UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
FACULDADE DE HISTOacuteRIA
CURSO DE HISTOacuteRIA - LICENCIATURA
Cidadania e Multietnicidade
a Noccedilatildeo de Pertencimento e as Arengas Militares
na Escrita de Xenofonte
Eduardo Alves Garcia
Porto Alegre
2015
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTOacuteRIA
CURSO DE HISTOacuteRIA - LICENCIATURA
Cidadania e Multietnicidade
a Noccedilatildeo de Pertencimento e as Arengas Militares
na Escrita de Xenofonte
Eduardo Alves Garcia
Trabalho de Conclusatildeo de Curso apresentado agrave
Comissatildeo de Graduaccedilatildeo do Curso de Histoacuteria -
Licenciatura da Faculdade de Histoacuteria da
UFRGS como requisito parcial e obrigatoacuterio
para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Licenciado em
Histoacuteria
Orientador Prof Dr Anderson Zalewski Vargas
Porto Alegre
2015
3
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo primeiramente agrave minha matildee que sempre mostrou interesse por este
trabalho assim como pelo resto das coisas importantes da minha vida
Tambeacutem aos meus colegas de trabalho do CSTI que ouviram muito sobre retoacuterica
mesmo que involuntariamente
Natildeo poderia esquecer o Allejandro a Ket e a Carol ndash os quais por conveniecircncia sorte
ou acaso constituem uma famiacutelia para mim e que acompanharam de perto minhas noites em
claro na formulaccedilatildeo deste trabalho
Tambeacutem ao meu orientador pelo auxiacutelio e pela inspiraccedilatildeo e agrave minha tia Carla que de
forma muito disposta me auxiliou com todo esmero natildeo poupando esforccedilos ndash mesmo que de
tatildeo longe ndash em me dar o amparo que precisei com urgecircncia
Por fim um agradecimento especial para Amanda meu grande amor ndash com quem
compartilho a paixatildeo pelas letras e pelo absurdo e quem me proporcionou apoio incondicional
na elaboraccedilatildeo desta pesquisa revisando todo o trabalho e me auxiliando ao longo da produccedilatildeo
deste Devo a realizaccedilatildeo deste trabalho principalmente ao seu carinho que sempre me serviu
de estiacutemulo para continuar
4
RESUMO
O presente trabalho tem a finalidade de determinar a noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio
recorrentes nas arengas militares presentes na escrita de Xenofonte (430ndash354 aC) Tal estudo
utiliza como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema valores a cidadania e as
arengas voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de diversas culturas
Eacute aplicada uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de autoria de Xenofonte
Anaacutebase e Ciropedia O emprego de tal metodologia consiste em destacar diferenccedilas teacutecnicas
como artifiacutecios retoacutericos e identificar nuacutecleos argumentativos para discernir nas diferenccedilas a
influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nos discursos A importacircncia da retoacuterica nesta pesquisa
tambeacutem se atribui ao fato de que a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo eacute composta com
bases em tal arte da persuasatildeo que influenciara a literatura da eacutepoca
Palavras-chave arenga militar Xenofonte retoacuterica historiografia
5
ABSTRACT
This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-
battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a
comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a
community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches
addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies
a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and
Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical
artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially
with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric
in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is
based in this art of persuasion which influenced the literature at the time
Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography
6
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37
Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67
7
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 9
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14
21 A Retoacuterica 14
22 Retoacuterica e Historiografia19
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23
31 Xenofonte 23
311 Obras com Narrativas Histoacutericas25
3111 Anaacutebase 26
3112 Ciropedia 26
3113 Hellecircnica 27
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28
33 Identidade Helecircnica 30
34 Cultura Militar 31
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33
42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39
423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40
424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43
425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56
8
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57
43 Arengas Militares na Ciropedia 58
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65
433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66
434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67
44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
11
seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
13
os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
14
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
15
A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
16
Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
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Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
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do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
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vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
21
forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
22
elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
24
resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
38
Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
39
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
41
III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
42
ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
43
provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
44
segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
45
Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
46
Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
47
Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
48
ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
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aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
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O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
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decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
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Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
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429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
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em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
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42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
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Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
58
Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
59
537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
60
de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
65
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTOacuteRIA
CURSO DE HISTOacuteRIA - LICENCIATURA
Cidadania e Multietnicidade
a Noccedilatildeo de Pertencimento e as Arengas Militares
na Escrita de Xenofonte
Eduardo Alves Garcia
Trabalho de Conclusatildeo de Curso apresentado agrave
Comissatildeo de Graduaccedilatildeo do Curso de Histoacuteria -
Licenciatura da Faculdade de Histoacuteria da
UFRGS como requisito parcial e obrigatoacuterio
para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Licenciado em
Histoacuteria
Orientador Prof Dr Anderson Zalewski Vargas
Porto Alegre
2015
3
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo primeiramente agrave minha matildee que sempre mostrou interesse por este
trabalho assim como pelo resto das coisas importantes da minha vida
Tambeacutem aos meus colegas de trabalho do CSTI que ouviram muito sobre retoacuterica
mesmo que involuntariamente
Natildeo poderia esquecer o Allejandro a Ket e a Carol ndash os quais por conveniecircncia sorte
ou acaso constituem uma famiacutelia para mim e que acompanharam de perto minhas noites em
claro na formulaccedilatildeo deste trabalho
Tambeacutem ao meu orientador pelo auxiacutelio e pela inspiraccedilatildeo e agrave minha tia Carla que de
forma muito disposta me auxiliou com todo esmero natildeo poupando esforccedilos ndash mesmo que de
tatildeo longe ndash em me dar o amparo que precisei com urgecircncia
Por fim um agradecimento especial para Amanda meu grande amor ndash com quem
compartilho a paixatildeo pelas letras e pelo absurdo e quem me proporcionou apoio incondicional
na elaboraccedilatildeo desta pesquisa revisando todo o trabalho e me auxiliando ao longo da produccedilatildeo
deste Devo a realizaccedilatildeo deste trabalho principalmente ao seu carinho que sempre me serviu
de estiacutemulo para continuar
4
RESUMO
O presente trabalho tem a finalidade de determinar a noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio
recorrentes nas arengas militares presentes na escrita de Xenofonte (430ndash354 aC) Tal estudo
utiliza como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema valores a cidadania e as
arengas voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de diversas culturas
Eacute aplicada uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de autoria de Xenofonte
Anaacutebase e Ciropedia O emprego de tal metodologia consiste em destacar diferenccedilas teacutecnicas
como artifiacutecios retoacutericos e identificar nuacutecleos argumentativos para discernir nas diferenccedilas a
influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nos discursos A importacircncia da retoacuterica nesta pesquisa
tambeacutem se atribui ao fato de que a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo eacute composta com
bases em tal arte da persuasatildeo que influenciara a literatura da eacutepoca
Palavras-chave arenga militar Xenofonte retoacuterica historiografia
5
ABSTRACT
This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-
battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a
comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a
community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches
addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies
a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and
Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical
artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially
with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric
in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is
based in this art of persuasion which influenced the literature at the time
Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography
6
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37
Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67
7
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 9
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14
21 A Retoacuterica 14
22 Retoacuterica e Historiografia19
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23
31 Xenofonte 23
311 Obras com Narrativas Histoacutericas25
3111 Anaacutebase 26
3112 Ciropedia 26
3113 Hellecircnica 27
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28
33 Identidade Helecircnica 30
34 Cultura Militar 31
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33
42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39
423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40
424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43
425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56
8
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57
43 Arengas Militares na Ciropedia 58
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65
433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66
434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67
44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
11
seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
13
os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
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2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
15
A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
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Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
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Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
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do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
19
vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
21
forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
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elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
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resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
38
Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
39
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
41
III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
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ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
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provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
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segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
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Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
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Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
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Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
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ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
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aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
50
O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
51
decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
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Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
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429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
55
em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
56
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
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Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
58
Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
59
537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
60
de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
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432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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3
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo primeiramente agrave minha matildee que sempre mostrou interesse por este
trabalho assim como pelo resto das coisas importantes da minha vida
Tambeacutem aos meus colegas de trabalho do CSTI que ouviram muito sobre retoacuterica
mesmo que involuntariamente
Natildeo poderia esquecer o Allejandro a Ket e a Carol ndash os quais por conveniecircncia sorte
ou acaso constituem uma famiacutelia para mim e que acompanharam de perto minhas noites em
claro na formulaccedilatildeo deste trabalho
Tambeacutem ao meu orientador pelo auxiacutelio e pela inspiraccedilatildeo e agrave minha tia Carla que de
forma muito disposta me auxiliou com todo esmero natildeo poupando esforccedilos ndash mesmo que de
tatildeo longe ndash em me dar o amparo que precisei com urgecircncia
Por fim um agradecimento especial para Amanda meu grande amor ndash com quem
compartilho a paixatildeo pelas letras e pelo absurdo e quem me proporcionou apoio incondicional
na elaboraccedilatildeo desta pesquisa revisando todo o trabalho e me auxiliando ao longo da produccedilatildeo
deste Devo a realizaccedilatildeo deste trabalho principalmente ao seu carinho que sempre me serviu
de estiacutemulo para continuar
4
RESUMO
O presente trabalho tem a finalidade de determinar a noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio
recorrentes nas arengas militares presentes na escrita de Xenofonte (430ndash354 aC) Tal estudo
utiliza como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema valores a cidadania e as
arengas voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de diversas culturas
Eacute aplicada uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de autoria de Xenofonte
Anaacutebase e Ciropedia O emprego de tal metodologia consiste em destacar diferenccedilas teacutecnicas
como artifiacutecios retoacutericos e identificar nuacutecleos argumentativos para discernir nas diferenccedilas a
influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nos discursos A importacircncia da retoacuterica nesta pesquisa
tambeacutem se atribui ao fato de que a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo eacute composta com
bases em tal arte da persuasatildeo que influenciara a literatura da eacutepoca
Palavras-chave arenga militar Xenofonte retoacuterica historiografia
5
ABSTRACT
This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-
battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a
comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a
community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches
addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies
a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and
Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical
artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially
with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric
in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is
based in this art of persuasion which influenced the literature at the time
Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography
6
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37
Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67
7
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 9
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14
21 A Retoacuterica 14
22 Retoacuterica e Historiografia19
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23
31 Xenofonte 23
311 Obras com Narrativas Histoacutericas25
3111 Anaacutebase 26
3112 Ciropedia 26
3113 Hellecircnica 27
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28
33 Identidade Helecircnica 30
34 Cultura Militar 31
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33
42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39
423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40
424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43
425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56
8
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57
43 Arengas Militares na Ciropedia 58
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65
433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66
434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67
44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
11
seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
13
os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
14
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
15
A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
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Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
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Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
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do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
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vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
21
forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
22
elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
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resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
38
Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
39
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
41
III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
42
ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
43
provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
44
segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
45
Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
46
Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
47
Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
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ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
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aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
50
O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
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decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
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Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
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429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
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em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
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42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
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Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
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Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
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537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
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de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
65
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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4
RESUMO
O presente trabalho tem a finalidade de determinar a noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio
recorrentes nas arengas militares presentes na escrita de Xenofonte (430ndash354 aC) Tal estudo
utiliza como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema valores a cidadania e as
arengas voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de diversas culturas
Eacute aplicada uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de autoria de Xenofonte
Anaacutebase e Ciropedia O emprego de tal metodologia consiste em destacar diferenccedilas teacutecnicas
como artifiacutecios retoacutericos e identificar nuacutecleos argumentativos para discernir nas diferenccedilas a
influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nos discursos A importacircncia da retoacuterica nesta pesquisa
tambeacutem se atribui ao fato de que a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo eacute composta com
bases em tal arte da persuasatildeo que influenciara a literatura da eacutepoca
Palavras-chave arenga militar Xenofonte retoacuterica historiografia
5
ABSTRACT
This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-
battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a
comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a
community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches
addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies
a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and
Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical
artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially
with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric
in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is
based in this art of persuasion which influenced the literature at the time
Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography
6
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37
Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67
7
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 9
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14
21 A Retoacuterica 14
22 Retoacuterica e Historiografia19
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23
31 Xenofonte 23
311 Obras com Narrativas Histoacutericas25
3111 Anaacutebase 26
3112 Ciropedia 26
3113 Hellecircnica 27
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28
33 Identidade Helecircnica 30
34 Cultura Militar 31
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33
42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39
423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40
424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43
425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56
8
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57
43 Arengas Militares na Ciropedia 58
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65
433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66
434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67
44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
11
seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
13
os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
14
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
15
A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
16
Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
17
Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
18
do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
19
vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
21
forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
22
elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
24
resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
38
Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
39
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
41
III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
42
ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
43
provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
44
segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
45
Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
46
Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
47
Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
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ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
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aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
50
O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
51
decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
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Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
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429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
55
em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
56
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
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Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
58
Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
59
537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
60
de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
65
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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5
ABSTRACT
This research aims to determine the notion of belonging in a community recurrent in pre-
battle speeches present in Xenophonrsquos (430-354 BC) texts The method used in this study is a
comparison between pre-battle speeches addressed to an audience of members belonging in a
community who share the same value system and same citizenship and the pre-battle speeches
addressed to a multi-ethnic audience where members come from different cultures It applies
a comparative analysis of the rhetoric between two of Xenophonrsquos writings Anabasis and
Cyropaedia The method consists of pointing out technical differences such as rhetorical
artifices identifying the crux of the arguments in order to discern in the speeches especially
with their differences the influence of the notion of belonging The importance of the rhetoric
in this research is also due to the fact that the historiographic tradition of the Ancient World is
based in this art of persuasion which influenced the literature at the time
Keywords pre-battle speeches Xenophon rhetoric historiography
6
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37
Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67
7
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 9
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14
21 A Retoacuterica 14
22 Retoacuterica e Historiografia19
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23
31 Xenofonte 23
311 Obras com Narrativas Histoacutericas25
3111 Anaacutebase 26
3112 Ciropedia 26
3113 Hellecircnica 27
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28
33 Identidade Helecircnica 30
34 Cultura Militar 31
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33
42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39
423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40
424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43
425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56
8
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57
43 Arengas Militares na Ciropedia 58
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65
433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66
434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67
44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
11
seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
13
os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
14
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
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A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
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Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
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Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
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do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
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vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
21
forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
22
elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
24
resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
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faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
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sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
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Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
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Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
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4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
41
III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
42
ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
43
provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
44
segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
45
Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
46
Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
47
Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
48
ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
49
aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
50
O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
51
decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
53
Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
54
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
55
em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
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42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
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Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
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Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
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537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
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de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
65
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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6
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase 37
Tabela 2 ndash Arengas Militares da Ciropedia 59
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnicas 67
7
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 9
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14
21 A Retoacuterica 14
22 Retoacuterica e Historiografia19
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23
31 Xenofonte 23
311 Obras com Narrativas Histoacutericas25
3111 Anaacutebase 26
3112 Ciropedia 26
3113 Hellecircnica 27
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28
33 Identidade Helecircnica 30
34 Cultura Militar 31
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33
42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39
423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40
424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43
425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56
8
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57
43 Arengas Militares na Ciropedia 58
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65
433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66
434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67
44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
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seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
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os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
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2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
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A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
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Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
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Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
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do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
19
vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
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Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
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forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
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elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
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resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
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Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
38
Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
39
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
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III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
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ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
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provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
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segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
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Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
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Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
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Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
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ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
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aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
50
O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
51
decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
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Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
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429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
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em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
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42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
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Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
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Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
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537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
60
de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
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432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
BARROS Joseacute Costa DrsquoAssunccedilatildeo A Escola dos Annales consideraccedilotildees sobre a Histoacuteria do
Movimento In Revista Histoacuteria em Reflexatildeo Vol 4 n 8 ndash UFGD - Dourados juldez
2010
BRIZZI Giovanni Guerreiro o soldado e o Legionaacuterio Os exeacutercitos no mundo claacutessico
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7
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO 9
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA14
21 A Retoacuterica 14
22 Retoacuterica e Historiografia19
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica 20
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO 23
31 Xenofonte 23
311 Obras com Narrativas Histoacutericas25
3111 Anaacutebase 26
3112 Ciropedia 26
3113 Hellecircnica 27
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia 28
33 Identidade Helecircnica 30
34 Cultura Militar 31
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE 33
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo 33
42 As Arengas Militares na Anaacutebase 36
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro 38
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase 39
423 Arenga III ndash Anaacutebase (1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto) 40
424 Arengas IV e V ndash Anaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1 ndash Emissor Xenofonte41
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase 43
425 Arengas VI e VII ndash Anaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2 ndash Emissor QuisriacutesofoCleanor 44
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase 45
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 45
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase 49
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte52
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase 52
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 53
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase 53
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 54
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase 54
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte 55
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase 56
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Xenofonte 56
8
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57
43 Arengas Militares na Ciropedia 58
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65
433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66
434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67
44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
11
seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
13
os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
14
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
15
A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
16
Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
17
Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
18
do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
19
vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
21
forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
22
elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
24
resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
38
Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
39
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
41
III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
42
ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
43
provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
44
segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
45
Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
46
Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
47
Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
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ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
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aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
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O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
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decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
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Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
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429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
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em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
56
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
57
Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
58
Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
59
537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
60
de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
65
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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8
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase 57
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase 57
43 Arengas Militares na Ciropedia 58
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1 ndash Emissor Ciro o Grande 61
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndash Ciropedia 63
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4 ndash Emissor Rei dos Assiacuterios 65
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia 65
433 Arenga XV ndash Ciropedia (7110-14) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro o Grande 66
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndash Ciropedia 66
434 Arenga IV ndash Hellecircnica (7130) ndash Tipo 4 ndash Emissor Arquidamo 67
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Ciropedia67
44 O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte 68
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 70
6 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 73
9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
11
seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
13
os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
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2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
15
A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
16
Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
17
Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
18
do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
19
vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
21
forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
22
elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
24
resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
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Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
39
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
41
III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
42
ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
43
provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
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segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
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Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
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Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
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Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
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ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
49
aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
50
O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
51
decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
52
fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
53
Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
54
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
55
em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
56
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
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Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
58
Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
59
537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
60
de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
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cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
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432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
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Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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9
1 INTRODUCcedilAtildeO
A oratoacuteria grega eacute parte fundamental da cultura do mundo claacutessico tendo papel na
base dos meacutetodos persuasivos da linguagem que se mantecircm ainda nos dias de hoje A praacutetica
da oratoacuteria muito presente nos aspectos da vida puacuteblica das poleis a partir do seacuteculo V aC
com o intuito de persuadir outros cidadatildeos a adotar determinados projetos poliacuteticos ou
resolver contendas judiciais tambeacutem encontra destaque nos campos de batalha nos quais os
generais diante de seus exeacutercitos realizavam um discurso motivacional agraves tropas a fim de
enaltecer sua moral buscando desta forma um melhor rendimento beacutelico diante do inimigo
Ainda assim a base argumentativa das arengas militares - isto eacute tais discursos de
exortaccedilatildeo articulados previamente ao combate - tende a mudar conforme a especificidade do
auditoacuterio visto que sua principal intenccedilatildeo eacute a de comover os soldados em seu iacutentimo para
motivaacute-los nas lutas de determinada batalha
Com tais consideraccedilotildees em mente eacute notaacutevel que um discurso de exortaccedilatildeo proveniente
de um general atento reflita significativamente os valores de seus soldados e muitas vezes
ateacute mesmo da sociedade em que estatildeo inseridos A anaacutelise de tais discursos por meio dos
princiacutepios da retoacuterica torna estas caracteriacutesticas mais facilmente identificaacuteveis principalmente
devido agrave sua forte presenccedila na tradiccedilatildeo historiograacutefica da antiguidade pois ldquoretoacuterica e
historiografia andam juntos no mundo antigordquo (ZOIDO 2010 p 216)
Ainda assim por meio da comparaccedilatildeo entre os estudos em torno das arengas militares
e dos discursos proferidos em assembleias e tribunais nota-se um interesse menor pelos
discursos de exortaccedilatildeo militar por serem considerados simples e repetitivos O filoacutelogo Juan
Carlos Iglezias Zoido no entanto considera estas mesmas caracteriacutesticas dignas de pesquisa
destacando
Sin embargo los hechos muestran que si tuvieacuteramos que sentildealar un tipo de discurso
presente de manera sistemaacutetica a lo largo de toda la historiografiacutea grecolatina la arenga militar ocupariacutea por derecho propio una posicioacuten muy destacada Si a ello le
antildeadimos el dato evidente de que a lo largo de maacutes de um milenio sus elementos
constitutivos se mantuvieron sorprendentemente uniformes em lo esencial ajenos en
apariencia a cambios de eacutepoca y de mentalidad su importancia se acrecienta auacuten
maacutes (ZOIDO 2007 p 22)
Dentre muitos escritos originaacuterios da Antiguidade Claacutessica que abarcam uma
diversidade de arengas em sua composiccedilatildeo destaca-se o conjunto de obras do ateniense
Xenofonte (430 ndash 354 aC) com seus trinta e quatro discursos de exortaccedilatildeo militar Aleacutem de
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ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
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seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
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tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
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os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
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2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
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A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
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Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
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Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
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do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
19
vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
21
forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
22
elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
24
resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
38
Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
39
4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
40
fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
41
III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
42
ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
43
provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
44
segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
45
Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
46
Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
47
Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
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ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
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aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
50
O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
51
decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
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Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
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429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
55
em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
56
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
57
Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
58
Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
59
537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
60
de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
65
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
71
Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
72
para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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10
ser caracterizado como um intelectual do ciacuterculo socraacutetico o autor tambeacutem se distingue por
ter sido um mercenaacuterio que teve a seu cargo o comando de tropas o que com efeito
transcende a concepccedilatildeo apenas teoacuterica acerca da guerra Jaeger comenta sobre Xenofonte
Como tantos jovens de sua geraccedilatildeo sentiu-se atraiacutedo por Soacutecrates e embora natildeo
tenha chegado a ser contado entre os seus disciacutepulos em sentido escrito foi tatildeo
profunda a impressatildeo que aquele homem lhe causou que no regresso do seu serviccedilo
militar no exeacutercito de Ciro ergueu ao mestre querido mais de um monumento
perduraacutevel nas suas obras Natildeo foi Soacutecrates poreacutem quem marcou o destino da sua
vida mas sim a ardente inclinaccedilatildeo para a guerra e para a aventura a qual o arrastou
para o ciacuterculo maacutegico cujo centro era a figura romacircntica daquele priacutencipe rebelde
dos Persas e o levou a alistar-se sob a bandeira do seu exeacutercito de mercenaacuterios
gregos (JAEGER 2010 p 1215)
Tambeacutem eacute notaacutevel que os discursos de exortaccedilatildeo presentes na obra de Xenofonte
sejam em boa parte relativamente extensos criando uma significativa margem para anaacutelise
Ademais ele eacute o escritor grego que mais escreveu arengas militares de estilo direto ou seja
as que expotildeem as palavras do emissor do discurso em primeira pessoa
O principal problema de pesquisa deste trabalho tendo como base tais premissas a
respeito de retoacuterica historiografia e arenga militares consiste em investigar ateacute que ponto a
presenccedila da noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio influencia os discursos de exortaccedilatildeo no
conjunto da obra de Xenofonte Em relaccedilatildeo agrave delimitaccedilatildeo temporal eacute importante destacar que
a produccedilatildeo intelectual do autor estudado eacute datada toda da segunda metade do seacuteculo IV aC o
que nos orienta a um contexto de valores da civilizaccedilatildeo grega claacutessica a ser considerado no
decorrer deste trabalho O recorte espacial desta pesquisa corresponde ao ambiente das forccedilas
poliacuteticas que circundavam o mar Egeu ou seja principalmente as poleis - tanto as
democraacuteticas quanto as aristocraacuteticas da Heacutelade ndash e o impeacuterio persa que dominava a parte
asiaacutetica
Assim considera-se como objetivo principal a busca por examinar a construccedilatildeo da
identidade grega por meio da retoacuterica aplicada ao discurso verificando a noccedilatildeo de
pertencimento evidenciada pelos recursos retoacutericos presentes nas arengas militares gregas
reproduzidas em duas importantes obras de Xenofonte Anaacutebase e Ciropedia que compotildeem o
corpus de pesquisa Tambeacutem tenta-se identificar as formas de construccedilatildeo do saber histoacuterico
por meio de anaacutelises historiograacuteficas envolvendo a retoacuterica e conceitos claacutessicos e no longo
prazo contribuir para o estudo na aacuterea da retoacuterica e sua relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo da
historiografia do mundo antigo
Para tal fim toma-se como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um
auditoacuterio composto por membros pertencentes a comunidades que possuem a cidadania em
11
seu sistema de valores e as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com
membros provindos de diferentes culturas
Aleacutem disso este trabalho propotildee-se a traccedilar com base nos conceitos acerca da retoacuterica
desenvolvidos por Michel Meyer um esquema que forme um padratildeo na aplicaccedilatildeo retoacuterica das
arengas militares comparando sistematicamente argumentos lugares-comuns e artifiacutecios
retoacutericos utilizados para auditoacuterios formados por cidadatildeos em contraste com os empregados a
um auditoacuterio multieacutetnico
A respeito do contexto das obras eacute possiacutevel notar diferentes tramas que reconstituem
eventos histoacutericos distintos Na Anaacutebasendash obra de caraacuteter autobiograacutefico escrita por volta de
401 aCndash uma excursatildeo de mercenaacuterios gregos luta ao lado de um priacutencipe persa com a
finalidade de tomar o trono de seu irmatildeo Artaxerxes Entretanto mesmo os gregos tendo
vencido o conflito decisivo Ciro morre na contenda e deixa milhares de gregos desamparados
em territoacuterio hostil Nesse momento Xenofonte assume a lideranccedila e guia os soldados de
volta agrave Greacutecia Jaacute em Ciropedia escrita em torno de 360 aC conta-se a histoacuteria de Ciro o
Grande fundador do Impeacuterio Persa
A diferenccedila essencial entre tais obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos de
exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do auditoacuterio na Anaacutebase nota-se um auditoacuterio
formado por mercenaacuterios gregos ndash provindos de diversas poleis e na Ciropedia o auditoacuterio eacute
constituiacutedo por um exeacutercito persa ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se
trata da visatildeo de Xenofonte sobre uma sociedade natildeo grega ndash ou baacuterbara ndash sobre a qual a
historiografia do mundo antigo tem determinadas limitaccedilotildees
De maneira geral este estudo se destaca em importacircncia devido a seu ineditismo no
Brasil em trecircs diferentes niacuteveis o estudo das arengas militares na Antiguidade Claacutessica no
acircmbito da relaccedilatildeo entre a retoacuterica e a historiografia a utilizaccedilatildeo das obras de Xenofonte tendo
em vista a proposta da anaacutelise de discurso e a aplicaccedilatildeo dos conceitos ndash relativos agrave
negociaccedilatildeo das diferenccedilas ndash de autoria de Michel Meyer com a finalidade de relacionar
metodologia retoacuterica a noccedilotildees de identidade alteridade e pertencimento Ademais eacute de suma
relevacircncia situar a utilizaccedilatildeo da retoacuterica para a construccedilatildeo do conhecimento histoacuterico dentro
da tendecircncia que se manteve constante durante todas as fases da Escola dos Annales ou seja
a interdisciplinaridade1Dentre diversas aacutereas ndash como geografia e antropologia ndash que vatildeo
1 Utiliza-se aqui o conceito de ldquointerdisciplinaridaderdquo voltado para a troca de conteuacutedos e meacutetodos entre
diferentes disciplinas ultrapassando a segmentaccedilatildeo do conhecimento promovida pela multidisciplinaridade
tradicional (SILVA Kalina Vanderlei e SILVA Maciel Henrique Dicionaacuterio de Conceitos histoacutericos
Contexto Satildeo Paulo 2005 p 238)
12
tomando importacircncia dentro da realidade da pesquisa histoacuterica desde a primeira geraccedilatildeo da
Escola do Annales Barros nota que
Um destaque interdisciplinar eacute tambeacutem trazido pela Linguumliacutestica campo de
conhecimentos e praacuteticas que natildeo apenas passa a ser utilizado pelos historiadores
como apoio para a anaacutelise de seus diversificados objetos histoacutericos como tambeacutem
comeccedila a ser empregado para uma auto-anaacutelise de seu proacuteprio campo de produccedilatildeo
de conhecimentos a historiografia profissional Para muitos destes historiadores que
analisam a proacutepria historiografia os diaacutelogos com a linguumliacutestica os levaratildeo a
considerar a Histoacuteria como um discurso dotado de estilo de padrotildees literaacuterios de
singularidades a serem investigadas (BARROS 2010 p 22-23)
Tendo em vista tais premissas fica clara entatildeo a importacircncia da retoacuterica ndash estudo que
abrange a linguiacutestica e que se encontra muito presente na formaccedilatildeo do intelectual no mundo
antigo ndash na tradiccedilatildeo historiograacutefica que situa essa pesquisa Aleacutem disso conforme Mosca
(2007 p 14) nenhuma manifestaccedilatildeo discursiva estaacute isenta de retoacuterica Diante de tal princiacutepio
Zoido2007 p 67) ainda estabelece que ldquoTodos los historiadores pues fueron retoacutericos La
diferencia estaacute em queacute tipo o especie de Retoacuterica emplearon Pero todos la usaron [] Toda
Historiografiacutea estaacute pues tocada de Retoacutericardquo
Seguindo esta perspectiva teoacuterica cabe apontar que a arenga militar embora seja um
tipo de discurso que tradicionalmente recebe uma menor atenccedilatildeo em termos de pesquisa
sustenta-se como um recurso singular para o estudo no campo historiograacutefico Tais discursos
se encontram presentes ao longo de toda a histoacuteria na antiguidade - na qual a guerra desfruta
de um lugar privilegiado ndash e portanto ldquoconstituyen um testimonio de gran valor para
entender la evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la frutiacutecfera relacioacuten entre retoacuterica e
historiografiacutea a lo largo del tempordquo (WISEMAN apud ZOIDO 2007 p 32)
O espaccedilo que a retoacuterica encontra nos discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade ndash
constituindo assim a historiografia ndash torna-se evidente quando se observa o meacutetodo utilizado
pelos historiadores para expor as arengas em suas obras Existiam duas exigecircncias para tal a
primeira trata-se das fontes que se tem a respeito do que foi realmente dito antes da batalha
pois pretendia-se fidelidade ao que realmente teria ocorrido e a segunda consistia em
respeitar uma certa tradiccedilatildeo literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
(ZOIDO 2007 p 32)
De maneira a organizar e embasar teoricamente esta pesquisa este trabalho estaacute
dividido nos seguintes capiacutetulos primeiramente o capiacutetulo intitulado Histoacuteria Retoacuterica e o
Discurso de Exortaccedilatildeo na Antiguidade Claacutessica vai abordar a retoacuterica desde sua origem ateacute as
novas tendecircncias sua relaccedilatildeo com a historiografia antiga e finalmente a relaccedilatildeo destes com
13
os discursos de exortaccedilatildeo militar Trata-se de um apanhado teoacuterico que define as bases dessa
pesquisa o segundo capiacutetulo que discorre acerca de Xenofonte e a formaccedilatildeo dos valores
gregos de seu tempo tem a finalidade de se avaliar o orador e o auditoacuterio das arengas
militares que correspondem ao objeto desse estudo Trata-se de fato das questotildees
preliminares destacadas por Reboul (2004 p 149) necessaacuterias para uma anaacutelise retoacuterica Por
fim um uacuteltimo capiacutetulo denominado Anaacutebase e Ciropedia duas obras em anaacutelise que
consiste na exposiccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos discursos que foram contextualizados nas duas
primeiras partes desse trabalho
14
2 HISTOacuteRIA RETOacuteRICA E O DISCURSO DE EXORTACcedilAtildeO NA ANTIGUIDADE
CLAacuteSSICA
A Greacutecia Antiga em seu Periacuteodo Claacutessico ndash intervalo de tempo que corresponde
aproximadamente aos seacuteculos VI V e IV aC ndash protagoniza o desenvolvimento do
pensamento ocidental em diversos acircmbitos As justificativas mitoloacutegicas natildeo mais bastavam
para explicar a natureza a vida e a relaccedilatildeo do universal com o particular
Em tal contexto contempla-se o florescimento intelectual e artiacutestico que viria a
definir os alicerces dos estudos que constituem a cultura contemporacircnea como a filosofia a
ciecircncia a literatura e a arte Diante da conjuntura em questatildeo originam-se os fundamentos
acerca da retoacuterica os quais vatildeo constituir uma duradoura tradiccedilatildeo que remete aos estudos
referentes agrave teoria aplicada ao discurso ainda nos dias de hoje
21 A Retoacuterica
A palavra ldquoretoacutericardquo deriva originalmente do grego rhecirctorike que se tratava da praacutetica
do orador puacuteblico ndash ou seja a arte do rhecirctor ndash e tem seu registro mais antigo no diaacutelogo de
Platatildeo Gorgias em que o sofista a descreveu como a arte da persuasatildeo Destaca-se ainda o
fato de que ldquopersuasatildeordquo ou peithocirc era o termo usado para se referir ao equivalente de
ldquoretoacutericardquo antes da existecircncia de tal expressatildeo (KENNEDY 2003 p 17)
Eacute importante inicialmente levar em consideraccedilatildeo os trecircs elementos imprescindiacuteveis
que constituem a retoacuterica o eacutethos o loacutegos e o paacutethos (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 3 1358b)
O primeiro diz respeito ao caraacuteter agrave moral ou mesmo agrave autoridade do orador o loacutegos refere-
se ao discurso em si que pode ser articulado de forma oral escrita ou por outra miacutedia
qualquer enquanto que o paacutethos refere-se ao auditoacuterio ou ainda a seus ldquovalores impliacutecitos
das respostas fora de questatildeordquo (MEYER 2007 p 39)
Aleacutem disso eacute necessaacuterio atentar para os trecircs gecircneros de discurso de modo a situar a
forma adequada agrave anaacutelise dos argumentos tendo em vista a funccedilatildeo que cabe agrave determinada
narrativa Em primeiro lugar tem-se o gecircnero epidiacutectico que visa agrave beleza para a aclamaccedilatildeo
do puacuteblico logo apoacutes tem-se o gecircnero juriacutedico em que o auditoacuterio julga se o discurso do
orador eacute justo por fim estaacute o gecircnero deliberativo em que se debate no acircmbito da
coletividade o que eacute uacutetil ou prejudicial para a comunidade em geral (ARISTOacuteTELES
Retoacuterica 1 3 1358b)
15
A origem da aplicaccedilatildeo da retoacuterica de fato estaacute atrelada agrave queda da tirania na Siciacutelia
(465 aC) quando os cidadatildeos que haviam sido espoliados de seus bens tiveram a chance de
apelar na justiccedila para reaver o que alegavam legitimamente lhes pertencer Diante da situaccedilatildeo
pensadores denominados sofistas comeccedilaram a utilizar-se da sabedoria para intervir a favor
das viacutetimas despojadas pela antiga tirania formando assim o embriatildeo da advocacia Logo os
sofistas estariam vendendo sua assistecircncia a todo tipo de tracircmite juriacutedico em que os cidadatildeos
tivessem a possibilidade de usar da palavra em benefiacutecio proacuteprio Como natildeo existiam
advogados propriamente ditos e o cidadatildeo tinha de defender sua causa pessoalmente os
sofistas entregavam os argumentos por escrito para serem lidos ante o tribunal
Tal praacutetica que em seguida chega a Atenas devido agraves relaccedilotildees proacuteximas que esta
mantinha com a Siciacutelia eacute condenada por Platatildeo que desde entatildeo manifestou sua aversatildeo agrave
retoacuterica Aristoacuteteles ao contraacuterio deste vai compreender a retoacuterica de forma positiva
considerando a possibilidade do debate com divergecircncias de opiniotildees como um bem para a
cidade Ele tambeacutem credita alguma dignidade a defender-se por meio da retoacuterica pois se esta
pode ser usada com a finalidade de manipular tambeacutem pode ser usada para conquistar a
adesatildeo a uma causa justa ou para corrigir uma injusticcedila
A retoacuterica eacute uacutetil porque tendo o verdadeiro e o justo mais forccedila natural que os seus
contraacuterios se os julgamentos natildeo satildeo proferidos como conviria eacute necessariamente
por sua uacutenica culpa que os litigantes satildeo derrotados () Ademais eacute preciso ser
capaz de persuadir dos proacutes e dos contras como no silogismo dialeacutetico Natildeo para
por os proacutes e os contras em praacutetica ndash pois natildeo se deve corromper pela persuasatildeondash mas para saber claramente quais satildeo os fatos e para caso algueacutem se valha de
argumentos desonestos estar em condiccedilotildees de refutaacute-lo() Aleacutem disso se eacute
vergonhoso natildeo poder defender-se com o proacuteprio corpo seria um absurdo que natildeo
houvesse vergonha em natildeo poder defender-se com a palavra cujo uso eacute mais proacuteprio
ao homem que o do corpo (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1355 a-b)
Aleacutem desses aspectos eacute importante conceber a notaacutevel premissa de que nenhum
discurso seja ele falado ou escrito estaacute isento de retoacuterica Qualquer tipo de comunicaccedilatildeo
como atenta Kennedy (2003 p 18) tem por objetivo cumprir um propoacutesito Desse modo a
comunicaccedilatildeo eacute retoacuterica porque de algum jeito almeja influenciar pensamentos accedilotildees ou
emoccedilotildees de um determinado puacuteblico Assim sendo a participaccedilatildeo da retoacuterica na sociedade
estaacute condicionada a especificidades histoacutericas de um periacuteodo determinado Nota-se
sobretudo que conforme os modelos de comunicaccedilatildeo vigentes em uma sociedade se
transformam o papel da retoacuterica vai sofrer adaptaccedilotildees Tambeacutem como afirma Meyer (2003
p 11) ldquoA retoacuterica renasce sempre que as ideologias se desmoronam Aquilo que era objeto de
certeza torna-se entatildeo problemaacutetico e eacute submetido agrave discussatildeordquo
16
Na Greacutecia sobretudo em Atenas sob o regime da democracia a retoacuterica vai ter um
importante papel na vida poliacutetica das cidades constituiacutedas por cidadatildeos ldquoPara os gregos a
retoacuterica encarna a pluralidade das vozes na poliacutetica a possibilidade da democracia que se
baseia na discussatildeo dos meios e dos fins na Cidaderdquo (MEYER 2007 p 31) A sociedade
grega do Periacuteodo Claacutessico devido agrave necessidade da participaccedilatildeo do indiviacuteduo cidadatildeo para o
bem da coletividade nas assembleias nos tribunais e na vida social em geral vai perceber na
retoacuterica tal relevacircncia a ponto de instituir meios pedagoacutegicos para o domiacutenio de tal arte
Este arte que se descrebiacutea y se explicaba em manuales discursos diaacutelogos tratados
y lecciones se expandioacute y desarrolloacute gracias a los maestros y a los cultivadores de la
oratoacuteria y tambieacuten a los filosoacutesofos y dio lugar a lo que hoy llamamos ldquoretoacuterica
claacutesicardquo una seacuterie de praacutecticas sociales y poliacuteticas um corpus de textos que
describen o ilustran dichas praacutecticas (KENNEDY 2003 p 17)
A partir do seacuteculo II aC em Roma que desde o iniacutecio de sua histoacuteria incorpora
princiacutepios da cultura grega em sua crescente civilizaccedilatildeo desenvolveu-se o estudo da retoacuterica
Mesmo natildeo contando com tal material nos dias de hoje sabe-se por referecircncias posteriores da
existecircncia de manuais de retoacuterica em liacutengua latina que datam dessa eacutepoca No periacuteodo
republicano da histoacuteria romana nota-se uma importacircncia da oratoacuteria na participaccedilatildeo em
assembleias deliberativas e tribunais Tendo tal relevacircncia em vista jovens ricos viajavam
para Greacutecia com a finalidade de estudar retoacuterica e filosofia Com o tempo parte da oligarquia
de Roma via no emprego da retoacuterica um determinado risco agrave hegemonia de seu poder no
senado pois o discurso representava no sistema poliacutetico romano um importante instrumento
para aquisiccedilatildeo de influecircncia
Diferentemente da Greacutecia em Roma havia advogados que representavam seus
clientes destacando-se dois grandes nomes da retoacuterica Ciacutecero (103-43 aC) e Quintiliano
(35a 95dC) Segundo Reboul (2004 p71) em suas obras ambos ldquoteorizavamrdquo a praacutetica de
sua profissatildeo A De inventione principal obra de Ciacutecero tem foco nos artifiacutecios dos
discursos principalmente os elaborados para o tribunal enquanto Quintiliano em seu
Institutio expotildee um amplo manual que compotildee um extenso tratado de teacutecnica retoacuterica
orientada em funccedilatildeo de estilo e elocuccedilatildeo Nos manuais de retoacuterica da Greacutecia onde havia uma
participaccedilatildeo mais ampla na cidade e que em termos juriacutedicos o proacuteprio cidadatildeo se
representava tem-se a retoacuterica voltada para o discurso Entretanto para os romanos ela estaacute
centrada na moral e no caraacuteter do orador que sobrepotildee qualquer teacutecnica desde que ele seja
devidamente instruiacutedo Na eacutepoca imperial a vida poliacutetica participativa da repuacuteblica vai ser
reduzida prejudicando a funccedilatildeo tradicional da retoacuterica na Cidade-Estado No entanto
conforme Reboul novas perspectivas surgem
17
Eacute verdade que a retoacuterica perdeu os grandes debates poliacuteticos que soacute recuperaraacute nas
democracias modernas mas ganhou outros gecircneros a epiacutestola a descriccedilatildeo o
testamento o discurso de embaixada a consolaccedilatildeo o conselho ao priacutencipe etc
(REBOUL 2004 p 76)
Com a queda do Impeacuterio Romano e a ascensatildeo do cristianismo a Igreja Catoacutelica vai
preservar parte da cultura do mundo antigo o que inclui os estudos a respeito da retoacuterica O
cristianismo vai se apropriar dos seus usos em dois importantes aspectos para sua doutrina
religiosa Primeiramente por uma questatildeo praacutetica tem-se a utilidade de teacutecnicas de persuasatildeo
para o missionaacuterio em seu ofiacutecio de promover a crenccedila cristatilde O segundo aspecto tem uma
atribuiccedilatildeo mais teoacuterica pois se trata de utilizar a retoacuterica como um meio para interpretar as
passagens da Biacuteblia Segundo Meyer (2007 p21) a ldquoretoacuterica se inscreve entatildeo nesse vazio
entre o literal e o metafoacuterico entre a presenccedila imediata e aquilo que existe por atraacutes ndash daiacute sem
duacutevida a predileccedilatildeo pelos espiacuteritos religiosos pela retoacutericardquo Dessa forma ela desenvolve-se
tanto na pregaccedilatildeo quanto na literatura da eacutepoca
A partir do seacuteculo XVI nota-se um decliacutenio consideraacutevel nos estudos da retoacuterica pois
tem iniacutecio o rompimento do viacutenculo entre oratoacuteria e argumentaccedilatildeo Humanistas e filoacutesofos
vatildeo buscar uma verdade uacutenica essencialmente inacessiacutevel pelo uso da retoacuterica Entre os
responsaacuteveis por sua sistemaacutetica decadecircncia Reboul (2004 p 80) destaca dois Descartes
que vai considerar falso o que eacute apenas verossiacutemil tornando necessaacuterio o encadeamento de
evidecircncias e Locke que vai entender a retoacuterica como a arte de se apropriar de ardis para
insinuar falsas ideias no espiacuterito
No entanto eacute no seacuteculo XIX que surgem duas correntes de pensamento responsaacuteveis
pelo grande decliacutenio da retoacuterica A primeira se trata do positivismo que rejeita a retoacuterica em
nome da verdade cientiacutefica O terreno do incerto no qual se situa a retoacuterica vai sendo cada
vez mais rejeitado dentro de tal tendecircncia A segunda eacute o romantismo que rejeita a retoacuterica
em nome da sinceridade Uma das consequecircncias notaacuteveis dessas tendecircncias daquele seacuteculo eacute
a substituiccedilatildeo da retoacuterica no ensino francecircs por ldquohistoacuteria da literatura grega latina e francesardquo
(REBOUL 2004 p 81)
Ao longo do seacuteculo XX mesmo sem ser teorizada em tratados a retoacuterica tem forte uso
na comunicaccedilatildeo de massa caracteriacutestica do periacuteodo Notam-se os usos dela para a propaganda
e a publicidade cuja finalidade eacute dirigir-se a um ldquonuacutemero indefinido geralmente imenso de
indiviacuteduos cujo uacutenico elo eacute receber a mesma mensagemrdquo (REBOUL 2001 p 85) ou seja a
esse novo auditoacuterio que denominamos ldquomassardquo Tal recurso vai contemplar um leque de
possibilidades tendo a sua utilizaccedilatildeo para fins poliacuteticos e militares contribuiacutedo no decorrer
18
do seacuteculo com duas guerras mundiais e modelos autoritaacuterios de governos que necessitam do
apoio massivo da populaccedilatildeo
Por volta dos anos 1960 retoma-se o estudo da retoacuterica com o surgimento de
diferentes vertentes a respeito desta No entanto a tendecircncia privilegiou um movimento ndash
protagonizado por Jean Cohen Geacuterard Genete e Roland Barthes ndash que vai reduzir a retoacuterica agrave
anaacutelise da linguagem na literatura recusando assim a vasta contribuiccedilatildeo dos autores antigos
ldquoEssa lsquonova retoacutericarsquo limita-se pois agrave elocuccedilatildeo e desta soacute fica com as figuras Em suma uma
retoacuterica sem finalidade algumardquo (REBOUL 2004 p 88)
Opondo-se categoricamente a essa retoacuterica sem finalidade vai surgir uma
interpretaccedilatildeo dos estudos acerca desta a qual propotildee uma ruptura com as correntes filosoacuteficas
que resultaram no decliacutenio da retoacuterica desde o seacuteculo XVI Essa ldquoNova Retoacutericardquo tem por
representantes Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca que compuseram a obra mais
importante de tal vertente ldquoO Tratado da Argumentaccedilatildeo a Nova Retoacutericardquo A obra retoma os
tratados da Antiguidade Claacutessica voltando-se para o discurso persuasivo e por fim
classificando diversos tipos de argumentos
Essa obra que se insere na grande tradiccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles Isoacutecrates e
Quintiliano eacute realmente a teoria do discurso persuasivo Seus autores partiram de
um problema natildeo linguumliacutestico nem literaacuterio mas filosoacutefico como fundamentar os
juiacutezos de valor Buscaram pois a loacutegica do valor paralela a da ciecircncia e acabaram
por encontraacute-la na antiga retoacuterica (REBOUL p 88-89)
Apesar da excelecircncia de tal trabalho principalmente em comparaccedilatildeo com a tendecircncia
que estava tomando forma desde seu decliacutenio no seacuteculo XVI apenas no final dos anos 1970 eacute
que ele passa a ser devidamente reconhecido Eacute digno de nota que ele possibilita em sua
classificaccedilatildeo de argumentos uma alternativa para a leitura de textos utilizando-se da retoacuterica
Constituindo as recentes pesquisas que integram a perspectiva da Nova Retoacuterica
originaacuteria dos estudos de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca destaca-se o professor
da Universidade Livre de Bruxelas Michel Meyer2
Desde os primeiros estudos envolvendo a retoacuterica diversas definiccedilotildees foram
atribuiacutedas a ela mas todas privilegiam apenas um de seus trecircs elementos Aristoacuteteles assim
como Perelman privilegia o papel do loacutegos ou seja do discurso em si na retoacuterica De
maneira semelhante Platatildeo que acusava a retoacuterica de constituir uma arte com a finalidade de
manipular dava maior importacircncia ao paacutethos isto eacute o auditoacuterio a ser influenciado Por fim
2 Um dos fundadores do Centro Europeu para o Estudo da Argumentaccedilatildeo
19
vale lembrar da relevacircncia do eacutethos para Ciacutecero e Quintiliano que viam na moral no caraacuteter
ou no modo fluente do orador se pronunciar a maior parcela de importacircncia No entanto para
Michel Meyer os trecircs elementos satildeo igualmente essenciais e para dar conta de uma definiccedilatildeo
que atribua a mesma importacircncia ao orador agrave linguagem e ao auditoacuterio o autor define
retoacuterica como ldquoa negociaccedilatildeo da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo
(MEYER 2007 p 25) Tal diferenccedila ou distacircncia eacute constituiacuteda por uma infinidade de fatores
que podem ser sociais poliacuteticos eacuteticos ou eacutetnicos por exemplo ldquoEssa questatildeo eacute inclusive a
medida dessa diferenccedila do que separa e opotildee mesmo os protagonistas uma medida da
distacircncia simboacutelica que traduz sua diferenccedilardquo (MEYER 2007 p26)
Quando se negocia entatildeo essa distacircncia natildeo se trata necessariamente de reduzi-la
mas tambeacutem eacute possiacutevel sustentar ou ateacute mesmo aumentar a diferenccedila com o interlocutor por
meio do discurso Dessa forma a retoacuterica interveacutem tanto na identidade quanto na diferenccedila
entre os indiviacuteduos
Observemos que a distacircncia simboacutelica que o estatuto social consagra afirma-se
retoricamente pela exclusatildeo de todo questionamento possiacutevel o que exigem formas
que reafirmem a distacircncia No limite eacute o uniforme especiacutefico da patente no exeacutercito
do bispo na igreja do chefe no trabalho com sua vestimenta e seu protocolo
proacuteprio A diferenccedila eacute negociada por esses siacutembolos que a perpetuam e eacute uma
retoacuterica ela resolve a seu modo o problema de uma distacircncia que assim se afirma e
se confirma (MEYER 2007 p 26)
Outra importante concepccedilatildeo a respeito dos conceitos de Meyer eacute a diferenccedila que ele
atribui entre retoacuterica e argumentaccedilatildeo Para ele soacute haacute dois jeitos de se manifestar com o intuito
de convencer ou parte-se da pergunta ou da resposta ldquoA grande diferenccedila entre a retoacuterica e a
argumentaccedilatildeo deve-se ao fato de que a primeira aborda a pergunta pelo vieacutes da resposta
apresentando-a como desaparecida portanto resolvidardquo (MEYER 2007 p 27)
Ainda eacute importante ressaltar outra contribuiccedilatildeo de Meyer trata-se da teoria da
problematicidade Para sintetizar tal conceito que proveacutem de um extenso trabalho Lineide
Salvador Mosca sintetiza a teoria da seguinte maneira
[Meyer] considera como fundamental na linguagem o par pergunta-resposta Falar assim como escrever equivaleria a suscitar uma questatildeo e portanto esses atos
trazem sempre impliacutecitas as perguntas que lhes correspondem De acordo com isso
para ele a teoria da argumentaccedilatildeo eacute vista como o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito
e o impliacutecito Dessa perspectiva a significaccedilatildeo eacute sempre uma relaccedilatildeo questatildeo-
resposta no caso do texto transcendendo o sentido literal atribuiacutedo agraves frases
(MOSCA 2007 p 9)
22 Retoacuterica e Historiografia
20
Considerando o fenocircmeno da comunicaccedilatildeo inevitavelmente como constituiacutedo pela
retoacuterica por tentar exercer algum grau de influecircncia sobre o interlocutor de alguma forma
pode-se entender tambeacutem que por extensatildeo a linguagem natildeo pode ser desassociada de tal
arte Ningueacutem de fato emprega a linguagem sem o propoacutesito de comover um ouvinte ou
exercer alguma manifestaccedilatildeo simboacutelica a ser interpretada Dessa forma eacute digna de nota a
importante observaccedilatildeo de Zoido
Pues bien la Historiografia es um geacutenero literaacuterio con el que el autor intenta influir
em los oyentes o lectores y es por tanto impossible que el autor de um discurso
historiograacutefico no emplee todos los siacutembolos verbales o palabras a su alcance para
persuadir agradar o convencer a sus oyentes o lectores Todos los historiadores
pues fueron retoacutericos La diferencia estaacute em queacute tipo o espeacutecie de Retoacuterica
emplearon Pero todos la usaron Toda Historiografia estaacute pues tocada de Retoacuterica
(ZOIDO 2007 p 67)
Eacute relevante destacar a tradiccedilatildeo da retoacuterica na escrita dos helenos As obras dos
historiadores gregos foram todas elaboradas retoricamente assim como sua vasta literatura
Os autores utilizavam-se da retoacuterica para firmar no decorrer de suas obras suas proacuteprias
concepccedilotildees a respeito da histoacuteria Heroacutedoto por exemplo explicita a questatildeo da historiografia
como gecircnero literaacuterio em suas obras articulando os discursos de forma a mesclar fatos
autecircnticos com mitos e lendas com a intenccedilatildeo de persuadir seus leitores Tal objetivo revela
tambeacutem a clara composiccedilatildeo retoacuterica de suas obras Em Tuciacutedides na obra Guerra do
Peloponeso a retoacuterica estaacute presente tanto em sua concepccedilatildeo a respeito da natureza humana e
sua influecircncia na histoacuteria como na diversidade de discursos presentes na obra os quais vatildeo se
servir de teacutecnicas retoacutericas para sua elaboraccedilatildeo
Xenofonte narra eventos histoacutericos dos quais foi testemunha transmitindo as
conquistas da hegemonia espartana aleacutem da obra de caraacuteter autobiograacutefico com fortes apelos
retoacutericos
Y Todos ellos uno por uno tras outro intentaron persuadirnos de sus respectivas y
particulares visiones y metodologias histoacutericas empleando lenguaje simboacutelico
haciendo literatura pues no olvidemos que por muy exacto y veraz que sea um relato histoacuterico forma parte de um gecircnero literaacuterio (provisto de sus licencias por
tanto) que se denomina ldquoHistoriografiardquo Todos ellos pues hicieron retoacuterica (iquestpues
quieacute no hace retoacuterica al tratar de cautivara um lector com su discurso) o sea todos
ellos retorzaram a gusto su atractivo discurso histoacuterico (ZOIDO 2007 p 68)
23 As Arengas Militares na Tradiccedilatildeo Historiograacutefica
Dentre os tipos de discursos que integravam a antiga tradiccedilatildeo historiograacutefica grega os
de exortaccedilatildeo militar propiciavam maior liberdade para a elaboraccedilatildeo retoacuterica do autor De uma
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forma geral os diversos discursos ndash deliberativos e juriacutedicos por exemplo ndash estatildeo dispostos
de maneira similar ao que realmente teria sido pronunciado de fato No entanto os discursos
de exortaccedilatildeo militar representam uma exceccedilatildeo a essa regra pois se distinguem por terem sido
amplificados quando transferidos do campo de batalha para o terreno da historiografia Tal
diferenccedila deve-se ao fato de que os outros tipos de discursos possuem informaccedilotildees pontuais
que constituem sua verdadeira utilidade para obra enquanto que nas arengas eacute possiacutevel
acrescentar referecircncias uacuteteis para melhor compreensatildeo da histoacuteria No entanto eacute importante
notar que esse processo de amplificaccedilatildeo do discurso original natildeo poderia reduzir-se somente a
um exerciacutecio retoacuterico pois qualquer excesso poderia soar com falsidade e desacreditar o
historiador
Havia dois criteacuterios importantes que o historiador tinha de cumprir ao compor uma arenga
Em primeiro lugar havia uma preocupaccedilatildeo com a fidelidade em relaccedilatildeo ao que realmente
ocorreu Diante desse aspecto buscava-se confirmar informaccedilotildees por meio de testemunhas ou ateacute
mesmo se recorria agrave memoacuteria levando em consideraccedilatildeo que alguns escritores como Xenofonte
eram soldados e presenciaram algumas das histoacuterias que almejavam relatar O outro criteacuterio trata-
se da tradiccedilatildeo literaacuteria em que o discurso se insere e da possibilidade da utilizaccedilatildeo de recursos
retoacutericos pois estava em jogo a reputaccedilatildeo do autor como literato
Aleacutem da liberdade que os autores encontram para utilizar da retoacuterica nos discursos de
exortaccedilatildeo tambeacutem se percebe uma determinada importacircncia desta na historiografia Zoido a esse
respeito afirma que
Las arengas constituyen un privilegiado elemento de anaacutelisis transversal em el
marco del gecircnero historiograacutefico Estaacuten presentes en obras histoacutericas de todas las
eacutepocas y por lo tanto constituyen um testemonio de gran valor para entender la
evolucioacuten del gecircnero y sobre todo la fructiacutefera relacioacuten entre retoacuterica y
historiografia a lo largo del tiempo (ZOIDO 2007 p 32)
Ainda que os estudos a respeito deste toacutepico sejam de fato limitados ndash em funccedilatildeo
justamente das escassas pesquisas disponiacuteveis sobre o assunto nos dias de hoje ndash eles natildeo satildeo
inexistentes Zoido (2007) destaca autores como Burgess que ainda em 1902 dedicou-se agrave
literatura do tipo epidiacutectico apontando pela primeira vez pontos em comum que uniam as
diversas arengas militares registradas como predominacircncia do valor sobre o nuacutemero e a honra
de uma morte gloriosa
Albertus autor de obra claacutessica na aacuterea de 1908 tambeacutem eacute citado por Zoido (2007)
como um analisador detalhista do gecircnero inclusive similarmente ao que havia feito Burgess
enumerando seis nuacutecleos de argumentaccedilatildeo que incluem pontos comuns utilizados neste tipo
de discurso para construir uma linha argumentativa Assim ainda que o trabalho de Albertus
apresente lacunas e fragilidades teoacutericas ele eacute pioneiro ao destacar ldquode queacute modo la
22
elaboracioacuten de una arenga militar era una ocasioacuten privilegiada para ejercitar los recursos de la
retoacuterica enel marco de la obra histoacutericardquo (ZOIDO 2007 p 23)
No decorrer do seacuteculo XX os estudos em torno do tema natildeo despertaram grande
entusiasmo dentro da problemaacutetica das pesquisas acerca do discurso historiograacutefico
Entretanto conta-se com o destaque de Elizabeth Keitel que em seu trabalho Homeric
antecedents to the cohortaio in the ancient historians sustenta o argumento da ldquoinfluencia de
las arengas homericas como modelo litarario de las que luego se pueden encontrar enla
historiografia grecoromanardquo (ZOIDO 2007 p24)
Nos anos 1990 surge um novo acircnimo da criacutetica a respeito das arengas militares
protagonizado pela controveacutersia sobre a veracidade de tais discursos Zoido (2007) expotildee a
polecircmica existente entre a ldquoarenga realrdquo e a ldquoarenga literaacuteriardquo destacando assim os
principais autores em debate
Segundo Morgens Herman Hansen as arengas reais natildeo passavam de breves palavras
que ldquoel historiador habriacutea llevado a cabo posteriormente una reelaboracioacuten retoacuterica como si el
general realmente hubiera estado colocado delante de su ejeacutercito y se hubiera dirigido a eacutel
utilizando con todos sus elementos constitutivosrdquo (HANSEN apud ZOIDO 2007 p 24)
Contrapondo Hansen em apoio agrave ldquoarenga realrdquo defendendo entatildeo a tese de que estas eram
realmente pronunciadas antes da batalha nota-se a colaboraccedilatildeo de Ehrhardt ndash que se vale do
testemunho de Poliacutebio ndash e de Micheal Clark que em seu trabalho Did Thucydides Invent the
Battle Exhortation evidencia tal possibilidade com base no exemplo relativamente recente de
Benjamim Franklin o qual teria feito um discurso em condiccedilotildees semelhantes para milhares de
pessoas Entretanto para Zoido (2007) William Kendrick Pritchett representa maior
enfrentamento com Hansen pois defendendo a ldquoarenga realrdquo sustenta uma soma de
argumentos baseados em condiccedilotildees concretas das exortaccedilotildees em campo aberto
O proacuteprio Zoido (2007) aleacutem de retomar brevemente a trajetoacuteria destes estudos
tambeacutem busca analisar os discursos militares atraveacutes da oacutetica da retoacuterica e da historiografia
contribuindo para a aacuterea Nesta linha apresentada pelo autor eacute que se situa a presente pesquisa
que longe de entrar de forma obstinada em tal polecircmica assume a princiacutepio apenas que tais
discursos integraram utilizando-se da retoacuterica a tradiccedilatildeo historiograacutefica do mundo antigo
23
3 XENOFONTE E A FORMACcedilAtildeO DOS VALORES GREGOS DE SEU TEMPO
31 Xenofonte
Xenofonte escritor ateniense que viveu aproximadamente entre 430 e 354 aC
pertenceu a uma famiacutelia tradicionalmente integrada agrave aristocracia rural do periacuteodo Ao nascer
em plena Guerra do Peloponeso acompanhou a decadecircncia da poliacutetica ateniense em sua
juventude ndash eacutepoca em que foi disciacutepulo de Soacutecrates que exerceu forte influecircncia em sua
personalidade e a quem mais tarde homenagearia em uma de suas obras
Constituiacutea a classe de cavaleiros e nessa condiccedilatildeo fazia parte do exeacutercito em Atenas
no momento em que esta estava sob a tutela do Governo dos Trinta3 Sua educaccedilatildeo
aristocraacutetica no contexto do periacuteodo que procedeu a Guerra do Peloponeso tornava-se
evidente em suas criacuteticas a poliacuteticos democraacuteticos Tal fator juntamente agraves boas relaccedilotildees que
adquire com os lacedemocircnios vai dificultar o viacutenculo com sua terra natal embora ele tenha
declarado sua lealdade ao sistema democraacutetico ateniense quando se mostrou fiel agraves
concepccedilotildees poliacuteticas de Soacutecrates
Quando jovem integra o ciacuterculo socraacutetico isto eacute o grupo de jovens aristocratas que
rodeavam Soacutecrates assimilando conhecimento com a sabedoria de seu mestre Dioacutegenes
Laeacutercio ndash historiador e bioacutegrafo de antigos filoacutesofos gregos ndash relata como teria sido o
encontro de Xenofonte com Soacutecrates
Conta-se que Soacutecrates o encontrou numa rua estreita e estendeu o bastatildeo para barrar-
lhe o caminho enquanto lhe perguntava onde se vendia toda espeacutecie de alimentos
Obtida a resposta Soacutecrates perguntou-lhe ainda onde os homens se tornavam
excelentes Diante de tal perplexidade de Xenofon Soacutecrates disse ldquoSegue-me entatildeo
e aprenderdquo Desde esse momento ele passou a ser disciacutepulo de Soacutecrates (L II48)
Embora natildeo tenha se consagrado filoacutesofo ndash como Platatildeo ou Aristoacuteteles ndash ou ainda natildeo
o seja considerado propriamente em um significado mais estrito segundo ainda a mesma
passagem de Dioacutegenes Laeacutercio ldquofoi o primeiro a tomar notas das conversas do mestre e
publicaacute-lasrdquo na obra Memoraacuteveis
Outra grande influecircncia de sua vida foi o contato com Ciro o jovem ndash priacutencipe persa
filho de Dario II ndash com quem seguiu em uma campanha militar que serviria de inspiraccedilatildeo na
composiccedilatildeo de umas de suas principais obras Anaacutebase Por volta de 401 aC Xenofonte se
junta a milhares de mercenaacuterios gregos liderados por Ciro que almejava tomar o trono de seu
irmatildeo apoacutes a morte de seu pai monarca do Impeacuterio Persa ateacute entatildeo Tal empreendimento
3 Apoacutes a Guerra do Peloponeso os lacedemocircnios derrubaram a democracia ateniense e instituiacuteram em seu lugar
um poder formado por trinta oligarcas convictos chamado de Governo dos Trinta
24
resulta na necessidade de uma retirada estrateacutegica de milhares de quilocircmetro em um territoacuterio
hostil Tal aventura como mercenaacuterio4 aleacutem de exercer uma influecircncia direta em uma de suas
obras tambeacutem caracteriza significativamente sua escrita tornando evidente o traccedilo de
personalidade que marca o destino de sua vida isto eacute a ldquoardente inclinaccedilatildeo para a guerra e
para a aventurardquo (JEAGER 2010 p 1215)
Apoacutes tal retirada heroica em que sua narrativa o destaca como personagem central
Xenofonte retorna agrave Greacutecia e estreita fortes relaccedilotildees com o Estado espartano a serviccedilo do rei
Agesilau ndash a quem dedica posteriormente uma de suas obras Combatendo ao lado dos
lacedemocircnios enfrentou os Persas na Aacutesia e no retorno agrave Helade de tal investida contra os
baacuterbaros enfrenta seus conterracircneos na Batalha de Queroneia tomando assim partido do rei
de Esparta Tal escolha lhe custa o exiacutelio de sua paacutetria e a confiscaccedilatildeo de todos os seus bens
em Atenas
O fato de Xenofonte ser banido de sua terra natal parece incorporar uma tradiccedilatildeo dos
historiadores de sua eacutepoca entre os quais a produccedilatildeo criativa de suas obras faz-se no
afastamento de suas respectivas paacutetrias
Se ha sentildealado com frecuencia que los historiadores eran muchas veces desterrados
voluntaria o forzosamente de sus ciudades La lista de historiadores importiantes
que escribieron en el extranjero incluye a Heroacutedoto Tuciacutedides Jenofonte Ctesias Teopompo Filisto Timeo Polibio Dionisio de Halicarnaso y em cierto sentido
Posidonio que escriboacute como ciudadano de Rodas pero habiacutean nacido em Siria Esta
circunstancia puede tambieacuten hacernos pensar que la historiografia a menos que no
fuese histoacuteria local escrita para satisfacer el patriotismo local tuvo una posicioacuten
ambiacutegua en la sociedad griega Era ciertamente maacutes faacutecil obtener informaciones
exactas sobre un tema amplio y ser imparcial teniendo lalibertad de movimiento de
um desterrado (MOMIGLIANO 1993 p 20)
O Estado espartano retribuiu os serviccedilos prestados por Xenofonte com uma
propriedade em Silonte onde ele passou deacutecadas devotando-se a uma vida pacata Tal
conjuntura permitiu a ele dedicar-se ao oacutecio literaacuterio ldquoO gosto pelas variadas atividades de
agricultor juntamente com a recordaccedilatildeo de Soacutecrates e a inclinaccedilatildeo para tudo quanto fosse
histoacuterico e militar eacute uma das principais caracteriacutesticas da personalidade de Xenofonterdquo
(JAEGER 2010 p 1216) Depois de passar boa parte de sua vida adulta sob tutela espartana
ele conseguiu o direito de retornar do exiacutelio ndash devido a uma reconciliaccedilatildeo entre Esparta e
Atenas ndash voltando agrave sua cidade natal onde continuou a escrever
4A palavra ldquomercenaacuteriordquo adquiriu um sentido fortemente pejorativos em tempos recentes afastando-se de seu
significado original passando de ldquodisponiacutevel para contrataccedilatildeordquo a ldquoexclusivamente interessado em ganho
pessoalrdquo Na Greacutecia Antiga os mercenaacuterios eram chamados de xenoi estrangeiros ou ainda mais
educadamente de epikouroi ldquoajudantesrdquo CARTLEDGE Paul (org) Histoacuteria ilustrada Greacutecia Antiga 2ed
Satildeo Paulo Ediouro 2009 ndash (Coleccedilatildeo Histoacuteria Ilustrada)
25
Os grandes meacuteritos da obra de Xenofonte estatildeo principalmente relacionados agrave
multiplicidade de suas competecircncias e de seus interesses Ao mesmo tempo em que era um
apreciador da filosofia que aprendera com Soacutecrates tambeacutem era um soldado um mercenaacuterio
que conheceu lugares adversos algueacutem proacuteximo a estadistas um haacutebil cavaleiro um caccedilador
entre outras facetas de sua interessante personalidade Aleacutem de demonstrar autoridade sobre
uma variedade de temas sua escrita agradaacutevel conquistou muitos admiradores no decorrer do
tempo O romano Marco Tuacutelio Ciacutecero ndash grande admirador da filosofia grega e conquistador
de uma extensa carreira poliacutetica ndash vai revelar grande deleite pessoal em relaccedilatildeo ao estilo da
escrita de Xenofonte Aleacutem disso uma enciclopeacutedia bizantina no seacuteculo X ndashuma compilaccedilatildeo
de materiais a respeito da antiguidade grega ndash chamada Suda refere-se a ele como ldquoabelha
aacuteticardquo em razatildeo da linguagem ldquodocerdquo presente em suas obras (CERDAS 2011 p 28)
Referente a obras de caraacuteter histoacuterico Xenofonte voltava sua pena para
acontecimentos de seu tempo embora natildeo tivesse meacutetodos de avaliaccedilatildeo tatildeo criacuteticos para
verificaccedilatildeo de fontes como alguns historiadores gregos proacuteximos agrave sua eacutepoca ndash entre os quais
se destacam Tuciacutedides e Heroacutedoto Entretanto como afirma Momigliano (1993 p 20) foi um
dos historiadores a tentar restabelecer o estilo de Tuciacutedides e teve um papel muito importante
na transmissatildeo desse modelo de escrever a Histoacuteria aleacutem de contribuir com a criaccedilatildeo de
novos modelos com suas memoacuterias de general na Anaacutebase e com biografias como em
Agesilao e Ciropedia Depois de tal contribuiccedilatildeo intensificou-se a produccedilatildeo de obras do
gecircnero multiplicando-se assim biografias sobre grandes personalidades como filoacutesofos
santos e reis Contrapondo a parcialidade que muitas vezes se apresenta em suas obras em
favor de sua visatildeo proacute-esparta com a validade das experiecircncias vividas por esse autor Joatildeo
Medina
Xenofonte deixou uma obra abundante como os livros apologia de Soacutecrates O
Banquete O Econoacutemico a Anaacutebasis O Comandante da Cavalaria A Arte da
CaccedilaAgesilau A Constituiccedilatildeo dos Lacedemoacutenios A Constituiccedilatildeo de Atenas A
Ciropedia A Arte Equestre etc Como historiador Xenofonte eacute talvez viacutetima dos
seus preconceitos e parcialidade mas eacute um perito nas mateacuterias que trata um
testemunho extraordinaacuterio dos tempos conturbados em que viveu e uma grande autoridade em mateacuterias de guerra caccedila e desporto aleacutem de que escrevia com lucidez
e elegacircncia (MEDINA 2010 p 16)
311Obras com Narrativas Histoacutericas
26
Apesar da vasta produccedilatildeo a respeito de uma variedade de temas aqui se estaacute limitado
a um conjunto de pequenas siacutenteses que compreendem trecircs obras de destaque por seus
elementos histoacutericos ou militares Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica Todas as trecircs obras tecircm
sua origem na primeira metade do seacuteculo IV aC
3111Anaacutebase
Sob o pseudocircnimo de Temistoacutegenes de Siracusa Xenofonte relata uma campanha
militar de caraacuteter autobiograacutefico em que ele se junta a milhares de mercenaacuterios para apoiar
Ciro a tomar o trono Persa de seu irmatildeo Artaxerxes apoacutes a morte de seu pai Dario II o
antigo soberano O tiacutetulo da obra ndash que na sua significaccedilatildeo leacutexica quer dizer marcha para o
interior ndash relaciona-se literalmente com essa primeira parte da narrativa em que os
mercenaacuterios gregos satildeo guiados por Ciro o jovem para dentro do impeacuterio persa
A Greacutecia no contexto da Anaacutebase ainda natildeo havia se recuperado do conflito que opocircs
as duas grandes potecircncias helecircnicas ou seja o enfraquecimento de Esparta e de Atenas
durante a Guerra do Peloponeso Quando havia disputas entre as potecircncias gregas era comum
o impeacuterio persa financiar o conflito contribuindo sempre para que nenhuma cidade-estado
grega concentrasse muito poder e influecircncia em si mesma Ciro o Jovem ndash comandante da
parte ocidental do impeacuterio ndash deu todo o auxiacutelio possiacutevel aos espartanos para que estes
pudessem dar fim agrave hegemonia que Atenas adquirira no mar Egeu
Quando seu pai morreu Ciro recrutou milhares de mercenaacuterios gregos de diferentes
poleis com a intenccedilatildeo de destronar seu irmatildeo o qual havia se apoderado do Impeacuterio Os
exeacutercitos gregos juntamente agraves outras tropas convocadas por Ciro vencem a batalha no
entanto Ciro perde sua vida e deixa milhares de gregos agrave sua proacutepria sorte A partir de entatildeo
eles fazem sua jornada de retorno agrave Greacutecia sob a importante lideranccedila de Xenofonte tendo de
atravessar um territoacuterio hostil dominado pelo grande rei Artaxerxes
3112Ciropedia
A Ciropedia foi escrita por volta de 360 aC e tem seu tiacutetulo derivado das palavras
gregas Cyrou Paideia que significa literalmente ldquoEducaccedilatildeo de Cirordquo Tal narrativa tem
enredo em torno do fundador do impeacuterio persa ndash Ciro o Grande ndash desde sua infacircncia ateacute o dia
de sua morte A histoacuteria eacute ambientada na Peacutersia do seacuteculo VI aC tempo em que Ciro
comeccedilou a expansatildeo de seus domiacutenios Embora muitas das personagens o contexto de suas
conquistas e talvez ateacute mesmo alguns dos acontecimentos narrados sejam reais ndash aleacutem do
acreacutescimo de estrateacutegias e artefatos militares persas proacuteprios do seacuteculo VI aC ndash a obra natildeo
27
possui a pretensatildeo de relatar tais episoacutedios da vida do soberano persa com exatidatildeo histoacuterica
Xenofonte com a biografia do imperador Ciro apresenta a formaccedilatildeo do estadista ideal ndash tal
como Maquiavel teria feito em O Priacutencipe ndash sob a oacuteptica da conjuntura poliacutetica grega do
seacuteculo VI aC uma eacutepoca em que as virtudes do liacuteder poliacutetico exemplar e as do bom
comandante militar deveriam associar-se na mesma pessoa (ZOIDO 2003 p 157)
Tempos depois ndash durante a repuacuteblica romana ndash Marco Tuacutelio Ciacutecero costumava se
corresponder com seu irmatildeo o qual lhe aconselhava em diversas situaccedilotildees de sua carreira
poliacutetica como por exemplo em sua campanha eleitoral Certa vez em meio a essas
correspondecircncias comenta-se sobre a utilidade da Ciropedia como um manual para o
governante
O famoso Ciro foi descrito por Xenofonte natildeo conforme a crenccedila histoacuterica mas
como um modelo de governo justo sua enorme seriedade se mescla por obra
daquele filoacutesofo com uma cortesia sem igual ndash esse livro natildeo sem motivo o nosso
ceacutelebre Africano natildeo costumava tirar das matildeos pois nele natildeo foi deixada de lado
nenhuma obrigaccedilatildeo proacutepria de um governo diligente e moderado (CIacuteCERO 2000 p
85)
Importante notar tambeacutem os paralelos que Xenofonte faz em sua obra entre a histoacuteria
dos persas de Ciro o Grande e o Estado espartano ndash com o qual segundo Jaeger (2010 p
1229) ldquoas tendecircncias aristocraacutetico-guerreiras encontram em Esparta o seu mais proacuteximo
paralelo dentro da Greacuteciardquo O exeacutercito de elite de Ciro denominado homotimoi faz uma
referecircncia clara aos homoioi de Esparta pois ambos se caracterizam por uma educaccedilatildeo militar
riacutegida desde a infacircncia Aleacutem disso no desfecho da obra (VIII 8) Xenofonte ressalta entre
os motivos da decadecircncia do impeacuterio persa no seacuteculo VI aC o abandono das virtudes
guerreiras dos antepassados Conforme Jaeger (2010 p 1230) para muitos especialistas haacute
uma criacutetica paralela aos espartanos devido agrave decadecircncia de sua hegemonia na Greacutecia
Tal biografia sendo precursora desse estilo de escrita apresentou grande originalidade
na eacutepoca e inspirou outros historiadores a se aventurarem no gecircnero como Teopompo de
Quios que escreveu uma obra denominada Filiacutepica narrando as conquistas de Filipe II da
Macedocircnia De acordo com Momigliano (1984 p 18) ldquoCom su Ciropedia Jenofonte nos ha
proporcionado el primer ejemplo de pseudobiografiacutea pedagoacutegicardquo
3113Hellecircnica
Embora o tiacutetulo da obra possa ser traduzido como ldquoHistoacuteria da Greacuteciardquo a trama se
passa apenas entre 411 aC e 362 aC continuando a histoacuteria da Guerra do Peloponeso do
28
ponto no qual Tuciacutedides havia ndash na obra Histoacuteria da Guerra do Peloponeso escrita em 431
aC ndash interrompido sua narrativa acerca do mesmo evento
A importacircncia dessa obra estaacute na reconstituiccedilatildeo do estilo de Tuciacutedides compondo o
mais historiograacutefico de seus trabalhos Ainda assim conforme destaca Paul Cartledge (2009
p39) ldquoSe essa obra sobrevive natildeo se deve agrave exatidatildeo histoacuterica mas principalmente porque
criacuteticos literaacuterios posteriores ndashantecipando geraccedilotildees de professores modernos ndash corretamente
admiraram a liacutempida prosa aacutetica (ateniense de Xenofonte)rdquo
32 Coletividade Grega e Formaccedilatildeo do Modelo de Cidadania na Greacutecia
Desde o surgimento a partir do seacuteculo VIII das poleis gregas ndash isto eacute cidades-estado
independentes com autonomia poliacutetica constituiacutedas por comunidades de cidadatildeos ndash nota-se
um modelo mais coletivo de sociedade na Greacutecia Em vaacuterios acircmbitos percebe-se a
coletividade ganhando espaccedilo em detrimento da individualidade dentro das comunidades da
Heacutelade tanto na identificaccedilatildeo do indiviacuteduo5 que vai estar associada agrave sua polis e natildeo mais
com a sua famiacutelia quanto na participaccedilatildeo poliacutetica em assembleias compostas por cidadatildeos e
ateacute mesmo na guerra na qual os membros da comunidade fazem uma formaccedilatildeo retangular6
cerrada em que a seguranccedila do indiviacuteduo depende do coletivo de hoplitas7
Nesse modelo poliacutetico de cidadania ndash seja ela com a participaccedilatildeo mais restrita como
em regimes aristocraacuteticos ou mais inclusivas como na democracia ateniense que toma forma
no seacuteculo V aC ndash a argumentaccedilatildeo vai integrar o papel central nas decisotildees do Estado Dessa
forma compreendemos a originalidade da poliacutetica nas cidades-estado gregas
O que implica o sistema da poacutelis eacute primeiramente uma extraordinaacuteria preeminecircncia
da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder Torna-se o instrumento
poliacutetico por excelecircncia a chave de toda autoridade no Estado o meio de comando e
de domiacutenio sobre outrem Esse poder da palavra - de que os gregos faratildeo uma
divindade Peithoacute a forccedila de persuasatildeo - lembra a eficaacutecia das palavras e das
foacutermulas em certos rituais religiosos ou o valor atribuiacutedo aos ditos do rei quando
pronuncia soberanamente a themis entretanto trata-se na realidade de coisa bem
diferente A palavra natildeo eacute mais o termo ritual a foacutermula justa mas o debate
contraditoacuterio a discussatildeo a argumentaccedilatildeo Supotildee um puacuteblico ao qual ela se dirige
como a um juiz que decide em uacuteltima instacircncia de matildeos erguidas entre os dois
partidos que lhe satildeo apresentados eacute essa escolha puramente humana que mede a
forccedila de persuasatildeo respectiva dos dois discursos assegurando a vitoacuteria de um dos
oradores sobre seu adversaacuterio (VERNANT 2002 p 53-54)
5 Como Soacutecrates de Atenas por exemplo 6 Tal formaccedilatildeo constitui uma falange 7 Soldado de infantaria fortemente armado que tem seu nome derivado de hoplon o nome do escudo carregado
em batalha
29
Embora a ideia de que todos os cidadatildeos possam usar da palavra para se manifestar em
assembleias ndash dependendo obviamente das peculiaridades nos regimes em cada poacutelis mas
levando-se em consideraccedilatildeo aqui o caso da democracia em Atenas no seacuteculo V aC ndash possa
caracterizar um certo grau de equidade perante a lei essa igualdade sobre a posse da palavra
em puacuteblico8natildeo significa em essecircncia que todos possuiacutessem as mesmas possibilidades de
influecircncia na cena poliacutetica de sua comunidade
Na verdade segundo Cartledge (2009 p 229) era necessaacuterio para quem quisesse
expor sua opiniatildeo em puacuteblico possuir ldquonervos e conhecimentos consideraacuteveis aleacutem de
pulmotildees poderosos e dominante presenccedila de palco para ser um eficiente orador puacuteblico nas
reuniotildees de massa ao ar livre que representavam o governo central atenienserdquo De acordo
com isso compreende-se que mesmo em um regime democraacutetico eacute evidente que apenas
quem tinha condiccedilotildees de se preparar para tal ndash ou seja um pequeno grupo pertencente a uma
elite ndash era capaz de exercer o direito da isegoria Tal quadro tambeacutem remete agrave importacircncia da
retoacuterica no periacuteodo
Tambeacutem eacute possiacutevel notar a organizaccedilatildeo coletiva da sociedade em termos legais Como
explicita Vernant (2011) ao se referir agrave legislaccedilatildeo sobre homiciacutedio o crime de assassinato
deixa de pertencer agrave esfera privada ndash na qual a questatildeo resolvia-se com a vinganccedila de sangue
o que possibilitava uma nova vinganccedila de sangue iniciando um ciclo de assassinatos
perpetuado sempre pelos parentes dos mortos Nessa nova organizaccedilatildeo da sociedade
caracterizada pela consciecircncia de grupo uma infraccedilatildeo desse gecircnero eacute um crime contra a
comunidade e natildeo contra a famiacutelia do morto logo o assassino deve ser condenado pela
instituiccedilatildeo que represente a totalidade da poacutelis
Eacute importante advertir que o sistema de cidadania natildeo contemplava a participaccedilatildeo de
um coletivo de membros da comunidade da mesma maneira em todas as poleis mas de uma
forma geral cada sociedade aderira a meacutetodos pedagoacutegicos necessaacuterios para o funcionamento
de seu regime poliacutetico Em Atenas no seacuteculo V conforme Peter Jones (1997 p 291) a
fixaccedilatildeo de textos de leis processos legais e procedimentos militares de interesse da
comunidade aleacutem de comeacutercio de livros natildeo tem outra justificativa aleacutem de grande parte da
populaccedilatildeo adulta masculina estar apta a ler e escrever Jaacute em Esparta acompanha-se uma
formaccedilatildeo pedagoacutegica adversa pois nas assembleias os cidadatildeos se limitavam a votar ldquosimrdquo ou
ldquonatildeordquo nas propostas que eram apresentadas
8 Identificado pelo termo grego Isegoria
30
De acordo com Jaeger (2010) ao conquistar os Messecircnios Esparta teve de criar uma
classe de cidadatildeos soldados para manter aquele povo subjugado agrave servidatildeo Logo o modo de
vida do cidadatildeo espartano eacute voltado para uma dedicaccedilatildeo exclusiva para com o Estado ldquoTal
como num acampamento na cidade todos tinham as suas ocupaccedilotildees e modo de vida
regulamentados em funccedilatildeo das necessidades do Estado e tinham consciecircncia de natildeo
pertencerem a si proacuteprios mas agrave Paacutetriardquo (JEAGER 2010 p 113)
33 Identidade Helecircnica
Apesar de existir uma diversidade de poleis com distintas formas de cidadania
costumes poliacuteticos e muitas vezes ateacute mesmo representaccedilotildees culturais diferentes eacute
importante advertir que existe uma seacuterie de valores que tornam todos que os compartilham
membros de uma mesma comunidade a Heacutelade A noccedilatildeo de ancestrais em comum uma
mesma liacutengua semelhanccedilas nas leis devoccedilatildeo aos mesmos deuses vatildeo fortificando com o
tempo uma identidade diante dos povos estrangeiros que natildeo compartilham dessas
caracteriacutesticas A narrativa de Heroacutedoto no livro VIII de seu Histoacuterias relata em certo
momento das Guerras Meacutedicas uma situaccedilatildeo em que os lacedemocircnios estavam preocupados
com uma possiacutevel alianccedila entre Atenas e o impeacuterio persa Os atenienses que de fato
recusaram a alianccedila com o imperador persa Xerxes exaltam o respeito pela comunidade
helecircnica aos emissaacuterios espartanos nos seguintes termos
O receio que tecircm os Lacedemocircnios de que tratemos com os baacuterbaros eacute natural mas
nem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de voacutes que tatildeo bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses Natildeo natildeo haacute ouro bastante sobre a terra
natildeo haacute paiacutes bastante rico natildeo haacute nada enfim capaz de levar-nos a tomar o partido
dos Medos e impelir a Greacutecia para o negro abismo da escravidatildeo E mesmo que o
quiseacutessemos disso nos esquivariacuteamos por muitas razotildees poderosas A primeira e a
mais importante as estaacutetuas e os templos dos nossos deuses queimados lanccedilados
por terra e transformados num montatildeo de ruiacutenas Esse motivo natildeo eacute por si soacute
bastante forte para levar-nos antes agrave vinganccedila do que a uma alianccedila com o
responsaacutevel por tatildeo monstruoso procedimento Em segundo lugar sendo os Helenos
do mesmo sangue falando a mesma liacutengua tendo os mesmos deuses os mesmos
templos oferecendo os mesmos sacrifiacutecios seguindo os mesmos usos e costumes
natildeo seria vergonhoso para os Atenienses traiacute-los Ficai sabendo pois se o
ignoraacuteveis ateacute aqui que enquanto existir um ateniense no mundo natildeo faremos nenhuma alianccedila com Xerxes Louvamos o vosso procedimento oferecendo-vos
para alimentar nossas famiacutelias e prover as necessidades de um povo cujos lares e
bens foram destruiacutedos Levais a benevolecircncia ao extremo mas natildeo vos preocupeis
subsistiremos como pudermos sem exigirmos de voacutes esse sacrifiacutecio O que deveis
fazer agora eacute acautelar-vos pois logo que o rei dos baacuterbaros souber que natildeo
aceitamos as suas propostas lanccedilar-se-aacute contra noacutes invadindo e devastando
novamente as nossas terras Precisamos impedi-los de penetrar na Aacutetica indo dar-
lhes combate na Beoacuteciardquo (HERODOTO Histoacuterias 8144)
31
Aleacutem disso um fator externo vai ajudar a fortalecer tal sentimento dos Helenos em
relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas que os tornam parte de uma mesma comunidade Depois de seacuteculos
sem contato com o oriente por volta do seacuteculo VIII aC os gregos vatildeo retomar o contato com
os baacuterbaros9 seja pelas necessidades comerciais ou pelas migraccedilotildees tiacutepicas do periacuteodo Ao
contraacuterio do que haviam feito os micecircnicos que constituiacuteam uma civilizaccedilatildeo no territoacuterio
grego seacuteculos antes e se permitiram assimilar a cultura dos orientais os gregos vatildeo se apegar
agraves diferenccedilas em relaccedilatildeo a eles para afirmar sua identidade helecircnica Vernant explica tal noccedilatildeo
de alteridade para com os baacuterbaros
Em plena renovaccedilatildeo orientalizante o Helenismo afirma-se como tal em face da
Aacutesia como se pelo contato reatado com o oriente tomasse melhor consciecircncia de si proacuteprio A Greacutecia se reconhece numa certa forma de vida social num tipo de
reflexatildeo que definem a seus proacuteprios olhos sua originalidade sua superioridade
sobre o mundo baacuterbaro no lugar do Rei cuja onipotecircncia se exerce sem controle
sem limite no recesso de seu palaacutecio a vida poliacutetica grega pretende ser o objeto de
um debate puacuteblico em plena luz do sol na Aacutegora da parte de cidadatildeos definidos
como iguais e de quem o Estado eacute a questatildeo comum (VERNANT 2002 p 11)
34 Cultura Militar
A cultura militar no mundo grego a partir do surgimento das cidades-estado com o
advento da cidadania vai adquirir um caraacuteter mais comunitaacuterio em suas formaccedilotildees de batalha
Nas eacutepocas anteriores a guerra contava com um determinado individualismo tendo forccedila os
soldados que poderiam portar melhores equipamentos ou ostentar um cavalo em campo de
batalha Tais aspectos da guerra satildeo similares ao estilo de guerra homeacuterica no qual os grandes
heroacuteis se destacam da massa de soldados comuns
Com o aparecimento das poleis a estrutura do exeacutercito tem uma profunda
modificaccedilatildeo e o hoplita ndash que pode ser qualquer aldeatildeo livre abastado o bastante para possuir
uma armadura e integrar a falange ndash passa a constituir a forccedila militar mais importante da
cidade-estado Eacute importante frisar que esse novo modelo de combate eacute caracterizado pelo
modo com que o soldado luta em grupo pois nesse momento da histoacuteria militar grega a
formaccedilatildeo vigente depende do coletivo de guerreiros para a seguranccedila do soldado individual
ao passo que este tambeacutem precisa garantir a seguranccedila do todos se mantendo firme em sua
posiccedilatildeo dentro da falange
Nessa corporaccedilatildeo entra qualquer um que tenha os meios para se prover da armadura
necessaacuteria dessa maneira a guerra eacute confiada agora essencialmente a um grupo
9 Denominaccedilatildeo dos que natildeo falavam grego Tal designaccedilatildeo se deve ao fato de os gregos interpretarem as
liacutenguas estrangeiras como um conjunto de sons ininteligiacuteveis isto eacute um ldquobar-barrdquo
32
compacto de homens os hoplitas armados pesadamente para ser capazes de
sobreviver ao embate entre duas formaccedilotildees ciacutevicas que se enfrentam em condiccedilotildees
cerradas Por meio de um processo lento e gradual nasce a intituiccedilatildeo falange () Agrave
imposiccedilatildeo taacutetica contribui a adoccedilatildeo natildeo tanto do grande escudo argivo hoacuteplon mas
sim do seu sistema de empunhadura de suporte duplo formado pelo poacuterplax a
braccediladeira e pelo antibaleacute o cabo Graccedilas a essa inovaccedilatildeo junto com a arma
mudam tambeacutem a conduta do soldado e a proacutepria concepccedilatildeo da guerra Mais
manejaacutevel e eficaz do que o instrumento que o precedeu o hoacuteplon contribui para
proteger aleacutem daquele que o segura tambeacutem o companheiro posicionado agrave sua
esquerda ()o hoplita inserido nas fileiras natildeo pode abandonar suas armas sem
comprometer a solidez da formaccedilatildeo em uma palavra sem trair os companheiro de linha (BRIZZI 2003 p 13)
Segundo Mosseacute (1982 p 13) relatando o caso ateniense essa transformaccedilatildeo na
guerra teve como consequecircncia um aumento da classe de homens capazes de portar armas e
escudos marcando assim o momento em que o povo comeccedila a ter maior participaccedilatildeo na
cidade A partir desse aspecto nota-se a guerra como elemento essencial na cultura do
cidadatildeo desse periacuteodo pois no ldquomundo antigo nem todos os cidadatildeos eram poetas mas todos
eram soldadosrdquo (CARVALHO et al 2012 p 8)
De acordo com Joseacute Varandas (2010) as falanges compostas nesse modelo grego de
guerra vatildeo atingir seu auge no iniacutecio do seacuteculo V aC nas Guerras Meacutedicas ndash contra os
imperadores persas Dario e Xerxes ndash e no seu fim diante da Guerra do Peloponeso No
entanto tal taacutetica coletiva constitui um marco tatildeo significante na histoacuteria militar ocidental que
soacute vai entrar em desuso com a invenccedilatildeo da baioneta nos finais do seacuteculo XVII dC
33
4 ANAacuteBASE E CIROPEDIA DUAS OBRAS EM ANAacuteLISE
Com o objetivo de determinar a noccedilatildeo de pertencimento nos discursos de exortaccedilatildeo
militar presentes na tradiccedilatildeo historiograacutefica na qual se situam as obras de Xenofonte toma-se
como meacutetodo a comparaccedilatildeo entre as arengas dirigidas para um auditoacuterio composto por
membros pertencentes a comunidades que possuem em seu sistema de valores a cidadania e
as arengas militares voltadas para um auditoacuterio multieacutetnico com membros provindos de
diversas culturas Para tal fim eacute feita uma anaacutelise retoacuterica comparativa entre duas obras de
Xenofonte jaacute mencionadas Anaacutebase e Ciropedia As duas possuem uma semelhanccedila na
composiccedilatildeo do eacutethos de seus protagonistas pois o tema central da primeira eacute justamente o
papel do proacuteprio Xenofonte como general enquanto que o da uacuteltima trata-se do general ideal
personificado em Ciro o Grande Portanto o que eacute notaacutevel em ambas as obras seus principais
oradores desempenham a melhor performance possiacutevel na visatildeo do autor o que pode ser
comprovado na reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio diante de tais discursos
A diferenccedila essencial entre as duas obras tendo em vista a constituiccedilatildeo dos discursos
de exortaccedilatildeo encontra-se na composiccedilatildeo do paacutethos ou seja enquanto na Anaacutebase notamos
um auditoacuterio formado por mercenaacuterios gregos na Ciropedia estaacute retratado um exeacutercito persa
ou pelo menos natildeo grego levando em consideraccedilatildeo que se trata da visatildeo de Xenofonte sobre
uma sociedade que natildeo lhe eacute totalmente familiar Vale lembrar que o meacutetodo de investigaccedilatildeo
a respeito de outras culturas por historiadores gregos estava muito limitado pela repugnacircncia
em aprender liacutenguas estrangeiras pois os estudos etnograacuteficos inaugurados para finalidade de
metodologia histoacuterica por Heroacutedoto se baseavam na consciecircncia da distinccedilatildeo entre gregos e
baacuterbaros (MOMIGLIANO 1993 p 13) Aleacutem disso percebe-se no decorrer da Ciropedia
algumas caracteriacutesticas genuinamente gregas associadas a praacuteticas persas como costumes
religiosos e similaridades espartanas com o exeacutercito de elite de Ciro o Grande
41 Consideraccedilotildees Sobre o Meacutetodo
Pretende-se aqui destacar diferenccedilas teacutecnicas como artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos
argumentativos nos discursos de exortaccedilatildeo militar expostos nas duas referidas obras com a
finalidade de identificar a influecircncia da noccedilatildeo de pertencimento nas arengas em Xenofonte
Em termos teacutecnicos este trabalho fundamenta-se em distinguir tal noccedilatildeo sob a anaacutelise do
loacutegos mediante a influecircncia que o paacutethos ndash que a princiacutepio diverge nas duas obras ndash exerce
no eacutethos do general exemplar Eacute importante destacar que tal interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos
34
eacute demarcada de maneira expliacutecita quando em meio agraves arengas articula-se a reaccedilatildeo do
auditoacuterio para com o desempenho do orador e consequentemente este manteacutem ou adapta as
estrateacutegias de seu discurso de acordo com sua percepccedilatildeo do auditoacuterio
Para identificar tais artifiacutecios retoacutericos e nuacutecleos argumentativos recorre-se a alguns
referenciais teoacutericos uacuteteis para o empreendimento em questatildeo Com o fim de qualificar certas
consideraccedilotildees referentes agrave anaacutelise das obras utilizam-se o meacutetodo de leitura retoacuterica de textos
de Olivier Reboul (2004) a classificaccedilatildeo de argumentos de Chaim Perelman e Olbrechts
Tyteca (1996) e os conceitos acerca da retoacuterica de Michel Meyer (2007)
A leitura retoacuterica de textos conforme Reboul consiste em definir no que ele eacute
persuasivo e quais elementos argumentativos e oratoacuterios estatildeo dispostos em um determinado
discurso (2004 p 139) Primeiramente eacute importante verificar algumas questotildees a respeito do
orador ndash eacute relevante entender quem estaacute discursando o contexto da eacutepoca a que o orador estaacute
se opondo em seu discurso quais os objetivos deste e como ele se manifesta Em segundo
lugar eacute preciso levar em conta as caracteriacutesticas do auditoacuterio como seu tamanho suas
peculiaridades culturais sua competecircncia ndash o que qualifica o modo como o orador se dirige a
ele ndash suas ideologias poliacuteticas e religiosas A maior parte dessas questotildees jaacute foi atendida ao
tratarmos do autor e de alguns aspectos da sociedade grega mas algumas consideraccedilotildees
como diferentes emissores seratildeo desenvolvidas de acordo com a necessidade das reflexotildees
propostas por este trabalho
Eacute importante notar ainda entre o orador e o auditoacuterio a existecircncia de um acordo
preacutevio pois a controveacutersia ldquosoacute eacute possiacutevel no acircmbito de um acordo em comumrdquo (REBOUL
2004 p 142) Por fim cabe avaliar questotildees a respeito do discurso em si ou seja a
disposiccedilatildeo de suas ideias e a classificaccedilatildeo dos argumentos
Dos tipos de argumentos Aristoacuteteles nos concebe dois ou damos provas para
persuadir por meio de um exemplo o que se trata de um meacutetodo indutivo ou por entimema
criando um silogismo imperfeito (ARISTOacuteTELES Retoacuterica 1 2 1357b)
O exemplo como artifiacutecio retoacuterico eacute uma ldquoinduccedilatildeo dialeacutectica que vai do fato ao fato
passando pela regra subentendidardquo (REBOUL 2004 p 154) De uma forma geral podemos
dizer que tendo em vista um fato passado eacute possiacutevel avaliar um fato futuro devido a uma
determinada identidade presente em ambos
P(x) P(y) portanto se x = y e como Q(x) temos Q(y) ou em termos de prioridades
P = Q () Ceacutesar recebeu poderes especiais e se comportou como tirano Napoleatildeo
35
faraacute o mesmo Ceacutesar eacute um x que eacute P ora x tambeacutem eacute Q portanto y que eacute P tambeacutem
seraacute Q por induccedilatildeo (MEYER 2007 p 76)
O silogismo trata-se de uma seacuterie de premissas que nos levam a uma determinada
conclusatildeo Por exemplo os gregos satildeo mortais Soacutecrates eacute grego logo Soacutecrates eacute mortal A
entimema se destaca por ser um silogismo imperfeito pois oculta uma das premissas A
utilidade de tal recurso estaacute em natildeo permitir que o auditoacuterio reflita o bastante sobre algo que
natildeo se mostra expliacutecito
() natildeo estipulando todas as premissas o locutor se poupa da preocupaccedilatildeo de ter a
atenccedilatildeo voltada para premissas muitas vezes contestaacuteveis O silecircncio tem o meacuterito
de natildeo chamar a atenccedilatildeo sobre elas e de fazer passar como evidentes Se dissermos
ldquoEsse homem matou a esposa porque brigava sem parar com ela e queria se casar
com a amanterdquo isso pode ser o elemento moacutevel o porquecirc de seu gesto se
confirmado que ele o cometeu Nada obsta a esse entimema supor como premissa
uma afirmaccedilatildeo das mais contestaacuteveis a saber que os homens que brigam com a esposa a matam e aqueles aleacutem disso tecircm uma amante querem se casar com ela E
no entanto dizer tal coisa basta para lanccedilar a suspeita apesar do caraacuteter
problemaacutetico da generalidade que isso supotildee (MEYER 2007 p73)
No entanto o Tratado da argumentaccedilatildeo de Perelman e Tyteca classifica os
argumentos em quatro tipos levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo entre as premissas A
identificaccedilatildeo desses argumentos resume-se em os quase loacutegicos (2006 p 219) ndash como ldquoum
tostatildeo eacute um tostatildeordquo os que satildeo baseados na estrutura do real (2006 p 297) ndash como o
argumento a fortori os que fundamentam a estrutura do real (2006 p 399) ndash como a
analogia e os que dissociam uma noccedilatildeo (2006 p 467) ndash como distinguo entre aparecircncia e
realidade
Por fim seratildeo utilizados os conceitos da negociaccedilatildeo das distacircncias e da teoria da
problematicidade desenvolvidos nas obras de Michel Meyer Com a finalidade de obter maior
sensatez das consideraccedilotildees julgou-se necessaacuteria a aplicaccedilatildeo de tais noccedilotildees por tratarem de
forma particular da questatildeo da identidade e da diferenccedila na concepccedilatildeo da retoacuterica
Para aleacutem da classificaccedilatildeo de argumentos presente em qualquer manifestaccedilatildeo
discursiva eacute importante considerar tambeacutem tipologias especiacuteficas desenvolvidas a partir do
estudo de discursos de exortaccedilatildeo militar na antiguidade Publicada em 1908 conforme Zoido
(2007 p 23) uma obra claacutessica sobre o tema ndash intitulada Die παρακλητικοί in der griechischen
und roumlmischen Literatur de autoria de J Albertus ndash destaca os lugares comuns nas arengas
militares divididos em seis nuacutecleos argumentativos
eacutethos ndash O comportamento dos antepassados e da paacutetria em ocasiotildees preacutevias
diacutekaionndashA consideraccedilatildeo de uma accedilatildeo de acordo com a divindade
36
sympheacuteronndash Os benefiacutecios da contenda tanto para o indiviacuteduo quando para a
comunidade
dynatonrhaacutedionndashA possibilidade e a facilidade de conseguir a vitoacuteria por meio da
superioridade numeacuterica da experiecircncia militar do armamento ou da posiccedilatildeo
estrateacutegica
endoacutexonkaloacutenndashOs motivos eacuteticos da exortaccedilatildeo
ekbesoacutemenonndashA desonra que a derrota pode provocar aos familiares
Diante da necessidade de estabelecer a dimensatildeo do paacutethos e a emergecircncia do discurso
em cada arenga para desse modo obter resultados mais honestos das comparaccedilotildees eacute de
importacircncia capital utilizar a tipologia adaptada (CENTENO et al 2007 p 537) a partir da
que fora elaborada originalmente por Hansen (1998 p 59) Nesse sentido com o fim de
satisfazer paracircmetros pragmaacuteticos retoacutericos e literaacuterios abordando maior leque de
possibilidades verificamos a classificaccedilatildeo das arengas militares em seis tipos
Tipo 1 Arenga dirigida aos capitatildees do exeacutercito antes de um combate
Tipo 2 Arenga dirigida a uma assembleia de tropas em um momento (horas ou dias)
anterior ao combate
Tipo 3 Arenga dirigida em formaccedilatildeo no campo de batalha antes do combate (sem
indicaccedilatildeo de movimento por parte do general)
Tipo 4 Revista das tropas ou epipoacutelesis ndash costuma ocorrer antes da batalha mas pode
tambeacutem acontecer no meio ou depois do conflito
Tipo 5 Arenga dirigida agrave tropa em meio do combate
Tipo 6 Arenga dirigida aos soldados depois do combate
42 As Arengas Militares na Anaacutebase
A Anaacutebase conta ao discorrer dos sete livros com quatorze arengas militares de
acordo com o ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al 2007 p
537) Com o fim de otimizar a anaacutelise dos discursos em torno destes encontra-se em itaacutelico
o contexto juntamente com a interaccedilatildeo entre as arengas dos personagens na trama Tais
discursos de exortaccedilatildeo estatildeo dispostos neste trabalho conforme a traduccedilatildeo de Aquilino
37
Ribeiro10ndash mantendo a ortografia portuguesa de 1957 que em muito se diferencia da nossa
atual ndash numerados com algarismos romanos segundo a ordem crescente das passagens pela
tipologia que define a emergecircncia da arenga (CENTENO et al 2007 p 537) e por seus
emissores como demonstrado na seguinte tabela
Tabela 1-Arengas Militares da Anaacutebase
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 173-4 1 Ciro
2 176-7 1 Ciro
3 1812 4 Ciro
4 3115-26 1 Xenofonte
5 3135-45 1 Xenofonte
6 322-3 2 Quiriacutesofo
7 324-6 2 Cleanor
8 328-32 2 Xenofonte
9 3234-39 2 Xenofonte
10 3446 4 Xenofonte
11 4814 4 Xenofonte
12 5419-21 2 Xenofonte
13 6312-18 2 Xenofonte
14 6323-4 4 Xenofonte
Tabela 1 ndash Arengas Militares da Anaacutebase
Visando a obter um panorama geral das arengas na Anaacutebase eacute importante atentar agraves
caracteriacutesticas mais abrangentes de tais discursos Desse modo tendo em vista a Tabela 1 eacute
possiacutevel notar que apenas quatro dos quatorze discursos satildeo de Tipo 1 ou seja articulados
apenas para os capitatildees do exeacutercito Portanto a primeira conclusatildeo plausiacutevel digna de
observaccedilatildeo eacute da importacircncia de que esses discursos sejam dirigidos a um auditoacuterio composto
pelo montante das tropas e natildeo somente pelos representantes das unidades Em relaccedilatildeo aos
emissores pode-se notar a predominacircncia de Xenofonte que declama nove das arengas
expostas na obra enquanto o segundo maior orador que se trata de Ciro o priacutencipe persa eacute
autor apenas das trecircs primeiras arengas
10 XENOFONTE A Retirada dos Dez Mil Traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Amadora Livraria Bertrand 1957
Quando pertinente devido agrave anaacutelise de discurso alguns termos ndash como denominaccedilotildees de deuses e instituiccedilotildees ndash
seratildeo retomados do seu vocaacutebulo original em grego Para essa finalidade toma-se de empreacutestimo a vasto banco
de dados de textos claacutessicos provindos do httpwwwperseustuftsedu
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Comecemos levando em consideraccedilatildeo o corpo das arengas da obra os discursos do
priacutencipe persa jaacute que estes inauguram o conjunto de tais exposiccedilotildees entoadas a partir dos
generais Para isso eacute importante compreender que a lideranccedila que Ciro empreende envolve
um primeiro momento da Anaacutebase em que acompanhamos o priacutencipe persa tomar um
consideraacutevel contingente de mercenaacuterios gregos para marchar contra seu irmatildeo e se apossar
do trono do Impeacuterio Aquemecircnida
421 Arengas I e II ndash Anaacutebase (173-4) (176-7) ndashTipo 1ndash Emissor Ciro
I ndashGregos tomei-vos ao meu serviccedilo natildeo porque me faltassem baacuterbaros nada disso tomei-
vos porque vos considero superiores a eles O que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como
sois dignos daquela liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezas
Deixai-me advertir-vos de que forccedila eacute o inimigo que ides combater Pela quantidade eacute enorme
e avanccedila soltando urros Se lhe aguentais poreacutem o iacutempeto balofo vereis logo - coro ateacute de
vergonha em o dizer - que raccedila de gente produz essa terra Voacutes que sois homens comportai-
vos como tal e prometo pocircr na Greacutecia enriquecidos com dons que natildeo deixaratildeo de despertar
inveja aqueles que queiram voltar os que quiserem ficar e espero que seja a maioria ao meu
lado hatildeo-de ter maior fortuna do que aquela que poderiam encontrar na sua terra
Gaulites banido de Samos e homem muito dedicado a Ciro falou-lhe deste modo ldquohaacute quem
pretenda Ciro que hoje nos fazes muitas promessas porque te achas sob o acicate do
perigo mas que amanhatilde depois da vitoacuteria nunca mais te lembras de noacutes Tambeacutem natildeo eacute
raro ouvir-se dizer que embora quisesse satisfazer os compromissos natildeo terias meio de o
fazer ao que satildeo de desmesurados
II ndash O impeacuterio de meus pais soldados estende-se para o Sul ateacute uma zona vedada pelo calor
toacuterrido de ser habitada pelo homem para o Norte a paragens tambeacutem desertas por causa do
frio rigoroso que laacute reina o Centro eacute governado por saacutetrapas partidaacuterios todos de meu irmatildeo
Eu soacute me quero convosco se venccedilo quem haacute-de ir ocupar essas satrapias senatildeo voacutes O meu
medo eacute que em caso de ecircxito como espero me falte gente para tais cargos Estai estai
tranquilos que sereis recompensados cada um de voacutes pode aleacutem do mais contar com uma
coroa de oiro
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4211 Consideraccedilotildees a respeito das arengas I e II ndash Anaacutebase
No primeiro discurso da obra Ciro demonstra grande conhecimento da cultura grega e
sua pretensatildeo de utilizar-se desse saber para motivar os capitatildees diante do inimigo baacuterbaro
Evoca-se claramente com notaacutevel eloquecircncia por parte do orador a noccedilatildeo de pertencimento
presente no conjunto de valores helenos
Eacute perceptiacutevel tal recurso jaacute no iniacutecio da arenga quando ele se refere ao auditoacuterio como
gregos Traduzindo literalmente do original hō aacutendres hēllenes11 tem-se a frase ldquoOacute homens
helenosrdquo o que demonstra o interesse de Ciro em tratar seu auditoacuterio por uma palavra que
represente uma cultura da qual todos seus membros fazem parte Embora soacute essa palavra
deixe impliacutecito um conjunto de valores originaacuterios das sociedades gregas o emissor do
discurso tambeacutem deixa expliacutecitas algumas caracteriacutesticas que fundamentam tais valores
Quando ele exalta ldquoO que vos peccedilo agora eacute que vos mostreis como sois dignos daquela
liberdade que tendes pelo sumo bem e que eu prefiro a todas as riquezasrdquo Ciro demonstra a
sua admiraccedilatildeo por algo que todos os membros do auditoacuterio tecircm em comum ou seja a
liberdade
O orador tambeacutem declara enfaticamente a superioridade dos gregos em relaccedilatildeo aos
baacuterbaros Logo trata por inferior aquele que natildeo pertence ao conjunto dos homens helenos
isto eacute as comunidades estrangeiras alheias agrave liacutengua e aos costumes gregos Dessa forma de
acordo com os conceitos de Michel Meyer notamos que Ciro estaacute negociando a identidade
entre os gregos e a diferenccedila destes para com os baacuterbaros destacando os helenos pela
qualidade de serem livres Segundo Meyer aiacute se encontra a accedilatildeo da retoacuterica quando esta
ldquoatua na identidade e na diferenccedila entre indiviacuteduos e eacute desse tema que ela trata por meio de
questotildees particulares pontuais que concretizam sua distacircnciardquo (MEYER 2007 p 27) Neste
caso notamos que Ciro firma tambeacutem a identidade dos helenos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros desenvolvendo assim um loacutegos aparentemente muito apropriado
para uma comunidade grega
No entanto os argumentos que evocam a noccedilatildeo de pertencimento natildeo parecem surtir
qualquer efeito pois a uacutenica reaccedilatildeo do auditoacuterio descrita pelo autor apoacutes a arenga eacute a
preocupaccedilatildeo de que o priacutencipe persa natildeo cumpra com o seu compromisso para com os gregos
em relaccedilatildeo agrave promessa de enriquececirc-los em caso de vitoacuteria na contenda com seu irmatildeo Ao
perceber a real disposiccedilatildeo do paacutethos ou seja dos verdadeiros valores impliacutecitos das respostas
11 ὦ ἄνδρες Ἕλληνες no alfabeto original
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fora de questatildeo que se mostram pertinentes ao auditoacuterio Ciro habilmente molda o loacutegos para
obter uma resposta positiva dos capitatildees que pouca importacircncia deram para seus argumentos
anteriores O orador expotildee um novo discurso de exortaccedilatildeo mas agora utilizando sympheacuteron ndash
isto eacute ldquoo uacutetilrdquo ldquoo beneacuteficordquo ndash como nuacutecleo argumentativo o que nesse caso significa a
possibilidade de uma farta recompensa com ouro e para aqueles que assim desejarem cargo
de saacutetrapa ateacute entatildeo ocupados por partidaacuterios de seu irmatildeo O abandono da estrateacutegia retoacuterica
de incitar a noccedilatildeo de pertencimento como manobra motivacional se torna visiacutevel logo no
iniacutecio da arenga II quando ele passa da expressatildeo hō aacutendres hēllenes para apenas hō
aacutendres12para se referir ao auditoacuterio ou seja literalmente de homens helenos para apenas
homens Este uacuteltimo discurso provoca uma reaccedilatildeo positiva do auditoacuterio pois conforme o
proacuteprio texto ldquoos que ouviram a arenga aleacutem de ficar cheios de entusiasmo foram dizecirc-lo
aos outrosrdquo
Embora a primeira arenga proferida por Ciro tenha sido de fato bela isto eacute cumprindo
bem a funccedilatildeo de um discurso epidiacutectico ele peca por natildeo reconhecer que seu eacutethos era
inadequado para inspirar uma noccedilatildeo de pertencimento visto que ele natildeo possuiacutea uma
identidade com o auditoacuterio O orador natildeo pertencia a essa comunidade a que ele queria
inspirar pertencimento e mesmo negociando a identidade dos gregos em funccedilatildeo da alteridade
destes para com os baacuterbaros houve sempre uma distacircncia consolidada entre o orador e seu
auditoacuterio Em segundo lugar nesse primeiro momento da obra eacute importante notar que o
auditoacuterio natildeo se trata de uma comunidade natildeo havia uma poacutelis se deslocando no campo de
batalha mas sim um apanhado de mercenaacuterios provindos de sociedades diversas isto eacute
diferentes poleis com algumas caracteriacutesticas em comum entre si Portanto embora o loacutegos
esteja impecaacutevel para um discurso voltado a uma comunidade grega houve no entanto uma
maacute percepccedilatildeo do paacutethos por parte do eacutethos no primeiro discurso Contudo tal inconveniente
foi corrigido na segunda arenga em que o eacutethos de Ciro adapta seu loacutegos com a finalidade de
atingir os reais valores do auditoacuterio
423 Arenga III ndashAnaacutebase(1812) ndash Tipo 4 ndash Emissor Ciro (Estilo Indireto)
Correndo a todo leacutes dos esquadrotildees seguido de Pigrete o inteacuterprete e de trecircs ou quatro
persas ordenou o priacutencipe a Clearco que atacasse ao centro que laacute deveria estar o rei
12ὦ ἄνδρες no alfabeto original Na traduccedilatildeo de Aquilino Ribeiro estaacute exposto apenas como soldados
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III- Se ganhamos ali ndash exclamou - a vitoacuteria eacute certa
A arenga III por estar exposta na obra em estilo indireto de discurso natildeo eacute examinada
aqui tendo em vista a limitaccedilatildeo que o estilo impotildee agrave anaacutelise retoacuterica
424 Arengas IV e V ndashAnaacutebase (3115-26) (3135-45) ndash Tipo 1ndash Emissor
Xenofonte
IV ndash Camaradas - disse-lhes ele - natildeo posso dormir nem descansar com o quadro que tenho
diante da vista e a voacutes sucede com certeza a mesma coisa Eacute claro como a aacutegua que o inimigo
natildeo romperia conosco se natildeo julgasse preparado E noacutes que fazemos para nos defender Se
por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar cortar a
cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa cruz que sorte
imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o reduzir agrave escravidatildeo ou
mataacute-lo se estivesse no nosso querer Natildeo iraacute recorrer aos maiores supliacutecios agrave morte
infamante de forma que espante o mundo e faccedila perder aos exaltados a vontade de o
guerrear Camaradas a nossa obrigaccedilatildeo eacute fazer para lhe natildeo cairmos nas garras Deixai que
vos diga grandes foram minhas penas como gregos enquanto duraram as treacuteguas Fazia-me
inveja a felicidade deste Artaxerxes e do seu povo ao considerar a vastidatildeo e a fertilidade da
terra a sua fartura a coacutepia de escravos a do gado de oiro de tudo muito Mas logo a seguir
quando atentava na situaccedilatildeo dos nossos soldados que natildeo podiam gozar-se de tantos bens
senatildeo agrave forccedila de espoacutertula13 e que poucos eram em condiccedilotildees de fazecirc-lo tolhendo-os os
juramentos de empregar outros meios quando atentava em tudo isto a paz impacientava-me
mais do que hoje me atemoriza a guerra Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que
implicitamente puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que
esses Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre Entre eles e noacutes os Deuses
declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios
enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos
Deuses imortais A meu ver podemos sair mais confiados que eles a combate Pela
compleiccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos
trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera mais rija e com a ajuda dos Deuses sob o nosso
braccedilo os homens deles hatildeo de cair como tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do
que noacutes O que eu penso outros o teratildeo pensado igualmente Em nome dos Deuses natildeo
percamos poreacutem tempo a esperar que outros saiam a exortar-nos Decircmos antes de mais
13 ldquoAuxiacutelio em dinheirordquo ou mesmo ldquoesmolardquo
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ningueacutem o exemplo de coragem que todos devem imitar E voacutes mostrai que sois oficiais
valentes mais dignos de ser capitatildees do que os proacuteprios capitatildees Quanto a mim para onde
voacutes fordes vou eu se quiserdes para chefe respondo presente Natildeo darei por escusa os meus
poucos anos jaacute que me acho com forccedila bastante para arcar com as responsabilidades
Assim falou Xenofonte Inflamados por estas palavras os comandantes de coorte incitaram-
no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exerciacutecio
V ndash Todos voacutes sabeis ndash disse ele ndash que Artaxerxes e Tissafernes se mais gregos natildeo
prenderam e mataram eacute que natildeo puderam eacute tambeacutem fora de duacutevida que hatildeo-de procurar
armar a rede aos que restam e dar cabo de noacutes todos soacute se natildeo acharem maneira O problema
pois consiste em escapar-lhes das unhas e se eacute possiacutevel fazer-lhes a eles o que pensam fazer-
nos a noacutes Ora eu creio que tal contingecircncia depende sobretudo da vossa vontade Os
soldados tecircm os olhos nos seus oficiais se os virem abatidos admira que procedam como
cobardes Se os acharem poreacutem resolutos dispostos a enfrentar com o inimigo dado que os
exortem com alma sem duacutevida se portaratildeo com brio e heroicidade De resto eacute a vossa
obrigaccedilatildeo Sois estrateacutegicos taxiarcos chefes de falange diferentes pois do soldado raso Em
tempo de paz tiacutenheis direito a maior soldo e a maiores honras agora que estamos em guerra
tendes que mostrar-vos zelosos em superar pelo valor agrave soldadesca deveis se tanto for
necessaacuterio assinalar-vos pela previdecircncia e a bravura Primeiro que tudo se quereis desde jaacute
prestar bom serviccedilo agrave vossa causa tratai de substituir os capitatildees que baquearam Sem chefes
nada de definitivo e de uacutetil se pode conseguir mormente na guerra A disciplina eacute a boa sauacutede
do exeacutercito a indisciplina a sua perda Elegei superiores e a primeira coisa que haacute a fazer eacute
reanimar a coragem dos soldados Haacute que convocaacute-los e falar-lhes Decerto observastes como
eu com que desacircnimo pegaram ontem agrave noite das armas e com que moleza as sentinelas se
dirigiram para os plantotildees Soldados assim natildeo servem para nada Se houvesse maneira de
distrair-lhes o pensamento para outro objeto se em vez de se preocuparem exclusivamente
com a ideia do mal que pode acontecer-lhes se ocupassem de preferecircncia com a ideia do mal
que podem fazer ao inimigo porventura se lhes desse volta ao acircnimo Bem sabeis que na
guerra natildeo eacute a multidatildeo e a forccedila que arrancam a vitoacuteria e que o embate do inimigo se quebra
sempre contra a hoste que lhe oferece com a ajuda dos Deuses uma fronte tersa e
inquebrantaacutevel Tenho notado igualmente que nas refregas aquele que procura a todo o custo
salvar o seu rico corpo cai quase sempre sem honra nem vergonha aquele que pensa que a
morte eacute uma soacute e que a morrer mais vale morrer de peacute e vendendo caro a vida boas
probabilidades de sair de peleja com a sauacutede toda e gozar da existecircncia atraveacutes duma feliz e
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provecta idade Persuadidos como estamos todos da sabedoria dessas maacuteximas natildeo temos
outro remeacutedio senatildeo ter coragem e dar exemplo aos mais
4241 Consideraccedilotildees a respeito das arengas IV e V ndash Anaacutebase
Embora os gregos tenham sucesso na batalha para destronar Artaxerxes Ciro morre no
conflito O evento em questatildeo inaugura a principal fase da obra ou seja quando milhares de
mercenaacuterios gregos se encontram desamparados em territoacuterio hostil O rei persa promete
ajuda no retorno destes para casa no entanto tal manobra natildeo passa de um ardil para matar as
principais lideranccedilas gregas Mesmo depois desse artifiacutecio Artaxerxes continua a determinar
que os gregos natildeo avancem e nem recuem permanecendo sob a vigia do rei Nesse momento
acompanha-se a ascensatildeo da lideranccedila de Xenofonte que desde entatildeo declama ndash com a
exceccedilatildeo de duas arengas que servem de introduccedilatildeo para outra sua ndash o restante dos discursos
de exortaccedilatildeo presentes na obra Analisando a Tabela 1 notamos que Xenofonte inicia sua
sequecircncia de discursos com duas exposiccedilotildees exortativas de Tipo 1 isto eacute ele declama as
arengas IV e V apenas para capitatildees O restante dos discursos eacute para uma assembleia de tropas
ndash isto eacute arengas de Tipo 2ndash ou proferido durante a revista das tropas ndash ou seja arengas de
Tipo 4
Contudo os discursos IV e V sendo apenas para capitatildees os quais ele quer convencer
a se rebelar contra as ordens do rei persa e retornar com os gregos para a Heacutelade tambeacutem
sustentam a noccedilatildeo de pertencimento em seus argumentos Quando ele declara em meio agrave
arenga IV que ldquoa meu ver podemos sair mais confiados que eles a combaterdquo Xenofonte se
apoia para legitimar tal afirmaccedilatildeo em dois nuacutecleos argumentativos de J Albertus (ZOIDO
2007 p23) diacutekaion isto eacute ldquoo justordquo tendo em vista os desiacutegnios divinos e dynaton ou seja
ldquoo forterdquo ou ldquoo potenterdquo
O primeiro eacute ressaltado significativamente no corpo do discurso por meio de
expressotildees do tipo ldquoem nome dos Deusesrdquo ou ldquocom ajuda dos Deusesrdquo Poreacutem referindo-se agrave
traiccedilatildeo dos persas no episoacutedio do assassinato dos capitatildees gregos ndash que fora cometido mesmo
sob a tutela de juramentos ndash eacute que ele torna muito evidente a oposiccedilatildeo deles para com os
baacuterbaros em relaccedilatildeo agrave cordialidade dos deuses Dessa forma Xenofonte declara para os
capitatildees a seguinte exortaccedilatildeo ldquoEntre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E
como natildeo se os baacuterbaros os provocaram com seus perjuacuterios enquanto que noacutes com mil
tentaccedilotildees agrave volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deusesrdquo Utilizando o
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segundo nuacutecleo argumentativo Xenofonte coloca em oposiccedilatildeo a forccedila dos gregos com a
debilidade dos baacuterbaros quando incita ldquoPela compleiccedilatildeo dos nossos corpos estamos mais
aptos do que eles a resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo de tecircmpera
mais rijardquo No discurso V ele retoma o diacutekaion o ldquojustordquo novamente com a expressatildeo ldquocom
a ajuda dos Deusesrdquo
Ao final do discurso tem-se um novo corpo de capitatildees do qual Xenofonte agora faz
parte Eacute importante destacar desses dois nuacutecleos argumentativos que ambos carregam
implicitamente a noccedilatildeo de identidade pois de acordo com esses elementos na arenga todos
os que integram o auditoacuterio em oposiccedilatildeo aos baacuterbaros satildeo dignos dos favores dos mesmos
deuses e satildeo constituiacutedos de maior resistecircncia A reaccedilatildeo ao paacutethos do discurso foi positiva
uma vez que conforme a arenga ldquoinflamados por estas palavras os comandantes de coorte
incitaram-no todos agrave uma a pocircr-se agrave testa do exeacutercitordquo
425 Arengas VI e VII ndashAnaacutebase (322-3) (324-6) ndash Tipo 2ndash Emissor
QuisriacutesofoCleanor
VI ndash Soldados a perda que acabamos de sofrer de estrateacutegicos de coorte14 e de simples
camaradas torna a nossa situaccedilatildeo difiacutecil Para mais fomos traiacutedos pelas tropas de Arieu
ontem nossas aliadas Mas para tudo haacute remeacutedio e temos que nos safar do atoleiro como
gente de brio que somos Em vez de deixamos desmoralizar tentemos com acircnimo denodado a
fortuna das armas Antes morrer que entregarmo-nos a um inimigo vil e carniceiro
A seguir teve a palavra Cleanor de Orcoacutemeno
VII ndash Estatildeo bem patentes soldados o perjuacuterio do rei Artaxerxes e sua impiedade e bem
patente igualmente a perfiacutedia de Tissafernes Depois de nos dizer que na qualidade de
vizinho tinha o maior empenho em nos salvar depois de nos jurar paz e dar a matildeo mandou
prender os nossos capitatildees Nem mesmo temeu Juacutepiter Hospitaleiro15 para melhor nos
enganar sentou Clearco agrave sua mesa E este Arieu que noacutes quisemos elevar ao trono que
trocou conosco a feacute jurada que assumiu o compromisso de jamais nos separarmos este Arieu
sem temor dos Deuses nem respeitar a memoacuteria de Ciro que o cumulou de honras passa-se
para os inimigos ferozes desse priacutencipe e procura perder-nos a noacutes amigo dele Oxalaacute os
14 Estrateacutegicos de coorte eacute uma denominaccedilatildeo latina para o termo grego στρατηγέω que significa ldquogeneralrdquo
15 Do original Δία ξένιον que significa Zeus Hospitaleiro protetor dos estrangeiros
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Deuses castiguem os celerados Testemunha desta felonia toda a nossa cautela eacute pouca contra
eles Mas avante Avante contra os traidores e confiemos na vontade dos Deuses
4251 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VI e VII ndash Anaacutebase
Em seguida encontra-se a necessidade de expor tal resoluccedilatildeo para a assembleia de
tropas Nessa ocasiatildeo temos um evento ao qual se sucedem quatro arengas uma exortada por
Quiriacutesofondash com o discurso IV ndash outra por Cleanorndash na arenga VII ndash e as duas uacuteltimas por
Xenofonte ndashVIII e IX Os discursos VI e VII servem para abordar o problema que Xenofonte
vai desenvolver de forma mais ampla em uma exortaccedilatildeo mais extensa Quiriacutesofo vai apenas
relevar a necessidade de acircnimo agraves tropas enquanto Cleanor vai falar a respeito dos gregos
aliados ao priacutencipe persa que tiveram participaccedilatildeo na traiccedilatildeo Neste uacuteltimo notamos o
elemento religioso bem recorrente pra uma arenga relativamente pequena reforccedilando o senso
de identidade como na arenga IV mas negociando a diferenccedila com ao traidor helleno que
ldquoNem mesmo temeu Juacutepiter [Zeus] Hospitaleirordquo
426 Arengas VIII e IX - Anaacutebase (328-32) (3234-39) ndash Tipo 2ndash Emissor
Xenofonte
Xenofonte ergueu-se a seguir revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que
pocircde encontrar Considerava que se os Deuses lhes concedessem a vitoacuteria uma bela
indumentaacuteria natildeo ficaria mal aos vencedores e que se houvessem de sucumbir tatildeo-pouco
haveria mal em passar para o outro mundo elegante e cuidado de sua pessoa Encabeccedilou o
discurso nestes termos
VIII ndash Falou-vos Cleanor dos perjuacuterios e da perfiacutedia dos baacuterbaros Presumo que estais bem
inteirados Se se tratasse em nossas deliberaccedilotildees de nos reconciliar com eles
necessagraveriamente teriacuteamos que desalentar ao pensamento da injuacuteria que sofreram os nossos
capitatildees16 os quais fiados na palavra dada foram com os seus algozes sem a miacutenima cautela
Mas se propomos vingarmo-nos de armas na matildeo do mal que praticaram connosco temos
com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteria
Enquanto Xenofonte falava aconteceu um grego espirrar Todos imediatamente deram
graccedilas ao Deus que lhes mandava tal pressaacutegio E Xenofonte exclamou
16 στρατηγός no texto original
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Pois no mesmo instante em que nos ocupamos da nossa salvaccedilatildeo Juacutepiter Salvador17 nos
augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocausto a ele em particular e aos
outros Deuses imortais segundo a devoccedilatildeo de cada um mal se chegue a terra amiga Aqueles
que estiverem de acordo ergam o braccedilo
Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o pean E apoacutes o preito agrave
Divindade Xenofonte prosseguiu
Dizia eu que temos esperanccedila de passar este com honra e gloacuteria Primeiro porque somos
observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os
nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo da feacute jurada Contemos portanto
que os Deuses combatam por noacutes eles que com um aceno abatem os poderosos e exaltam os
humildes guardando-os do perigo E jaacute que falo de perigo vou lembrar-vos aquele que
correram os nossos maiores para que fiqueis edificados quanto ao interesse que haacute em vos
comportardes com valentia mediante a qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que
prevaleccedila Quando os Persas e os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir
Atenas os Atenienses decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a
Diana18 tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel encontrar
nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quando em seguida Xerxes que
tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a Greacutecia os nossos maiores bateram o
inimigo em terra e no mar Por toda a parte restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova
consiste na liberdade das cidades em que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo
reconhecemos outros amos19 aleacutem dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Natildeo direi que tenham que corar de voacutes pois natildeo haacute muitos dias postos em linha de combate
em face dos descendentes daqueles inimigos vencidos por vossos pais destroccedilastes com a
ajuda dos Deuses tropas muito superiores em nuacutemero Entatildeo combatiacuteeis com valor e era para
colocar Ciro no trono hoje que se trata da vossa salvaccedilatildeo impotildee-se que redobreis de denodo
e de coragem Precisais de atacar com a mais audaz confianccedila Entatildeo natildeo conheciacuteeis a
natureza do inimigo e todavia em despeito da sua multidatildeo ousaste acometecirc-lo com a
bravura que herdastes Agora instruiacutedos pela experiecircncia de que os baacuterbaros por muito
numerosos que sejam natildeo ousam medir-se convosco seria razoaacutevel temecirc-los Quanto agrave
traiccedilatildeo das tropas de Ciro natildeo imagineis que ficaacutemos mais fracos pelo facto de nos deixarem
17Do original Διὸς τοῦ σωτῆρος que significa Zeus Salvador 18 Ἀρτέμιδι ndash Aacutertemis 19 δεσπότην no texto original que equivale a Senhor
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Ainda satildeo mais cobardes do que as de Artaxerxes Natildeo tenhamos pena mais vale que estejam
com o inimigo do que connosco tropas que tecircm de ser sempre as primeiras a fugir Se algum
de voacutes desespera porque natildeo temos cavalaria enquanto o inimigo a tem numerosa considere
que dez mil cavaleiros natildeo satildeo mais do que dez mil homens Nunca ningueacutem morreu numa
batalha da dentada ou do coice dum cavalo os homens eacute que marcam o destino das batalhas
O infante teve sempre melhor supedacircneo que o cavaleiro Iccedilado acima da montada natildeo soacute tem
de se acautelar dos golpes que lhe vecircm de baixo mas natildeo pode perder de vista o cavalo duas
inquietaccedilotildees O infante estaacute escorado na terra firme e como tal o seu golpe natildeo pode deixar
de ser mais rijo e certeiro O cavaleiro apenas lhe leva uma superioridade fugir com mais
certeza de pocircr o corpo no seguro
Apoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou
Suponhamos agora que confiados na forccedila do vosso braccedilo vos apoquentais no entanto com
a ideia de que falta Tissafernes para nos guiar e que Artaxerxes nos manda fechar os
mercados E que laacute tem isso Vale mais ser guiado pelo malvado dum homem esse
Tissafernes que natildeo pensava noutra coisa senatildeo na maneira de nos desgraccedilar ou por pessoas
da nossa escolha que sabem que pagam com o corpo qualquer embuste que nos armem E
quanto a mantimentos natildeo vale mais em vez de pagaacute-los do nosso rico bolsinho tomaacute-los
onde os haacute e quantos nos decirc na gana
Como visse o ar aprovativo dos soldados foi adiante
Haacute os rios os grandes rios a atravessar sem duacutevida Sim mas os rios tanto nos prejudicam a
noacutes como aos baacuterbaros E os cursos de aacutegua se natildeo se passam mais em baixo passam-se mais
em cima sem molhar o artelho A questatildeo eacute remontar agrave nascente Mas fosse a sua passagem
impraticaacutevel seria razatildeo para esmorecer Ora ouvi toda a gente sabe que o Miacutesios que natildeo
satildeo mais valente do que noacutes estatildeo agrave fina forccedila dentro dos estados de Artaxerxes aqui
fundaram cidades consideraacuteveis e daqui natildeo mexem O mesmo acontece com os Piacutesidas Natildeo
vimos os Licaoacutenios ocupar as posiccedilotildees que dominam a planiacutecie de modo a poderem cultivaacute-la
e recolher os frutos e natildeo se aguentam ali e ali vivem Pois bem se o caminho para a nossa
terra se tornasse impossiacutevel comeccedilaria por vos aconselhar a que natildeo mostraacutesseis grande
empenho em voltar agrave Greacutecia antes tomaacutesseis tais disposiccedilotildees proacuteprias de quem assenta
domiciacutelio E por isto porque sei que Artaxerxes estaacute pronto a dar tudo guias refeacutens aos
Miacutesios se quiserem ir-se embora Mandava ateacute abrir-lhes uma estrada se aceitassem retirar-se
de quadriga Claro estaacute que procederia da mesma maneira conosco se nos visse inclinados a
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ficar Mas ficar era ainda o menos O meu receio eacute que habituando-nos a viver na ociosidade
e na abundacircncia gozados das mulheres e donzelinhas persas e medas que satildeo de belo parecer
e bem fornecidas de carnes natildeo acabaacutessemos como os comedores de loto por esquecer o
caminho que leva a paacutetria Antes de mais nada tratemos de voltar agrave Greacutecia que natildeo seja para
mostrar aos nossos concidadatildeos que se vivem na pobreza eacute porque querem pois os bens nesta
terra andam aos pontapeacutes e soacute esperam pelo conquistador
Calou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que esclarecidas duma luz nova
leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu
Resta-me expor a maneira quanto a mim de maneira pelo seguro e combater se tanto for
preciso com vantagem Sou de opiniatildeo primeiro que se queimem os carros para termos o
passo desembaraccedilado e metermos para onde for mister Depois que se queimem as tendas As
tendas satildeo uma maccedilada e natildeo eacute com elas que procuramos viveres ou combate-mos melhor
Temos ainda que alijar a bagagem que nos eacute supeacuterflua e guardar apenas as armas com que
combatemos e as vasilhas em que comemos o rancho Eacute a maneira de se ter mais gente nas
linhas e menos no trem E haacute que mostrar cara alegre Bem sabeis que os vencidos natildeo tecircm
nada de seu Se formos noacutes os vencedores os inimigos levaratildeo agraves costas a nossa bagagem e
em tudo seratildeo nossos escravos Ficaremos assim indemnizados do sacrifiacutecio de hoje
Xenofonte fez uma pequena pausa e tornou
Apenas vos roubo um momento para ventilar um ponto esse muito importante o mais
importante de todos Reparastes que os persas natildeo se atreveram a recomeccedilar com hostilidades
senatildeo depois de ter prendido os nossos capitatildees Laacute imaginaram que noacutes lhes eacuteramos
superiores enquanto chefes e que sem eles a desordem que viria a lavrar natildeo deixaria de
causar a nossa perda Pois bem eacute preciso que os novos comandantes sejam mais vigilantes
que os anteriores e que os soldados se mostrem ainda mais disciplinados20 e mais doacuteceis21 do
que ateacute aqui Se cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao vento E como natildeo se a partir
deste dia vatildeo ter pela frente natildeo um Clearco mas dez mil Clearcos interessados em que
nenhum grego decirc mostras de poltratildeo Eacute tempo de acabar o inimigo natildeo tarda aiacute Aqueles que
20 εὔτακτος em grego 21 πειθομένους em grego mas no sentido de soldados que podem serem melhor persuadidos pois a palavras
deriva do termo πείθω isto eacute persuasatildeo
49
aprovam o que acabo de dizer manifestem-no se algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer venha
ela do mais simples soldado raso que natildeo se acorde Assim o exige a salvaccedilatildeo de todos
Se algueacutem tem alguma coisa a acrescentar- disse Quiriacutesofo- fale mas fale depressa Penso
que o melhor que temos a fazer eacute dar a nossa aprovaccedilatildeo incondicional ao que Xenofonte
acaba de propor Aqueles que satildeo desta opiniatildeo levantem a matildeoTodos a levantaram
Xenofonte voltou entatildeo a dizer
IX ndash Camaradas temos de estar preparados para determinada contingecircncia ides ver Natildeo se
discute que o nosso caminho eacute por aqueles lugares em que haja de trincar Ora eu ouccedilo dizer
que a pouco menos de vinte estaacutedios haacute povos fartos de tudo Para laacute metemos Agora muito
me espantaria que o inimigo natildeo aparecesse a picar-nos e a atacar-nos pela espalda
semelhante aos cachorros cobardes que atraacutes do passante mordem-lhe as canelas se podem e
deitam a fugir se pega duma pedra E nestas condiccedilotildees a melhor ordem na marcha eacute penso
eu formar com os hoplitas uma coluna de alas tatildeo afastadas que dentro delas caibam a
impedimenta e tudo o que natildeo eacute combatente de primeira linha Que dizeis Se desde jaacute
nomeaacutessemos aqueles que devem comandar a hoste frente flancos e retaguarda natildeo teriacuteamos
que preocupar-nos com tal mateacuteria quando o inimigo no acometesse
E como todos se calassem desassombradamente proferiu
Pode haver melhor taacutetica Se haacute vejamos Se natildeo haacute que Quiriacutesofo comande a vanguarda
pois eacute da Lacedemoacutenia os dois mais antigos estrateacutegicos tenham a seu cargo os flancos eu e
Timasiatildeo como mais novos de todos ficamos por agora na retaguarda O tempo diraacute as
alteraccedilotildees que conveacutem adoptar Repito se algueacutem tem melhor fale
Ningueacutem o contraditou e concluiu
Agora toca a fazer o que ficou decidido e em marcha Aqueles que desejam voltar para o peacute
dos seus apenas tecircm um meio combater com a coragem toda Aqueles que tem amor agrave vida
que tratem de alcanccedilar a vitoacuteria O vencedor mata o vencido morre O mesmo se pode dizer
aos que satildeo cobiccedilosos da riqueza vencendo-se salva-se o que eacute nosso e toma-se o que eacute do
vencido
4261 Consideraccedilotildees a respeito das arengas VIII e IX ndash Anaacutebase
50
O discurso VIII proferido por Xenofonte eacute sem duacutevida a arenga mais extensa e
com maior disponibilidade de argumentos que reforccedilam o estilo retoacuterico do autor Contudo
mantendo o foco na noccedilatildeo de pertencimento eacute possiacutevel fazer uma seacuterie de observaccedilotildees
pertinentes
Primeiramente assim como acontecera de forma recorrente nos discursos anteriores o
nuacutecleo argumentativo diacutekaion ldquoo justordquo apresenta-se de modo frequente Notamos a
exaltaccedilatildeo agraves divindades agraves quais todos satildeo devotos de maneira abreviada como na passagem
ldquotemos com a ajuda dos Deuses esperanccedila de passar esse transe com honra e gloacuteriardquo
Tambeacutem vale destacar que de modo a interagir com o paacutethos o orador exorta um suposto
pressaacutegio ndash quando um membro do auditoacuterio espirra ndash com o seguinte dizer ldquoJuacutepiter [Zeus]
Salvador nos augura bom ecircxito faccedilamos voto de lhe oferecer um holocaustordquo Neste caso
Xenofonte natildeo apenas exalta uma caracteriacutestica religiosa que os membros do auditoacuterio
possuem em comum como incita a todos a partilharem de uma praacutetica sagrada que se trata
do sacrifiacutecio de animais aos deuses
O diacutekaion por outro lado eacute exposto tambeacutem natildeo apenas de maneira tatildeo breve mas
de forma mais complexa neste discurso Podemos observar novamente a negociaccedilatildeo da
identidade grega e da alteridade para com inimigo na seguinte exortaccedilatildeo
porque somos observadores dos juramentos em que tomaacutemos os Deuses como testemunhas enquanto os nossos inimigos violaram com maior desfaccedilatez a religiatildeo
da feacute jurada Contemos portanto que os Deuses combatam por noacutes eles que com
um aceno abatem os poderosos e exaltam os humildes guardando-os do perigo
Nesse trecho eacute perceptiacutevel a distacircncia que se impotildee entre ldquonoacutesrdquo observadores dos
juramentos que tomam uma divindade como testemunha e ldquonossos inimigosrdquo que violam
costumes sagrados Eacute importante ressaltar que o ldquonoacutesrdquo deixa claro que a identidade do orador
tambeacutem estaacute sendo negociada juntamente agrave do auditoacuterio
Entretanto haacute um trecho dessa arenga no qual Xenofonte vale-se da histoacuteria
especificamente das Guerras Meacutedicas usando o nuacutecleo argumentativo eacutethos isto eacute ldquoo
costumerdquo 22
Vou lembrar-vos aquele [perigo] que correram os nossos maiores para que fiqueis
edificados quanto ao interesse que haacute em vos comportardes com valentia mediante a
qual e o socorro do Ceacuteu natildeo haacute fortaleza inimiga que prevaleccedila Quando os Persas e
os aliados vieram agrave testa dum exeacutercito formidaacutevel investir Atenas os Atenienses
22 Neste casoeacutethos natildeo se trata do conceito de orador como princiacutepio de autoridade no discurso mas sim em um
dos nuacutecleos argumentativos idealizados por Albertus J Nesse caso do comportamento dos antepassados e da
paacutetria em ocasiotildees preacutevias
51
decidiram-se a resistir e venceram Tinham feito promessa de imolar a Diana
[Aacutertemis] tantas cabras quantos inimigos mordessem o poacute Natildeo lhes sendo possiacutevel
encontrar nuacutemero bastante e o voto ainda se cumpre agrave data de hoje Quanto em
seguida Xerxes que tinha reunido um exeacutercito inumeraacutevel marchou contra a
Greacutecia os nossos maiores bateram o inimigo em terra e no mar Por toda a parte
restam trofeacuteus da vitoacuteria Mas a maior prova consiste na liberdade das cidades em
que viestes agrave luz e fostes criados porque noacutes natildeo reconhecemos outros amos aleacutem
dos Deuses Eram assim os antepassados de que procedeis
Em tal passagem Xenofonte incita a noccedilatildeo de pertencimento de forma impliacutecita
quando recorre a um momento histoacuterico no qual todos na Greacutecia eram helenos enfrentando
baacuterbaros Em tal argumento o orador recorre agrave estrateacutegia indutiva ou seja ao uso do
exemplo que articula uma identidade entre o auditoacuterio e os Helenos vencedores das Guerras
Meacutedicas e ao mesmo tempo a identidade entre seu atual inimigo e os baacuterbaros derrotados em
tal contenda Tal artifiacutecio ndash aleacutem de induzir o paacutethos agrave assimilaccedilatildeo de que assim como os
antigos gregos eles identicamente podem vencer ndash tambeacutem cria um reforccedilo no conjunto das
premissas de uma fortiacutessima incitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pertencimento a uma comunidade
Aqui tambeacutem encontramos o diacutekaion ldquoo justordquo mas dessa vez instigando a
identidade dos gregos com a alteridade dos inimigos de forma original uma vez que
enfatizam ldquoa liberdade das cidadesrdquo afirmando que natildeo reconhecem ldquoamos aleacutem dos Deusesrdquo
Ao fim do discurso o orador faz dois apelos de caraacuteter comunitaacuterio ao auditoacuterio Em
primeiro lugar ele incentiva a participaccedilatildeo de cada soldado na organizaccedilatildeo do exeacutercito pois
afirma que ldquose cada soldado ajudar o seu capitatildeo a manter a disciplina e a castigar os
desobedientes as esperanccedilas dos persas desvanecer-se-atildeo ao ventordquo Depois ele pede a
participaccedilatildeo no proacuteprio discurso ressaltando que ldquose algueacutem tiver alguma sugestatildeo a fazer
venha ela do mais simples soldado raso que natildeo se acobarde Assim o exige a salvaccedilatildeo de
todosrdquo
Na arenga IX temos dois aspectos dignos de nota para destacar Primeiramente
compondo um argumento de terceiro tipo o qual fundamenta a estrutura do real observamos
a passagem que faz uma analogia (PERELMAN TYTECA 2004p 423) de uma possiacutevel
estrateacutegia em que o inimigo pudesse atacar os flancos do exeacutercito grego que deste modo
ldquoseriam semelhante aos cachorros cobardes que correm atraacutes do passante mordem-lhe as
canelas se podem e deitam a fugir se pega duma pedrardquo Comparar os baacuterbaros com um
animal eacute um modo de consagrar uma distacircncia que o orador natildeo pretende reduzir
Negociar a distacircncia natildeo eacute acertado antecipadamente na maioria dos casos e a
relaccedilatildeo interpessoal eacute entatildeo marcada por uma problematicidade que natildeo eacute destituiacuteda
de autoridade A negociaccedilatildeo natildeo consiste forccedilosamente em reduzi-la O insulto por
exemplo eacute um procedimento retoacuterico que tem por funccedilatildeo assinalar ao outro que o
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fosso que o separa do locutor eacute dali em diante natildeo-negociaacutevel Isso explica sem
duacutevida por que se utilizam nomes de animais com essa finalidade eles acentuam
uma distacircncia intransponiacutevel ou de qualquer forma que natildeo desejamos ver abolida
(MEYER 2007 p 26)
Apoacutes isso eacute notaacutevel que ao fim do discurso Xenofonte que embora implicitamente
natildeo demonstre no discurso a necessidade de maiores debates em relaccedilatildeo agraves estrateacutegias que
sugeriu manifesta aberturas para que o auditoacuterio fomente a discussatildeo se assim desejar
Expressotildees como ldquoPode haver melhor taacutecticardquo ou ldquoRepito se algueacutem tem melhor [taacutetica]
que falerdquo assim como as participaccedilotildees constantes do auditoacuterio e as questotildees expostas no fim
do discurso VIII mostram um caraacuteter deliberativo das arengas que acompanham seu gecircnero
epidiacutectico
427 Arenga X ndash Anaacutebase (3446) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
Xenofonte galopava dum lado para o outro no seu corcel incitando os gregos
X ndash Camaradas coragem Lembrai-vos que eacute agora que se decide se tornais a ver a Greacutecia
vossas mulheres e filhos Mais um arranco e o resto do caminho eacute brincadeira Alma Alma
- De cima do cavalo podes fanfar-lanccedilou-lhe um certo Soteacuterides de Siciatildeo -Se fosses agrave pata
e levasses o escudo como eu levo natildeo te mostravas tatildeo farola
Mal ouviu essas palavras Xenofonte deitou-se abaixo do cavalo empurrou o soldado para
fora da forma e arrancando-lhe o escudo pocircs-se a correr ao lado dos outros
4271 Consideraccedilotildees a respeito da arenga X ndash Anaacutebase
A partir de entatildeo tem-se discursos mais curtos mas sobre os quais ainda eacute possiacutevel
fazer consideraccedilotildees relevantes A curta arenga X eacute uma epipoacutelesis que tem por objetivo
motivar os soldados a ocuparem uma aacuterea privilegiada para se executar a estrateacutegia planejada
pelos capitatildees Xenofonte neste caso eacute claramente retoacuterico por abordar a questatildeo pelo vieacutes de
sua resposta por meio de uma entimema pois almeja levar o auditoacuterio a deduzir que para
optar pelo retorno agrave Greacutecia agraves suas mulheres e aos seus filhos eacute necessaacuterio um uacuteltimo
arranco23
23 Natildeo se qualificou uacuteltimo arranque por figura de linguagem o que de fato eacute importante na anaacutelise retoacuterica pois
no idioma original a expressatildeo eacute abordada como oliacutegon poneacutesantes que significa pouco trabalho Eacute importante
deixar claro que a passagem originalmente tem suas ideias dispostas de forma diferente No entanto ainda
53
Eacute tambeacutem significativo o fato de o orador incitar como valores notaacuteveis ndash os quais satildeo
dignos para motivar um auditoacuterio exausto a realizar uacuteltimo esforccedilo ndash o retorno para Helade e
para a sua mulher e seus filhos Xenofonte opina por natildeo destacar a poacutelis nesse conjunto de
valores uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo que ele passa para o auditoacuterio um retorno agrave
sua comunidade seria um retorno para a Greacutecia e para sua famiacutelia No entanto essa arenga
tem um retorno hostil por parte do auditoacuterio uma vez que um soldado se incomoda com o
fato de Xenofonte estar defendendo aquele esforccedilo exaustivo montado em seu cavalo
Analisando tal resposta negativa ao orador reparamos que embora ele tenha buscado
criar uma identidade entre os membros do auditoacuterio tambeacutem impocircs uma distacircncia indesejada
por se colocar acima da realizaccedilatildeo da tarefa Em consequecircncia disso Xenofonte desce do
cavalo toma o pesado escudo do soldado que havia feito a reclamaccedilatildeo e se potildee em formaccedilatildeo
com o restante da tropa
428 Arenga XI ndash Anaacutebase (4814) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XI- Camaradas aquela gente eacute o uacuteltimo empecilho que nos resta a vencer Temos que fazecirc-los
em estilhas
()Os capitatildees invocaram os Deuses de pean na boca os soldados abalaram a passo
dobrado
4281 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XI ndash Anaacutebase
O discurso XI tambeacutem eacute uma breve epipoacutelesis O objetivo do argumento eacute exigir um
uacuteltimo focirclego dos soldados Com esse fim Xenofonte utiliza uma entimema ocultando a
premissa de que eacute necessaacuterio vencer um uacuteltimo empecilho ndash isto eacute o inimigo ndash fazendo-o em
estilhas para vencer o que de fato eacute uma premissa aparentemente questionaacutevel
Tambeacutem eacute notaacutevel que se trata do argumento de segundo tipo ou seja aquele que eacute
fundado na estrutura do real isto eacute o argumento que se apoia ldquona experiecircncia nos elos
reconhecidos entre as coisasrdquo nesse caso ainda um argumento pragmaacutetico (PERELMAN
TYTECA 2004p 302)
existe a premissa oculta de que eacute necessaacuterio esse oliacutegon poneacutesantes em respeito ao interesse dos soldados na
Greacutecia nas suas mulheres e em seus filhos
54
429 Arenga XII ndash Anaacutebase (5419-21) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
Os vencedores cortaram a cabeccedila aos mortos e mostraram-nas aos mossiacutenecos ocidentais e
aos gregos danccedilando e cantando hinos heroicos Com tal facto muito se constringiram os
grego natildeo soacute por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os
companheiros voltar a cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeo Foi por via
disso que Xenofonte convocou as tropas e lhes disse
XII ndash Camaradas natildeo desanimeis com o que acaba de acontecer Em uacuteltima anaacutelise vereis que
ainda ganhaacutemos mais do que perdemos Primeiramente ficaacutemos a saber que de facto os
Mossiacutenecos andam em guerra uns com os outros Segundo aqueles que se natildeo importaram
com as nossas advertecircncias reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem
podia convir foram bem castigados Para outra vez esses que tecircm o peacute alceiro natildeo se
afastaratildeo para tatildeo longe do campo Agora temos de mostrar aos baacuterbaros que fizeram alianccedila
connosco que valemos mais do que eles e aos adversaacuterios que vatildeo ter pela frente gente
diversa daquela com que se mediram haacute pouco
4291 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XII ndash Anaacutebase
Na arenga XII Xenofonte almeja reanimar as tropas apoacutes um fatiacutedico evento em que
poucos gregos na esperanccedila do saque pereceram ao participarem de uma contenda ndash sem a
devida autorizaccedilatildeo dos oficiais ndash entre os Mossiacutenecos do Oeste e os do Leste Eacute interessante
constatar que a noccedilatildeo de identidade que vinha sendo reforccedilada por argumentos impliacutecitos e
exposiccedilotildees expliacutecitas nas arengas anteriores teve ecircxito ao contemplar a passagem (5418)
que antecede o discurso em questatildeo ldquoCom tal facto muito se contristaram os gregos natildeo soacute
por o inimigo vir a tomar ousio com o lance mas por terem visto os companheiros voltar a
cara coisa nunca sucedida desde o comeccedilo da expediccedilatildeordquo
Nessa ocasiatildeo os gregos natildeo apenas lamentam a queda de outros gregos mas
principalmente o fato de que alguns optaram por abandonar a comunidade e seguir seus
proacuteprios interesses Xenofonte para recuperar o acircnimo das tropas usa como um de seus
argumentos o fato de que ldquoaqueles que se natildeo importaram com as nossas advertecircncias
reiteradas e lhes pareceu que a companhia dos baacuterbaros tambeacutem podia convir foram bem
castigadosrdquo Logo o orador tenta converter a fatalidade da perda de membros da comunidade
55
em um justo castigo para aqueles que preferiram a companhia dos baacuterbaros Com o discurso
por um lado Xenofonte negocia a identidade entre os baacuterbaros e os gregos que preferem sua
companhia impondo assim uma distacircncia para com o restante dos helenos Apoacutes isso ele
incita o auditoacuterio a mostrar para os baacuterbaros inimigos que satildeo ldquogente diversardquo dos gregos que
pereceram o que confirma a intenccedilatildeo de Xenofonte em impor tal distacircncia
4210 Arenga XIII ndash Anaacutebase (6312-18) ndash Tipo 2 ndash Emissor Xenofonte
XIII ndash Bem sabeis camaradas que natildeo tenho prazer nenhum em expor-vos ao perigo Mas
agora natildeo se trata de dar provas de valentia que jaacute destes ateacute de mais mas de salvarmos a
vida Notai bem noacutes natildeo podemos voltar atraacutes sem combater Se natildeo vamos de cara para o
inimigos eacute ele que viraacute contra noacutes e nos atacaraacute pelas costas Dizei-me qual vale mais atacar
de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a agressatildeo Bem sabeis que se natildeo haacute
estiacutemulo algum em retirar diante do inimigo acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso
acossaacute-lo daacute alma ateacute aos cobardes Por isso eu preferia saltar-lhe agraves canelas com metade das
tropas que levamos a retirar com forccedilas duas vezes mais numerosas De resto podeis ter a
certeza que natildeo eacute gente para aguentar o combate mas que se nos Vecircem recuar tornar-se-atildeo
tremendo a perseguir-nos Uma vez atravessada esta barroca natildeo seraacute tambeacutem esta uma
oacuteptima posiccedilatildeo para oferecer combate Natildeo eacute a seguranccedila pela espalda Por minha parte
sempre desejei que os caminhos ficassem livres ao adversaacuterio para retirada e que o acidentado
dos lugares era ainda e sempre para noacutes a liccedilatildeo certa de que soacute na vitoacuteria podemos encontrar
salvaccedilatildeo Espanta-me que este desfiladeiro vos inspirem mais terror do que tantos outros que
natildeo tiveram a propriedade de deter-vos um soacute momento Mas digam-me laacute se natildeo batermos a
cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar um passo na planiacutecie E como havemos de
tornar a passar os montes que jaacute conheceis com tantos alcanccedilamos o mar sem gravame de
maior o Ponto Euxino natildeo eacute um escolho bem mais seacuterio onde natildeo soacute natildeo teremos navios que
nos levem como natildeo teremos alimentos que natildeo nos deixem morrer de fomeSe fugimos
para laacute forccedilosamente teremos de sair e sem perda de tempo picados pelas necessidades da
vida Natildeo soldados vale mais oferecer batalha hoje bem comidos e bebidos que amanhatilde em
jejum Os sacrifiacutecios o voo das aves as viacutetimas pressagiam-nos um grande sucesso Avante
Seria o cuacutemulo que o inimigo depois de nos pocircr a vista em cima jantasse com a comodidade
toda e armasse tendas onde lhe desse gana
56
42101 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIII ndash Anaacutebase
O discurso de exortaccedilatildeo XIII pretende convencer e motivar o auditoacuterio a atacar o
inimigo em vez de tentar evitaacute-lo O discurso mostra-se notoriamente deliberativo pela
exposiccedilatildeo de uma estrateacutegia que pode ser discutida Ele natildeo eacute apenas epidiacutectico ou seja
buscando ser belo para obter a aclamaccedilatildeo do auditoacuterio mas tambeacutem tenta expressar o que
julga uacutetil para aquela comunidade ou seja a assembleia de guerreiros que compotildee o paacutethos
No entanto notamos que Xenofonte faz diversas perguntas que jaacute carregam a resposta
a que ele gostaria que o auditoacuterio aderisse o que eacute proacuteprio da retoacuterica Entatildeo questotildees como
ldquoDizei-me qual vale mais atacar de frente ou voltar o rosto a cada passo para repelir a
agressatildeordquo ldquoUma vez atravessada essa barroca natildeo seraacute tambeacutem uma oacuteptima posiccedilatildeo para
oferecer combate ldquoou ldquose natildeo batermos a cavalaria que aleacutem se vecirc seremos capazes de dar
um passo na planiacutecierdquo satildeo exemplos de perguntas elaboradas pelo vieacutes da resposta que de
acordo com Meyer eacute o que diferencia a retoacuterica da argumentaccedilatildeo (MEYER 2007 p27)
O nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo isto eacute quando se tenta motivar expondo
algum tipo de vantagem sobre o inimigo mostra-se evidente na seguinte declaraccedilatildeo ldquopodeis
ter a certeza de que [o inimigo] natildeo eacute gente para aguentar o embate mas que se nos veem
recuar tornar-se-atildeo tremendos a perseguir-nosrdquo Eacute importante notar que a suposta vantagem
de o inimigo ser militarmente inferior soacute eacute vaacutelida caso a estrateacutegia de Xenofonte seja adotada
O lugar comum diacutekaion ldquoo justordquo tambeacutem eacute retomado quando o autor exorta a
respeito dos pressaacutegios divinos favoraacuteveis Entretanto a maior evidecircncia da noccedilatildeo de
pertencimento na arenga eacute a ideia da possibilidade de participaccedilatildeo do auditoacuterio presente no
discurso pois ao mesmo tempo em que se reduz a distacircncia entre o auditoacuterio e o orador
todos estariam tambeacutem exercendo uma praacutetica deliberativa que normalmente realizariam com
integrante de suas poleis natais o que eacute proacuteprio da cidadania Fortifica-se entatildeo a identidade
entre os membros do auditoacuterio ao incentivaacute-los a envolverem-se com as decisotildees como se
todos pertencessem agrave mesma comunidade
4211 XIV ndash Anaacutebase (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Xenofonte
XIV ndash Camaradas lembrai-vos das horas difiacuteceis de que com a ajuda dos Deuses pudestes
sair triunfantes e representai-vos a sorte que espera aqueles que voltam costas no combate
57
Natildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia Invocai Heacutercules nosso Guia e animai-vos
chamando uns pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos
ouvirem contar os feitos que praticastes
42111 Consideraccedilotildees a respeito da arenga XIV ndash Anaacutebase
A uacuteltima arenga XIV eacute uma epipolesis com um discurso relativamente mais extenso ndash
ainda que breve comparado com os discursos de Tipo 2 existentes na obra ndash levando em
consideraccedilatildeo as outras revistas de tropas que se limitam a poucas palavras Xenofonte assim
como em suas epipoacutelesis anteriores24 vai chamar a atenccedilatildeo para o artifiacutecio motivacional do
uacuteltimo esforccedilo Eacute notaacutevel que ao mesmo tempo ele retome os Deuses quando exorta da
seguinte forma ldquoNatildeo esqueccedilais que estamos agraves portas da Greacutecia e animai-vos chamando uns
pelos outros Nada mais bonito que ser louvado amanhatilde por aqueles que vos ouvirem contar
os feitos que praticastesrdquo O que eacute incomum nesse discurso comparado aos demais na obra eacute
a ausecircncia de caraacuteter deliberativo ainda que se possa notar evocaccedilatildeo de traccedilos comuns que
busquem a noccedilatildeo de pertencimento
4212 Anaacutelise Geral dos Discursos de Exortaccedilatildeo na Anaacutebase
Tendo em vista a anaacutelise dos discursos de exortaccedilatildeo na Anaacutebase notamos uma
constante relevacircncia dos argumentos muitas vezes com premissas impliacutecitas que visam a
ressaltar a identidade dos gregos e a alteridade destes para com os baacuterbaros
De acordo com os conceitos de Michel Meyer a retoacuterica eacute justamente a ldquonegociaccedilatildeo
da diferenccedila entre os indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo (MEYER 2007 p 25)
Considerando tal definiccedilatildeo eacute possiacutevel elaborar uma estrutura que ilustre a estrateacutegia retoacuterica
enfatizando a proposta de buscar a noccedilatildeo de pertencimento das arengas de Xenofonte
De iniacutecio eacute essencial compreender que o paacutethos eacute composto por integrantes provindos
de diversas poleis ou seja contamos com muacuteltiplas diferenccedilas O desafio do orador entatildeo eacute
negociar a identidade do auditoacuterio em um momento delicado em que o modelo militar
coletivo proacuteprio das sociedades gregas da eacutepoca seria uacutetil para a campanha de retorno agrave
Greacutecia
24 Arenga X e XI com respectivas passagens (3446) e (4814)
58
Xenofonte como acompanhamos ateacute entatildeo vai se utilizar de uma seacuterie de artifiacutecios
retoacutericos que incitando implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento de uma soacute vez iguale a
distacircncia entre os membros do auditoacuterio e negocie a alteridade ou diferenccedila para com os
baacuterbaros Dessa forma resultado dessa simultacircnea negociaccedilatildeo torna-se cada vez mais
possiacutevel estreitar ao mesmo tempo a distacircncia entre os membros do auditoacuterio e destes com o
orador Por conseguinte vai se desenvolver com o decorrer da obra uma consciecircncia de que
todos pertencem a uma mesma comunidade
Ainda utilizando dos princiacutepios teoacutericos expostos por Meyer procedendo agora com a
sua problematologia a teoria da argumentaccedilatildeo seria o estudo da relaccedilatildeo entre o expliacutecito e o
impliacutecito Tal associaccedilatildeo sempre carrega um significado que ultrapassa a literalidade atribuiacuteda
agraves manifestaccedilotildees discursivas as quais suscitam uma questatildeo (MOSCA 2007 p 9)
Nesse caso avaliando as arengas militares da Anaacutebase depara-se com uma seacuterie de
exposiccedilotildees expliacutecitas que sustentam implicitamente a noccedilatildeo de pertencimento Portanto
quando explicitamente se pede a ldquoajuda dos deusesrdquo ou se propotildee um holocausto agraves
divindades sugere-se implicitamente ldquoacreditamos nos mesmos deusesrdquo quando se exalta
explicitamente a histoacuteria da vitoacuteria dos gregos nas Guerras Meacutedicas sugere-se implicitamente
que todos tecircm um mesmo passado glorioso contra os baacuterbaros quando explicitamente releva-
se a liberdade das cidades gregas sugere-se implicitamente que todos gozam de uma mesma
autonomia poliacutetica mesmo diante das tentativas de conquista do Impeacuterio Persa quando eacute
expliacutecito que durante um discurso qualquer um pode e deve opinar propor ou decidir pois
ldquoassim o exige a salvaccedilatildeo de todosrdquo eacute impliacutecito que todos tecircm a mesma importacircncia perante
seus pares
Em suma exorta-se explicitamente uma diversidade de argumentos que tecircm por
sugestatildeo impliacutecita a noccedilatildeo de que todos satildeo helenos e pertencem agrave mesma comunidade
43Arengas Militares na Ciropedia
A Ciropedia composta por oito livros conta com dezesseis arengas militares tambeacutem
de acordo com ldquocorpus de arengas da historiografia grecolatinardquo (CENTENO et al2007 p
59
537) As arengas estatildeo dispostas segundo a traduccedilatildeo de Joatildeo Feacutelix Pereira25 e seguem no
quadro abaixo em conformidade com os paracircmetros utilizados na Tabela 1
Tabela 2 ndash Arengas militares da Ciropedia
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 157-14 1 Ciro o Grande
2 2111 1 Ciro o Grande
3 2114-18 2 Ciro o Grande
4 232-4 2 Ciro o Grande
5 323-6 1 Ciro o Grande
6 3334-9 1 Ciro o Grande
7 3341-2 1 Ciro o Grande
8 3344-5 4 Rei dos Assiacuterios
9 3359 5 Soldados Persas
10 3361-2 5 Ciro o Grande
11 411-6 6 Ciro o Grande
12 4221-6 1 Ciro o Grande
13 6214-20 1 Ciro o Grande
14 6413-20 1 Ciro o Grande
15 7110-14 4 Ciro o Grande
16 7519-24 1 Ciro o Grande
Tabela 2 ndashArengas militares da Ciropedia
Em uma primeira anaacutelise contando apenas com os dados ordenados na Tabela 2
podemos fazer duas constataccedilotildees Antes de tudo eacute notaacutevel que assim como na Anaacutebase a
obra possui um emissor que protagoniza a histoacuteria e a maior parte dos discursos Em tal caso
ainda os outros emissores nem mesmo satildeo destacados por seus nomes mas sim pela posiccedilatildeo
que representam na sociedade Em segundo lugar eacute de suma importacircncia o que mostra uma
grande diferenccedila da obra anteriormente analisada a predominacircncia de arengas de Tipo 1 ou
seja as proferidas apenas aos capitatildees
Para Zoido (2003 p 166) a excessiva recorrecircncia das arengas de Tipo 1 eacute justificada
pela polecircmica da passagem (3348-55) da Ciropedia um diaacutelogo entre Ciro o Grande e um
25XENOFONTE Ciropedia Trad Joatildeo Feacutelix Pereira Rio de Janeiro Editora WM Jacson v1 1964 (Coleccedilatildeo
Claacutessicos Jacson)
60
de seus oficiais No excerto da obra em questatildeo discute-se a respeito da utilidade da arenga
militar apoacutes uma exortaccedilatildeo militar do rei dos assiacuterios para suas tropas Crisantas um alto
oficial do exeacutercito persa diante da atitude do inimigo assiacuterio recomenda que Ciro o Grande
motive suas tropas tambeacutem por meio de uma arenga O monarca persa no entanto acusa tal
praacutetica da exortaccedilatildeo militar de ser inuacutetil tendo em vista que ningueacutem poderia aprender a
batalhar ou tornar a ter mais valor ouvindo um discurso por mais belo que ele seja
A este tempo chegou o persa Crisantas e outros homotimos com alguns desertores
Ciro os interrogou como era natural no que dizia respeito aos contraacuterios Disseram
que eles saiacuteam do acampamento que o rei os formava em batalha e fazia mui
eneacutergicas exortaccedilotildees segundo afirmava quem o ouvira falar
- Ciro ndash disse crisantas- se tambeacutem exortasse vossas tropas natildeo lhes infundireis por
ventura nova coragem
- Crisantas natildeo vos causem abalo as exortaccedilotildees do assiacuterio Um discurso por mais
elegante que seja natildeo pode no mesmo dia dar valor a que o natildeo tem fazer bons
arqueiros bons lanceiros bons cavaleiros sem previamente saber manejar um arco
uma seta um cavalo dar novo vigor aos corpos para o trabalho sem exerciacutecio
preliminar
- Mas eacute jaacute bastante concitar-lhes o acircnimo
- Porventura eacute possiacutevel que um discurso no mesmo dia em que eacute pronunciado encha
de pundonor o espiacuterito dos ouvintes os afaste da estada do viacutecio os induza a
arrostar por amor da gloacuteria os trabalhos e os perigos e imprima este sentimento de
maneira que eles prefiram morrer com as armas na matildeo a evitar a morte por meio da
fuga Natildeo Para que estes sentimentos andem gravados profundamente no coraccedilatildeo
humano importa primeiro que tudo fazer leis que assegurem aos valorosos uma
existecircncia honrosa e livre Aos covardes uma vida abjecta e cheia de miseacuterias
Depois eacute preciso haver mestres que com palavras e exemplos lhes faccedilam ver que o
valor e a gloacuteria satildeo a origem das maiores prosperidades a covardia e o oproacutebrio o
germe da mais dura adversidade Cumpre estar embebido nestas ideias para poder
triunfar do temor dos inimigos Se no mesmo acto de correr contra os inimigos para entrar na luta nesta ocasiatildeo em que muitos se esquecem do que aprenderam
pudesse um orador criar de repente soldados intreacutepidos muito faacutecil seria aprender e
ensinar a maior das virtudes Enquanto a mim nem sequer confiaria naqueles que se
exercitaram debaixo das nossas vistas se com vossos exemplos lhes natildeo deacutesseis a
necessaacuteria instruccedilatildeo e os natildeo advertiacutesseis de suas faltas Eu Crisantas admirar-me-
ia tanto de que um discurso elegante desse valor a um homem destituiacutedo desta
virtude como se uma peccedila de muacutesica bem cantada tivesse a forccedila de fazer muacutesico
um homem ignorante desta arte (XENOFONTE Ciropedia 3348-55)
O que de fato eacute polecircmico nessa passagem eacute que embora o rei persa se mostre
irredutiacutevel a respeito da inutilidade dos discursos de exortaccedilatildeo militar ele expotildee ao longo da
obra quatorze arengas
Aleacutem disso tambeacutem existe a contradiccedilatildeo de que Cambises seu pai havia lhe
aconselhado a manter o valor de sua palavra pois eacute importante ldquoconservar acreditada a
exortaccedilatildeo para as ocasiotildees de grande perigordquo (XENOFONTE Ciropedia1619)
61
No entanto na interpretaccedilatildeo de Zoido natildeo haacute incoerecircncia alguma na passagem pois
os discursos exortativos satildeo em grande parte voltados para um pequeno grupo de oficiais ou
seja arenga de Tipo 1 Tambeacutem justifica a epipolesis do discurso XV que seria uma exceccedilatildeo
como a situaccedilatildeo de grande perigo que Cambises havia recomendado a Ciro o Grande para
que exortasse suas tropas (ZOIDO 2003 p 166) De fato a leitura que Zoido faz da
polecircmica apontando a predominacircncia de arengas de Tipo 1 eacute uma interpretaccedilatildeo
extremamente vaacutelida para o esclarecimento dessas supostas contradiccedilotildees No entanto tendo
em vista a comparaccedilatildeo com a Anaacutebase tal leitura natildeo bastaria para explicar o fato de que em
ambas as obras agraves quais contamos com o eacutethos do general exemplar como protagonista
notamos opiniotildees distintas em relaccedilatildeo agrave necessidade do discurso de exortaccedilatildeo Sendo assim
mostra-se necessaacuterio a anaacutelise das arengas para se chegar a uma resoluccedilatildeo determinada
431 Arenga I ndash Ciropedia (157-14) ndash Tipo 1ndash Emissor Ciro o Grande
Fez sacrifiacutecios debaixo de felizes auspiacutecios e tomou depois seus duzentos homotimos que por
seu turno escolheram quatro de seus iguais Tendo todos reunido lhes dirigiu esse discurso
I ndash Meus amigos natildeo eacute soacute de hoje que vos conheccedilo eu vos escolhi por vos ter visto desde a
vossa infacircncia tatildeo constantes em observar o que entre noacutes eacute havido por honesto como fieis
em voacutes absterdes do que o natildeo eacute Voacutes ides saber por que motivos eu aceitei o comando e por
que eu vos ajunto aqui Sei que nossos antepassados natildeo nos eram inferiores e que nenhuma
virtude lhes era estranha mas natildeo vejo que vantagem tirassem disso eles ou a repuacuteblica26
Entretanto parece-me que natildeo se pratica a virtude senatildeo para te melhor sorte do que aqueles
que a desprezam Quem se priva de um prazer presente natildeo o faz com o sentido de gozar dele
jamais pelo contraacuterio eacute o fim de preparar-se mesmo por esta privaccedilatildeo dos gozos mais vivos
para outro tempo Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre
a falar espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se entrega a
penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute gloacuteria honras e
prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois de longos trabalhos
envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei ao lavrador que zeloso de
sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que depois em lugar de colher seus gratildeos
e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de
26 No orginal κοινόν (aquilo que eacute comum comunitaacuterio) τῶν Περσῶν (dos persas)
62
ser laboriosamente exercitado e estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena
parece-me que se poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Amigos nunca nos aconteccedila tal desgraccedila e jaacute que a consciecircncia nos diz que temos desde a
infacircncia adquirido o haacutebito da coragem e da virtude vamos ter com o inimigo que eu sei
pelo ter visto de perto ser incapaz de nos resistir Sabei que natildeo se pode jamais aplicar o
epiacuteteto de bom guerreiro agravequele que apenas sabendo com destreza vibrar um arco despedir
uma seta guiar um cavalo desanima quando a guerra demanda maior actividade natildeo
podendo suportar trabalhos que o oprimam nem tatildeo pouco compete este epiacuteteto agravequeles que
se deixam vencer de sono quando todas as circunstacircncias da guerra altamente pedem que
esteja alerta Neste mesmo caso estatildeo os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que
hatildeo-de comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra Voacutes pelo
contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia considerais os
trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso conduto excedeis os leotildees
no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha enraizado o sentimento mais belo e
mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem
aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais
incomportaacuteveis fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos Toda essa exposiccedilatildeo eacute a mais
exacta expressatildeo que concebo de voacutes aliaacutes iludia-me a mim mesmo porque se o resultado
desta expediccedilatildeo natildeo coincidir com o que me assegura vossa intrepidez todo dano recairaacute
sobre mim Poreacutem minha experiecircncia a afeiccedilatildeo que me consagrais e a pouca disciplina dos
inimigos me asseguram que natildeo seratildeo frustradas minhas esperanccedilas Partamos portanto
confiadamente jaacute que estamos longe de nos persuadirmos de que injustamente desejamos
tomar posse do que natildeo nos pertence Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que
romperam as hostilidades e nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais
justa do que rechaccedilar os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos Ainda tendes
um motivo mais poderoso para estardes em plena confianccedila saberdes que empreendi esta
exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves divindades que satildeo sempre o objecto por onde come
todas as empresas quer as grandes quer as pequenas Que mais eacute preciso dizer Ide escolher e
reunir os soldados depois dirigi vossa marcha para a Meacutedia Eu primeiramente vou ter com
meu pai depois partirei para que quanto antes me informe das circunstacircncias dos inimigos
faccedila os preparativos que puder e mui galhardamente pelejeis com o socorro da divindade
63
4311 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga I ndashCiropedia
Tomando os principais argumentos de tal discurso de exortaccedilatildeo notamos trecircs lugares-
comuns muito similares ao percebido ateacute entatildeo nas arengas militares Tomaremos a fins de
comparaccedilatildeo a arenga IV da Anaacutebase por ser a mais extensa de Tipo 1 Entatildeo comecemos
pelo nuacutecleo argumentativo dynaton ldquoo forterdquo que nos dois casos se refere agrave superioridade
devido agrave melhor formaccedilatildeo militar
Anaacutebase ndashIV Pela compilaccedilatildeo de nossos corpos estamos mais aptos do que eles a
resistir ao frio ao calor e aos trabalhos As nossas almas satildeo tambeacutem de tecircmpera
rija e com ajuda dos Deuses sob o nosso braccedilo os homens deles hatildeo-de cair como
tordos mais deacutebeis e menos resistentes em tudo do que noacutes
CiropediandashI Os nossos adversaacuterios que ateacute ignoram o modo por que hatildeo-de
comportar-se para com os aliados e para com os inimigos e absolutamente
desconhecem os preceitos ainda os mais triviais da importantiacutessima arte da guerra
Voacutes pelo contraacuterio estais habituados a empregar a noite como eles empregam o dia
considerais os trabalhos como meios de tornar agradaacutevel a vida e a fome eacute vosso
conduto excedeis os leotildees no apetite com que bebeis aacutegua Em vossas almas se acha
enraizado o sentimento mais belo e mais proficiente na guerra qual eacute o desejo de
gloacuteria que a tudo antepondes por quanto quem aspira a aquisiccedilatildeo de gloacuteria constitui-se rigorosamente na obrigaccedilatildeo de sujeitar-se agraves mais incomportaacuteveis
fadigas e de arrostar os mais iminentes perigos
O segundo lugar-comum dentro da loacutegica argumentativa dos dois discursos eacute de que
os deuses satildeo favoraacuteveis
Anaacutebase ndashIV Entre eles e noacutes os Deuses declarar-se-atildeo em nosso favor E como natildeo
se os baacuterbaros os provocarem com seus perjuacuterios enquanto noacutes com mil tentaccedilotildees agrave
volta nos mantivemos fieacuteis a nossos juramentos e aos Deuses imortais
CiropediandashI Ainda tendes um motivo mais poderoso para estardes em plena
confianccedila saberdes que empreendi esta exposiccedilatildeo natildeo prescindindo dos votos agraves
divindades que satildeo sempre o objecto por onde come todas as empresas quer as
grandes quer as pequenas
O terceiro eacute de que a Justiccedila estaacute do ldquonosso ladordquo
AnaacutebasendashIV Uma vez que romperam o pacto natildeo eacute verdade que implicitamente
puseram cobro aos seus achincalhes e aos nossos escruacutepulos Os bens que esses
Persas usufruem satildeo como um precircmio ao mais nobre
CiropediandashI Partamos portanto confiadamente jaacute que estamos longe de nos
persuadirmos de que injustamente desejamos tomar posse do que natildeo nos pertence
Agora os inimigos se aproximam sendo eles os que romperam as hostilidades e
nossos aliados implorar nosso socorro Que acccedilatildeo haacute pois mais justa do que rechaccedilar
os adversaacuterios e mais louvaacutevel do que auxiliar os amigos
Como se natildeo bastassem as semelhanccedilas ainda temos em ambos os discursos um
importante argumento de segundo tipo fundado na estrutura do real Na Anaacutebase Xenofonte
utiliza um argumento a fortiori (PERELMAN TYTECA 2004 p 384) quando ressalta que
Se por desmazelo caiacutemos no poder desse rei que cometeu a barbaridade de mandar
cortar a cabeccedila e a dextra do proacuteprio irmatildeo depois de morto e de arvoraacute-las numa
64
cruz que sorte imaginamos que nos espera a noacutes que marchaacutemos contra ele para o
reduzir agrave escravidatildeo ou mataacute-lo se estivesse no nosso querer
O argumento hierarquiza a noccedilatildeo de que se Artaxerxes fez algo terriacutevel a seu proacuteprio
irmatildeo pessoa pela qual poderia ter alguma afeiccedilatildeo ele certamente faria algo terriacutevel tambeacutem
a indiviacuteduos desconhecidos que lhe fariam mal
Na Ciropedia o argumento de segundo tipo eacute o de desperdiacutecio (PERELMAN
TYTECA 2004 p 317) exortado por Ciro o Grande da seguinte forma
Quem aspira brilhar na carreira da eloquecircncia natildeo tem por fim estar sempre a falar
espera que adquirindo o dom de persuadir seraacute um dia uacutetil agrave sociedade O mesmo
acontece aquele que se dedica agraves armas Natildeo eacute para combater sem descanso que se
entrega a penosos exerciacutecios fia-se em que tornando-se haacutebil guerreiro ganharaacute
gloacuteria honras e prosperidade Se entre esses homens se encontra algum que depois
de longos trabalhos envelhece sem ter sabido tirar algum lucro deles comparaacute-lo-ei
ao lavrador que zeloso de sua profissatildeo semeia e planta com maior cuidado e que
depois em lugar de colher seus gratildeos e apanhar seus frutos na estaccedilatildeo proacutepria
deixaacute-los cair por terra ou um atleta que depois de ser laboriosamente exercitado e
estar em estado de merecer o preacutemio natildeo entrasse na arena parece-me que se
poderia sem injusticcedila chamar-lhes de loucos
Notamos aqui entatildeo uma seacuterie de semelhanccedilas entre os argumentos utilizados para
motivar soldados persas e soldados gregos No entanto eacute perceptiacutevel que embora se trate
mesmo de um auditoacuterio formado por persas esses homotimoi natildeo se diferenciam por um
grupo multieacutetnico
De fato eles possuem uma preacutevia identidade formada pois todos eles pertencem a
uma mesma classe de guerreiros que treinam a arte militar desde crianccedilas Por isso eacute notaacutevel
que eles jaacute possuam uma noccedilatildeo de pertencimento Em certos pontos o discurso se assemelha
com o gecircnero deliberativo pelo fato de que o orador passa a impressatildeo de estar convencendo
com determinadas estrateacutegias retoacutericas o auditoacuterio a lhe seguir
Reforccedilando ainda mais o caraacuteter comunitaacuterio desse exeacutercito eacute fundamental reconhecer
a semelhanccedila entre homotimoi e os homoioi ou seja os espartanos Tal exeacutercito de elite
liderado por Ciro o Grande na Ciropedia tem inspiraccedilatildeo no exeacutercito espaciarta cujo modelo
militar exercia certa influecircncia sobre Xenofonte (ZOIDO 2006 p 162)
Notamos assim uma grande semelhanccedila nas duas obras em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de
identidade proposta pelo orador e tambeacutem ao gecircnero deliberativo que acompanha o caraacuteter
epidiacutectico da arenga Dessa forma com a finalidade de fazer uma comparaccedilatildeo entre discursos
verdadeiramente realizados para um auditoacuterio multieacutetnico eacute necessaacuterio limitar-se a somente
duas arengas da obra o discurso proferido pelo rei dos assiacuterios ao seu exeacutercito e a epipoacutelesis
de Ciro que antecede a batalha de Sardes
65
432 Arenga VIII - Ciropedia (6523-4) ndash Tipo 4ndash Emissor Rei dos Assiacuterios
VIII - Assiacuterios agora eacute a ocasiatildeo de dar provas do vosso denodo eacute agora a ocasiatildeo de lutar
pelas vossas vidas pela terra que vos deu o berccedilo pelos lares em que vos criastes por vossas
mulheres e filhos por tudo que no mundo tendes de mais caro Se fordes vitoriosos tudo isto
ficaraacute como antes em vosso poder se fordes vencidos tudo passaraacute agraves matildeos dos inimigos
Se desejais a vitoacuteria eacute preciso que pelejeis impaacutevidos Fatuidade eacute querer a vitoacuteria e fugir do
inimigo apresentando-lhe o corpo sem olhos sem armas sem matildeos Fatuidade eacute fugir quem
estima a vida sabendo que os vencedores a conservam e que fugindo se encontra mais
fagravecilmente a morte do que resistindo Fatuidade eacute desejar tesouros e deixar-se vencer Pois
quem ignora que os vencedores conservam seus haveres e recebem os dos vencidos e que
estes perdem tudo que possuem ateacute a liberdade
4321 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga VIII - Ciropedia
Levando em consideraccedilatildeo os discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase notamos um forte
contraste com a arenga articulada pelo rei dos Assiacuterios ao seu exeacutercito Natildeo existe uma noccedilatildeo
de identidade ou qualquer menccedilatildeo a uma comunidade da qual poderia se extrair algum senso
de pertencimento
Os valores exaltados pelo orador se resumem agrave posse de bens agraves suas famiacutelias e suas
vidas e a uma breve menccedilatildeo agrave liberdade exposta no final da arenga No entanto a estrateacutegia
do discurso do rei Assiacuterio estaacute em instigar o medo do auditoacuterio em ver-se privado desses
valores
Tambeacutem notamos a ausecircncia dos lugares-comuns das arengas evidenciados por
Albertus ou seja os nuacutecleos argumentativos que ateacute entatildeo vecirc- se mostrando muito presentes
nos discursos de exortaccedilatildeo Para Tatum em Xenophonrsquos Imperial Fiction de 1989 tal
exortaccedilatildeo eacute um exemplo de ldquomaacute retoacutericardquo (apud ZOIDO 2003 p161) e aleacutem disso eacute o
modelo perfeito do discurso do tirano Dessa forma ainda ele seria o tiacutepico governante que
rege atraveacutes do medo Para aleacutem desses aspectos eacute importante notar que esse eacute um discurso
totalmente epidiacutectico sem nenhuma margem para participaccedilotildees do auditoacuterio
66
433 Arenga XV ndashCiropedia (7110-14) ndash Tipo 4ndash Emissor Ciro o Grande
Ditas estas palavras Ciro entregou a senha que era Juacutepiter salvador e guia e partiu
Caminhando entre os carros e os couraceiros olhava para os soldados e a uns dizia
- Valentes quatildeo agradaacutevel me eacute a contemplaccedilatildeo de vossos semblantes
A outros
ndashValentes hoje a batalha natildeo soacute nos haacute de trazer os frutos de uma vitoacuteria mas
tambeacutem a continuaccedilatildeo do gozo da que jaacute obtivemos e uma felicidade completa
A outros
- Valentes natildeo temos motivos para queixar-nos dos deuses que nos proporcionam os meios
de possuir grandes bens mas dai provas de coragem
A outros
- Valentes para que melhor ceia do que esta podiacuteamos noacutes fazer muacutetuos convites Agora os
bravos tecircm a possibilidade de oferecer uns aos outros muitas coisas e boas
A outros
- Valentes bem sabeis que perseguir ferir matar gozar ouvir elogios ficar livre dominar
tais satildeo os preacutemios do vencedor satildeo contraacuterios os do vencido Todo aquele que ama sua
honra combata em peacute por mim porque eu natildeo admitirei que se pratique um soacute acto de
covardia ou de infacircmia
4331 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga XV ndashCiropedia
Nessa arenga noacutes notamos uma grande exceccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves outras da obra pois se
trata de um discurso que Ciro mesmo apoacutes ter exaltado a inutilidade de fazecirc-lo exalta para a
totalidade do seu exeacutercito Aleacutem disso eacute uma arenga com a intenccedilatildeo totalmente voltada a
exortar as tropas tornando o discurso uacutenico na Ciropedia pois o orador profere uma arenga
extensa de gecircnero exclusivamente epidiacutectica Sustentando o eacutethos do general exemplar Ciro
O grande exorta tropas ao decorrer da obra com as quais ele pode incitar a noccedilatildeo de
pertencimento devido alguma identidade que ele possa explorar para com o auditoacuterio Isso
explica o fato de grande parte dos discursos serem de Tipo 1
67
Entretanto avaliando um panorama das obras de Xenofonte vamos encontrar um
padratildeo para as epipolesis que antecedem batalhas importantes da trama Ao analisar as
arengas militares da Anaacutebase podemos notar que o uacutenico discurso de Tipo 4 ndash isto eacute a revista
de tropas - que contam com mais do que breves palavras se encontra no penuacuteltimo livro antes
de uma batalha decisiva A epipoacutelesis de Ciro tambeacutem se encontra no penuacuteltimo livro e
antecede a importante batalha de Sardes Analisemos entatildeo a tabela de arengas da Hellecircnica
- a uacutenica obra de Xenofonte com arengas militares que o presente trabalho natildeo tem a
pretensatildeo de analisar - para determinar a existecircncia de um padratildeo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
ORDEM PASSAGEM TIPOLOGIA EMISSOR
1 1124 2 Farnabazo
2 2413-17 3 Trasibulo
3 5114-17 2 Teleutias
4 7130 4 Arquidamo
Tabela 3 ndash Arengas Militares da Hellecircnica
434 Arenga IV ndashHellecircnica (7130) ndash Tipo 4ndash Emissor Arquidamo27
Diz-se que ele ainda tomou a frente dos batalhotildees e exortou seus homens com as seguintes
palavras Caros cidadatildeos vamos agora provar-nos homens valentes e assim ser capazes de
olhar as pessoas de frente vamos transmitir agravequeles que viratildeo depois de noacutes a paacutetria como era
quando noacutes a recebemos de nossos pais deixemos de sentir vergonha diante de mulheres e
crianccedilas e idosos e estrangeiros por quem uma vez fomos vistos como os mais honrados entre
todos os gregos
4341 Consideraccedilotildees a respeito da Arenga IV ndash Hellecircnica
Notadamente a epipoacutelesis da Hellecircnica confirma tal padratildeo pois se encontra no iniacutecio
do uacuteltimo livro da obra e eacute classificada por ser do gecircnero epidiacutectico de discurso Eacute importante
lembrar que originalmente essas obras natildeo estavam separadas em livros como hoje No
entanto tais evidecircncias foram destacadas com o objetivo de ressaltar que em todas as obras
de Xenofonte encontramos uma epipoacutelesis quando a obra estaacute chegando ao fim
27 Traduccedilatildeo livre do inglecircs ndash wwwperseustuftsedu
68
Tambeacutem como eacute visiacutevel no discurso natildeo se trata apenas de breves palavras como
nas arengas III e X da Anaacutebase mas de uma exortaccedilatildeo extensa o bastante para propor um
discurso belo que escrito pode resultar em uma leitura agradaacutevel
Eacute importante lembrar que para os autores da eacutepoca uma das exigecircncias
metodoloacutegicas para narrar uma arenga militar em suas obras era a de ter presente uma tradiccedilatildeo
literaacuteria para natildeo pocircr em risco a reputaccedilatildeo do autor como escritor
44O Gecircnero Epidiacutectico e Deliberativo das Arengas Militares nas Obras de Xenofonte
Como temos visto no decorrer das anaacutelises dos discursos de exortaccedilatildeo da Anaacutebase e da
Ciropedia o gecircnero deliberativo frequentemente se faz presente junto ao gecircnero epidiacutectico no
corpo da arenga Contudo os discursos alternam entre esses dois gecircneros com bastante
regularidade
Para compreender essa recorrente permuta na estrutura das arengas nas obras em
questatildeo eacute importante assumir a relevacircncia do eacutethos efetivo e do eacutethos imanente Ateacute entatildeo o
eacutethos vem sendo entendido apenas na posiccedilatildeo de orador como princiacutepio de autoridade
Entretanto existe uma distinccedilatildeo entre o eacutethos que eacute efetivamente o orador ou seja o efetivo e
o eacutethos que o auditoacuterio projeta como imagem isto eacute o imanente O orador haacutebil e ciente de tal
diferenccedila tem a possibilidade de controlar a distacircncia entre o seu eacutethos efetivo e seu eacutethos
imanente de acordo com a articulaccedilatildeo de seu discurso
O orador se orna da virtude que o auditoacuterio espera dele e faz uso da congruecircncia
para comunicar sua mensagem Ele aparece como eacute ao menos eacute isso que tentaraacute
fazer acreditar ao adotar essa estrateacutegia de adequaccedilatildeo que eacute uma estrateacutegia da
sinceridade fingida ou real Observemos que temos aqui trecircs possibilidades
- a congruecircncia do eacutethos projetado e do eacutethos efetivo o orador procura obter o
assentimento de seu auditoacuterio Esse seria o gecircnero deliberativo
- a ruptura entre os dois ethe Haacute um choque entre as respostas e os valores O
conflito com o auditoacuterio se precisar ser resolvido natildeo o poderaacute ser senatildeo por um
juiz externo Esta aiacute a origem do gecircnero judiciaacuterio do qual falava Aristoacuteteles
- a defasagem entre o eacutethos projetivo e o eacutethos efetivo pode ser deliberada e positiva
Ela suscita entatildeo no auditoacuterio desejo e adesatildeo A defasagem natildeo desperta somente
valores positivos ela eacute esse valor positivo (MEYER 2007 p 54)
Os generais que protagonizam as obras em anaacutelise no presente trabalho utilizam-se
constantemente da congruecircncia e da defasagem entre os dois ethe Tanto Xenofonte na
Anaacutebase quanto Ciro o Grande na Ciropedia manipulam sua imagem projetada ao auditoacuterio
para obter seu consentimento e sua adesatildeo A diferenccedila entre os dois oradores estaacute em seus
69
ethe efetivos pois na Anaacutebase o general eacute originalmente um membro comum do auditoacuterio
enquanto que na Ciropedia ele se trata de um nobre
Dessa forma observamos nas arengas que o eacutethos imanente de Xenofonte parte da
congruecircncia pois o paacutethos o vecirc a princiacutepio como um igual Na arenga VIII da Anaacutebase por
exemplo ele orna seu eacutethos antes mesmo da primeira palavra quando ldquoergueu-se a seguir
revestido de belas roupagens e das armas mais magniacuteficas que pocircde encontrarrdquo Ciro o
Grande ao contraacuterio de Xenofonte parte do eacutethos imanente de algueacutem que estaacute acima do
auditoacuterio entatildeo no discurso I da Ciropedia ele inicia a arenga com ldquomeus amigos natildeo eacute soacute
de hoje que vos conheccedilordquo relevando a identidade que possuiacutea para com o paacutethos
A partir dessa anaacutelise devemos relevar que eacute exatamente nessa movimentaccedilatildeo
constante do eacutethos imanente em relaccedilatildeo ao eacutethos efetivo que se encontra a qualidade dos
discursos de exortaccedilatildeo em Xenofonte Portanto um auditoacuterio ao qual natildeo se pode inspirar
pertencimento e identidade dificilmente vai permitir que o orador consiga permutar entre os
gecircneros deliberativo e epidiacutectico Em tal impossibilidade notamos a opiniatildeo de Ciro o
Grande a respeito da utilidade das arengas militares da polecircmica passagem (3348-55) Diante
deste ponto de vista Ciro o Grande natildeo assume serventia em um discurso de exortaccedilatildeo que
natildeo pode ser tambeacutem deliberativo o que explica a diferenccedila na frequecircncia com que as arengas
de Tipo 1 se mostram presentes nas duas obras
70
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Jaacute agrave primeira vista considerando o meacutetodo empregado de anaacutelise retoacuterica dos
discursos nota-se a riqueza com que a interaccedilatildeo entre o eacutethos e o paacutethos eacute descrita por
Xenofonte e a consequente adaptaccedilatildeo do loacutegos dependendo da habilidade do orador em
perceber os valores referentes ao auditoacuterio Na obra de Xenofonte encontram-se diversos
detalhes das reaccedilotildees como ldquoCalou-se um instante E todas fisionomias abertas e como que
esclarecidas duma luz nova leu Xenofonte a aprovaccedilatildeo do que dizia E prosseguiu()rdquo ou
ldquoApoacutes um instante de circunspecccedilatildeo Xenofonte continuou()rdquo ou ainda mostrando sucesso
definitivo de sua exortaccedilatildeo Todos ergueram Pronunciou-se o voto em voz alta e cantou-se o
pean E apoacutes o preito agrave Divindade Xenofonte prosseguiu()
Em primeira anaacutelise levando tal aspecto em consideraccedilatildeo nota-se uma diferenccedila
atribuiacuteda por Xenofonte mediante a reaccedilatildeo do auditoacuterio entre os ethe que constituem as
arengas O primeiro discurso de exortaccedilatildeo militar da Anaacutebase eacute pronunciado por Ciro o
Jovem explicitando uma identidade entre os membros do auditoacuterio e exaltando toda a gloacuteria
de sua liberdade e superioridade sobre os povos baacuterbaros No entanto o eacutethos de Ciro o
Jovem natildeo sendo adequado para esse tipo de discurso vai adaptar o loacutegos com argumentos
que fomentem o auditoacuterio a enxergaacute-lo como algueacutem com possibilidades de enriquececirc-los
Eacute importante lembrar que Ciro o Jovem natildeo se trata de um antagonista na obra
personificando algueacutem incapaz de exortar seus soldados muito pelo contraacuterio nas palavras de
Xenofonte tal priacutencipe Persa vai ter muito prestiacutegio O que ocorre como foi demonstrado ao
longo das anaacutelises dos discursos na obra eacute que para exaltar pertencimento no auditoacuterio em
questatildeo eacute necessaacuterio que exista uma identidade ou a possibilidade desta para com o orador
Utilizando dos conceitos de Michel Meyer nota-se que uma distacircncia entre ele e o auditoacuterio
natildeo eacute abolida
Considerando que retoacuterica para Michel Meyer eacute a ldquonegociaccedilatildeo da diferenccedila entre
indiviacuteduos sobre uma questatildeo dadardquo Xenofonte como protagonista da Anaacutebase encarnando
o eacutethos do general exemplar com os devidos artifiacutecios retoacutericos evoca implicitamente a
noccedilatildeo de pertencimento entre o auditoacuterio anulando a diferenccedila entre seus membros Ao
mesmo tempo nota-se que como orador com a utilizaccedilatildeo de premissas impliacutecitas e expliacutecitas
vai instigar a alteridade destes para com os baacuterbaros Essa dupla negociaccedilatildeo vai aproximar
cada vez mais os membros do auditoacuterio de Xenofonte pertencendo todos cada vez mais a
uma mesma unidade na qual compartilham uma identidade Seguindo esse procedimento
comeccedila a ser possiacutevel comover o auditoacuterio alcanccedilado assim o objetivo de suas exortaccedilotildees
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Compreendendo tambeacutem que para Michel Meyer a teoria da argumentaccedilatildeo eacute a
relaccedilatildeo do impliacutecito e o expliacutecito eacute imprescindiacutevel notar a quantidade de argumentos
expressos que criam premissas impliacutecitas que assumem que todos fazem parte de uma mesma
comunidade Quando Xenofonte no papel de orador explicita a religiatildeo comum a todos um
passado glorioso comum a todos o modelo autocircnomo de cidade comum a todos e a
necessidade da participaccedilatildeo de todos em suas exortaccedilotildees estaacute impliacutecito que todos pertencem
a uma mesma comunidade
A partir disso tomando-se agora por anaacutelise as arengas presentes na Ciropedia
verifica-se a semelhanccedila no eacutethos pois a obra trata da carreira do general exemplar que
formaraacute o estadista ideal levando em consideraccedilatildeo que ambos compartilham das mesmas
virtudes Observa-se que os discursos proferidos por Ciro o Grande para seu exeacutercito de elite
compartilham de nuacutecleos argumentativos muito semelhantes No entanto trata-se de um
auditoacuterio com quem Ciro possui uma noccedilatildeo de pertencimento comunitaacuterio preacutevia pois tal
como a educaccedilatildeo espartana estes cresceram juntamente ao protagonista da obra sob um
estilo austero de uma vida militar
Relativamente agraves comparaccedilotildees entre os discursos da Anaacutebase e os da Ciropedia
percebe-se primeiramente por meio das tabelas comparativas compostas que na primeira
obra a maior parte dos discursos eacute proferida para uma assembleia de tropas (Tipo 4)
enquanto que na segunda estes satildeo exortados apenas para os capitatildees (Tipo1) Para Juan
Carlos Iglesias Zoido a frequecircncia com que Ciro o Grande exorta apenas seus capitatildees eacute uma
justificativa para uma polecircmica passagem da Ciropedia (3348-55) em que o conquistador
persa apesar de ter autoria de diversas arengas militares ao longo da obra menciona para
Crisantas um de seus comandantes a inutilidade das arengas militares Considerando que
Ciro o Grande eacute a personificaccedilatildeo do general e estadista ideais eacute difiacutecil conceber que ele
possa ter uma opiniatildeo diversa a respeito da utilidade das arengas do que o protagonista da
Anaacutebase o proacuteprio Xenofonte
Este trabalho apropriando-se de uma tipologia assim como Zoido propotildee uma
explicaccedilatildeo alternativa para tal passagem contraditoacuteria que por sua vez explica as concepccedilotildees
do autor em torno das arengas militares
De uma forma geral o eacutethos do general exemplar presente nas duas obras exorta um
discurso quando possui identidade com o auditoacuterio para formular um discurso deliberativo
aleacutem de epidiacutectico Os discursos meramente de caraacuteter epidiacutecticos ou seja aqueles que
almejam motivar apenas por serem belos ndash como eacute o caso do discurso do rei assiacuterio que exorta
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para um auditoacuterio verdadeiramente multieacutetnico ndash natildeo costumam surtir efeito Existe a exceccedilatildeo
de um caso especiacutefico que compreende a epipolesis ao final da trama o que parece constituir
um padratildeo nas obras de Xenofonte que contam com arengas militares em sua composiccedilatildeo
Nas trecircs obras Anaacutebase Ciropedia e Hellecircnica ocorre uma batalha voltada para o final da
histoacuteria em que um general exorta um discurso em uma revista de tropas Satildeo as uacutenicas
epipolesis no trabalho de Xenofonte que dispotildeem mais do que breves palavras
Analisar a noccedilatildeo de pertencimento nas obras com o meacutetodo comparativo de anaacutelise
retoacuterica entre obras deu luz a novos problemas como passagens contraditoacuterias nas obras e a
necessidade de compreender padrotildees literaacuterios De uma forma ou de outra a retoacuterica continua
sendo a ferramenta a meu ver mais adequada para tal
A investigaccedilatildeo a respeito das arengas militares eacute uma aacuterea vasta e cheia de pontos
interessantes a serem pesquisados mais profundamente assim como o satildeo os estudos em torno
da retoacuterica nos quais se destaca a adoccedilatildeo dos conceitos de Michel Meyer que contribuiu
muito para esta pesquisa considerando que negociar a diferenccedila eacute significativamente propiacutecio
para um estudo voltado agrave identidade comunitaacuteria Espera-se que a utilizaccedilatildeo de tais premissas
possa continuar auxiliando em futuras pesquisas sobre o tema
73
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