Universidade de Lisboa – Faculdade de Letras
Pós-doutoramento em Estudos Artísticos e Estudos de Cultura.
A estatuária e a escultura figurativa urbana.
Conceptualização de estatuária
no espaço urbano
Ana Paula Gil Soares
Abril de 2012
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Pós-doutoramento em Estudos Artísticos e Estudos de Cultura
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Conceptualização de estatuária
no espaço urbano
Ana Paula Gil Soares
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Conceptualização de estatuária no espaço urbano
(resumo)
O termo estátua, do latim statua, que melhor caracteriza os largos milhares de
esculturas figurativas nos espaços urbanos europeus, nem sempre foi de aceitação
pacífica ou adesão entusiasta.
Através do estudo semântico comparado do conceito "estatuária urbana" em
diversas línguas da família do Indo-Europeu e da análise de diversas obras de estatuária
implantadas no espaço exterior urbano, demonstramos que a estatuária dos séculos XX
e XXI, embora distanciando-se dos modelos da escultura do século XIX, continua a
incluir nas suas representações alguns traços semânticos que a identificam agora como
género claramente diferenciado de outras formas de realização escultórica. Estes
aspectos definidores centram-se na representação figurativa e na noção de memória e
homenagem.
A estatuária urbana que observamos disposta pelo tecido urbano das aldeias,
vilas e cidades apresenta também uma narrativa scripto-visual que documenta a história
e a vivência local através da dimensão material e imaterial.
Este é o valor de memória e civilização que marca a estatuária urbana enquanto
marco territorial de identidade, contribuindo para a preservação e salvaguarda do
património material etnográfico e bem assim do património imaterial linguístico e
etnológico.
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Conceptualisation de statuaire dans l'espace urbain
(résumé)
Le mot statue, du latin statua, est la meilleure définition pour la statuaire dans
l'espace urbain à l’air libre. Mais, ce mot n'est pas toujours tranquillement accepté.
À travers l'étude sémantique comparée du concept "statuaire urbaine " en
plusieurs langues de la famille indo-européenne et l'analyse de diverses oeuvres
statuaire implantées dans l'espace extérieur urbain, nous démontrons que la statuaire des
20ème et 21ème siècles, bien qu'en s'éloignant des modèles de la sculpture du siècle 19,
elle continue à inclure dans leurs représentations quelques traces sémantiques qui
l'identifient maintenant comme genre clairement différent d’autres objets sculptoriques.
Ces aspects sont axés dans la représentation figurative et dans la notion de mémoire et
hommage.
La statuaire urbaine que nous observons disposée par le tissu urbain des petites
villes, villages et villes présente aussi une narration scripto-visuelle qui documente
l'histoire et l'expérience locale à travers la dimension matérielle et immatérielle.
Celui-ci est la valeur de mémoire et civilisation qui marque la statuaire urbaine
comme marque territoriale d'identité, en contribuant à la conservation et préservation
du patrimoine matériel ethnographique et bien ainsi du patrimoine immatériel
linguistique et ethnologique.
Konzeptualisierung von Bildhauerei im öffentlichen Raum
(Resümee)
Das Wort Statue, vom lat. statua abgeleitet, ist die beste Begriffsbestimmung für
die Bildhauerei im öffentlichen Raum in Europa. Aber dieses Wort ist weder friedlich
noch begierig akzeptiert worden.
Durch eine vergleichende semantische Forschung von dem Konzept
„Bildhauerei im öffentlichen Raum“ in verschiedenen Sprachen aus der Familie der
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indoeuropaischen Sprachen, und die Untersuchung vieler bildhauerischen Werke im
städtisch-öffentlichen Raum, wird gezeigt, daβ die Bildhauerei im öffentlichen Raum
im 20. und 21. Jahrhundert, obwohl sie sich von den Mustern von dem 19. Jahrhundert
entfernt, enthält noch in ihren Darstellungen viele semantische Zeichen, die sie nun als
Gattung klar unterschiedlich von anderen Skulpturen definieren. Diese semantischen
Zeichen haben im Mittelpunkt die bildende Darstellung und die Idee von Gedächtnis
und Huldigung.
Die Bildhauerei im öffentlichen Raum in Dörfer und Städte stellt auch eine
scripto-visuelle Erzählung, die die Geschichte und die lebendigen und lokalen
Erfahrungen durch ihre materiellen e immateriellen Dimensionen dokumentiert, vor.
Das ist das Wert von Gedächtnis und Kultur, das die Bildhauerei im öffentlichen
Raum ab 20. und 21. Jahrhundert als Identität Landmark kennzeichnet.
Daher spielt die Bildhauerei im öffentlichen Raum eine wichtige Rolle zur
Bewahrung und Schutz des materiellen und ethnographischen Kulturerbes ebenso auch
des immateriellen Kulturerbes der Sprachen.
Conceptualization of statuary in the urban space
(abstract)
The word statue, of Latin origin statua, is the one that best defines the great
majority of statuary works in the urban open air space. However, it has not always been
peacefully or eagerly accepted.
Through a comparative semantic study of the concept "urban statuary" in
different languages of the Indo-European family and the analysis of many works of
statuary erected in the public open air urban space, we demonstrate that the statuary of
the 20th and 21st centuries, although moving away from the models of the 19th century
sculpture, keeps on including in its representations several semantic traces that define it
now as a genre clearly different from other sculptures. These defining aspects are
centred on the figurative representation and on the notion of memory and homage.
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The urban statuary that we see displayed throughout the urban tissue of villages,
towns and cities also presents a scripto-visual narrative which documents the history
and the local living experience through its material and immaterial dimensions.
This is the value of memory and culture that marks the urban statuary from the
second half of the 20th century and 21st century on as an identity territory landmark,
thus contributing to the preservation and safeguarding of ethnographic material heritage
as well as language immaterial and ethnological heritage.
Palavras-chave
estátua estatuária urbano património memória
Mots-clefs
statue statuaire urbain patrimoine mémoire
Schlüsselwörter
Standbild Bildhauerei öffentlicher Raum Kulturerbe Gedächtnis
Key words
statue statuary urban space heritage memory
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Índice
Introdução ................................................................................................................. 8
1. Delimitação do conceito “estatuária urbana”.................................................... 9
2. Estudo comparado da semântica dos termos estatuária, estátua e escultura ..... 19
3. O valor civilizacional da estatuária..................................................................... 36
4. Observação final ................................................................................................. 50
Bibliografia ............................................................................................................. 51
Dicionários.............................................................................................................. 54
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Introdução
Para definir o conceito de estatuária urbana e melhor caracterizar a abrangência
das imagens tridimensionais que povoam os espaços urbanizados, é essencial um estudo
semântico comparado em diversas línguas da família do Indo-Europeu acerca do
conceito de estatuária, uma vez que se verifica uma larga predominância desta forma
escultórica por todo o espaço europeu. Também tem emergido nos anos recentes o
interesse em vários países pelo levantamento e observação desta forma de arte,
sinalizando um espaço para estudos mais aprofundados que mostre a importância desta
arte.
A conceptualização de “estatuária” pode ser mais efectiva nos dias de hoje com
o conhecimento do uso do conceito ao longo do tempo; ao nível lexical nas diversas
línguas que o utilizam bem como a respectiva articulação deste termo com outros
conceitos que lhe estão associados.
O presente trabalho procura através do estudo semântico comparado e da análise
de diversas obras de estatuária implantadas no espaço exterior urbano, mostrar a
importância desta forma de arte na construção dos valores de cidadania, de memória e
de identidade patrimonial e bem assim a importância da sua preservação e salvaguarda.
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1. Delimitação do conceito “estatuária urbana”
São as pessoas que constroem os significados no espaço urbano. Constroem-nos
com a sua história, com os seus bens, com os seus afectos, com as suas emoções e
salvaguardam a sua memória através da preservação desse espaço comum. A memória
inscrita no património que transmitem às gerações vindouras constitui um dispositivo
estruturante da identidade cultural, histórica e vivencial das comunidades. São os
valores e os bens culturais que são perpetuados através do testemunho manifesto quer
no património material quer no património imaterial que encontramos na nossa vivência
urbana.
As obras de arte no espaço público urbano são disso um exemplo. Porém, nem
sempre as pessoas têm poder directo de decisão sobre as obras de arte que são
implantadas no espaço exterior público das suas aldeias, vilas e cidades. Efectivamente,
tais resoluções residem nas salas do poder político e económico e são muitas vezes
alheadas do entendimento e vivência das pessoas nos locais. Há, no entanto, casos de
subscrições públicas que envolvem decisões ao nível das assembleias de cidadãos do
poder local. É o caso da obra Os Perseguidos de Pedro Anjos Teixeira, em Almada, a
qual constitui uma homenagem do povo do concelho “Aos que deram a liberdade e até a
própria vida pela liberdade dos outros, homenagem do povo do concelho 24-6-79” tal
como se lê na inscrição no plinto da peça.1
1 Cf. Soares (2009: vol. 2/ CD): Os Perseguidos [IDSL:366]. A obra original data de
1969, sendo que foi adquirida pela Câmara Municipal de Almada posteriormente como homenagem ao
povo do concelho. Segundo a Acta da reunião de 6/4/79 – aprovação da proposta de aquisição do original
da peça escultórica de 1969 intitulada “Os Perseguidos” e Acta da Reunião de 21/10/77. 6 – Deliberações
D) Cultura e Assistência. Câmara Municipal do Concelho de Almada.
Cf. também Vieira (2001: 345 e 346): “O conjunto escultórico Os Perseguidos
encontra-se na Praça do Movimento das Forças Armadas, em Almada, Portugal e é da autoria do escultor
Pedro Anjos Teixeira. […] Neste concelho, muitos foram os perseguidos por estes motivos de natureza
política e social […]. A obra original data de 1969, sendo que foi adquirida pela Câmara Municipal de
Almada posteriormente, e pelo valor de 25000$00, dado o interesse da mesma para o concelho.”.
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Muitas vezes notamos que a arte pública, ou antes a actuação sob o conceito arte
pública tem vindo a adquirir uma dimensão global nos propósitos de intervenção no
espaço urbano. A mesma reflecte com alguma frequência não só intenções de
provocação dos valores culturais originais das populações locais mas também a
desconstrução de valores de identidade e memória cultural das comunidades, pois
carecem de elementos que identifiquem a cultura local e que cuidem a respectiva
memória.
A inclinação para estereótipos duma cultura global massivamente imposta pelos
meios de comunicação criou um unanimismo em torno do conceito de “arte pública”
que é importante repensar. Um dos pontos de partida é justamente o conceito de
“estatuária”, já que salvo algumas excepções de autores que nesta rubrica tratam de um
conjunto de obras de estatuária em paralelo a conjuntos com outros géneros
escultóricos, a maioria refere-se à chamada “escultura contemporânea”, esquecendo o
grosso de imagens com figura humana e animal, efectuadas na segunda metade do séc.
XX, como se estas não fossem escultura nossa contemporânea.
Por outro lado, a promoção da “escultura contemporânea” como tendência
global incide sobretudo na noção de criatividade enquanto transgressão quer das formas
e modos escultóricos quer dos significados, procurando assim intervir no espaço
público.
É certo que há obras neste domínio interessantes que intervêm plasticamente
animando os espaços, mas não se pode monopolizar tudo na “arte pública”, pois
também avultam muitas obras completamente destituídas de interesse que se
manifestam mais como eco já muito repetido da saturação global, sem significado para
o local onde estão.
Os tempos que correm são outros, já diferentes do século XX, são tempos de
crise profunda no plano económico e ao nível social e ambiental. São precisos novos
caminhos, novas atitudes tanto quanto salvaguardar as memórias do passado.
O estudo da escultura considerando a estatuária urbana vem preencher a lacuna
criada pela arte pública. Não se chocam mas antes se complementam, animando uma
dialéctica de opostos ao apresentar um contraditório ao modelo global dominante.
O fenómeno global denominado por “arte pública” ao ar livre pode revestir
produções bidimensionais ou tridimensionais sob a forma de graffitis, intervenções e
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instalações efémeras, murais, esculturas, outdoors publicitários, arte na paisagem
(landart), mobiliário urbano, monumentos, etc. Ou seja, praticamente qualquer artefacto
colocado ao ar livre com a intenção de obra de arte é incluído na categoria “arte
pública”.2 Esta actuação sobre o conceito “arte pública” gera a implantação no tecido
urbano de objectos indiferenciados que não transportam qualquer traço semântico de
afectividade, de história e de memória dos cidadãos das respectivas comunidades. Aliás,
parece-nos que este uso indiferenciado do conceito poderá ter na sua base a deslocação
semântica do sujeito “cidadão” para o sujeito “artista”, este visto como o centro e o alvo
mais importante da arte presente no tecido urbano.3
É interessante ainda observar que estas representações de “arte pública” e “arte
urbana” surgem integradas no contexto de uma cultura global contemporânea, a qual é
tendencialmente conotada como o rompimento com os paradigmas da elitização da arte.
Mas, a divulgação da informação e da cultura ao nível planetário devido à Internet e à
liberdade na Web e às novas tecnologias não é a mesma coisa do que a globalização da
cultura.4 Efectivamente, cremos que a liberdade na Web5 e o acesso livre e gratuito à
2 Como Arte Pública entende-se “o conjunto de artefactos de características
eminentemente estéticas que mobilam o espaço público” (podendo abranger o desenho do espaço, o
paisagismo, a escultura ou até performances) A. Remesar in P. Brandão e A. Remesar (2000: 67). Ou
ainda, “[…]a Arte Pública aparece como um campo expandido das artes, fazendo com que diversas
manifestações artísticas possam ser a ela relacionadas, de acordo com seu caráter. As categorias que a
Arte Pública abrange se apresentam de acordo com sua atuação, que pode aparecer na forma de
intervenções efêmeras, ligadas à ação e à performance; como obras tridimensionais, a exemplo de
esculturas, monumentos arquitetônicos e mesmo o mobiliário urbano […]”, Guilherme Freitas (2009:
1946). 3 Precisamente, notamos que ensaios sobre arte pública colocam o “artista” como o
centro prototípico do conceito, sendo que as “pessoas” e os “cidadãos”, ou seja, as comunidades e o seu
património e a sua memória histórica e cultural aparecem como significados mais periféricos ao conceito.
Por exemplo, Calado (2011: 96) comenta acerca da arte pública que " A liberdade trouxe aos artistas a
consciência de que a forma só por si não tem significado. ". 4 A própria noção de globalização encerra hoje posições que não são consensuais. 5 Cf. “SOPA, PIPA would change free and open web” - 19.01.2012. RT - russia Today ©
Autonomous Nonprofit Organization “TV-Novosti”, 2005–2012.
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cultura e à arte e bem assim a livre circulação de bens e pessoas não são a mesma coisa
do que a imposição de uma cultura global dominante que muitas vezes apaga a memória
cultural local. A este propósito, Gumbrecht (2004) aponta a globalização como um
mapeamento semântico e pragmático da própria pós-modernidade. No entanto, é
necessário reflectir se "our desire to fill the present with memories and even with
artifacts from the past, and our technical possibilities to do so" (Gumbrecht, 2004: 12) é
a consequência natural e a reacção à imposição de uma cultura global des-
referencializada6. Pois, o que notamos através de alguns artefactos culturais e artísticos
dispostos pelo tecido urbano das nossas aldeias, vilas e cidades pode bem ser descrito
pela classificação 'des-referencialização', a qual resulta da exportação e expansão de um
estilo cultural dominante apagando a memória, a história e a identidade local.7
Por exemplo, em Praga (República Checa) podemos observar na torre de
telecomunicações da cidade (Torre Žižkov) uma representação escultórica com dez
figuras de bebés no acto de gatinhar ao longo do tubo da torre. Trata-se de uma obra de
David Černý, titulada Miminka [bebés], a qual começou por ser uma instalação criada
para o evento “Praga, Cidade Europeia da Cultura – 2000”. Porém, após decisão das
autoridades responsáveis, os bebés trepadores por ali ficaram. Esta torre de
telecomunicações com 216 metros de altura representa em Praga o equivalente à Torre
de Londres BT (London's BT Tower). Apesar de planeada durante os anos 70 na então
Checoslováquia, durante o regime comunista, só foi concluída depois da Revolução de
Veludo e da queda do Comunismo. É um dos edifícios mais marcantes da capital checa
e da arquitectura high-tech: com uma estrutura atípica de três pilares, os quais sustentam
os transmissores, um café-restaurante e três salas com uma vista panorâmica sobre
Praga, ali funciona também um observatório meteorológico. Na Torre Žižkov
encontramos as seguintes inscrições numa chapa metálica: «DAVID ČERNÝ
http://rt.com/news/sopa-jay-walsh-wikipedia-137/ (20.01.2012).;”Anti-ACTA day:
Angry crowds take action” - 12.02.2012. RT - russia Today © Autonomous Nonprofit Organization “TV-
Novosti”, 2005–2012. http://rt.com/news/acta-protests-rallies-europe-089/ (15.02.2012). 6 “de-referentialization” segundo Gumbrecht (2004: 13 e 14). Não mencionaremos aqui a
questão da descontinuidade espacial. 7 Lembramo-nos dos outdoors publicitários que anunciavam a bebida Coca-Cola como o
acompanhamento gostoso para as sardinhas assadas portuguesas.
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MIMINKA BABIES NA REALIZACI PROJEKTU SE PODILELI MĔSTSKÁ ČÁST
PRAHA 3 MAGISTRÁT HLAVNÍHO MĔSTA PRAHY» 8.
8 Tradução nossa: “DAVID CERNÝ bebés MIMINKA é um projecto realizado pelo
município de Praga 3 e pela Câmara de Praga.”.
Fig. 1- Diversas vistas da Torre Žižkov com as figuras afixadas dos bebés gatinhando no sentido ascendente.
Fig. 2 - Inscrições em chapa
metálica na Torre Žižkov.
Fig. 3- Pormenor de uma das figuras.
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A conceptualização da infância através da representação de bebés com cabeças
sem rosto que em fila trepam gatinhando pela torre, numa posição sem qualquer
intercomunicabilidade, com os rostos virados para a frente e uma ranhura não
corresponde à nossa dimensão experiencial da infância. Trata-se de uma
conceptualização absurda e até provocatória que representa a idade da infância através
da apresentação de figuras esculpidas de bebés num gatinhar autista, a qual não denota
qualquer verosimilhança com a realidade.
Deste modo, à grande Torre Žižkov, último símbolo tecnológico do regime
comunista, foram acrescentados os bebés Miminka de David Černý. Efectivamente, esta
composição plástica com os bebés gatinhadores poderia ter sido instalada em qualquer
torre em qualquer local do planeta, pois o seu significado é globalmente indiferenciado
– é uma obra de arte pública global sem qualquer significado de memória ou identidade
cultural. Sendo destituída dos valores de civilidade e sem quaisquer referentes
simbólicos de identidade, é uma obra que, embora escultórica e figurativa, carece de um
significado que a torne num valor cultural local.
Portanto, temos aqui no centro o artista que teve um dia uma alucinação de
colocar no espaço exterior da cidade as suas criações plásticas no sentido de perverter a
memória histórica e patrimonial local do regime comunista. É um objecto despojado de
história e de memória que se resume à dimensão estética e funcional da temporalidade
quotidiana. Este é o significado da arte pública global, na qual não há referentes de
memória mas apenas a posição subjectiva e provocatória do autor que pretende uma
resposta semelhante do observador. O apagamento da memória colectiva e dos valores
cívicos de identidade através da provocação representa precisamente um dos traços
semânticos mais centrais ao conceito “arte pública” globalizada.9
A consciência cultural histórica e social é essencial para a preservação da
memória e da identidade. A estatuária urbana apresenta os referentes semióticos que
9 Efectivamente, Synek (2010) refere que "A contemplação passiva e reflexiva diante de
um memorial perante um mundo de memórias é substituída por uma intervenção activa do espectador em
diferentes parâmetros, podendo mesmo este tomar o seu lugar e servir como uma provocação, gerando um
efeito inesperado. A obra tende assim a provocar o observador. Daí Leonel Moura ter mencionado que:’
A obra de arte só vale por aquilo que provoca no observador.’".
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possibilitam aos cidadãos o conhecimento e a preservação da memória e da identidade
através da fruição directa destas obras de arte no espaço exterior das cidades, vilas e
aldeias.
O significado e implicações da arte na sua relação com o contexto, o espaço
urbano e as pessoas espelham as imagens da memória colectiva através das inscrições e
das imagens que apresentam. Tal como podemos observar no gráfico10 seguinte, grande
parte das obras contém inscrições na língua local. É, portanto, a dimensão do
património linguístico imaterial associado à apresentação escultórica da imagem que
evoca e representa a memória e homenageia a cultura e o património material e
imaterial local.
10 Cf. também Vieira (2009: 256).
Fig. 4 - Percentagem de idiomas nas inscrições.
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Nesse gráfico notamos que numa amostra de 500 imagens de estatuária urbana,
apenas 29,8% não têm inscrições (s.i.), o que dá 70,2% para as obras que têm
inscrições. Tal como consta no gráfico, as inscrições são dispersas pelos vários idiomas
correspondentes aos locais onde foram efectuados os levantamentos.
A estatuária e a escultura urbana com referentes figurativos locais são exemplos
de bens culturais que encontramos no espaço exterior das nossas aldeias, vilas e cidades
e que são documentos vivos e manifestações do património material e do património
imaterial. A diversidade cultural e a identidade cultural são aspectos que podemos
observar na implantação da estatuária cívica pelo espaço urbano, uma vez que assentam
em padrões a partir dos quais se podem inferir relações de pertença, de memória e de
história dos cidadãos.
A estatuária está intrinsecamente ligada ao simbolismo das diferentes regiões
representando vivências comuns relacionadas com as culturas originais das localidades
onde são implantadas.
Efectivamente, a estatuária e a escultura figurativa urbana evocam na sua forma
e no envolvimento linguístico que lhe está associado as tradições orais do local onde
estão implantadas, como lendas ou contos, expressões idiomáticas, ou ainda áreas de
actividade que assumiram ou ainda assumem alguma relevância nos afectos e na
memória das populações locais. Deste modo, a narrativa scripto-visual da estatuária e da
escultura figurativa urbana (como demonstrado no gráfico supra) denota aspectos da
história e da memória das pessoas e dos cidadãos, criando dimensões da identidade.
Este facto deve-se ao referente das representações figurativas, o qual constitui sempre
uma motivação semântica, não só na sua realização material mas também na sua
realização imaterial.
Através de consulta bibliográfica diversa sobre estatuária, notámos que é comum
a classificação desta forma de arte no espaço exterior numa corrente neo-académica e
que este epíteto denota algum tom depreciativo. Quase como se fosse inevitável
contrariar o academismo do Renascimento ou da Antiguidade Grega e Romana. Assim,
para além do epíteto "neo-académico" encontramos também com frequência a
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classificação "naturalista" para assinalar a estatuária urbana que tem emergido no
espaço ao ar livre das aldeias, vilas e cidades ao longo do século XX e no século XXI.
É claro que existem elementos compositivos que distinguem conceptualmente
(do ponto de vista semântico e do ponto de vista pragmático) esta estatuária quer da
Idade Média quer dos modelos do Renascimento e dos modelos neo-clássicos, tal como
explanamos no ponto 3. desta nossa investigação.
Por exemplo, em Gonçalves (1986) é mencionada a procura em "contrariar o
academismo" quando se aponta a encomenda de escultura do Estado Novo; Matias
(1986: 135) refere a tendência naturalista na escultura que, de uma forma incomparável,
integrou "o ensino clássico tradicional em obras [...] de grande qualidade e
originalidade". O Lavrador de Costa Mota Tio (em Lisboa), cuja ilustração é
apresentada (Matias, 1986), constitui um exemplo da dimensão didáctica e dos valores
de cidadania da estatuária urbana. Mas também em publicações estrangeiras (em suporte
papel e online) notamos que a estatuária carece de uma teoria que impulsione os seus
estudos e a própria divulgação da obra que tem sofrido um grande incremento a partir
da segunda metade do século XX. Caspar (2003 e 2004) nomeia no título das suas obras
sobre estatuária de Berlim os tipos representados e os materiais. Em Caspar (2003) são
referidos os materiais – mármore, pedra e bronze – no título para contar a história dos
monumentos históricos de Berlim, desde figuras da mitologia (deusa da vitória ou a
Quadriga), personalidades (académicos e escritores como Humboldt ou Brecht,
militares como Friedrich der Groβe, simbologia da cidade (o urso de Berlim ou o
Roland), monumentos militares (memorial soviético como sowjetisches Ehrenmal), etc.
Caspar (2004) é dedicado exclusivamente ao Estado de Brandenburg e às figuras que
contam a sua história, ou seja, os seus príncipes e heróis (monarcas e generais).
Como temos observado a partir dos diversos levantamentos que efectuámos, e
pela consulta documental quer em livros quer na Internet11, observando-se as
respectivas datas, verifica-se que a produção de estatuária não só não estagnou como até
mesmo aumentou, o que mostra o também crescente interesse por esta forma de arte.
11 Por exemplo.: Bildhauerei in Berlin em: http://www.bildhauerei-in-berlin.de/index.html ;
Mens & Dier in Steen & Brons em: http://www.krogtweb.nl/standbeelden; Sculptures à Bruxelles et en
Belgique em : http://www.sculpturepublique.be/; Københavns Kommune – Monumenter, em www.vejpark.kk.dk/monumenter; Malmöstad – Konstguiden [Guia de arte da cidade de Malmo], http://www.malmo.se/konstguide; Brunnen - Denkmale – Kunst in Göttingen em: http://www.denkmale.goettingen.de/index.html; entre outros.
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Por isso, consideramos necessário divulgar e estudar esta forma de arte. Tentar
perceber a dimensão cultural e artística da mesma e os valores de cidadania e memória
que a estatuária representa. É preciso ler as imagens escultóricas, ver as diversas vistas,
ler as datas, registar as inscrições, observar os registos etnológicos e etnográficos da
iconografia escultórica. Enfim, cartografar e mapear a dimensão patrimonial desta
forma de arte dispersa pelo tecido urbano das nossas aldeias, vilas e cidades com a qual
interagimos e que nos desperta afectos, vivências e os laços que temos com a nossa
história e cultura.
Tal como iremos demonstrar, em termos dos modelos estruturais das formas,
em pouco ou nada a estatuária difere da escultura figurativa. Já a diferença significativa
entre “arte pública” global e estatuária e escultura figurativa urbana reside na cultura do
referente. Na cultura da memória possível acerca do referente. Por isso, a estatuária é
também uma questão semiótica: linguística e semântica.
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2. Estudo comparado da semântica dos termos estatuária,
estátua e escultura
A fim de melhor entendermos a dimensão cultural e patrimonial da estatuária e
escultura figurativa urbana, vamos explorar os diferentes significados associados ao
conceito.
No alemão encontramos os termos Standbild – Statue – Bildhauerei – Plastik e
Bild para referirem uma composição plástica tridimensional figurativa. Assim,
Standbild refere-se a uma figura esculpida de pé, cuja melhor definição corresponde ao
latim Statua ou Bildsäule. Este sentido de verticalidade da imagem está ainda presente
no termo Bildsäule [imagem em forma de coluna], sendo que o mesmo é indicado como
um neologismo do séc. XVIII, próximo do termo statua, a partir da designação
“standbilder der heiligen“, ou seja imagens de santos em pé.12 Quer os termos Statue,
Bildsäule ou Standbild derivam do significado prolixo do grego αγαλµατα, entrando
pelo latim Statua no francês e no inglês com statue, diferindo apenas na pronúncia,
sendo que os mesmos referem-se a uma figura com forma humana ou de animal.13
Os primeiros registos do termo Statue remontam ao séc. XVII, ainda com a
forma escrita em latim, donde se pode concluir que a origem do termo será o latim, pois
aparece em muitos textos e inscrições de estátuas ainda com a ortografia do latim. Da
mesma maneira, a apresentação de figuras em pé é designada pela palavra statue, à qual
corresponde a tradução standbild:
„[…] am häufigsten werden die gestalten stehend dargestel l t , und so wird auch
gewöhnlich das wort statue verstanden, wie die übersetzung standbild zeigt[…]. (DWB,
1971: Bd. 17, Sp. 1048 bis 1056).14
12 Cf. DWB (1971: Bd. 17, Sp. 731 bis 734).
13 Cf. Krünitz (1773 – 1858: Bd. 1-242).
14 Tradução nossa: „frequentemente as figuras são apresentadas de pé, e é também assim que é entendida
mais comummente a palavra statue, tal como demonstra a tradução para o alemão standbild […]”.
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20
Podemos verificar na ilustração que
seguidamente incluímos da estátua de
Desiderius Erasmus de 1622 (séc. XVII), em
Rotterdam na praça Grotekerkplein nos
Países Baixos, que o termo statua do latim é
utilizado para designar esta estátua.
Efectivamente, Standbeeld do neerlandês, ao
qual equivale Standbild do alemão, já existe
no léxico do séc. XVII. A inscrição em latim
que se encontra na vista frontal do plinto foi
traduzida pelo poeta Joachim Oudaen (1628-
1692) de Roderdão em documentação da
época. Assim, registamos a expressão
“staande-beeld van koper”, ou seja, “estátua
[standbeeld, nld] de bronze” a partir do
termo que se encontra no texto em latim na
face frontal do plinto da estátua.15
Na face frontal do plinto, em latim, lê-se:
«DESIDERIO ERASMO
MAGNO SCIENTIARVM ATQUE LITTERATVRAE
POLITIORIS VINDICI ET INSTAVRATORI
VIRO SAECVLI SVI PRIMARIO
CIVI OMNIVM PRAESTANTISSIMO
AC NOMINIS IMMORTALITATEM SCRIPTIS
AEVITERNIS IVRE CONSECVTO
S.P.Q. ROTERODAMVS
15 Tradução nossa. Segundo René e Peter van der Krogt, o pedestal é de 1677 (cf. René en Peter van der
Krogt. Mens & Dier in Steen & Brons. ”Desiderius Erasmus”.
http://www.vanderkrogt.net/standbeelden/index.php (30.03.2012).
Fig. 5 - Estátua de Desiderius Erasmus.
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21
NE QVOD TANTIS APVD SE SVOSQVE POSTEROS
VIRTVTIBVS PRAEMIVM DEESSET
STATVAM HANC EX AERE PVBLICO
ERIGENDAM CVRAVERUNT».16
Na tradução do poeta Joachim Oudaen:
«Ter eeren van DESIDERIUS ERASMUS
Dien grooten Voorstander, en Hersteller, / Der Wetenschappen, en der
keurelijker Letterkunde, / Dien voornamen Man zijner eeuwe, / Dien boven
Allen aldervoortreffelijksten Burger; … Heeft DE RAAD EN’T VOLK VAN
ROTTERDAM … Dit staande-beeld van koper, op ’s Stads kosten, / Bevolen
16 Sublinhado nosso.
Fig. 6 - Inscrição na face frontal do plinto estátua de Desiderius Erasmus.
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22
opgerecht te worden.».17
Do latim „statvam“, na inscrição do texto em latim no plinto da figura (cf. figs. 6
e 7), traduzido para “staande-beeld” no neerlandês do século XVII por Joachim Oudaen.
Considerada por muitos a estátua de bronze mais antiga da Europa, é
interessante notar como a representação escultórica de Desiderius Erasmus teve outros
antecedentes na cidade que o viu nascer em 1469. Já no ano de 1557 tinha sido
implantada na cidade uma estátua de pedra de Erasmus. Mas, aquando da ocupação
espanhola de Roterdão, a mesma foi destruída. Todavia, e dada a aclamação e prestígio
que Erasmus tinha como eminente humanista, a ideia de erigir uma estátua a este
notável homem das letras manteve-se. Pensa-se inclusivamente que terá existido uma
estátua em madeira anterior à actual em bronze e que a mesma terá também
desaparecido. Finalmente, em 1618, Hendrick de Keyser, famoso arquitecto e escultor
17 Sublinhado nosso. Cf. também Standbeelden van Erasmus in Rotterdam: 1549 – 2008.
Stichting Erasmushuis Rotterdam.[*.pdf].
Fig. 7 – Detalhe das inscrições no plinto da estátua de Desiderius Erasmus onde se encontra a
palavra „statvam“.
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23
de Amsterdão, recebeu a encomenda para realização da estátua de Erasmus, a qual foi
implantada em 1622.
Esta estátua de Desiderius Erasmus cativou desde o início, pois a sua dimensão
maior do que o natural e a modelação, na qual é visível a ilusão de movimento, como se
a figura estivesse a caminhar ao mesmo tempo que segura na mão um livro aberto e
concentrada na leitura do mesmo, imprime um evidente naturalismo à pose do
académico humanista.
Mas a história agitada desta estátua não termina com a sua implantação em
1622. Em 1674, foi apeada e armazenada provisoriamente, pois a ponte onde se
encontrava estava em risco de derrocada. Nesse momento, pensou-se em oferecê-la à
cidade onde Erasmus tinha falecido, Basileia. Em 1677, foi colocada num novo pedestal
com inscrições de textos do latim traduzidos por Joachim Oudaan. Em 1940 a estátua
sobreviveu aos bombardeamentos da cidade de Roterdão e em 1964 foi colocada no
local actual, Grotekerkplein, sendo que o pedestal de 1677 foi substituído por uma
cópia. Ainda em 1996, a estátua caiu do pedestal. Após restauração da mesma,
regressou à praça da igreja em Grotekerkplein onde ainda pode ser admirada por todos
no espaço exterior e ao ar livre da bonita cidade portuária de Roterdão.18
Assim, podemos concluir que o conceito “estátua”, que deriva do étimo latino
statua, é utilizado por referência à representação figurativa escultórica de
personalidades ilustres, com uma dimensão cívica, e que o traço semântico que é o
sentido de verticalidade da representação figurativa surge associado ao sentido de
homenagem e memória da comunidade onde a obra é implantada pelos laços que a
mesma evoca com o local.
Porém, para o plural já encontramos a forma alemã statuen, com a terminação -
en própria da ortografia alemã, referindo-se a mesma a imagens [bilder] modeladas em
semelhantes materiais. Na segunda metade do séc. XVII, o acento tónico mudou por
influência do francês, deslocando-se para a segunda sílaba, passando-se assim também a
escrever statüe.
18 Cf. Standbeelden van Erasmus in Rotterdam: 1549 – 2008. Stichting Erasmushuis
Rotterdam.[*.pdf] (passim).
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24
Mas o uso da palavra Statue no séc. XVIII é discutível. Alguns classificam-na
depreciativamente de palavra estrangeira, à qual corresponde também comummente no
início o termo bildnis (representação, retrato de uma pessoa), ou ainda mais
frequentemente bild, termo que também já significava anteriormente representações
plásticas, ou mais precisamente imagem esculpida, como em marmorbild (imagem de
mármore), steinbild (imagem de pedra), schnitzbild (imagem de madeira). E ainda
designava uma grande imagem de madeira bloch-bild, à qual corresponde statua. Em
Lutero já encontramos bildsäule, mas outros autores sustentam que bildsäule referem-se
apenas às chamadas cariatides e atlantes, as quais são colunas em forma de figura
feminina. O mais comum é standbild que aparece apenas no séc. XVIII e que começa a
surgir com o significado de statue.19
De um modo geral, os dicionários de língua alemã consultados definem
prototipicamente statue como uma figura de vulto completo em pé; mas as definições
periféricas ao conceito prototípico statue integram também os bustos, ou seja a parte
superior da figura, quer apenas a cabeça quer a cabeça e o tronco, no mesmo conceito.
Consequentemente, a definição de statue é válida também para o todo ou parte da figura
humana que nas construções de edifícios aparecem em lugar de colunas ou pilares ou
em ligação com estas como suporte para a cobertura.
A clarificação do conceito decorre quer do material e da técnica de construção
quer do objecto representado. Uma imagem criada pela arte, no alemão bild, é uma
representação de um todo, seja uma pintura que é uma representação de um todo numa
superfície plana seja uma estátua ou uma imagem esculpida [statue] que é uma
representação de um todo num espaço tridimensional. Os termos statuë e bildsäule
aplicam-se a uma representação figurativa de uma pessoa em madeira, em pedra, em
metal ou em outros materiais, independentemente do tamanho (tamanho natural,
tamanho mais pequeno ou maior do que o natural). Distinguem-se ainda nas estátuas
antigas as divinas, as heróicas e as augustas, sendo que as primeiras são de deuses, tais
como Júpiter, Março, etc., as segundas são de meio-deuses, como Hércules, etc., e as
últimas de imperadores, reis, príncipes e homens famosos aos quais se rende
19 Cf.DWB (1971:Bd. 17, Sp. 1048 bis 1056). Cf. Também EWdD (2000).
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25
homenagem (DWB, 1971: passim)20. De um modo geral, as estátuas representam
figuras humanas, mais raramente animais, excepcionalmente cavalos em ligação com
cavaleiros humanos, mais raramente leões, e ocasionalmente vacas, veados, entre
outros, as estátuas de alguém num trabalho distinto e imagens sublimes de figuras
humanas ou de animais, no sentido restrito desde que sejam representadas de pé ou, no
sentido mais alargado, noutra posição.21 É também muito comum a representação de
uma figura, nomeadamente de um príncipe a cavalo, ‘statuen zu pferde’, ou seja estátua
em cavalo, a qual corresponde ao francês ‘statue équestre’, i.e. estátua equestre. Por
oposição, as estátuas de pé passaram a ter a designação de "estátua pedestre" ou ‘statue
pédestre’ (em francês) e ‘stehende bildsäule’, figura em forma de coluna (em alemão),
notando-se assim o sentido de verticalidade central ao conceito statua. Outras propostas
para a língua alemã, com figura humana e animal equídeo são: coluna em forma de
cavalo, ‘pferdesäule’, coluna com imagem a cavalo, ‘reitbildsäule’ para estátua equestre
(equivalente a 'statue équestre', no francês) e coluna em pé, ‘standsäule’ para estátua
pedestre (o mesmo que 'statue pédestre', no francês) ou ainda ‘standbild’ para estátua
em pé.
Concluímos assim que as formas para a língua alemã correspondentes ao
conceito estátua derivam do termo statua em latim.22
Também na língua portuguesa e na língua francesa, o étimo latino statua está na
origem dos termos “estátua”, “estatuária”, “statue” e “statuaire”.
Assim, no português:
20 Cf. DWB (1971:Bd. 17, Sp. 1048 bis 1056): „[...] eintheilung zunächst nach dem
material, womit zugleich eine verschiedene technik der herstellung gegeben ist [...] nach dem gegenstande
der darstellung: man unterscheidet die alten statuen in divines, héroiques und augustes, von welchen die
erstern den göttern, als dem Jupiter, dem Mars etc. die zweyten den halb-göttern, als dem Herkules etc.
und die letztern den kaisern, königen, fürsten und berühmten männern zu ehren aufgerichtet worden.“. 21 Cf.DWB (id.: ibidem). 22 Cf. Adelung (1793-1801:Bd. 4, Sp. 289 bis 290): „Das Standbild, des -es, plur. die -er,
ein stehendes ausgehauenes Bild; ein Wort, welches das Lat. Statua bestimmter ausdruckt, als das
gewöhnlichere Bildsäule.“; LWB (1950-1977: Bd. 4, Sp. 261b bis 262a): „Statü (wie frz. — Pl. Statuën,
Statüen)“ e DWB (1971: Bd. 17, Sp. 1048 bis 1056): „STATUE, f.standbild, bildsäule. lehnwort aus dem
lat. statua.“.
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26
“Estatua, s.f . do lat. e i t . s tatua,[. .. ] fr . e ing. statue, hesp. estatua, (esculp.)
f igura isolada em todo o vulto, modelada, esculpida ou fundida, representando um
homem ou mulher, uma divindade ou outra imagem. A execução de uma estatua em
marmore ou em pedra demanda, pr imeiro a composição do modelo [. . .] , i .e., exercício da
plást ica [. . .]
Estatuária, s.f . do lat. statuaria, i .e. arte estatuaria ou do estatuario, que
consiste em compor, modelar e executar em pedra ou mámore, estatuas e outras obras
do grande genero em esculptura.” (Rodrigues, Francisco de Assis. 1875).
E, no francês:
« Statue s.f . (du lat. statua). Figure en pied, de plein rel ief: Statue de marbre, de
bronze, d'or, d'argent, de bois, d'argi le […]
Statuaire adj. ( lat. statuarius; de statua, statue) qui a rapport aux statues: Art
statuaire. - s.f . Art de faire des statues. » (Larousse, Pierre. 1875).
Curiosamente, o dicionário de artes setecentista de Antoine-Joseph Pernety não
apresenta qualquer entrada lexical para “estatuária”. O mesmo remete para o termo
“Statuaire”, o qual tem o mesmo significado que “escultor”, i.e. “estatuário”.23
Quer no francês contemporâneo24 quer na língua portuguesa contemporânea25, é
corroborada a tese da dimensão figurativa associada ao conceito Statue, donde podemos
concluir que em termos dos modelos estruturais das formas, a estatuária pouco difere da
escultura figurativa.
Por outro lado, da mesma maneira que no dicionário de Pernety, também no
português contemporâneo, estatuária remete quer para a arte de fazer estátuas quer para
aquele que faz estátuas, ou seja, o “escultor”:
“estatuária. S.f. (Do lat. statuaria) . Arte de esculpir ou representar em pleno
relevo, pela pedra, pelos metais… a f igura humana ou animal: arte de fazer estátua. […]
Estatuário, a. S. (Do lat. statuarius). Art ista plást ico que esculpe pr incipalmente
estátuas; escultor de estátuas.” (DLPC. 2001).
23 Cf. Pernety (1757/1972). 24 Cf. DAF: « n. f. Figure en pied, de plein relief, représentant un dieu, un être humain, un
animal. ». Cf. DLFL: « Figure entière et de plein relief, représentant un homme ou une femme, une
divinité, un animal, un dieu, un cheval, un lion. ». 25 Cf. DLPC (2001).
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27
Efectivamente, “estatuário” é apresentado na língua portuguesa como sinónimo
de “escultor” mas o mesmo termo, cuja origem remonta ao latim statuarius, também
define o género artístico que é parte integrante da arte mais geral, ou seja, da categoria
supraordenada “escultura”:
“Estatuario, s.m. do lat. statuarius , (esculp.) tal é o nome que se dá ao esculptor
que faz estatuas, assim como à arte de as compor e executar. A estatuaria é a parte
mais importante da esculptura.” (Rodrigues, Francisco de Assis. 1875).
Por isso, o termo “estatuário” é usado não apenas como substantivo, referindo o
artista escultor, mas também como atributo, i.e., adjectivo, referente a “estátua”:
“Estatuario, A, adj. do lat. statuarius (esculp.) proprio para fazer ou esculpir
estatuas; marmore estatuario , proprio em qualidade para estatuas; coluna estatuaria , ou
que sustenta uma estatua.” (Rodrigues, Francisco de Assis. 1875).
Quanto ao género estatuária, que, como temos vindo a expor, define a
representação tridimensional da imagem da figura humana ou de animais ou de deuses
ou semi-deuses, mais ou menos antropomórficos ou zoomórficos, o mesmo apresenta o
radical comum às línguas indo-europeias *stā- ‘stand’, o qual cunha a noção prototípica
do conceito que é o sentido de verticalidade26 associado ao item statua do latim:
“statue
A statue is etymological ly something that has been ‘set up’ or ‘erected’. The
word comes via Old French statue from Latin statua, a derivat ive of statuere ‘cause to
stand, erect, establish’ [ . . . ] This in turn was formed from status (source of English state
and status) , the past part iciple of Latin stāre ‘stand’ [ . . .] And stāre came ult imately from
the Indo-European base *stā- ‘stand’, which is also the ancestor of English stable, stand,
stead, stem, etc.”.27
Assim, para todas as palavras com origem no latim statua e statuarius, o
significado aponta respectivamente para “imagem ou figura tridimensional esculpida” e
“arte da escultura”. Em outras línguas da família do Indo-Europeu, designadamente
26 O próprio dicionário etimológico do Indo-Europeu de Pokorny confirma esta tese:
“stehend, wie stel- zu stä- ,stehen'” (cf. Pokorny: 1959).
27 Cf. WOD.
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28
aquelas de origem germânica, além dos termos com o étimo latino statua e statuarius,
encontramos outros itens lexicais morfologicamente complexos, compostos pelos
termos que denotam o sentido de verticalidade prototípico do conceito, i.e. “stand-“, e
pelo termo “imagem”, ou seja “-bild”. Desta forma, no alemão notamos Standbild e no
neerlandês standbeeld. Quanto ao conceito que define a “arte da escultura”, registamos as
ocorrências Bildhauerei e Bildhauerkunst (f. ars statuaria)28 na língua alemã. O termo
Bildhauerei refere o género artístico mas também é utilizado como referência ao objecto pela
história de arte. O conceito Bildhauerkunst aponta para a designação de género para todas as
formas de arte com imagens (em pedra, metal, barro e outros materiais) e ainda enquanto
objecto de reflexão estética e histórica, descrevendo e enquadrando os seus princípios teóricos.
Por isso, Bildhauerei e Bildhauerkunst têm usos sinónimos:
„Bi ldhauerei
1 als Kunstgattung (neben anderen; mit Aussagen üb Darstel lungsart, spezif
Material ien, Farbigkeit ua), auch als Gegenstand kunsthist Betrachtung […]
Bildhauerkunst [ . . . ] so häufig wie ‘Bi ldhauerei ’
1 als Gattungsbezeichnung für al le Arten plast isch erhabener Bildkunst ( in Stein,
Metal l , Ton ua Material)
a) als Gegenstand ästhet, hist Reflexion, theoret, pr inzipiel ler Aussagen; als
paradigmat, eigengesetzl- ideale Kunst wie als sachgetreue, realist ische (Porträt-)Kunst
b) als Studienobjekt od -fach, auch in der Tr ias der bi ldenden Künste […].”.29
Seguidamente, ilustramos na tabela uma síntese do estudo comparado da
semântica dos termos “estatuária”, “estátua” e “escultura” em várias línguas da família
do Indo-Europeu:30
28 Cf. DWB = Deutsches Wörterbuch von Jacob und Wilhelm Grimm. 16 Bde. in 32
Teilbänden. Leipzig 1854-1961. Quellenverzeichnis Leipzig 1971. (Bd. 2, Sp. 18 bis 19).
29 Cf. GWb = Goethe-Wörterbuch. Hg. v. der Berlin-Brandenburgischen Akademie der
Wissenschaften [bis Bd. 1, 6. Lfg.: Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin; bis Bd. 3, 4. Lfg.:
Akademie der Wissenschaften der DDR], der Akademie der Wissenschaften in Göttingen und der
Heidelberger Akademie der Wissenschaften. Stuttgart 1978-.(Bd. 2, Sp. 691 bis 693). 30 Cf. Ethonologue é um sistema enciclopédico de classificação das línguas do mundo.
Neste sistema é apresentada uma classificação das famílias de línguas e uma classificação genética das
línguas. Na tabela que apresentamos, todas as línguas fazem parte da grande família do Indo-Europeu.
Quanto à classificação genética: o dinamarquês, o sueco, o inglês, o alemão e o neerlandês pertencem à
categoria das línguas germânicas; o russo e o checo inserem-se no grupo das línguas eslavas; e o
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29
por estatuária estátua escultura
spa estatuaria estatua escultura
fra statuaire statue sculpture
ita statuaria statua scultura
deu Bildhauerei; Plastik Statue; Standbild Skulptur;
dan billedhuggerkunst statue skulptur,
swe bildhuggeri staty skulptur;
skulptut
nld beeldhouwkunst beeld(houw)werk standbeeld beeldhouwen
eng statuary statue sculpture;
ces plastika socha skulptura,
sochařství,
socha
rus Скульптура; ваяние статуя Скульптура
ваяние
ell αγάλµατα άγαλµα Άγαλµα;
γλυπτική,
Fig. 8 – Estudo comparado da semântica dos termos estatuária, estátua e escultura.31
Através deste breve estudo semântico comparado, podemos antever que do
ponto de vista do significado, a definição de estatuária pouco ou nada difere da de
escultura figurativa. É por isso compreensível que obras de classificação de artistas
como o Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses ou que trabalharam em
Portugal de Fernando de Pamplona, classifique autores de vasta obra em estatuária
como escultores figurativos.
português e o espanhol inserem-se no sub-grupo das línguas itálicas que é composto pela classe das
línguas românicas; já o grego insere-se no grupo das línguas gregas. 31 A identificação das línguas indicadas está de acordo com a norma ISO 639-3 para a
referência dos códigos de línguas tal como citado pelo Ethnologue (2009).
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30
Também Théophile Gautier no seu texto32 sobre a Exposição Universal de 1855
em Paris enaltece a importância da estatuária no universo das belas artes na Europa.
Nesta obra de Gautier do século XIX, já podemos encontrar o termo estatuária
(statuaire, s.f.) como referência à obra de arte que representa tridimensionalmente a
figura humana. Théophile Gautier reconhece a Grécia como o local onde esta forma de
arte atingiu o seu esplendor e aponta a sua origem nas civilizações pagãs. Ainda
segundo Gautier, a característica principal da estatuária assenta na representação do nu,
donde se infere que a representação da figura humana é uma condição essencial:
“La Statuaire, fruit naturel des civi l isat ions païennes, qui mûrissait à l 'air l ibre
sous le ciel bleu de la Grèce et de ses colonies […]Le nu est la condit ion essentielle de
la statuaire. […]Pourquoi, dira-t-on, cette nécessité du nu? La forme la plus parfaite que
l 'homme puisse concevoir est la sienne propre. Son imagination ne saurait al ler au delà;
la représentat ion du corps humain, dégagée de toute part icular ité et de tout accident,
constitue le beau idéal. »( Gautier,1855 : 117-118).
A roupagem aparece na arte da estatuária como o referente que confere
significado à mesma. Deste modo, a tese que temos defendido e segundo a qual a
estatuária é também uma questão semântica e semiótica é corroborada por Gautier.
Efectivamente, Th. Gautier define a roupagem como o “comentário que segue o texto”,
explicando assim a dimensão semântica e semiótica do texto visual da estatuária:
“Nous savons bien qu'on nous répondra qu' i l existe des statues très-belles et
entièrement drapées. — Celte draperie f lotte, autour du corps comme la forme autour de
l ' idée […]c'est un commentaire qui suit le texte et l 'explique […]. » (Gautier, 1855 : 118).
Ao abordar a evolução da estatuária desde a Antiguidade Grega até aos tempos
modernos, Th. Gautier cita a Idade Média como uma época de declínio da arte
estatuária, a qual era considerada uma arte de deboche, principalmente por causa da
iconoclastia associada à representação de imagens:
« Le christ ianisme primit i f, se souvenant encore des idées iconoclastes
judaïques, avait pour la statuaire une aversion inst inct ive: i l ne voyait d'ai l leurs dans les
chefs-d'oeuvre de Phidias, de Praxitèle, de Lysippe, de Scopas et de Miron que des
idoles représentant les démons sous des traits menteurs; l ' immatériel le et chaste nudité
de ces marbres divins lui paraissait une grossière débauche de sensualisme. — Vénus,
pour lui, n 'était qu'une femme dans une pose impudique, et non pas la réalisat ion de
l ' idée la plus haute et la plus pure du beau ; i l ne comprenait pas que la matière avait
32 Cf. Gautier, Théophile.1855.Les Beaux-Arts en Europe.
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31
disparu de cet art si élevé, si parfait , qui ne lui empruntait , comme Dieu, qu'une poignée
d'argi le pour rendre ses créations visibles. » (Gautier, 1855 : 119-120).
Aliás, Th. Gautier não utiliza o termo estatuária (statuaire) para citar a
representação de imagens durante a Idade Média. O termo mencionado é imagiers, i.e.
imaginários, considerando que esta iconoclastia de imagens religiosas não corresponde
ao verdadeiro conceito de estatuária:
“Sans doute les imagiers du moyen âge tai l lèrent sous les porches des
cathédrales des f igurines d'une grâce f luette et touchante, frêles t iges portant à leur
extrémité, comme une f leur de la passion, des têtes empreintes d'un charme douloureux
parei l au sourire d'un enfant malade; mais c'est oeuvre de foi, de patience et de
mélancolie, — l 'art éternel n'est pas là. » (Gautier, 1855 : 120).
Nesta linha, Th. Gautier defende que o verdadeiro conceito de estatuária está
associado ao Renascimento e à recuperação dos modelos de representação pagãos da
Antiguidade Grega e Romana. Porém, considera que esta arte está algo adormecida nos
tempos modernos, apesar dos esforços que, nomeadamente em França, os governos têm
empreendido:
« I l fal lut, pour ressusciter la statuaire dans le vrai sens du mot, le retour
énergique de la Renaissance, sinon vers les croyances, du moins vers les formes du
paganisme. […] A ce moment suprème de la Rennaissance, l 'ant iquité, mal enterrée par
les barbares, sort i t du sol, et la pure lumière du ciel éclaira encore ces dieux charmants
et superbes qui furent les dieux d'Homère, de Phidias et de Virgi le. Michel-Ange,
Donatel lo, Ghibert i , Benvenuto Cell ini, Jean Goujon, Germain Pilon, retrouvèrent,
d'après quelques fragments grecs et romains, la beauté, qu'on pouvait croire à jamais
perdue. Depuis, la tradit ion s'en est conservée avec un soin rel igieux; mais la statuaire
n'existe guère plus que comme le sanskrit , le grec et le lat in, à l 'état de langue morte,
quoiqu'en France surtout les gouvernements aient à toutes les époques fait de généreux
efforts pour conserver cet art digne des dieux, des héros et des rois, cet art le plus
austère et le plus idéal de tous sous sa forme concrète. » (Gautier, 1855 :120 e 121).
É interessante observar com este breve estudo acerca do conceito e da dimensão
pragmática do termo statuaire (estatuária) tal como definido por Th. Gautier que o
mesmo difere e distancia-se, quer no modelo estrutural da forma quer na noção de
representação semântica da figura, do termo imagier (imaginário).
Na senda da nossa abordagem diacrónica, verificamos que também Francisco
Assis Rodrigues define imagem como representação da figura humana quer na pintura,
na escultura ou na gravura:
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32
“IMAGEM, s.f . do lat. imago , de imitar i : o hellenista Morin diz que este nome
deriva do grego [. .. ] simulacro de barro [. .. ] por terem sido feitos os pr imeiros simulacros
de barro amassado, (pint. , esculp. e grav.) f igura, representação, similhança,
ordinariamente de forma humana, desenhada, pintada, esculpida, gravada ou fundida em
metal.” (Rodrigues, Francisco de Assis. 1875).
Já no sentido mais restrito do termo, imagem é utilizado por referência às figuras
do domínio do sagrado, tal como documentado por Francisco Assis Rodrigues (1875):
“[ . . . ] Por imagem entende-se commummente alguma f igura ou objecto do culto.
Os povos antigos mais ou menos civi l isados todos t inham imagens dos seus deuses, a
quem adoravam, exceptuando os mahometanos, e modernamente os protestantes, que
proscreveram o seu culto. A Egreja catholica romana o tem sempre conservado, dando
às imagens o culto que lhes é devido, honrando-as e venerando-as de modo que a
adoração d'elas se ref ira aos seus or iginaes.”.
Ou seja, “[...]Imagens chama-se as figuras do culto catholico, ou sejam em vulto
ou mesmo em estampa; e ainda se dá o mesmo nome aos pequenos registos.”33. Mas, o
termo é exclusivamente usado no contexto da arte sacra da Idade Média e nunca é
aplicado por referência à escultura ou à representação de figuras no exterior dos locais
de culto na modernidade do séc. XIX. Este uso associado ao termo imagem mantém-se
quer no francês actual quer no português contemporâneo.
Tal como podemos verificar para o francês actual, imagier deriva de image, a
cujo étimo latino corresponde imago, sendo que o significado é “Peintre, sculpteur ou
graveur du Moyen Age” 34. Também no português contemporâneo, imaginário deriva
de imagem, cujo étimo latino é imago, sendo que o significado prende-se com escultura
sacra, ou seja “Aquele que faz escultura sacra”35.
Portanto, e da mesma maneira que em Th. Gautier (cf. supra), a imaginária
define a representação escultórica de figuras mas apenas delimitada ao universo da arte
sacra e religiosa. Realmente, Francisco de Assis Rodrigues (1875) define imaginária
(s.f.) como “arte de fazer imagens em barro, cera, madeira, pedra e metaes” e
imaginário (s.m.) como “esculptor que modela, esculpe e executa imagens”. Mas, a
conceptualização linguística de estatuária nas línguas indo-europeias com o étimo
33 Cf. Francisco Assis Rodrigues (1875). 34 Cf. LNPRLF. 35 Cf. DLPC (2001).
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latino ou grego, tais como o português, o espanhol, o francês, o italiano e o inglês,
enquanto género que define a representação tridimensional de figuras, não apresenta
qualquer termo com o item lexical “imagem” ou derivado36. Pelo contrário, nas línguas
indo-europeias germânicas, tais como o alemão, o dinamarquês, o sueco e o neerlandês,
a conceptualização linguística de estatuária é representada linguisticamente por um
lexema morfologicamente complexo composto pelo radical imagem, respectivamente
bild-, billed-, bild- e beeld-.37
Tal como se comprova na investigação etimológica para a língua alemã, Bild
aplica-se não só a uma representação bidimensional de pessoas e coisas mas, num uso
mais anterior também é sinónimo de escultura (Skulptur). Assim, o item evolui a partir
de bilidi no velho-alto-alemão (séc. VIII) para as formas bilodi e biladi, donde bilde (no
médio-alto-alemão) já surge com o significado de imagem no sentido de semelhança
(Abbild), representação (Vorbild) e forma na percepção tridimensional (Gestalt):
“Bi ld n. ‘ f lächige Darstel lung von Personen und Dingen’ ( früher auch ‚Skulptur ’)
[…]; ahd. bil idi (8. Jh.; obd. Nebenformen bilodi , biladi) , mhd. bilde ‘Abbild, Vorbi l ,
Gestalt ’ .” (EWdD, 2000: 136).
Ora, sendo Bildhauerei um item morfologicamente complexo, formado pelos
lexemas Bild- (imagem) e haue*-n (modelar) e pelo sufixo –rei, concluímos que
estatuária, do lat. statuarius, equivale a Bildhauerei no alemão, tal como documentado
a seguir através do termo Bildhauer (aquele que modela imagens, i.e. escultor):
“Bi ldhauer m. ‘Schöpfer plast ischer Kunstwerke’, frühnhd. bildhower , bildhauer
(2. Hälfte 15 Jh.) und mnd. bilde(n)- , belde(n)houwer ; zu Bild in der Bedeutung
‚Skulptur ’, vgl. die mhd. Fügung ein bi lde houwen […].“(EWdD, 2000: 137).
O mesmo se verifica nas outras línguas germânicas, cuja conceptualização
linguística é gizada na base da noção de imagem, i.e. a partir do item lexical ‘beeld-’,
‘billed-‘ e ‘bild-‘. Efectivamente, comprova-se pela investigação etimológica do
neerlandês que a etimologia de imagem, ‘beeld’, aponta para ‘imagem de santos’, ou
seja a representação associada ao culto religioso, apresentando os mesmos traços
semânticos do alemão (cf. supra), i.e., a noção de semelhança e a noção de forma38. O 36 Cf. Fig. 1 supra. 37 Cf. Fig 1 supra. 38 Entenda-se tridimensionalidade, seja alto-relevo ou vulto completo.
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mesmo dicionário etimológico confirma a hipótese por nós colocada acerca da
proximidade semântica dos termos Bildhauerei, beeldhouwkunst, beeld(houw)werk,
billedhuggerkunst, bildhuggeri com statuarius (do lat.) ou estatuária. Aliás, a origem de
beeld reside no alemão ocidental tal como documentado:
“beeld zn. 'voorstel l ing, afbeelding, standbeeld'
[ . . . ] mnl. beelde 'hei l igenbeeld' [1254; CG I, 64], belde '(afgods)beeld' [1285; CG
II, Rijmb.], bi lde 'beeld, afbeelding' [1276-1300; Moraalb.], [ . . . ]De vormen zi jn oorspr. dus
louter continentaal West-Germaans.” (EWNL: beeld) .
Quanto ao termo image, o mesmo significa em neerlandês “a reputação pública
de alguém” no sentido de “imagem pública”. O item image surge no neerlandês por
empréstimo, primeiro pelo francês image e que significa ‘beeld’ e ao qual corresponde o
étimo latino imago. Terá significado estátua, ou seja, o mesmo que 'beeltenis,
standbeeld' por volta do séc. XVII. Actualmente, este uso é obsoleto:
“[…] image zn. (NN) 'beeld van iemand in de publieke opinie, reputat ie'
Mnl. image 'beeld, portret ' in eene ymaedse van iupiterre 'een afbeelding van
Jupiter ' [1285; CG II, Rijmb.]; vnnl. image 'beeld' [1553; van den Werve], 'beeltenis,
standbeeld' [ . .. ] Het woord is tweemaal ontleend, eerst aan Frans image 'beeld', ontleend
aan Lati jn imāgō 'beeld', zie imago […]” (EWNL: image) .
Concluímos, através da investigação semântica comparada dos conceitos de
estátua e estatuária nas línguas da família do Indo-Europeu, que a estatuária é uma
forma de arte que se insere no género supra-ordenado da escultura figurativa. A arte da
estatuária é cunhada na base da noção de estátua, a qual contém todos os traços
semânticos que a descrevem como a representação de uma figura com características do
mundo das entidades animadas, na forma tridimensional e que aparenta um grau
elevado de verosimilhança visual com a entidade representada. Outro traço distintivo
desta arte de representação figurativa tridimensional é a ideia de valor civilizacional que
lhe está associada. A investigação semântica diacrónica que elaborámos demonstra que
a estatuária delimita a sua actuação à figuração de personalidades, tais como homens
famosos, de divindades, de animais e de personalidades em associação com animais,
tais como figuras a cavalo, e de trabalhos ou actividades consideradas distintas. As
figurações podem apresentar-se de vulto completo ou apenas apresentar um troço do
corpo humano como, por exemplo, um busto, uma cabeça ou um tronco. Em todas as
definições que estudámos existe uma nota predominante que é a semelhança da forma
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com a imagem da figura representada e a contemplação e admiração a que se presta a
estátua implantada, sobretudo ao ar livre. Realmente, segundo a investigação semântica
e diacrónica que agora terminámos, verificamos que as estátuas são erguidas como
prova de homenagem e como valor de memória.
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3. O valor civilizacional da estatuária
Se é verdade que a estatuária apresenta dimensões inovadoras quanto ao modelo
estrutural das formas nas representações figurativas, também comprovamos que no que
diz respeito aos seus valores cívicos, de memória, civilização e identidade, os mesmos
mantém-se como características essenciais na definição desta forma de arte.
Quanto aos aspectos inovadores, gostaríamos aqui de mencionar factores
determinantes na apresentação e representação das obras de estatuária.
Assim, e na sequência do que já citámos (cf. supra), além da classificação
"busto", "cabeça" e "tronco" que definem as representações figurativas da imagem
humana até à modernidade (séc. XIX), Vieira (2009: 244) aplica também a classificação
de "troço" para determinação das categorias associadas à estatuária.
Efectivamente, na estatuária implantada a partir da segunda metade do séc. XX,
encontramos especiméns que não são nem "busto", nem "cabeça" nem "tronco" pelo que
se torna importante marcar esta característica inovadora na arte da estatuária. Ou seja,
encontramos representações de estatuária com troços da figura humana, tais como
pernas, mãos ou corpos truncados (por exemplo ao nível das coxas). São os casos da
obra Schreitender de Rainer Kriester, em Berlim, datada de 1975, e que consiste na
representação de duas pernas com pés no acto de caminhar; ou a apresentação de uma
figura truncada a meio da coxa, titulada Multatuli, cujo autor é Hans Bayens, e com data
de 1986, em Amsterdão; ou ainda a representação da Nemesis Divina através da
apresentação de uma mão num material compósito na cidade de Lund.39
Outros exemplos inovadores da estatuária actual são a junção numa mesma
representação escultórica de vários troços, ao que Vieira (2009) optou por classificar o
género de forma mais descritiva por "cabeça e mãos". É o exemplo de Denkpartner40,
peça do escultor Hans-Jörg Limbach, datada de 1982, localizada em Stuttgart
(Alemanha) e composta por uma cabeça entre duas mãos.
39 Cf. também Soares (2009: vol. 2/ CD): Schreitender [IDSL: 257] e Nemesis Divina
[IDSL: 103]. Cf. Vieira (2009: vol. 2/ DVD): Multatuli [IDE: 74]. 40 Cf. Vieira (2009: vol.2/ DVD): Denkpartner [IDE: 191].
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Tal como já anteriormente
demonstrámos41, a diferença significativa
entre estatuária e escultura figurativa
reside na cultura do referente, na cultura
da memória possível acerca do referente.
Assim, a estatuária é também uma
questão linguística e semântica.
Realmente, a estatuária urbana
envolve várias camadas de referentes, os
quais documentam a cultura e a memória
local através de representações associadas
à toponímia, a acontecimentos, a tipos
sociais, ao folclore (música, dança,
canções, provérbios, lendas), ou ainda a
actividades de natureza sócio-económica
que distinguiram as localidades e as
pessoas. Deste modo, a estatuária urbana
liga a dimensão linguística ao património
escultórico edificado no exterior, sendo
também um marco de identidade da cultura e da memória local. Por isso, é importante
divulgar a estatuária urbana e o seu valor cívico e didáctico, enquanto documento de
civilização e instrumento didáctico da cultura da memória.
Seguidamente, mostramos algumas obras de estatuária urbana42, procurando
notar aspectos da sua dimensão simbólica e semiótica que realçam a componente
documental de cariz histórico-cultural e etnológico das localidades onde estão
implantadas.
41 Soares, A. P. G. 2009. Representações Linguísticas e Semióticas na Estatuária Urbana
Europeia. [2 volumes. Texto policopiado – volume 1. CD/ base de dados de leitura informática – volume
2. (Tese de Doutoramento. Linguística Geral)]. Porto: Universidade do Porto. Faculdade de Letras. 42 Parte da investigação de campo efectuada encontra-se disponível em Soares (2009: vol.
1 e vol 2/ CD).
Fig. 9 - Hoschemer Käs- u. Weinskulptur em
Horchheim
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Por exemplo, a obra de estatuária urbana Hoschemer Käs- u. Weinskulptur do
escultor Josef Welling, situada em Horchheim, na Alemanha, consiste num monumento
ao queijo e ao vinho composto em cenas narradas através de estatuetas de pequenas
dimensões (intimistas). As estatuetas organizam-se em conjuntos (quadros)
representando diversas cenas do fabrico e degustação do vinho e do queijo da região de
Horchheim.
Através da placa afixada neste conjunto escultórico, somos informados que o
Spitznamen (alcunha) dos naturais de Horchheim tem a sua base nos caracteres
etnológicos associados à importância que a actividade vinícola e de produção de queijo
teve nesta localidade. São precisamente as inscrições que assim o comprovam: «Bis
1920 war Horchheim eine grosse Weinbaugemeinde. Allein hier am Römerplatz gab es
Fig. 10 – Inscrições em Hoschemer Käs- u. Weinskulptur.
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vier Weinlokale: Brühl, Puth, Holler und Killian. zu den bekannten Rot- u.
Weissweinen wurde der aus Kuhmilch gefertigte Faustekäs, der duftende 'Hoschemer
Käs' gegessen. Dieser einstigen Spezialität verdanken wir horchheimer unseren
'Spitznamen'. 28.06.1998», [Trad.: Até 1920 Horchheim foi uma grande comunidade
vinícola. Aqui na Römerplatz existiram várias adegas: a Brühl, a Puth, a Holler e a
Killian. A acompanhar os famosos vinhos tinto e branco comia-se o queijo feito a partir
de leite de vaca, o queijo cheiroso de Horchheim. A esta especialidade ancestral
devemos nós os naturais de Horchheim a nossa 'alcunha'.28.06.1998].
Esta escultura em Horchheim, Hoschemer Käs- u. Weinskulptur43 apresenta a
particularidade de isolar pormenores da realidade, i.e. da actividade de produção do
vinho e fabrico do queijo, enquadrando-os em cenas narrativas e transpondo-os para a
sua representação estatuada.
É possível concluir pela observação da narrativa representada nas diversas cenas
escultóricas que compõem esta obra a natureza cultural do discurso. Todos os eventos
representam imagens de carácter etnológico e etnográfico, tais como a degustação do
queijo e a prova do vinho, trabalhadores na vindima transportando os respectivos
artefactos (cestos e enxadas), um carro puxado por uma junta de vacas e carregando um
barril de vinho, uma mulher fazendo queijo e um grupo de homens em pose
descontraída e divertida, bebendo vinho, não faltando as crianças com as suas sempre
actuais traquinices.
43 Cf. também Soares (2009: vol. 2/ CD): Hoschemer Käs- u. Weinskulptur [IDSL:274].
Fig. 12 Fig. 11
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40
[Figuras 11, 12, 13 e 14 - Pormenores de algumas cenas que compõem o conjunto
escultórico Hoschemer Käs- u. Weinskulptur.]
[Figuras 15 e 16 – Pormenores de algumas cenas do mesmo conjunto escultórico,
onde não faltam os caracóis evocando metaforicamente a lentidão temporal da
vitivinicultura e um apontamento religioso através da imagem de uma pietá].
Fig. 13 Fig. 14
Fig. 16 Fig. 15
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41
O testemunho etnológico desta peça
está manifesto nas representações linguísticas
presentes na placa afixada à obra, as quais
revelam não só a importância que esta
actividade agro-pecuária teve na localidade
mas também a etimologia onomástica
associada aos naturais de Horchheim.
Efectivamente, a alcunha dos naturais de
Horchheim tem a sua origem nesta actividade
funcional da localidade. É por esse motivo
que os naturais de Horchheim são
„Hoschemer Käsjer“, alusão que nos é
transmitida pela nota de humor da figura
masculina sentada num barril e com a mão
no nariz e que encima este conjunto
escultórico, ilustrando, assim, quão forte é o
cheiro do queijo outrora produzido nesta terra do sul da Alemanha. Aliás, a
semanticidade desta obra de estatuária urbana estende-se à própria iconografia presente
na escultura cimeira do conjunto (vide fig. 17), a qual é gizada na base de uma
conceptualização de cariz metafórico e metonímico. De facto, notamos nesta obra que o
queijo é representado metaforicamente pela escultura de uma figura no acto de tapar o
nariz, ou seja a alusão ao forte cheiro do queijo, e que o vinho é representado
metonimicamente pela contiguidade semântica que se estabelece entre o barril (onde
está sentada a figura humana), contentor para o vinho, e o vinho.
A fruição estética desta imagem liga-se ainda ao seu valor documental e à sua
representação identitária, dando existência na memória a representações dinâmicas e
discursivas de pormenores da vida local. A narrativa visual deste conjunto escultórico
está assim bem presente em toda a iconografia que a compõe, a qual revela a sua
semanticidade e valor civilizacional. De facto, a semanticidade das representações
escultóricas tem um carácter simbólico, donde se comprova que as mesmas são
cunhadas na base da experiência a partir da dimensão cultural.
Fig. 17 – Figura cimeira do conjunto que
representa a alcunha dos naturais de
Horchheim.
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42
Do escultor português Pedro Anjos Teixeira, apresentamos três obras de
estatuária urbana que muito bem comentam a história e a cultura local. Seguindo as
linhas de composição próprias do naturalismo, observa-se na sua obra de estatuária
cívica toda a dimensão simbólica na representação escultórica das figuras, as quais
apresentam um elevado grau documental do património cultural e etnográfico das
localidades onde foram implantadas. Já Vieira (2001)44 sublinha a importância do
naturalismo nas composições escultóricas de Pedro Anjos Teixeira:
“Sendo o natural ismo a grande referência do mestre, é certo que tem em boa
conta o factor composit ivo na representação com elevado simbolismo no Monumento aos
Perseguidos, em Almada, no Homem a Lutar com o Polvo, no Seixal e na mais or iginal
estátua que no século XX se fez a um poeta, O Pastor Peregrino, em Leir ia.” (Vieira,
2001: 32).
Em Leiria, no Parque da Cidade ou Parque Tenente Coronel Jaime Filipe da
Fonseca, encontramos um conjunto de quatro peças escultóricas de Pedro Anjos
Teixeira, respectivamente um sapo jardineiro, um burro com alforges, um cão e uma
parelha de bois.45
A obra escultórica composta por uma parelha de bois com canga, datada de 1948
e titulada Os bois, faz parte integrante deste conjunto. Esta imagem escultórica de
bronze, em tamanho menor do que o natural, está assente sobre um plinto quadrangular
de pedra, em cujas faces se encontram azulejos policromados com diversos dizeres
acerca da natureza deste animal que tanto contribuiu para as tarefas da lavoura em
Portugal.
44 Pedro Anjos Teixeira e a Escultura no Exterior (Vieira, 2001) continua a ser até ao
momento a única obra inteiramente dedicada ao escultor Pedro Anjos Teixeira. 45 Cf. também Soares (2009: vol. 2/ CD):os bois [IDSL:340], burro com alforges
[IDSL:7] e cão [IDSL:8].
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43
Assim, numa linguagem afável e poética, é observada a importância do boi na
agricultura e bem assim a força deste animal de trabalho. As inscrições seguem um tom
aforístico com uma melodia ritmada: “Os bois! Fortes e mansos, os boizinhos - leões
com corações de passarinhos! Os bois! Os grandes bois êsses gigantes, tão amigos, tão
úteis, tão possantes!/ Sem as suas fadigas e canseiras não teriam florido as sementeiras!
Sem a sua força, sem a sua dor, não estava rindo a terra toda em flor!”.
Nesta obra de estatuária urbana de Pedro Anjos Teixeira a qual mostra os bois
em pose de descanso, nota-se a influência do naturalismo na composição e na
modelação escultórica. Efectivamente, quer a representação da pose dos animais quer a
sua modelação denotam claramente o naturalismo da peça, na qual está bem presente o
profundo conhecimento oriundo da dimensão experiencial da vida campestre quanto o
da anatomia do animal46 que qualificam a obra deste escultor.
46 "Esta atenção sobre a natureza do animal instrumentalizada com critérios científicos
terá tido também a maior importância nos estudos que Pedro Anjos Teixeira virá a desenvolver mais
tarde, sobre Anatomia Artística do Homem & Comparada dos Animais. Também no seu tratado das
Tecnologias da Escultura, se reflecte a atenção que dedicava a estes dois aspectos da realidade: o Homem,
e o Animal." (Vieira, 2001: 16 e 17).
Fig. 18 - Os bois, de Pedro Anjos Teixeira, Leiria
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44
A estátua que segue, também de Pedro Anjos Teixeira, situada no Parque da
Cidade em Leiria apresenta um cão47 em cima de um plinto com azulejos
policromáticos, nos quais visualizamos inscrições que nos fazem lembrar dizeres
populares. Esta identificação das inscrições com modelos culturais da sabedoria
popular48 vem confirmar a tese da metáfora conceptual que norteia o discurso scripto-
visual desta imagem escultórica.
Na realidade, o modelo
popular presente na conceptualização
linguística da língua portuguesa leva-
nos muitas vezes a entendermos as
pessoas em termos de animais, por
isso os esquemas imagéticos com
animais são frequentemente usados
na conceptualização metafórica.
A dimensão scripto-visual
desta obra de estatuária urbana
representa de uma forma naturalista o
envolvimento cultural e etnográfico
associado à importância que o animal
"cão" teve na vida doméstica em
Portugal.
Assim, a lealdade é um
aspecto humano que é atribuído
também ao animal “cão”, donde se
conclui que o comportamento animal
é entendido metaforicamente em termos humanos. Por isso, as inscrições no plinto
transcrevem aspectos relacionados com os provérbios populares, os quais
conceptualizam aspectos da sabedoria e da dimensão experiencial.
47 Cf. também Soares (2009: vol.2/ CD): O cão [IDSL:8]. 48 Efectivamente, tal como Lakoff/ Turner (1998: 193 e ss.) expõem, aspectos instintivos do
comportamento animal são muitas vezes entendidos metaforicamente a partir de traços da personalidade
humana.
Fig. 19 – O cão de Pedro Anjos Teixeira em Leiria
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Através desta imagem escultórica é veiculada uma correspondência conceptual
entre dois conceitos – o cão e a lealdade. Ou seja, a correspondência epistémica é gizada
a partir do conhecimento que temos acerca do cão que é amigo, é leal, é bom
companheiro, etc., tal como patente nas inscrições: "O cão que faz ão, ão, ão é bom
amigo como os que são! É bom amigo, bom companheiro, é valente, fiel, verdadeiro,
leal, serviçal, e tem bom coração.” E "Quando vem de fora, a gente e chega a casa, é o
cão quem diz primeiro todo prazenteiro, saltando e rindo contente e com os olhos a
brilhar de amor - "ora seja bem-vindo, meu senhor!".
Em suma, observamos através desta imagem escultórica e da dimensão verbal
envolvente que o cão apresenta os atributos próprios dos humanos ao nível de uma
entidade animada e também os estados de ânimo comuns às pessoas, a saber, a vontade,
a emoção (medo, contentamento) e algumas capacidades cognitivas como a memória.
Assim, a conceptualização metafórica assente no domínio dos animais e que
observamos na representação scripto-visual da lealdade presente nesta obra de estatuária
titulada O cão, constitui um documento e uma forma de salvaguardar o património
etnológico imaterial associado à língua portuguesa e à importância que o cão assume na
vida local das comunidades.
Fig. 20 - Pormenor de um dos conjuntos de azulejos de O cão
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46
Também do mesmo escultor, encontramos em Leiria, no Parque da Cidade, um
conjunto escultórico em pedra, um pouco acima do nível dos peões, com cinco figuras
femininas: quatro adultas e uma criança no acto de andar. Esta obra de estatuária
urbana, datada de 1945 e implantada no espaço urbano em 1946, titulada A caminho da
cidade49, é também conhecida por As mulheres de Leiria e o Regresso do Mercado.
Este conjunto escultórico apresenta a figura feminina trajada com o vestuário
comum da mulher de trabalho da região e carregando o bornal, apresentando uma pose
de grande determinação associada ao movimento marcado na modelação do vestuário.
Trata-se da representação de um tipo social da época e local, i.e. a representação de um
49 Cf. também Soares (2009: vol.2): A caminho da cidade [IDSL:342].
Fig. 21 - A caminho da cidade de Pedro Anjos Teixeira em Leiria.
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47
grupo de mulheres do povo, as quais também são mães, já que o conjunto inclui também
uma criança.
O naturalismo e o realismo na modelação e na representação deste conjunto
escultórico contribuem para que a mesma seja qualificada uma obra pioneira do neo-
realismo em Portugal.50 Nesta linha, Vieira (2009) define os traços compositivos que
marcam o carácter inovador da estatuária urbana a partir da segunda metade do século
XX e que podem ser identificados através da expressão da dimensão social do trabalho,
da expressão da dimensão social da cidadania e da expressão da dimensão social da
heroicidade:
“Assim, no século que passou, a escultura atravessa três modelos composit ivos,
o herói, o trabalhador e o cidadão [. . . ] Pedro Anjos Teixeira é o único escultor que
evidenciou a capacidade de construir com referência as estas três t ipologias icono-
proporcionais (relação entre o material signif icat ivo iconograficamente e as constantes
de proporcionalidade que suportam a forma), no Pastor Peregrino (expressão heróica),
no Monumento ao trabalhador rural (expressão do trabalhador) e no Casal Nu
(expressão da cidadania), esta terceira, com uma versão vestida, implantada no exter ior,
na praça de Londres.” (Vieira, 2009: 131).
50 Vieira (2009: 131) considera-a mesmo a primeira obra de estatuária urbana neo-realista
em Portugal: “Em Portugal em 1946 foi erigido o conjunto Mulheres de Leiria, também conhecido pelo
«regresso do mercado», de Pedro Anjos Teixeira, representando um grupo de Mulheres do povo, talvez a
primeira obra da estatuária urbana neo-realista erguida no espaço português, memorializando uma
identidade local.”. Da mesma maneira, “Pedro Anjos Teixeira foi considerado pela Comissão Instaladora
do Museu do Neo-Realismo como um precursor do Neo-Realismo.” (Catálogo da exposição «ANJOS
TEIXEIRA um precursor do Neo-Realismo», Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, ASSOCIAÇÃO
PROMOTORA DO MUSEU DO NEO REALISMO, Galeria Municipal de Exposições de Alverca Out. /
Nov. de 1996. apud Vieira, 2009: 261).
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A dimensão da cidadania é também frequentemente apresentada na estatuária
urbana através da representação do folclore local. Um desses exemplos que registamos é
a obra Hei-de Voltar a Viana do escultor Jaime Azinheira, em Viana do Castelo. Esta
obra datada de 2000 apresenta um casal de bailarinos com traje vianês em passo de
dança, modelado de forma que acentua os aspectos vitalistas desta coreografia do
folclore de Viana do Castelo.51
51 Cf. também Soares (2009: vol.2): Hei-de voltar a Viana [IDSL:226].
Fig. 22 - Hei-de Voltar a Viana do Jaime Azinheira em Viana do Castelo
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Observamos na figuração escultórica não só o pormenor do traje feminino da
saia rodada com os diversos saiotes e o avental sobreposto e bem assim o lenço na
cabeça mas também alguns aspectos da técnica da dança que nos permitem identificá-la
com o “vira”. Realmente, o casal encontra-se em passo de dança, com os braços
levantados e com os membros inferiores no compasso próprio da atitude de dançar em
roda, a qual é igualmente sugerida pela modelação da saia da figura feminina.
Efectivamente, a modelação naturalista de todo o conjunto escultórico, no qual está
impressa a sugestão de movimento, denota os traços semânticos que nos permitem
identificar esta dimensão cívica do folclore local. Ribas (1982: 97) refere que "O vira é
uma das mais antigas danças populares portuguesas; dele já Gil Vicente nos fala na sua
peça Nau d’Amores dando-o como uma dança do Minho. Com efeito, o vira é uma
dança de tradição minhota […]". Sendo o “vira” a dança padrão do Alto Minho, onde se
situa a cidade de Viana do Castelo, entende-se a implantação desta obra de estatuária
urbana nesta cidade como marco de identidade cultural e civilizacional. Anotamos ainda
que o título desta obra é “Hei-de voltar a Viana”, o que nos permite concluir que a
conceptualização semiótica e simbólica desta obra é reforçada pela realização
linguística que lhe está inscrita. Deste modo, a expressão que constitui o próprio título
deste conjunto escultórico é gizada na base do “movimento circular e de retorno”
presente na construção perifrástica verbal “hei-de voltar”, a partir dos termos “hei-de” e
“voltar”, os quais transmitem a noção circular de retorno próprios da técnica e da forma
material deste tipo de dança que é o movimento em roda.
Assim, esta obra de estatuária urbana constitui um marco territorial de
identidade quer nos seus aspectos etnográficos e etnológicos presentes na iconografia da
obra quer na própria dimensão imaterial linguística que nos permite identificar nos
traços semânticos da expressão linguística “Hei-de voltar a Viana” o folclore local.
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4. Observação final
Deste modo, podemos concluir que a estatuária dos séculos XX e XXI, embora
distanciando-se dos princípios académicos da escultura do século XIX, continua a
incluir nas suas representações alguns traços semânticos que a identificam como género.
Estes aspectos definidores centram-se na representação figurativa e na noção de
memória e homenagem.
Mas a estatuária urbana que observamos disposta pelo tecido urbano das aldeias,
vilas e cidades apresenta uma narrativa scripto-visual, i.e. uma apresentação significante
que aponta para um significado. Esta ligação que estabelece com um referente está
manifesta na conceptualização de domínios cognitivos da realidade experiencial que
documentam a história e a vivência local através da dimensão material e imaterial
presente nas obras de estatuária urbana:
"a representação visual e a realização l inguíst ica são duas dimensões da
conceptualização que se apresentam no discurso scripto-visual inerente à imagem
escultór ica no espaço público, [ . . . sendo] um meio de perpetuar na memória o valor do
patr imónio material e imaterial das l ínguas e costumes locais." (Soares, 2009: 266).
Comprovamos também que a semanticidade das representações escultóricas tem
um carácter simbólico e que as mesmas são cunhadas na base da experiência a partir da
dimensão cultural.
Portanto, é o valor de memória e civilização que marca a estatuária urbana a
partir da segunda metade do século XX e no século XXI enquanto marco territorial de
identidade, contribuindo para a preservação e salvaguarda do património material
etnográfico e bem assim do património imaterial linguístico e etnológico. É ainda a sua
dimensão documental enquanto suporte icónico e linguístico que permite reescrever a
memória e a história das pessoas e dos locais contribuindo, desta forma, para a
salvaguarda do património material e imaterial.
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