Eugnio V. garcia
Conselho de Segurana das Naes Unidas
Ministrio das relaes exteriores
Ministro de Estado Embaixador Luiz Alberto Figueiredo MachadoSecretrio-Geral Embaixador Eduardo dos Santos
Fundao alexandre de GusMo
Presidente Embaixador Jos Vicente de S Pimentel
Instituto de Pesquisa deRelaes Internacionais
Diretor Embaixador Srgio Eduardo Moreira Lima
Centro de Histria e Documentao Diplomtica
Diretor Embaixador Maurcio E. Cortes Costa
Conselho Editorial da Fundao Alexandre de Gusmo
Presidente Embaixador Jos Vicente de S Pimentel
Membros Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg Embaixador Jorio Dauster Magalhes Embaixador Gonalo de Barros Carvalho e Mello Mouro Embaixador Jos Humberto de Brito Cruz Ministro Lus Felipe Silvrio Fortuna Professor Clodoaldo Bueno Professor Francisco Fernando Monteoliva Doratioto Professor Jos Flvio Sombra Saraiva
A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.
Braslia, 2013
Eugnio V. garcia
Conselho de Segurana das Naes Unidas
Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]
Equipe Tcnica:
Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGabriela Del Rio de RezendeGuilherme Lucas Rodrigues MonteiroJess Nbrega CardosoVanusa dos Santos Silva
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Impresso no Brasil 2013
G216 GARCIA, Eugnio Vargas. Conselho de Segurana das Naes Unidas / Eugnio V. Garcia. Braslia : FUNAG, 2013. 133 p. - (Em poucas palavras) ISBN 978-85-7631-473-8 1. Naes Unidas (ONU). Conselho de Segurana. 2. Naes Unidas (ONU). Conselho de Segurana - histria. 3. Naes Unidas (ONU). Conselho de Segurana - atuao. 4. Segurana internacional. I. Ttulo. II. Srie. CDD 341.2323Bibliotecria responsvel: Ledir dos Santos Pereira, CRB-1/776
Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei no 10.994, de 14/12/2004.
E V G
Doutor em Histria das Relaes Internacionais pela Universidade de Braslia e diplomata. Foi pesquisador visitante associado junto ao Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, professor no Colgio de Estudos Latino-Americanos da Universidade Nacional Autnoma do Mxico e professor titular do Instituto Rio Branco. Serviu em Londres, Cidade do Mxico, Misso junto s Naes Unidas em Nova York e Assuno. Integrou a delegao do Brasil como membro no permanente do Conselho de Segurana no binio 2010-2011. autor, entre outras obras, de O sexto membro permanente: o Brasil e a criao da ONU (Contraponto Editora).
Sumrio
I. Introduo ..................................................................................9
II. Antecedentes: aprendendo com o passado ..............................15
III. Criao: sob o fogo cerrado da guerra ......................................27
IV. Normas: a estrutura da Carta ...................................................41
V. Funcionamento: mtodos de trabalho ......................................57
VI. Prtica: durante e depois da Guerra Fria ..................................69
VII. Desafios: paz, desenvolvimento e segurana responsvel .......97
VIII. Reforma: uma agenda por implementar ................................. 115
IX. Bibliografia bsica ................................................................... 131
9
iIntroduo
As Naes Unidas mantm atualmente o segundo maior
contingente militar distribudo pelo mundo, atrs somente
dos Estados Unidos. Um pas que tivesse sob sua bandeira
mais de 117 mil militares, policiais, observadores e pessoal
civil atuando em 16 misses diferentes por todo o globo
dificilmente seria ignorado pela opinio pblica. Se esse
mesmo pas administrasse um oramento de 7,5 bilhes de
dlares para manter essa estrutura em funcionamento seria
improvvel que fosse visto como irrelevante.
No caso da ONU, que no um pas e tampouco possui
a autoridade de um governo mundial, parece haver maior
necessidade de explicar o porqu de sua importncia, j que
parte do pblico no se mostra inteiramente convencido.1
Mais ainda, o Conselho de Segurana, o rgo que define
os termos, autoriza, extingue ou renova os mandatos
dessas misses, ainda percebido s vezes pelo cidado
comum como uma entidade misteriosa, distante, quase
1 Sobre a autoridade das Naes Unidas cf. LOPES, Dawisson Belm. A ONU entre o passado e o futuro: a poltica da autoridade. Curitiba: Editora Appris, 2012; cf. tambm a coletnea organizada por WEISS, Thomas G. & DAWS, Sam (ed.). The Oxford Handbook on the United Nations. Oxford: Oxford University Press, 2007.
Eugnio V. Garcia
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apartada da realidade, sem um papel efetivo que justifique
a participao nas suas decises de um ou outro Estado
que j no se encontre ali representado. Afinal, pergunta-
-se frequentemente, por que fazer parte do Conselho
de Segurana?
Como organizao intergovernamental, a ONU um espao
institucionalizado de dilogo, negociao e deliberao entre
Estados soberanos. A Organizao busca disciplinar a
conduta desses Estados, mas no se prope a assumir
funes de supranacionalidade. Um de seus desafios
consiste em harmonizar o individual e o coletivo, a razo
comunitria e a razo de Estado. Gelson Fonseca Jr. desenvolveu
o conceito de interesses multilateralizveis, segundo o
qual os Estados possuem certos interesses que se prestam
a um encaminhamento pela via da cooperao. O plano
multilateral, nesse sentido, pode ser tanto o locus para a
legitimao de normas, conceitos e prticas dos Estados ou
para a gestao de interesses comuns com potencial para
assumir uma manifestao concreta de ao conjuntamente
coordenada.2
Em termos gerais, salientar a importncia do sistema
das Naes Unidas exigiria outro volume, considerando
a multiplicidade de suas tarefas e a diversidade de temas a
que se dedica, incluindo suas agncias, fundos e programas.
Mais de 500 tratados multilaterais em todas as reas foram
negociados e adotados sob os auspcios da ONU. Sua
2 FONSECA, Gelson. O interesse e a regra: ensaios sobre o multilateralismo. So Paulo: Paz e Terra, 2008; e RUGGIE, John Gerard. Multilateralism matters: the theory and praxis of an institutional form. Nova York: Columbia University Press, 1993, passim.
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Conselho de Segurana das Naes Unidas
contribuio defesa do meio ambiente, ao direito do mar,
do espao e da explorao da Antrtida tem sido inegvel.
O Protocolo de Montreal foi fundamental para a proteo
da camada de oznio, algo que antes parecia uma meta
inatingvel. A legislao internacional em telecomunicaes,
transporte, navegao e aviao civil definiu padres de
segurana e normas tcnicas universalmente aceitas,
com impacto em boa parte da estrutura normativa que
movimenta a economia mundial: estatsticas, legislao
comercial, procedimentos alfandegrios, propriedade
intelectual e governana dos negcios. Avanou-se muito
na consolidao de direitos humanos, trabalhistas, de
mulheres, crianas, minorias e grupos vulnerveis. A ajuda
humanitria coordenada pela ONU atende a refugiados,
vtimas de desastres e catstrofes naturais. O Programa
Mundial de Alimentos leva assistncia a 90 milhes de
pessoas em mdia por ano. Projetos de desenvolvimento
do PNUD na frica e em outras regies combatem a pobreza
e promovem aes sociais e educacionais que raramente
atraem as manchetes dos jornais. A Organizao Mundial
da Sade foi instrumental na conteno de epidemias
globais, como a gripe aviria e a gripe suna (influenza
AH1N1). Em zonas que vivenciaram conflitos, foram
feitos trabalhos de desminagem em mais de 40 pases.
O processo de descolonizao, que a ONU apoiou, levou
desativao do Conselho de Tutela, rgo criado para fomentar o
desenvolvimento progressivo dos territrios no autnomos
Eugnio V. Garcia
12
para que alcanassem o autogoverno ou a independncia.
A lista poderia continuar com outros exemplos.3
A ONU, que est perto de completar 70 anos em 2015, no
nem intil nem a panaceia universal. Se no foi possvel
realizar ainda a paz perptua de que falava Immanuel Kant,
tampouco vivemos no estado de natureza imaginado por
Thomas Hobbes. Com seus erros e acertos, a Organizao no
deve ser descartada a priori como um ator sem relevncia
que no merea a ateno de pesquisadores, professores,
alunos e pessoas sinceramente preocupadas com o futuro
da nossa existncia e do planeta. Como afirmaram dois
estudiosos: Investigar a ONU deveria ser problematizar
a ONU, ou seja, no aderir ou criticar simplesmente, mas
mostrar como ela funciona, como se do os jogos de fora
em seu interior e quais so os desdobramentos e efeitos
desse funcionamento na poltica internacional.4
Quando o problema se refere segurana, mesmo que as
Naes Unidas no exeram atributos supranacionais, pode
haver a expectativa de que a Organizao cumpra funes
policiais em face de conflitos sangrentos que recebem
cobertura macia da mdia, sobretudo no Ocidente. Pelo
menos duas leituras mais imediatas poderiam surgir como
reao a determinado noticirio: que a ONU no serve para
nada, afirmao supostamente derivada de uma anlise
realista do cenrio mundial, que menoscaba elementos
3 Cf. 60 maneiras das Naes Unidas fazerem a diferena, Departamento de Informao Pblica, Nova York, , acesso em 12 set. 2013.
4 RODRIGUES, Thiago & ROMO, Wagner de Melo (orgs.). A ONU no sculo XXI: perspectivas. So Paulo: Editora Desatino, 2011, p. 13.
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Conselho de Segurana das Naes Unidas
ticos, normativos e institucionais presentes na vida
internacional; ou que a ONU tem o dever de resolver os
conflitos, aspirao que evoca um sentimento idealista
que superestima a capacidade real da Organizao de
intervir decisivamente em situaes crticas. o caso de
massacres contra civis ou ataques a populaes indefesas,
muitas vezes envolvendo mulheres, idosos e crianas entre
as vtimas. Quanto mais dramtico o quadro, mais se espera
uma ao da ONU ou da comunidade internacional, com a
percepo de que algum deveria fazer algo para evitar
a continuao de tal violncia, inadmissvel por qualquer
prisma que se olhe.
H vrias abordagens possveis para a questo do
Conselho de Segurana. Uma delas seria analisar o seu papel
no contexto mais geral da manuteno da paz e da segurana,
segundo um enfoque de relaes internacionais em sentido
lato. O rgo pode tomar decises com potencial para afetar
a vida de milhes de pessoas e ter um impacto profundo em
certos cenrios onde atua, como no caso de alguns pases
africanos.5 Sem excluir outras possibilidades metodolgicas,
pode-se considerar o funcionamento do Conselho no seu
dia a dia e a forma como alcana suas decises, incluindo
seus mtodos de trabalho e questes processuais. Outra
opo seria investigar a atuao especfica do Conselho em
temas de sua agenda, onde cada assunto tem sua dinmica
prpria e no raro uma complexidade intrnseca. Foco de
tenses e graves conflitos que ainda ecoam no presente, a
5 Para uma viso multifacetada cf. LOWE, Vaughan, et al. (ed.). The United Nations Security Council and war: the evolution of thought and practice since 1945. Oxford: Oxford University Press, 2008.
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situao na Sria, por exemplo, desde 2011 vem sendo objeto
de negociaes, propostas, textos e discusses no Conselho
sobre formas de encaminhar o problema. Neste livro, por
razes de espao, dada a dificuldade em aprofundar cada
temtica separadamente e sem prejuzo das reflexes
tericas ou do substrato jurdico que lhe inerente, sero
privilegiadas as abordagens que buscam entender o pano
de fundo por trs da atuao do Conselho, com especial
ateno aos aspectos histricos e prticos, para que o leitor
possa tirar suas prprias concluses a respeito de sua
importncia e significado para a poltica mundial nos dias
de hoje.
Existe literatura abundante sobre o Conselho de
Segurana. A bibliografia bsica sugerida ao final deste
livro inclui somente obras em portugus que podem servir
de introduo ao leitor interessado em expandir seus
conhecimentos na rea. As notas de rodap ao longo do
texto contm referncias mais especializadas, mas no
esgotam o vasto leque de fontes disponveis. Na Internet,
onde as opes so igualmente amplas, preciso sempre
critrio ao avaliar a credibilidade da informao apresentada.
Alm da pgina oficial da ONU , pode ser til a
consulta aos relatrios e artigos do Security Council Report
, instituio acadmica sediada
em Nova York. Especificamente sobre a reforma do Conselho
de Segurana, o website de diplomacia pblica dedicado ao
assunto constitui um ponto de
partida para pesquisas mais aprofundadas.
15
iiAntecedentes: aprendendo com o passado
Embora a histria da organizao internacional
seja antiga e remonte aos primrdios da civilizao,
de natureza relativamente recente o mpeto de criar
organizaes permanentes ou mecanismos incumbidos de
prevenir conflitos, banir a guerra e resolver o problema
da ordem nas relaes entre Estados soberanos.6 No
sculo XIX, as grandes potncias detinham a supremacia
sobre o gerenciamento da ordem mundial, os conceitos nos
quais se baseava essa ordem e as decises estratgicas
cruciais em questes de guerra e paz. Desde os tempos
antigos, argumentava-se, o protagonismo nessa rea havia
sempre pertencido aos que acumulavam maior poder. Essa
sabedoria convencional era raramente desafiada. O Concerto
Europeu que emergiu aps o Congresso de Viena de 1815
poderia ser descrito como um mecanismo de concertao
de potncias destinado a conduzir assuntos internacionais
(majoritariamente europeus) segundo as vises, os
interesses e as necessidades dos atores principais. O direito
6 RENGGER, Nick J. International relations, political theory and the problem of order: beyond international relations theory? Londres: Routledge, 1999.
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16
internacional em construo de certo modo refletia esse
entendimento ao legitimar, proteger e conferir liberdade de
ao quelas mesmas potncias.7
Na era do imperialismo, das conquistas coloniais e da
diplomacia das canhoneiras, a ameaa e o uso da fora
contra povos semibrbaros ou no civilizados era uma
prtica comum, avalizada pelo esprito da poca e amparada
em normas e discursos justificadores. Nesse mundo
dominado pelas assimetrias de poder, sem restries legais
coero militar unilateral e sem organizaes multilaterais
de carter poltico, Estados pequenos ou potncias mdias,
quando no assediados, invadidos ou ocupados, eram no
mais das vezes relegados a um status secundrio.
As Conferncias da Paz da Haia, uma das primeiras
experincias de diplomacia multilateral tal qual a conhecemos,
inclua pases de diferentes regies. Esses conclaves, no
entanto, tinham uma agenda mais estreita e seu foco era
jurdico, em busca de uma regulamentao mais elaborada
da guerra, admitindo-a ser um dado da realidade que caberia
disciplinar. Convocada por iniciativa do czar da Rssia,
Nicolau II, a Primeira Conferncia da Haia, em 1899, reuniu
26 Estados, mas da Amrica Latina apenas o Mxico esteve
representado. J na Segunda Conferncia, em 1907, dos 44
Estados participantes, 18 eram latino-americanos, incluindo
o Brasil. Ao contrrio dos grandes congressos tradicionais,
destinados s negociaes conclusivas de guerras envolvendo
potncias de primeira ordem, as Conferncias da Haia
tinham por objetivo discutir mecanismos de preservao da
7 CASSESE, Antonio. International law. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 11.
17
Conselho de Segurana das Naes Unidas
paz e de soluo pacfica dos conflitos. Havia pouco espao
para suscitar demandas polticas por maior participao em
decises-chave por parte de pases fora do crculo de ferro
do poder.
Mesmo assim, personagens como Rui Barbosa, delegado
brasileiro Segunda Conferncia da Haia, esboaram uma
reao em defesa do reconhecimento do princpio da
igualdade soberana entre os Estados. Rui assim se exprimiu:
At agora os Estados, to diversos na extenso do territrio, na riqueza, na fora, tinham entre eles, todavia, um ponto de comensurabilidade moral. Era a soberania nacional. Sobre esse ponto sua igualdade jurdica estabelecer-se-ia de uma maneira inquebrantvel. Nesta fortaleza de um direito igual para todos, e igualmente inviolvel, inalienvel, indiscutvel, cada Estado, grande ou pequeno, sentir-se-ia to senhor de si mesmo e to seguro em relao aos outros, quanto o cidado livre entre os muros de sua casa. A soberania a grande muralha da Ptria.8
Ao defender as potncias menores na Haia, Rui ao
mesmo tempo condenava, ainda que implicitamente, o
carter oligrquico da hegemonia das grandes potncias,
cujo poder de influncia e de deciso residia sobretudo na
capacidade que tinham de uso da fora. No que se deixasse
de reconhecer desigualdades de fato entre Estados. Visava-
-se, sim, ao reconhecimento da igualdade de direito para
8 BARBOSA, Ruy. Obras completas, vol. XXXIV (1907), Tomo II, Segunda Conferncia da Paz. Rio de Janeiro, MEC, 1966, p. 256 (original em francs); cf. tambm CARDIM, Carlos Henrique, A raiz das coisas: Rui Barbosa, o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.
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assegurar, em moldes liberais, a equidade na representao
formal das soberanias. Subjacente ao pensamento barbosiano
estava, portanto, a ideia de superao das relaes
assimtricas de poder por novas formas de interao
diplomtica, nas quais o estatuto igualitrio entre os atores
seria o dado essencial.
A Primeira Guerra Mundial significou o colapso do velho
sistema de equilbrio de poder na Europa. Acordos secretos,
profuso de alianas entre Estados, corrida armamentista,
rivalidades econmicas, nacionalismo exacerbado e polticas
predatrias foram todos fatores acusados de levar o mundo
catstrofe. Durante o conflito, houve grande clamor da
opinio pblica por medidas que pudessem impedir a
repetio de tragdia semelhante. Segundo a perspectiva
idealista corrente, aquela deveria ter sido a guerra para
acabar com todas as guerras. A Conferncia da Paz de
Paris, em 1919, ofereceu a oportunidade de remodelar
a ordem mundial e o Presidente dos Estados Unidos,
Woodrow Wilson, embarcou em uma cruzada pessoal para
a formao de uma associao geral de naes, includa
entre os objetivos de guerra norte-americanos (Quatorze
Pontos), com o propsito de fornecer garantias mtuas de
independncia poltica e integridade territorial tanto aos
grandes quanto aos pequenos Estados.
A Liga (ou Sociedade) das Naes foi a primeira
organizao internacional de escopo universal, em bases
permanentes, voluntariamente integrada por Estados
soberanos, com o fito de instituir um sistema de segurana
coletiva, promover a cooperao e assegurar a paz futura.
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Conselho de Segurana das Naes Unidas
Esse objetivo implicava que toda a comunidade internacional
(ou, melhor dizendo, os membros da Liga) devia mobilizar-
-se para acudir em defesa do pas agredido e sustentar
a obedincia ao Pacto da Liga. Essa mesma organizao
deveria resolver controvrsias de maneira pacfica, promover
relaes amistosas entre as naes e fortalecer a cooperao
nos campos econmico, social, cultural e humanitrio.
Com isso em mente, a estrutura da Liga foi organizada em
torno de trs rgos principais: um Conselho Executivo,
de composio restrita, com membros permanentes e no
permanentes; uma Assembleia aberta a todos os Estados-
-membros para o exerccio do debate pblico e da diplomacia
parlamentar sobre todas as questes que afetassem a paz; e
um Secretariado com funes basicamente administrativas,
chefiado por um Secretrio-Geral. Alm disso, foi criado
um sistema de mandatos para territrios no autnomos
e tomada a deciso de estabelecer a Corte Permanente
de Justia Internacional (CPJI) para solucionar por meios
pacficos controvrsias entre os Estados.
Em certo sentido, a criao da Liga das Naes buscava
alterar algumas regras do jogo, ao menos do ponto de vista
legal-institucional. Mas, quando se iniciaram seriamente
as discusses sobre uma organizao que garantisse a
preservao da paz, defensores da regra tradicional de
que might makes right rapidamente tentaram aplic- -la Liga, com a aparente motivao de prosseguir como
sempre haviam feito. Rascunhos preliminares preparados
pelo Foreign Office britnico tinham em vista um Conselho
Executivo integrado unicamente pelas grandes potncias.
Eugnio V. Garcia
20
Esse Conselho proposto deveria replicar o Conselho Supremo
de Guerra, que havia cumprido a funo de instncia de
coordenao das aes aliadas no esforo de guerra e em
outros assuntos ligados negociao dos futuros termos
de paz.
A Conferncia da Paz dividiu os participantes entre
potncias com interesses gerais e potncias com
interesses particulares. A comisso designada para preparar
o texto do Pacto possua originalmente quinze membros:
dois delegados de cada uma das cinco grandes potncias e
cinco de aliados menores (Blgica, Brasil, China, Portugal e
Srvia). Desde a primeira reunio da comisso, as potncias
menores pressionaram por maior representao. Seu apelo
resultou no convite a quatro outros pases para tambm
ingressarem na comisso: Grcia, Polnia, Romnia e
Tchecoslovquia.9
A minuta do Pacto redigida pelos britnicos se baseou
fortemente no Relatrio Phillimore, aprovado pelo Gabinete
em Londres. Cabe lembrar que o memorando do General
Smuts favorecia a reivindicao de reservar aos Estados
menores, pequenas ou mdias potncias, algum tipo de
representao no rgo mximo da projetada Liga. Esse
plano influenciou em parte as ideias que Wilson tinha sobre
o assunto. Depois de negociaes diretas e alguns ajustes
entre os Estados Unidos e a Gr-Bretanha, que produziram
conjuntamente o projeto Hurst-Miller, a segunda reunio
da comisso decidiu acatar o princpio de que as potncias
9 TEMPERLEY, Harold W. Vazeille (ed.). A history of the Peace Conference of Paris. Londres: Oxford University Press, 1969, vol. II, p. 27.
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Conselho de Segurana das Naes Unidas
com interesses particulares teriam o direito de se verem
representadas. Ao final, a proposta submetida ao plenrio
da Conferncia inclua tanto as pequenas quanto as grandes
potncias no Conselho.10
A composio original do Conselho da Liga das
Naes previa cinco membros permanentes e quatro no
permanentes. A razo para essa distribuio de assentos
residia na suposta necessidade de que houvesse uma
maioria de grandes potncias na instituio responsvel
por zelar pela segurana mundial. Se tal ocorresse, seria
aplicada na prtica a regra tradicional, de conferir poder
a quem j o possui, a despeito da presena formal
no Conselho de Estados menores, vistos por realistas
extremados da poca como pases desimportantes ou
convidados ilustres chamados a dar uma aparncia liberal
ao Conselho. O Artigo 4 do Pacto dispunha que o Conselho
seria composto de representantes das principais potncias
aliadas e associadas (EUA, Frana, Gr-Bretanha, Itlia e
Japo), bem como de representantes de quatro outros
Estados-membros, a serem nomeados oportunamente pela
Assembleia. At que essa primeira designao fosse feita
pela Assembleia, dizia o Pacto, os representantes da Blgica,
Brasil, Espanha e Grcia seriam membros no permanentes
do Conselho (note-se que foram escolhidos trs pases
europeus e apenas um, sul-americano, fora da Europa).11
Uma vez adotado em definitivo o procedimento anual de
10 TEMPERLEY, Harold W. Vazeille (ed.). A history of the Peace Conference of Paris. Londres: Oxford University Press, 1969, vol. II, p. 430-441.
11 GARCIA, Eugnio V. Entre Amrica e Europa: a poltica externa brasileira na dcada de 1920. Braslia: Editora UnB/FUNAG, 2006, especialmente Captulo 5.
Eugnio V. Garcia
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votao pela Assembleia para os assentos temporrios,
estabeleceu-se uma distino entre aqueles Estados que
ocupavam postos permanentes, sem terem sido eleitos, e
os demais, sujeitos ao escrutnio democrtico.
O primeiro srio golpe credibilidade da Liga das Naes
foi a recusa do Senado norte-americano em ratificar o
Tratado de Versalhes, em 1920, o que afastou os Estados
Unidos da organizao sediada em Genebra. Apesar disso,
em seu primeiro perodo de existncia, a Liga obteve alguns
pequenos sucessos polticos: resoluo da questo territorial
das Ilhas Aaland entre a Sucia e a Finlndia (1920); defesa
da soberania da Albnia, ameaada por foras gregas e
iugoslavas (1921); acordo sobre a Alta Silsia, reivindicada
pela Alemanha e pela Polnia (1922); cesso Litunia da
cidade porturia de Memel (1924); retirada de tropas gregas
da Bulgria (1925); e resoluo da disputa sobre a provncia
de Mosul entre o Iraque e a Turquia (1926).
A ausncia dos Estados Unidos reduziu o nmero
de membros permanentes a quatro. A composio do
Conselho, porm, revelou-se muito mais dinmica do que
o esperado. Com o tempo, as potncias menores lograram
incrementar numericamente sua representao. Os assentos
no permanentes foram primeiro aumentados para seis, em
1922, e posteriormente para nove em setembro de 1926,
quando a Alemanha ingressou na Liga e se tornou o quinto
membro permanente do Conselho.12 Mais tarde, depois da
12 SCELLE, Georges. Une crise de la Socit des Nations: la rforme du Conseil et lentre de lAllemagne a Genve, mars-septembre 1926. Paris: Les Presses Universitaires de France, 1927; MYERS, Denys. Representation in League of Nations Council. American Journal of International Law. Washington, vol. 20, n 4, October 1926, p. 689-713.
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Conselho de Segurana das Naes Unidas
sada da Alemanha e do Japo, o nmero de assentos eletivos
foi novamente aumentado de nove para onze. A Itlia se
retirou da Liga em 1937, ao passo que a Unio Sovitica
foi admitida como membro permanente em 1934, at ser
expulsa em 1939, em virtude da invaso militar da Finlndia
pelo Exrcito Vermelho. Essas mudanas frequentes na
composio do rgo no obliteraram o fato de que, ao fim
e ao cabo, a maioria no Conselho deixou de pertencer s
grandes potncias (cinco contra quatro em 1919) e passou
definitivamente para o lado dos Estados menores.
A rotao peridica de muitos membros ensejou a adoo
de regras informais para orientar o processo. Critrios
regionais comearam a ser aplicados pela facilidade em
selecionar Estados de determinado grupo ou regio, que
seriam depois substitudos por pases do mesmo grupo to
logo concludos seus mandatos. No obstante, medida
que o modus operandi do sistema se desenvolvia, nenhum tratamento diferenciado foi atribudo s potncias mdias
ou a potncias regionais. Mesmo os chamados assentos
semipermanentes criados em 1926, com mandatos
renovveis, foram pensados como maneira de acomodar os
interesses especficos de dois pases europeus (Espanha e
Polnia) e no tinham como referncia explcita qualquer
definio de potncia regional ou conceito similar.13 foroso
reconhecer, nesse contexto, que o grupo de membros
permanentes permaneceu como domnio exclusivo daqueles
pases considerados grandes potncias. Apesar dos ganhos
13 HOLBRAAD, Carsten. Las potencias medias en la poltica internacional. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1989, p. 66-67.
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em representao obtidos no Conselho da Liga, em benefcio
de toda a organizao, a ampliao verdadeira do rgo se
restringiu aos assentos temporrios.
O Pacto exortava os Estados a observar rigorosamente as
normas do direito internacional e no recorrer guerra para
resolver suas diferenas. Caso surgisse uma controvrsia
suscetvel de produzir uma ruptura, o caso deveria ser
submetido a um processo de arbitragem ou soluo judiciria.
Se no houvesse acordo, o Conselho seria acionado e
prepararia um relatrio, que poderia ser aceito ou no pelas
partes litigantes. Em qualquer situao, segundo o Artigo
15, os membros da Liga se reservavam o direito de proceder
como julgassem necessrio para a manuteno do direito e
da justia. Deficincias inerentes ao Pacto logo se fizeram
evidentes. Em 1921, uma resoluo da Assembleia declarou
que seria da competncia de cada Estado-membro decidir
por si mesmo se uma violao do Pacto havia sido ou no
cometida. Confirmava-se assim que a aplicao das sanes
previstas no Artigo 16 (rompimento de relaes comerciais e
financeiras ou medidas que envolvessem o uso de efetivos
militares, navais ou areos) dependia essencialmente da
disposio dos pases interessados em tomar os passos
necessrios para fazer valer a autoridade da Liga.
Ainda que fosse pequeno o progresso em questes de
desarmamento ou na soluo de conflitos mais graves, a
Liga das Naes desenvolveu intensa atividade em reas
de interesse mais tcnico do que poltico: comunicaes e
trnsito, trfico de mulheres e crianas, refugiados, proteo de
minorias, combate ao pio, higiene, cooperao intelectual,
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Conselho de Segurana das Naes Unidas
direito internacional privado, entre outras. Quando tiveram
incio as crises provocadas pelos regimes nazifascistas, as
limitaes polticas da Liga se tornaram mais evidentes.
A organizao genebrina no conseguiu reagir conforme
esperado diante da invaso japonesa do territrio chins
da Manchria em 1931. Aps o ataque da Itlia na Abissnia
(Etipia), em 1935, o Conselho chegou a adotar sanes
econmicas, mas estas foram largamente desrespeitadas
e tiveram pouca eficcia. Tambm causou m impresso a
impotncia da Liga durante a Guerra Civil Espanhola
(1936-1939), incapaz de ter qualquer papel de relevo para
conter a violncia.
Na Amrica Latina, a Liga das Naes patrocinou um
plano de paz para mediar a questo de Letcia e uma
comisso internacional foi enviada zona do conflito entre
a Colmbia e o Peru para supervisionar o cumprimento do
acordo em 1934. A organizao no pde evitar, todavia,
que a Bolvia e o Paraguai entrassem em guerra pela posse
do Chaco no perodo 1932-1935. A esta altura, o poder do
Conselho ficara severamente limitado, dependente acima
de tudo da capacidade de resposta e liderana da Gr-
-Bretanha e da Frana, que sozinhas no tinham como impor
o cumprimento das disposies do Pacto. Com a ecloso de
nova guerra mundial em 1939, a Liga praticamente deixou
de funcionar, condenada ao descrdito por haver falhado
em sua misso mais importante (manter a paz), at ser
oficialmente desativada em abril de 1946 e seus arquivos e
instalaes transferidos s Naes Unidas.
27
iiiCriao: sob o fogo cerrado da guerra
Durante a Segunda Guerra Mundial, a memria recente das
frustraes do entreguerras influenciou significativamente a
configurao da nova ordem. Os erros do passado deveriam
ser evitados. Um exemplo amide evocado era o do Artigo 16 do
Pacto, como visto, relativo s sanes, que previa medidas
polticas, econmicas e financeiras em represlia contra
Estados que recorressem guerra. Caso a violao do
Pacto persistisse, o Conselho podia apenas recomendar
aos Estados-membros interessados que contribussem,
com efetivos militares, navais ou areos, para as foras
armadas destinadas a fazer respeitar os compromissos da
Liga. Para sanar o problema, percebia-se como necessrio,
na viso dos planejadores polticos na dcada de 1940, que
a ao armada fosse obrigatria, com os passos requeridos
claramente explicitados. A organizao que fosse executar
essa tarefa deveria ter dentes, isto , receber os meios
adequados para uma dissuaso crvel no terreno militar.
Mecanismos puramente legais no seriam suficientes para
liquidar pendncias entre Estados. E para que esse esquema
de segurana funcionasse, a organizao precisaria contar
Eugnio V. Garcia
28
entre seus membros com as potncias capazes de dar peso
e autoridade s suas decises.14
Outra lio extrada foi iniciar cedo o planejamento
do ps-guerra. J em 1939, os primeiros planos secretos
comearam a ser encomendados pelo Departamento de Estado.
A ONU no surgiu de incio como um projeto acabado. Seus
proponentes testaram vrias possibilidades antes de chegar
a uma formatao mais sistemtica. Diferentes esboos iam
sendo analisados, debatidos e muitas vezes descartados.
O contexto mundial era atpico. O cenrio estratgico se
encontrava em profunda mutao. Os distintos interesses
das grandes potncias nos arranjos de paz, as vicissitudes
da poltica entre os Aliados e os efeitos produzidos pela
guerra sobre os negociadores foram decisivos para moldar a
forma que a Organizao tomou.
Na Carta do Atlntico, concluda entre o Presidente
norte-americano, Franklin Delano Roosevelt, e o Primeiro-
-Ministro britnico, Winston Churchill, em 1941, os dois
lderes defenderam o abandono do uso da fora por
todas as naes do mundo. Para que a paz futura pudesse
ser mantida, seria essencial o desarmamento das naes
agressoras at o estabelecimento de um sistema mais
amplo e permanente de segurana geral no ps-guerra.15
Os termos vagos haviam sido propositais. A primeira minuta
do documento, redigida pelo lado britnico, fazia meno a
14 ARMSTRONG, David, et al. From Versailles to Maastricht: international organization in the twentieth century. Basingstoke: Palgrave, 1996.
15 HARTMANN, Frederick H. (ed.). Basic documents of international relations. Nova York: McGraw-Hill, 1951, p. 139-140.
29
Conselho de Segurana das Naes Unidas
uma organizao internacional efetiva para salvaguardar
a paz uma vez vencida a tirania nazista. Essa referncia foi
considerada inadmissvel por Roosevelt. Como os Estados
Unidos no estavam em guerra naquele momento, o
forte sentimento isolacionista ainda existente poderia ser
perigosamente aulado caso um compromisso desse tipo
fosse assumido por seu Presidente. Esse impedimento seria
enfim superado na esteira dos ataques japons a Pearl
Harbor, que provocou a entrada dos EUA no conflito.
Em 1o de janeiro de 1942, a Declarao das Naes
Unidas foi assinada, em Washington, pelos pases aliados
contra o Eixo. Estados Unidos, Gr-Bretanha, Unio Sovitica
e China firmaram primeiro o texto. Os outros 22 pases
signatrios manifestaram depois sua concordncia. A declarao
formalizava a aliana de guerra, cujo nome passaria a ser
oficialmente Naes Unidas. Os Aliados prometiam ajudar-
-se mutuamente, com o pleno emprego de seus recursos
militares e econmicos, na luta pelo triunfo contra o
hitlerismo. Ainda que endossasse os princpios da Carta do
Atlntico, o curto texto no tratou de questes relacionadas
com a paz, a no ser o compromisso de no celebrar um
armistcio separado com os inimigos.
A partir de 1943, com a evoluo da guerra a favor dos
Aliados, o tema da organizao internacional comeou a
ganhar contornos mais precisos. Como da ocasio anterior
em 1919, encabeada pelo zelo missionrio de Wilson, os
Estados Unidos tomaram a iniciativa. Desde o incio, o
Presidente Roosevelt acalentou a ideia de estabelecer, nas
Eugnio V. Garcia
30
suas palavras, uma tutela dos poderosos.16 Sua principal
premissa era a crena percebida de que caberia s potncias
vitoriosas a responsabilidade primria pela imposio da
paz aps a guerra, pela fora se preciso. Roosevelt avaliava
que as naes fracas no possuam meios de defesa
contra uma agresso por parte de pases mais fortes, em
particular no caso de uma ameaa assombrosa semelhante
ao delrio nazifascista. Calculava-se que no seu devido
tempo os Aliados ganhariam a guerra e as potncias do
Eixo seriam desarmadas. Nesse cenrio, os Trs Grandes
(Estados Unidos, Gr-Bretanha e Unio Sovitica) seriam os
nicos capazes de fornecer segurana na escala mundial
exigida. Roosevelt acrescentou a China sua lista, em razo
principalmente do desejo norte-americano de reforar a
posio de seu aliado na luta contra o Japo no Pacfico.
Com o poder somado dos Quatro Policiais, imaginava-se,
os Estados mais desprotegidos da comunidade internacional
teriam a assistncia militar necessria para se defenderem
de ataques externos.17
A lgica por trs do pensamento de Roosevelt no deixava
de ter um componente regional. Ele temia que, ao final da
guerra, a opinio pblica norte-americana pudesse resistir
s tentativas de manter os Estados Unidos engajados em
operaes militares ao redor do mundo. Haveria presso para
retornar os soldados casa to logo possvel. Assim, nos
seus planos para a nova organizao mundial, baseada no
16 HOOPES, Townsend & BRINKLEY, Douglas. FDR and the creation of the U.N. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 46.
17 RUSSELL, Ruth. A history of the United Nations Charter: the role of the United States, 1940-1945. Washington: Brookings Institution, 1958, p. 96.
31
Conselho de Segurana das Naes Unidas
poderio aliado, Roosevelt concebeu um Conselho dominado
pelas grandes potncias, que deveriam agir conjuntamente
para prevenir futuras agresses dos ex-inimigos e distribuir
de forma mais equilibrada as responsabilidades pela se-
gurana em cada regio. Na Europa, a Gr-Bretanha e a
URSS conteriam a Alemanha. Na sia, a China seria um
contrapeso ao Japo, podendo eventualmente contar com
apoio sovitico no Extremo Oriente. Quase inteiramente
controlada pelas potncias coloniais europeias, a frica no
representava um desafio estratgico expressivo. O Imprio
Britnico ainda seria til do ponto de vista da segurana em
reas como o subcontinente indiano e o Sudeste asitico.
O Hemisfrio Ocidental, incluindo a Amrica Latina e todo o
Caribe, era considerado zona de influncia por excelncia
dos EUA, que continuariam a sustentar seu autoatribudo
poder de polcia internacional. No Oriente Mdio, Roosevelt
flertou vagamente com a ideia de um assento permanente
muulmano, mas tal proposio jamais passou de um
pensamento momentneo. Esse conjunto, ainda segundo
sua viso, permitiria a retirada das foras norte-americanas
desdobradas globalmente e compartilharia regionalmente os
custos da segurana coletiva.18
Na Amrica do Sul, o pas mais bem posicionado era o
Brasil. Para os Estados Unidos poderia ento ser til ter um
firme aliado latino-americano no Conselho de Segurana.
Incluir o Brasil como o sexto membro permanente seria
coerente com o grand design de Roosevelt para o ps-guerra,
18 CAMPBELL, Thomas M. Masquerade peace: Americas UN policy, 1944-1945. Tallahassee: Florida State University Press, 1973, p. 86-87.
Eugnio V. Garcia
32
articulando as diferentes regies em torno de potncias com
peso especfico em suas reas geogrficas. A colaborao
brasileira aos Aliados havia sido em geral muito apreciada
pelo governo norte-americano, em particular por Roosevelt
e pelo Secretrio de Estado Cordell Hull, que consideravam
o Brasil um modelo de bom vizinho. A proposta, todavia,
encontrou resistncias de britnicos e soviticos, refratrios
a um aumento no nmero de assentos permanentes
maior do que cinco. Alegava-se que, se fosse expandido, o
Conselho poderia ver sua eficcia comprometida.19
Winston Churchill tambm tinha em mente uma
perspectiva regionalista ao conceber seus projetos pessoais
para a ONU. O Primeiro-Ministro era a favor de criar trs
Conselhos: um para a Europa, um para a sia e outro para as
Amricas. Esses trs rgos regionais deveriam operar sob
a autoridade de um Conselho Supremo Mundial, integrado
pelas potncias indiscutveis do ponto de vista militar. Com
a economia britnica severamente afetada pela guerra e o
aumento progressivo de sua dependncia em relao aos
Estados Unidos, a Gr-Bretanha no estava em condies de
sequer considerar a hiptese de arcar com o fardo de policiar
o mundo, como teria chegado a presumir possvel na fase
urea de seu poder martimo no sculo XIX.20 Para Churchill,
os EUA deveriam encarregar-se do Hemisfrio Ocidental, alm
de manter sua presena na Europa para conter qualquer
ressurgimento da Alemanha no ps-guerra e, ao mesmo
19 GARCIA, Eugnio V. O sexto membro permanente: o Brasil e a criao da ONU. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, passim.
20 HUGHES, E. J. Winston Churchill and the formation of the United Nations Organization. Journal of Contemporary History. Londres, vol. 9, no 4, October 1974, p. 177-194.
33
Conselho de Segurana das Naes Unidas
tempo, contra-arrestar desgnios expansionistas soviticos
no continente europeu. Para os britnicos, a Frana deveria
ser includa entre os Policiais como garante adicional, caso
houvesse um desengajamento norte-americano. Se todos
os Conselhos regionais funcionassem a contento, a Gr-
-Bretanha, apesar de seriamente debilitada, ainda teria voz
e no seria forada a assumir compromissos militares a cada
nova crise que surgisse. Churchill opinava que seu enfoque
era mais realista, pois acreditava que somente os pases
diretamente interessados teriam disposio para intervir com
a rapidez necessria. Essa concluso Churchill teria extrado
do episdio j mencionado da invaso da Manchria pelo
Japo em 1931. A incapacidade da Liga das Naes de dar
uma resposta altura explicava-se largamente em funo
da relutncia da Gr-Bretanha e da Frana de envolver-se
naquele front asitico longnquo.21
No frigir dos ovos, porm, o regionalismo no foi um
fator determinante na definio de quais pases deveriam
ter postos permanentes no Conselho de Segurana. Com o
consentimento dos Trs Grandes, a China e a Frana, cada
um a seu tempo, foram convidados a se incorporarem ao
grupo por motivaes polticas globais, apenas de modo
muito tnue relacionadas a consideraes estritamente
regionais. Quando a Carta da ONU foi assinada em 1945, os
Conselhos regionais imaginados por Churchill j haviam sido
descartados muito antes. Grande parte do esquema com
base regional vislumbrado por Roosevelt foi substitudo por
21 KENNEDY, Paul. The parliament of man: the past, present and future of the United Nations. Nova York: Vintage Books, 2007, p. 19.
Eugnio V. Garcia
34
uma abordagem globalista e centralizada. Houve algumas
concesses na Carta aos acordos e entendimentos regionais,
tratados no Captulo VIII. A demanda dos pases latino-
-americanos pelo reconhecimento do sistema interamericano
(cf. infra) tambm desempenhou um papel importante na
referncia ao direito de legtima defesa coletiva em cada
de agresso (Artigo 51). No obstante, em termos gerais, o
Conselho de Segurana foi investido de autoridade superior
em matria de imposio de paz. Um bom exemplo o
Artigo 53, onde se estabelece que, salvo em situaes
especficas mencionadas na prpria Carta, nenhuma ao
coercitiva seria levada a efeito por entidades regionais sem
a autorizao do Conselho.
A segurana no ps-guerra foi um dos principais
assuntos discutidos na Conferncia de Dumbarton Oaks, em
1944, cujas negociaes foram divididas em duas partes:
uma primeira rodada entre EUA, Gr-Bretanha e URSS;
e, na sequncia, uma segunda envolvendo os dois primeiros e
a China.22 O projeto de Carta elaborado pelo Departamento
de Estado serviu de texto-base para a negociao. O nome
Naes Unidas havia sido cunhado e proposto por Roosevelt
e foi mantido. Ao contrrio de Wilson, que atribua
condenao moral da opinio pblica peso capaz de dissuadir
eventuais transgressores e educ-los na boa convivncia
internacional, Roosevelt estava convencido de que a paz s
22 O principal estudo sobre a Conferncia HILDERBRAND, Robert C. Dumbarton Oaks: the origins of the United Nations and the search for postwar security. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1990.
35
Conselho de Segurana das Naes Unidas
poderia ser mantida pela fora, preferencialmente um poder
militar avassalador, mobilizado rapidamente.
Os negociadores em Dumbarton Oaks no trataram de
questes jurdicas relativas ao Estatuto da futura Corte
Internacional de Justia (CIJ), deixada a cargo de uma
comisso de juristas que se reuniu em momento posterior.
Houve, porm, consenso entre as quatro potncias de que o
Conselho de Segurana no poderia ser obrigado a executar
as sentenas proferidas pela Corte. Caberia ao Conselho a
palavra final sobre qualquer medida a ser tomada para dar
cumprimento a uma deciso dos juzes da Haia.
O resultado concreto da Conferncia foi a aprovao de
uma minuta de Carta, sob o ttulo de Propostas para o
Estabelecimento de uma Organizao Internacional Geral.
Ali se encontravam definidos os seus princpios, estrutura
e funcionamento de seus rgos principais, incluindo
um Secretariado.23 O plano a que se chegou poderia ser
visto como uma verso fortalecida da Liga das Naes,
controlada pelos Quatro Policiais. O Quinto Policial seria a
Frana. Andrei Gromyko, representante sovitico, calculou
em suas memrias que a minuta de Dumbarton Oaks teria
correspondido a 90% do texto definitivo da Carta da ONU.24
A hiptese pouco plausvel de um governo mundial,
ou qualquer estrutura semelhante, foi de antemo dada por
23 Os comentrios feitos poca pelo Brasil sobre o projeto de Dumbarton Oaks esto sintetizados em documento de 26 fev. 1945, apresentado Conferncia de Chapultepec, in: GARCIA, Eugnio V. (org.). Diplomacia brasileira e poltica externa: documentos histricos, 1493-2008. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2008, p. 454-459.
24 PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Segurana aps a Guerra do Golfo: a articulao de um novo paradigma de segurana coletiva. Braslia: FUNAG, 2010, p. 22.
Eugnio V. Garcia
36
impraticvel. A Casa Branca j havia divulgado antes uma
declarao de Roosevelt para mostrar que no se cogitava
de estabelecer uma organizao acima da autoridade
dos Estados:
Ns no estamos pensando em um superestado com suas prprias foras policiais e outros apetrechos de poder coercitivo. Ns estamos buscando um acordo efetivo e arranjos por meio dos quais as naes manteriam, de acordo com suas capacidades, foras adequadas para suprir as necessidades de prevenir a guerra e tornar impossvel a preparao deliberada para a guerra, e ter tais foras disponveis para ao conjunta quando necessrio.25
Em fevereiro de 1945, a Conferncia de Yalta, na Crimeia,
definiu entre os Trs Grandes a forma de votao no Conselho
de Segurana. Roosevelt estimava que o desejo comum de
todos os pases era conseguir eliminar a guerra por um
perodo de, pelo menos, 50 anos. Os trs lderes coincidiram
em que a unanimidade dos membros permanentes era
necessria para uma paz duradoura.26 A frmula de Yalta
estabelecia em essncia que cada membro do Conselho
teria um voto; as decises em questes processuais seriam
tomadas pelo voto da maioria; e as decises em assuntos
substantivos seriam tomadas pelo voto afirmativo de sete
membros (a Carta diz hoje nove membros), inclusive de
25 NOTTER, Harley A. Postwar foreign policy preparation, 1939-1945. Washington: Department of State, 1949, p. 269.
26 CARCER, Gonzalo Aguirre de (org.). Los documentos de Yalta. Madri: Instituto de Estudios Polticos, 1956, p. 40-45.
37
Conselho de Segurana das Naes Unidas
todos os membros permanentes (a embutido, portanto, o
poder de veto). Ficou igualmente definido que, nas decises
sobre resoluo pacfica de controvrsias, o membro do
Conselho que fosse parte na controvrsia no poderia votar.
Saa preservado desse modo o veto sobre questes que
envolvessem aes em casos de ameaa paz, ruptura da
paz ou ato de agresso (o futuro Captulo VII da Carta),
desde sanes que no implicassem o uso da fora (sanes
econmicas, interrupo de contatos por meios ferrovirios,
martimos, areos, postais, telegrficos, radiofnicos e
outros, ou o rompimento de relaes diplomticas) at
medidas coercitivas com foras militares, terrestres, navais
ou areas.27
Cumpre destacar, a propsito, algumas das contribuies
regionais ao debate. A Conferncia Interamericana sobre
Problemas da Guerra e da Paz, na Cidade do Mxico, por
exemplo, aprovou a Ata de Chapultepec, cujas recomendaes
foram apresentadas para ajudar na elaborao do estatuto
definitivo da ONU: aspirao universalidade como ideal
a que deveria tender a Organizao no futuro; ampliar e
precisar a enumerao dos princpios e fins da Organizao;
fortalecimento das atribuies da Assembleia Geral
para tornar a sua ao efetiva como rgo plenamente
representativo; estender a jurisdio e competncia da Corte
Internacional de Justia; criar um organismo internacional
encarregado de promover a cooperao intelectual e moral
entre os povos (que seria depois a UNESCO); resolver as
questes de carter interamericano preferencialmente de
27 CLEMENS, Diane Shaver. Yalta. Nova York: Oxford University Press, 1970, p. 240-243.
Eugnio V. Garcia
38
acordo com os mtodos e processos interamericanos, em
harmonia com a organizao mundial; e, finalmente, dar
adequada representao Amrica Latina no Conselho de
Segurana.
Durante a Conferncia de So Francisco, sobressaiu a
clivagem poltica entre os P-5 e o resto. Embora chamados
pelos cronistas da poca de 45 Pequenos, esse grupo
evidentemente no era homogneo. Algumas potncias
mdias se articularam para obter maior peso em certos
temas, sob a liderana de Austrlia, Brasil e Canad, entre
outros. A Blgica e os Pases Baixos tiveram papel de realce
como potncias coloniais situadas no corao da Europa,
fulcro de muitas questes estratgicas. Mas a atuao das
potncias mdias no alterou a composio do ncleo duro
do Conselho de Segurana, que permaneceu fechado em
cinco membros permanentes.
De modo semelhante ao ocorrido em 1919, as potncias
menores buscaram aumentar seu nvel de representao.
Em 1945, o nmero de postos temporrios foi limitou a
seis e, para acomodar as diferentes demandas, foram
inseridos na Carta (Artigo 23) dois critrios para a eleio
dos membros no permanentes pela Assembleia Geral:
contribuio dos Estados-membros manuteno da paz
e da segurana internacionais e aos outros propsitos da
Organizao; e distribuio geogrfica equitativa. Na viso
dos delegados, entre os outros propsitos da Organizao
estaria, especialmente, a contribuio financeira ao
oramento da ONU. Na prtica, o preenchimento dos
assentos no permanentes comeou a ser feito com base
39
Conselho de Segurana das Naes Unidas
nos grupos regionais existentes na Organizao. Antes da
primeira eleio em 1946, um acordo de cavalheiros foi
alcanado em Londres pelos P-5 para se chegar a uma
distribuio informal que perdurou por muitos anos:
dois assentos para a Amrica Latina, um para a Europa
Ocidental, um para a Europa Oriental, um para o Oriente
Mdio e um para a Comunidade Britnica. Apesar disso,
esse critrio regional serviria apenas para fins de eleio.
Os anais das negociaes em So Francisco j registravam o
entendimento de que os integrantes do Conselho deveriam
ser considerados membros por toda a organizao e no
representantes de suas prprias regies ou agrupamentos.28
Embora mais estruturado e assertivo que o da Liga das
Naes, o sistema de segurana estabelecido pela ONU foi
mantido de forma deliberada em nvel baixo e sob controle
de seus principais fundadores, detentores do veto, por
temor de se criar uma organizao genuinamente forte,
independente, dotada de capacidade militar prpria para
intervir decisivamente nos conflitos. Em especial, decises
sobre o uso da fora eram entendidas como chasse garde das grandes potncias. O resultado no seu conjunto foi
um institucionalismo mnimo, que preservou a soberania
dos Estados e no alterou a essncia do sistema poltico
interestatal. Criou-se um marco constitucional delimitado,
ainda que sujeito a crticas e reparos, com regras e
procedimentos para regular determinados aspectos das
relaes entre Estados e impor algum grau de respeito s
28 BAILEY, Sydney D. & DAWS, Sam. The procedure of the UN Security Council. Oxford: Clarendon Press, 1998, p. 142-144.
Eugnio V. Garcia
40
normas internacionais. Em um ponto especfico, contudo,
entre vrios outros, a ONU repetiu a Liga das Naes, ao
dispor que os membros permanentes do Conselho de
Segurana no seriam eleitos, mas sim nomeados em funo
da distribuio de poder que existia ao final da guerra.
41
iVNormas: a estrutura da Carta
O arcabouo normativo e institucional para o
funcionamento da ONU est delimitado no seu essencial
pela Carta de So Francisco, embora, como ser visto,
a prtica seja muito mais fluida e complexa.29 O Captulo V
trata especificamente do Conselho de Segurana, sua
composio, funes, atribuies, forma de votao e
questes processuais. O primeiro elemento estranho que
salta aos olhos no Artigo 23 a relao nominal dos cinco
membros permanentes: Repblica da China, Frana, Unio
das Repblicas Socialistas Soviticas, Reino Unido da Gr-
-Bretanha e Irlanda do Norte e Estados Unidos da Amrica
(segundo a ordem alfabtica em ingls). Por falta de reviso,
a Carta ainda menciona a Repblica da China (nome oficial
de Taiwan) no lugar da Repblica Popular da China, que
passou a fazer parte do Conselho desde 1971, e se refere
URSS em vez da Federao da Rssia, que passou a ocupar o
29 Sobre a Carta das Naes Unidas e seus artigos, cf. SIMMA, Bruno (ed.). The Charter of the United Nations: a commentary. Oxford: Oxford University Press, 2002, 2v.; BRANT, Leonardo Nemer Caldeira (org.). Comentrio Carta das Naes Unidas. Belo Horizonte: Centro de Direito Internacional-CEDIN, 2008; COT, Jean-Pierre & PELLET, Alain. La Charte des Nations Unies: commentaire article par article. Paris: Economica, 1985; TRINDADE, Otvio Augusto Drummond Canado. A Carta das Naes Unidas: uma leitura constitucional. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2012; entre outros.
Eugnio V. Garcia
42
assento sovitico aps a dissoluo da Unio em 1991. Alis,
existem outros anacronismos na Carta, como a referncia
datada a Estados inimigos.
Quanto aos dez membros no permanentes, define-se
que sero eleitos pela Assembleia Geral para um perodo de
dois anos, sem direito a reeleio imediata, tomando como
critrio especialmente a sua contribuio para a manuteno
da paz e da segurana internacionais e para os outros
propsitos da Organizao, como j dito, alm de tambm
levar-se em conta a distribuio geogrfica equitativa. Cinco
assentos eletivos se renovam a cada ano. Essa disposio
procurava evitar que houvesse uma mudana muito brusca
no rgo caso os dez membros temporrios fossem todos
substitudos ao mesmo tempo.
O Artigo 24 importante, pois, com vistas a assegurar
pronta e eficaz ao por parte das Naes Unidas, os
Estados-membros conferem ao Conselho de Segurana
a responsabilidade primria na manuteno da paz e
da segurana internacionais. Alm disso, concordam em
que no cumprimento desses deveres o Conselho aja em
nome deles, o que equivale a dizer que conferem um
mandato ao rgo para tomar decises que podem em tese
criar obrigaes a todos os Estados-membros. O Artigo 25
refora essa interpretao ao indicar que os Estados-
-membros concordam em aceitar e executar as decises do
Conselho. Muitos juristas avaliam que essa clusula torna
necessariamente vinculante as decises do rgo, como, por
43
Conselho de Segurana das Naes Unidas
exemplo, na aplicao de sanes. As opinies divergem, no
entanto, entre os prprios internacionalistas.
Essas concesses no significam que o Conselho
de Segurana deva ou possa agir livremente, como se
dispusesse de carta branca por parte dos no membros.
As atribuies especficas do Conselho esto explicitamente
delimitadas em diversos Captulos na prpria Carta, cujos
propsitos e princpios devem ser respeitados. Dito de outro
modo, o Conselho no deve considerar-se acima da lei e
tampouco seria salutar para sua legitimidade e credibilidade
se atuasse revelia ou contra o direito internacional. Uma
afronta s normas de jus cogens (lei imperativa) do direito internacional pblico colocaria o Conselho em uma posio
virtualmente indefensvel luz dos Estados-membros como
um todo e da opinio pblica.30
Claro est que a diplomacia est habituada a frequentar
o reino das ambiguidades, especialmente no que se refere
aos foros multilaterais. Entre declaraes de princpios,
generalidades, objetivos nobres, recomendaes e linguagem
de ocasio, a Carta da ONU pode ser vaga o bastante para
que cada Estado-membro encontre em seu texto a base
para alguns de seus argumentos. Como assinalou Gelson
Fonseca:
A Carta no resolve a tenso entre a regra geral e o interesse individual, oferecendo, assim, espao para que as variaes da conjuntura poltica se reflitam no desempenho da Organizao. A regra
30 Para uma discusso sobre legitimidade cf. HURD, Ian. After anarchy: legitimacy and power in the United Nations Security Council. Princeton: Princeton University Press, 2007.
Eugnio V. Garcia
44
moldura para a poltica, mas nem sempre suficiente para domestic-la. Essa uma das razes para que encontremos, na histria da ONU, uma combinao de xitos e fracassos, promessas de cooperao frutfera e tarefas inconclusas, avanos e impasses.31
Pelo Artigo 27, negociado exausto em Dumbarton
Oaks e acordado pelos Trs Grandes em Yalta, estabelece-
-se que, em questes processuais, basta o voto afirmativo
de nove membros para que as decises do Conselho de
Segurana sejam tomadas. No existe o veto, portanto, se
o tema meramente de procedimento. Por outro lado, em
todos os outros assuntos, as decises do Conselho sero
tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive
os votos afirmativos de todos os membros permanentes.
Embora no use a palavra veto, a Carta taxativa quanto
necessidade de concordncia dos P-5. Com o tempo,
prevaleceu o entendimento de que, nos temas substantivos,
a absteno (ou a ausncia) de um membro permanente
no impediria a adoo de uma resoluo do Conselho.
Ainda segundo o mesmo Artigo, nas decises previstas no
Captulo VI e no pargrafo 3 do Artigo 52, o membro que
for parte em uma controvrsia no dever exercer o direito
de voto.
Como o veto um tema fundamental na prtica
do Conselho de Segurana, importante ter presente
a circunstncia de sua aceitao, a contragosto, pelos
membros fundadores que firmaram a Carta. As conversaes
31 FONSECA, Gelson. O interesse e a regra, op. cit., p. 41.
45
Conselho de Segurana das Naes Unidas
prvias em Dumbarton Oaks se orientaram no sentido de
fortalecer os poderes a serem conferidos ao Conselho. Para
usufrurem de uma posio de poder controlar e/ou ficarem
imunes ao rgo, os Quatro Policiais (e mais tarde a Frana)
concordaram em que o veto era condio sine qua non para o projeto da ONU. A frmula de Yalta definiu em termos
gerais o seu alcance. As potncias patrocinadoras chegaram
a So Francisco com o firme propsito de no abdicar do
veto, ponto para elas inegocivel. Evidentemente, os pases
refratrios ideia de sacramentar um mandato discricionrio
aos P-5 buscaram reagir, propondo emendas e questionando
a real extenso do privilgio.32 Em resposta, os delegados
dos P-5 reuniram argumentos e, como ultima ratio, fizeram um chamado compreenso do que estava em jogo:
Em vista das responsabilidades primrias dos membros permanentes, no se pode esperar que eles, na condio atual do mundo, assumam a obrigao de agir em assunto to srio quanto a manuteno da paz e da segurana internacionais em consequncia de uma deciso com a qual no tivessem concordado.33
Nos termos ento colocados, sem a aprovao do veto a
ONU no poderia vir luz e morreria no nascedouro. Cada
pas seria deixado sua prpria sorte para se defender de
32 Questionrio submetido pelos Estados membros do Subcomit III/1/B aos quatro governos patrocinadores da Conferncia de So Francisco: EUA, Reino Unido, URSS e China. Documents of the United Nations Conference on International Organization, San Francisco, 1945. Nova York: United Nations Information Organization, 1945, vol. XI, p. 699-709.
33 SCHLESINGER, Stephen C. Act of creation: the founding of the United Nations. Cambridge: Westview Press, 2003, p. 201.
Eugnio V. Garcia
46
futuras agresses. Assumia-se que a paz (isto , a proteo
contra o Eixo ou qualquer novo agressor de peso) era um
ganho desejado por todos. A responsabilidade especial
das grandes potncias era apresentada no como benesse,
mas como um fardo que no havia sido buscado. Afinal
de contas, seguia o argumento, foram essas as potncias
que reuniram a fora necessria para vencer a guerra, com
enormes sacrifcios de vidas humanas e inumerveis perdas
materiais. A elas caberia continuar provendo segurana
aos Estados amantes da paz. Com o veto, essa mesma
responsabilidade era projetada para o ps-guerra. A Carta
consagrou a prerrogativa aos P-5 com o beneplcito do resto
dos Estados-membros, persuadidos e pressionados pela
circunstncia sui generis da Segunda Guerra Mundial.
O Captulo VI se refere soluo pacfica de controvrsias
e atribui ao Conselho de Segurana um papel-chave no esforo a ser feito pela comunidade internacional para
encontrar sadas negociadas aos conflitos. De acordo
com o Artigo 33, as partes em uma controvrsia, que possa vir a constituir uma ameaa paz e segurana
internacionais, procuraro, antes de tudo, chegar a uma
soluo por negociao, inqurito, mediao, conciliao,
arbitragem, soluo judicial, recurso a entidades ou acordos
regionais, ou a qualquer outro meio pacfico sua escolha.
O Conselho pode investigar qualquer controvrsia ou
situao suscetvel de provocar atritos entre os Estados ou
dar origem a uma controvrsia, a fim de determinar se a
continuao de tal controvrsia ou situao pode constituir
ameaa manuteno da paz e da segurana internacionais
47
Conselho de Segurana das Naes Unidas
(Artigo 34). Nesse caso, a capacidade de levar o tema ao
debate no recai somente ao Conselho, j que qualquer
Estado-membro pode solicitar a ateno tanto do Conselho
quanto da Assembleia Geral para tais situaes. Mesmo
um Estado no membro da ONU poderia faz-lo, desde que
fosse parte na controvrsia e aceitasse previamente as
obrigaes de soluo pacfica previstas na Carta (Artigo 35).
O Conselho pode recomendar procedimentos ou mtodos
de soluo apropriados, caso a caso, ficando entendido que
as controvrsias de carter jurdico deveriam, como regra
geral, ser submetidas pelas partes Corte Internacional de
Justia. So dadas ao Conselho faculdades adicionais sempre
que possam contribuir soluo pacfica da controvrsia
(Artigos 36 a 38).
Em caso de ameaas paz, ruptura da paz e atos de
agresso, os dispositivos do Captulo VII podem ser acionados. Cabe ao Conselho de Segurana determinar quando tais
situaes constituem uma ameaa paz e segurana
internacionais. A fim de evitar que a situao se agrave, o
Conselho pode fazer recomendaes ou convidar as partes
interessadas a que aceitem as medidas provisrias que lhe
paream necessrias ou aconselhveis (Artigos 39 e 40).
A Carta prev procedimentos graduais conforme a gravidade
do caso. O Conselho pode decidir sobre medidas que,
sem envolver o emprego de foras armadas, busquem
assegurar o cumprimento das decises do rgo. Para
tanto, possui a faculdade de instar os Estados-membros
da ONU a aplicar medidas que podem incluir a interrupo
completa ou parcial das relaes econmicas, dos meios
Eugnio V. Garcia
48
de comunicao ferrovirios, martimos, areos, postais, telegrficos, radiofnicos, ou de outra qualquer espcie, alm do rompimento das relaes diplomticas (Artigo 41).34
Assim, quando o Conselho de Segurana decide adotar sanes contra um pas estas podem atingir diversos graus de severidade. A prtica evoluiu muito nessa rea na ltima dcada. Pode ser incorporada, como anexo resoluo, uma lista de indivduos, organizaes e entidades sujeitas a monitoramento, restries de viagem e congelamento de bens e ativos. Estados-membros podem ser instados a proibir suprimento, venda, transferncia de itens, materiais, equipamentos, bens e tecnologia de acordo com o objetivo da resoluo. Pode-se determinar um embargo de armas e/ou vigilncia s exportaes ou importaes de tanques, veculos de combate armado, sistemas de artilharia de grosso calibre, avies e helicpteros de combate, navios de guerra e msseis, alm de controle sobre transaes financeiras internacionais e restries a novos financiamentos, emprstimos ou doaes ao pas objeto das sanes. Algumas vezes, como nas resolues que versam sobre no proliferao nuclear, prev-se que Estados-membros possam executar inspees martimas de navios suspeitos de transportar cargas em violao s decises do Conselho. Tem sido comum que a adoo das sanes seja acompanhada por um comit de especialistas, que reporta ao Conselho como rgo subsidirio.
Nem sempre o Conselho atuou dessa maneira. Foram
raros os casos de recurso a sanes durante a Guerra Fria
34 UZIEL, Eduardo. O Captulo VII da Carta das Naes Unidas e as decises do Conselho de Segurana. Poltica Externa. So Paulo: vol. 21, n 4, abr./maio/jun. 2013, p. 107-123.
49
Conselho de Segurana das Naes Unidas
e os principais tiveram lugar na frica para lidar contra
o governo branco da Rodsia do Sul (atual Zimbbue) e o
racismo do regime de apartheid da frica do Sul. Na dcada
de 1990, depois que as sanes econmicas aplicadas ao
Iraque se provaram ineficazes para mudar o comportamento
de Saddam Hussein e prejudicaram diretamente a populao
iraquiana, passou-se a ver com outros olhos a deciso de
impor sanes generalizadas, sem foco. Deu-se lugar a uma
discusso sobre a convenincia de sanes dirigidas ou
inteligentes, limitadas em seu escopo para idealmente
no causar dano humanitrio sociedade e direcionadas
para que tivessem mais efeito sobre as autoridades do
governo cuja postura se pretendia influenciar ou alterar.35
H ainda o risco, derivado de interesses polticos, de que
sanes sejam impostas aodadamente sem que a acusao
contra um pas tenha de fato fundamento crvel ou sem
uma comprovao de sua necessidade inelutvel, antes de
esgotadas todas as possibilidades diplomticas.
A real eficcia dos regimes de sanes no ponto pacfico.
Um exemplo mais recente a considerar seria a questo
nuclear iraniana. O tema migrou da Agncia Internacional de
Energia Atmica (AIEA) e foi includo na agenda do Conselho
de Segurana em 2006. As negociaes com o Ir ficaram
concentradas sob a iniciativa dos membros permanentes e
da Alemanha (P5+1), que exigiam o esclarecimento de todas
as questes pendentes e a suspenso de enriquecimento e
35 BAUMBACH, Marcelo. Os regimes de sanes do Conselho de Segurana das Naes Unidas: evoluo recente e apreciao crtica. Braslia: Instituto Rio Branco, Curso de Altos Estudos, 2006, p. 88.
Eugnio V. Garcia
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reprocessamento de urnio. Relatrios subsequentes da AIEA
indicaram que a falta de cooperao iraniana para elucidar
as dvidas existentes impediam a Agncia de pronunciar-
-se de forma conclusiva sobre a existncia de atividades
nucleares no declaradas no Ir. Paralelamente s tratativas,
o Conselho de Segurana adotou sanes por meio de quatro
resolues, a ltima delas em junho de 2010, apesar da
alegao do Ir de seu direito de desenvolver um programa
nuclear para fins pacficos conforme estipulado pelo Tratado
de No Proliferao Nuclear, incluindo o enriquecimento de
urnio em grau compatvel com tais fins. Recorde-se que a
Declarao de Teer, de maio de 2010, assinada por Brasil,
Turquia e Ir, procurou remover os obstculos que haviam
impedido um acordo no ano anterior sobre o fornecimento
de combustvel para o Reator de Pesquisas de Teer. O acordo
tinha o objetivo de iniciar processo de construo de
confiana e abrir caminho para a retomada das negociaes,
que ainda prosseguem, no momento em que este livro foi
escrito, sem haver obtido a cooperao desejada entre o Ir
e a AIEA.
Se o Conselho de Segurana considerar que nem as
sanes nem as medidas especficas previstas no Artigo 41
da Carta so suficientes ou adequadas, poder levar a
efeito, por meio de foras areas, navais ou terrestres, a ao
que julgar necessria para manter ou restabelecer a paz
e segurana internacionais. Tal ao poder compreender
demonstraes, bloqueios e outras operaes, por parte das
foras areas, navais ou terrestres dos Estados-membros da
51
Conselho de Segurana das Naes Unidas
Organizao (Artigo 42). Cumpridos esses passos requeridos
pela Carta, o Conselho pode autorizar o uso da fora ou,
como se diz comumente na linguagem das resolues,
utilizar de todos os meios necessrios para impor as
suas decises.
Em 1945, imaginou-se que os Estados-membros aportariam
foras militares para tanto, ademais de assistncia e outras
facilidades, inclusive direitos de passagem, mediante
acordos especiais a serem negociados previamente com o
Conselho. Seriam determinados por esses acordos o nmero
e tipo das foras, seu grau de preparao e sua localizao
geral, bem como outros detalhes sobre a natureza da
contribuio que cada Estado-membro iria proporcionar
Organizao, por seu livre consentimento (Artigo 43). Se um
Estado no membro do Conselho fornecesse contingentes
teria o direito assegurado de participar das decises do
rgo que implicassem a utilizao dessas foras (Artigo 44).
Decidiu-se, ainda, criar uma Comisso de Estado-Maior
destinada a orientar e assistir o Conselho do ponto de vista
do planejamento, comando e operacionalizao militar no
emprego dos efetivos. Essa Comisso de Estado-Maior seria
basicamente composta pelos Chefes de Estado-Maior dos
membros permanentes, com a responsabilidade de dar a
direo estratgica de todas as foras armadas postas
disposio do Conselho. Dado o carter de urgncia que
as medidas militares poderiam assumir, previu-se o uso
do poder areo para a execuo combinada de uma ao
coercitiva internacional. Caberia aos Estados-membros,
Eugnio V. Garcia
52
novamente, prover o Conselho dos meios areos dispon-veis (Artigos 45 a 50).
Aqui residia um dilema, na verdade quase insolvel,
entre a necessidade de aportar meios militares ONU,
nos termos da Carta, e as demandas por uma reduo ou
controle dos armamentos. Como promover o desarmamento
se os mesmos Estados deveriam estar prontos a contribuir
militarmente para manter a paz? Em tese pelo menos,
se todos os Estados fossem completamente desarmados
nenhum poderia atender s obrigaes da Carta. O problema
j se havia colocado antes, no Pacto da Liga das Naes,
cujo Artigo 8 reconhecia que a manuteno da paz exigia a reduo de armamentos nacionais ao mnimo compatvel
com a segurana nacional e com a execuo das obrigaes
internacionais impostas por uma ao comum. O mais
longe que os negociadores em So Francisco conseguiram
avanar nesse ponto foi inserir um artigo no qual se dizia
que, a fim de promover o estabelecimento e a manuteno
da paz e da segurana internacionais, desviando para
armamentos o menos possvel dos recursos humanos e
econmicos do mundo, o Conselho de Segurana teria o
encargo de formular, com a assistncia da Comisso de
Estado-Maior, planos para um sistema de regulamentao
dos armamentos (Artigo 26).
Outro aspecto importante se refere ao princpio da
autodefesa. Pelo Artigo 51 ficou estabelecido que nada
na Carta prejudicaria o direito inerente de legtima defesa
individual ou coletiva no caso de um ataque armado
contra um Estado-membro das Naes Unidas. As medidas
53
Conselho de Segurana das Naes Unidas
tomadas em sua defesa pelo Estado agredido deveriam ser
comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurana,
que continuaria mesmo assim a gozar da prerrogativa de
exercer sua autoridade, em qualquer tempo, naquilo que
entendesse dever ser a sua responsabilidade em termos de
paz e segurana.
A forma como o Conselho de Segurana conduz
seus trabalhos mereceu alguns esclarecimentos na Carta
(Artigos 28 a 32). O Conselho est organizado de modo que
possa funcionar continuamente, habilitado a manter reunies
peridicas em sua sede na Organizao ou fora dela, caso os
membros assim julguem oportuno. Foi admitida a faculdade
do Conselho de estabelecer rgos subsidirios e de adotar
seu prprio regulamento interno. Um Estado-membro
das Naes Unidas, que no for membro do Conselho de
Segurana, pode participar, sem direito a voto, na discusso
de qualquer questo submetida ao Conselho, sempre que
este considere que tal pas seja parte na controvrsia ou
tenha seus interesses diretamente afetados. O direito de
participar nas discusses, sem voto, estendido um Estado
que no for membro das Naes Unidas, nas condies que
determine o Conselho.
Crticas frequentes ao Conselho de Segurana se referem
sua intruso (encroachment) em reas que no seriam de sua alada ou cuja conduo colide ou compete com
outros rgos (Assembleia Geral, ECOSOC, etc.). Pode haver
nesse processo uma securitizao da agenda, isto , um
esforo dirigido por conferir uma preocupao de segurana
a um tema ou situao que normalmente teria enfoque
Eugnio V. Garcia
54
distinto, seja ele econmico, social, ambiental, energtico
ou qualquer outro. Como parece evidente, securitizar um
tema pode no ser a melhor resposta, do mesmo modo que
militarizar um conflito no deveria ser a primeira opo.
Outra queixa similar se liga s tentativas do Conselho de
atuar como legislador, principalmente quando suas decises
sobre dado assunto tm uma abrangncia que extrapola o
particular e nutrem a pretenso de se converter em norma
geral. O risco presumido pode ser maior quando se trata
de uma questo temtica, no circunscrita a uma rea
geogrfica, como foi o caso de algumas resolues sobre
contraterrorismo e no proliferao nuclear.
Na fase de criao e montagem da estrutura onusiana,
as grandes potncias atuaram no sentido de preservar
a autonomia do Conselho de Segurana. Na Comisso
Preparatria das Naes Unidas, que se reuniu em Londres
no segundo semestre de 1945, os P-5 no estavam
interessados em estabelecer regras que enrijecessem
sobremaneira o rgo. A delegao norte-americana deixou
claro que desejava apenas o mnimo indispensvel ao seu
funcionamento. O objetivo no declarado era resguardar a
maior flexibilidade possvel para que o Conselho tivesse
ampla latitude ao tomar qualquer deciso, sem escolhos
procedimentais que atravancassem sua capacidade de julgar
e agir politicamente, caso a caso. O Artigo 34 da Carta confere
poderes ao Conselho para investigar qualquer controvrsia
ou situao suscetvel de provocar atritos entre as naes ou
dar origem a uma controvrsia, a fim de determinar se
pode haver ou no ameaa manuteno da paz e da
5555
segurana internacionais. Da mesma forma, na aplicao
dos dispositivos do Captulo VII, o Artigo 39 estabeleceu que
compete ao Conselho determinar a existncia de qualquer
ameaa paz, ruptura da paz ou ato de agresso. Nesse
mesmo diapaso, ao interpretar o Artigo 30, segundo o
qual o Conselho de Segurana deveria adotar seu prprio
regulamento interno, os P-5 em geral sustentam que o
rgo seria the master of its own procedure. Suas regras de procedimento, adotadas em 1946, continuam at hoje
provisrias, como a demonstrar que podem ser revistas
ou suspensas a qualquer momento.
Alm das prerrogativas de impor sanes mandatrias e
autorizar o uso da fora, o Conselho de Segurana tem outras
faculdades especficas no que toca admisso de novos
membros na Organizao, escolha do Secretrio-Geral,
designao dos juzes da Corte Internacional de Justia, e
ao estabelecimento de tribunais penais internacionais para
julgar crimes de guerra, como em Ruanda e na ex-Iugoslvia,
para citar apenas as principais.
Embora a Organizao se aproxime hoje da universalidade
em sua composio, a admisso de novos Estados-membros
foi historicamente um tema que provocou acesos debates
na ONU, cabendo ao Conselho papel primordial no processo
decisrio. Israel, por exemplo, teve sua primeira solicitao
de ingresso rejeitada em 1948, por no obter a maioria
necessria dos votos. A primeira guerra rabe-israelense
naquele ano colocava em dvida a prpria existncia de
um Estado judeu na Palestina, sem fronteiras definidas e
com forte oposio dos pases rabes. Aps o cessar-fogo,
Eugnio V. Garcia
56
Israel assinou acordos separados de armistcio com Egito,
Transjordnia, Lbano e Sria, ainda sob o impacto das vitrias
militares israelenses. Na segunda tentativa, em 1949, Israel
obteve a recomendao do Conselho e se tornou Estado-
-membro por resoluo da Assembleia Geral que recebeu 37
votos a favor, 12 contra e 9 abstenes. A mesma sorte no
teria a Palestina.
Em uma das controvrsias recentes na acidentada
trajetria do conflito palestino-israelense, o Presidente
Mahmoud Abbas enviou carta ao Secretrio-Geral das
Naes Unidas, em 2011, para solicitar formalmente o
ingresso da Palestina como Estado-membro. Consoante
as Regras de Procedimento Provisrias, o Secretrio-Geral
comunicou o pedido ao Conselho de Segurana, que por
sua vez o encaminhou a um comit para anlise (regra 59).
O procedimento foi seguido, apesar da firme resistncia
de pelo menos um membro do Conselho. Para que possa
recomendar qualquer adeso, o Conselho deve decidir, de
acordo com seu julgamento, se o requerente um Estado
amante da paz e se est capacitado e disposto a cumprir
as obrigaes constantes na Carta (regra 60). O comit se
reuniu algumas vezes e posteriormente o Conselho tratou
do assunto, mas nenhuma deciso foi tomada. Como
frequente na ONU, a opo pelo adiamento no soluciona
nem tira o problema da pauta, apenas posterga o seu
encaminhamento. Ainda hoje, o conflito no Oriente Mdio
uma das principais questes no resolvidas na agenda
do Conselho.
57
VFuncionamento: mtodos de trabalho
Os membros do Conselho de Segurana costumam
dedicar tempo considervel s questes processuais e no
raro se recorre ao Secretariado para solicitar esclarecimentos
ou dirimir dvidas pontuais. A aplicao das Regras de
Procedimento Provisrias pode ser consensual, quase
rotineira, ou em outros casos pode ser tambm objeto de
longas discusses entre Representantes Permanentes ou
delegados. Diz-se que o Presidente do Conselho de Segurana
deve convocar uma reunio do Conselho a pedido de
qualquer membro do rgo (regra 2). Mas, se pelo menos
um membro importante discorda da oportunidade de tal
reunio, no seria surpreendente uma negociao prvia de
bastidores que se arraste por horas, dias ou at semanas.
As reunies do Conselho ocorrem normalmente na sede
das Naes Unidas em Nova York (regra 5), mas no h
objeo formal para que se realizem em outro lugar (existem
precedentes a respeito). A agenda de cada reunio ter sido
extensivamente analisada e considerada pelos membros
para evitar surpresas indesejveis (o que obviamente no
impede que lances inesperados aconteam de tempos em
Eugnio V. Garcia
58
tempos). Esse um dos motivos pelos quais o primeiro item
da agenda provisria de qualquer reunio deve ser a adoo
da agenda (regra 9). O que constitui na maioria das vezes
um evento banal, pode ser igualmente o pice de um esforo
negociador no desprezvel que passou despercebido por
grande parte da imprensa e da opinio pblica.
A Presidncia do Conselho de Segurana realizada,
de maneira rotativa a cada ms, na ordem alfabtica em
ingls dos nomes dos membros (regra 18). Alm de conduzir
as reunies e representar o Conselho como um rgo das
Naes Unidas, ao Presidente de turno cabem diversas
responsabilidades, que incluem a organizao do programa
de trabalho mensal, em consulta com os demais membros.
Alm dos Representantes Permanentes, em nvel de
Embaixador, as delegaes possuem equipes de diplomatas
dedicados aos temas do Conselho e um coordenador poltico
para negociar com suas contrapartes e organizar o trabalho
interno das delegaes. Cada detalhe protocolar tem seu
significado. O Presidente deve convidar os representantes
na ordem na qual desejem falar (regra 27), mas a lista
de oradores pode ser ela mesma um tema de discusso
por ferir suscetibilidades ou assentar privilgios. Se um
representante suscita uma questo de ordem, o Presidente
deve comunic-la de imediato e, se for contestada, submet-
-la ao Conselho para uma deciso (regra 30).
As decises a que pode chegar o Conselho de Segurana podem ter diversos formatos. Os trs tipos principais seriam:
uma resoluo, que conforme seu peso especfico pode
consumir meses de negociaes prvias; uma declarao
59
Conselho de Segurana das Naes Unidas
presidencial, que costuma ser adotada por consenso
em consultas informais e lida em sesso pblica pelo
Presidente do rgo; e uma declarao imprensa, tambm
alcanada por consenso e comunicada pelo Presidente aos
jornalistas logo aps sua aprovao pelos membros. Sobre
esse ponto, quando o Presidente se dirige imprensa sem
um texto ele ou ela poder fazer breves comentrios sobre
os assuntos discutidos ou, ainda, guiar-se por elementos
imprensa, que tero sido analisados e aceitos antes
pelos membros (existe pouco espao para improvisao
no cotidiano do Conselho). Esses elementos tm carter
informal e no circulam na forma escrita como acontece
com a citada declarao imprensa, que fica registrada
como um documento oficial da ONU.
A sensibilidade poltica tende a aumentar quando a
negociao gira em torno de um texto, uma vez que sua
adoo pode ter implicaes de longo alcance (reverter
algo j aprovado sempre muito mais difcil que resistir
sua votao). Na busca de consenso, projetos de resoluo
podem ser diludos de tal maneira que seus pargrafos no
causem preocupao a algum dos membros. Propostas
de resolues, emendas e moes substantivas devem
ser colocadas diante dos representantes por escrit
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