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CENSURA MAL-DISFARÇADA*

Uma vergonha. Infelizmente, não há como empregar meias palavras para

qualificar o ato do governo federal que cancelou o visto concedido ao jornalista Larry

Rohter, do “New York Times”, em retaliação pela publicação de reportagem em que ele

acusara o presidente Lula de exagerar no consumo de bebidas alcoólicas. O caráter

leviano da notícia, por todos reconhecido, é francamente irrelevante, pois nenhum

governo que se pretenda democrático tem o direito de calar quem o critica, por mais

injusta e absurda que seja a crítica.

O presidente entendeu que o jornalista abusou do exercício da liberdade de

imprensa. Sua avaliação foi provavelmente correta. Mas será que cabia a ele, parte

diretamente interessada, fazer este julgamento? Caso fosse legítimo ao Poder Executivo

punir todos aqueles que formulassem críticas que considerasse injustas, não haveria

mais liberdade de imprensa. Hoje se expulsa o jornalista estrangeiro que criticou

supostos excessos etílicos do presidente, amanhã pode-se, quem sabe, punir aquele que

ouse criticar a política econômica do governo.

No Estado Democrático de Direito, os atos governamentais não podem afrontar

a Constituição. E a Constituição de 1988 chegou a ser redundante na consagração da

liberdade de imprensa e na proibição da censura, repetindo a vedação nada menos do

que quatro vezes (art. 5º, inciso IX e art. 220, caput, §§ 1º e 2º do texto constitucional).

Isto porque, vacinado contra este mal praticado às abertas durante o regime de exceção,

bem sabia o constituinte que a vitalidade de uma democracia depende ao extremo da

garantia da liberdade de imprensa. Contra os abusos eventualmente cometidos, o

remédio previsto pela Constituição é a reparação, por via judicial, dos danos moral e

material causados à vítima. Nunca a censura, explícita ou velada.

Pelo princípio da universalidade dos direitos humanos, o estrangeiro, no Brasil,

também goza de liberdade de expressão. Nenhum jornalista de nacionalidade

estrangeira pode sofrer sanção por redigir matéria que desagrade ao governante de

plantão.

Por isso, o fundamento invocado pelo governo para expulsar o jornalista

americano é canhestro, para dizer o mínimo: o dispositivo do Estatuto do Estrangeiro,

editado nos estertores do regime militar, segundo o qual não se concede visto a quem

for considerado “nocivo à ordem pública e ao interesse nacional”. Ora, é sabido que

* Artigo publicado no jornal O Globo, em 15/05/2004, sob o título, atribuído pelo jornal “Vergonha!”.

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toda legislação ordinária, inclusive aquela editada antes da promulgação da

Constituição, tem de ser interpretada à luz da Lei Maior, sob a inspiração dos seus

princípios e valores. Portanto, é inaceitável aplicar uma lei de modo a legitimar a

censura – prática vedada peremptoriamente pelo poder constituinte.

Enfim, muito mais grave do que a reportagem leviana do “New York Times” foi

a reação despropositada do governo federal. Ao retaliar o jornalista, nossos governantes

não só revelaram arbítrio e despreparo. Eles praticaram um feito inédito, que talvez nem

o mais poderoso e mal-intencionado jornalista conseguisse atingir: comprometeram a

imagem do país – hoje uma democracia madura – pondo o Brasil no mesmo patamar de

uma qualquer República das Bananas. Uma vergonha!