Conselho Seguranca Das Nacoes Unidas

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 EUGÊNIO V . GA RCIA Conselho de Segurança das Nações Unidas

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Conselho Seguranca Das Nacoes Unidas

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  • Eugnio V. garcia

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

  • Ministrio das relaes exteriores

    Ministro de Estado Embaixador Luiz Alberto Figueiredo MachadoSecretrio-Geral Embaixador Eduardo dos Santos

    Fundao alexandre de GusMo

    Presidente Embaixador Jos Vicente de S Pimentel

    Instituto de Pesquisa deRelaes Internacionais

    Diretor Embaixador Srgio Eduardo Moreira Lima

    Centro de Histria e Documentao Diplomtica

    Diretor Embaixador Maurcio E. Cortes Costa

    Conselho Editorial da Fundao Alexandre de Gusmo

    Presidente Embaixador Jos Vicente de S Pimentel

    Membros Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg Embaixador Jorio Dauster Magalhes Embaixador Gonalo de Barros Carvalho e Mello Mouro Embaixador Jos Humberto de Brito Cruz Ministro Lus Felipe Silvrio Fortuna Professor Clodoaldo Bueno Professor Francisco Fernando Monteoliva Doratioto Professor Jos Flvio Sombra Saraiva

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

  • Braslia, 2013

    Eugnio V. garcia

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

  • Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]

    Equipe Tcnica:

    Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGabriela Del Rio de RezendeGuilherme Lucas Rodrigues MonteiroJess Nbrega CardosoVanusa dos Santos Silva

    Projeto Grfico:Daniela Barbosa

    Programao Visual e Diagramao: Grfica e Editora Ideal Ltda.

    Impresso no Brasil 2013

    G216 GARCIA, Eugnio Vargas. Conselho de Segurana das Naes Unidas / Eugnio V. Garcia. Braslia : FUNAG, 2013. 133 p. - (Em poucas palavras) ISBN 978-85-7631-473-8 1. Naes Unidas (ONU). Conselho de Segurana. 2. Naes Unidas (ONU). Conselho de Segurana - histria. 3. Naes Unidas (ONU). Conselho de Segurana - atuao. 4. Segurana internacional. I. Ttulo. II. Srie. CDD 341.2323Bibliotecria responsvel: Ledir dos Santos Pereira, CRB-1/776

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei no 10.994, de 14/12/2004.

  • E V G

    Doutor em Histria das Relaes Internacionais pela Universidade de Braslia e diplomata. Foi pesquisador visitante associado junto ao Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, professor no Colgio de Estudos Latino-Americanos da Universidade Nacional Autnoma do Mxico e professor titular do Instituto Rio Branco. Serviu em Londres, Cidade do Mxico, Misso junto s Naes Unidas em Nova York e Assuno. Integrou a delegao do Brasil como membro no permanente do Conselho de Segurana no binio 2010-2011. autor, entre outras obras, de O sexto membro permanente: o Brasil e a criao da ONU (Contraponto Editora).

  • Sumrio

    I. Introduo ..................................................................................9

    II. Antecedentes: aprendendo com o passado ..............................15

    III. Criao: sob o fogo cerrado da guerra ......................................27

    IV. Normas: a estrutura da Carta ...................................................41

    V. Funcionamento: mtodos de trabalho ......................................57

    VI. Prtica: durante e depois da Guerra Fria ..................................69

    VII. Desafios: paz, desenvolvimento e segurana responsvel .......97

    VIII. Reforma: uma agenda por implementar ................................. 115

    IX. Bibliografia bsica ................................................................... 131

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    iIntroduo

    As Naes Unidas mantm atualmente o segundo maior

    contingente militar distribudo pelo mundo, atrs somente

    dos Estados Unidos. Um pas que tivesse sob sua bandeira

    mais de 117 mil militares, policiais, observadores e pessoal

    civil atuando em 16 misses diferentes por todo o globo

    dificilmente seria ignorado pela opinio pblica. Se esse

    mesmo pas administrasse um oramento de 7,5 bilhes de

    dlares para manter essa estrutura em funcionamento seria

    improvvel que fosse visto como irrelevante.

    No caso da ONU, que no um pas e tampouco possui

    a autoridade de um governo mundial, parece haver maior

    necessidade de explicar o porqu de sua importncia, j que

    parte do pblico no se mostra inteiramente convencido.1

    Mais ainda, o Conselho de Segurana, o rgo que define

    os termos, autoriza, extingue ou renova os mandatos

    dessas misses, ainda percebido s vezes pelo cidado

    comum como uma entidade misteriosa, distante, quase

    1 Sobre a autoridade das Naes Unidas cf. LOPES, Dawisson Belm. A ONU entre o passado e o futuro: a poltica da autoridade. Curitiba: Editora Appris, 2012; cf. tambm a coletnea organizada por WEISS, Thomas G. & DAWS, Sam (ed.). The Oxford Handbook on the United Nations. Oxford: Oxford University Press, 2007.

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    apartada da realidade, sem um papel efetivo que justifique

    a participao nas suas decises de um ou outro Estado

    que j no se encontre ali representado. Afinal, pergunta-

    -se frequentemente, por que fazer parte do Conselho

    de Segurana?

    Como organizao intergovernamental, a ONU um espao

    institucionalizado de dilogo, negociao e deliberao entre

    Estados soberanos. A Organizao busca disciplinar a

    conduta desses Estados, mas no se prope a assumir

    funes de supranacionalidade. Um de seus desafios

    consiste em harmonizar o individual e o coletivo, a razo

    comunitria e a razo de Estado. Gelson Fonseca Jr. desenvolveu

    o conceito de interesses multilateralizveis, segundo o

    qual os Estados possuem certos interesses que se prestam

    a um encaminhamento pela via da cooperao. O plano

    multilateral, nesse sentido, pode ser tanto o locus para a

    legitimao de normas, conceitos e prticas dos Estados ou

    para a gestao de interesses comuns com potencial para

    assumir uma manifestao concreta de ao conjuntamente

    coordenada.2

    Em termos gerais, salientar a importncia do sistema

    das Naes Unidas exigiria outro volume, considerando

    a multiplicidade de suas tarefas e a diversidade de temas a

    que se dedica, incluindo suas agncias, fundos e programas.

    Mais de 500 tratados multilaterais em todas as reas foram

    negociados e adotados sob os auspcios da ONU. Sua

    2 FONSECA, Gelson. O interesse e a regra: ensaios sobre o multilateralismo. So Paulo: Paz e Terra, 2008; e RUGGIE, John Gerard. Multilateralism matters: the theory and praxis of an institutional form. Nova York: Columbia University Press, 1993, passim.

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    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    contribuio defesa do meio ambiente, ao direito do mar,

    do espao e da explorao da Antrtida tem sido inegvel.

    O Protocolo de Montreal foi fundamental para a proteo

    da camada de oznio, algo que antes parecia uma meta

    inatingvel. A legislao internacional em telecomunicaes,

    transporte, navegao e aviao civil definiu padres de

    segurana e normas tcnicas universalmente aceitas,

    com impacto em boa parte da estrutura normativa que

    movimenta a economia mundial: estatsticas, legislao

    comercial, procedimentos alfandegrios, propriedade

    intelectual e governana dos negcios. Avanou-se muito

    na consolidao de direitos humanos, trabalhistas, de

    mulheres, crianas, minorias e grupos vulnerveis. A ajuda

    humanitria coordenada pela ONU atende a refugiados,

    vtimas de desastres e catstrofes naturais. O Programa

    Mundial de Alimentos leva assistncia a 90 milhes de

    pessoas em mdia por ano. Projetos de desenvolvimento

    do PNUD na frica e em outras regies combatem a pobreza

    e promovem aes sociais e educacionais que raramente

    atraem as manchetes dos jornais. A Organizao Mundial

    da Sade foi instrumental na conteno de epidemias

    globais, como a gripe aviria e a gripe suna (influenza

    AH1N1). Em zonas que vivenciaram conflitos, foram

    feitos trabalhos de desminagem em mais de 40 pases.

    O processo de descolonizao, que a ONU apoiou, levou

    desativao do Conselho de Tutela, rgo criado para fomentar o

    desenvolvimento progressivo dos territrios no autnomos

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    para que alcanassem o autogoverno ou a independncia.

    A lista poderia continuar com outros exemplos.3

    A ONU, que est perto de completar 70 anos em 2015, no

    nem intil nem a panaceia universal. Se no foi possvel

    realizar ainda a paz perptua de que falava Immanuel Kant,

    tampouco vivemos no estado de natureza imaginado por

    Thomas Hobbes. Com seus erros e acertos, a Organizao no

    deve ser descartada a priori como um ator sem relevncia

    que no merea a ateno de pesquisadores, professores,

    alunos e pessoas sinceramente preocupadas com o futuro

    da nossa existncia e do planeta. Como afirmaram dois

    estudiosos: Investigar a ONU deveria ser problematizar

    a ONU, ou seja, no aderir ou criticar simplesmente, mas

    mostrar como ela funciona, como se do os jogos de fora

    em seu interior e quais so os desdobramentos e efeitos

    desse funcionamento na poltica internacional.4

    Quando o problema se refere segurana, mesmo que as

    Naes Unidas no exeram atributos supranacionais, pode

    haver a expectativa de que a Organizao cumpra funes

    policiais em face de conflitos sangrentos que recebem

    cobertura macia da mdia, sobretudo no Ocidente. Pelo

    menos duas leituras mais imediatas poderiam surgir como

    reao a determinado noticirio: que a ONU no serve para

    nada, afirmao supostamente derivada de uma anlise

    realista do cenrio mundial, que menoscaba elementos

    3 Cf. 60 maneiras das Naes Unidas fazerem a diferena, Departamento de Informao Pblica, Nova York, , acesso em 12 set. 2013.

    4 RODRIGUES, Thiago & ROMO, Wagner de Melo (orgs.). A ONU no sculo XXI: perspectivas. So Paulo: Editora Desatino, 2011, p. 13.

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    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    ticos, normativos e institucionais presentes na vida

    internacional; ou que a ONU tem o dever de resolver os

    conflitos, aspirao que evoca um sentimento idealista

    que superestima a capacidade real da Organizao de

    intervir decisivamente em situaes crticas. o caso de

    massacres contra civis ou ataques a populaes indefesas,

    muitas vezes envolvendo mulheres, idosos e crianas entre

    as vtimas. Quanto mais dramtico o quadro, mais se espera

    uma ao da ONU ou da comunidade internacional, com a

    percepo de que algum deveria fazer algo para evitar

    a continuao de tal violncia, inadmissvel por qualquer

    prisma que se olhe.

    H vrias abordagens possveis para a questo do

    Conselho de Segurana. Uma delas seria analisar o seu papel

    no contexto mais geral da manuteno da paz e da segurana,

    segundo um enfoque de relaes internacionais em sentido

    lato. O rgo pode tomar decises com potencial para afetar

    a vida de milhes de pessoas e ter um impacto profundo em

    certos cenrios onde atua, como no caso de alguns pases

    africanos.5 Sem excluir outras possibilidades metodolgicas,

    pode-se considerar o funcionamento do Conselho no seu

    dia a dia e a forma como alcana suas decises, incluindo

    seus mtodos de trabalho e questes processuais. Outra

    opo seria investigar a atuao especfica do Conselho em

    temas de sua agenda, onde cada assunto tem sua dinmica

    prpria e no raro uma complexidade intrnseca. Foco de

    tenses e graves conflitos que ainda ecoam no presente, a

    5 Para uma viso multifacetada cf. LOWE, Vaughan, et al. (ed.). The United Nations Security Council and war: the evolution of thought and practice since 1945. Oxford: Oxford University Press, 2008.

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    situao na Sria, por exemplo, desde 2011 vem sendo objeto

    de negociaes, propostas, textos e discusses no Conselho

    sobre formas de encaminhar o problema. Neste livro, por

    razes de espao, dada a dificuldade em aprofundar cada

    temtica separadamente e sem prejuzo das reflexes

    tericas ou do substrato jurdico que lhe inerente, sero

    privilegiadas as abordagens que buscam entender o pano

    de fundo por trs da atuao do Conselho, com especial

    ateno aos aspectos histricos e prticos, para que o leitor

    possa tirar suas prprias concluses a respeito de sua

    importncia e significado para a poltica mundial nos dias

    de hoje.

    Existe literatura abundante sobre o Conselho de

    Segurana. A bibliografia bsica sugerida ao final deste

    livro inclui somente obras em portugus que podem servir

    de introduo ao leitor interessado em expandir seus

    conhecimentos na rea. As notas de rodap ao longo do

    texto contm referncias mais especializadas, mas no

    esgotam o vasto leque de fontes disponveis. Na Internet,

    onde as opes so igualmente amplas, preciso sempre

    critrio ao avaliar a credibilidade da informao apresentada.

    Alm da pgina oficial da ONU , pode ser til a

    consulta aos relatrios e artigos do Security Council Report

    , instituio acadmica sediada

    em Nova York. Especificamente sobre a reforma do Conselho

    de Segurana, o website de diplomacia pblica dedicado ao

    assunto constitui um ponto de

    partida para pesquisas mais aprofundadas.

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    iiAntecedentes: aprendendo com o passado

    Embora a histria da organizao internacional

    seja antiga e remonte aos primrdios da civilizao,

    de natureza relativamente recente o mpeto de criar

    organizaes permanentes ou mecanismos incumbidos de

    prevenir conflitos, banir a guerra e resolver o problema

    da ordem nas relaes entre Estados soberanos.6 No

    sculo XIX, as grandes potncias detinham a supremacia

    sobre o gerenciamento da ordem mundial, os conceitos nos

    quais se baseava essa ordem e as decises estratgicas

    cruciais em questes de guerra e paz. Desde os tempos

    antigos, argumentava-se, o protagonismo nessa rea havia

    sempre pertencido aos que acumulavam maior poder. Essa

    sabedoria convencional era raramente desafiada. O Concerto

    Europeu que emergiu aps o Congresso de Viena de 1815

    poderia ser descrito como um mecanismo de concertao

    de potncias destinado a conduzir assuntos internacionais

    (majoritariamente europeus) segundo as vises, os

    interesses e as necessidades dos atores principais. O direito

    6 RENGGER, Nick J. International relations, political theory and the problem of order: beyond international relations theory? Londres: Routledge, 1999.

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    internacional em construo de certo modo refletia esse

    entendimento ao legitimar, proteger e conferir liberdade de

    ao quelas mesmas potncias.7

    Na era do imperialismo, das conquistas coloniais e da

    diplomacia das canhoneiras, a ameaa e o uso da fora

    contra povos semibrbaros ou no civilizados era uma

    prtica comum, avalizada pelo esprito da poca e amparada

    em normas e discursos justificadores. Nesse mundo

    dominado pelas assimetrias de poder, sem restries legais

    coero militar unilateral e sem organizaes multilaterais

    de carter poltico, Estados pequenos ou potncias mdias,

    quando no assediados, invadidos ou ocupados, eram no

    mais das vezes relegados a um status secundrio.

    As Conferncias da Paz da Haia, uma das primeiras

    experincias de diplomacia multilateral tal qual a conhecemos,

    inclua pases de diferentes regies. Esses conclaves, no

    entanto, tinham uma agenda mais estreita e seu foco era

    jurdico, em busca de uma regulamentao mais elaborada

    da guerra, admitindo-a ser um dado da realidade que caberia

    disciplinar. Convocada por iniciativa do czar da Rssia,

    Nicolau II, a Primeira Conferncia da Haia, em 1899, reuniu

    26 Estados, mas da Amrica Latina apenas o Mxico esteve

    representado. J na Segunda Conferncia, em 1907, dos 44

    Estados participantes, 18 eram latino-americanos, incluindo

    o Brasil. Ao contrrio dos grandes congressos tradicionais,

    destinados s negociaes conclusivas de guerras envolvendo

    potncias de primeira ordem, as Conferncias da Haia

    tinham por objetivo discutir mecanismos de preservao da

    7 CASSESE, Antonio. International law. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 11.

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    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    paz e de soluo pacfica dos conflitos. Havia pouco espao

    para suscitar demandas polticas por maior participao em

    decises-chave por parte de pases fora do crculo de ferro

    do poder.

    Mesmo assim, personagens como Rui Barbosa, delegado

    brasileiro Segunda Conferncia da Haia, esboaram uma

    reao em defesa do reconhecimento do princpio da

    igualdade soberana entre os Estados. Rui assim se exprimiu:

    At agora os Estados, to diversos na extenso do territrio, na riqueza, na fora, tinham entre eles, todavia, um ponto de comensurabilidade moral. Era a soberania nacional. Sobre esse ponto sua igualdade jurdica estabelecer-se-ia de uma maneira inquebrantvel. Nesta fortaleza de um direito igual para todos, e igualmente inviolvel, inalienvel, indiscutvel, cada Estado, grande ou pequeno, sentir-se-ia to senhor de si mesmo e to seguro em relao aos outros, quanto o cidado livre entre os muros de sua casa. A soberania a grande muralha da Ptria.8

    Ao defender as potncias menores na Haia, Rui ao

    mesmo tempo condenava, ainda que implicitamente, o

    carter oligrquico da hegemonia das grandes potncias,

    cujo poder de influncia e de deciso residia sobretudo na

    capacidade que tinham de uso da fora. No que se deixasse

    de reconhecer desigualdades de fato entre Estados. Visava-

    -se, sim, ao reconhecimento da igualdade de direito para

    8 BARBOSA, Ruy. Obras completas, vol. XXXIV (1907), Tomo II, Segunda Conferncia da Paz. Rio de Janeiro, MEC, 1966, p. 256 (original em francs); cf. tambm CARDIM, Carlos Henrique, A raiz das coisas: Rui Barbosa, o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.

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    assegurar, em moldes liberais, a equidade na representao

    formal das soberanias. Subjacente ao pensamento barbosiano

    estava, portanto, a ideia de superao das relaes

    assimtricas de poder por novas formas de interao

    diplomtica, nas quais o estatuto igualitrio entre os atores

    seria o dado essencial.

    A Primeira Guerra Mundial significou o colapso do velho

    sistema de equilbrio de poder na Europa. Acordos secretos,

    profuso de alianas entre Estados, corrida armamentista,

    rivalidades econmicas, nacionalismo exacerbado e polticas

    predatrias foram todos fatores acusados de levar o mundo

    catstrofe. Durante o conflito, houve grande clamor da

    opinio pblica por medidas que pudessem impedir a

    repetio de tragdia semelhante. Segundo a perspectiva

    idealista corrente, aquela deveria ter sido a guerra para

    acabar com todas as guerras. A Conferncia da Paz de

    Paris, em 1919, ofereceu a oportunidade de remodelar

    a ordem mundial e o Presidente dos Estados Unidos,

    Woodrow Wilson, embarcou em uma cruzada pessoal para

    a formao de uma associao geral de naes, includa

    entre os objetivos de guerra norte-americanos (Quatorze

    Pontos), com o propsito de fornecer garantias mtuas de

    independncia poltica e integridade territorial tanto aos

    grandes quanto aos pequenos Estados.

    A Liga (ou Sociedade) das Naes foi a primeira

    organizao internacional de escopo universal, em bases

    permanentes, voluntariamente integrada por Estados

    soberanos, com o fito de instituir um sistema de segurana

    coletiva, promover a cooperao e assegurar a paz futura.

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    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    Esse objetivo implicava que toda a comunidade internacional

    (ou, melhor dizendo, os membros da Liga) devia mobilizar-

    -se para acudir em defesa do pas agredido e sustentar

    a obedincia ao Pacto da Liga. Essa mesma organizao

    deveria resolver controvrsias de maneira pacfica, promover

    relaes amistosas entre as naes e fortalecer a cooperao

    nos campos econmico, social, cultural e humanitrio.

    Com isso em mente, a estrutura da Liga foi organizada em

    torno de trs rgos principais: um Conselho Executivo,

    de composio restrita, com membros permanentes e no

    permanentes; uma Assembleia aberta a todos os Estados-

    -membros para o exerccio do debate pblico e da diplomacia

    parlamentar sobre todas as questes que afetassem a paz; e

    um Secretariado com funes basicamente administrativas,

    chefiado por um Secretrio-Geral. Alm disso, foi criado

    um sistema de mandatos para territrios no autnomos

    e tomada a deciso de estabelecer a Corte Permanente

    de Justia Internacional (CPJI) para solucionar por meios

    pacficos controvrsias entre os Estados.

    Em certo sentido, a criao da Liga das Naes buscava

    alterar algumas regras do jogo, ao menos do ponto de vista

    legal-institucional. Mas, quando se iniciaram seriamente

    as discusses sobre uma organizao que garantisse a

    preservao da paz, defensores da regra tradicional de

    que might makes right rapidamente tentaram aplic- -la Liga, com a aparente motivao de prosseguir como

    sempre haviam feito. Rascunhos preliminares preparados

    pelo Foreign Office britnico tinham em vista um Conselho

    Executivo integrado unicamente pelas grandes potncias.

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    Esse Conselho proposto deveria replicar o Conselho Supremo

    de Guerra, que havia cumprido a funo de instncia de

    coordenao das aes aliadas no esforo de guerra e em

    outros assuntos ligados negociao dos futuros termos

    de paz.

    A Conferncia da Paz dividiu os participantes entre

    potncias com interesses gerais e potncias com

    interesses particulares. A comisso designada para preparar

    o texto do Pacto possua originalmente quinze membros:

    dois delegados de cada uma das cinco grandes potncias e

    cinco de aliados menores (Blgica, Brasil, China, Portugal e

    Srvia). Desde a primeira reunio da comisso, as potncias

    menores pressionaram por maior representao. Seu apelo

    resultou no convite a quatro outros pases para tambm

    ingressarem na comisso: Grcia, Polnia, Romnia e

    Tchecoslovquia.9

    A minuta do Pacto redigida pelos britnicos se baseou

    fortemente no Relatrio Phillimore, aprovado pelo Gabinete

    em Londres. Cabe lembrar que o memorando do General

    Smuts favorecia a reivindicao de reservar aos Estados

    menores, pequenas ou mdias potncias, algum tipo de

    representao no rgo mximo da projetada Liga. Esse

    plano influenciou em parte as ideias que Wilson tinha sobre

    o assunto. Depois de negociaes diretas e alguns ajustes

    entre os Estados Unidos e a Gr-Bretanha, que produziram

    conjuntamente o projeto Hurst-Miller, a segunda reunio

    da comisso decidiu acatar o princpio de que as potncias

    9 TEMPERLEY, Harold W. Vazeille (ed.). A history of the Peace Conference of Paris. Londres: Oxford University Press, 1969, vol. II, p. 27.

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    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    com interesses particulares teriam o direito de se verem

    representadas. Ao final, a proposta submetida ao plenrio

    da Conferncia inclua tanto as pequenas quanto as grandes

    potncias no Conselho.10

    A composio original do Conselho da Liga das

    Naes previa cinco membros permanentes e quatro no

    permanentes. A razo para essa distribuio de assentos

    residia na suposta necessidade de que houvesse uma

    maioria de grandes potncias na instituio responsvel

    por zelar pela segurana mundial. Se tal ocorresse, seria

    aplicada na prtica a regra tradicional, de conferir poder

    a quem j o possui, a despeito da presena formal

    no Conselho de Estados menores, vistos por realistas

    extremados da poca como pases desimportantes ou

    convidados ilustres chamados a dar uma aparncia liberal

    ao Conselho. O Artigo 4 do Pacto dispunha que o Conselho

    seria composto de representantes das principais potncias

    aliadas e associadas (EUA, Frana, Gr-Bretanha, Itlia e

    Japo), bem como de representantes de quatro outros

    Estados-membros, a serem nomeados oportunamente pela

    Assembleia. At que essa primeira designao fosse feita

    pela Assembleia, dizia o Pacto, os representantes da Blgica,

    Brasil, Espanha e Grcia seriam membros no permanentes

    do Conselho (note-se que foram escolhidos trs pases

    europeus e apenas um, sul-americano, fora da Europa).11

    Uma vez adotado em definitivo o procedimento anual de

    10 TEMPERLEY, Harold W. Vazeille (ed.). A history of the Peace Conference of Paris. Londres: Oxford University Press, 1969, vol. II, p. 430-441.

    11 GARCIA, Eugnio V. Entre Amrica e Europa: a poltica externa brasileira na dcada de 1920. Braslia: Editora UnB/FUNAG, 2006, especialmente Captulo 5.

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    votao pela Assembleia para os assentos temporrios,

    estabeleceu-se uma distino entre aqueles Estados que

    ocupavam postos permanentes, sem terem sido eleitos, e

    os demais, sujeitos ao escrutnio democrtico.

    O primeiro srio golpe credibilidade da Liga das Naes

    foi a recusa do Senado norte-americano em ratificar o

    Tratado de Versalhes, em 1920, o que afastou os Estados

    Unidos da organizao sediada em Genebra. Apesar disso,

    em seu primeiro perodo de existncia, a Liga obteve alguns

    pequenos sucessos polticos: resoluo da questo territorial

    das Ilhas Aaland entre a Sucia e a Finlndia (1920); defesa

    da soberania da Albnia, ameaada por foras gregas e

    iugoslavas (1921); acordo sobre a Alta Silsia, reivindicada

    pela Alemanha e pela Polnia (1922); cesso Litunia da

    cidade porturia de Memel (1924); retirada de tropas gregas

    da Bulgria (1925); e resoluo da disputa sobre a provncia

    de Mosul entre o Iraque e a Turquia (1926).

    A ausncia dos Estados Unidos reduziu o nmero

    de membros permanentes a quatro. A composio do

    Conselho, porm, revelou-se muito mais dinmica do que

    o esperado. Com o tempo, as potncias menores lograram

    incrementar numericamente sua representao. Os assentos

    no permanentes foram primeiro aumentados para seis, em

    1922, e posteriormente para nove em setembro de 1926,

    quando a Alemanha ingressou na Liga e se tornou o quinto

    membro permanente do Conselho.12 Mais tarde, depois da

    12 SCELLE, Georges. Une crise de la Socit des Nations: la rforme du Conseil et lentre de lAllemagne a Genve, mars-septembre 1926. Paris: Les Presses Universitaires de France, 1927; MYERS, Denys. Representation in League of Nations Council. American Journal of International Law. Washington, vol. 20, n 4, October 1926, p. 689-713.

  • 23

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    sada da Alemanha e do Japo, o nmero de assentos eletivos

    foi novamente aumentado de nove para onze. A Itlia se

    retirou da Liga em 1937, ao passo que a Unio Sovitica

    foi admitida como membro permanente em 1934, at ser

    expulsa em 1939, em virtude da invaso militar da Finlndia

    pelo Exrcito Vermelho. Essas mudanas frequentes na

    composio do rgo no obliteraram o fato de que, ao fim

    e ao cabo, a maioria no Conselho deixou de pertencer s

    grandes potncias (cinco contra quatro em 1919) e passou

    definitivamente para o lado dos Estados menores.

    A rotao peridica de muitos membros ensejou a adoo

    de regras informais para orientar o processo. Critrios

    regionais comearam a ser aplicados pela facilidade em

    selecionar Estados de determinado grupo ou regio, que

    seriam depois substitudos por pases do mesmo grupo to

    logo concludos seus mandatos. No obstante, medida

    que o modus operandi do sistema se desenvolvia, nenhum tratamento diferenciado foi atribudo s potncias mdias

    ou a potncias regionais. Mesmo os chamados assentos

    semipermanentes criados em 1926, com mandatos

    renovveis, foram pensados como maneira de acomodar os

    interesses especficos de dois pases europeus (Espanha e

    Polnia) e no tinham como referncia explcita qualquer

    definio de potncia regional ou conceito similar.13 foroso

    reconhecer, nesse contexto, que o grupo de membros

    permanentes permaneceu como domnio exclusivo daqueles

    pases considerados grandes potncias. Apesar dos ganhos

    13 HOLBRAAD, Carsten. Las potencias medias en la poltica internacional. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1989, p. 66-67.

  • Eugnio V. Garcia

    24

    em representao obtidos no Conselho da Liga, em benefcio

    de toda a organizao, a ampliao verdadeira do rgo se

    restringiu aos assentos temporrios.

    O Pacto exortava os Estados a observar rigorosamente as

    normas do direito internacional e no recorrer guerra para

    resolver suas diferenas. Caso surgisse uma controvrsia

    suscetvel de produzir uma ruptura, o caso deveria ser

    submetido a um processo de arbitragem ou soluo judiciria.

    Se no houvesse acordo, o Conselho seria acionado e

    prepararia um relatrio, que poderia ser aceito ou no pelas

    partes litigantes. Em qualquer situao, segundo o Artigo

    15, os membros da Liga se reservavam o direito de proceder

    como julgassem necessrio para a manuteno do direito e

    da justia. Deficincias inerentes ao Pacto logo se fizeram

    evidentes. Em 1921, uma resoluo da Assembleia declarou

    que seria da competncia de cada Estado-membro decidir

    por si mesmo se uma violao do Pacto havia sido ou no

    cometida. Confirmava-se assim que a aplicao das sanes

    previstas no Artigo 16 (rompimento de relaes comerciais e

    financeiras ou medidas que envolvessem o uso de efetivos

    militares, navais ou areos) dependia essencialmente da

    disposio dos pases interessados em tomar os passos

    necessrios para fazer valer a autoridade da Liga.

    Ainda que fosse pequeno o progresso em questes de

    desarmamento ou na soluo de conflitos mais graves, a

    Liga das Naes desenvolveu intensa atividade em reas

    de interesse mais tcnico do que poltico: comunicaes e

    trnsito, trfico de mulheres e crianas, refugiados, proteo de

    minorias, combate ao pio, higiene, cooperao intelectual,

  • 25

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    direito internacional privado, entre outras. Quando tiveram

    incio as crises provocadas pelos regimes nazifascistas, as

    limitaes polticas da Liga se tornaram mais evidentes.

    A organizao genebrina no conseguiu reagir conforme

    esperado diante da invaso japonesa do territrio chins

    da Manchria em 1931. Aps o ataque da Itlia na Abissnia

    (Etipia), em 1935, o Conselho chegou a adotar sanes

    econmicas, mas estas foram largamente desrespeitadas

    e tiveram pouca eficcia. Tambm causou m impresso a

    impotncia da Liga durante a Guerra Civil Espanhola

    (1936-1939), incapaz de ter qualquer papel de relevo para

    conter a violncia.

    Na Amrica Latina, a Liga das Naes patrocinou um

    plano de paz para mediar a questo de Letcia e uma

    comisso internacional foi enviada zona do conflito entre

    a Colmbia e o Peru para supervisionar o cumprimento do

    acordo em 1934. A organizao no pde evitar, todavia,

    que a Bolvia e o Paraguai entrassem em guerra pela posse

    do Chaco no perodo 1932-1935. A esta altura, o poder do

    Conselho ficara severamente limitado, dependente acima

    de tudo da capacidade de resposta e liderana da Gr-

    -Bretanha e da Frana, que sozinhas no tinham como impor

    o cumprimento das disposies do Pacto. Com a ecloso de

    nova guerra mundial em 1939, a Liga praticamente deixou

    de funcionar, condenada ao descrdito por haver falhado

    em sua misso mais importante (manter a paz), at ser

    oficialmente desativada em abril de 1946 e seus arquivos e

    instalaes transferidos s Naes Unidas.

  • 27

    iiiCriao: sob o fogo cerrado da guerra

    Durante a Segunda Guerra Mundial, a memria recente das

    frustraes do entreguerras influenciou significativamente a

    configurao da nova ordem. Os erros do passado deveriam

    ser evitados. Um exemplo amide evocado era o do Artigo 16 do

    Pacto, como visto, relativo s sanes, que previa medidas

    polticas, econmicas e financeiras em represlia contra

    Estados que recorressem guerra. Caso a violao do

    Pacto persistisse, o Conselho podia apenas recomendar

    aos Estados-membros interessados que contribussem,

    com efetivos militares, navais ou areos, para as foras

    armadas destinadas a fazer respeitar os compromissos da

    Liga. Para sanar o problema, percebia-se como necessrio,

    na viso dos planejadores polticos na dcada de 1940, que

    a ao armada fosse obrigatria, com os passos requeridos

    claramente explicitados. A organizao que fosse executar

    essa tarefa deveria ter dentes, isto , receber os meios

    adequados para uma dissuaso crvel no terreno militar.

    Mecanismos puramente legais no seriam suficientes para

    liquidar pendncias entre Estados. E para que esse esquema

    de segurana funcionasse, a organizao precisaria contar

  • Eugnio V. Garcia

    28

    entre seus membros com as potncias capazes de dar peso

    e autoridade s suas decises.14

    Outra lio extrada foi iniciar cedo o planejamento

    do ps-guerra. J em 1939, os primeiros planos secretos

    comearam a ser encomendados pelo Departamento de Estado.

    A ONU no surgiu de incio como um projeto acabado. Seus

    proponentes testaram vrias possibilidades antes de chegar

    a uma formatao mais sistemtica. Diferentes esboos iam

    sendo analisados, debatidos e muitas vezes descartados.

    O contexto mundial era atpico. O cenrio estratgico se

    encontrava em profunda mutao. Os distintos interesses

    das grandes potncias nos arranjos de paz, as vicissitudes

    da poltica entre os Aliados e os efeitos produzidos pela

    guerra sobre os negociadores foram decisivos para moldar a

    forma que a Organizao tomou.

    Na Carta do Atlntico, concluda entre o Presidente

    norte-americano, Franklin Delano Roosevelt, e o Primeiro-

    -Ministro britnico, Winston Churchill, em 1941, os dois

    lderes defenderam o abandono do uso da fora por

    todas as naes do mundo. Para que a paz futura pudesse

    ser mantida, seria essencial o desarmamento das naes

    agressoras at o estabelecimento de um sistema mais

    amplo e permanente de segurana geral no ps-guerra.15

    Os termos vagos haviam sido propositais. A primeira minuta

    do documento, redigida pelo lado britnico, fazia meno a

    14 ARMSTRONG, David, et al. From Versailles to Maastricht: international organization in the twentieth century. Basingstoke: Palgrave, 1996.

    15 HARTMANN, Frederick H. (ed.). Basic documents of international relations. Nova York: McGraw-Hill, 1951, p. 139-140.

  • 29

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    uma organizao internacional efetiva para salvaguardar

    a paz uma vez vencida a tirania nazista. Essa referncia foi

    considerada inadmissvel por Roosevelt. Como os Estados

    Unidos no estavam em guerra naquele momento, o

    forte sentimento isolacionista ainda existente poderia ser

    perigosamente aulado caso um compromisso desse tipo

    fosse assumido por seu Presidente. Esse impedimento seria

    enfim superado na esteira dos ataques japons a Pearl

    Harbor, que provocou a entrada dos EUA no conflito.

    Em 1o de janeiro de 1942, a Declarao das Naes

    Unidas foi assinada, em Washington, pelos pases aliados

    contra o Eixo. Estados Unidos, Gr-Bretanha, Unio Sovitica

    e China firmaram primeiro o texto. Os outros 22 pases

    signatrios manifestaram depois sua concordncia. A declarao

    formalizava a aliana de guerra, cujo nome passaria a ser

    oficialmente Naes Unidas. Os Aliados prometiam ajudar-

    -se mutuamente, com o pleno emprego de seus recursos

    militares e econmicos, na luta pelo triunfo contra o

    hitlerismo. Ainda que endossasse os princpios da Carta do

    Atlntico, o curto texto no tratou de questes relacionadas

    com a paz, a no ser o compromisso de no celebrar um

    armistcio separado com os inimigos.

    A partir de 1943, com a evoluo da guerra a favor dos

    Aliados, o tema da organizao internacional comeou a

    ganhar contornos mais precisos. Como da ocasio anterior

    em 1919, encabeada pelo zelo missionrio de Wilson, os

    Estados Unidos tomaram a iniciativa. Desde o incio, o

    Presidente Roosevelt acalentou a ideia de estabelecer, nas

  • Eugnio V. Garcia

    30

    suas palavras, uma tutela dos poderosos.16 Sua principal

    premissa era a crena percebida de que caberia s potncias

    vitoriosas a responsabilidade primria pela imposio da

    paz aps a guerra, pela fora se preciso. Roosevelt avaliava

    que as naes fracas no possuam meios de defesa

    contra uma agresso por parte de pases mais fortes, em

    particular no caso de uma ameaa assombrosa semelhante

    ao delrio nazifascista. Calculava-se que no seu devido

    tempo os Aliados ganhariam a guerra e as potncias do

    Eixo seriam desarmadas. Nesse cenrio, os Trs Grandes

    (Estados Unidos, Gr-Bretanha e Unio Sovitica) seriam os

    nicos capazes de fornecer segurana na escala mundial

    exigida. Roosevelt acrescentou a China sua lista, em razo

    principalmente do desejo norte-americano de reforar a

    posio de seu aliado na luta contra o Japo no Pacfico.

    Com o poder somado dos Quatro Policiais, imaginava-se,

    os Estados mais desprotegidos da comunidade internacional

    teriam a assistncia militar necessria para se defenderem

    de ataques externos.17

    A lgica por trs do pensamento de Roosevelt no deixava

    de ter um componente regional. Ele temia que, ao final da

    guerra, a opinio pblica norte-americana pudesse resistir

    s tentativas de manter os Estados Unidos engajados em

    operaes militares ao redor do mundo. Haveria presso para

    retornar os soldados casa to logo possvel. Assim, nos

    seus planos para a nova organizao mundial, baseada no

    16 HOOPES, Townsend & BRINKLEY, Douglas. FDR and the creation of the U.N. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 46.

    17 RUSSELL, Ruth. A history of the United Nations Charter: the role of the United States, 1940-1945. Washington: Brookings Institution, 1958, p. 96.

  • 31

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    poderio aliado, Roosevelt concebeu um Conselho dominado

    pelas grandes potncias, que deveriam agir conjuntamente

    para prevenir futuras agresses dos ex-inimigos e distribuir

    de forma mais equilibrada as responsabilidades pela se-

    gurana em cada regio. Na Europa, a Gr-Bretanha e a

    URSS conteriam a Alemanha. Na sia, a China seria um

    contrapeso ao Japo, podendo eventualmente contar com

    apoio sovitico no Extremo Oriente. Quase inteiramente

    controlada pelas potncias coloniais europeias, a frica no

    representava um desafio estratgico expressivo. O Imprio

    Britnico ainda seria til do ponto de vista da segurana em

    reas como o subcontinente indiano e o Sudeste asitico.

    O Hemisfrio Ocidental, incluindo a Amrica Latina e todo o

    Caribe, era considerado zona de influncia por excelncia

    dos EUA, que continuariam a sustentar seu autoatribudo

    poder de polcia internacional. No Oriente Mdio, Roosevelt

    flertou vagamente com a ideia de um assento permanente

    muulmano, mas tal proposio jamais passou de um

    pensamento momentneo. Esse conjunto, ainda segundo

    sua viso, permitiria a retirada das foras norte-americanas

    desdobradas globalmente e compartilharia regionalmente os

    custos da segurana coletiva.18

    Na Amrica do Sul, o pas mais bem posicionado era o

    Brasil. Para os Estados Unidos poderia ento ser til ter um

    firme aliado latino-americano no Conselho de Segurana.

    Incluir o Brasil como o sexto membro permanente seria

    coerente com o grand design de Roosevelt para o ps-guerra,

    18 CAMPBELL, Thomas M. Masquerade peace: Americas UN policy, 1944-1945. Tallahassee: Florida State University Press, 1973, p. 86-87.

  • Eugnio V. Garcia

    32

    articulando as diferentes regies em torno de potncias com

    peso especfico em suas reas geogrficas. A colaborao

    brasileira aos Aliados havia sido em geral muito apreciada

    pelo governo norte-americano, em particular por Roosevelt

    e pelo Secretrio de Estado Cordell Hull, que consideravam

    o Brasil um modelo de bom vizinho. A proposta, todavia,

    encontrou resistncias de britnicos e soviticos, refratrios

    a um aumento no nmero de assentos permanentes

    maior do que cinco. Alegava-se que, se fosse expandido, o

    Conselho poderia ver sua eficcia comprometida.19

    Winston Churchill tambm tinha em mente uma

    perspectiva regionalista ao conceber seus projetos pessoais

    para a ONU. O Primeiro-Ministro era a favor de criar trs

    Conselhos: um para a Europa, um para a sia e outro para as

    Amricas. Esses trs rgos regionais deveriam operar sob

    a autoridade de um Conselho Supremo Mundial, integrado

    pelas potncias indiscutveis do ponto de vista militar. Com

    a economia britnica severamente afetada pela guerra e o

    aumento progressivo de sua dependncia em relao aos

    Estados Unidos, a Gr-Bretanha no estava em condies de

    sequer considerar a hiptese de arcar com o fardo de policiar

    o mundo, como teria chegado a presumir possvel na fase

    urea de seu poder martimo no sculo XIX.20 Para Churchill,

    os EUA deveriam encarregar-se do Hemisfrio Ocidental, alm

    de manter sua presena na Europa para conter qualquer

    ressurgimento da Alemanha no ps-guerra e, ao mesmo

    19 GARCIA, Eugnio V. O sexto membro permanente: o Brasil e a criao da ONU. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, passim.

    20 HUGHES, E. J. Winston Churchill and the formation of the United Nations Organization. Journal of Contemporary History. Londres, vol. 9, no 4, October 1974, p. 177-194.

  • 33

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    tempo, contra-arrestar desgnios expansionistas soviticos

    no continente europeu. Para os britnicos, a Frana deveria

    ser includa entre os Policiais como garante adicional, caso

    houvesse um desengajamento norte-americano. Se todos

    os Conselhos regionais funcionassem a contento, a Gr-

    -Bretanha, apesar de seriamente debilitada, ainda teria voz

    e no seria forada a assumir compromissos militares a cada

    nova crise que surgisse. Churchill opinava que seu enfoque

    era mais realista, pois acreditava que somente os pases

    diretamente interessados teriam disposio para intervir com

    a rapidez necessria. Essa concluso Churchill teria extrado

    do episdio j mencionado da invaso da Manchria pelo

    Japo em 1931. A incapacidade da Liga das Naes de dar

    uma resposta altura explicava-se largamente em funo

    da relutncia da Gr-Bretanha e da Frana de envolver-se

    naquele front asitico longnquo.21

    No frigir dos ovos, porm, o regionalismo no foi um

    fator determinante na definio de quais pases deveriam

    ter postos permanentes no Conselho de Segurana. Com o

    consentimento dos Trs Grandes, a China e a Frana, cada

    um a seu tempo, foram convidados a se incorporarem ao

    grupo por motivaes polticas globais, apenas de modo

    muito tnue relacionadas a consideraes estritamente

    regionais. Quando a Carta da ONU foi assinada em 1945, os

    Conselhos regionais imaginados por Churchill j haviam sido

    descartados muito antes. Grande parte do esquema com

    base regional vislumbrado por Roosevelt foi substitudo por

    21 KENNEDY, Paul. The parliament of man: the past, present and future of the United Nations. Nova York: Vintage Books, 2007, p. 19.

  • Eugnio V. Garcia

    34

    uma abordagem globalista e centralizada. Houve algumas

    concesses na Carta aos acordos e entendimentos regionais,

    tratados no Captulo VIII. A demanda dos pases latino-

    -americanos pelo reconhecimento do sistema interamericano

    (cf. infra) tambm desempenhou um papel importante na

    referncia ao direito de legtima defesa coletiva em cada

    de agresso (Artigo 51). No obstante, em termos gerais, o

    Conselho de Segurana foi investido de autoridade superior

    em matria de imposio de paz. Um bom exemplo o

    Artigo 53, onde se estabelece que, salvo em situaes

    especficas mencionadas na prpria Carta, nenhuma ao

    coercitiva seria levada a efeito por entidades regionais sem

    a autorizao do Conselho.

    A segurana no ps-guerra foi um dos principais

    assuntos discutidos na Conferncia de Dumbarton Oaks, em

    1944, cujas negociaes foram divididas em duas partes:

    uma primeira rodada entre EUA, Gr-Bretanha e URSS;

    e, na sequncia, uma segunda envolvendo os dois primeiros e

    a China.22 O projeto de Carta elaborado pelo Departamento

    de Estado serviu de texto-base para a negociao. O nome

    Naes Unidas havia sido cunhado e proposto por Roosevelt

    e foi mantido. Ao contrrio de Wilson, que atribua

    condenao moral da opinio pblica peso capaz de dissuadir

    eventuais transgressores e educ-los na boa convivncia

    internacional, Roosevelt estava convencido de que a paz s

    22 O principal estudo sobre a Conferncia HILDERBRAND, Robert C. Dumbarton Oaks: the origins of the United Nations and the search for postwar security. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1990.

  • 35

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    poderia ser mantida pela fora, preferencialmente um poder

    militar avassalador, mobilizado rapidamente.

    Os negociadores em Dumbarton Oaks no trataram de

    questes jurdicas relativas ao Estatuto da futura Corte

    Internacional de Justia (CIJ), deixada a cargo de uma

    comisso de juristas que se reuniu em momento posterior.

    Houve, porm, consenso entre as quatro potncias de que o

    Conselho de Segurana no poderia ser obrigado a executar

    as sentenas proferidas pela Corte. Caberia ao Conselho a

    palavra final sobre qualquer medida a ser tomada para dar

    cumprimento a uma deciso dos juzes da Haia.

    O resultado concreto da Conferncia foi a aprovao de

    uma minuta de Carta, sob o ttulo de Propostas para o

    Estabelecimento de uma Organizao Internacional Geral.

    Ali se encontravam definidos os seus princpios, estrutura

    e funcionamento de seus rgos principais, incluindo

    um Secretariado.23 O plano a que se chegou poderia ser

    visto como uma verso fortalecida da Liga das Naes,

    controlada pelos Quatro Policiais. O Quinto Policial seria a

    Frana. Andrei Gromyko, representante sovitico, calculou

    em suas memrias que a minuta de Dumbarton Oaks teria

    correspondido a 90% do texto definitivo da Carta da ONU.24

    A hiptese pouco plausvel de um governo mundial,

    ou qualquer estrutura semelhante, foi de antemo dada por

    23 Os comentrios feitos poca pelo Brasil sobre o projeto de Dumbarton Oaks esto sintetizados em documento de 26 fev. 1945, apresentado Conferncia de Chapultepec, in: GARCIA, Eugnio V. (org.). Diplomacia brasileira e poltica externa: documentos histricos, 1493-2008. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2008, p. 454-459.

    24 PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Segurana aps a Guerra do Golfo: a articulao de um novo paradigma de segurana coletiva. Braslia: FUNAG, 2010, p. 22.

  • Eugnio V. Garcia

    36

    impraticvel. A Casa Branca j havia divulgado antes uma

    declarao de Roosevelt para mostrar que no se cogitava

    de estabelecer uma organizao acima da autoridade

    dos Estados:

    Ns no estamos pensando em um superestado com suas prprias foras policiais e outros apetrechos de poder coercitivo. Ns estamos buscando um acordo efetivo e arranjos por meio dos quais as naes manteriam, de acordo com suas capacidades, foras adequadas para suprir as necessidades de prevenir a guerra e tornar impossvel a preparao deliberada para a guerra, e ter tais foras disponveis para ao conjunta quando necessrio.25

    Em fevereiro de 1945, a Conferncia de Yalta, na Crimeia,

    definiu entre os Trs Grandes a forma de votao no Conselho

    de Segurana. Roosevelt estimava que o desejo comum de

    todos os pases era conseguir eliminar a guerra por um

    perodo de, pelo menos, 50 anos. Os trs lderes coincidiram

    em que a unanimidade dos membros permanentes era

    necessria para uma paz duradoura.26 A frmula de Yalta

    estabelecia em essncia que cada membro do Conselho

    teria um voto; as decises em questes processuais seriam

    tomadas pelo voto da maioria; e as decises em assuntos

    substantivos seriam tomadas pelo voto afirmativo de sete

    membros (a Carta diz hoje nove membros), inclusive de

    25 NOTTER, Harley A. Postwar foreign policy preparation, 1939-1945. Washington: Department of State, 1949, p. 269.

    26 CARCER, Gonzalo Aguirre de (org.). Los documentos de Yalta. Madri: Instituto de Estudios Polticos, 1956, p. 40-45.

  • 37

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    todos os membros permanentes (a embutido, portanto, o

    poder de veto). Ficou igualmente definido que, nas decises

    sobre resoluo pacfica de controvrsias, o membro do

    Conselho que fosse parte na controvrsia no poderia votar.

    Saa preservado desse modo o veto sobre questes que

    envolvessem aes em casos de ameaa paz, ruptura da

    paz ou ato de agresso (o futuro Captulo VII da Carta),

    desde sanes que no implicassem o uso da fora (sanes

    econmicas, interrupo de contatos por meios ferrovirios,

    martimos, areos, postais, telegrficos, radiofnicos e

    outros, ou o rompimento de relaes diplomticas) at

    medidas coercitivas com foras militares, terrestres, navais

    ou areas.27

    Cumpre destacar, a propsito, algumas das contribuies

    regionais ao debate. A Conferncia Interamericana sobre

    Problemas da Guerra e da Paz, na Cidade do Mxico, por

    exemplo, aprovou a Ata de Chapultepec, cujas recomendaes

    foram apresentadas para ajudar na elaborao do estatuto

    definitivo da ONU: aspirao universalidade como ideal

    a que deveria tender a Organizao no futuro; ampliar e

    precisar a enumerao dos princpios e fins da Organizao;

    fortalecimento das atribuies da Assembleia Geral

    para tornar a sua ao efetiva como rgo plenamente

    representativo; estender a jurisdio e competncia da Corte

    Internacional de Justia; criar um organismo internacional

    encarregado de promover a cooperao intelectual e moral

    entre os povos (que seria depois a UNESCO); resolver as

    questes de carter interamericano preferencialmente de

    27 CLEMENS, Diane Shaver. Yalta. Nova York: Oxford University Press, 1970, p. 240-243.

  • Eugnio V. Garcia

    38

    acordo com os mtodos e processos interamericanos, em

    harmonia com a organizao mundial; e, finalmente, dar

    adequada representao Amrica Latina no Conselho de

    Segurana.

    Durante a Conferncia de So Francisco, sobressaiu a

    clivagem poltica entre os P-5 e o resto. Embora chamados

    pelos cronistas da poca de 45 Pequenos, esse grupo

    evidentemente no era homogneo. Algumas potncias

    mdias se articularam para obter maior peso em certos

    temas, sob a liderana de Austrlia, Brasil e Canad, entre

    outros. A Blgica e os Pases Baixos tiveram papel de realce

    como potncias coloniais situadas no corao da Europa,

    fulcro de muitas questes estratgicas. Mas a atuao das

    potncias mdias no alterou a composio do ncleo duro

    do Conselho de Segurana, que permaneceu fechado em

    cinco membros permanentes.

    De modo semelhante ao ocorrido em 1919, as potncias

    menores buscaram aumentar seu nvel de representao.

    Em 1945, o nmero de postos temporrios foi limitou a

    seis e, para acomodar as diferentes demandas, foram

    inseridos na Carta (Artigo 23) dois critrios para a eleio

    dos membros no permanentes pela Assembleia Geral:

    contribuio dos Estados-membros manuteno da paz

    e da segurana internacionais e aos outros propsitos da

    Organizao; e distribuio geogrfica equitativa. Na viso

    dos delegados, entre os outros propsitos da Organizao

    estaria, especialmente, a contribuio financeira ao

    oramento da ONU. Na prtica, o preenchimento dos

    assentos no permanentes comeou a ser feito com base

  • 39

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    nos grupos regionais existentes na Organizao. Antes da

    primeira eleio em 1946, um acordo de cavalheiros foi

    alcanado em Londres pelos P-5 para se chegar a uma

    distribuio informal que perdurou por muitos anos:

    dois assentos para a Amrica Latina, um para a Europa

    Ocidental, um para a Europa Oriental, um para o Oriente

    Mdio e um para a Comunidade Britnica. Apesar disso,

    esse critrio regional serviria apenas para fins de eleio.

    Os anais das negociaes em So Francisco j registravam o

    entendimento de que os integrantes do Conselho deveriam

    ser considerados membros por toda a organizao e no

    representantes de suas prprias regies ou agrupamentos.28

    Embora mais estruturado e assertivo que o da Liga das

    Naes, o sistema de segurana estabelecido pela ONU foi

    mantido de forma deliberada em nvel baixo e sob controle

    de seus principais fundadores, detentores do veto, por

    temor de se criar uma organizao genuinamente forte,

    independente, dotada de capacidade militar prpria para

    intervir decisivamente nos conflitos. Em especial, decises

    sobre o uso da fora eram entendidas como chasse garde das grandes potncias. O resultado no seu conjunto foi

    um institucionalismo mnimo, que preservou a soberania

    dos Estados e no alterou a essncia do sistema poltico

    interestatal. Criou-se um marco constitucional delimitado,

    ainda que sujeito a crticas e reparos, com regras e

    procedimentos para regular determinados aspectos das

    relaes entre Estados e impor algum grau de respeito s

    28 BAILEY, Sydney D. & DAWS, Sam. The procedure of the UN Security Council. Oxford: Clarendon Press, 1998, p. 142-144.

  • Eugnio V. Garcia

    40

    normas internacionais. Em um ponto especfico, contudo,

    entre vrios outros, a ONU repetiu a Liga das Naes, ao

    dispor que os membros permanentes do Conselho de

    Segurana no seriam eleitos, mas sim nomeados em funo

    da distribuio de poder que existia ao final da guerra.

  • 41

    iVNormas: a estrutura da Carta

    O arcabouo normativo e institucional para o

    funcionamento da ONU est delimitado no seu essencial

    pela Carta de So Francisco, embora, como ser visto,

    a prtica seja muito mais fluida e complexa.29 O Captulo V

    trata especificamente do Conselho de Segurana, sua

    composio, funes, atribuies, forma de votao e

    questes processuais. O primeiro elemento estranho que

    salta aos olhos no Artigo 23 a relao nominal dos cinco

    membros permanentes: Repblica da China, Frana, Unio

    das Repblicas Socialistas Soviticas, Reino Unido da Gr-

    -Bretanha e Irlanda do Norte e Estados Unidos da Amrica

    (segundo a ordem alfabtica em ingls). Por falta de reviso,

    a Carta ainda menciona a Repblica da China (nome oficial

    de Taiwan) no lugar da Repblica Popular da China, que

    passou a fazer parte do Conselho desde 1971, e se refere

    URSS em vez da Federao da Rssia, que passou a ocupar o

    29 Sobre a Carta das Naes Unidas e seus artigos, cf. SIMMA, Bruno (ed.). The Charter of the United Nations: a commentary. Oxford: Oxford University Press, 2002, 2v.; BRANT, Leonardo Nemer Caldeira (org.). Comentrio Carta das Naes Unidas. Belo Horizonte: Centro de Direito Internacional-CEDIN, 2008; COT, Jean-Pierre & PELLET, Alain. La Charte des Nations Unies: commentaire article par article. Paris: Economica, 1985; TRINDADE, Otvio Augusto Drummond Canado. A Carta das Naes Unidas: uma leitura constitucional. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2012; entre outros.

  • Eugnio V. Garcia

    42

    assento sovitico aps a dissoluo da Unio em 1991. Alis,

    existem outros anacronismos na Carta, como a referncia

    datada a Estados inimigos.

    Quanto aos dez membros no permanentes, define-se

    que sero eleitos pela Assembleia Geral para um perodo de

    dois anos, sem direito a reeleio imediata, tomando como

    critrio especialmente a sua contribuio para a manuteno

    da paz e da segurana internacionais e para os outros

    propsitos da Organizao, como j dito, alm de tambm

    levar-se em conta a distribuio geogrfica equitativa. Cinco

    assentos eletivos se renovam a cada ano. Essa disposio

    procurava evitar que houvesse uma mudana muito brusca

    no rgo caso os dez membros temporrios fossem todos

    substitudos ao mesmo tempo.

    O Artigo 24 importante, pois, com vistas a assegurar

    pronta e eficaz ao por parte das Naes Unidas, os

    Estados-membros conferem ao Conselho de Segurana

    a responsabilidade primria na manuteno da paz e

    da segurana internacionais. Alm disso, concordam em

    que no cumprimento desses deveres o Conselho aja em

    nome deles, o que equivale a dizer que conferem um

    mandato ao rgo para tomar decises que podem em tese

    criar obrigaes a todos os Estados-membros. O Artigo 25

    refora essa interpretao ao indicar que os Estados-

    -membros concordam em aceitar e executar as decises do

    Conselho. Muitos juristas avaliam que essa clusula torna

    necessariamente vinculante as decises do rgo, como, por

  • 43

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    exemplo, na aplicao de sanes. As opinies divergem, no

    entanto, entre os prprios internacionalistas.

    Essas concesses no significam que o Conselho

    de Segurana deva ou possa agir livremente, como se

    dispusesse de carta branca por parte dos no membros.

    As atribuies especficas do Conselho esto explicitamente

    delimitadas em diversos Captulos na prpria Carta, cujos

    propsitos e princpios devem ser respeitados. Dito de outro

    modo, o Conselho no deve considerar-se acima da lei e

    tampouco seria salutar para sua legitimidade e credibilidade

    se atuasse revelia ou contra o direito internacional. Uma

    afronta s normas de jus cogens (lei imperativa) do direito internacional pblico colocaria o Conselho em uma posio

    virtualmente indefensvel luz dos Estados-membros como

    um todo e da opinio pblica.30

    Claro est que a diplomacia est habituada a frequentar

    o reino das ambiguidades, especialmente no que se refere

    aos foros multilaterais. Entre declaraes de princpios,

    generalidades, objetivos nobres, recomendaes e linguagem

    de ocasio, a Carta da ONU pode ser vaga o bastante para

    que cada Estado-membro encontre em seu texto a base

    para alguns de seus argumentos. Como assinalou Gelson

    Fonseca:

    A Carta no resolve a tenso entre a regra geral e o interesse individual, oferecendo, assim, espao para que as variaes da conjuntura poltica se reflitam no desempenho da Organizao. A regra

    30 Para uma discusso sobre legitimidade cf. HURD, Ian. After anarchy: legitimacy and power in the United Nations Security Council. Princeton: Princeton University Press, 2007.

  • Eugnio V. Garcia

    44

    moldura para a poltica, mas nem sempre suficiente para domestic-la. Essa uma das razes para que encontremos, na histria da ONU, uma combinao de xitos e fracassos, promessas de cooperao frutfera e tarefas inconclusas, avanos e impasses.31

    Pelo Artigo 27, negociado exausto em Dumbarton

    Oaks e acordado pelos Trs Grandes em Yalta, estabelece-

    -se que, em questes processuais, basta o voto afirmativo

    de nove membros para que as decises do Conselho de

    Segurana sejam tomadas. No existe o veto, portanto, se

    o tema meramente de procedimento. Por outro lado, em

    todos os outros assuntos, as decises do Conselho sero

    tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive

    os votos afirmativos de todos os membros permanentes.

    Embora no use a palavra veto, a Carta taxativa quanto

    necessidade de concordncia dos P-5. Com o tempo,

    prevaleceu o entendimento de que, nos temas substantivos,

    a absteno (ou a ausncia) de um membro permanente

    no impediria a adoo de uma resoluo do Conselho.

    Ainda segundo o mesmo Artigo, nas decises previstas no

    Captulo VI e no pargrafo 3 do Artigo 52, o membro que

    for parte em uma controvrsia no dever exercer o direito

    de voto.

    Como o veto um tema fundamental na prtica

    do Conselho de Segurana, importante ter presente

    a circunstncia de sua aceitao, a contragosto, pelos

    membros fundadores que firmaram a Carta. As conversaes

    31 FONSECA, Gelson. O interesse e a regra, op. cit., p. 41.

  • 45

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    prvias em Dumbarton Oaks se orientaram no sentido de

    fortalecer os poderes a serem conferidos ao Conselho. Para

    usufrurem de uma posio de poder controlar e/ou ficarem

    imunes ao rgo, os Quatro Policiais (e mais tarde a Frana)

    concordaram em que o veto era condio sine qua non para o projeto da ONU. A frmula de Yalta definiu em termos

    gerais o seu alcance. As potncias patrocinadoras chegaram

    a So Francisco com o firme propsito de no abdicar do

    veto, ponto para elas inegocivel. Evidentemente, os pases

    refratrios ideia de sacramentar um mandato discricionrio

    aos P-5 buscaram reagir, propondo emendas e questionando

    a real extenso do privilgio.32 Em resposta, os delegados

    dos P-5 reuniram argumentos e, como ultima ratio, fizeram um chamado compreenso do que estava em jogo:

    Em vista das responsabilidades primrias dos membros permanentes, no se pode esperar que eles, na condio atual do mundo, assumam a obrigao de agir em assunto to srio quanto a manuteno da paz e da segurana internacionais em consequncia de uma deciso com a qual no tivessem concordado.33

    Nos termos ento colocados, sem a aprovao do veto a

    ONU no poderia vir luz e morreria no nascedouro. Cada

    pas seria deixado sua prpria sorte para se defender de

    32 Questionrio submetido pelos Estados membros do Subcomit III/1/B aos quatro governos patrocinadores da Conferncia de So Francisco: EUA, Reino Unido, URSS e China. Documents of the United Nations Conference on International Organization, San Francisco, 1945. Nova York: United Nations Information Organization, 1945, vol. XI, p. 699-709.

    33 SCHLESINGER, Stephen C. Act of creation: the founding of the United Nations. Cambridge: Westview Press, 2003, p. 201.

  • Eugnio V. Garcia

    46

    futuras agresses. Assumia-se que a paz (isto , a proteo

    contra o Eixo ou qualquer novo agressor de peso) era um

    ganho desejado por todos. A responsabilidade especial

    das grandes potncias era apresentada no como benesse,

    mas como um fardo que no havia sido buscado. Afinal

    de contas, seguia o argumento, foram essas as potncias

    que reuniram a fora necessria para vencer a guerra, com

    enormes sacrifcios de vidas humanas e inumerveis perdas

    materiais. A elas caberia continuar provendo segurana

    aos Estados amantes da paz. Com o veto, essa mesma

    responsabilidade era projetada para o ps-guerra. A Carta

    consagrou a prerrogativa aos P-5 com o beneplcito do resto

    dos Estados-membros, persuadidos e pressionados pela

    circunstncia sui generis da Segunda Guerra Mundial.

    O Captulo VI se refere soluo pacfica de controvrsias

    e atribui ao Conselho de Segurana um papel-chave no esforo a ser feito pela comunidade internacional para

    encontrar sadas negociadas aos conflitos. De acordo

    com o Artigo 33, as partes em uma controvrsia, que possa vir a constituir uma ameaa paz e segurana

    internacionais, procuraro, antes de tudo, chegar a uma

    soluo por negociao, inqurito, mediao, conciliao,

    arbitragem, soluo judicial, recurso a entidades ou acordos

    regionais, ou a qualquer outro meio pacfico sua escolha.

    O Conselho pode investigar qualquer controvrsia ou

    situao suscetvel de provocar atritos entre os Estados ou

    dar origem a uma controvrsia, a fim de determinar se a

    continuao de tal controvrsia ou situao pode constituir

    ameaa manuteno da paz e da segurana internacionais

  • 47

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    (Artigo 34). Nesse caso, a capacidade de levar o tema ao

    debate no recai somente ao Conselho, j que qualquer

    Estado-membro pode solicitar a ateno tanto do Conselho

    quanto da Assembleia Geral para tais situaes. Mesmo

    um Estado no membro da ONU poderia faz-lo, desde que

    fosse parte na controvrsia e aceitasse previamente as

    obrigaes de soluo pacfica previstas na Carta (Artigo 35).

    O Conselho pode recomendar procedimentos ou mtodos

    de soluo apropriados, caso a caso, ficando entendido que

    as controvrsias de carter jurdico deveriam, como regra

    geral, ser submetidas pelas partes Corte Internacional de

    Justia. So dadas ao Conselho faculdades adicionais sempre

    que possam contribuir soluo pacfica da controvrsia

    (Artigos 36 a 38).

    Em caso de ameaas paz, ruptura da paz e atos de

    agresso, os dispositivos do Captulo VII podem ser acionados. Cabe ao Conselho de Segurana determinar quando tais

    situaes constituem uma ameaa paz e segurana

    internacionais. A fim de evitar que a situao se agrave, o

    Conselho pode fazer recomendaes ou convidar as partes

    interessadas a que aceitem as medidas provisrias que lhe

    paream necessrias ou aconselhveis (Artigos 39 e 40).

    A Carta prev procedimentos graduais conforme a gravidade

    do caso. O Conselho pode decidir sobre medidas que,

    sem envolver o emprego de foras armadas, busquem

    assegurar o cumprimento das decises do rgo. Para

    tanto, possui a faculdade de instar os Estados-membros

    da ONU a aplicar medidas que podem incluir a interrupo

    completa ou parcial das relaes econmicas, dos meios

  • Eugnio V. Garcia

    48

    de comunicao ferrovirios, martimos, areos, postais, telegrficos, radiofnicos, ou de outra qualquer espcie, alm do rompimento das relaes diplomticas (Artigo 41).34

    Assim, quando o Conselho de Segurana decide adotar sanes contra um pas estas podem atingir diversos graus de severidade. A prtica evoluiu muito nessa rea na ltima dcada. Pode ser incorporada, como anexo resoluo, uma lista de indivduos, organizaes e entidades sujeitas a monitoramento, restries de viagem e congelamento de bens e ativos. Estados-membros podem ser instados a proibir suprimento, venda, transferncia de itens, materiais, equipamentos, bens e tecnologia de acordo com o objetivo da resoluo. Pode-se determinar um embargo de armas e/ou vigilncia s exportaes ou importaes de tanques, veculos de combate armado, sistemas de artilharia de grosso calibre, avies e helicpteros de combate, navios de guerra e msseis, alm de controle sobre transaes financeiras internacionais e restries a novos financiamentos, emprstimos ou doaes ao pas objeto das sanes. Algumas vezes, como nas resolues que versam sobre no proliferao nuclear, prev-se que Estados-membros possam executar inspees martimas de navios suspeitos de transportar cargas em violao s decises do Conselho. Tem sido comum que a adoo das sanes seja acompanhada por um comit de especialistas, que reporta ao Conselho como rgo subsidirio.

    Nem sempre o Conselho atuou dessa maneira. Foram

    raros os casos de recurso a sanes durante a Guerra Fria

    34 UZIEL, Eduardo. O Captulo VII da Carta das Naes Unidas e as decises do Conselho de Segurana. Poltica Externa. So Paulo: vol. 21, n 4, abr./maio/jun. 2013, p. 107-123.

  • 49

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    e os principais tiveram lugar na frica para lidar contra

    o governo branco da Rodsia do Sul (atual Zimbbue) e o

    racismo do regime de apartheid da frica do Sul. Na dcada

    de 1990, depois que as sanes econmicas aplicadas ao

    Iraque se provaram ineficazes para mudar o comportamento

    de Saddam Hussein e prejudicaram diretamente a populao

    iraquiana, passou-se a ver com outros olhos a deciso de

    impor sanes generalizadas, sem foco. Deu-se lugar a uma

    discusso sobre a convenincia de sanes dirigidas ou

    inteligentes, limitadas em seu escopo para idealmente

    no causar dano humanitrio sociedade e direcionadas

    para que tivessem mais efeito sobre as autoridades do

    governo cuja postura se pretendia influenciar ou alterar.35

    H ainda o risco, derivado de interesses polticos, de que

    sanes sejam impostas aodadamente sem que a acusao

    contra um pas tenha de fato fundamento crvel ou sem

    uma comprovao de sua necessidade inelutvel, antes de

    esgotadas todas as possibilidades diplomticas.

    A real eficcia dos regimes de sanes no ponto pacfico.

    Um exemplo mais recente a considerar seria a questo

    nuclear iraniana. O tema migrou da Agncia Internacional de

    Energia Atmica (AIEA) e foi includo na agenda do Conselho

    de Segurana em 2006. As negociaes com o Ir ficaram

    concentradas sob a iniciativa dos membros permanentes e

    da Alemanha (P5+1), que exigiam o esclarecimento de todas

    as questes pendentes e a suspenso de enriquecimento e

    35 BAUMBACH, Marcelo. Os regimes de sanes do Conselho de Segurana das Naes Unidas: evoluo recente e apreciao crtica. Braslia: Instituto Rio Branco, Curso de Altos Estudos, 2006, p. 88.

  • Eugnio V. Garcia

    50

    reprocessamento de urnio. Relatrios subsequentes da AIEA

    indicaram que a falta de cooperao iraniana para elucidar

    as dvidas existentes impediam a Agncia de pronunciar-

    -se de forma conclusiva sobre a existncia de atividades

    nucleares no declaradas no Ir. Paralelamente s tratativas,

    o Conselho de Segurana adotou sanes por meio de quatro

    resolues, a ltima delas em junho de 2010, apesar da

    alegao do Ir de seu direito de desenvolver um programa

    nuclear para fins pacficos conforme estipulado pelo Tratado

    de No Proliferao Nuclear, incluindo o enriquecimento de

    urnio em grau compatvel com tais fins. Recorde-se que a

    Declarao de Teer, de maio de 2010, assinada por Brasil,

    Turquia e Ir, procurou remover os obstculos que haviam

    impedido um acordo no ano anterior sobre o fornecimento

    de combustvel para o Reator de Pesquisas de Teer. O acordo

    tinha o objetivo de iniciar processo de construo de

    confiana e abrir caminho para a retomada das negociaes,

    que ainda prosseguem, no momento em que este livro foi

    escrito, sem haver obtido a cooperao desejada entre o Ir

    e a AIEA.

    Se o Conselho de Segurana considerar que nem as

    sanes nem as medidas especficas previstas no Artigo 41

    da Carta so suficientes ou adequadas, poder levar a

    efeito, por meio de foras areas, navais ou terrestres, a ao

    que julgar necessria para manter ou restabelecer a paz

    e segurana internacionais. Tal ao poder compreender

    demonstraes, bloqueios e outras operaes, por parte das

    foras areas, navais ou terrestres dos Estados-membros da

  • 51

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    Organizao (Artigo 42). Cumpridos esses passos requeridos

    pela Carta, o Conselho pode autorizar o uso da fora ou,

    como se diz comumente na linguagem das resolues,

    utilizar de todos os meios necessrios para impor as

    suas decises.

    Em 1945, imaginou-se que os Estados-membros aportariam

    foras militares para tanto, ademais de assistncia e outras

    facilidades, inclusive direitos de passagem, mediante

    acordos especiais a serem negociados previamente com o

    Conselho. Seriam determinados por esses acordos o nmero

    e tipo das foras, seu grau de preparao e sua localizao

    geral, bem como outros detalhes sobre a natureza da

    contribuio que cada Estado-membro iria proporcionar

    Organizao, por seu livre consentimento (Artigo 43). Se um

    Estado no membro do Conselho fornecesse contingentes

    teria o direito assegurado de participar das decises do

    rgo que implicassem a utilizao dessas foras (Artigo 44).

    Decidiu-se, ainda, criar uma Comisso de Estado-Maior

    destinada a orientar e assistir o Conselho do ponto de vista

    do planejamento, comando e operacionalizao militar no

    emprego dos efetivos. Essa Comisso de Estado-Maior seria

    basicamente composta pelos Chefes de Estado-Maior dos

    membros permanentes, com a responsabilidade de dar a

    direo estratgica de todas as foras armadas postas

    disposio do Conselho. Dado o carter de urgncia que

    as medidas militares poderiam assumir, previu-se o uso

    do poder areo para a execuo combinada de uma ao

    coercitiva internacional. Caberia aos Estados-membros,

  • Eugnio V. Garcia

    52

    novamente, prover o Conselho dos meios areos dispon-veis (Artigos 45 a 50).

    Aqui residia um dilema, na verdade quase insolvel,

    entre a necessidade de aportar meios militares ONU,

    nos termos da Carta, e as demandas por uma reduo ou

    controle dos armamentos. Como promover o desarmamento

    se os mesmos Estados deveriam estar prontos a contribuir

    militarmente para manter a paz? Em tese pelo menos,

    se todos os Estados fossem completamente desarmados

    nenhum poderia atender s obrigaes da Carta. O problema

    j se havia colocado antes, no Pacto da Liga das Naes,

    cujo Artigo 8 reconhecia que a manuteno da paz exigia a reduo de armamentos nacionais ao mnimo compatvel

    com a segurana nacional e com a execuo das obrigaes

    internacionais impostas por uma ao comum. O mais

    longe que os negociadores em So Francisco conseguiram

    avanar nesse ponto foi inserir um artigo no qual se dizia

    que, a fim de promover o estabelecimento e a manuteno

    da paz e da segurana internacionais, desviando para

    armamentos o menos possvel dos recursos humanos e

    econmicos do mundo, o Conselho de Segurana teria o

    encargo de formular, com a assistncia da Comisso de

    Estado-Maior, planos para um sistema de regulamentao

    dos armamentos (Artigo 26).

    Outro aspecto importante se refere ao princpio da

    autodefesa. Pelo Artigo 51 ficou estabelecido que nada

    na Carta prejudicaria o direito inerente de legtima defesa

    individual ou coletiva no caso de um ataque armado

    contra um Estado-membro das Naes Unidas. As medidas

  • 53

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    tomadas em sua defesa pelo Estado agredido deveriam ser

    comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurana,

    que continuaria mesmo assim a gozar da prerrogativa de

    exercer sua autoridade, em qualquer tempo, naquilo que

    entendesse dever ser a sua responsabilidade em termos de

    paz e segurana.

    A forma como o Conselho de Segurana conduz

    seus trabalhos mereceu alguns esclarecimentos na Carta

    (Artigos 28 a 32). O Conselho est organizado de modo que

    possa funcionar continuamente, habilitado a manter reunies

    peridicas em sua sede na Organizao ou fora dela, caso os

    membros assim julguem oportuno. Foi admitida a faculdade

    do Conselho de estabelecer rgos subsidirios e de adotar

    seu prprio regulamento interno. Um Estado-membro

    das Naes Unidas, que no for membro do Conselho de

    Segurana, pode participar, sem direito a voto, na discusso

    de qualquer questo submetida ao Conselho, sempre que

    este considere que tal pas seja parte na controvrsia ou

    tenha seus interesses diretamente afetados. O direito de

    participar nas discusses, sem voto, estendido um Estado

    que no for membro das Naes Unidas, nas condies que

    determine o Conselho.

    Crticas frequentes ao Conselho de Segurana se referem

    sua intruso (encroachment) em reas que no seriam de sua alada ou cuja conduo colide ou compete com

    outros rgos (Assembleia Geral, ECOSOC, etc.). Pode haver

    nesse processo uma securitizao da agenda, isto , um

    esforo dirigido por conferir uma preocupao de segurana

    a um tema ou situao que normalmente teria enfoque

  • Eugnio V. Garcia

    54

    distinto, seja ele econmico, social, ambiental, energtico

    ou qualquer outro. Como parece evidente, securitizar um

    tema pode no ser a melhor resposta, do mesmo modo que

    militarizar um conflito no deveria ser a primeira opo.

    Outra queixa similar se liga s tentativas do Conselho de

    atuar como legislador, principalmente quando suas decises

    sobre dado assunto tm uma abrangncia que extrapola o

    particular e nutrem a pretenso de se converter em norma

    geral. O risco presumido pode ser maior quando se trata

    de uma questo temtica, no circunscrita a uma rea

    geogrfica, como foi o caso de algumas resolues sobre

    contraterrorismo e no proliferao nuclear.

    Na fase de criao e montagem da estrutura onusiana,

    as grandes potncias atuaram no sentido de preservar

    a autonomia do Conselho de Segurana. Na Comisso

    Preparatria das Naes Unidas, que se reuniu em Londres

    no segundo semestre de 1945, os P-5 no estavam

    interessados em estabelecer regras que enrijecessem

    sobremaneira o rgo. A delegao norte-americana deixou

    claro que desejava apenas o mnimo indispensvel ao seu

    funcionamento. O objetivo no declarado era resguardar a

    maior flexibilidade possvel para que o Conselho tivesse

    ampla latitude ao tomar qualquer deciso, sem escolhos

    procedimentais que atravancassem sua capacidade de julgar

    e agir politicamente, caso a caso. O Artigo 34 da Carta confere

    poderes ao Conselho para investigar qualquer controvrsia

    ou situao suscetvel de provocar atritos entre as naes ou

    dar origem a uma controvrsia, a fim de determinar se

    pode haver ou no ameaa manuteno da paz e da

  • 5555

    segurana internacionais. Da mesma forma, na aplicao

    dos dispositivos do Captulo VII, o Artigo 39 estabeleceu que

    compete ao Conselho determinar a existncia de qualquer

    ameaa paz, ruptura da paz ou ato de agresso. Nesse

    mesmo diapaso, ao interpretar o Artigo 30, segundo o

    qual o Conselho de Segurana deveria adotar seu prprio

    regulamento interno, os P-5 em geral sustentam que o

    rgo seria the master of its own procedure. Suas regras de procedimento, adotadas em 1946, continuam at hoje

    provisrias, como a demonstrar que podem ser revistas

    ou suspensas a qualquer momento.

    Alm das prerrogativas de impor sanes mandatrias e

    autorizar o uso da fora, o Conselho de Segurana tem outras

    faculdades especficas no que toca admisso de novos

    membros na Organizao, escolha do Secretrio-Geral,

    designao dos juzes da Corte Internacional de Justia, e

    ao estabelecimento de tribunais penais internacionais para

    julgar crimes de guerra, como em Ruanda e na ex-Iugoslvia,

    para citar apenas as principais.

    Embora a Organizao se aproxime hoje da universalidade

    em sua composio, a admisso de novos Estados-membros

    foi historicamente um tema que provocou acesos debates

    na ONU, cabendo ao Conselho papel primordial no processo

    decisrio. Israel, por exemplo, teve sua primeira solicitao

    de ingresso rejeitada em 1948, por no obter a maioria

    necessria dos votos. A primeira guerra rabe-israelense

    naquele ano colocava em dvida a prpria existncia de

    um Estado judeu na Palestina, sem fronteiras definidas e

    com forte oposio dos pases rabes. Aps o cessar-fogo,

  • Eugnio V. Garcia

    56

    Israel assinou acordos separados de armistcio com Egito,

    Transjordnia, Lbano e Sria, ainda sob o impacto das vitrias

    militares israelenses. Na segunda tentativa, em 1949, Israel

    obteve a recomendao do Conselho e se tornou Estado-

    -membro por resoluo da Assembleia Geral que recebeu 37

    votos a favor, 12 contra e 9 abstenes. A mesma sorte no

    teria a Palestina.

    Em uma das controvrsias recentes na acidentada

    trajetria do conflito palestino-israelense, o Presidente

    Mahmoud Abbas enviou carta ao Secretrio-Geral das

    Naes Unidas, em 2011, para solicitar formalmente o

    ingresso da Palestina como Estado-membro. Consoante

    as Regras de Procedimento Provisrias, o Secretrio-Geral

    comunicou o pedido ao Conselho de Segurana, que por

    sua vez o encaminhou a um comit para anlise (regra 59).

    O procedimento foi seguido, apesar da firme resistncia

    de pelo menos um membro do Conselho. Para que possa

    recomendar qualquer adeso, o Conselho deve decidir, de

    acordo com seu julgamento, se o requerente um Estado

    amante da paz e se est capacitado e disposto a cumprir

    as obrigaes constantes na Carta (regra 60). O comit se

    reuniu algumas vezes e posteriormente o Conselho tratou

    do assunto, mas nenhuma deciso foi tomada. Como

    frequente na ONU, a opo pelo adiamento no soluciona

    nem tira o problema da pauta, apenas posterga o seu

    encaminhamento. Ainda hoje, o conflito no Oriente Mdio

    uma das principais questes no resolvidas na agenda

    do Conselho.

  • 57

    VFuncionamento: mtodos de trabalho

    Os membros do Conselho de Segurana costumam

    dedicar tempo considervel s questes processuais e no

    raro se recorre ao Secretariado para solicitar esclarecimentos

    ou dirimir dvidas pontuais. A aplicao das Regras de

    Procedimento Provisrias pode ser consensual, quase

    rotineira, ou em outros casos pode ser tambm objeto de

    longas discusses entre Representantes Permanentes ou

    delegados. Diz-se que o Presidente do Conselho de Segurana

    deve convocar uma reunio do Conselho a pedido de

    qualquer membro do rgo (regra 2). Mas, se pelo menos

    um membro importante discorda da oportunidade de tal

    reunio, no seria surpreendente uma negociao prvia de

    bastidores que se arraste por horas, dias ou at semanas.

    As reunies do Conselho ocorrem normalmente na sede

    das Naes Unidas em Nova York (regra 5), mas no h

    objeo formal para que se realizem em outro lugar (existem

    precedentes a respeito). A agenda de cada reunio ter sido

    extensivamente analisada e considerada pelos membros

    para evitar surpresas indesejveis (o que obviamente no

    impede que lances inesperados aconteam de tempos em

  • Eugnio V. Garcia

    58

    tempos). Esse um dos motivos pelos quais o primeiro item

    da agenda provisria de qualquer reunio deve ser a adoo

    da agenda (regra 9). O que constitui na maioria das vezes

    um evento banal, pode ser igualmente o pice de um esforo

    negociador no desprezvel que passou despercebido por

    grande parte da imprensa e da opinio pblica.

    A Presidncia do Conselho de Segurana realizada,

    de maneira rotativa a cada ms, na ordem alfabtica em

    ingls dos nomes dos membros (regra 18). Alm de conduzir

    as reunies e representar o Conselho como um rgo das

    Naes Unidas, ao Presidente de turno cabem diversas

    responsabilidades, que incluem a organizao do programa

    de trabalho mensal, em consulta com os demais membros.

    Alm dos Representantes Permanentes, em nvel de

    Embaixador, as delegaes possuem equipes de diplomatas

    dedicados aos temas do Conselho e um coordenador poltico

    para negociar com suas contrapartes e organizar o trabalho

    interno das delegaes. Cada detalhe protocolar tem seu

    significado. O Presidente deve convidar os representantes

    na ordem na qual desejem falar (regra 27), mas a lista

    de oradores pode ser ela mesma um tema de discusso

    por ferir suscetibilidades ou assentar privilgios. Se um

    representante suscita uma questo de ordem, o Presidente

    deve comunic-la de imediato e, se for contestada, submet-

    -la ao Conselho para uma deciso (regra 30).

    As decises a que pode chegar o Conselho de Segurana podem ter diversos formatos. Os trs tipos principais seriam:

    uma resoluo, que conforme seu peso especfico pode

    consumir meses de negociaes prvias; uma declarao

  • 59

    Conselho de Segurana das Naes Unidas

    presidencial, que costuma ser adotada por consenso

    em consultas informais e lida em sesso pblica pelo

    Presidente do rgo; e uma declarao imprensa, tambm

    alcanada por consenso e comunicada pelo Presidente aos

    jornalistas logo aps sua aprovao pelos membros. Sobre

    esse ponto, quando o Presidente se dirige imprensa sem

    um texto ele ou ela poder fazer breves comentrios sobre

    os assuntos discutidos ou, ainda, guiar-se por elementos

    imprensa, que tero sido analisados e aceitos antes

    pelos membros (existe pouco espao para improvisao

    no cotidiano do Conselho). Esses elementos tm carter

    informal e no circulam na forma escrita como acontece

    com a citada declarao imprensa, que fica registrada

    como um documento oficial da ONU.

    A sensibilidade poltica tende a aumentar quando a

    negociao gira em torno de um texto, uma vez que sua

    adoo pode ter implicaes de longo alcance (reverter

    algo j aprovado sempre muito mais difcil que resistir

    sua votao). Na busca de consenso, projetos de resoluo

    podem ser diludos de tal maneira que seus pargrafos no

    causem preocupao a algum dos membros. Propostas

    de resolues, emendas e moes substantivas devem

    ser colocadas diante dos representantes por escrit