacidade e, por consequência, normalmente são muito mais fechados e
estáticos do que os outros ambientes da casa. Nas residências analisadas, a espacialidade dos dormitórios é parecida: as
portas janelas de vidro nas menores dimensões do quarto definem uma tensão visual unidirecional, resultando em espaço
mais introspectivo, embora ainda com boas visuais para o entorno. Na Ilhabela, os dormitórios podem se tornar ambientes
completamente estáticos com o fechamento total dos elementos de proteção solar da varanda. (Figura 14)
Figura 11: Espacialidade os dormitórios nas residências: (a) Santa Teresa (2004). SPBR; (b) Ilhabela (2008). Nitsche Arquitetos.
Fonte: KON, 2008; LACERDA MENUZZI, 2016.,
Considerações Finais
Após análise atenta de todos os aspectos acima, conclui-se que estas duas residências têm como semelhança o arranjo
tipológico essencial, algumas estratégias de organização em planta e também a espacialidade de modo geral. Contudo,
o arranjo utilizado se mostra flexível, ao permitir variações necessárias para a adaptação aos diferentes terrenos e
programas.
V
V
(a) (b)
É notável como as formas de projetar de cada escritório se tornam evidentemente distintas em alguns pontos. Na casa
Sta. Teresa, percebe-se uma vontade de inovar formalmente mesmo que em detalhes, como na ambiguidade formal
entre volume e plano e na introdução de planos horizontais irregulares ao projeto (sacadas do quarto andar, circulação
íntima do segundo). O escritório Nitsche Arquitetos se mostra formalmente mais alinhado à herança moderna na medida
em que seus volumes são mais puros, sem ambiguidades e com uma grande rigidez entre a modulação formal e
estrutural, que são correspondentes.
Embora os projetos tenham identidades diferentes, pode-se dizer que em ambos o uso de um arranjo tipológico inicial
é bem sucedido, pois serve apenas de ponto de partida para uma organização formal e funcional que atenda a todos o s
requisitos particulares das duas situações. As duas transgressões tipológicas aqui citadas (alas em T e
base/pilotis/mirante na Sta. Teresa; alas em T e casa pátio na Ilhabela) são completamente justificadas pelas propostas
de cada sítio, e demonstram a importância do conhecimento amplo de referenciais do arquiteto, que cria e inova a
partir de soluções já consolidadas pela boa adequação a determinadas situações gerais, como nesse caso, o tipo “alas
em T” em topografia irregular de grandes terrenos.
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