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Diário de uma víbora – Joel Silveira
O jornalista fala da sabedoria dos gatos e da
diferença entre “analista” e “cientista” político
06Especial – 90 anos
Nelson Rodrigues mostra como se escreve uma
crônica esportiva sem precisar ver o jogo
Bioética – Dilemas da ciência
Pesquisas nazistas e a Bomba A quebraram a
harmonia entre ciência e progresso humano
C O N T E Ú D O
ContinenteMulticultural
Ferreira Gullar – Bienal A contradição básica entre a manifestação que se
quer rebelde e institucional, ao mesmo tempo 20
22Memória – Sérgio BuarqueHistoriador é lembrado como o exemplo
completo de um brasileiro realmente genial 28
38Cinema – Bressane e George Lucas
Cineasta marginal é premiado. Tecnologia digital
modifica a própria estética cinematográfica
58Cultura – Luiz Costa LimaCrítico avalia a cultura brasileira e analisa Paulo
Freire, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre 62
Folclore – Boi de Máscaras
Em São Caetano de Odivelas (PA), um bumba-
meu-boi que não existe para o consumo turístico 68
72
Entremez – Crime e estética
A relação entre a morte de um romeiro do Padre
Cícero e o trabalho de Francisco Brennand 90
Página 72
Página 42
Denise Milfontna peça Dorotéia,
de Nelson
Rodrigues.
Foto: AJB
32
42
Marco zero – Poesia
Análise do livro Corpo lunar, antologia que reúne as
principais vozes da poética feminina pernambucana 80 Antologia – Arnaldo Tobias
Em quatro poemas, a força revolucionária dos
versos do poeta russo Vladímir Maiakovski 82Mil palavras – Walter CarvalhoO grande fotógrafo do cinema brasileiro apresenta
um ensaio que fixa o olhar em Pernambuco 84
Música – Josefina Aguiar A grande pianista é chamada de “Dama da
Resistência” pela defesa da música erudita 92Últimas palavras – A ordem do dia
Inusitado é o bem comum do povo, primeiro
limite para se conceituar a liberdade 96
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Conversa franca – ArgentinaEscritor revela como a globalização afetou um
povo que se dizia parte do mundo desenvolvido
Arquitetura – PatrimônioRestaurações sem critérios bem definidos
terminam por criar realidades desfiguradas
Sabores pernambucanos – FeijãoPrato apreciado por índios, aos poucos
conquistou o paladar dos portugueses
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CumprimentosQuero cumprimentar o poeta Everardo Norões pelo
lirismo do artigo Entre o alif e o aleph, onde o mesmo enfocoua necessidade de se descobrir os caminhos do afeto para abusca do entendimento entre contrários. Eu me senticontemplada, como se pelas palavras de Everardo estives-sem os meus sentimentos e o meu desejo de expressão, tãoafetuosamente colocados.
Como judia brasileira, de uma segunda geração denascidos e acolhidos neste país em que nunca nos sentimosestrangeiros, guardo, na minha memória de criança, a formafraterna pela qual o meu avô, Salomão Gorenstein, proprie-tário da Ótica Vitória, na rua 10 de Março, tratava porprimo o seu vizinho sírio-libanês, proprietário da loja de ca-ça e pesca, seu Miguel Amin, quando passavam férias juntos, em Fazenda Nova.
O meu pai, falecido engenheiro Marcos Botler, também
se referia ao amigo e colega de profissão, Talfig Asfora,como primo.Parafraseando Everardo, gostaria que o aleph e o alif
simbolizassem a nossa certeza de que, pelo prisma dohumanismo de Maimônides, os brasileiros de origem árabee os judeus brasileiros devam se unir para apontar os cami-nhos da paz.
Como expressou Everado, o conflito do Oriente Médiochega até nós através de imagens partidas, e a reconstituiçãodas mesmas só será possível através do entendimentopolítico e da tolerância cultural e religiosa entre os primos.
Aronita Rosenblatt – Recife – PE
2 Continente Multicultural
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
PresidenteMarcelo Maciel
Diretor Financeiro Diretor IndustrialAltino Cadena Rui Loepert
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Conselheiros: César Leal, Cícero Dias,Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello,
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Carlos Fernandes
EditorMário Hélio
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Fonseca e Marco
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Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência:Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita
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Expediente
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Continente Multicultural 3
CulináriaMuito boa a matéria de Maria Lectícia Monteiro
Cavalcanti sobre gastronomia (Carême, Bocuse, Joana e Maria, na edição número 16, mês de abril). Fiqueiencantada com aquelas histórias dos chefs de cozinha. Etambém em saber que Leonardo da Vinci foi o inventor doguardanapo, substituindo os coelhos (!) que eram usadospara limpar as mãos. Isso é que se chama cultura e diversão, juntas. Meus parabéns!
Maria do Carmo Cerqueira – Patos – PB
Qualidade excepcionalAcompanho sempre todas as reportagens da revista
desde que a descobri. Sinto-me muito envaidecido por serpernambucano e ter uma revista de uma qualidadeexcepcional como esta circulando aqui entre nós. Gostaria
que vocês dessem mais oportunidade a quem estáiniciando. Parabéns por esse engenhoso empreendimento.Daniel Fernandes Viana Filho – Recife – PE
A melhorInicialmente, parabéns pela excelente revista, a melhor
do gênero no Norte/Nordeste, motivo de orgulho paratodos nós, nordestinos. Agora, se me permitem, trêssugestões de matérias, de interesse regional: Luís da CâmaraCascudo, a Bienal do Livro de Natal e o centenário doInstituto Histórico e Geográfico do RN, a mais antigainstituição cultural daquele Estado.
João Bosco de Sousa – João Pessoa – PB
TurismoSou estudante de Turismo, e fui presenteada por um
amigo do Recife, Dr. José Geraldo Eugênio de França, comexemplares da Continente. Tenho divulgado-os da melhormaneira, mostrando a riqueza do nosso Nordeste e Brasil.Os assuntos e fotografias têm-nos auxiliado em diversaspesquisas turísticas. No exemplar de abril, em Sabores pernambucanos, o meu elogio pela riqueza de publicação.Nós, brasileiros, precisamos conhecer os grandes chefes (ho-mens e mulheres) que comandam a nossa cozinha.
Iolanda Lopes Carneiro – Recife – PE
ParabénsParabéns por Continente, cada vez melhor. Parabéns
pela publicação da tradução de Diego Raphael. Maravilha.A entrevista de Harold Bloom enche as medidas. Comcerteza, uma revista adulta. Parabéns pelo conto de JoséCastelo. Sem provincianismo. Muito bom. Grande abraço.
Raimundo Carrero – Recife – PE
ArmorialAdorei a matéria Os mitos do Brasil em movimento (edição
de fevereiro). Adorei mesmo. Só adoraria mais se falassesobre o teatro armorial e, principalmente, sobre ArianoSuassuna.
Rafael Armando – Recife – PE
DançaFinalmente! Sou uma apaixonada pela dança
contemporânea e já estava ficando agastada por ver que umarevista do quilate intelectual desta Continente, ainda nãotinha prestado a devida importância a esta manifestação tãograndiosa da arte. Mas, fui recompensada. A edição de junho, que traz na capa a bailarina paulista Deborah Colker,
lavou minha alma. La Colker é motivo de orgulho paratodos os brasileiros, pelo que representa na dançacontemporânea mundial. Parabéns pela entrevista, querevela também o quão inteligente é aquela mulher.
Arminda Tavares – Bauru – SP
SexoLi o artigo O sexo que conduz a Deus na Continente e
gostei. Sempre achei que deveríamos ter uma abertura maiorpara outras literaturas, como a da África do Norte, onde vivisete anos, e que tem grandes autores desconhecidos. SobreOs Campos Perfumados, de Nafzawi, observo o seguinte: háoutra edição brasileira, a da Martins Fontes (coleçãoGhandara, de 1994). Trata-se de uma tradução da traduçãofrancesa (La Prairie Parfumée où s ébattent les plaisirs) deRené Khawan (um grande tradutor do árabe para ofrancês). No prefácio do autor (Nafzawi), ele diz que OsCampos Perfumados foi escrito após “um livro de certaimportância” que ele compôs, uma pequena obra intituladaTannwir al-biqa fi asrar al djima - A iluminação dos vales,através da exposição dos segredos da cópula. Portanto, A tocha do Universo é do próprio Nafzawi. Não sei se as outrastraduções têm o prefácio de Nafzawi, o qual dá os detalhessobre o assunto.
Everardo Norões - Recife - PE
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e a história nada mais é do que um desfile decrimes e insanidades, como querem historia-
dores do porte de um Will Durant, o teatro e aliteratura espelham isso. Autores como Ésquilo eShakespeare dizem muito mais sobre os conflitoseuropeus e sua essência do que todos os anais edocumentos oficiais juntos.
No Brasil, um dos espelhos mais bem aca-bados das relações cotidianas é a obra de Nelson
Rodrigues. Na superfície, os seus temas pouco vão além das mazelas de um mundo suburbanodeliciado em morbidez, quase sempre de conteú-do freudiano. Nas estruturas profundas talvez se-
jam mais do que isso. As suas obras têm caráterfolhetinesco. São retratos mais jornalísticos doque literários de homens e mulheres.
Embora afundados em realismo delirante,as suas personagens nada têm de heroísmo tra-dicional. De onde viria a sua força psicológica?
Onde uns responderiam Freud, outros escolhe-riam Pernambuco, estado natal de Nelson Rodri-gues. Às vésperas dos 90 anos do seu aniversáriode nascimento, um repórter revolveu as entranhasde uma antiga entrevista e a apresenta aos leitores.
Além de narrar os bastidores da conversa,o repórter Geneton Moraes Neto revela a sua ad-miração pelo cronista esportivo e criador de frasesque já se incorporaram ao chamado imaginárionacional. Hoje, Nelson Rodrigues é dessas una-nimidades do país. Se fosse vivo poderia enxergar
isso com ácida ironia. O tantas vezes censurado ea quem coube como uma luva a pecha de “rea-cionário” é um dos gênios da raça.
Para a sua reabilitação concorreram nãosomente as diversas adaptações de suas obras pa-ra o cinema, mas a publicação da biografia dele,escrita pelo jornalista Ruy Castro, O anjo porno-
gráfico, e as reedições dos seus livros, pela Com-panhia das Letras. Chega de maldição. O antesodiado autor de folhetins obscenos é um dos maisqueridos pelas novas gerações. Talvez menos pre-sas aos seus fantasmas que as duas ditaduras quenum século tentaram amordaçar o país de liber-tinos e homens cordiais.
E D I T O R I A L
Continente Multicultural 5
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S
Amar e odiar Nelson Rodrigues
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6 Continente Multicultural
“ o cretino f undamental
As incríveis cenas dos bastidores
de um encontro com Nelson
Rodrigues, maior dramaturgo
brasileiro, pernambucano exilado
no Rio, estilista número um dacrônica esportiva
Geneton Moraes Neto
E S P E C I A L
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Continente Multicultural 7
água”
Meu primeiro, único e último encontro como gênio Nelson Rodrigues (que, se vivo, estaria com-pletando 90 anos em agosto próximo) começoucom uma dúvida devastadora: por que diabos ele te-ria marcado nossa entrevista justamente para a horade um jogo da seleção brasileira? Não é possível,
deve ter havido algum engano – eu pensava commeus botões, enquanto caminhava pelas calçadas doLeme, na beira-mar, no Rio de Janeiro, em direçãoao apartamento do homem.
Se Nelson Rodrigues escrevia aquelas crôni-cas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvioque ele não iria dar uma entrevista a um forasteiropernambucano no exato momento em que a sele-ção brasileira entrava em campo, no Maracanã, com
transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é queele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguin-
te? Não, deve ter havido um grande equívoco. Émelhor que eu desista. Nelson não iria dar entrevistaalguma num momento tão inoportuno. Ou iria?
Mergulhado num poço de constrangimento,aperto a campainha. A entrevista tinha sido marcadapor telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo,
vejo a imagem de Nelson Rodrigues esparramadonuma poltrona. Os pés estão fora dos sapatos. Não
faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de
mangas curtas. Pende na parede da sala uma fotoemoldurada dele em companhia de Sônia Braga ede Neville de Almeida – atriz e diretor da versãocinematográfica de A dama do lotação.
Quando a mulher avisa em voz alta que “orepórter de Pernambuco” estava na porta da sala,Nelson ergue os braços,agita as mãos,saúda o ilustredesconhecido com uma exclamação calorosa,comose reencontrasse um amigo de infância: “Conterrâ-neo! Conterrâneo!”.
O cumprimento efusivo não afasta o temor deque Nelson tenha cometido um pequeno equívoco:ao marcar a entrevista para aquele horário, ele bemque pode ter se esquecido do jogo. A hipótese pode
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8 Continente Multicultural
parecer absurda, mas quem sou eu para menos-prezar as possíveis excentricidades de nosso herói?
Tento uma solução alternativa para escapar deum vexame: digo que posso voltar depois; não queroimportuná-lo naquela hora. Teatral, Nelson Rodriguesrepousa a mão direita sobre o peito, como se sugeris-se uma pontada no coração. Olha para a televisão, pe-de à mulher: “Tirem o som desse aparelho! Tirem osom desse aparelho! O Brasil me faz mal! O Flumi-nense me faz mal!”. A mulher e a irmã de Nelson riem
da cena. Hiperbólico, épico, exagerado, o homem éuma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de queacabo de me transformar em solitário e privilegiadís-simo espectador de um espetáculo chamado NelsonFalcão Rodrigues, encenado pelo próprio autor.
A ordem – “tirem o som desse aparelho!” –é imediatamente atendida. O aparelho de TV ficamudo. Assim, este forasteiro se vê de repente nacondição de coadjuvante de uma cena surrealista:diante de uma TV sem som, que transmitia o jogo
da seleção brasileira contra o Peru, o autor das maisbrilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasi-leiro simplesmente tira os olhos do vídeo para res-ponder ao interrogatório de um visitante que che-gou em hora inconveniente.
Fui testemunha ocular de uma verdade inape-lável: Nelson Rodrigues era um cronista tão perfeitoque nem precisava ver o jogo. O resultado da par-
tida, as escaramuças dos jogadores, os esquemas táticos, todas essas bobagens não passavam de deta-lhes secundários aos olhos do gênio. A Nelson Ro-
drigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de be-ques ou atacantes no retângulo verde. O relato des-sas banalidades é tarefa que cabe aos “idiotas daobjetividade” – estes pobres seres que só são capa-zes de enxergar a rala superfície dos fatos.
A missão que Nelson Rodrigues outorgou a simesmo era outra: traduzir em palavras a dimensãoépica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que,então, perder tempo com miudezas? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru? Para que saber seo meio-de-campo do Brasil estava ou não estavainspirado?
“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidadeshakespeariana. Às vezes, num córner bem ou malbatido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”,ele escreveu uma vez.
Nelson Rodrigues preferia se ocupar de ques- tões metafísicas – como, por exemplo, a inapetênciade nossos escritores brasileiros em tratar do futebol.Numa de suas tiradas clássicas, reclamou: “Nossaliteratura ignora o futebol – e repito: nossos escrito-res não sabem cobrar um reles lateral.”
A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados emnossos jornais. Virou lugar-comum dizer que NelsonRodrigues reclamava de que nossos escritores nãosabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão.
A implicância de Nelson era com literatos incapazesde cobrar um lateral.
Alheio a essa fraqueza nacional, Nelson pare-ce distante da disputa que se desenrola ali, no vídeo.
Faz ao repórter uma pergunta incrível: “Quem é onosso adversário hoje?”. Informo que é o Peru.Fique registrado para a posteridade que o
maior cronista do futebol brasileiro não precisava ne-cessariamente saber quem era nosso adversário.
Quando Zico faz um a zero, aos trinta e qua- tro minutos do primeiro tempo, Nelson inter-rompe a entrevista para inaugurar, aos brados, umanova expressão exclamativa: “Que coisa beleza!Que coisa beleza!”
Depois, pede à família: “Pessoal, com licença
dos nossos visitantes, vamos fechar essa máquinaporque já estou começando a ficar nervoso”. Aosnão iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, es-clareça-se que “fechar a máquina” significa desligar aTV – o que, aliás, não foi feito. Nelson dispara, então,um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigi-do por Cláudio Coutinho: “Mas esses rapazes sãouns gênios! Uns gênios!”
O repórter seria novamente surpreendido.Nelson já perguntara quem era “nosso adversário”.
Agora, ao ver o replay do gol recém-marcado, tomaum susto: “Mas já houve dois gols?”. Digo a ele quenão: é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah,
“Tire o som desse aparelho! Tire o som desse aparelho!O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal!”.
Hiperbólico, épico, exagerado, o homem é uma fábricade tiradas dramáticas
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Continente Multicultural 9
sim !”. Teria dois outros motivos para vibrar: o mi-neiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes –
faria dois gols, aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo, para fechar o placar: Brasil 3 x 0 Peru.
Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nelson Rodrigues teria escri-
to sobre o jogo que eu não o deixara ver? Eis:“Vejam vocês como o futebol é estranho – às
vezes maligno e feroz. Mas não quero ter fantasias es-plêndidas. O jogo Brasil x Peru, ontem, no Mário Fi-lho, não assustou a gente. Diz o nosso João Saldanha:‘O Brasil fez seu jogo, jogo brasileiro’. Vocês enten-dem? Não há mistério. O brasileiro é assim. Quandoum de nós se esquece da própria identidade, ganhade qualquer um. Outra coisa formidável: na semanapassada, um craque nosso veio me dizer: ‘Nelson, épreciso que você não se esqueça: ao cretino funda-mental, nem água’. O jogo foi lindo”.
Penso com meus botões que Nelson nãoprecisou esperar pelo início do jogo para escrever acrônica. Com certeza, despachou o texto para o jor-
nal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotasda objetividade” se encarregariam de registrar, naspáginas esportivas, o jogo real. Porque o jogo deNelson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos
fundamentais? Aos cretinos fundamentais, nem água. A lista de surpresas nessa tarde no Leme não
se esgotaria aí. Quando deu por encerrada a entre- vista, Nelson pergunta ao repórter: “E então, vocême achou muito reacionário?”. Não, claro que não.Em seguida, pega o telefone, liga para a cozinha doHotel Nacional, identifica-se e faz uma pergunta a ummaitre provavelmente atônito: “Companheiro, aqui éNelson Rodrigues. Qual é o prato do dia?” Ouve aresposta em silêncio, desliga o telefone. Recolhido aosossego do lar, no fim de tarde de um feriado, jáparcialmente debilitado por doenças que lhe encur-
tavam o fôlego, Nelson jamais se animaria a ir até oHotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fezquestão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê?
As cenas que Nelson Rodrigues protagonizounesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista.
Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dis-pensa ao repórter um tratamento afetuoso: chama-me de “meu bem”. Alheio ao eventual cansaço deNelson, estico a conversa até o limite máximo. Nãoquero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as
tiradas do cronista inigualável. A irmã do gênio é que,delicadamente, interrompe o questionário no instan-
te em que Nelson fez uma pausa para engolir unscomprimidos. Ao autografar o exemplar do livro decrônicas O reacionário – consultado durante a entre-
vista – Nelson Rodrigues oferece-me uma dedicató-
ria dúbia: “A Geneton, amigo doce e truculento –Nelson Falcão Rodrigues”.
Quase um quarto de século depois (a entre- vista foi gravada no dia 1 de maio de 1978) ouço no- vamente a fita, releio a transcrição da entrevista.Confirmo que Nelson Rodrigues é um caso rarís-simo de escritor que falava como escrevia. Só háoutro caso: Gilberto Freyre. Transcritas, as entrevistasdos dois em certos momentos se assemelham aos
textos que escreviam, o que é uma façanha: a lingua-gem falada normalmente é mais pobre que a lin-guagem escrita. Mas a regra – guardadas as naturaisdiferenças entre o que se fala e o que se escreve –nem sempre valia para os dois.
Nelson Rodrigues,um cronistaesportivo quenão precisava ver o jogo
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10 Continente Multicultural
Quando
foi
que
Nelson
Rodrigues
descobriu
que
nascera
para
escrever?
A coisa é a seguinte: escrever para mim, muito
mais do que uma decisão profissional, é um destino!Não é um caso de opção. Eu só tinha esta opção, uma vez que nasci assim.
O
senhor
se
considera
um
escritor
por
vocação?
Digo que, no meu caso, eu nem precisava de vo-cação, porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante!Eu tinha de ser aquilo. Se você chegasse junto de mime pedisse para eu ter outra profissão, podia até dar di-nheiro para que eu tivesse outro destino, não seria abso-lutamente possível.
O
início
foi
com
ficção
ou
com
jornalismo?
Eu estava no quarto ano primário na EscolaPrudente de Morais. Uma dia, a professora – quemandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estam-pa, para que nós, alunos, fizéssemos em torno da vacatoda uma história – disse: “Olhem aqui: hoje, vocês vãoter de escrever da própria cabeça. Agora não é mais so-bre a vaca pintada”. E então deixou que cada um denós fizesse o seu drama, o seu projeto dramático.
Duas histórias tiveram o primeiro lugar. A domeu adversário era uma história de um daqueles mag-natas que davam passeios. Ele descrevia o passeio deum rajá no seu elefante favorito. E pronto. A minha foiinteiramente diferente. Eu fiz a história de uma moçaque era uma fera. Quase uma dama do lotação. Umdia, o marido chega em casa mais cedo e, quando em-purra assim ( imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta), entra em casa, segura o amigo traidor e en-fia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empata-mos. O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma
concessão ao convencional.Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista.Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobreadúltera que morreu de maneira tão melancólica. Otraidor morreu também de maneira melancólica: direi,a bem da verdade, que a minha história causou um hor-ror deliciado. Eu era, para todos os efeitos, um pequenomonstro.
Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter: esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça...
Para
o
senhor
–
que
é
considerado
um
mestre
nesse
ofício
–
o
que
é
necessário
para
retratar num
tex
-
to
teatral o
mundo
desses
personagens
suburbanos
das
nossas
cidades?
Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcio-nista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro cha-mamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Nãoé apenas uma facilidade, mas um destino ( pronuncia a
palavra em tom dramático).
A
inspiração
é
uma
entidade
que
existe
para
o
senhor?
O negócio da inspiração é o seguinte: eu consi-dero a inspiração ao contrário de Valery, que só via amáquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisaque o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com aexperiência.
Dentre
as
peças
já
escritas qual
é
a
sua
predileta?
Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo quesão todas as prediletas. Não tenho prediletas ( ri). Todassão favoritas. Já pensei muito em querer discriminarqual a minha melhor peça, mas não sei.
Que
autores
brasileiros
de
hoje
o
senhor
consi
-dera
como
verdadeiros
artistas
do
teatro?
Vou pular esta, porque tenho autores que sãoinimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Umautor que é um amigo tem todos os defeitos...
O resultado da partida, asescaramuças dos jogadores,os esquemas táticos, todasessas bobagens nãopassavam de detalhessecundários aos olhos do gênio
coro dos vizinhos,na peça
Senhora dosafogados
Nelson Rodriguesmostrando suafaceta de ator
hiperbolicamentedramático
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Continente Multicultural 11
O
senhor
diz
sempre
que
“a
admiração
corrom
-pe”.
É
o
caso?
É isso, é o caso. A admiração corrompe. O ami-go que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa ne-
nhuma, porque ele próprio não consegue se prender.Então, começa a fazer insinuações e etc... Por isso euprefiro o inimigo ( ri).
Se o
senhor
fosse
levado
a
fazer
uma
hipotética
opção
entre
o
teatro
e
o
jornalismo qual
dos
dois
pre
-feriria?
O teatro! E não é um problema de qualidadeintelectual, não.
O
jornalismo
brasileiro
continua
padecendo
de
objetividade
–
que
o
senhor
considera
uma
“doença
grave”?
O idiota da objetividade é o jornalistaque tem grande fama, todo mundo, quandofala dele, muda de flexão. Mas eu acho oidiota da objetividade um fracasso. Isso num
julgamento absoluto. O idiota da objetivida-de é também um cretino fundamental.
Quais
foram
as
causas
da
ocorrência
desse
culto
à
objetividade
que no
conceito
do
senhor corresponde
à
falta
de
emoção?
Pois é, é esse o negócio ( ri de novo). Éa falta de complexidade do sujeito que diz sóa coisa certa ou aparentemente certa e não vêque todo fato tem uma aura. A verdade é que
o fato só, em si mesmo, é uma boa droga.Olhe aí (e mostra a crônica A desumanização da manchete):
Háquem considere Nelson Rodrigues o maior frasista da língua portuguesa. Acoleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia. O
jornalista Ruy Castro reuniu as “mil
melhores frases” de Nelson no livro Flor de obsessão, da Cia. das Letras.Geneton Moraes Neto e Weydson Barros Leal também fizeram uma seleção de frases do teatrólogo.O primeiro, as mais contundentes; o segundo, as mais reflexivas. Leia a seguir:
“O brasileiro é um feriado”.
“O Brasil éum elefante geográfico.Falta-lhe, porém,um rajá, isto é, um líderque o monte”.
“Sou a maior velhiceda América Latina. Jáme confessei uma múmia, com todos os achaques das múmias”.
“Toda oração élinda.Duas mãos postas sãosempre tocantes, ainda que rezem pelo vampiro de Düsseldorf”.
“O grande acontecimentodo século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”.
“Na vida, o importanteéfracassar”.
“A Europa éuma burrice aparelhada de museus”.
“Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. O repórter mente pouco, mente cada vez menos”.
“Daqui a duzentos anos,os historiadores vão chamar este final de século de ‘a mais cínica das épocas’.O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas”.
“Sexo épara operário”.
“Sem alma não se chupa nem um chicabom”.
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O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobreo corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada obje-tividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma co-nexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiroa se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a re-
portagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoçãoda população. Outro exemplo seria ainda o assassinatode Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes chora- vam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoçãode títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Ken-nedy na primeira página, por exemplo, do Jornal doBrasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo eimpessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, aindaquente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abis-
mo entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada.A
ausência
de
um
ponto
de
exclamação
numa
manchete
faz
falta
ao
leitor
comum?
Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância, ha- via primeiro o Correio da Manhã, um jornalaço. E havia A Noite – que vendia muito mais. E era um jornal mui-to mais amado pelo leitor. A Noite era um jornal amado(acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava A Noite disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia malisto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas
o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismopermitia, por exemplo, que você fosse fazer a coberturade um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro,
uma gaiola, e metesse a gaiola com um pássaro lá numcerto ponto da casa em chamas. E aí o repórter que nãoera idiota da objetividade dizia que o nosso queridofotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminavadizendo: “Morreu cantando” ( a essa altura, Nelson
Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O re-pórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não mataraninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repór-ter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o par-dieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só paroude cantar para morrer.
A história desse canário fez um sucesso tremen-do. Um sujeito queria uma vala especial para o canário,o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismode antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a
reportagem de polícia está mais árida do que uma pai-sagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas daobjetividade. A geração criadora de passarinhos parouem Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem so-bre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituí-
12 Continente Multicultural
“Hoje, o bêbado é umsujeito que a psicanálisecura depois de quinze anos
de tratamento, quando,aliás, a cura já não adiantamais nada”
Foto da equipede O Cruzeiro,
em 1945(Nelson é o 4º
à esquerda).Para ele a nova
imprensa édominada pelos
idiotas daobjetividade
Na páginaseguinte,
Nelson nomomento da
entrevista aGeneton Moraes
Neto, em 1978
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Continente Multicultural 13
do pela veracidade que, como se sabe, canta muito me-nos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A no- vela dá de comer à nossa fome de mentira.
O
senhor
lê
a
chamada
imprensa
alternativa?Alternativa o quê?
A
imprensa
alternativa esses
novos
jornais
que
têm
surgido o
senhor
lê?
Eu leio de vez em quando, mas não faço ques-tão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal nãoé o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leioum jornal que não seja rigorosamente o jornal da vés-pera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do pró-prio dia. São fatos da véspera, figuras da véspera. O fatodo dia não existe e ou só existe para rádio e as TV’s. Nopassado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atrope-lado acabava de estrebuchar na página do jornal. E as-sim o marido que matava a mulher e a mulher que ma-tava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o drama-tismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia,entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ouprivada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de
moda do que charleston, do que o tango.Não
há
nenhum
fato
do
dia...
Pelo menos a gente tem essa impressão. O quenós chamávamos antigamente de furo não existe mais.Todos hoje acham que podem viver sem o furo, aopasso que, no meu tempo, quando eu era garoto, umfuro de reportagem era tudo. Era o grande momentoda carreira.
Agora, para falar de manchete, outro fato for-midável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São
Francisco era o local próprio para o sujeito se manifes-tar. E quando havia muitos interessados em se mani-
festar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fize-ram uma coisa qualquer com o chefe depolícia. E o chefe de polícia – que era umsanto – assinou uma portaria proibindo os
estudantes não sei de quê, nem ninguémsabe. Tudo que houve foi por conta da faltade bossa, da falta de inteligência dos nossosqueridos estudantes. E então os estudantesresolveram fazer um “enterro” do chefe depolícia – que era um velho general, sujeitoque acreditava em honra, num tempo emque ninguém sabia o que era honra. O ge-neral era um santo homem e então achouque aquilo era brincadeira de estudante. Elá foi ele dizendo aos queridos investigado-res que não queria machucar ninguém.Nada de bala, nada de punhal, dizia o nos-so general. E no dia do “enterro”, os estu-dantes carregavam o caixão, todos levandouma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polí-cia, furiosos com a questão, simplesmenteacharam de matar três estudantes. Aí foiaquela coisa tremenda. Houve então uma
manchete, a manchete mortal da imprensabrasileira. Um jornal descobriu uma man-chete fantástica ( muda a flexão de voz, entu- siasmado). A manchete quase derruba a Pre-sidência da República, a Vice-presidência, ochefe de polícia imediatamente se demitiu,foi embora, não quis mais nada, achando-seculpado. Inventaram uma manchete queaté hoje eu gosto de ouvir...
Qual
foi?
Era assim: “Primavera de Sangue”( pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quasederruba o presidente da República, o minis-tro da Guerra, um negócio terrível. E tudoisso pela beleza que se atribui à manchete.Quero dizer que, se você quiser, com umafrase bem trabalhada, você resolve o caso.
De
quando
foi
essa
manchete?
Eu era garoto, tenho agora sessentae cinco anos. E foi na altura dos meus dezanos. Agora, eu sei disso tudo pelas infor-mações do pessoal. O cara que fez esta
“O socialismo ficará como um pesadelohumorístico da História”.
“A pior forma desolidão éa companhiade um paulista”.
“Subdesenvolvimentonão se improvisa.Éobra de séculos”.
“As grandes convivênciasestão a um milímetro dotédio”.
“Todo tímido écandidatoa um crime sexual”.
“Todas as vaias são boas,inclusive as más”.
“O presidente quedeixa o poder passa a ser,automaticamente,
um chato”.
“Não gosto deminha voz.Eu a tenho sob protesto.Há, entre mim e minhavoz, uma incompatibilidade irreversível”.
“Sou um suburbano.Acho que a vida émais
profunda depois da praça Saenz Peña. O único lugaronde ainda háo suicídio por amor, onde ainda se morree se mata por amor,éna Zona Norte”.
“O adulto não existe.O homem éum menino perene”.
“Como se sabe, a solidão humana são os outros”.
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14 Continente Multicultural
manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil-réis. Sóo Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião ( ri).
Quais
são
os
políticos
brasileiros
que
o
fascina
-ram
ou
fascinam
hoje?
( Pausa de alguns minutos) Num desses momen-tos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado,porque para achar um sujeito, poder dizer um polí-tico interessante... Eu acho que só Napoleão Bona-parte! ( ri).
O
senhor
já
disse
que
um
dos
traços
do
caráter
nacional
é
o
fato
de
que
o
brasileiro
adere
a
qualquer
passeata.
Quais
seriam
os
principais
traços
do
nosso
ca
-ráter
nacional?
O diabo é que o brasileiro não pode se esforçarmuito porque, senão, cai na chanchada trágica. O bra-sileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um dessesque, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva étambém um caso sério, porque este negócio de viúva vocacional é um fato.
Weydson Barros Leal
Nelson Rodrigues é uma unanimidade em pe-daços. Melhor: é cada um dos dois lados de uma outraconclusão: diante dele, ama-se ou odeia-se. Não se viuaté hoje a imparcialidade ou a passividade dos queconhecem sua obra – isto, uma “unanimidade”. E estapalavra, que também é um sentimento, como todas asoutras tocadas por ele, se transformou em uma po-tência aumentada ou invertida em sua grandeza, pois,
neste caso, foi chamada de “burra”. Assim nascia amaioria das máximas rodrigueanas, as expressões reco-nhecidamente suas, os axiomas que se transformaramem sua marca. Por isso é muito fácil – ou dificílimo(outra vez os dois lados) – recolher em sua obra frasesque possam enfeixar um “livro de frases”. Quase tudoque escreveu se presta ao espanto ou ao incomum. Daíporque considerar inestimável o trabalho de seu bió-grafo, o escritor Ruy Castro, ao organizar o volume Flor de obsessão (Companhia das Letras, 1997), noqual, com quase 1.000 frases, intenta um compêndiode máximas do autor pernambucano. É o próprio Ruy Castro que afirma, com a autoridade de seu conhe-cimento, que Nelson Rodrigues é “talvez o maior fra-sista da história da língua portuguesa”. E não exagera.O gênio do melhor criador do teatro brasileiro é equi-parável ao de qualquer gigante da literatura universalem invenção e originalidade. Infelizmente tal cons-tatação ainda causa polêmica e, como uma unanimi-dade, será sempre contestada.
A maneira de pensar e expressar de Nelson
Rodrigues era, no mínimo, original. Sua coragem paradizer o “indizível” ao revelar os mais secretos labirintosdo espírito humano fazia-o possuidor de um dom su-
perior entre os escritores universais: como um Tolstoi,ele apontava a verdade, e a verdade, às vezes, esconde-se escura em nós. Em sua obra reflete-se a vida abertae crua, e se não vivida por todos, reconhecida ou ima-ginada por muitos. Suas “perversões” – assim cos-tumam-se rotular os temas e abordagens de seus dra-mas e tragédias – fazem do espectador um condenadoa vivenciar, no livro ou no teatro, realidades que já ins-piraram mal-estar e indignação, mas nunca a confissãode que se estaria a ver uma ficção absurda: em Nelson,o pornográfico e suas permissividades constituem o te-cido em que a família é o núcleo deflagrador de tudo, ocentro em que toda danação se pressente ou se origina.
O drama rodrigueano, seja no conto, no ro-mance ou no teatro, é trágico quando o identificamospelas vicissitudes do desmoronamento moral; é épico,
A desconstrução do lírico
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Olhe: houve tempo em que a mulher mais sériado mundo, mais digna, mais respeitável se deixavaenvolver por um poeta, se abandonava por um soneto.Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje,o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois dequinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já nãoadianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorouda minha tia Yayá. E se você perguntar: “Qual foi omaior homem que você viu no mundo?”, eu acho que
esse tio está no segundo ou terceiro lugar,porque o desgraçado, ele amava a minha tiaYayá. Ele já não precisava mais beber para
estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso,fazia uma considerável economia de dinhei-ro... Em minha família houve um bêbadoindubitável, foi este meu tio Chico. Comosujeito que bebe muito, ele durou pra burro.Morreu com oitenta e tantos anos, semprebêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigoo meu horror ao bêbado. Mas ele me en-sinou também uma série de coisas lindas.Por exemplo: o amor. Meu tio Chico meensinou a amar. Embriagou-se em cada mi-
nuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante edepois. Yayá costurava para o casal não mor-rer de fome. Mas eu, menino, queria amar eser amado como esse alcoólatra enlouque-cido. Era um amor que hoje não existiria. Aminha tia Yayá deu graças a Deus que ele ti- vesse se apagado. Agora, ninguém amamais, eis o que comecei a descobrir desde ostreze anos de batalha.
Por
que
é
que
o
senhor
diz desse
jei
-to que
hoje
ninguém
ama
mais?
Meu bem, se a evidência objetiva eespetacular vale alguma coisa, o homemnão ama mais. E não ama mais porque onosso cenário se povoa de sujeitos que sãodébeis mentais absolutos. O sujeito já nãoacredita em amor, pra começo de conversa.Não acredita em amor. O sujeito acha quetodo mundo é a mesma coisa, e apesardisto, se diz marxista.
E eu me lembro de uma meninagrã-fina mesmo... Mas é incrível esse ne-gócio da mulher moderna ( fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento).Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco femi-nina. Eu tive um cachorro, o nossoquerido Boogie-Woogie, que ficava diante daminha casa amando sua querida cachorra.Ela ficava lá, digníssima, empinada, rece-bendo as homenagens. Os carros passa- vam e achavam o cachorro louco. E essenosso amigo, o cachorro, era muito maishumano que a mulher dos nossos tempos.Elas se meteram a bestas.
Continente Multicultural 15
“Realmente, somos uns impotentes da admiração.Cochichamos o elogio e
berramos o insulto”.
“O amigo éa desesperada utopia que todos nós perseguimos atéa última golfada de vida. Mas o trágico da amizade éa convivência.Talvez a solução fosse pôr um deserto entre nós e o amigo”.
“O amor éo casal. O simples casal basta para inundar o universo. E o casal funda a grande solidão”.
“Sempre que um homeme uma mulher se gostam precisam estarprodigiosamente sós,como se fossem o primeiro,único e último casal
da Terra”.
“A úlcera nasce doendo.Não hádúvida, dói nos primeiros dias. Mas, a partirda primeira quinzena,começa uma adaptação recíproca. A lesão e o doente passam a se entender maravilhosamente. Éo que sucede com as longas
conveniências matrimoniais”.
“Pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare.Ou um único poema denão sei quem. O mesmo livroéum na véspera e outrono dia seguinte. Pode haverum tédio na primeira leitura.Nada, porém, mais denso,mais fascinante, mais novo,mais abismal do que a releitura.”
ao expressar a procura ou a revelação de um des-conhecido interior – nosso também – às vezes íntimoe monstruoso, às vezes alheio e heróico; mas, acimade tudo, é um drama lírico, poético, que talvez nãoseja melhor compreendido por tratar o autor de des-onstruir a nossa dor, distribuí-la com outros, codifi-cá-la com os mais sofisticados processos psicológicosidentificados em manias, angústias, traumas, revol-tas, taras, obsessões. Essa desconstrução nos põe di-
luídos em cada um de seus personagens: e não so-mente o nosso medo, a nossa secreta identidade, mastambém a nossa repulsa ao descartarmos o compor-tamento que não julgamos à nossa altura, digno detão imune caráter, e que nos divide em pedaços entreo santo e o canalha, desconfiados que somos apenashumanos. Assim se resumem os personagens naobra de Nelson Rodrigues: o homem (o pai, o mari-do, o noivo, o amante); a mulher (a mãe, a esposa, afilha, a prostituta); o amor (o pêndulo da fidelidade,suas tentações) e, por trás de tudo, a imensa solidãohumana – a busca do outro.
Em Nelson, opornográfico e suaspermissividades constituemo tecido em que a família éo núcleo deflagrador de tudo, o centro em que toda a danação sepressente ou se origina
Weydson Barros Leal é poeta
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Dizem-me que um “colunista” – pobre palavrade origem tão nobre quanto, quase sempre, degradada– estranhou que, em artigo para uma revista do Rio, eu
considerasse Nelson Rodrigues não só “um novo Eçade Queiroz” como, na prosa jornalística, “mais vigorosodo que Eça”.
Nada mais cristalinamente exato como equiva-lência. Estou agora mesmo procurando desenvolvernum pequeno ensaio o que chamo Sugestões para uma sociologia das equivalências literárias. Uma sociologia que,dentro da Sociologia da Literatura, considere equiva-lências de conteúdos sociais – em poemas, em roman-ces, em ensaios, em peças de teatro – ao mesmo tempoque coincidências de formas de expressão literária.
As equivalências da espécie aqui sugerida exis-tem. Precisam, é certo, ser identificadas com extrema
acuidade. Mas, uma vez identificadas, dão ao estudocomparado de literaturas que se faça sob um critériosociológico, complementar do estético, uma extraordi-
nária riqueza.Nelson Rodrigues avulta, na literatura atual doBrasil, como o nosso maior teatrólogo. O maior de hojee o maior de todos os tempos. Pode ser considerado umequivalente, nesse setor, do Eugene O’Neill: do que foiO’Neill na literatura dos EUA.
Mas ele é também o mais incisivamente escritor,sem deixar de ser vibrantemente jornalístico, dos cro-nistas brasileiros de hoje. O maior dos jornalistas lite-rários – potentemente literários – que tem tido o Brasil.Nesse setor é um equivalente do que foi e é – quem o
superou? – Eça de Queiroz na literatura portuguesa.Apenas com esta diferença: no brasileiro há um vigor
16 Continente Multicultural
Nelson Rodrigues, escritor Gilberto Freyre
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8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues
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Continente Multicultural 17
Nelson Rodrigues avulta,na literatura atual do Brasil,como o nosso maior teatrólogo. O maior de hojee o maior de todos os tempos
de expressão maior do que em Eça – um Eça até hojeinatingido e, talvez, inatingível, na graça artística quesoube dar ao seu jornalismo literário.
Por jornalismo literário não se deve entender o jornalismo que se ocupe de assuntos literários; e sim o
que se caracterize pela potência literária do jornalista-escritor. Um característico relativamente fácil de sercaptado: contanto que se dê tempo ao tempo.
O escritor-jornalista ou o jornalista-escritor é oque sobrevive ao jornal: ao momento jornalístico. Aotempo jornalístico. Pode resistir à prova tremenda depassar do jornal ao livro.
As correspondências de Eça de Queiroz, deParis e da Inglaterra, para jornais portugueses e brasi-leiros, passaram a ter seu maior esplendor quando pu-blicadas em livro. E esse esplendor continua. Enquan-to artigos, para o momento em que aparecem em jornais, magníficos – magníficos como pura expressão jornalística – reunidos em livros não resistem à terrívelprova: morrem. Fenecem. Rosas de Malherbe. Con-chas de Emerson. Vários exemplos poderiam ser invo-cados dessa precariedade da expressão apenas jorna-lística: os artigos reunidos em livro de Costa Rêgo – jornalista magistral; os de Anibal Fernandes – outro jornalista magistral; os de Plínio Barreto – ainda outro jornalista admirável. Mas admiráveis, os três, quando
lidos quentes e quase intoleráveis quando frios.Em Nelson Rodrigues, como em Eça de Quei-roz, o escritor vence o tempo como escritor, emboraservindo-se do jornal; da correspondência para jornal;do comentário ao acontecimento do dia. Nelson Rodri-gues é, dos dois, o mais vigoroso nessa espécie de ex-pressão literária: a transferível de jornal para livro. Eleé lido em livro, tão forte de virtude literária, quanto lidoem jornal. Repete Eça. Repete Eça, neste particular,com maior vigor do que Eça.
A Companhia das Letras estálançando toda a obra não teatral deNelson Rodrigues. São, por enquan-to, 16 títulos. Desses, dois publicadospela primeira vez em livro ( A mentirae Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo, que ele escreveu com o pseu-dônimo de Myrna). A coleção foicoordenada na primeira parte peloescritor Ruy Castro e agora passa às mãos do diretor
teatral Caco Coelho.Os livros são em sua maioria compilações defolhetins publicados em jornais, durante umperíodo de 30 anos. Na coleção há ainda umareunião das maiores crônicas esportivas escritas peloteatrólogo e uma coletânea organizada por Ruy Castro das cem melhores frases rodrigueanas. Dos16 títulos, apenas O casamento foi feito diretamenteem formato de livro e, na época do seu lançamento,em 1966, foi censurado pelo governo de CasteloBranco. Entre os lançamentos, provavelmente, A
vida como ela é... seja a obra mais conhecida. Sãoquase 2.000 histórias publicadas, diariamente, no jornal cariocaÚltima Hora, durante dez anos, todascentralizadas no adultério, que deixaram a fama de“tarado” do escritor ainda maior.
Além de Myrna, Nelson Rodrigues tam-bém escreveu suas histórias com outro pseudônimofeminino: Suzana Flag. Com esse nome elepublicou folhetins nos jornais de Assis Chateau-briand nos anos 40. O segundo deles, Escravas do
amor, foi lançado em livro na época, mas só agoratem a segunda edição, pela Companhia das Letras. Núpcias de fogoé o outro livro da coleção que sai como pseudônimo de Suzana Flag.
Embora tenha sido muito tempo visto comdesconfiança pela crítica literária brasileira, oessencial da prosa rodrigueana está nessa coleção. Opróximo lançamento para este mês chama-se O profeta tricolor, um livro de crônicas sobre o Flu-minense organizado por Nelsinho, filho do mestre.Toda a complexidade e drama do escritor podem
ser vistos por quem ainda não teve nenhuma chancede conhecer o mundo desse gênio que pode parecerpolêmico, mas não é nada óbvio.
O outro lado do dramaturgo
Excerto de texto utilizado em prefácio da primeira edição dolivro O reacionário, de 1978
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18 Continente Multicultural
Apesar de ter sido criado e feito toda a carreirano Rio de Janeiro, foi do Recife que Nelson Rodriguesherdou suas raízes. Ele nasceu no dia 23 de agosto de1912 e, aos três anos e meio, mudou-se para a CidadeMaravilhosa com a mãe, Maria Esther, e mais cincoirmãos. O pai, Mário, diretor do Jornal da República,tinha ido antes por causa de desavenças com políticosinfluentes da época, como Manuel Borba e DantasBarreto. Admirador de soldados audaciosos e estrate-gistas, Mário homenageou o almirante inglês LordNelson, vencedor da Batalha de Trafalgar, em 1805,
pondo-lhe o nome em um dos filhos.Nelson Rodrigues Filho, o Nelsinho, diz que o
pai sempre lembrava a cidade onde nasceu quando iaà praia, mesmo tendo deixado a capital pernambucanaem tão tenra idade. “Ele dizia que tinha uma relaçãomuito forte com o mar, que o fazia recordar a infânciano Recife”, afirma. As marchinhas de frevo eram outrapaixão do dramaturgo, pois elas o faziam ficar maisperto da terra natal. “Uma, em especial, Evocação nº1,de Nelson Ferreira, ele ouvia sempre”, comenta Nel-
sinho, que, de tanto escutar, acabou decorando os ver-sos: “Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon,cadê teus blocos famosos...”
Joffre Rodrigues lembra apenas que o pai ado-rava pitangas e, sempre que as saboreava, falava daVeneza Brasileira. Na biografia O anjo pornográfico, oautor Ruy Castro relata que Nelson voltou ao Recifeapenas uma vez, para passar férias, na adolescência. Ospais convenceram-no a ir para que esquecesse as pai-xões “avassaladoras” que tinha a cada mês no Rio de Janeiro. Corria o mês de maio de 1929 e Nelson tinha17 anos, idade que, segundo Ruy Castro, “lhe permi-tiu redescobrir Olinda, conhecer a praia de Boa Via-gem e mergulhar fundo na boêmia local, pois não saía
da zona de mulheres do Cais do Porto, consideradaproporcionalmente a maior da América do Sul”.
Sangue pernambucano
Tatiana Resende
Explique
as
causas
do
rancor
e
da
ironia
feroz
que
o
senhor
cultiva
diante
de
seus
personagens como
por
exemplo “as
verdadeiras
grã
-f inas”...
O que eu acho é que a gente diz “grã-finas” sem
achar que elas tenham obrigação de agir como grã-fi-nas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonie-ta podia dizer: “Ah, eu sou grã-fina...”. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácioe ela disse: “Se não têm pão, comam brioche”. Então, aMaria Antonieta é que poderia bradar: “E, portanto,eu posso dizer que sou grã-fina”. Ela derrubou um er-ro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina domundo é a Maria Antonieta. De então para cá nuncamais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina
paulista, que é gorducha, porque tem dinheiro à beçapara comer. E come. Mas não existe. A nossa queridagrã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro,e está furiosa porque não tem, então assume diversas
atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: “Naminha casa, só as criadas vêem televisão”. As grã-finasnão existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.
O
senhor
não
volta
ao
Recife
porque
tem
medo
de
avião?
Acho chato viajar de avião, não quero voar, a nãoser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. Apartir do Méier, começo a ter saudades do Brasil.
Nelson voltou ao Recife apenasuma vez, para passar férias,na adolescência. Os paisconvenceram-no a ir para queesquecesse as paixões“avassaladoras” que tinha a cadamês no Rio de Janeiro
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Continente Multicultural 19
O acompanhante nessas aventuras era o primoAugustinho, embora, de dia, Nelson preferisse ficarcom a prima Netinha, que só conheceu naquela época,mas com quem já se correspondia há muito tempo.Em Alma infantil, inclusive, dedicou-lhe poemas, mes-mo só a tendo visto em fotografias até então.
Naqueles dias, o jovem Nelson adorava ficar jogando bolinhas de pão nos tios e acusar a prima,além de brincadeiras bem mais nefastas, como se deitarno meio da rua e fingir que tinha sido atropelado.“Eles eram os primos mais queridos. Netinha sempredizia que Nelson a chamava de ‘Netinha, minhaadolescência’, pois ela conseguia alegrá-lo sempre”,recorda Augusto Rodrigues, filho de FernandoRodrigues, irmão de Augustinho.
Atualmente proprietário da Rodrigues Galeria
de Arte, no Torreão, Augusto diz que se encontroupoucas vezes com o primo ilustre, todas no Rio de Janeiro, quando estudava na Tijuca. “Apesar de tudo
que escrevia e das polêmicas que causou, ele era umconservador”, define. A opinião é compartilhada poroutro primo distante de Nelson, Reinaldo de Oliveira,filho de Valdemar de Oliveira e Diná, que, por sua vez,era filha de Alfredo Rosa Borges, primo de MárioRodrigues.
“Foi o teatro que nos aproximou. Quandofomos fazer uma turnê no Rio de Janeiro, em 1953, elenos visitava quase todos os dias”, diz Reinaldo. Outrarepresentante ilustre dos palcos pernambucanosconheceu Nelson nessa temporada carioca, Geninhada Rosa Borges, esposa de Otávio, irmão de Diná.“Ele era uma pessoa maravilhosa, simples, mas, comoéramos muito jovens naquela época, ele preferia ficarconversando e trocando idéias como o Dr. Valdemar”,conta Geninha.
O
senhor
não
pensa
em
voltar?
De vez em quando eu faço evocações. Toda aminha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitangabrava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma
pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatadopor um desses movimentos proustianos, por um dessesprocessos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mes-mo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me le- vou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ouprimeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o cajuamargoso foi a minha primeira relação com o universo.Ali eu começava a existir.
Geneton Moraes Neto é jornalista
Tatiana Resende é jornalista F O T O : R E P R O D
U Ç Ã O
Nelson Rodrigues tinha paixão pelofrevo, emparticular oEvocação nº1, deNelson Ferreira
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20 Continente Multicultural
FERREIRA GULLAR
m estudante de Jornalismo, de 21 anos, cha-mado Cleiton Campos, entrou na 25.ª Bienal de
São Paulo com um pequeno quadro de sua autoria e o
pôs em uma das salas da mostra, como se o quadrofizesse parte dela. Deixou-o ali e foi embora. A partirdaquele momento, tornara-se expositor no famosocertame internacional do Parque Ibirapuera.
Embora a imprensa não tenha dito isto, estoucerto de que foi o próprio Cleiton quem telefonou paraalgum jornal ou emissora de televisão para dar notíciade sua traquinagem, que logo virou manchete. Se nãotivesse feito isso, ninguém teria notado a presença desua pequena tela clandestina em meio a tanto treco semgraça que a Bienal expõe, desde pedaços de madeira
ou metal até papelão rasgado, tudo isso preso nasparedes ou pendurado, ou mesmo solto no chão.
O gesto não regimental de Cleiton tornou-seconhecido da mídia e da direção do certame. E sabemqual foi a reação do sr. Carlos Bratke, presidente daFundação Bienal de São Paulo? Ele aprovou a ini-ciativa do jovem por considerar que a tela representava“uma obra de arte conceitual”.
“Acho que o rapaz é muito inteligente”, decla-rou. “A polêmica que causou foi digna de um bom ar-tista performático”. Perguntado se a pequena tela seriamantida como parte da exposição, Bratke respondeu:“Não vou analisar o quadro em si, mas [Cleiton] con-seguiu superar, em comoção, os outros artistas perfor-
máticos. E sem ter sido convidado! Acho que tem fu-turo na arte conceitual”.
O fato merece algumas considerações por ser
bastante elucidador de um certo tipo de atividade ditaartística e das instituições que o promovem. O presi-dente da Bienal afirma que o jovem Cleiton tem futurona arte conceitual, pois superou os outros artistas per-formáticos que fazem parte da mostra, “e sem ter sidoconvidado!”. O sr. Carlos Bratke parece não se darconta do que afirma: se o rapaz tivesse sido convidado,seu gesto simplesmente não teria ocorrido, já queconsistiu em introduzir sua tela numa mostra para aqual não fora convidado. A “obra” é isso! E se com es-se gesto ele superou os que foram convidados – con-
forme a avaliação do próprio presidente da Bienal –devemos concluir, primeiro, que os bons artistas são osque não aceitam o convite da Bienal para expor; se-gundo, que os que expõem na mostra não têm qual-quer importância, pois o que realmente conta é pro- vocar escândalos. Arte (se se pode chamá-la de Arte)para a mídia, o que não passa de exibicionismo.
Dessa forma o sr. Bratke põe em luz, sem seaperceber disso, a contradição básica deste tipo demanifestação que se quer rebelde e institucional, aomesmo tempo. É essa contradição que o torna para-doxal ao aprovar um ato que infringe o regulamentoda instituição que dirige e considerar o infrator “artis-ticamente” superior aos que se submeteram ao regula-
O preço do fingimento
Sem se dar conta, o presidente da Fundação Bienal de SãoPaulo, sr. Carlos Brakte, expõe a contradição básica de um tipo
de arte que se quer rebelde e institucional ao mesmo tempo
U
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Continente Multicultural 21
mento. E nisso ele tem razão, pois, quem opta por
manter-se fora de qualquer norma ou limite, como ar-
tista, não deveria nunca aceitar participar de exposições
institucionais, uma vez que “institucional” é o que ins-
titui, estabelece, obedece a normas. Seria possível con-ceber Rimbaud ou Lautréamont candidatando-se à
Academia Francesa?
Com isso fica evidente a pouca seriedade de tal
arte e de tais instituições, assentadas sobre uma base
farsesca: “Você finge que é rebelde e eu finjo que
acredito...” Sim, porque também um dos luxos da
burguesia, hoje, é ser,
além de rica, anti-
burguesa, “rebelde”,
apropriando-se assim
da única coisa querestava aos seus opo-
sitores. Por isso mes-
mo, a bunda fica de
fora: o presidente da
Bienal não pode con-
denar a violação do
regulamento da insti-
tuição que dirige por-
que, se o fizer, estará
contra a “rebeldia”,que a Bienal está ali
para acolher e presti-
giar. Ou seja, se a
Bienal punir o rebel-
de, se desmascara,
mostra que é uma
instituição como as
demais, põe em questão a modernidade da burguesia
brasileira que, desse modo, pareceria burguesa...
Outros artistas já procuraram explorar as con-
tradições das mostras oficiais. Na mesma 25.ª Bienal,surgiu uma proposta que, embora partindo de um ar-
tista convidado, atingia diretamente as normas da ex-
posição: abrir, em algum ponto do prédio, uma porta
clandestina por onde o público pudesse entrar sem pa-
gar. E mais uma vez os responsáveis pelo certame en-
contraram-se diante da velha contradição: como rejeitar
uma proposta rebelde se somos uma instituição de-
fensora da arte rebelde? Acredito que, secretamente, eles
devem ter pensado que “rebeldia tem limites”. Deitar-
se no chão, no dia do vernissage, para ser pisado pelos
convidados, é uma rebeldia aceitável, mas abrir uma
porta clandestina para que o público entre sem pagar é
demais, é atentar contra o faturamento da mostra.
A verdade, porém, é que, mesmo praguejando
contra o autor da proposta inconveniente, os respon-
sáveis pela Bienal encontraram uma saída concilia-
tória: far-se-ia sim uma entrada clandestina, mas ela só
ficaria aberta durante uma hora, e por ela só poderiamentrar, no máximo, cinco pessoas por dia. Trata-se,
como se vê, de um novo tipo de rebeldia: a rebeldia
regulamentada...
Ora, se a arte conceitual é coisa velha, os
problemas que a envolvem também o são. Estão na
sua origem mesma e começaram com o primeiro
gesto rebelde de seu
criador. Em 1917,
Marcel Duchamp,
que fazia parte do
conselho do Salão
dos Independentes
de Nova Iorque, en-
viou para lá o seu
hoje célebre urinol,
assinado Mutt. O
júri (rebelde) teve de
aceitar a “obra”, mas
a contragosto, tanto
que, na hora de ex-
pô-la, a escondeu.No dia do vernissage,
Duchamp procurou
por seu urinol e só
foi encontrá-lo, de-
pois de muito tem-
po, atrás de um ta-
bique, nos fundos
do salão. Zangou-se e se demitiu do conselho. Queria
que sua rebeldia fosse aceita pela instituição. Ele foi,
portanto, não só o inventor da “antiarte” (mudada pa-
ra “arte conceitual”), como também o primeiro a vivera condição contraditória que haveria de acompanhá-la
até os dias de hoje: a de ser rebeldia financiada e ofi-
cialmente reconhecida.
A lição que se deve tirar disso tudo não é a de
que não se deve ser rebelde, mas, sim, a de que não se
deve fingir-se de rebelde. Fora disso, sabe-se que o
valor da arte não está em ostentar rebeldia, mas em ser
efetivamente expressão do talento e da mestria do
artista, para com isso deslumbrar ou comover as pes-
soas. O cinismo niilista de Duchamp, compreensível
em sua época, não tem mais cabimento.
F O T O : R E P R O D U Ç Ã O
O célebre urinol queDuchamp enviouao Salão dosIndependentes deNova Iorque,em 1917. O júri teveque aceitar a “obra”,mas, na hora deexpô-la, a escondeu
Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte
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triunfalismo cedeu ao derrotismo, a vanglóriadeu lugar à tristeza e o orgulho virou humilha-
ção. Eis o resumo da história da Argentina nas últimasdécadas. Um país marcado pelas feridas de desmandose corrupção, onde os intelectuais falam para governan-tes sem ouvidos, segundo o jornalista e escritor Tomás
Eloy Martínez. Uma terra cujo povo que se gabava desua ligação com o mundo desenvolvido, sobretudo como Velho Continente, e hoje reclama da globalização.
Diretor do Programa de Estudos Latino-Americanos da Rutgers University, em Nova Jérsei,nos Estados Unidos, Martínez deu um precioso teste-munho de como os seus conterrâneos têm sofrido asdores da crise econômica e política que assola o país.Ele foi o vencedor da última edição do Prêmio Alfa-guara, para autores de língua espanhola, com o ro-mance O vôo da rainha, que enfoca a Soberba e fechaa coleção Plenos Pecados, da editora Objetiva. Ocenário do livro é uma Argentina desolada pela açãode políticos populistas e corruptos, numa trama livre-mente inspirada no passado recente e amarrada pelasrelações entre a imprensa e o poder. Uma história deamor vivida dentro de uma redação de jornal servecomo fio condutor para apontar os pecados da nação.
Nesta entrevista, o autor de Santa Evita, best- seller com mais de 150 mil exemplares vendidos nomundo, explica por que a crise argentina é uma crise
de autoritarismo, denuncia a ignorância dos presiden-tes no seu país e diz que a elite cultural é impotentediante de uma elite política analfabeta.
Fábio Lucas Ospecadosde uma
nação
Autor do best-seller Santa Evita e do romance O vôo da rainha,lançado pela editora Objetiva, dentro da coleção Plenos Pecados,o jornalista argentino Tomás Eloy Martínez analisaa situação política e econômica do seu paíse a literatura latino-americana atual
O
C O N V E R S A F R A N C A
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Jornalista e escritor rgentino Tomás Eloy Martínez, ganhador o Prêmio Alfaguara,
ara autores de línguaespanhola
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Para os chineses crise é também oportunidade.
É verdade que para os artistas a crise é necessária para
a criação?
Como a palavra chinesa indica, uma crise podeir em duas direções. Uma direção positiva e uma nega-tiva. Uma pode destruir você, a outra pode convertê-
lo numa pessoa melhor. Depende da força interna quese tenha, da harmonia interna e da vontade que se pos-sua para desafiar a crise. A crise revela os homens, ospaíses e as famílias, tal como são. Na crise você enxergaexatamente a sua identidade. Se ela for positiva, forte,harmoniosa, você poderá sair bem da crise. Se estiverfragmentada, se você é muito pessimista, a crise o des-truirá. Depende da qualidade do ser humano, da fa-mília ou da nação que desafia a crise.
Então podemos dizer que o que está em jogo
na Argentina é a identidade da nação?
A crise argentina é uma crise de autoritarismo.A Argentina nunca superou o autoritarismo que co-meçou em 1930, com o primeiro golpe militar, se acen-tuou no peronismo e continuou com a alternância degovernos democráticos débeis e ditaduras militares.
O autoritarismo se instalou na sociedade. Nestemomento o autoritarismo se encarna em uma série desenhores feudais, que são os governadores peronistas.Cada um deles está arrancando pedaços do país, para
se apropriar do pouco que resta da Argentina.A Argentina sofreu com muitos maus gover-nantes. Diferentemente do que ocorre no Brasil, no
Chile ou no Uruguai, quase todos os nossos governan-tes têm uma inteligência e uma honestidade inferioresà média dos habitantes. A responsabilidade é dos ar-gentinos que os elegeram. Mas em muitos casos nãohavia opções.
Como o senhor descreveria os últimos presi-dentes argentinos?
Padecemos de um governante cheio de pro-messas, como Alfonsín, depois da horrível ditaduramilitar. Alfonsín quis julgar os militares e depois osliberou. Esse movimento de caranguejo causou muitosdanos ao país. Depois veio um presidente como Me-nem, a máxima corrupção e a máxima frivolidade, queconseguiu o milagre de vender todos os bens da Ar-gentina e endividar ainda mais o país, simultaneamen-te. É um milagre raríssimo. É como se alguém ven-desse sua casa, seus móveis, sua roupa, e depois termi-nasse mais pobre. Isso foi Menem. E logo depois foi a vez de um presidente inepto, uma espécie de zumbi,como De La Rua. Agora vivemos o momento dosgovernadores-senhores feudais.
E como sair dessa seqüência?
No momento em que o país encerrar a batalhapelo poder, do peronismo, por um lado, e da torpezados radicais, por outro, haverá um país melhor. Tocará
o fundo do abismo e saltará adiante melhor. Pior doque está, não pode ficar.
F O T O S : ( T O M Á S E L O
Y M A R T I N E Z ) D I V U L G A Ç Ã O
; ( D E M A I S F O T O S ) D I D A S A M P A I O
/ A E
Para Martínez, os trêsúltimos presidentesargentinos antes dacrise são culpados. Alfonsín, por nãocumprir o queprometeu; Menem,por ser frívolo ecorrupto; De La Rua,
por ser umpresidente inepto,“uma espécie dezumbi”
Continente Multicultural 23
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F O T O S : R E P R O D U Ç Ã O
; A L I B U R A F I / A F P
24 Continente Multicultural
O protagonista de Vôo da rainha, Camargo, é odiretor de redação de um jornal, o representante daelite cultural argentina. A história dele pode ser vistacomo um exemplo do comportamento e da reação daelite cultural argentina frente à crise?
Sim, por duas razões. Ele também pode ser umsímbolo do que a Argentina é, como país. Por um lado,Camargo não tolera o abandono. Para a Argentina,também é uma enorme surpresa sentir que é um paísabandonado, que sua queda não tem importância para
quase ninguém. Essa é uma enorme surpresa. Segun-do, Camargo começa lutando contra a corrupção polí-tica e econômica. Ao mesmo tempo, é vítima de umacorrupção de outro tipo, moral. Que não tem a vercom dinheiro, mas com a destruição de si mesmo. Dealgum modo, é a destruição da identidade. Na crise,Camargo aparece como uma pessoa negativa, e isso éimportante para a história.
Qual seria o papel dessa elite cultural, que sem-pre se orgulhou de ser atuante e venerar seu país,diante de uma nação humilhada?
A elite atua, fala e grita. E aponta os males dopaís incessantemente. O que acontece é que os inte-lectuais argentinos, agora, não têm nenhum peso nopaís. Porque o intelectual só pode ser ouvido quandoos governantes lêem. Se os governantes são analfabe-tos, não há nenhuma possibilidade de diálogo. Paraque um intelectual tenha peso na comunidade, é pre-ciso que o poder o reconheça como tal. Como no Bra-sil, no México, na Venezuela e na Colômbia.
O seu romance trata do pecado da soberba. Atéque ponto a soberba se misturou com o orgulho nopassado da Argentina?
O pecado da soberba foi o primeiro pecado dahumanidade, pecado que Satanás cometeu contraDeus. A Argentina, mais do que a soberba e o orgulho,cometeu o pecado da onipotência. Os argentinos di-ziam: “Isso não pode acontecer comigo”. O sentimen-to de imortalidade era algo muito argentino. “Quemsou eu para merecer isso?”, se perguntam agora.
A crise também traz um lado simbólico, poisafeta um país, dentro da América Latina, que era uma
vitrine cultural e detinha uma ligação cultural muitogrande com a Europa. Por muito tempo se disse que aArgentina era culturalmente superior aos demais paísesdo continente. O senhor concorda com essa visão?
A cultura argentina é muito viva, forte, mas nãoacho que se possa colocá-la acima da cultura do Brasil,por exemplo, que é muito rica também. Aqui há cine-ma de enorme vitalidade, literatura, artes plásticas,música. Nenhum argentino sensato pode dizer quenossa cultura é mais importante que a do Brasil. To-davia, essa cultura está viva. Em plena adversidade, ocinema e a literatura argentinos seguem adiante – eesse é o único oxigênio que possui a sociedade, nestemomento, para sentir-se viva.
A vida cultural intensa também significava aintegração do cidadão argentino com outras partes domundo. Não chega a ser irônico que agora esse mesmocidadão argentino, que se gabava de ser globalizadoculturalmente, se veja vítima de uma globalização eco-nômica?
É irônico. Na ordem cultural é algo curioso.Acabo de voltar da Espanha, e este é um momento emque a cultura argentina, os filmes e a literatura estãosendo procurados com muito interesse. A globalização
O jornalista brasileiroPimenta Neves, ex-retor de redação do
jornal O Estado deão Paulo, processado
pelo assassinato danamorada, é citado
no livro do autor argentino
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está ajudando a cultura argentina. Mas a globalizaçãoeconômica destruiu a Argentina. Há que separar umpouco as coisas. De um lado, a globalização econômi-ca, e de outro, a globalização cultural.
A globalização cultural é positiva, na medidaem que nos permite ver, primeiro, muitos filmes deHollywood, o que é péssimo, mas também o cinemabrasileiro, que é ótimo, o cinema espanhol, o cinemafrancês, o cinema escandinavo. Também nos ofereceuma forma de comunicação tecnológica, através da In-
ternet, que é positiva. O problema é quando os conglo-merados culturais, jornalísticos e de grandes empresas,oprimem o artista. Eles somente publicam o que vendemilhares de exemplares, é rentável. Isso é perniciosopara a arte, porque a arte cresce e melhora através daexperimentação e da busca de outras linguagens.
O senhor afirmou recentemente que “em todasas diferenças há semelhanças, e em todas as seme-lhanças há diferenças”. Como o senhor compararia omodo como o Brasil e a Argentina têm encarado suascrises e evoluído, do ponto de vista cultural, após operíodo autoritário?
Tanto no Brasil como na Argentina, os ditado-res militares foram assassinos e torturadores. Na Ar-gentina, além de assassinos, foram ladrões. Assaltantesde bancos, roubaram as casas, as propriedades, comoum batedor de carteiras comum. Os militares argen-tinos foram depredadores. Foi difícil reconstruir umpaís depois desse roubo gigantesco. No Brasil, houveuma alternância democrática positiva. Com governan-
tes discutíveis, porém que reorganizaram o país. Ape-sar dos conflitos econômicos e dos níveis de desem-prego, o Brasil é um país que está vivo e em cresci-mento. E tem um presidente que, erros à parte, é um
intelectual. E um intelectual é uma figura importante àfrente de um país, porque tem consciência da História.E sabe que seu mandato, seu destino pessoal, tem umarelação estreita com o destino de seu país. Na Argentinaisso não aconteceu. Não tivemos a sorte que o Brasilteve nesse sentido. Tivemos presidentes idiotas, frívolose analfabetos. Não tivemos presidentes intelectuais. Aevolução dos dois países tem sido muito diferente, apartir das ditaduras militares.
O que o levou a escrever um livro remexendonas feridas atuais da Argentina?
A trama do livro é a história de amor entre dois jornalistas que vivem no presente. E os fatos do pre-sente atuam sobre os dois personagens. Se tivessemoutra profissão, talvez fosse diferente. Mas é uma his-tória de amor em meio aos fatos da atualidade.
Por ser uma obra imersa no presente, seu livrolevanta questões quanto ao exercício da atividadeliterária num país mergulhado na crise. Que diferençapode fazer um livro?
Um livro pode fazer muita diferença, ou ne-nhuma. Há livros que marcaram época. Na Argen-tina, O jogo da amarelinha, de Cortázar, por exemplo,foi uma espécie de Bíblia para os jovens nos anos 60.Como Cem anos de solidão, de Garcia Marquez, quemarcou um novo modo de ver a realidade, ou Grande
sertão: veredas, ou Clarice Lispector. Mas não é fácil,nem freqüente, escrever um grande livro. Na Argen-tina não há um grande livro agora, mas há muitos ex-
celentes livros que permitem ao leitor encontrar modosde refletir sobre a crise. Espero que O vôo da rainha
seja um deles.
Tanto no Brasil como na Argentina, os ditadoresmilitares foram assassinose torturadores. Na Argentina, além disso,foram ladrões
Martinez acha que osargentinos pecarampor soberba, orgulho eonipotência. Agora,perplexos, seperguntam como umacrise dessas foi seabater justamentesobre eles
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F O T O S : R E P R O D U Ç Ã O
/ A E
gundo Eloy Martínez,
Borges, que sedestacou no chamado“realismo fantástico”,
também escreveuobras que eram
espostas às realidadespolíticas da Argentina,assim como Dickens,ue fez uma minuciosa
análise crítica dasescolas inglesas
O realismo fantástico uma tradição na lite-
ratura argentina está perdendo força?
A literatura argentina é vasta e não pode ser
limitada ao que se chama de “realismo fantástico”. Au-
tores como Borges, Cortázar ou Bioy Casares, que se
destacam nesse gênero, escreveram também obras que
eram respostas às realidades políticas da Argentina. No
caso de Borges, contos como Emma Zunz, O evangelho
segundo São Marcos, A intrusa, e quase toda a última
parte de sua obra, se inscrevem nessa linha. O mesmo
se poderia dizer de todos os últimos contos de Cortázar,
dos quatro últimos romances de Bioy Casares e da obra
inteira de autores importantíssimos como Roberto Arlt,
Manuel Puig, Ricardo Piglia. Portanto, dizer que orealismo fantástico prevalece na literatura argentina é
empobrecer essa literatura. Seria o mesmo que dizer
que toda a literatura brasileira é de tradição regional.
Qual a influência do jornalismo literário sobre
sua obra já que ela é inspirada pela realidade?
A maior influência neste romance vem do
cinema. Com exceção do episódio do jornalista brasi-
leiro Pimenta Neves, que abre o terceiro capítulo, você
não encontra nada no livro que seja uma crônica da
realidade: na Argentina recente não há senadores que
se suicidam, nem presidentes com visões místicas,
tampouco diretores de jornais com o poder que tem
Camargo. Alegra-me que você pense que o que acon-
tece no livro seja inspirado pela realidade, porque quis
criar essa ilusão. Mas trata-se de uma ilusão. A Argen-
tina que está lá é uma metáfora.
Uma metáfora bem próxima da realidade aliás.
Quase todos os romances são inspirados pela
realidade, e nem por isso se supõe que haja neles in-
fluência do jornalismo literário. O que você diria de
Guerra e paz, onde Tolstoi explorou cada detalhe bo-
tânico ou militar para não se separar do real? Ou de
Nicholas Nickleby, em que Dickens faz uma minuciosa
análise das escolas inglesas? Ou de Adeus às armas de
Hemingway, de Crônica de uma morte anunciada de
Garcia Marquez, de Agosto de Rubem Fonseca, so-
mente para citar obras de culturas diferentes? Diriaque são jornalismo literário? O vôo da rainha se passa
Em relação à prosa, omelhor da literaturalatino-americana seencontra numa zona de
penumbra entrerealidade e ficção
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Martínez conta queentrou em contatocom a literaturabrasileira há 40 anos,quando ficoudeslumbrado com asobras de ClariceLispector e GuimarãesRosa
na redação de um jornal, e seus personagens são jor-nalistas, mas o livro foi escrito com as técnicas de umromance, que exigem ambigüidade e cumplicidadecom a inteligência do leitor. Não acho que o jornalismoliterário tenha isso.
De um modo geral, como o senhor vê a pro-dução literária latino-americana atual?
Em relação à prosa, o melhor da literatura la-tino-americana se encontra numa zona de indecisão oude penumbra entre a realidade e a ficção, como quasetoda grande literatura contemporânea, desde W.G. Se-bald e Claudio Magris a Don DeLillo, Antonio Ta-
bucchi e os grandes romancistas ingleses, de JulianBarnes e Martin Amis a Kazuo Ishiguro e IanMcEwan. Na América Latina escrevem-se romancestão bons quanto em qualquer outro lugar – em algunscasos, romances até melhores.
O que o senhor conhece da literatura brasileiracontemporânea?
Há pelo menos quarenta anos que leio comatenção a literatura brasileira. Fiquei deslumbradocom as obras de Clarice Lispector, Guimarães Rosa,
João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond deAndrade. Com a freqüência que posso, continuo len-
do Machado de Assis. E sempre vi essas obras relacio-nadas com o riquíssimo Cinema Novo, com a músicapopular ou clássica (as Bachianas de Villa-Lobos e asóperas de Chico Buarque estão entre as minhasfavoritas), com a pintura e a arquitetura. AcrescentariaEuclides da Cunha, Mário de Andrade, NélidaPiñon, Rubem Fonseca e Patricia Melo, talvez porquecada um deles tenha me enriquecido. Não conheço arecente poesia brasileira, infelizmente.
O que mais lhe chama a atenção na literaturabrasileira?
Vocês criaram uma linguagem própria, em que
a diversidade brasileira está de corpo inteiro: a vio-lência urbana de hoje já estava em Clarice Lispector, acomplexidade verbal de Guimarães Rosa tem a vercom os diversos níveis de linguagem que há nas cida-des – e não falo apenas de níveis sociais, mas tambémde linguagens que se movem, se transformam, refle-tindo um país em mudança veloz e perpétua.
Fábio Lucas é jornalista
8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues
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Gilberto Freyre recorda em Vida, forma e corcomo tentou e não conseguiu aproximar José Linsdo Rego de alguns modernistas do Rio, entre elesSérgio Buarque, após recomendá-los veementemen-
te à simpatia e à atenção do paraibano: “Simpatiaque, da parte dele – José Lins –, dificilmente se fi-xou em Prudente, Rodrigo, Sérgio e Drummond,embora tivesse imediatamente aderido à poesia e àpersonalidade de Manuel Bandeira”.
Sua primeira coletânea, Cobra de vidro, somen-te será publicada em 1944. Na edição mais recente, de1978, ainda refeita por ele, além dos textos jornalísti-cos de 1940-41, aparecem outros redigidos até 1952.É notável o texto sobre a poesia de Manuel Bandeira,Trajetória de uma poesia, que se prestou também para aintrodução às obras completas do pernambucano. Noesboço comparativo entre Bandeira e dois modernis-tas consagrados, Ronald de Carvalho e Guilherme deAlmeida, considerando-se certos processos líricos uti-lizados pelos três, conclui-se facilmente quem sairáganhando. Ronald era o “colorista” artificioso, en-quanto que a musicalidade até certo ponto “provoca-da” de Guilherme o imobilizará como numa camisa-de-força. Para o crítico, Bandeira é o poeta quase semdefeitos, aquele que não sacrifica o melhor de sua voz
íntima em favor de elementos externos, às vezesfalseados e deslocados da poesia. Sérgio faz tambémelogios rasgados ainda à poesia singular de DanteMilano, pelas temáticas pouco encontráveis em ou-tros poetas e pelo conteúdo essencialmente filosóficode muitos de seus poemas.
Revelam-se ainda exemplares as análises dapoesia de Drummond e João Cabral. Do mineiro,questionará a qualificação de primeiro “poeta públi-co” brasileiro, proposta anteriormente por Otto Ma-ria Carpeaux, pensando nos poemas de Sentimento do
mundo e na sua suposta ligação, em 1940, com a“moderníssima corrente da poesia inglesa”. Tomacomo ponto de partida, no caso de Cabral, o ensaioque este escreveu sobre Joan Miró, para melhoravaliar o poeta a partir de suas concepções peculiaressobre a arte do pintor espanhol.
Em artigo recente, Antonio Arnoni Prado,organizador de parte da obra de Sérgio Buarqueinédita em livro (O Espírito e a letra, 1996, em dois
volumes que somam 1.100 páginas), intenta mostrarcomo se processa a influência exercida pelo historia-dor sobre o crítico em termos de argumentação econtextualização de tempo e espaço apreendidas dohistórico. A outra parte dessa crítica foi organizada
por Antonio Candido em Capítulos de literatura colonial (1991) e no Livro dos prefácios (1996). Can-dido não esconde a inteireza do elogio a Sérgio,companheiro de longas datas e de interesses polí-ticos, sociológicos e literários em certos instantesconvergentes e até comuns: “Como crítico, Sérgiofoi um mestre incomparável, talvez o mais impor-tante do Brasil no século 20”. O fato é que Sérgio
completou, de algum modo, com sua antologia depoetas e seus estudos sobre a fase colonial, o trabalhocrítico de Candido, que principia sua Formação da literatura brasileira com os árcades mineiros. Nestesentido, é sintomática a homenagem feita por Sérgioa Candido no ensaio Gosto arcádico, para o livro Es- boço de figura.
Sérgio Buarque tinha um posicionamentoclaro sobre a função da crítica e dos críticos, enfatiza-da na “Apresentação” que fez de outro livro que or-ganizou em vida, Tentativas de mitologia (1979). A vi-
são que mostra dos críticos é demolidora, semesquivar-se contudo de sua própria inclusão nela, aoadiantar que o crítico é um “personagem natural-mente presunçoso, pois que se faz passar, no fundo,por onisciente”. Ele conta ainda detalhadamente, naapresentação, como veiculou-se o seu percurso inte-lectual no Brasil e na Europa, a sua relação contro-
vertida com os modernistas, o seu afastamento tem-porário da crítica literária e como foram memoráveisas polêmicas sustentadas com os historiadores Oli-
veira Viana e Jaime Cortesão.Neste livro, mais que em Cobra de vidro, os
motivos históricos e culturais aparecem em váriostextos, tendo como pano de fundo a simples resenha
30 Continente Multicultural
O que pode ajudarna tentativa de
definição crítica paraSérgio Buarque é,
numa palavra,a argúcia assumida
diante do objetoiterário interpretado
F O T O : R E P R O D U Ç Ã O / A E
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Geraldo Gomes
A ação do serviço público a quem competepreservar a integridade de nosso patrimônio
cultural terminou por criar um grande equívoco,de conseqüências desastrosas
Patrimônio reinventado
A R Q U I T E T U R A
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Continente Multicultural 33
m 1937 foi criado o Serviço do Patrimônio His-tórico e Artístico Nacional (SPHAN), por um
grupo de intelectuais brasileiros, dentre eles algunsarquitetos modernistas.
Os criadores desse serviço público foramtambém os coordenadores e orientadores das atividadesque se desenvolveram visando à preservação do nossopatrimônio cultural edificado. Até a década de 70 doséculo passado, o SPHAN vivia às custas da perseve-rança e sacrifício dos seus dirigentes e apesar dos escas-sos recursos financeiros que o Tesouro Nacional lhereservava.
Assim, as obras de restauração dos nossos mo-numentos, nos primeiros 40 anos de existência doSPHAN, limitaram-se à conservação e a reparos, semintervenções radicais e de grande vulto.
Eventualmente se conseguia algum recurso ex-traordinário, logo empregado nas restaurações de nos-sas igrejas barrocas, alvos das melhores atenções naque-las oportunidades.
O espetáculo de cores e brilho dos interioresdessas igrejas era proporcionado pelas magníficas obrasde madeira entalhada, policromada ou dourada.
Nenhuma das obras de talha que revestiu os in-teriores de nossas igrejas foi concebida para aparecer
sem revestimento, isto é, expondo a cor e a textura na-tural da madeira. Todas as talhas foram concebidas eexecutadas para serem revestidas com pinturas policro-madas ou com finíssimas folhas de ouro.
No século 19 surgiu a moda de pintar debranco as talhas policromadas. Como o gosto artísticodos criadores do SPHAN pendia para a valorizaçãode nossas obras nos estilos maneirista, barroco e roco-có, subestimando o neoclassicismo e ecletismo, a prá-tica oitocentista foi considerada herética e as cores ori-ginais de nossas talhas foram resgatadas através de
obras de restauração, sempre que havia algum recursofinanceiro disponível.
No entanto muitas de nossas obras de talha fo-ram restauradas com recursos mínimos, o que, naque-les tempos, era a regra geral. Em um grande númerode casos, por mais cuidadosa que fosse a retirada dascamadas de tinta branca, sempre se retiravam, involun-tária e irremediavelmente, camadas das tintas em outrascores que estavam por baixo, chegando-se, assim, àsuperfície da madeira somente com seus veios preen-chidos com as mãos de selador branco que haviam re-cebido para serem pintadas.
Na impossibilidade de restaurar as cores origi-nais chegou-se a uma terceira textura: nascia o “deca-
pê”, do francês “décaper”, que significa decapar, tirarcamadas. E assim, sob o pretexto da restauração, umagrande parte dos interiores de nossas igrejas ganhouum novo aspecto estranho às idéias de quem os conce-
beu e executou.A realidade é que não se restauraram os es-paços barrocos, na sua origem policromados e dou-rados; criou-se um outro espaço em que as saliênciase reentrâncias das obras de talha se perdem no mono-cromatismo do marrom da madeira esmaecido comas finas linhas brancas do selador entranhadas nassuas fibras.
Podem-se verificar essas práticas, por exemplo,nas igrejas de São Pedro dos Clérigos e na de N.S. doRosário dos Pretos, ambas na cidade do Recife. Quem visitar o interior desses templos vai verificar que o es-paço está envolto numa penumbra, com um certo ar demistério e recolhimento quase românicos e que nadatem a ver com os espaços feéricos, policromados, dou-rados, inundados de brilhos e reflexos do barroco. Adourada capela-mor da igreja do mosteiro beneditinode Olinda e a capela-mor da igreja do convento carme-lita do Recife, restaurada exemplarmente, são exemplosexponenciais da fantasia barroca.
O leigo acredita que a capela-mor das igrejas de
São Pedro dos Clérigos e a de Nossa Senhora do Ro-sário dos Pretos tiveram seus espaços originais restau-rados, o que é muito grave, porque esse equívoco foiprovocado por uma ação do serviço público a quecompete preservar a integridade de nosso patrimôniocultural.
A esse serviço foi conferida, por lei, a autoridadepara definir normas e procedimentos de restauraçãodos nossos bens culturais. “Se o SPHAN agiu dessaforma, deve estar certo e é assim que se faz”, foi a inter-pretação leiga. A precedência do exemplo tem conse-
qüências previsíveis.Logo surgiram as modas de envelhecimento de
móveis, para satisfazer os desejos dos clientes dos nos-sos antiquários, e cursos de “decapê”, que consistiamem pintar uma peça de madeira com selador e em se-guida raspá-la.
A responsabilidade de nossos órgãos públicosde preservação, nesses casos, embora defensável, é irre-futável.
Exemplos desse tipo não são raros em outroscasos e não se limitam a móveis ou interiores de edifí-cios. No caso mais recente de revitalização do bairro doRecife, na cidade do mesmo nome, ocorreu algo seme-lhante ao equívoco oficial referido e divulgado.
Capela-mor daIgreja de São Pedrodos Clérigos,no Recife
F O T O : G E R A L D O G
O M E S
E
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34Continente Multicultural
Uma grande parte dos sobrados do citado bair-
ro teve suas fachadas pintadas de novo, cada uma delas
ostentando uma composição policromada. Esses so-brados não tinham essa coloração e não houve o cui-
dado de promover a prospecção física que identificaria
as cores superpostas e, se fosse desejável, definir a cor
da primeira camada, datada das primeiras décadas do
século 20. Esta foi uma iniciativa da Prefeitura da Ci-
dade do Recife que, a bem da verdade, em momento
algum, declarou que estava restaurando as cores ori-
ginais dos sobrados.
O que aconteceu foi a revitalização do bairro,
nem tanto pelas cores que os edifícios exibem hoje, maspelas novas funções que ali se exercem, essencialmente
diversionais.
Quanto ao patrimônio cultural que esses sobra-
dos representavam, pode-se afirmar que se reinventou
um patrimônio, assim como aconteceu com o interior
de algumas de nossas igrejas barrocas.
No bairro do Recife ocorreu o mesmo fenôme-
no que no “Art Déco District” de Miami, onde todos
os edifícios eram monocromáticos, na sua origem, e
passaram a ser policromados. Por conta desse sucesso
cromático inventado pelos arquitetos locais, a grandemaioria das pessoas, arquitetos pouco ilustrados inclu-
sive, passou a acreditar que a policromia era uma carac-
terística da “Art Déco”.
Na realidade, a policromia nunca foi estranha à
arquitetura. Os templos gregos, paradigmas exempla-
res da arquitetura do ser humano, apresentam-se hoje
na cor natural da pedra com que foram construídos,
mas, quando foram concebidos e concluídos, alguns
séculos antes de Cristo, eram policromados.
No século 19 os arquitetos europeus, sentindo
falta do volume das alvenarias de pedra e de tijolo, uti-
lizaram cores vivas para dar “peso plástico” às delgadas
estruturas metálicas que surgiam para revolucionar a
arquitetura. O uso das grandes superfícies de vidro
aliado à esbelteza das estruturas metálicas tornou trans-
parente e com limites indefinidos o espaço arquitetôni-
co, antes contido entre grossas e opacas paredes de al-
venaria de pedra e de tijolo.A aplicação de cores, naquela oportunidade, se
fazia segundo pesquisas pretensamente científicas.
Essas normas se aplicariam à arquitetura do fer-
ro. A arquitetura eclética contemporânea, profusamen-
te decorada, era, na origem, monocromática, às vezes
enriquecida com painéis cerâmicos em cores vivas, for-
mando molduras ou valorizando certos trechos de pa-
redes com delicados motivos decorativos figurativos.
A partir de meados do século 19 a arquitetura
dos edifícios e da cidade passou a ser fortemente in-
fluenciada pela higiene e pelo sanitarismo, isto é, as for-mas e as cores dos edifícios e das cidades passaram a ser
definidos pela ciência e não somente pelo gosto artís-
tico. A luz do Sol e o ar em movimento passaram a ser
bem-vindos por razões anti-sépticas. Todos os cômodos
deveriam ter janelas, as ruas deveriam ser largas, pelos
mesmos motivos.
No caso das cores do bairro do Recife, definidas
no início do século 20, quando o bairro foi radicalmente
transformado para as obras de ampliação do porto, fal-
tam referências bibliográficas e iconográficas confiáveis(as fotografias existentes são em preto e branco).
Contudo, alguns textos podem ser indícios do
que ocorreu na arquitetura recifense daquele período e,
mais particularmente, no bairro do Recife, que se re-
construiu nos moldes do ecletismo, o modernismo (de
moda) contemporâneo.
Um texto de 1915, exatamente o período de re-
modelação do bairro do Recife, comemora a derrubada
das “velharias coloniaes” com uma veemência que deve
ser entendida pela ilu-
são do progresso que,naquela época, se tra-
duzia, essencialmen-
te, no urbanismo de-
molidor.
“O camartelo
do alvenel abate reso-
lutamente as velharias
coloniaes e a cidade
chorando ontem pe-
los olhos da saudade
amarga dos que ha
meio século perlustra-
ram tortuosas ruas de
Estação Central doRecife, restaurada
recentemente
Edifício dassociação Comercial,
no bairro do Recife
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Continente Multicultural 35
sobradões deformes, com janellas de quatro palmos de
alto sobre tres de largura, canos de lata com boca de
jacaré, pendentes do beiral dos telhados, biqueiras rasas
onde medravam vegetaes, e portões baixos de testa lisa
e chan, a cidade numa viva ardencia de progresso ma-terial que lhe agita e transforma o seio, dando-lhe uns
vivos tons de graça e belleza, canta hoje a era nova de
sua remodelação nas soberbas columnas de embasa-
mento, no mármore das soleiras, no arco diagonal das
abóbadas góticas, nas flexas dos zimbórios, nas carran-
cas de pedra, nas graciosas linhas systemáticas das arca-
das, na bela symetria das columnatas torneadas de tan-
tos edifícios em construção”.
O autor, provavelmente, se refere às demolições
que se faziam no bairro do Recife, com evidente satis-
fação pela destruição da malha urbana colonial consti-tuída de ruas tortuosas e estreitas e sua substituição
pelas ruas largas e arejadas, exaltando as belezas da no-
va arquitetura, isto é, da arquitetura eclética, com todo
o seu decorativismo e até mesmo com o seu exotismo
“no arco diagonal das abóbadas góticas”.
O autor observa que, apesar da “viva ardência
de progresso material que lhe agita e transforma o
seio”, a cidade, como um todo, ainda se ressente dos
seus “defeitos” de formação. “Ha uma cousa ressaltan-
te à prima observação daquelles que nos visitam: a es-treiteza das ruas. A maioria das nossas ruas são mesmo
muito estreitas; este é um grave defeito vindo da fun-
dação da cidade. E por que ellas são estreitas (as ruas),
na sua quasi totalidade feitas de sobrados altos, furan-
do o céo com a sua elevação de dois, três, quatro e até
cinco andares pesadões archaicos, ressentem-se de ar,
quando não correm na direcção da costa atlântica, e de
luz, pois a do Sol nessas mesmas ruas não penetra
senão à hora meridiana”.O autor, não satisfeito com a remodelação de
todo o tecido urbano da cidade, isto é, com o alarga-
mento das ruas, recorre à pintura os edifícios para ate-
nuar os malefícios da sombra, pois “em ruas que não
são bem lavadas pelas correntes de ar, a luz profusa do
Sol é absolutamente necessária como elemento depura-
dor da atmosphera”.
A escolha de determinadas cores a serem aplica-
das nas paredes externas dos edifícios se faria em função
da capacidade de reflexão ou de absorção do calor
resultante da insolação.“Sabemos que tem grande importância a cor da
superfície em que a luz se reflecte; e o branco é que tem
effeito mais nocivo, porque os corpos brancos reflectem
toda luz que recebem. Mas em ruas estreitas ou que
pouco largas sejam, e aonde o Sol irradia menos horas,
a claridade é indispensável para que bem se effectuem
as acções chímicas que se passam no organismo”.
Não é possível asseverar que as recomendações
do autor tenham sido levadas em conta por aqueles que
erigiram os edifícios ecléticos no início do século 20, nobairro do Recife, mas, a se julgar pela documentação
iconográfica daquele bairro anterior à “valorização cro-
mática” promovida pela Prefeitura da Cidade do Reci-
fe, é possível que tenha existido, por parte daqueles
construtores, um consenso no uso de cores pastel, cos-
tume que, na realidade, já se introduzira no Brasil no
século 19, com o Império. Trata-se de uma prática que
se diferenciava daquelas em voga no período colonial.
Convém repetir que foi a partir de meados do século 19
que os princípios de higiene da habitação e sanitarismo
passaram a influir no desenho da arquitetura dos edifí-cios e da cidade.
As sugestões do autor parecem premonitórias:
“Não há razão para que a pintura das fachadas seja feita
de uma variedade de cores escuríssimas dando às mes-
mas ruas a feição lobrega de imitação.
Quando a pintura não tivesse fundo claro, azú-
leo, esverdeado, róseo, cor de pérola ou palha seca, de-
via ter systematicamente a cor natural da pedra, ou da
argamassa de revestimento que a esta cor se assemelhe,
como já temos exemplos dignos de imitação.
Está visto que a cal preta, o core, mais próprios
dos muros, as tintas de roxo terra, azulão, zarcão, púr-
pura, chumbo, e de tantas côres equívocas, indefiníveis,
Edifício-sede do
Jornal do Commercio,na rua do Imperador,Recife, em 1999e em 2002
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36Continente Multicultural36Continente Multicultural
porque algumas até parecem com a variada cor do
dejeto multifario, dão às ruas o aspecto de bairros
chineses, muito principalmente quando o calçamento
não é egual ao do novo leito das principaes artérias, e
que orgulho é da cidade em remodelação.O ideal é que as nossas ruas não tenham nunca
aquella feição das ruas de Pekin...”
Há poucas referências bibliográficas ao acaba-
mento dos edifícios que se construíram no início do sé-
culo passado no bairro do Recife. Um deles, no entan-
to, é rico em referências estéticas e, a partir destas, seria
lícito caracterizar, por extensão, os edifícios que esta-
vam sendo erigidos naquele mesmo período e no mes-
mo bairro. O edifício descrito num artigo de jornal do
Recife é o da Associação Comercial, que acabara de ser
inaugurado.“A parte externa é trabalhada em alvenaria
recortada com relevos que lhe dão um aspecto sombrio
e ‘ao mesmo tempo distincto. Nada muito enfeitado’.
Nada porém que se possa confundir com certas cons-
truções em que a alvenaria, lisa, não apresenta um rele-
vo, quebrando a monotonia compacta e desagradável à
vista inteligente, da parede nua”.
Um outro registro sugere a natureza da deco-
ração dos edifícios nas primeiras décadas do século
X20: um cartão-postal de 1916, colorido à mão, mos-tra a “Estação Central do Recife” em cores pastel e foi
utilizado como referência iconográfica para restaura-
ção desse edifício. Convém lembrar que a técnica de
colorir cartões-postais à mão permitia ao artesão utili-
zar cores fortes.
As ruas do bairro do Recife estão longe de pare-
cer-se com “ruas de Pekin” e alguns de seus trechos
apresentam-se com composições cromáticas agradá-
veis, o que, com certeza, contribuiu para a valorização
do bairro.
No entanto, convém lembrar que foi a definiçãodo novo uso dado aos pavimentos térreos dos edifícios
de algumas ruas do bairro (casas de diversão noturna)
o motivo principal para o sucesso da intervenção. Com
o mesmo uso que se lhes atribuiu e a restauração das
fachadas dos edifícios, ao invés de sua valorização cro-
mática, provavelmente o sucesso comercial teria sido o
mesmo acrescido do resgate da memória visual da ar-
quitetura eclética do início do século 20.
O Recife “antigo” transformou-se num “novo”
Recife, com um patrimônio reinventado em fins do sé-
culo 20: “as suas cores”. Grande parte da população lo-
cal e de turistas passou a acreditar que o bairro do
Recife havia sido restaurado, e que aquelas cores, se não
eram as originais, poderiam ter sido, porque a policro-
mia dos edifícios teria sido a regra.
A mania colorista não se restringiu ao bairro do
Recife. Outros edifícios com estilos diferentes dos cons-truídos no bairro do Recife na primeira década do sé-
culo 20 e situados em outros bairros, foram pintados de
acordo com a nova moda instaurada sob os auspícios da
Prefeitura da Cidade do Recife. Alguns deles nunca
haviam sido pintados porque, quando foram construí-
dos, tiveram suas fachadas revestidas com um reboco
especial que contém pó de pedra, o que lhes garante
maior resistência ao desgaste promovido pela chuva e
pelo Sol. Esse reboco, de fino acabamento e de cor
cinza, foi utilizado em edifícios de vários estilos, mas a
nova moda colorista os ignorava como acontecera com
os edifícios do bairro do Recife.
Assim, o Palácio da Justiça, que era todo cinzen-
to, nunca havia sido pintado desde quando fora con-
cluído em 1930, projetado pelo arquiteto italiano Jaco-
mo Palumbo num estilo eclético neo-classicizante, foi
um dos primeiros a ter suas fachadas “valorizadas”
com cores inéditas.
O edifício-sede da empresa Jornal do Commercio,
no Recife, notável exemplar de nossa arquitetura “Art
Déco”, com todas as suas fachadas revestidas de rebocode pó de pedra, e que nunca havia sido pintado desde a
sua conclusão em 1934, “sofreu” também com a nova
moda recebendo cores vivas em suas fachadas.
Mas a moda colorista não foi adotada somente
para os edifícios do século 20. O contágio provocou
Sobrados noPátio de São Pedro,
Recife, 1991
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uma epidemia que não poupou edifícios construídos no
século 19, como o da Assembléia Legislativa de Per-
nambuco, com sua fulgurante cúpula dourada e a igre-
ja matriz de São José, pintada de cor-de-rosa.
Até mesmo a igreja setecentista de Santa Cruz,no pátio de mesmo nome, no bairro da Boa Vista, rece-
beu uma pintura em azul-médio e uma outra novidade;
a pintura de sua torre sineira com faixas verticais em
cores diferentes modificando radicalmente a percepção
de suas proporções.
Hoje, quando o termo “sustentabilidade econô-
mica” passou a ser usado como expressão mágica para
justificar o investimento do poder público em qualquer
ramo de atividade, não se cogita de preservar nosso pa-
trimônio edificado sem o patrocínio de uma empresa
privada, mas, por outro lado, aumenta o risco da preva-lência dos gostos em moda sobre o interesse da preser-
vação das características morfológicas essenciais do
bem cultural.
A título de exemplo, há alguns anos uma em-
presa particular concordou em arcar com as despesas
com a pintura das fachadas dos sobrados do pátio de
São Pedro, no Recife. No período colonial, no Brasil,
prevaleciam as cores vivas, os azulejos e o branco da cal
nas fachadas dos sobrados. A empresa patrocinadora
dessa pintura impôs, com êxito, a condição de definiçãodas cores a serem aplicadas por um profissional de sua
escolha, que o fez especificando cores pastel, moda que
só viria a surgir no Brasil no século 19 e, ainda mais,
sugerindo com a pintura, faixas horizontais que
romperam a leitura da individualidade vertical de cada
um dos sobrados.
Tudo isso ocorreu, senão com o beneplácito das
entidades oficiais criadas com a competência e autori-
dade para normatizar a preservação do nosso patrimô-
nio edificado, sem manifestações públicas de desacordo
dessas mesmas entidades com tais práticas.Diante desse silêncio, ou omissão, o que pode
concluir a sociedade leiga em sua grande maioria? Que
está correto o que está ocorrendo! E, o que é mais gra-
ve, é exemplo a ser seguido.
A manipulação irresponsável, pela mídia, dessas
práticas pseudo-preservacionistas vulgariza o nosso pa-
trimônio cultural.
Poder-se-ia argumentar com o direito da socie-
dade contemporânea de travestir o seu patrimônio cul-
tural, como expressão de uma postura pós-moderna e,
como tal, irônica e também iconoclasta, como foi a ar-quitetura modernista na década de 40 do século pas-
sado. Cabe, nesse caso, pelo menos, uma advertência
das autoridades competentes para que a sociedade não
se iluda quanto ao inequívoco significado da preser-
vação do bem cultural.
De qualquer forma, gostaria de ser poupado
do pesadelo de um dia ver a igreja de São Pedro dos
Clérigos com sua fachada pintada em rosa, lilás e
verde-claro.
Continente Multicultural 37
Assembléia Legislativade Pernambuco,Recife, 2002
Geraldo Gomes é arquiteto
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38 Continente Multicultural
umandá com farinha de mandioca. “Cumandá” vem de “cumã”, alimento retirado de vagem.
Era prato muito apreciado por nossos índios. Mas osportugueses, ao chegarem por aqui, não lhe derammuita importância. Continuaram preferindo oslegumes e as hortaliças do cozido lusitano. Depois,mas só aos poucos, começaram a gostar do saborespecial desse cumandá a que chamaram feijão, porlhes lembrar na forma o “feijon” – uma leguminosa
asiática introduzida, pelos mouros, na Península Ibéri-ca. Não por acaso semelhanças alimentares podem serencontradas em todos os países que, um dia, formaramo grande Império Português – Angola, Cabo Verde,Timor Leste, Goa, Moçambique, Macau. Pratos abase de feijão, por exemplo, levavam sempre chouriço,porco defumado, cebola e alho. Com pequenas varia-ções em termos de ingredientes e temperos. Em Goausa-se gengibre. Em Cabo Verde acrescem-se de vários grãos – é a “cachupa”, ainda hoje um prato tra-dicional. Mas feijão, como fava e ervilha, era então im-
portante na alimentação apenas dos camponeses
europeus. Não nas boas mesas. Nenhuma referência aele se encontra, por exemplo, no primeiro livro deculinária portuguesa – o famoso A arte de Cozinhar, deDomingos Rodrigues.
Os nomes vão mudando. É alubia na Espanha, fagioli na Italia, haricot na França, bohne na Alemanha, beans na Inglaterra e Estados Unidos. Mas em ne-nhum lugar do mundo o feijão é tão prestigiado quan-
to aqui. Prato que não pode faltar na mesa diária do
S A B O R E S P E R N A
M B U C A N O S
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
C
Feijão,preferência
nacional
Que prazer mais um corpo pede
Após comido um tal feijão?
Evidentemente uma rede
E um gato para passar a mão.
Vinícius de Morais, em Feijoada a Minha Moda
De um alimento indígena,o feijão caiu no gosto dos
colonizadores e hoje é um pratogenuinamente nacional
8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues
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Continente Multicultural 39
brasileiro. Até porque o feijão, como o conhecemos,nasceu em nosso continente americano. Pizarro en-controu no México, ao chegar, mais de 100 variedadesda planta. Depois queimou seus navios, todos sabem.Mas essa é outra história. O desenho do legume estáem muitos tumbas Inca. É famosa, por exemplo, apintura em que aparece índia carregando milho emuma mão e feijão na outra.
Feijoada é mesmo um produto genuinamentenacional. Vem de fins do séc. 18, início do séc. 19. Nãohá consenso em relação a como nasceu. A versão mais
difundida, e provavelmente equivocada, sustenta queos senhores nos engenhos de açúcar, nas fazendas decafé e nas minas de ouro davam aos escravos restos dosporcos – orelha, rabo, pé. Vindo o prato do cozimentodesses ingredientes, misturados com feijão e água.Mas essa teoria romanceada das relações entre patrõese escravos, naquela época, não se baseia em nenhumafonte documental. E não encontra amparo nos fatos.
Os escravos vindos da África, como nossos índios,nunca tiveram o hábito de cozinhar alimentos mistura-dos na mesma panela – feijão era só feijão, milho só
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40 Continente Multicultural
milho, batata só batata, carne só carne. No mais, ofeijão dos escravos era servido sempre ralo, junto comfarinha de mandioca. Zelosos com seus pertences, epara evitar o escorbuto, o máximo que concediam os
senhores era que os escravos tivessem, no pomar, asfrutas que quisessem. Assim escreveu Francisco Pei-xoto de Lacerda, Barão de Paty, em seu Manual aos
Produtores de Café (1847): “O preto trabalhador de ro-ça deve comer três refeições ao dia, ao almoçar, às 8horas, jantar à uma hora e cear às sete horas. Sua comi-da deve ser simples e sadia. Em serra acima, em geral,não se lhe dá carne, come feijão temperado com sal egordura, e angu de milho, que é comida substancial.”
Além disso, pés, rabos e orelhas de porco nãoeram nunca desprezados pelo colonizador. Sendo basede muitas receitas de prestígio, na Europa – Tripas àmoda do Porto e Pezinhos de porco de coentrada(Portugal); Spaghetti à Carbonara (usando gordura dabochecha do porco), Trippa alla Fiorentina e Paiata allaCacciatora (Itália); Tripes a la mode de Caen, Oeufs àla Tripe e Terrine de Queue de Boeuf (rabo de boi) emGelée d’Estragon (França); Einsbein (joelho deporco) com Chucrute (Alemanha).
A afirmação mais provável, portanto, é quenossa feijoada acabou mesmo nascendo não em sen-
zalas, mas nas casas grandes. A partir da adaptação depratos tipicamente da Europa, onde se preparavam co-zidos de várias carnes – vaca, porco, carneiro, touci-nho, pato, ganso. Aos quais juntavam-se legumes ehortaliças, com maior ou menor variedade. Tudo sen-do fervido conjuntamente, quase sempre em panelasde barro. Assim é com o cozido e a caldeirada portu-gueses; o bollito e a casoeula italianos; a olla podrida, a paella, o pringá, a pilotae a fabata espanhóis; e o cassoulet
(panela de barro) francês, claro. Nossa feijoada pareceseguir essa tradição européia das paneladas, mistura de
leguminosas e carnes de todas as espécies. Do cozidoportuguês terá, provavelmente, vindo a idéia de mistu-rar feijão – preto (no sul) ou mulatinho (no nordeste)– com carnes e verduras, na tentativa de obter uma re-feição única, com sabor e sustança. Pouco a pouco pas-sando a ter o feijão, em razão de seu sabor marcante,ou da preferência que merecia por aqui, uma posiçãohegemônica no prato. Nossa feijoada seria, assim, felizcasamento de técnica portuguesa com ingredientesnacionais. Um casamento, diferente de tantos outros,que deu certo.
RECEITA: FEIJOADA (15 pessoas)INGREDIENTES PARA O FEIJÃO: 2 ½ kg de feijão preto*,1 kg de charque, 250 gr de orelha de porco salgada, 250g depé de porco salgado, 250 g de rabo de porco salgado, 1kg de
costela de porco defumado, 250 g de toucinho, 250 g delombo de porco defumado, ½ kg de paio, ½ kg de lingüiçaportuguesa, ½ kg de carne de peito refogada.PARA OS TEMPEROS: 2 talos de salsão, 2 cebolas, 6 dentesde alho, 4 talos de cebolinha verde, 4 ramos de coentro, 4folhas de louro, ¼ de colher de sopa de pimenta do reino,250 g de bacon picado e frito, 1 laranja pequena com casca,100 ml de cachaça, sal a gostoPARA O REFOGADO FINAL: 50 g de bacon bem picado, 1cebola bem picada, 2 dentes de alho bem picados, 2 talos decebolinha verde bem picados, 1 folha de louro, 25 ml decachaça, 25 ml de suco de laranja. ACOMPANHAMENTO: arroz branco, couve cortadafininha (frita em azeite de oliva e temperada com sal, pimentae alho), laranjas descascadas e cortadas em fatias, pimenta,farofa.
PREPARO:•Escolha e lave o feijão. Lave as carnes salgadas e deixe demolho, por 48 horas.•Leve o feijão ao fogo com a água que ficou de molho. Deixe
levantar fervura e escorra, descartando a água.•Troque a água das carnes. Ferva e escorra.•Pique e triture todos os temperos, misturando a cachaça(indispensável para ajudar a digestão).•Junte os temperos ao feijão e deixe marinando, por quatrohoras.•Leve o feijão ao fogo, com bastante água, juntando primeiroas carnes mais duras. Deixe cozinhar até ficar macio.•Junte por último as carnes mais tenras – lingüiça, lombo,paio e o peito refogado. Pingue água fria durante ocozimento, se o feijão começar a secar.
•Quando o feijão estiver cozido retire e corte as carnes.Troque o feijão de panela e junte as carnes cortadas.•Para realçar o sabor faça um refogado com cebola, alho,cebolinha, louro e bacon bem frito. Adicione cachaça e sucode laranja. Misture esse refogado ao feijão e ajuste o sal.
* Os sertanejos usam uma medida que não falha, para calcular o
tanto de feijão por pessoa – juntam-se os dedos da mão em cuia,
cheia de grãos. Essa é a porção por pessoa. Como feijoada é prato
generoso, sugere-se colocar, no fim, uma porção extra na panela.
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professorae-mail: [email protected]
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al concluiu seu longa-metragem Dias de Nietz-
sche em Turim, recém-lançado no Rio e em SãoPaulo e premiado no último Festival de Veneza, o ci-neasta Julio Bressane, 56 anos, já está mergulhado nospreparativos de seu próximo projeto, Filme pornográ-
fico. Será seu 36o filme, numa carreira iniciada nosanos 60 e sempre caracterizada pela inventividade, pe-la ousadia formal e pelos baixos orçamentos.
Apesar de historicamente ligado a um cinemade resistência, Bressane vem acumulando prêmios emfestivais internacionais com seus últimos trabalhos, co-mo Miramar, O mandarim e São Jerônimo. Outro sinal
42 Continente Multicultural
Julio Bressane
Apesar de historicamente ligado aum cinema de resistência, o
cineasta vem acumulando prêmiosem festivais internacionais com seus
últimos trabalhos, como Miramar ,O Mandarim e São Jerônimo
Luciano Trigo
Marginal e premiado
M
Bressani acaba
de concluirDias de Nietzscheem Turim,
seu 36º filme
C I N E M A
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de reconhecimento é a retrospectiva completa de suaobra que será feita no segundo semestre em Turim –cidade que o cineasta visitou em diversas ocasiões nos
últimos anos com sua mulher, a co-roteirista Rosa Dias. Dias de Nietzsche em Turim recria a passagem do
filósofo alemão pela cidade italiana entre abril de 1888e janeiro de 1889, período de grande fertilidade paraNietzsche, que escreveu ali alguns de seus principaislivros, como Ecce homo e O crepúsculo dos ídolos. Alémde receber o Prêmio Bastone Bianco em Veneza – hon-raria só concedida a Stanley Kubrick, Jean-Luc Go-dard e Abel Ferrara – o filme foi recebido com en-tusiasmo nos festivais de Frankfurt, Roterdã e Brasília.
Bressane começou a filmar ainda criança. Pro-fissionalmente, estreou como assistente de direção deWalter Lima Junior em Menino de engenho (1965), par-ticipando em seguida da criação do chamado Cinema
Marginal. Em 1967 dirigiu seu primeiro longa, Cara
a cara, e três anos depois fundou a produtora Belaircom seu amigo Rogério Sganzerla. Em três meses, os
dois produziram sete filmes. Outros títulos de desta-que em sua carreira foram O anjo nasceu, Matou a fa-
mília e foi ao cinema e Brás Cubas
Nesta entrevista exclusiva, Bressane fala sobre Dias de Nietzsche em Turim, critica os orçamentos milio-nários do cinema brasileiro, reafirma seu impulso ex-perimentador como cineasta e lembra suas conversastelefônicas com Jorge Luis Borges.
Fale sobre seu próximo projeto, Filme porno-
gráfico
.
É uma fábula popular, suburbana, que trans-cria o mito das três graças, o mito da Vênus terrestreque projeta e é protegida por uma trindade. É um as-sunto que já foi muito bem estudado por teóricos dapintura moderna. É uma história passada hoje, sobretrês pessoas comuns – um barbeiro, uma manicure euma ascensorista – que se encontram e, através de umprocesso que envolve o prazer sexual e o espiritismo, sepõem em contato com essas entidades. De alguma ma-neira elas revivem essa fábula das graças, pois ocorre
uma espécie de hiato no martírio da vida de cada um,no seu cotidiano de calvário. É uma ilusão temporária,uma ilusão do prazer.
Você considera que ainda faz um cinema deresistência?
Se for no sentido de uma resistência criadora,sim. A resistência é uma forma de estar aberto para ofuturo. Do ponto de vista da criatividade e da graça, ascoisas estão muito banidas, muito ausentes. Eu façoum cinema experimental, mas todos os conceitos liga-
dos à idéia de “cinema de autor” hoje estão afásicos,dizem muito pouco sobre o que é importante, repetem jargões e clichês velhos. Escondem muito. “Poucos re-cursos, muita inventividade”: isso é uma fórmula quenão quer dizer nada, porque o experimentalismo nãoestá aí, e sim numa dificuldade, num esforço, que sóacontece depois da saturação e da sedimentação demuitas coisas.
Você é contra, então, movimentos como oDogma 95, que chega a propor um decálogo com re-gras para um cinema de invenção?
Isso é algo infantil e inútil. Mas, por outro lado,é bom que se faça, porque há coisas muito piores sendo
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feitas por aí. Esses decálogos só não ensinam uma coi-sa: como fazer. Esta é a questão. A montagem dos fil-mes do Dogma não me agrada, porque no Brasil já fi-zemos aquilo há 25, 30 anos. Câmera na mão, luz am-
biente, som direto... Isso tudo é velho. Mas ainda assimpode servir como um alerta, como um foco de luz parao que conta, que é o cinema em si. O Dogma apontapara a linguagem do cinema, e nesse aspecto, é bom.
O impulso que o movia a fazer filmes há 30
anos ainda é o mesmo?
A única coisa que revoluciona de verdade é odesejo. O amor é uma coisa contínua, permanente. Oque muda são os seus objetos. No cinema é a mesmacoisa, os objetos mudam, os temas que me emocioname entusiasmam mudaram, mas o prazer continua. Oentusiasmo leva ao encontro, que é uma maneira desair de si mesmo. Acho que sempre buscamos isso, oextra-si, o movimento para fora, o multiplicar-se. Na verdade, quando você dirige um filme, você faz umacoisa que não sabe o que é. Se soubesse, talvez nãofizesse, porque perderia o prazer. Você faz para se livrarde algo que não sabe bem o que é. Você conduz oprocesso criativo só até um determinado ponto. E,partir dali, é ele que te conduz. Eu procuro interferir o
mínimo possível nesse processo...Todos os seus últi
mos filmes foram premiados
na Europa. Não é estranho que alguém ligado ao ci-nema marginal viva hoje uma rotina de premiações em
festivais internacionais?
Essa história de cinema marginal é muito com-prida e desconhecida, é uma história ainda sem his-tória. Quem viveu, quem fez, ainda não narrou essahistória, continua algo interdito. Mas eu realmente mesurpreendo com a minha sobrevivência no cinema; é
um milagre sobreviver fazendo filmes criativos. É cla-ro que não sou insensível a prêmios, mas isso nunca foiuma coisa importante. Por outro lado, se eu nuncapensei no reconhecimento, ele nunca esteve longe demim. Sempre tive estímulos.
Como nasceu o projeto de filmar ias
de
Nietz
-
sche
em
Turim
?
Li Nietzsche de maneira selvagem, mas a apro-ximação maior, mais sofisticada, se deu sob a orien-tação da minha mulher, Rosa Dias, naturalmente. Elafaz há mais de dez anos uma pesquisa que inclui a pas-sagem de Nietzsche por Turim. A partir de 1994, eu
também mergulhei na pesquisa, lendo não só Nietz-sche, mas uma série de outros autores que mediaramesse contato com o filósofo. Em Nietzsche, o estilo e acomplexidade do texto estão imbricados com as idéiasfilosóficas. Ele é um artista, ele põe a arte na filosofia.De 95 em diante, fizemos uma viagem ano sim, anonão a Turim. A pesquisa foi extraordinária, e eu reunium material enorme sobre o que aconteceu com ofilósofo na cidade, os cadernos que ele escreveu etc. Euqueria fazer um pequeno filme sobre um grande tema,mas a questão era ver como fazer cinema desse ma-terial, identificando o que, no texto, podia ser trans-criado em imagens, traduzido de uma linguagem paraoutra, intersemioticamente. Busquei os textos que su-gerissem um movimento, uma imagem, um conceito...
Isso sim foi difícil. Escolhi três idéias do Nietzsche: o jogo das perspectivas, o esmaecimento do sujeito e osentimento do apolíneo e do dionisíaco. Trabalhei comesses três núcleos, por exemplo, vertendo em imagenso conceito de relatividade das verdades, que traduzicom as diferentes texturas da película. Usei sete ou oitotexturas diferentes – 35mm, 16mm ampliado, cines-copagem – para traduzir esse conceito. Tudo no filmetem um sentido, até o copo d’água que acompanhaNietzsche. Ele dizia que o copo d’água era como umcachorro, que sempre o acompanhava. Até nisso ele
inseria a filosofia. Nietzsche quebrou a barreira entrefilosofia e vida, misturou as duas coisas. Ele escrevepara uma mulher convidando-a para vir a Turim to-mar sorvete, e também insere a filosofia aí, ou numpasseio pela ponte... Tudo isso é muito forte, mas difícilde transformar em filme, a não ser que seja uma merailustração. Um filme que recrie Nietzsche com auto-nomia é algo muito raro. A idéia de transformar umaimagem fixa em movimento, também nietzschiana, es-tá presente na animação de 12 fotos que compramosnos Arquivos Weimar, algumas delas quase inéditas.As fotos ganham um movimento sutil, como se fosseuma filmagem feita no final da vida do filósofo.
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“É um milagre sobreviver nocinema fazendo filmes
criativos, como eu faço.Não sou insensível a prêmios,mas isso nunca foi uma coisaimportante”
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Essa idéia de tradução é muito presente em seutrabalho não?
Poucos cineastas, como Godard e Straub, sou-beram fazer bem essa tradução intersemiótica. Porque,
no cinema, de uma maneira geral, e não apenas emHollywood, o que se valoriza é o entrecho, a história,o enredo, o plot. Mas isso é apenas uma pequena parte,um ingrediente entre muitos outros do cinema. A tra-dução intersemiótica se preocupa com o estilo, e comsua superação. É uma operação experimental, sem re-gras, fórmulas, sistemas... Depende da intuição, dosentimento. Isso me aproxima da zona central doprazer do cinema – e também da música, da literatura,da dança, de algumas ciências... Traduzir um texto deGuimarães Rosa para o cinema exige que se conheçabem o Rosa, claro, mas exige que se conheça aindamais a linguagem do cinema, pois é à tela que você vaichegar. Tem que saber como provocar no espectador oque o texto escrito provoca no leitor. Essa aproximaçãode dois objetos é rara. O processo, de Orson Welles, porexemplo, é um grande filme. É a tradução que oWelles conseguiu fazer do livro do Kafka, mas comum repertório próprio. Há outras versões, outros pon-
tos de vista, mas Welles percebeu a questão da lingua-gem e recriou em cima dela, com a montagem, comalguns paradoxos narrativos, com audácias formais...
Depois de dirigir ias
de
Nietzsche
em
Turim
você concorda com Caetano Veloso quando ele diz
que só é possível filosofar em alemão?
Isso é só uma frase, não é uma fórmula. Nemsei se essa frase é do Caetano mesmo, deve ser de outrapessoa... Não sei alemão, mas quero dizer uma coisasobre isso. As línguas não são sinônimas. Cada línguareflete uma maneira diferente de sentir o mundo, umaperspectiva única. O Nietzsche em português exigeuma operação tradutória que, tirante alguns trabalhoslouváveis, como o de Paulo César Souza, ainda não foifeita. É preciso quase criar uma língua dentro da lín-gua portuguesa para traduzi-lo. Nietzsche chegou aoBrasil em 1895, num artigo de João Ribeiro. Depois José Veríssimo, Araripe Junior e Agripino Grieco tam-bém o apresentaram em seus textos. Eu me interessei justamente por essa visão extra-européia do Nietzsche,pelo Nietzsche em português falado no Brasil, umalíngua mais bárbara, com a nossa dicção. A história da
Cena deDias de Nietzsche
em Turim,recém-lançado noRio e São Paulo, epremiado no últimoFestival de Veneza
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recepção de Nietzsche em língua portuguesa, mos-
trando os instrumentos que se criaram na língua paraassimilá-lo, ainda não foi contada. Sequer existe umatradução completa de Nietzsche em português, os es-critos póstumos permanecem inéditos. Ele próprio falada necessidade de uma perspectiva extra-européia, danecessidade de incorporar as forças dos índios peles- vermelhas, da maravilhosa civilização moura de Anda-luzia, forças que seriam um antídoto para as coisas ne-gativas da Europa, como o nacionalismo. A culturaeuropéia precisava de uma visão de fora.
E o público europeu entendeu isso? Sim. Miramar e São Jerônimo já tinham tido umaótima recepção em festivais europeus. Mas imagineique encontraria uma certa resistência ao Dias de Nietz-
sche, até porque cada europeu tem sua visão particulardo filósofo, há uma briga pelo espólio de seu pen-samento. Eu cheguei com o Nietzsche em português, eo público ficou entusiasmado. Um público selecionado,ligado à filosofia. No dia em que eu ia embora, opresidente do festival ligou para o meu quarto dizendopara eu ficar mais um dia, porque receberia um prêmio.A crítica puramente de cinema não se sente equipadapara falar, mas a platéia mais especializada ficou deli-ciada com o filme, que foi considerado antecipador.
Dias de Nietzsche em Turim custou 250 mil reais.
Você se sente indignado diante dos orçamentos milio-nários de algumas produções brasileiras?
Não pelo orçamento em si, mas pela impostura.Poderiam gastar até mais. Mas é dinheiro público, quedepende de um direcionamento político, através da leido audiovisual. Depende do grau de aproximação como poder, depende de saber quais são as empresas, ge-ralmente as estatais, que têm dinheiro a investir, sabercom quem falar. Os projetos em si não valem nada.Valem os contatos políticos, a intimidade com o poder.Isso num cinema como o brasileiro, que não tem in-
dústria, é absurdo. Importamos negativo, material defilmar, câmera, carrinho... Tudo é importado. Que ne-cessidade temos de seguir o modelo americano de ci-nema, do qual nunca chegaremos nem perto, se qui-sermos copiar? Isso quando temos uma tradição deautonomia, de experimentação, de humor no nossocinema. Os filmes que ficaram foram esses, e não sãomais feitos, porque se elegeu uma política de feudos,fazendária, terrível. Um modelo de filme passou a pre- valecer: o filme de público. Só que ele não tem públicoe dá um prejuízo enorme. Só é bom para o produtor,que ganha milhões com a engenharia de produção...Não com a bilheteria, porque esta não existe. Verda-deiros paquidermes pré-diluvianos. Todo o cinema
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Rogério Sganzerla,companheiro deBressani nos dias
heróicos do cinemamarginal
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brasileiro é assim. Um ou dois cineastas brasileirossaem disso aí. Cada um faz o que pode, mas como setrata de dinheiro público e da ausência de bilheteria,deviam dar chance a outros tipos de cinema. Todos osfilmes que conseguem captar milhões são iguais. Os
que não fazem isso são rotulados de experimentais,“pouco orçamento e muita criatividade”. É uma men-tirada, uma impostura que é repetida há 40 anos portoda a imprensa.
Quem se salva nesse cenário?Eu considero Rogério Sganzerla um gênio, um
estilista do cinema, uma coisa rara, um dos melhorescineastas do mundo. Nem tudo é verdade e Tudo é Brasil
são duas jóias, duas obras-primas de invenção inter-
semiótica. Ivan Cardoso, também o admiro muito. Fazum cinema de invenção, tem grande talento.
O que você achou de Lavoura arcaica?
Eu me sinto constrangido de falar, porque seique é gente que gosta de meus filmes, que procura fa-zer coisas que eu fiz, e tem uma certa relação criativacomigo... Mas cinema é uma coisa... Não é como lite-ratura, não é como música, não dá para ensinar. Vocêaprende fazendo, e isso demora. Godard mandava pe-gar um plano do Eisenstein e tentar imitar, para ver
como é difícil. O cinema depende de uma percepçãoque não deriva só da vontade. Uma coisa é falar, outracoisa é a imagem. Televisão e publicidade são coisasdiferentes, e fazer essa mestiçagem é complicado, por-que o cinema já tem um repertório de clichês muito cer-rado. É preciso fazer muito para se livrar de certos ví-cios. Eu vejo uma presença muito forte da linguagemda televisão e do cinema na montagem e no enquadra-mento de filmes como Central do Brasil, por exemplo.
O cinema mundial atravessa uma crise?Aqui e ali tem gente nova, mas há um recuo do
cinema criativo. Quanto mais se avança, maior é a difi-culdade. Há uma grande perplexidade no mundo in-
teiro em relação à ausência de talento. As coisas estãomuito iguais. E hoje as pessoas se contentam com
muito pouco. Mas talvez a verdadeira questão seja a vitória da civilização do trabalho. A arte só pode ir atéum determinado ponto, porque você está falando comgente que está cansada, que passou dez horas traba-lhando num escritório... Então o prazer do pensa-mento é hoje quase inexistente, porque ninguém temmais cabeça para nada, está todo mundo exausto. Ocinema e o teatro têm que se adequar a pessoas que nãotêm formação, que quase não lêem... As pessoas hojeestão muito exauridas, vão ao cinema e dormem. Éuma outra disponibilidade. A pressão do trabalho, da
necessidade de sobrevivência, não tinha essa intensi-dade de hoje. Outra coisa: a televisão hoje é um parâ-metro, um contraponto, um campo de tensão paraquem faz filmes. Então fazem sempre mais ou menoscomo TV. O grau de contaminação semiótica hoje ébanal, e quem está acostumado com a TV talvez nãoqueira pagar 15 reais para ver algo muito diferente,ainda mais se não tem esse dinheiro. É essa falta dediscernimento que torna o Brasil diferente dos outrosmundos. Quer imitar a casca sem ter estrutura paraisso. Mas não precisa estar caudatário disso, não pre-cisava criar essa impostura, esse arsenal de mentiraslevando o minueto, quando se podia fazer outro tipode produção. A “produção experimental marginal”fica com as migalhas, e os outros, que não estãofazendo nada – se fosse uma indústria, ainda vá –,ficam com tudo, por eleição política, sem mérito algumde criação ou público. Autoritarismo e prepotênciaabsurdos, muito típicos de como se dão as coisas noBrasil O cinema, em seu comportamento, suas lide-ranças e seus porta-vozes, é muito semelhante ao que
existe na política brasileira, infelizmente. Essa coisa dea política ser a realidade, a burocracia... Lamentável.
Como avalia a importância de Mário Peixoto?Mário Peixoto fez um filme só, aos 18 anos, o
que é genial. Mas Limite é quase um acontecimentoespírita. Nunca fui da corriola que endeusava MarioPeixoto, mas fui talvez o primeiro cineasta do Brasil aestabelecer uma conversa cinematográfica com Limite,no meu filme A agonia.
Fale sobre o começo da sua carreira, nos anos 60.Eu comecei a fazer filmes antes de 1960. Já em
58, 59, com 12, 13 anos, ganhei numa viagem aos
Continente Multicultural 47
“Cinema não é como
literatura, aprende-se fazendo,e isso demora. Godardmandava tentar imitar umplano do Eisenstein, para ver como é difícil”
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Estados Unidos uma câmera de filmar de três lentes e
um projetor de 16 mm. Lá mesmo comecei a filmar.
Inseri imagens dessa tomada em A família do barulho,
onde eu apareço menino, mostro uma tomada da
ponte de Nova Iorque... Em 1964, 65, conheci Glau-
ber Rocha, no saguão do teatro Maison de France.
Um crítico, José Paes, nos apresentou. Glauber estava
mixando Deus e o Diabo na Terra do Sol no estúdio da
Atlântida, na rua México. Ele ia filmar em seguida
Senhora dos afogados, baseado na peça do Nelson Ro-
drigues, e me chamou para ser seu assistente. O filmeacabou não saindo. Glauber ganhou um financia-
mento da Caic, órgão do Carlos Lacerda, para pro-
duzir o filme do Walter Lima Jr., que tinha sido seu
assistente. Ele produziu o primeiro filme do Walter
Lima, e eu passei a ser assistente de Menino de engenho,
filmado na Paraíba, enquanto o Leon Hirzman fil-
mava A falecida, baseado no Nelson. Trabalhei tam-
bém como assistente em A viagem, de Fernando Cam-
pos. Nesse mesmo ano, final de 65, dirigi meu pri-
meiro filme, um curta sobre Lima Barreto. Em segui-da fiz um filme com a Bethania e outro com a Elis
Regina. Cheguei a começar a montar, mas esse mate-
rial desapareceu inexplicavelmente. Era uma produ-
ção do David Neves, que tinha os negativos. Fui para
a Europa em 66. No início de 67, de volta, iniciei a
produção do meu primeiro longa-metragem, Cara a
cara. Depois fiz dois filmes, ao mesmo tempo em 67,
O anjo nasceu e Matou a família e foi ao cinema. Eram
dois manifestos, em busca de alternativa para o for-
mato de cinema criado pela Embrafilme. Nesse ano eu
e Rogério Sganzerla participamos do Festival de Bra-sília, e nossa admiração recíproca resultou na Belair.
Fizemos sete longas-metragens em dois meses. Mas a
criação desses filmes da Belair provocou uma grande
convulsão, e os filmes teriam feito grande sucesso se
tivessem sido lançados. Matou a família foi lançado em
11 cinemas e, na segunda semana, foi retirado pela
censura. A política da Embrafilme era contra isso.
Esses filmes foram acusados de serem ligados ao
terrorismo. O general Silvio Frota me disse pessoal-
mente que eram filmes financiados pelo Marighella. E
ainda devo a ele não ter sido preso. Mas a censura foi
feita pelo próprio meio, que estava encastelado e se
sentia ameaçado. Na Europa fiz alguns filmes, a maio-
ria se perdeu. Dos 36 filmes que dirigi ao todo, seis se
perderam. Voltei em 74 e continuei, com muita difi-
culdade, remando contra a maré, a fazer filmes, sem-
pre com orçamentos baixos. Você não faz os filmes que
quer, faz os filmes que pode.
Fale sobre Glauber Rocha como criador e
como agitador cultural. O Glauber é um pai que os
cineastas brasileiros precisam matar no sentido psica-
nalítico?
Não gosto dessas fórmulas psicanalíticas. Euainda não fiz, nem sei se ainda vou fazer, uma reflexão
sobre o Glauber. Fiz alguma crítica cinematográfica
sobre coisas que me interessaram, outras nem tanto,
outras desprezíveis na obra dele. Terra em transe me
interessa; é um dos filmes com que eu procurei esta-
belecer um diálogo em Cara a cara. Mas os filmes que
ele fez na Europa eu acho uma porcariada, como O leão
de sete cabeças, e mesmo O dragão da maldade. Mas
gostei muito de A idade da terra, que, segundo o próprio
Glauber, foi um filme feito para dialogar com o meucinema. Glauber foi muito mal interpretado, e,
curiosamente, não deixou ninguém, nada, nenhuma
influência no cinema brasileiro. Não há nada mais dife-
rente dos filmes de Glauber que os filmes brasileiros de
hoje. Glauber foi um sujeito enterrado pelos amigos.
Em seu livro inem nci
você escreve um belo
texto sobre Jorge Luis Borges que para se evadir da
realidade do peronismo ia buscar fora de seus contem-
porâneos fora do espírito e dos gostos da época influ-
ências que convinham à sua intuição refugiando-senos clássicos da literatura inglesa. A maioria de seus fil-
mes trata de personagens de outras épocas – São Jerô-
nimo Padre Antonio Vieira Machado de Assis etc.
Isso é porque você se sente um exilado no presente?
Talvez, mas para mim isso é uma coisa incons-
ciente. A escolha de meus temas é quase involuntária,
são coisas que me dão prazer, das quais me sinto pró-
ximo e que compreendo, até por temperamento. Não
é uma forma de evasão da realidade, porque para mim
tudo faz parte do real: todo o passado, toda a memória,
os sonhos que eu tenho, tudo isso é real. Essa idéia de
separar o mental do físico para mim não existe, aliás,
talvez o físico só exista em função do mental. Fazer um
48Continente Multicultural
8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues
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filme sobre São Jerônimo é uma forma de penetrarprofundamente na realidade, não de me evadir – tantoque acabei entrando numa coisa fortíssima no Brasil, omito do deserto, do sertão.
Conte como foi seu contato com orges.Conheci o Borges pelo telefone, em 1982. Ele
veio ao Brasil e não fui vê-lo, porque não quis quebrara relação misteriosa que eu mantinha com ele por tele-fone. Borges era um solitário, você telefonava e ele es-
tava em casa. Eu tinha o projeto, que ainda vou reali-zar, de filmar um texto que escrevi a partir da lenda deBilly the Kid, chamado O garoto. Borges tem um textoem História universal da infâmia, com uma visão ex-traordinária e original, uma leitura da infância de Billy The Kid, que retrata um personagem negativo, ummenino ruim que gostava de matar e morreu falandopalavrões em espanhol. Aí liguei para ele querendocomprar os direitos do texto. Consegui o telefone deleno catálogo: Calle Maipu. Atendeu uma governanta
que tomava conta dele, Fanny, que ficou minha amigapor telefone. Ele me sugeriu livros, como The gangs of
New York, e outro de um folclorista americano, Nike.Hobsbawm tem um texto muito bom sobre Billy TheKid em Bandidos, mas demonstra um talhe comunistameio datado... Ele tem sempre uma explicação eco-nômica e social, não acredita em psicologia. Todo mêseu ligava para Borges, só uma vez ele me ligou e minhafilha de 5 anos atendeu: “É o senhor Borges”. Saí cor-rendo para atender. Uma vez ele me disse que com odinheiro que eu gastava nas ligações eu poderia com-
prar suas obras completas. Resumindo, ele não quis vender o texto, alegando que não lhe pertencia, que erauma lenda, uma colagem de vários textos... Borgestinha no final da vida um pouco a idéia do Flaubert, defazer um livro só com palavras alheias, sem escrevernada ele próprio. Mas ele era um relojoeiro, bastavatrocar um advérbio para mudar o sentido da frase. Atéque um dia liguei, e ele disse que estava muito doente,pediu que eu não ligasse mais. Logo depois foi para aSuíça e morreu. Casou com a Maria Kodama e mor-reu. Foi para a Suíça para morrer.
Continente Multicultural 49
Filmografia de Julio Bressane
Lima Barreto: trajetória (1966)
Bethania bem perto (1966)
Cara a cara (1967)O anjo nasceu (1969)
Matou a família e foi ao cinema (1969)
A família do barulho (1970)
A miss e o dinossauro (1970)
Barão Olavo, o horrível (1970)
Cuidado, madame! (1970)
A fada do oriente (1971)
Amor louco (1971)
Memórias de um estrangulador de loiras (1971)
Lágrima pantera (1972)
O rei do baralho (1973)O monstro Caraíba (1975)
A agonia (1977)
O gigante da América (1978)
Viola chinesa: meu encontro com o cinema brasileiro(1979)
Cinema inocente (1981)
Tabu (1982)
Brás Cubas (1985)
Os sermões – a história de Antonio Vieira (1989)
Galáxia albina (1991)Oswaldianas: quem seria o feliz conviva de IsadoraDuncan? (1992)
Galáxia dark (1993)
Antonioni Hitchcock: a imagem em fuga (1993)
O cinema do cinema (1993)
O mandarim (1995)
Miramar (1997)
São Jerônimo (1998)
Dias de Nietzsche em Turim (2002)
Cena de Matou a famíliae foi ao cinema,
1969
Luciano Trigo é jornalista F O T O : D I V U L G A Ç Ã O
/ A E
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or enquanto, o digital ainda carece da riqueza,precisão e, sobretudo, da força emotiva que a ima-gem fotografada em película inegavelmente tem”. Comessas palavras, o cineasta David Lynch jogou uma de-licada carga de frieza nas discussões em torno do prin-cipal tema em questão, esse ano, no que envolve tecno-logia e cinema: o Sistema Digital. Para se ter uma idéia,o último Festival de Cannes tornou-se a maior vitrine domundo para as mudanças tecnológicas que estão revolu-cionando o olhar da arte cinematográfica. Foi tambémuma edição histórica do festival, que aceitou, pela pri-
meira vez, filmes pensados, realizados e, mais impor-tante ainda, apresentados no novo formato, oficializandoassim uma revolução que está mudando a forma comoo cinema é feito pelo artista, e visto pelo espectador.
Para entender o que está acontecendo, e o por-quê de essa movimentação ganhar status de “revolu-ção”, é preciso saber que desde que o cinema surgiu,há mais de 100 anos, imagens, até há pouco tempo,eram captadas e apresentadas dentro de um mesmoprocesso fotoquímico.
Com uma câmera de cinema e suas lentes, ima-gens são registradas num filme (ou película cinema-tográfica) de 35mm (ou 16mm como bitola alterna-tiva). O filme é revelado em laboratório através de pro-
cesso químico e copiado em rolos, que são montadosnum projetor dotado de sistema de transporte que faráa película deslizar na frente de uma lâmpada, que jogaa imagem na tela.
Com o sistema digital, a imagem também écaptada por uma câmera, mas armazenada em fitasdigitais ou discos. A linguagem digital transforma assuas informações em seqüências de 0 e 1. Dependendoda qualidade da câmera utilizada, a imagem pode sermais ou menos nítida. Nos últimos dois anos, desen- volvimentos nessa área têm transformado a imagem
digital e feito cineastas repensarem a questão da “qua-lidade”, que já começa a rivalizar com aquela do35mm, muito embora cineastas “puristas”, como opróprio Lynch ou Steven Spielberg, discordem.
Na edição de junho da revista americanaWired , Spielberg disse em entrevista que “fui um dosprimeiros cineastas a utilizar o digital para sublinharmeus filmes, mas serei o último a utilizar o digital paracaptar imagens”. Dos 22 filmes apresentados emCannes, quatro foram realizados digitalmente – Arca
russa ( Russian ark), de Alexander Sokurov, o iranianoTen, de Abbas Kiarostami, o inglês 24 hour party people,de Michael Winterbottom, e o chinês Plaisirs
inconnus, de Jia Zang-Ke.
50 Continente Multicultural
Um novomodo de olhar
Filmes que utilizam o sistema digital estão apresentando modificações naprópria linguagem cinematográfica, bem como na difusão e comércio do
cinema, e podem se consolidar como a nova tendência internacionalKleber Mendonça Filho
P“
F O T O S : D I V U L G A Ç Ã O
A equipe defilmagem de
ca russa, percorreus corredores e salaso museu Hermitage
num único take de90 minutos
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Já há mais de 10 anos que o formato digital fazparte do cinema, da captação, edição e reprodução desom à montagem dos filmes. Na captação de imagensé mais recente. Cannes mantinha relacionamento es-
treito com o digital, muito embora os filmes, até o anopassado, fossem obrigatoriamente transferidos para oformato película 35mm para exibição.
Em 1998, o dinamarquês Festa de família
( Festen), de Thomas Vinterberg, rodado com uma câ-mera caseira de vídeo, ganhou o prêmio do júri. Em2000, o presidente do júri foi o cineasta francês LucBesson, um dos maiores divulgadores de novas tecno-logias na Europa. Ele deu a Palma de Ouro a Dançando no escuro ( Dancer in the dark), de Lars VonTrier, inteiramente rodado com pequenas câmeras de vídeo digital.
Esse ano, pela primeira vez na história dofestival, cineastas selecionados não precisaram transfe-rir seus filmes originalmente captados com câmerasdigitais para o suporte filme 35mm, o padrão mundialde projeção e captação há mais de 100 anos.
A diferença é que, ao invés de uma tira de filmecorrendo pelo projetor em frente a um facho de luz, aplatéia viu pela primeira vez filmes projetados a partirde informações armazenadas na memória de um com-
putador e transformadas em luz via projetor digital deimagem. As duas principais salas do festival, a Lu-mière e a Debussy, foram equipadas paraesse novo formato de apresentação.
Mas, que olhar novo é esse?Quais são os principais pontos de dis-cussão? Pelo que pôde ser visto, o digitalpode representar hoje a tomada de no- vos rumos para a imagem, para a lin-guagem cinematográfica, para a difusãodo cinema como arte e comércio. Pode
tanto representar mais um novo e eficazinstrumento de domínio para a indús-tria hollywoodiana, como um canal sau-dável de difusão da arte cinematográficapara pequenos realizadores em circuitosalternativos.
Na verdade, o cenário é mesmoconfuso. George Lucas, que seria nor-malmente associado ao domínio tecnoló-gico de Hollywood no mundo, apre-senta-se como um independente visio-nário, à frente de uma revolução na quala própria Hollywood ainda não põe fé.Todavia, é inegável que essa experiência
técnica só poderia ter sido pensada por um visionário.O produtor de Lucas, Rick MacCallum, explica quecerca de 100 salas especialmente equipadas para pro- jetar o formato digital estão mostrando O ataque dos
clones, o 2º episódio de Guerra nas estrelas, nos EstadosUnidos. Os estúdios estão interessados nos cerca de800 milhões de dólares que irão economizar por anona confecção de cópias 35mm e no transporte dasmesmas. Cada cópia custa cerca de 1,5 mil dólares epesa 35 quilos. Com o digital, o cinema recebe o filme via satélite, numa versão mais sofisticada de um e-mail
com material anexado e criptografado. Com isso, nãohá custos de copiagem ou transporte. “O problema éque eles querem economizar sem investir, sem investirnuma tecnologia que eles (os estúdios) ainda julgamalienígena”, diz MacCallum.
Num outro lado da discussão, o produtor e exi-bidor independente francês Marin Karmitz, à frenteda sua empresa MK2, em Cannes com Ten, de Kia-rostami, reflete: “A tecnologia será transformada, claro,em mais uma avenida para Hollywood divulgar seusprodutos mundialmente. Essa tecnologia me interessaparticularmente ao viabilizar a difusão de filmes eco-nomicamente modestos e artisticamente ambiciososque, cada vez mais, perdem espaço”.
Karmitz instalou o seu primeiro projetor digitalnum complexo de salas em Beaubourg para exibir
Continente Multicultural 51
Cena de Arca russa,de Mikhail Piotrovsky,mostrando uma dassutuosas salas do
museu Hermitage,em São Petersburgo
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ABC África, filme anterior de Kiarostami, rodado emformato DV ( digital video). “É o caso de adequar aproposta técnica e estética à apresentação”, disse.
O russo Alexander Sokurov apresenta inte-ressante contraponto à carnificina “numérica” deLucas, mostrando 90min ininterruptos captadoscom uma câmera digital de alta definição dentro domuseu Hermitage, em São Petersburgo, Rússia, noseu Arca russa.
Sokurov realizou o sonho que Hitchcock nãopôde concretizar em Festim diabólico ( Rope, 1948), exa-tamente por causa das limitações técnicas do formato“filme” (um rolo de filme 35mm dura, no máximo, 9min). No filme de Hitchcock, a cada 10 min ele tentavaesconder um corte para dar início a um novo plano e darcontinuidade à ilusão de que Festim diabólico era umatomada contínua, filmada e desenvolvida em tempo real.
Sokurov captou seu suntuoso passeio de1.800m pelos corredores e salas do Hermitage numúnico take de 90 min, fazendo de Arca russa nãoexatamente um filme, mas uma experiência carregadade história e identidade cultural onde o próprio tempo(o real, 90min) é desdobrado dezenas de vezes dentrodo tempo “cinema”, o filme nos levando a diversas
passagens importantes da história russa.Curiosamente, Arca russa, o primeiro filme pro- jetado digitalmente na história da competição deCannes, apresenta um “defeito” técnico cuja essência étotalmente orgânica dentro da linguagem técnica cine-matográfica, que suscita mais discussão sobre a in-compatibilidade entre os formatos “cinema-fil-me”/“cinema-digital”.
O “defeito” surge da impossibilidade de umfilme de 90 min ser apresentado de forma cem porcento contínua em cópia 35mm, o que nos leva de volta ao problema que Hitchcock tentou driblar.
Ao ser projetado digitalmente em Cannes, Arca russa foi mesmo contínuo, inteiro. Quando for apre-
sentado em 35mm em outros festivais, ou mesmo nocircuito exibidor convencional (a Mais Filmes, deLeon Cakoff e Adhemar Oliveira adquiriu o filme para
distribuição no Brasil), terá que ser dividido em car-retéis de 20 min com as habituais mudanças de rolo.
Cada mudança, por mais discreta que seja,provoca um leve pulo na imagem, neutralizando a sen-sação de fluência e continuidade das imagens de Soku-rov. Seu filme digital será adulterado pelo “cinema-filme” e, com o desgaste inevitável das cópias durante oprocesso de exibição, esses “pulos” serão ainda maiores.
A julgar pela apresentação desses filmes, o queo público pode esperar? Tanto Episódio 2 quanto Arca
russa revelaram-se experiências de olhar radicalmentediferentes de uma projeção em filme. Não exatamentemelhor, nem pior, uma vez que a projeção “numérica”tem a sua própria identidade de imagem. Nitidez,aparentemente, nunca será motivo de reclamação, nemcores esmaecidas. Não é cinema, nem tampouco aqui-lo que os últimos 20 anos nos ensinaram em relação aoformato “vídeo”.
Interessante observar também em Cannes, esseano, a proliferação de filmes que, auxiliados por essetipo de tecnologia, investiram no “plano-seqüência”,
ousadia nobre de linguagem que tem em Hitchcock eOrson Welles seus grandes padrinhos. Ten, de AbbasKiarostami, cujo título ( Dez) é uma referência aos dezplanos que compõem o filme, todos gravados com acâmera fixa dentro de um carro, registrando a angústiade seis mulheres iranianas novas discutindo a vida.
O plano-seqüência (cerca de 14) também foidigitalmente viabilizado pelo diretor franco-argentinoGaspar Noé, que parece ainda revolucionar a utiliza-ção de ultraviolência no seu controvertido Irréversible.
F O T O S : D I V U L G A Ç Ã O
Cena deO ataque dos clones,
de George Lucas
Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema
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Continente Multicultural 53
e o cinema é uma representação da realidade,filtrada por uma estética e uma gramática pró-
prias, o que acontece quando a realidade é meticulo-samente perseguida pelo cinema através de novastecnologias, e o foco é a violência na sua forma maisabjeta? O que ocorre quando um cineasta utilizanovas ferramentas para testar os limites da brutali-dade cinematografada? Assistindo a Irréversible, filme
de Gaspar Noé (autor do não menos provocante Seul contre tous, prêmio da crítica em Cannes 1997 e iné-dito comercialmente no Brasil), experimenta umestranhamento o espectador, em grande parte porqueo material projetado tem a aparência e a energia dealgo novo. Nunca a brutalidade chegou tão perto dapornografia no cinema de ficção.
O filme revela-se de interesse mais pela suaforma sensorial do que pela sua estrutura esqueléticade narrativa e significado (Noé nos sugere que “ohomem é um animal” e que “o tempo destrói tudo”).
Mais relevante do que isso, o filme sofreu o tipo deapedrejamento geralmente reservado a obras queradicalizam no tratamento do sexo e da violência.
Bonnie & Clyde (1967), de Arthur Penn, Meu
ódio será tua herança (1969) e Sob o domínio do medo
(1971), ambos de Sam Peckinpah, Laranja mecânica
(1971), de Stanley Kubrick, Assassinos por natureza
(1994), de Oliver Stone, Funny games (1997), doaustríaco Michael Haneke, foram recebidos com al-gum tipo de reproche, uns mais, outros menos inten-
sos. Irréversible, que deve boa parte de sua fúria a Sob o domínio do medo, de Peckinpah, já entrou para essa lista.Há duas seqüências cardíacas no filme, car-
regadas de uma violência que deixa a platéia zonza e
irritada. A primeira, logo nos 15 minutos iniciais deprojeção, apresenta um assassinato. O rosto de um ho-mem vira uma polpa de carne e sangue rumo à pró-pria caveira ao ser atingido um sem-número de vezespor golpes dementes de um extintor de incêndio. Nãohá cortes na seqüência e o espectador é levado a obser- var a ação explícita sem descanso para os olhos, a nãoser que prefira deixá-los bem fechados. Em razão da
diabólica eficiência da imagem, ninguém cogita dapossibilidade de que aquilo ali não seja um homem,mas um boneco. Daí o choque e a repulsa.
Há também na seqüência a agressão do somnuma orgia de áudio e música – aqui composta porThomas Bangalter, da dupla eletrônica francesa Daft
Punk. Junte-se a isso também a ambientação, filmada,como se fosse um inferno vermelho, por uma câmeraque gira no seu próprio eixo. Noé consegue orques-trar uma seqüência agressiva em todos os sentidos.
O segundo momento de choque para a platéia,
já na metade do filme, nos mostra nove minutos de umestupro. O assassinato da abertura é resultado direto doestupro, embora Noé nos apresente primeiro a vingança para, depois, revelar-lhe o motivo. Como em Amnésia (2001), filme de Christopher Nolan, ele utilizauma estrutura narrativa invertida, de Z a A, ou seja,começa pelo fim e evolui até o início. Catorze planos-seqüências fluentes compõem a narrativa: catorze takes
contínuos e, aparentemente, sem cortes.As imagens de Noé são interessantes. Des-
concertam pelo ineditismo de um “realismo” há pou-co tempo impensável no cinema, pois representamum cinema tecnicamente meticuloso que visa extra-polar os limites do aceitável, um “aceitável”, aliás, em
A realidadenão temcensura
S
Cena de Irréversible,de Gaspar Noé, queutiliza amplamenteos novos recursosdas câmaras digitais
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grande parte estabelecido por ummercado dominado por regras deconduta estética. Assim, as toma-das de violência de Irréversiblepo-
dem ser consideradas “inaceitá- veis” dentro daquilo que foi defi-nido como parâmetro comercial.
Não há aqui os já assimi-lados por todos (seja consciente,seja inconscientemente) plano deum golpe dado e contraplano domesmo golpe sendo recebido.Em Irréversible, a linguagem imi-ta a desconcertante violência real
que o cinema não mostra, talvezpelo fato de o cinema ter a suaprópria gramática de reproduçãodo real. Curiosamente, Noé re-produz o real com o efeito ator-doante de um novo cinema técni-co, experimentando um novo tipode imagem. É uma gramática no- va, tão desconhecida quanto a tec-nologia que a viabiliza.
Gaspar Noé explica: “Na
verdade, cada plano-seqüência natela, aparentemente sem cortes, éuma seleção dos melhores mo-mentos dos muitos planos-seqüências que foram fil-mados. Tem muita coisa colada secretamente no com-putador por cortes invisíveis. Em vez de escolher umúnico take ‘bom’, como antigamente, eu pude escolheros melhores momentos de vários takes contínuos emontar algo que aparenta ser um único movimento”.
Descrita na ordem cronológica normal, a tra-ma de Irréversible nos mostra um casal e o melhoramigo deles. Depois de sair de uma festa, ela é brutal-mente estuprada numa passagem subterrânea parapedestres, em Paris. Num acesso de fúria, o namo-rado e o amigo procuram o agressor na boate gay sadomasoquista Rectum, onde a vingança é efetivada.
“O tom da imagem e a estética da violêncianesse filme podem lembrar os snuff movies [filmes queretratam assassinatos supostamente verídicos]. Aidéia de desfigurar um rosto humano daquela forma,por exemplo, veio de uma fita inglesa, onde um ho-
mem era espancado até a morte, talvez a coisa maisbrutal que eu já vi. De qualquer forma, eu sou umdiretor de cinema. Tenho a meu dispor uma lingua-
gem cinematográfica, técnica, eatores de qualidade. Irréversible éum filme de ficção, uma represen-tação filmada da realidade. Não
me interessaria filmar snuff . Paraisso, já basta o que vemos todos osdias na televisão, que investe cada vez mais na ‘realidade’, seja lá oque ‘realidade’ significa hoje emdia”, disse Noé.
Noé diz que, por ser a cenado estupro uma tomada fixa e semcortes, não teria sido possívelmaquiar o rosto da atriz com san-
gue e hematomas. “O rosto delafoi maquiado na pós-produção,digitalmente. Há também a ima-gem do pênis já não tão ereto, de-pois do estupro, acrescentada viacomputador. Esse tipo de detalhedesconcerta o público e descons-trói a noção de ‘real’ no cinema,uma vez que perguntas simples,do tipo ‘como ela ficou sangrandodesse jeito?’, ou mesmo a presença
do sexo do ator na cena tornam-sedifíceis de responder. No meu fil-me, um estupro é mesmo um ato
inassistível pela sua brutalidade, e fico satisfeito de terpodido representá-lo dessa forma”, diz.
Sobre a forma como filmou o assassinato, umaseqüência talvez ainda mais forte, Noé diz termisturado digitalmente o corpo do ator ao de trêsbonecos, por meio de manipulações digitais que lhedestroçaram a face. “Talvez por a cena ser de uma violência nunca vista, a composição, a manipulaçãoda imagem e a movimentação do corpo/cadáver lhedêem um sentido de realidade ainda maior”.
O que significa esse tipo de tecnologia paraNoé, no cinema de hoje? “Primeiro, a liberdade queme permite fazer um filme no sentido estético etécnico. Segundo, a possibilidade de mostrar a vio-lência não como algo que receberia censura 17 anos[referência à classificação comercial ‘adulta’ ampla-mente aceita por Hollywood], mas como algo inclas-sificável, uma vez que o mundo no qual vivemos não
tem ‘certificado 17 anos’: nossa realidade simples-mente não tem censura”. (KMF)
O diretor criaum cenário de tonsavermelhados,
ue, juntamente coma música, acentua
o clima violentodo filme Em Irréversible, a
linguagem imita adesconcertante violênciareal que o cinema nãomostra, talvez pelo fatode o cinema ter a sua
própria gramática dereprodução do real
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s impressões digitais de George Lucas estão es-palhadas pela indústria cinematográfica ameri-
cana. Uma ironia, já que ele tornou-se, ao longo dosúltimos 25 anos, o mais poderoso cineasta “indepen-dente” que essa mesma indústria já viu. Com a saga
Guerra nas estrelas, criou a sua própria mitologia e seupróprio império, o Skywalker Ranch, um sítio de trêsmil hectares no norte da Califórnia, perto de SãoFrancisco, onde circula uma moeda interna chamada Lucasbucks. Esse império engloba a LucasFilms, pro-dutora da saga Guerra nas estrelas e da série Indiana
Jones, a Industrial Light + Magic, responsável porrevolucionar a área de efeitos especiais no cinema, e amais moderna casa de pós-produção do mundo, o Skywalker Sound , especializada em som para filmes. ÉLucas quem paga do próprio bolso pelos filmes quefaz, como no caso de Episódio 2 – Ataque dos clones,atualmente em cartaz no mundo inteiro. A Fox, queproduziu e lançou o primeiro Guerra nas estrelas, em1977, tem agora apenas a honra de lançar o filme(custos são cobertos), poisLucas fica com todo olucro. Tudo isso significaque esse senhor de barbaasseada e obrigatória ca-misa xadrez ensacada é o
que a velha Hollywoodchamava de movie mogul,
um novo Howard Hughes, milionário visionário quedefende e pesquisa o cinema como uma novatecnologia que está sempre em transformação.
Como definiria essa revolução tecnológica que
está acontecendo hoje no cinema e que tem no senhor
o seu principal catalisador?
O “digital” para mim é simples. Toda a arte étecnológica, muita gente esquece isso. O exemplo quesempre gosto de usar é a evolução da pintura, dosafrescos à tinta a óleo. Para mim, representa a mu-dança que ocorre hoje entre o processo fotoquímico decinema e o digital. Os afrescos exigiam grande em-penho técnico na mistura das cores por um certo nú-mero de pessoas que precisavam se certificar de que astonalidades secariam corretamente e de que a pinturaestaria adequada, sem mudanças. Era um processorígido. Mudar de idéia significava ter de refazer, exa-tamente como no processo fotoquímico “filme”, no ci-nema. Com a tinta a óleo, já era possível sair à luz do
dia, mudar as cores, mu-dar de idéia e concepçãoao longo do processo cria-tivo. A nova tecnologia naarte geralmente traz umanova liberdade para o ar-
tista desenvolver idéias.
Continente Multicultural 55
O diretor George Lucasrevela porque tem confiança
no final domínio datecnologia digital no cinema,
por proporcionar recursosque aumentam a liberdade
imaginativa do artista
A
Toda arte é
tecnológica
F O T O S : D I V U L G A Ç Ã O
Cena de Episódio 2 –O Ataque dos Clones,o novo trabalho
de George Lucas
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Até
um
certo
ponto.
O
senhor como
artista
tem utilizado as novas tecnologias para revisitar e
alterar obras suas. Dessa forma nunca teremos uma
obra definitiva pois ela sempre estará sujeita ao influxo
da mais nova técnica disponível.
Eu faço parte da Artist’s Rights Foundation (Fun-dação dos Direitos dos Artistas). A idéia é que apenasos próprios artistas tenham o direito de alterar suasobras. Preciso lhe lembrar que não fui o primeiro nemo único a alterar obras originais. Há milhares de anosque temos exemplos de artistas revisitando suas obrasporque mudaram de idéia, ou de conceito. Se você visitar qualquer ateliê, encontrará sempre por lá umquarto nos fundos onde o artista repensa seu trabalho.No cinema, especialmente em Hollywood, o normal é
ver o estúdio seqüestrar seu filme e mantê-lo bemlonge de você. No caso de Guerra nas estrelas, que foirelançado em 1997 com mudanças, eu finalmentepude colocar na tela um filme que eu não conseguifazer da maneira que eu queria no passado, por falta detecnologia. Especificamente em relação a meus filmes,me sentia sempre tolhido pelas limitações tecnológicas.Algumas das barreiras foram superadas; outras, não.Em 1976, por exemplo, não foi possível colocar Jabba
the Hut nas filmagens de Guerra nas estrelas. Por isso elesó apareceu finalmente em 1997, na “edição especial”.
Teria sido um esforço enorme, com resultados ques-tionáveis, construir um Jabba de borracha que malpodia se mexer. A idéia foi abandonada, até que atecnologia para realizá-la ficou disponível. O atualformato do cinema ainda é muito limitado. A visão deum diretor para uma determinada história pode terperfeitas quatro horas de duração, mas, por questõesde mercado, é preciso cortá-la para duas. É por issoque o formato DVD tornou-se tão popular entre ci-neastas. O DVD transformou-se num canal de escapepara a visão original deles.
Em
1977 o
senhor
liderou
uma
revolução
no
som para cinema estimulando a instalação em cen-
tenas
de
salas do
então
novo
sistema
olby Stereo tudo
isso para o lançamento de Guerra nas estrelas. Hoje
esse tipo de som virou padrão mundial. A imagem
“digital” poderá seguir o mesmo caminho?
Sim, nada irá deter o digital. O problema atual-
mente, e que não havia ocorrido nos anos 70 com oavanço do som, é uma resistência conservadora porparte da indústria, especialmente das cadeias exibi-doras, às mudanças. Há um temor generalizado deque a tecnologia ficará obsoleta rapidamente, o mesmotipo de medo que as gravadoras tinham em relação aoCD ou à edição não linear por parte dos montadores,tecnologias que hoje se tornaram padrão. Em dois outrês anos, o digital terá qualidade superior à do filmede 35mm e poderá atender a todas as exigências de um
roteirista ou produtor. Há hoje uma nova geração decineastas que está repensando a imagem a partir dasnovas tecnologias. Serão eles que levarão adiante essarevolução, e não os estúdios, que, claro, virão logoatrás, como sempre.
Um dos argumentos de Hollywood contra o“digital” é a facilidade de difundir uma
obra através
dessa tecnologia. A pirataria está se tornando um problema cada
vez maior, especialmente pelo fato de vivermos hoje
num mundo unido pela mesma tecnologia. É impos-sível fazer algo “aqui” sem pensar que isso irá rever-berar “ali”, principalmente se levarmos em conside-ração um grande lançamento como Guerra nas estrelas.O nosso lançamento mundial e praticamente simul-tâneo tem como objetivo minimizar a ameaça de pira-taria. Eu acredito que o digital, na verdade, dificulte apirataria. É mais fácil pagar cinco mil dólares a umoperador de projeção num cinema para que eleprojete o filme na calada da noite em frente a umacâmera digital do que se debruçar sobre um sofisti-cado servidor e tentar quebrar senhas e códigos desegurança sofisticados, dignos de sistemas de comu-nicação militares.
56Continente Multicultural
F O T O S : D I V U L G A Ç Ã O
8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues
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Quais as outras vantagens do digital?
Você pode até usar o digital para consertarcenas, apagar orelhões da imagem, fios etc. Se umdiretor não consegue permissão para filmar nas ruas deParis, ele pode criá-las digitalmente e ambientar a sua
ação lá mesmo, no computador, com os seus atores.Com o advento do digital, nos últimos 20 anos, orealizador tem a seu dispor ferramentas que viabilizame democratizam o trabalho.
Como unir as novas ferramentas de trabalho
hoje disponíveis
ao
processo
de
criação
que muitas
vezes surge num papel?
Para falar a verdade, eu não sou grande admi-rador do formato narrativo que existe hoje no chamado
“cinema”. Ainda estamos restritos a duas, três horas.Isso me incomoda muito, porque tenho uma tendênciade me entusiasmar por histórias que não cabem nessaestrutura atual. Escrevi o eixo principal da saga 30
anos atrás. Aquele eixo é, em grande parte, o que estásendo feito hoje, ainda, no Episódio 2. Naquela época,eu queria que o design do filme tivesse muito das cines-séries das grandes matinês de sábado, nos anos 30 e40. Minha idéia sempre foi começar pelo episódio 4
(Uma nova esperança). Outro aspecto interessante doroteiro é que, por mais que eu soubesse das difi-culdades técnicas de se realizar um filme desse tipo, eusempre escrevia meu material de uma forma que limi-tes técnicos fossem quebrados. Por eu ter escrito umeixo principal para a saga como um todo, dotadoapenas de perfis dos personagens e suas localizações natrama, muita coisa foi ditada pelas limitações impostaspela tecnologia. Yoda, por exemplo, eu sabia que teriade ser um alienígena pequeno e praticamente imóvel,
uma vez que não seria possível movimentá-lo commuita leveza. Vinte anos depois, Yoda movimenta-se deuma forma outrora impensável. Isso reflete a formacomo a tecnologia muda o trabalho do artista. (KMF).
Seqüência de cenasdo filme O ataque dosclones, no qual Lucaspôde realizar idéiasantes impossibilitadaspor falta de recursos tecnológicos
A famosa e simpáticadupla de robôs,C-3PO, o magroalto, e R2-D2, obaixinhorechonchudo
8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues
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58 Continente Multicultural
Joel Silveira
Associação de idéias1.Qualquer coisa naquela veneranda senhorado nosso soçaite, não sei se por causa dosolhos sempre acesos, me lembra uma corujalésbica – se é que tal coisa existe.
O conto do vigário2.Todo vigário, particularmente aqueles dointerior, com mais de quarenta anos de batinasurrada, tem o seu tanto de vigarista.Ninguém escuta tanta confissão em vão.
Sabedoria felina3.Ah, o desprezo e o sonolento tédio com queos gatos nos olham...
Espelho retrovisor4.Até que é bom de vez em quando olhar paratrás. Mas nunca de supetão. Aos poucos,lentamente, como quem finge não estarolhando...
Constatação5.Todo escoteiro tem alguma coisa dedebilóide. Já as escoteiras são maisespertinhas.
Olhos acesos deuma coruja lésbica
D I Á R I O D E U M A V Í B O R A
8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues
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Continente Multicultural 59
A diferença7.Eu sei, todo mundo sabe, qual a diferença
entre uma banana e uma melancia. O que eunão sei, e duvido que alguém saiba (nem elesmesmos), é qual a diferença entre um“analista político” e um “cientista político”,agora tão pomposamente constantes emnossos jornais.
Tempos insossos8.Não é que meus amigos, os mais antigos,estejam ficando chatos, sem graça e semconversa. Apenas estão envelhecendo e, comotodo mundo sabe, a velhice é essencialmenteenervante, suspirosa, insossa. Pergunto: podeexistir algo mais insípido do que velho falandodo passado, mesmo o mais recente? E velhofalando do futuro? Aí já é pura gaiatice, quiçádeboche.
Que o passado passe9.“O futuro vai chegar”, promete suaExcelência. Nem é preciso tanto. Basta que opassado realmente passe.
De olho no relógio10.Insone, me pergunto: são as madrugadas queestão mais compridas ou são os minutos queestão mais vagarosos?
A mesinha-de-cabeceira11.Aquele meu conhecido, beato de carteirinha,pergunta-me qual a imagem de santo que eutenho em minha mesinha-de-cabeceira.Limito-me a responder que não tenhomesinha-de-cabeceira.
Planos12.Quando aquele cavalheiro me perguntou o queeu pretendia fazer no futuro, ocorreu-meresponder, embora, por tédio, não o tenha feito:– Já fiz. Meu futuro foi anteontem.
Joel Silveira é jornalista
Que país é este?6.Perdoem a falta de modéstia, mas o desabafoé sincero: este país não me merece.
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Em que consiste o método Paulo Freire e quala sua importância atual?
A meta de Paulo era fazer o ensino das cartilhasdo ABC se basear fundamentalmente na linguagem viva. Uma das primeiras tarefas que as equipes deprofessores cumpriam era ir à comunidade-alvo e sa-ber quais palavras diziam respeito às atividades funda-mentais dos alunos. Digamos, tijolo. Então, apresen-tavam a palavra, num quadro-negro ou num projetor,silabicamente – ti-jo-lo – mostrando como a mudançadas sílabas ia dando lugar a novas palavras. E iam-seconstituindo universos, não a partir de um critériomnemônico, mas de um parâmetro concreto, prático,a partir das palavras geradoras.
Obviamente quem tem que dar uma opiniãosobre a importância atual do método Paulo Freire é umtécnico, não sou eu. Mas, empírica e intuitivamente, eudiria que há duas razões para a atualidade do método.
Primeira: ao aumento da nossa população temcorrespondido o aumento da nossa margem de analfa-betos. E o método continua sendo uma boa ferramen-ta educadora.
Em segundo lugar, não é o analfabeto legítimoque mais me incomoda, mas o analfabeto alfabetizado.É o analfabeto letrado. Aquele que não sabe realmenteo que significa a palavra, o que significa pensar. O mé-todo de Paulo não visava a esse tipo de analfabeto.Mas, de toda maneira, à medida que a margem deanalfabetismo real diminuísse, haveria um incrementode atividades de capacidade crítica, e o analfabetoletrado se sentiria, pelo menos, incomodado.
Que implicações políticas o método PauloFreire trouxe para a época em que foi implementado?
Eu diria que toda a perseguição a Paulo em1964 era, ao mesmo tempo, altamente injusta e alta-mente justa. Injusta, porque a alegação que a direitaoficializava nas suas comissões de inquérito era a deque Paulo seria um agente do Partido Comunista. Isso
era um absurdo. As relações de Paulo com o PC nun-ca foram boas. Pelo contrário, setores de esquerdadifundiram antes do golpe que Paulo estaria receben-do dinheiro americano e toda uma série de maluqui-ces. Então, por um lado, era altamente injusta toda aperseguição, as prisões, o exílio. Mas, por outro lado,era extremamente justa, porque o que Paulo queria,sem nunca pretender a comunização do país, era tiraro Brasil da pasmaceira terceiro-mundista.
Que divergências havia entre Paulo e esses
setores de esquerda?Para começar, Paulo era um homem católico.
Mas o comunista da década de 60 ainda era literal-mente um ateu violento, porque “a religião é o ópio dopovo”. A segunda divergência era que Paulo não eraum homem político. As suas intenções eram políticas,mas ele não era um homem de práticas políticas. Todoaquele savoir faire político, Paulo não o tinha. Isso atra-palhava as relações com o PC, inclusive com a juven-tude do PC. Um terceiro elemento que me parecemuito importante é que o PC e as esquerdas, em geral,pensavam a cultura em termos didáticos. Fazer teatro,fazer poesia e escrever romances “para ensinar o povoa”. O marxismo ortodoxo implicava uma concepção
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didática da cultura a que se contrapunha uma con-cepção de reflexão sobre a cultura. Estes seriam os trêselementos divergentes entre Paulo Freire e as esquer-
das: o elemento religioso, o fato de que Paulo não eraum homem de práxis política e, sobretudo, a dissençãoquanto à reflexão da cultura.
O que falta para o brasileiro aprender a pensar?É mais fácil entender, antes, por que o brasileiro
domestica tanto o pensamento. Imaginemos um pro-fessor universitário que sabe que, no fim do mês, ga-nhará um salário ridículo. Como não pode sobrevivercom este tal salário, tem que aumentar o número deaulas. Então, passa a dar aulas das 8h até o meio-dia.
Come qualquer besteira, volta a dar aulas às 14h, acabaàs 18h. Simplesmente para poder se sustentar. Então,qual é a disposição que esse camarada tem, ao entrarali, para pensar? Claro que ele vai procurar fazer a coisado modo mais automatizado possível. Se aparece umaluno que está interessado em pensar, ou que tem difi-culdades, o professor não tem disposição anímica paradar conta dessa diversidade. Não é por acaso que opensamento vai se domesticar. Ele é bitolado a partirdo professor, não porque este seja ruim, mas porque ascondições objetivas em que se trabalha o são.
Por outro lado, se você pensa num nível já maisalto de socialização universitária, imaginemos agoraum aluno no início da pós-graduação. Digamos que,
apesar de todos os percalços, esse camarada se dispõea pensar. E se depara com um conjunto de professores,dentre os quais tem que escolher um orientador para asua tese. Todos têm esse hábito de automatização an-terior. Então esse camarada, com 24, 25 anos, no inícioda carreira acadêmica, se dispõe a contestar o que oprofessor diz. Muito provavelmente esse professor não vai aceitar ser o seu orientador. Se esse professor tiverimportância política dentro da universidade, não será afavor, posteriormente, da contratação daquele camara-da. Em outras palavras, aquele germe inicial da con-testação vai estimular a continuação do quadro ruim.
O Sr. identifica algum sistema universitário,hoje, no mundo, que pode servir como bom modelo?
Eu conheço razoavelmente bem os sistemasuniversitários alemão e americano. Tomemos o ame-ricano, que está mais próximo de nós. Há uma grandediferença entre o sistema educacional americano e onosso, que é a alternativa que se ofeerta ao aluno: “Oque eu quero fazer? Quero aprender a refletir ou querorapidamente ser um profissional no mercado?” Para is-so, se apresentam diferenças entre universidades maisbaratas, mais fáceis e pragmáticas e outras mais caras emais exigentes, mais reflexivas – e existe um ranking deuniversidades que é feito a cada ano. Em suma, há
meios de você responder ao problema pela diversifica-ção de condições. Eu quero simplesmente ter o meudiploma porque eu sei que o que quero fazer; seragente da bolsa, por exemplo, tem pouco a ver comatividade universitária. Então eu vou para uma uni- versidade barata que exija menos. E isso tudo é sabido.Há condições de opção. Entre nós, há cada vez menospossibilidades de escolha.
E quanto à crise das disciplinas: é outro proble-ma do nosso sistema universitário?
Eu acho o pensamento holístico uma besteira.Mas a crise das disciplinas é uma coisa evidente. Eudiria que o grande desafio é ser capaz de selecionar um
Paulo Freire foi perseguido comosubversivo pela ditadura militar,apesar de ser católico,
divergir dos comunistas quanto àreflexão da cultura, e ser homemavesso à prática política
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número “x” de disciplinas que permita constituir umperfil próprio.
Imaginemos alguém que queira ser umhelenista. A primeira obrigação é que tenha um bom
professor de grego. Será importante ele ter, também aolado do grego, um conhecimento de filosofia antiga,que lhe possibilite uma familiaridade suficiente com ospré-socráticos, com Aristóteles, Platão, com os sofistasetc. Até aí ele ainda estará categorizado. Mas ele podesentir a necessidade de ter acesso a antropólogos quetenham trabalhado com temas semelhantes aos tópicoshelenistas, como, por exemplo, a questão da narrativa.Então ele procura o departamento de antropologia edescobre quem são os antropólogos que poderão lhedar uma abordagem, digamos, africanista do proble-ma da narrativa – o mito, a lenda etc. Com isso ele teráuma ponte na sua cabeça que o helenista da geraçãoanterior não teve. E por aí vai. Que coisas mais o nossofuturo helenista pesquisaria, eu não sei.
Mas, dizer que a imagem do novo helenista é ade alguém que domina a ciência da computação, an-tropologia africana e sabe grego é besteira. Não existeisso. A crise das disciplinas não significa que não há apossibilidade de se criar uma nova disciplina que pre-encha os vazios que as existentes têm.
Essa carência das nossas universidades atrapalhaa formação de um pensamento brasileiro do século 21?
O que mais prejudica a formação de um pensa-mento nacional não é simplesmente uma carência ins-titucional. Eu diria que há uma segunda carência muitopior. É a da própria sociedade brasileira. Em quesentido? Eu diria que o que nos caracteriza, a nós todosenquanto membros de uma sociedade de TerceiroMundo, é a insegurança que temos quanto aos nossospróprios valores. A própria insistência do tipo “a tapio-
ca é do Nordeste”, “o meu falar é de tal lugar, isso euaprendi não sei onde”, essa própria necessidade de ma-terializar valores, não é outra coisa senão a insegurançaque você tem em relação aos seus valores. “Eu penso
isso porque estou de acordo com Fulano de Tal”, e aí você precisa achar um nome com bastantes consoantes.
Eu desenvolvo isso no apêndice de um livroque escrevi, chamado Terra ignota: a construção de Os
sertões. Por conta dessa insegurança, dessa instabilida-de de valores, se um leitor – mesmo um que entendao que está lendo – vir um livro escrito por João daSilva, precisa ir à bibliografia. Se lá houver uns seistítulos em holandês, numa mesma língua – mas, porfavor, que não sejam traduzidos para o espanhol:numa mesma língua e no original – aí então já senteuma certa segurança, uma diminuição de inseguran-ça. Mas se o autor citou esses seis livros para contra-riar a visão do leitor, a insegurança volta. Não que oleitor tenha culpa, é a mesma situação daquele pro-fessor: é o quadro sociocultural em que ele vive quelhe dá essa insegurança.
Um exemplo dessa insegurança é o que acon-tece com as resenhas de livros. Em 1984 publiquei umlivro que se chamava O controle do imaginário: razão e
imaginação nos tempos modernos. Logo depois fui para osEstados Unidos, onde tive a oportunidade de desen- volver a hipótese do livro formando uma trilogia, quesaiu em inglês. Recebi, então, convite de um editor ita-liano encarregado de fazer uma obra em cinco volu-
mes sobre a história do romance. Ele me pediu umacontribuição especial sobre o controle do imaginário eo romance. O que já é uma coisa que, entre nós, eununca recebi, um convite como aquele. Porque en-quanto esse livro circulou simplesmente em línguaportuguesa, eu não sei sinceramente como é que aspessoas reagiram, porque as resenhas eram muito poli-das: “que livro erudito”, qualquer besteira dessas. Se você for juntar o número de apreciações críticas queisso teve daria umas três resenhas, razoáveis, no máxi-mo elogiativas.
O resenhista tem medo de incomodar o autor?Não exatamente. Na medida em que o livro
não está sendo apresentado como seqüência ou subor-dinação a algo, com o respaldo de um nome bastanteconsonantal, o que é que eu vou dizer em relação a ele?Não é tanto o medo de ferir o autor, é o medo deapostar no cavalo errado. Mas a partir do momentoem que esse negócio esteja publicado no estrangeiro...
Qual é a raiz dessa nossa insegurança?Eu diria que é porque não temos história de um
pensamento reflexivo. Não esqueçamos que esse não éum problema só brasileiro, mas latino-americano, o
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Euclides da Cunha, emretrato autografado.Toda a sua genialidadeera cortada peloestreitismo dasmatrizes positivistas
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que remete ao colonizador português e espanhol. O
português e o espanhol, tendo se antecipado a todos os
expansionistas europeus, rapidamente perderam esse
élan que vai dar lugar ao pensamento moderno, eu
diria, já na segunda metade do século 16 e começo do17, quando já há uma censura, um policiamento muito
forte do pensamento.
Se você pensa em relação à colonização, o nosso
colonizador é todo preso por estruturas inquisitoriais,
censura política. Enquanto todo o mundo moderno
está se armando, a Península Ibérica está reagindo.
Pensa, agora, no Brasil independente. Qual é a
herança de pensamento filosófico que recebemos entre
nós? Nos tempos do Império o que se entendia por
filosofia era simplesmente ecletismo, mistura de Rous-
seau, muita escolástica, muita porcaria. Mistura enor-me de conhecimentos, como uma escola de samba.
Em meados do século 19, a primeira reação
contra a tradição herdada se dá através do positivismo.
Positivismo significa horror à filosofia, porque filosofia
é entendida como essa mixórdia.
Daí vem o meu interesse em estudar Euclides
da Cunha. Toda a genialidade euclidiana termina
sendo completamente cortada por conta do estreitismo
das matrizes evolucionistas, positivistas. Mas o muito
curioso, daí o interesse que eu tenho por ele, é que vocêsente aqui e ali Euclides crispando, quicando diante da
sua própria matriz, e ao mesmo tempo nota que a
repressão é mais forte. Por exemplo, logo na primeira
parte, na “Terra”, ele começa a divagar sobre a origem
do Sertão, se afinal de contas tudo aquilo não era um
continente só etc. Lá pras tantas, umas treze páginas
depois, ele diz: “Deixemos de especulação. Copiemos,
copiemos.” Quer dizer: “vamos aos fatos”.
Mas esse é um dos pontos mais elogiados da
obra Os sertões essa fidelidade ao fato essa isenção
severa.
Pois é, mas essa é a mesma opinião crítica que se
fez sobre a obra, do começo até agora. Como eu tive o
trabalho de ler o acervo crítico sobre Euclides, eu posso
dizer que a crítica, em termos médios, não mudou na-
da. E essas primeiras críticas sobre Euclides já partem
de um negócio enlouquecedor: que ele fazia história e
simultaneamente era um romancista. Como é que ele
pode ao mesmo tempo ser isso e aquilo?Isso está afirmado em Veríssimo. Mas com ele dá
para entender por quê. Porque ele estava tendo uma con-
cepção retórica de literatura que não tem nada a ver com
a concepção moderna de literatura, que supõe um dis-
curso fundamentalmente ligado à experiência do eu. En-
quanto que a concepção clássica, retórica, não se refere à
literatura, mas a belas letras. E belas letras não excluem
história, por exemplo. Belas letras é escrever bem, o que
não define o discurso literário. Então muito provavel-
mente Veríssimo estava pensando em literatura assim.Mas isso se repete até hoje tranqüilamente, vo-
cê encontra historiadores dizendo que a genialidade de
Euclides foi ser historiador e romancista ao mesmo
tempo.
Quando conheceuas intenções políticas
de Gilberto Freyre,a Esquerda pós-64
tornou-se cegaao seu valor
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Gilberto Freyre preferia ser chamado de umescritor a ser considerado sociólogo. Você tem reservasquanto a essa postura de Freyre, não tem?
Paulo Freire tinha razão em me aconselhar a lermais Gilberto Freyre e menos Rui Barbosa. Se eu metornasse leitor de Rui, estaria aprendendo um discursoretórico vazio. Nesse sentido Gilberto Freyre tinhauma grande qualidade. Mas o que eu digo é que paraas ciências sociais – não é por acaso que Gilberto fazia
tanta questão de ser chamado de escritor – o discursode Freyre era uma maneira de se defender, porque nãotinha nenhum rigor conceitual. Gilberto realmenterepresentava um passo adiante, na argumentaçãoretórica. Mas isso não quer dizer que a linguagem e oestilo de Gilberto não me pareçam criticáveis por outrarazão. Se eu quero ser sociólogo ou antropólogo eunecessito de um rigor conceitual, o mesmo rigor doqual eu obviamente devo fugir, como o diabo da cruz,se eu quiser ser um romancista.
A postura de Gilberto é um mecanismo dedefesa?
É. Porque já que ele não opta por uma redeconceitual, será mais difícil tomá-lo como discípulo deA, B ou C. E mais fácil tomá-lo como gênio. É ummecanismo de defesa facilmente identificado, mas quenão é discutido. Porque aí é que está: faz parte da nossainsegurança, quando você quer louvar uma figura,convertê-la em mito. Intocável. Você não pode criticar.Inúmeras pessoas aqui no Recife me vêem com mausolhos porque eu critico Gilberto. Não critico Gilbertopor questões pessoais, isso é o que menos importa. Euo critico porque eu acho que ele é criticável.
Nem sempre o mito de Gilberto foi intocável.Por muito tempo ele foi severamente criticado porsetores de esquerda. Mas, hoje em dia, o pensamentode Freyre vem sendo revalorizado. O Sr. considera es-sa revalorização mais crítica e menos mistificadora?
Não. A fortuna crítica de Gilberto está para serfeita, e essa mistificação não ajuda. Apesar de haverexceções, de um modo geral, essa revalorização con-
tinua sendo do mito.Eu diria que a revalorização de Gilberto tem a
ver com o fato de que no pós-64 houve uma repressãoa ele generalizada, porque as intenções políticas deGilberto se tornaram conhecidas. Repressão por umafrente de esquerda cega que não reconhecia inclusive oque era reconhecível, de valor, na obra de Gilberto. Àmedida que essa polarização direita-esquerda se per-deu em termos conceituais, estruturas muito rígidas,como a repressão a Gilberto, por exemplo, se afrou-xaram, permitindo que ele continue tendo o prestígioque tem, ora como figura mitificada, ora como fenô-meno revalorizado.
Continente Multicultural 67
Gilberto Freyre representava um
passo adiante na argumentaçãoretórica; fazia questão de ser chamado de escritor porque não
tinha nenhum rigor conceitual parao discurso de ciências sociais
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68 Continente Multicultural
Interior da igrejamatriz de São
Caetano da Divina
Providência, patronode Odivelas
A 120 km deBelém do Pará, uma festa junina com boi de quatropernas e pierrôs-arlequins
F O L C L O R E
Dança dos Pirrôsdo Boi Tinga, combatedor-mascote
Gabu ao fundo
divina
Farra
Texto: Heitor e Silvia Reali
Fotos: Heitor Reali
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Continente Multicultural 69
foguetório anuncia que hoje ele sai. Tudo pode
acontecer. Não houve ensaio, nada é cronome-
trado. Ninguém compete. O pivô dos festejos é o Boi
que está léguas longe dos simulacros de festas progra-
madas para consumo turístico. Não deve estar muitolonge do paraíso, mas está a 120km de Belém, na ci-
dade de São Caetano de Odivelas.
Os navegadores portugueses careciam de
originalidade na hora de batizar nossas cidades. Ou
era o nome do santo do dia, ou o da cidade de onde
partiram. Aqui, em 1735, na dúvida, colocaram os
dois juntos, e o santo ficou lado a lado com um nobre
safado de além-mar. Conta-se que todas as noites,
quando o príncipe saía para ver uma de suas concubi-
nas, à sua resignada esposa só restava suspirar – “Oh!
Ide vê-las!”Dando nome aos bois, o daqui chama Tinga,
algunha de um famoso “boi garanhão” marajoara. Foi
da ilha de Marajó que os compadres Laudelino Zefe-
rino e Tito Dalmacio trouxeram o esqueleto de uma
cabeça de boi achado no pasto, quando voltavam de
uma pescaria. Tiveram a idéia de levá-lo a Odivelas
para os festejos joaninos. Mandaram confeccionar o
boi o artesão Raimundo Cunha. Hoje, depois de 65
anos de apresentações, do adereço original só sobra-
ram os chifres e parte da queixada: o resto foi bem re-mendado e ainda ganhou sete metros de veludo novo
por pele. Boi macho, único de quatro pernas, de ador-
no só uma fita no pescoço. Afinal, boi de saia todo en-
feitado de babado e baboseira, com duas pernas, não é
boi, é galinha, provocam os odivelenses.
Semanas antes da festa se dá o “cartiá”: José
Zeferino, herdeiro do Boi, percorre as casas de porta
em porta e em troca de pequena contribuição garante
folia em domicílio. Nesse dia, avivados pelos rojões, os
integrantes do cortejo se reúnem na casa do boi.
Chegam os músicos, os “Tripas” – as pernas do boi –,o “Buchudo”, embruxado com sua roupa cheia de
trapos e tralhas, e o “Cabeçudo”. Este se parece com
um personagem da trupe catalã El Commedians, da
qual aqui nunca se ouviu falar. Lembra que um dia
alguém, não tendo com que se fantasiar, pegou uma
enorme caixa de papelão que lhe cobria até a cintura,
envolveu os quadris com um paletó, pintou uma cabe-
çorra e pronto: criou o personagem. Quando o Cabe-
çudo dança, as mangas soltas e as pernas rodopiam
aleatórias, parecendo um dervixe pirado. Além de tu-
do tem o Pirrô, (pronuncia-se “pirru”). Talvez, desse
saco de gato brasileiro, sempre alegre, gostoso e infan-
til, saia a síntese da nossa criatividade. A Commedia
O
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70 Continente Multicultural
dell’arte legou ao mundo dois personagens distintos,
Arlequim e Pierrô. Arlequim, descendente de uma re-presentação medieval do diabo, infernizava o doce e
alvo Pierrô. Já o Pirrô odivelense é puro deleite e delí-
rio onírico. Máscara sibilina, com nariz de Pinocchio,
bigodinho e costeleta de malandro, deixa ver uma aba
de boné. A máscara fica presa à cabeça por um óbvio
barbante que vai do nariz à nuca. A roupa grandalho-
na lembra um Arlequim espandongado. A coroa arre-
mata: cônica, brilhante de lantejoulas, termina em lon-
ga haste enfeitada de flores e fitas coloridas que ondu-
lam ao ritmo do dançarino. “Como o suor do rosto es-
bandalhava a máscara bicuda, era preciso colocar umatoalha. Alguém achou bonito e assim ficou”, conta
Rondi Padilha, dono do Boi Faceiro.
As crianças bolaram o Faceiro Júnior e o Ma-
lhadinho, e a idéia da lhama veio embrulhada no papel
de chiclete. Os outros bichos, nunca vistos por aqui,
chegaram de uma Arca de Noé surrealista: o caribu, o
dinossauro, o veado e a zebra.
Nesse mundo que não perdeu a inocência,
ninguém suspeita ter tamanha arte. O povo escolta a
alegria, e meninos batedores ladeiam os brincantes
com bandeiras listradas. Tudo parece caótico, mas o re-
sultado é pura harmonia. De longe a procissão lembra
cobra-coral ziguezagueando pela cidade, enquanto as
crianças, zaranzando, entram e saem das casas, infor-mando sobre os fatos da festa. O cenário vai mudando,
ora rua, ora trilha, terreiro, chão de pedra, chão socado.
Quando pára a música, saem os Tripas extenuados, o
Boi “desvive” e as crianças correm para lhe dar capim
e revivê-lo. Aos brincantes é oferecido um “manjar”:
mingau de água, aveia e canela, pois é preciso garantir
sustança para tantas horas de reinação.
O poeta disse que o belo desespera. O extraor-
dinário dessa festança carece ser decifrado, mas não dá
para nomear tanto magismo. A apoteose é a liberdade
e puro apetite de viver. In dulci jubilo! Quando Deusquer brincar vem aqui.
Heitor Reali é engenheiro e fotógrafo. Silvia Reali é artista plástica
O artesão Antonio José Monteiro
de Oliveira,mais conhecido como
Cação, molda comzelo a máscaro doPirrô, sobrepondo
várias camadasde jornais e
goma de mandioca
No bairro de VilaNova em S. C. de
Odivelas,os chapéus das
fantasias já foramlavados e postospara secar no diaseguinte da folia
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Continente Multicultural 71
1. Porto de S. C. deOdivelas visto dointerior do mercado
2. No terreiro de ummorador que pegou o“cartiá” para ter foliaem domicílio,apresentação do BoiTinga
3. Crianças servem de“batedores” do Boi
Faceiro
4. O Cabeçudo, cujafantasia lhe veste atéa cintura
Hipertexto: Samba do boi(Composição do maestro odivelenseMarcimiano Monteiro da Silva)
Senhora dona de casaSaia fora vem olhá,Que o Boi Tinga vem chegando aqui
Na frente de seu lar
Vaqueiro corre, pegaA vara de cundãoAmansa o Tinga que a “mossada”Qué brincá vibrandoCom “aplaudio” de mão
PirruBrinca pelo amor eA mossada recebe amorosa
Um dia alguém pegouuma enorme caixa depapelão que lhe cobriaaté a cintura, vestiu um
paletó, pintou umacabeçurra, e pronto:criou o Cabeçudo
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72 Continente Multicultural
Diante de tantas e tão importantes interrogações suscitadaspelo desenvolvimento científico e tecnológico, seria
moralmente justificável, praticamente factível ou juridicamenterazoável a determinação de limites para a pesquisa científica?
Hugo Fernandes Júnior
A ciência é uma
deusa amoral?
F O T O : R
E P R O D U Ç Ã O / A E
Josef Mengele chefioualguns dos horrores das
pesquisas nazistas deeugenia e testes de
armas biológicas emcobaias humanas, que
teve, nos Estadosnidos, desdobramentos
sinistros, como a queanteve homens negrosdo Estado do Alabama
durante 40 anossem tratamento e
informações sobre a
sífilis, para que seobservasse a “histórianatural” da doença
B I O É T I C A
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Continente Multicultural 73
m 1947, o físico J.R. Oppenheimer, um dosprincipais participantes da equipe científica que
desenvolveu a bomba atômica, ao referir-se à ameaça dedestruição representada pelo domínio do processo de
fusão nuclear, declarou que “...os físicos conheceram opecado; e esse é um conhecimento que jamais poderãoesquecer.” Aludia o grande cientista à insistência hu-mana em provar o fruto proibido da “árvore da ciênciado bem e do mal” de que nos fala o Livro de Gênesis.
Mas a Segunda Grande Guerra não repre-sentou a perda da inocência apenas para os físicos. Os20 médicos julgados em Nurenberg por protagoni-zarem um dos mais notórios episódios de abusoscontra os direitos humanos também lhes faziam com-panhia. A Medicina tinha as suas vestes brancas man-chadas não com o sangue dos milhões de civis e mili-tares mortos no conflito, mas pelo apoio ideológico aonazismo e a sua teoria de eugenia, bem como pela con-tribuição “técnica” nos crimes de esterilização em mas-sa, eliminação dos “menos capazes”, experimentaçãonão voluntária, sem contar as execuções, torturas eexperimentos de guerra bacteriológica.
Quebrava-se, dessa forma, a pretensa harmoniaexistente entre, de um lado, a ciência e a técnica e, deoutro, o ideal de progresso humano. Essa harmonia,
corolário do Projeto Iluminista, tornara-se uma dasbases do pensamento moderno, e ensejou a elevação daCiência ao patamar de Deusa, o que possibilitaria odesenvolvimento material e moral do Homem pormeio do conhecimento.
A noção de que ciência e técnica não eramneutras consolidou-se no período do pós-guerra. Aameaça de aniquilação da vida na Terra, como con-seqüência de um confronto nuclear, e de destruição domeio ambiente, resultante da exploração predatória danatureza em nome do progresso, contribuiu decisiva-
mente para tanto.Adicionalmente, a idéia de que a utilização abu-
siva de sujeitos humanos em pesquisas devia-se a uma“anomalia” do horror nazista passou também a serquestionada com a revelação de numerosos ensaios,dentre os quais destaca-se o “caso Tuskegee”. Nessa“pesquisa”, levada a efeito por 40 anos (de 1932 a1972), homens negros do Estado do Alabama forammantidos sem tratamento contra a sífilis e sem infor-mações sobre ela, para que se observasse a “histórianatural” da doença. Destaque-se que um tratamentoeficaz contra o mal, à base de penicilina, já se encon-trava disponível desde 1945, mas não foi utilizado nogrupo por decisão dos pesquisadores. Um número
expressivo de pessoas morreu em conseqüência diretaou indireta da doença, bem como transmitiu o mal asuas esposas e prole. No período citado, entretanto,treze trabalhos foram publicados sobre a “pesquisa”
sem que nenhuma sociedade médica apontasse a fla-grante violação dos direitos humanos que se cometia.Outras situações, aparentemente não tão
agudas como as citadas, concorreram igualmente paraque o suposto papel libertador e progressista da ciência viesse a ser questionado. Frutos da expansão do conhe-cimento das biotecnociências, diversas possibilidadesse abriram para a humanidade, mas seriam todas elasdesejáveis e moralmente aceitáveis? A utilização desseconhecimento e das tecnologias dele advindas propor-cionaria mais bem-estar e qualidade de vida para ahumanidade? E o que dizer da distribuição das benes-ses do progresso entre todos os habitantes do planeta?
Tomemos alguns exemplos. O avanço no co-nhecimento sobre a fisiologia humana e sobre diversassubstâncias naturais ou obtidas em laboratório, bemcomo o desenvolvimento da eletrônica, da mecânica ede novos materiais possibilitou a construção de apa-relhos capazes de mimetizar funções orgânicas im-prescindíveis à atividade dos sistemas cardiorrespi-ratórios e renais, principalmente, e, com isso, ao
“prolongamento da vida”. Esse inegável progressotrouxe consigo, contudo, inevitáveis dúvidas sobre oque é mesmo a “vida” e o que é “estar vivo”, como nofamoso caso de Karen Ann Quinlan. A eutanásia é umrecurso lícito para a interrupção de “vidas” que seprolongam apenas pela manutenção artificial das fun-ções orgânicas? Se a resposta for positiva, a quem ca-beria a decisão de “desligar os aparelhos”? Ao própriodoente, à família ou aos profissionais de saúde?
Do mesmo modo, o aperfeiçoamento da técnicacirúrgica, da tecnologia e das drogas imunossupres-
soras tornou possível a realização de transplantes deórgãos, trazendo esperança e alento a milhares dedoentes renais, cardíacos, pulmonares e hepatopatascondenados a definhar progressivamente à espera damorte. Os transplantes, todavia, não se fazem sem queexistam doadores e, inevitavelmente, algumas questõesmorais e legais foram argüidas. Em que situações e emque momento é lícita a retirada de órgãos para trans-plantes? Apenas após a cessação da atividade cardior-respiratória? Ou seria válido o critério da “morte ence-fálica”? É necessária uma manifestação explícita do po-tencial doador, ou a sua não-oposição pode ser consi-derada aquiescência implícita? Qual o critério para de-cidir a destinação dos órgãos disponíveis? Deve-se obe-
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decer a uma fila por ordem de chegada ou seria justo
um critério de “melhor aproveitamento” ou “maioreschances”? A quem caberia resolver tais questões?
Outra problemática não menos complexa ecandente é derivada do aperfeiçoamento da técnicacirúrgica e da assepsia, assim como dos conhecimentosobstétricos: a do aborto. Tida antes como um procedi-mento de risco, marginal e sujeito a grande letalidade,a interrupção cirúrgica da gravidez passou a ser algobastante simples, seguro e factível na grande maioriados casos. À velha contraposição entre direitos da mu-lher e do nascituro, porém, veio agregar-se a discussãomoral do aborto eugênico, diante do desenvolvimentode técnicas que tornaram possível a previsão daocorrência de malformações genéticas ou congênitas.
Não menores são as polêmicas que envolvem asituação inversa à do aborto: a das técnicas de repro-dução assistidas. Apresentadas amiúde como técnicasfantásticas, envoltas em uma aura de heroísmo,pioneirismo e de grande eficácia, essas práticas rece-bem, por outro lado, numerosas críticas por conta deserem pouco avaliadas, de baixa eficácia, extrema-
mente onerosas e por exporem as mulheres a situaçõesindesejáveis, como a da administração de doses eleva-das de hormônios e a das prenhezes gemelares. Ade-mais, no caso da fertilização in vitro (FIV), recebemcríticas de cunho moral a “redução embrionária” e os“embriões excedentes”. A primeira expressão constituieufemismo criado para denominar o abortamento departe dos fetos implantados no útero, procedimento
que garante a eficácia do processo de fertilização. Já a
segunda concerne aos embriões gerados em labora-tório e abandonados congelados pelos doadores deóvulos e espermatozóides ante o sucesso ou insucessoda FIV. O que fazer com tais embriões? Não menoscontroversas são as situações decorrentes das possibili-dades abertas pela técnica, relativas à “barriga dealuguel”, doação de óvulos e sêmen, e de gravidezes demulheres que não apresentam problemas para empre-nhar, mas que buscam uma “produção independente”,ou de lésbicas, que não querem contato sexual com ogênero masculino.
A engenharia genética, incluída a clonagem,por sua vez, parece ser fonte inesgotável, e atualíssima,de contestações. A despeito do tratamento sensacio-nalista – e, freqüentemente, até mesmo oportunista –dado pela mídia, o tema das técnicas de bioengenhariaenseja uma série de considerações altamente relevan-tes. Seria lícita a prática da eleição do gênero do feto,ou de qualquer outra característica fenotípica? E aidentificação ou mesmo seleção do indivíduo a partirde determinado genótipo? É aceitável que tecidos em-
brionários sejam utilizados em pesquisas? Qual osentido de se ter um filho para que sirva como poten-cial doador de medula óssea para um irmão com leu-cemia? Seria justificável a clonagem do próprio indi- víduo para utilização futura como “peça de reposição”?Haveria fundamento moral para que o genoma, ouuma seqüência de ADN, de uma determinada espécieseja objeto de patente mercantil?
Perpassando todas essas conjunturas, semdúvida alguma conflituosas, encontra-se a questão da justiça e da distribuição equânime dos frutos do de-senvolvimento científico. É um fato inquestionávelque a grande maioria das mortes ocorridas em todo omundo é devida a doenças redutíveis mediante o usode tecnologias simples, baratas e já conhecidas hátempos. Também não causa reparo o fato de que apesquisa de drogas e vacinas eficazes, ou mais eficazes,não atrai o complexo médico-industrial, pois, comoescreveu o correspondente de um grande jornal, “émais lucrativo ajudar um norte-americano obeso aperder alguns quilos ou um europeu idoso a manter
uma ereção do que salvar um africano da tuberculose”.Diante de tantas e tão importantes interro-gações suscitadas pelo desenvolvimento científico etecnológico, é forçoso que se indague: seria moral- F O
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Não menores são aspolêmicas que
envolvem a situaçãonversa à do aborto: a
das técnicas deeprodução assistidas,com a administraçãode doses elevadas de
hormônios, artilização in vitro e as
chamadas“barrigas de aluguel”
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mente justificável, praticamente factível ou juridica-
mente razoável a determinação de limites para apesquisa científica?
É importante destacar que, no Brasil, assimcomo na maioria dos países democráticos, a liberdadede expressão científica é garantida pela ConstituiçãoFederal. Não obstante, deve-se considerar que talliberdade comporta exceções jurisprudenciais e legais,baseadas no princípio da razoabilidade, bem comopode ir de encontro a outros direitos democráticosprevistos igualmente na Carta Magna.
Os que defendem a tese de que não se poderestringir a atividade em ciência básica argumentamque, além de antidemocrática, a imposição de limites éineficaz. Como alternativa aduzem que, em determi-nados casos, dever-se-iam estabelecer moratórias paraas aplicações práticas derivadas dos conhecimentosproduzidos. Ora, tal alegação é débil, uma vez que aineficácia também pode ser argüida em relação ao uso
do conhecimento derivado da pesquisa básica. Ade-mais, ao que se saiba, não há exemplo de nenhumaaplicação de conhecimento que tenha sido voluntaria-mente abandonada, a não ser quando o seu uso provouser ineficaz ou antieconômico.
Assim, tornam-se legítimos a limitação, o con-trole e até mesmo a proibição de pesquisas e aplicaçõessobre as quais pairem dúvidas relevantes e bem fun-damentadas por parte da comunidade científica e daopinião pública, e que possam representar riscos moraisou biológicos, incluindo-se dentre estes os ambientais.
Para que os limites se façam efetivos é defundamental importância a ação em 3 níveis distintos:o autocontrole dos próprios cientistas, o controle jurí-dico e o controle social.
O autocontrole dos cientistas, embora impor-
tante, tem se mostrado de todos o mais complacente,tendo em vista que diz respeito à própria comunidadede interessados no desenvolvimento das pesquisas oudo uso de determinadas tecnologias. Os limites impos-
tos pelas normas deontológicas são, sem dúvida, neces-
sários, mas, de forma alguma, suficientes. Exemplosde como o autocontrole pode ser exercido com com-placência são os conselhos de fiscalização profissional,muitas vezes condescendentes na fiscalização e no jul-gamento de seus pares.
Já o controle jurídico, conquanto essencial numcontexto democrático, é, via de regra, de aplicabilidademais lenta. Os prazos para a elaboração de leis são emgeral longos, dadas as características da atividade par-lamentar. Desse modo, comumente, as leis não ante-cedem aos fatos, mas configuram respostas da socie-dade a fatos já estabelecidos. É bem verdade que a jurisprudência, fonte importante do Direito, tem umpapel imprescindível no estabelecimento de limites,muitos deles não clara ou objetivamente previstos nalegislação. Contudo, observa-se que, mormente noBrasil, o Poder Judiciário demonstra dificuldades emtratar de temas com alta densidade científica.
Por fim, encontra-se o controle social, a serexercido em fóruns adequados, em que a sociedade ci- vil se faça representar em toda a sua diversidade: polí-tica, religiosa, ideológica, social, corporativa e de inte-resses. Tais fóruns têm representado em muitos lugaresdo mundo efetivos espaços de diálogo e negociaçãoentre os que pensam diferentemente. Seus relatórios erecomendações sobre questões polêmicas sob a óticamoral ou biológica têm cumprido um papel funda-mental para a fixação de limites à atividade científica,seja subsidiando a atuação do Poder Executivo, sejaorientando a ação legiferante, ou, ainda, fundamen-tando doutrinariamente as decisões do Judiciário.
Para nós brasileiros, o estabelecimento de umcontrole social efetivo sobre a atividade científicareveste-se de um grande desafio, tendo em vista nosso
histórico de corporativismo e de exclusões: social,educacional, cultural, de informação e de participação.
Hugo Fernandes Júnior é medico sanitarista,especialista em Bioética
A engenharia genética, incluindo clonagem, parece serfonte inesgotável, e atualíssima, de contestações. A par do
tratamento sensacionalista dado pela mídia, o tema das técnicasde bioengenharia apresenta uma sériede considerações altamente relevantes
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Uma das melhores frases sobre morte é a quediz: “Nossa repugnância à morte cresce
na mesma proporção que nossa consciênciade ter vivido em vão”
Daniel Piza
obre a morte, o escritor francês GeorgesPerec não poderia ter publicado um “manual
do usuário” como fez com a vida. Não há modo deusar para a morte que seja útil, nem mesmo ironi-camente. Vida tem avesso; morte, não. É curiosoque, quando alguém morre, costumamos ouvir:“Fazer o quê? É a vida...” Não, é o fim dela. E amorte vem sem manual tanto para quem morre co-mo para quem perde o ente querido. Ela é tão in-compreensível que esse ente fica ainda mais queridodepois de morto, como as telas de um grande pintorse valorizam depois de seu obituário.
Mas não é de hoje que se sabe – ou não sesabe – tudo isso. Desde Montaigne, no final do sé-culo 16, pelo menos, a morte já deixou de ser umagarantia de passagem para a eternidade, decorada à
moda de cada religião. Em seus Ensaios, o sábiofrancês, começa escrevendo que a filosofia deve en-
sinar o homem a “aprender a morrer”, invocandopoetas greco-latinos da antigüidade; com o tempo,porém, vê que o homem só pode mesmo é tentaraprender a viver, e diz, entre outras sabedorias: “Umhomem pode pelo costume fortificar-se contra a dor,a vergonha e acidentes semelhantes; mas, quanto àmorte, só a experimentamos uma vez, e somos todosnovatos quando a ela chegamos.”
Não há “convívio” pacífico com a morte, pormotivos que a etimologia já explica. Ainda assim, ohomem moderno insiste em aprender a morrer, emlidar com a morte de algum jeito que a adie ou aenfeite. Mesmo um suicida muçulmano precisaacreditar que será recompensado com um paraíso
S
Morte a débito
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repleto de odaliscas depois de abalroar uma torrecom milhares de pessoas dentro. No chamado
mundo ocidental, diversas tendências de comporta-mento indicam que, se a expectativa de vida me-lhorou em tantas latitudes, a expectativa de mortenão se atenuou em nenhuma longitude. O serhumano ainda não está satisfeito em viver 70, 80anos em média, mais que o dobro do que vivia háapenas um século. Ao contrário: quanto mais vive,mais se ilude com o culto da juventude, com o so-nho da eternidade. E tomem cirurgias, botox, mo-das e modismos. Uma pessoa de mais de 40 anos,ou até 35, só é considerada bonita se parecer termenos idade do que tem.
Uma das melhores frases sobre morte (comosobre tantos assuntos) é do ensaísta inglês William
Hazlitt, que, num texto de 1815, Sobre o amor à vida, já escrevia:“Nossa repugnância à morte crescena mesma proporção que nossa cons-
ciência de ter vivido em vão.” Issonada mais é do que dizer carpe diem,aproveite o tempo; mas o homematual, embora viva cada vez mais, pa-rece ter cada vez menos tempo. Suasensação é a de que faz coisa atrás decoisa e, no entanto, está sempre de-
vendo. Como ouve nos comerciais deTV que deve ser profissional, mãe eesposa, além de fazer reeducação ali-mentar, largar de fumar, não perder omais novo point da cidade ou o maisrecente filme de não-sei-qual ator eainda cultivar um tal de ócio criativo,a mulher contemporânea nem sabemais o que faz por prazer ou o que fazpor obrigação. Teme, por isso, a ve-lhice, com suas doenças, sua lentidão,suas rugas – e a proximidade desteNada inevitável chamado morte.
Os tempos, por sinal, pedem
nova versão de A morte de Ivan Ilitch,a novela de Tolstoi. Se no livr o per-sonagem vive uma espécie de morte-em-vida, de papel social que se revelapapel em branco, sua atualização pe-diria uma vida cheia de atividades, namaioria egoístas, “muita adrenalina”,notícias contínuas pela Internet e do-ses cotidianas de vitamina contra o
estresse, quando não de calmantes e estimulantes.Uma vida tão vã quanto a de seu antecessor russo
ou a daquele Macbeth, sem o ouvido de Macbethpara a música das palavras. Daí sua crença em estar“pronto para a morte”, como se isso fosse possível.De alguma coisa se morre, diz o médico SherwinNuland em seu fascinante Como morremos, umadescrição fisiológica do que é a morte, seja precoce,seja tardia.
Outras tendências atuais aparentemente con-tradiriam isso, mas pense um pouco. Os debatesmorais sobre aborto, eutanásia e clonagem termi-nam, não raro, mostrando que tantos os “prós” co-mo os “contras” pensam de modo parecido: a vida éalgo “sagrado” e por ela se deve fazer o possível.Mas há uma diferença menor, nem por isso menos
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Jack Kevorkian,conhecido comoDr. Morte por defender a eutanásia
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importante. É que os que advogamum arbítrio maior do ser humanosobre a vida preferem levar em contaum dado relativo, o da qualidade de
vida. Os pró-aborto dizem: “Se vocênão tem condições de criar decente-mente um filho, revogue o processo vi-tal em seu estágio inconsciente”. Ospró-eutanásia dizem: “Se você vai viver
vegetando, com o mínimo possível deprobabilidade de sobreviver dignamen-te, para que manter os órgãos estimula-dos por aparelhos a custo de outro?” Ospró-clonagem dizem: “Se células e teci-dos podem ser utilizados para fins tera-pêuticos, resolvendo problemas comoas filas dos transplantes, por que não?” De algum mo-do, algum “limite” pode ser estabelecido.
Os que são contrários a essas liberalidadescostumam invocar o seguinte argumento: quem dizqual é esse limite? Que direito tem o ser humano, ouum indivíduo, de determinar o ponto de virada emque a vida se faz, em que o aparentemente inanima-do ganha alma? O feto de um mês teria “vida hu-mana”, mesmo que não possua consciência de sua
própria existência. O sujeito em coma no hospitalpode “voltar” a qualquer instante, por algum cami-nho que a ciência ainda não vislumbra. A reprodu-ção de células humanas interfere no curso naturaldas coisas, dando espaço para o indivíduo fazeropções que causariam grandes problemas éticos esociais, como escolher que seu filho tenha olhosazuis e 1,85m de altura.
A questão parece atual, mas é antiqüíssima.Uma espiada na novela O clone resume o senso co-mum sobre essas questões. O médico autor da clo-
nagem, dr. Albieri, não passa de um vaidoso queacha que pode ser Deus. Como a dependência quí-mica, tal desejo traveste apenas egoísmo e fraqueza,a falta do referencial religioso; é um desejo de poder,de onipotência. Uma vez que a humanidade traz emsua memória recente a defesa nazista da eugenia,qualquer tipo de alteração nos ditames da mãe-natu-reza não será apenas antiética, será também diabó-lico. Esse é o argumento conservador.
Mas, por mais que seja quase universal o te-mor de que su usem tais tecnologias em prol deideologias discriminatórias, convém lembrar que oslimites são flexíveis até certo ponto. Se não tivessesido assim ao longo da história, hoje, boa parte das
sociedades não desfrutaria de uma vida mais longa emais saudável; as vacinas não teriam evoluído; malescomo a Aids e o câncer não poderiam ser atenuados;controles de natalidade não teriam impedido o cres-cimento em progressão geométrica da sociedade atéo esgotamento da própria natureza. Qualidade de
vida é um conceito subjetivo, mas obviamente oaumento da duração da existência e a possibilidadede redução dos sofrimentos físicos são conquistas
inegáveis. Mesmo os que falam em nome de Deusou da natureza não podem negar que tais avanços,ainda que não garantam, ao menos criam uma pos-sibilidade de respeito à complexidade da natureza eà materialidade da vida.
Mas eis outra questão difícil. Se podemosestabelecer alguns parâmetros – um compromissoda pesquisa tecnológica com o desenvolvimento sus-tentável e o respeito fundamental à individualidade–, não existe a certeza de que a humanidade saberásegui-los; antes ainda, de que saberá defini-los. Um
alerta sobre a tosca faculdade do ser humano de estarà altura de seus próprios conceitos de dignidade edecência é o que qualquer cético depois e antes deMontaigne deve fazer.
Sou, para voltar aos exemplos, a favor do abor-to, da eutanásia e da clonagem terapêutica, serespeitadas as premissas condicionais. Acho que oaborto até três meses de gravidez tem sentido, porqueaté aí não se terminou a formação da estrutura básicado ser humano; que a eutanásia é um direito do indi-
víduo, eventualmente transferido à família, quandoas chances de reversão são mais que remotas; que aclonagem de células-tronco para formar bancos deórgãos e tecidos mais acessíveis e democráticos é um
Dr. Albieri, vivido por Juca de Oliveira na
novela O clone,não passa de um
aidoso que acha quepode ser Deus
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alento para muita gente. Mas obviamente repudio asclínicas que realizam aborto por atacado, temo osmédicos e os planos de saúde que convenientementefazem menos do que podem por uma vida terminal,tremo ante a idéia de um casal determinando as ca-racterísticas exteriores de seus filhos. É o problemado progresso: com o carro e a indústria, as socieda-des ganharam riqueza e conforto, mas também po-luição e congestionamento.
Mesmo assim, é o que temos. De certa for-ma, fazemos “interferências na ordem natural” otempo inteiro. A própria existência do Homo sapiensàs vezes parece uma ofensa aos ciclos da natureza.Mas considere a questão da gravidez. Como notouH.L. Mencken, podemos evitá-la com métodos di-
versos: matemáticos (a “tabelinha”), físicos (cami-sinha, DIU etc.) e químicos (pílula). Por que não“evitá-la” depois da concepção? Mencken pergunta
se seria porque a alma invade o ser humano já naconstituição do zigoto... De algum modo, toda ciên-
cia não deixa de ser uma forma de o homem lidarcom a natureza, de agir sobre ela; (se não pode“controlar”, tente ao menos monitorá-la).
Trata-se, portanto, de uma condição humana.Precisamos estabelecer – e sempre re-estabelecer ou,então, restabelecer – os tais limites. Não existedefinição pura e simples, assim como não existe olivre-arbítrio pleno e simples. Em face da inevita-bilidade da morte, fazemos o que podemos, cada um– ou cada cultura – com suas gradações. “O suicídioé a única questão filosófica”, escreveu Camus, masisso não é verdade: se o certo fosse todos nos ma-tarmos, nem sequer haveria questões filosóficas. Oque não podemos é optar por não morrer.Lembramos o verso da grande Emily Dickinson:“É o fato de ter um fim/ que faz doce a vida.” Se amorte tivesse serventia, se fosse um crédito, vivernão teria exigências.
“Sou a favor do aborto e da clonagem terapêutica,mas tremo diante das clínicas que fazem abortopor atacado e do casal determinando as
características externas de seu filho”
Autor de A morte de Ivan Ilitch,o escritor russoLeon Tolstoi emseu leito de morte
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Daniel Piza é jornalista
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e me pedissem, de repente, para citar dois fatos
sociais positivos do mais sangrento dos séculosda humanidade, o século 20, eu mencionaria ime-diatamente o avanço extraordinário dos meios de in-formação-comunicação e as vitórias da mulher nocampo político (votar e ser votada) e econômico(participação cada vez maior no mercado de traba-lho). Esses dois processos estão evoluindo em velo-cidade prodigiosa, assustando velhos redutos con-servadores em todo o mundo.
A mulher sempre esteve presente na históriapolítica e social deste país, embora sua presença na
economia só se fez mais notada a partir da segundametade do século passado. Quando recebi, paramodestamente resenhar, a antologia poética Corpo lu- nar, composta de textos, segundo sua organizadora,Edileusa da Rocha, de 26 “poetisas radicadas no Reci-fe”, fiquei meio intimidado, porque estava acostumadoa antologias mistas. Depois lembrei que nas antologiasmistas a presença masculina sempre foi dominadora,como ainda o é em vários outros setores da sociedade.Dentro de um mundo ainda tão preconceituoso, por-tanto, o livro organizado por Edileusa tem sentido,tanto poético quanto revolucionário.
Procurando uma ajuda bibliográfica para fa-
zer esta resenha, deparei-me com dois livros de leitu-ra agradável, em cujos cada parágrafos está subja-cente o desejo de reparar injustiças atávicas ou acen-der nomes femininos mergulhados no esquecimen-to. Consultei os livros Mulheres ilustres do Brasil, deIgnez Sabino (edição sem data, mas, presumivel-mente, de 1899) e Pernambucanas ilustres, de Hen-rique Capitolino Pereira de Mello, edição de 1879.Ambos abrem a sua “humilde galeria”, como dizCapitolino, com duas índias célebres por seus amo-res e habilidades diplomáticas, demonstradas na
aproximação de suas tribos dos colonizadores: Para-guassu e Arco-Verde. A primeira tornando-se mu-lher de Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru de nos-sos livros escolares, e a segunda virando a “Eva” dochamado, se não me engano, por Gilberto Freyre,“Adão pernambucano”, Jerônimo de Albuquerque.
São dois livros que procuram dar o valor me-recido a mulheres mortas, mulheres do passado.Um escrito por uma mulher e o outro, por um ho-mem. A organizadora da antologia diz em seu dis-curso de lançamento: “Quando penso em literaturafeminista, incluo aquela escrita por escritoras e escri-
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Alberto da Cunha Melo
Cabeça de mulher
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A R C O Z E R O
Uma antologia refinada e de boa qualidadeestética, mas que – de leve – reforça algunsestereótipos
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tores”. No caso citado, Henrique Capitolino talveztenha sido um dos primeiros escritores feministas dopaís (quando escreveu o seu livro não tinha aindaterminado o seu curso de direito, no Recife).
Mas, vamos à antologia Corpo lunar. A capada obra é um bom quadro em tinta acrílica sobre tela,de Margot Monteiro, representando um tronco de
mulher nua. Ora, como deduzo que a proposta deorganização da antologia tem o sentido de valorizar odesempenho da mulher na literatura pernambucana,o melhor significante seria uma cabeça feminina, poisa valorização/exploração do corpo da mulher a gentedeveria deixar com as Globos da vida. No prefácio a Mulheres ilustres do Brasil, Arthur Orlando, sociólogoda Escola do Recife, propõe métodos de ensino di-ferenciados para os dois sexos: “É preciso que aeducação da mulher corresponda ao seu tríplice des-tino de irmã, esposa e mãe”, ou melhor, seja a mulher
biológica, a mulher-tronco, sem cabeça.Corpo lunar é uma antologia que reúne 26
poetisas, algumas, estereotipadamente, sem ano denascimento registrado, e outras apenas a década ci-tada. Das que têm seu ano de nascimento regis-trado, a que nasceu em data mais distante foi IsnarMoura, que também se distinguiu em Pernambucocomo jornalista e educadora. As outras duas maispróximas nasceram em 1915: Celina Holanda eOdile Cantinho. A mais jovem, se é que isso fazalguma diferença, é a poetisa Gabriela Cunha deMelo Cavalcanti.
Aquilatar uma antologia é uma das coisasmais difíceis da crítica literária. Como uma resenhanão permite a análise de poema por poema, a
solução, no meu caso, é procurar regularidades nostextos antologiados. Mas essa é uma solução precá-ria em relação a Corpo lunar, pois coube apenas a ca-da uma das selecionadas o espaço ínfimo de duaspáginas. Diante de tamanha exigüidade é impossívelque se tenha delas uma amostra de textos represen-tativa de toda a sua obra.
A partir dos textos disponíveis é possível, noentanto, falar do que existe no livro, embora a obser-
vação não valha para o que está por trás dele. Quan-to ao conteúdo, por exemplo, das 26 poetisas, 20apresentam textos com temática amorosa, o que dáquase 80% do universo selecionado, algo a reforçaralguns estereótipos sobre a psicologia feminina.
Notei que os poemas escolhidos estão todosdentro da modernidade, com simbologia complexa,a exteriorizar-se por metáforas originais e até hermé-ticas. Do ponto de vista estrutural, a maioria dasautoras optou pelo poema em verso livre, seja o quechamo de polimétrico ou o que costumo denominarde poema-crônica, o primeiro mantendo ritmo e
cadência intencionais, majoritariamente em versoscurtos (no caso), abaixo do decassílabo, e o segundotrilhando o simbolismo prosaico-poundiano, como ofez Eugênia Menezes.
Infelizmente, o espaço não permite comentartodos os belos poemas que compõem o volume, bemcomo os poemas amorfos (não-poemas), que sãopoucos. O que eu sei é que há nomes definitivos, emCorpo lunar, não apenas na história da poesia per-nambucana, mas brasileira, como Lucila Nogueira,Celina Holanda, Déborah Brennand, Tereza Tenó-
rio, Maria do Carmo Barreto de Melo, Maria deLourdes Hortas e Dione Barrreto, além de outrasque se vão firmando com sua work in progress, comodizem os ianques.
Ser v içoCor po l unar – Edileusa da Rocha (organizadora)Editora – Prefeitura da Cidade do Recife / HospitalSanta Joana72 p. – Recife – 2002Distribuição gratuita.
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Capa do
livro Corpo Lunar,antologia dapoesia femininapernambucana
Alberto da Cunha Melo é jornalista, sociólogo e poeta
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Arnaldo Tobias nasceu em Bonito (PE). Integranteda chamada Geração 65, de poetas e escritores per-nambucanos, vem publicando poemas e contos em
jornais e revistas recifenses e brasileiros desde 1962.Publicou, pela Edições Piratas, do Recife, os livrosde poesia: Pomar (1979), Passaporte (1981) e Nu
relato (1983). Com o pseudônimo de Ana Marga-
rite, publicou o livro-álbum Tenda proibida (poesiaseróticas). Tem textos incluídos na Agenda poética – antologia dos novíssimos (1968), no Álbum do Recife(editado em homenagem aos 450 anos da cidade doRecife). Na coletânea Gilberto Freyre entre nós, na
Antologia didática para o 2º grau de poetas pernambuca- nos (edição da Secretaria de Educação do Estado dePernambuco) e na antologia Contos de Pernambuco. Etextos publicados em jornais e revistas da Venezuela,Chile, Bolívia, México, Cuba, Nicarágua, EstadosUnidos (Universidade da Califórnia). É fundador-
editor do jornal alternativo Pro texto, em atividadepoética desde 1981. Tem, inéditos, os seguintes li-
vros de poesia: Lasciva saliva, Salário dor/sal, Trinta poemas sociais e outros versos do mesmo tema (a sair); olivro de contos A nona hora e um livro de poemas e
contos para crianças. Arnaldo Tobias faleceu noRecife em 26 de maio de 2002.
ldorado
Não eram maus
Os meus soldadinhosDe chumbomeu paisoldado da cavalariado estadoum dia me comprouum batalhão deles
vieram de armasnos ombrosou cruzadas no peito
alguns rastreantesno avanço imaginárionão mandavamchumbo em ninguém
no meu Eldorado
às tardinhaseu dava o toquede silêncioe lá ficavam hirtosno quartelzinhode caixa de sapatospela manhãzinhade novo eu apitavao toque de alvoradae já de pelotões
(ao meu comando)eu formavao meu fiel batalhão
Poema atítulo
Esse povo passivo
até certo pontopovo indecisoaté nos encontrosessa gente moídaem moe/dorde carne duratambém espremidaem espreme/dorde frutas ácidasessa prole/plebe
pobre na pele e ossona vida insossae na cegueiraherdeira(mas a alma nobre)um dia ainda vence.
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Rua deserta, nenhumpassante. Recife
antigo, a luz solitáriade um poste mal
ilumina uma parederabiscada
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Cidade pernambucanade São Caetano
Lembrançafotografia
Fotos de Walter Carvalho
M I L P A L A V R A S
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grafia, que esteve em cartaz brevemente, na TorreMalakoff, no Bairro do Recife. As fotos são um in-
ventário emocional das suas viagens pelas terraspernambucanas. Segundo ele, são “o tempo passado
e o tempo passando.”É o próprio Waltinho quem fala sobre o seuponto de partida para essa declaração de amor empreto e branco a Pernambuco: “Com 16 anos, eu fiza primeira viagem ao Recife, vi a cidade passadapelo rio. Não tenho certeza, mas posso imaginar que
via aquele rio como uma língua mansa de um cão,como disse o poeta João Cabral. Naquele dia fui fo-tografado acidentalmente de propósito por alguémque passava sobre a ponte Santa Isabel. As fotos sãofragmentos que vi e amei em Pernambuco. Não setrata de making of , não têm a pretensão de ser umareportagem, é quase que um documentário transi-maginário de viagens, de encontros que tive ao lon-go de alguns anos.” Tudo começou aí...(George Moura)
RestauranteCruzeiro no Sertãode Pernambuco
O grafite tomaconta da pequena
sinuca e deBrasília Teimosa
alter Carvalho é fotógrafode cinema. Nasceu em João
Pessoa, mas mora no Rio de Janeirohá mais de 30 anos. Waltinho, como
é conhecido, já fez para lá de 50filmes – entre eles estão Central do Brasil, Lavoura arcaica e Carandiru–, fez novelas na TV, como Renascer,e minisséries, como Agosto, e con-quistou 26 prêmios em festivais deBrasília à Macedônia. É um parai-bano “arretado de bom”, semprecom uma máquina a tiracolo e umaadmirável capacidade de trans-formar em notável tudo o que foto-grafa. Você olha a realidade e não vê.Waltinho enquadra e revela uma no-
va realidade.Ele se confessa um apaixona-
do por Pernambuco, paixão que re-sultou na exposição Lembrança foto-
W
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“Olinda é para os olhos” (Carlos Pena Filho)
O movimento da lâminaafia a faca, corta o silêncio
e a jugular do boi,esquarteja as carnes para
a feirade Carpina.
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Mestre Salu e o nobre aprendiz Antonio
Naná no Rio em 70 comTorquato “Soy Loco por ti
América” Neto.No estúdio da Odeon, Nanáatabaqueando com oSom Imaginário
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Tavares da Gaita, fazedor de música einstrumentos, personagem de umdocumentário inacabado que eu, BetoBrant e Cláudio Assis, com teima e“tudo”, iniciamos. Título do filme: “SeCria Assim...” como sentenciou MestreGaldino, do alto do Sertão e da sua
sabedoria
Alceu Valença
Dom Hélder
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ArianoSuassuna eLuiz FernandoCarvalho, apalavra e aimagem
O sangue, o sol,a pedra
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O assassinato de Monsenhor Joviniano
e o crime de Francisco Brennandonsenhor Joviniano Barreto foi esfaqueado porum romeiro do Padre Cícero, na matriz de
Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, noCeará, no ano de 1950. Os soldados que prenderam oassassino perguntaram por que ele havia cometido ocrime. Com a serenidade de um fanático, respondeuque matara o monsenhor porque este remexera nosmistérios de Juazeiro. De fato, durante o sermão de
uma missa que celebrara, Joviniano Feitosa pusera emdúvida os milagres de transmutação da hóstia em san-gue, ocorridos na pequena vila em que o Padre Cíceroera vigário. É possível que eu tenha ouvido a palavra mistério, pela primeira vez, no relato dessa história trá-gica. Nunca mais consegui me desfazer do seu signi-ficado de interdição, limite intransponível, câmara pordesvelar. O assassinato, além de todos os seus horrores,estava carregado de erotismo e sexualidade: uma vir-gem, a beata Maria de Araújo, sangrou pela boca, ao
mastigar o corpo simbólico de Cristo; um homem deDeus foi sangrado porque duvidou que o Cristo tives-se revivido a sua paixão no corpo da humilde beata.
As religiões não cristãs convivem muito bemcom a sexualização das suas divindades e dos seus ritos.Na Índia, os templos são adornados com falos, linga,símbolo da energia masculina, e vaginas, yoni, emblemaprimário da energia feminina. Juntos, eles simbolizama união criadora e mantenedora da ordem do universo.É o hieros-gamos, dos gregos. O cristianismo aboliu oscultos explicitamente sexualizados e orgiásticos. Pro-
moveu a ascese, a castidade e a negação do corpo.
Baniu o hedonismo em favor de uma assepsia do pra-zer. Eros foi duramente mascarado, a nudez encoberta,os genitais disfarçados, diminuídos nas proporções ouaté mesmo abolidos, num evidente contraste com asreligiões hinduístas, em que os falos são representadosem tamanhos avantajados, significando o poder gera-dor. Mas essa hipocrisia do sexo encarcerado explodiuem perversões e escândalos, crimes e histerias.
O Renascimento tentou reaver o direito à ex-pressão da sexualidade do Ocidente, reprimida na Ida-de Média. As pinturas não reproduziam apenas ossantos aureolados, mas também os corpos nus, plenosde erotismo. Lamentavelmente essas transformaçõesdemoraram a chegar a Portugal e Espanha. Por muitotempo esses dois países ibéricos permaneceram sob atutela da Igreja Católica Romana, transportando parao mundo novo que descobriram as culpas e mazelas docristianismo, impondo-as às gentes de cá, gente liberta,
no que se refere às sombrias culpas do sexo. Culpasmanifestas em casos como o da beata Maria deAraújo, ocorrido em pleno século XX, mostrando queo medievo ainda está vivo no Nordeste brasileiro. E seisto é bom para que alguns aspectos da cultura possamser preservados, é também muito ruim como agenterepressor da criação.
Criar uma torre-mirante que lembra um falo éo mesmo que remexer em mistérios indevassáveis.Francisco Brennand que o diga. A construção do seuparque de esculturas do Marco Zero por pouco não
vira tragédia. Algumas pessoas devem se lembrar da
Ronaldo Correia de Brito
M
As religiões nãocristãs convivemmuito bem com asexualização das
suas divindades edos seus ritos.O cristianismopromoveu a ascese,a castidade e anegação do corpo
E N T R E M E Z
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história. A imprensa nos abarrota de informaçõesquando uma notícia vira escândalo, mas esquece de in-formar os desdobramentos ou desfechos do imbrólio.Brennand recebeu a encomenda das esculturas, entreelas, uma torre-farol. Reclamou-se do alto custo daobra, do sacrifício de alguns pés de castanholas, dadestruição da bucólica pracinha do porto. Mas o gran-de trauma da nossa sociedade recifense foi a desco-berta de que a torre-farol lembrava um gigantesco pê-nis. Surgiram protestos, manifestações contra e a favor,discursos sobre a liberdade de criação. Com certeza, ospolíticos que fizeram a encomenda nunca visitaram o
ateliê do artista, na Várzea, onde o sexo masculino e ofeminino aparecem recriados em dezenas de cerâmi-cas e imaginamos estar num templo indiano ou naGrécia primitiva. Liberto de qualquer amarra, Bren-nand em seu local de trabalho dá curso às fantasias.
Em que mistérios ele remexeu? Na afirmaçãode que somos dotados de genitais, de sexualidade, ede que não é possível esconder as nossas pulsões cria-doras ou destruidoras. Tentaram vetar a criação deBrennand, porque ela afirmava a nossa naturezaessencial, a mais primitiva, o Eros que pulsa em opo-
sição a Tanatos, a morte. A esposa de um político ma-goou-se nos seus pudores cristãos. Um político dese- jou matar um jornalista. Brennand, como o Monse-nhor Joviniano, vasculhara as forças eróticas dacriação e da transubstanciação, que fazem trigo virarcorpo e sangue, pedra triturada virar cerâmica. Bren-nand remexeu no mistério da criação, expondo na ca-ra de todo o Recife que temos sexo, fazemos sexo pormero gozo e que também procriamos. E isto, à luzcristã, é um crime hediondo.
Esqueceram essa história tão fantástica da nos-sa cidade dos arrecifes. Não deram mais uma notícia.Não fizeram mais um único comentário. Felizmente,ninguém morreu. Disfarçada por enfeites décor , atorre-farol se ergue, e por dentro dela, o rijo falo. Oconjunto de esculturas é sem dúvida a mais bela obrade Brennand. Eu penso assim. E também pensamassim os dois barqueiros que se ofereceram para fazera minha travessia do Marco Zero para o outro lado.
– Vamos, doutor! É muito bonito.É mesmo!
Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico
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Primeira menina solista a tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife,
aos 11 anos, a pianista Josefina Aguiar é famosa por sua garra naluta pela preservação da música clássica
A Dama da Resistência
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inha ela apenas cinco anos de idade, mas suaprofessora de piano já notara que havia algo de
diferente nas suas mãozinhas: era como se fossem elás-ticas. O tempo se encarregou de mostrar que a mestratinha razão. Josefina Aguiar foi a primeira menina so-lista a tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife(OSR), aos 11 anos, e é considerada um dos rarostalentos musicais que despontaram na década de 40
em Pernambuco. Devido a sua garra em preservar amúsica clássica, os amigos a chamam de “A Dama daResistência” e de “Leoa do Norte”.
“É uma herança genética. Minha mãe (Maria
Aguiar) era violinista e meu tio Elias era doutor emmúsica e regente. Papai (Antônio Aguiar) gostava demúsica erudita e tínhamos até um quarteto de câmaraem casa”, recorda a pianista. O talento nato foi des-coberto por acaso. Ao chegar de Alagoas, a professorade piano Stella de Almeida pediu à amiga MariaAguiar que lhe conseguisse algumas alunas. Naquelaépoca, como dizia Mário de Andrade, reinava a “pia-nolatria”, e logo a professora reuniu muitas pupilas. Porelegância, a mãe de Josefina matriculou-a também.
Convencida da preciosidade que encontrara,Stella comunicou aos pais da menina todo o seu poten-cial. “Mas eles não levavam a sério aquela história demãos elásticas. Então, para provar que estava certa,minha professora me preparou para tocar dez músicasde cor no meu aniversário de seis anos”, lembra. De-pois dessa apresentação, não houve mais dúvidas.
“Conheci Josefina por volta de 1950. Éramos,então, jovens talentos musicais, mas breve tive o vislumbre de que Josefina iria além. Mais do que umtalento pleno de audácia e coragem, ela era o próprio
prodígio musical, dominando as partitu-ras mais complexas”, observa o pianistaEdson Bandeira de Mello.
A primeira audição aconteceu aosoito anos, na presença de amiguinhos, co-mo o futuro político Marcos Freire. Mas oRecife a ouviu tocar pela primeira vez norádio. O pai a levara ao programa de Nel-son Ferreira, na Rádio Clube de Pernam-buco, e, sem saber que estava no ar, ela to-cou o adágio da Sonata ao luar , de Beetho-
ven. O episódio rendeu-lhe fama imediatae um ilustre fã, Valdemar de Oliveira.
No ano seguinte, veio o primeiro recital. Suafama já ultrapassara as fronteiras de Pernambuco echamara a atenção do pianista potiguar Valdemar deAlmeida, que levou Josefina para se apresentar emNatal. “Foi nessa época que comecei a tocar com (o violinista) Cussy (de Almeida), filho de Valdemar, emeu amigo até hoje”, lembra. Os dois, aliás, fizeramum duo na década de 60 que foi considerado pela crí-tica especializada como o mais completo do Brasil.
“Valdemar de Oliveira escreveu em crônica que Josefina era uma menina genial, e que ela e Cussy,quando tocavam juntos, realizavam o milagre de tocar
Continente Multicultural 93
Ao lado,autografandoo seu único disco,O piano de Josefina Aguiar.Na página anterior,a pianistaaos 15 anos
T
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S S O A L D A A R T I S T A
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ao mesmo tempo dois instrumentos descobrindo nelesuma só alma”, lembra a pianista Elyanna Caldas, con-temporânea de ambos.
Por orientação de Valdemar de Oliveira, seu
grande mentor, Josefina foi estudar com Manoel Au-gusto dos Santos, por intermédio de quem conheceu omaestro fundador da Orquestra Sinfônica do Recife,Vicente Fittipaldi. Este a convidou para se apresentarcom a OSR no Teatro Santa Isabel, interpretando oConcerto em ré menor, de Mozart.
Josefina tocou como solista com a OSR em ju-nho, e sua amiga Elyanna, em setembro de 1948. Co-mo era dia de prova na escola, Josefina foi fazer o testeescrito logo cedo e, depois, rumou para o ensaio. “Osprofessores esperaram que eu voltasse para poder fazera avaliação oral”, diz, ressaltando que a infância passoucom a vida atribulada e a responsabilidade despertadatão cedo. “Apesar da pouca idade, eu não ficava ansio-sa, mas emocionada. Aliás, fico até hoje. Arte não exis-te sem emoção.”
As apresentações pelo Brasil se tornaram corri-queiras, inclusive na cultuada Escola Nacional deMúsica, no Rio de Janeiro. Até os 16 anos, no entanto, Josefina não recebia cachês. Por orientação do pai, to-dos eram doados a instituições filantrópicas. E a car-
reira internacional, que parecia uma conseqüência na-tural, foi vetada pela mãe. “Perdi cinco bolsas de estu-do no exterior e só saí do Brasil quando já tinha duasfilhas”, recorda Josefina, com um certo pesar.
A oportunidade de viajar para o exterior surgiuna década de 60, quando foi fazer especialização naSuíça e na Áustria. Josefina viajou com o marido epassou um ano e oito meses estudando. “Foi umaescolha muito difícil, pois deixei minhas duas filhasaqui no Brasil, a mais nova com cinco meses. Mas eraa minha última chance”, justifica. A pianista afirma
que nessa época tinha mais maturidade e, portanto,aproveitou bem a experiência, mais do que se tivesseido quando jovem.
Logo depois, formou um duo com Cussy deAlmeida, rodou o Brasil e fez apresentações tambémna Europa. O ápice da dupla foi passar às elimina-tórias do Concurso Internacional de Violino e Piano deMunique (Alemanha). “Foi um convívio gratificante. Josefina é uma pessoa maravilhosa. Culta, inteligente eextremamente leal, mas não tinha como não serdescendendo de uma família extraordinária como adela”, conta Cussy.
Josefina lembra que, na apresentação que oslevou à fase decisiva do concurso, sugeriu que tocas-sem Brahms logo de cara, o que Cussy achou umapéssima idéia. Acabou sendo convencido, e a duplaconquistou a platéia alemã. “O júri mandou nos cha-mar, o que não era usual, e nessa hora até pensei quetinha dado tudo errado”, confessa. O júri, na verdade,queria comunicar aos dois pernambucanos que estava
perplexo em ouvir um Brahms tão perfeito, vindo doNorte do Brasil.Foi-lhe oferecida uma bolsa para que continuas-
se os estudos na Europa, mas, para não contrariar omarido, Josefina recusou-a. “Meu casamento estavapor um fio e só eu não percebia”, conta. A separação,porém, foi inevitável, o que fez com que ela se afastasseda música, pois parecia que tudo tinha sido culpa dopiano. Foram dois anos e oito meses de reclusão, daqual só abriu mão uma vez.
A irmã, conhecida como “Fernandinha Zero”,
compositora de MPB, casada com o músico PauloGama, precisou de sua ajuda quando tiveram a opor-tunidade de mostrar uma música para Baden Powell,
Um dia, o aluno chegou em casaemocionado. A famosa Josefina
Aguiar, sua professora de piano,
tinha ficado de joelhos para lheensinar como usar melhor os pedaisdo instrumento
Acima,ernandinha Zero
(de óculos), aprima Tereza
ristina, Josefina ea irmã Eunice.
Ao lado, Josefina Aguiar com o
pianista potiguar Valdemar de Almeida, seuincentivador
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que iriam encontrar na casa de Cussy por ocasião deum show no Recife. Josefina aceitou tocar para acom-panhar a intérprete Zélia Barbosa, mas com uma con-
dição: ninguém poderia dizer nada, nem que era pro-fessora de piano, muito menos que já tinha toda umacarreira. “Assim foi feito. Baden Powell ouviu e, já desaída, voltou para dizer que meus amigos deviam meincentivar a seguir carreira, pois eu tinha talento”,lembra, sorrindo.
“Josefina foi um dos maiores potenciais dasArtes de nossa geração. Toda a família era assim, dota-da de um esplendor artístico que raras vezes se encon-tra tão prodigamente repartido entre seus membros.
‘Fernandinha Zero’ veio a me comprovar isto, anosmais tarde”, conta Edson Bandeira de Mello. Fernan-dinha, que morreu vítima de câncer, foi aluna de Edsone só tirava zero nas provas de teoria musical. “Com otempo, entendi que ela não se preocupava com teoria,queria mesmo era colocar para fora tudo o que sentia”.
Josefina Aguiar afirma que sua vida se divideem antes de Alex e depois de Alex. O colunista social Joséde Souza Alencar, mais conhecido como Alex, foi ogrande responsável pela sua volta à vida artística. “Eledisse que eu não tinha o direito de me apagar daquele
jeito, pois quando se escrevesse a história da música emPernambuco, o que eu iria dizer? Como podia iniciarum trabalho e deixar pela metade? Isso não se faz!”
Mesmo sem ter sido aluna de Josefina Aguiar,a presidente do Conservatório Pernambucano de Mú-sica, Juciara Albuquerque, é sua admiradora. “Pudecomprovar sua dedicação como professora graças aomeu irmão (Ivanildo de Albuquerque, hoje professorde música do Conservatório Brasileiro de Música, noRio de Janeiro). Um dia ele chegou em casa muitoemocionado. Me contou que, na aula de piano, elatinha ficado de joelhos para ensinar melhor como elepoderia ‘pedalizar’ uma música”, conta. Esse gesto éum exemplo do esmero de com que Josefina se dedica
à arte de ensinar. “Uma partitura, um piano, uma salade aula e eu esqueço do mundo”, revela.
Josefina Aguiar lembra com saudades a época
que revelou tantos talentos musicais em Pernambuco:“As pessoas se reuniam para cantar, tocar e recitar.Hoje em dia, as reuniões só servem para comer e be-ber”. O espírito daqueles tempos está presente no dis-co O piano de Josefina aguiar, o único de sua carreira,lançado em 1998. A idéia desse disco foi concretizadapor um grupo de amigos com o apoio da Cruzada deAção Social.
“Meus amigos tinham gravações minhas ao vivo feitas no Teatro Santa Isabel durante os Ciclos de
Música Pernambucana, que aconteceram entre 1980e 1985. Eles mesmos fizeram a seleção musical e mepresentearam. Todo artista gostaria de ver um registrode seu trabalho, a perpetuação de sua arte através dosanos”, comenta.
O disco traz compositores pernambucanos, co-mo Euclides Fonseca, Mizael Domingues, AlfredoGama, Zuzinha, Nelson Ferreira, Capiba, Valdemarde Oliveira, e um ilustre desconhecido: José Capiba-ribe. “Na verdade, esse era o pseudônimo de Valdemarquando fazia marchas carnavalescas”, esclarece.
O CD tem 14 músicas e contempla diversosgêneros musicais, como valsa, polca, pas-de-quatre,marcha carnavalesca e um dobrado para piano. “Odisco reúne obras de uma época na qual o piano rei-nava absoluto. Praticamente em todas as casas haviaum”, recorda Edson Bandeira de Mello. “Aconselho atodos ouvir esse primoroso trabalho da pianista, noqual, entre outros presentes, ela nos dá uma magnífica versão da pouco divulgada Rumba, de Valdemar deOliveira, com um tempero tão especial como só umasensibilidade refinada como a sua consegue fazê-lo”,afirma a também pianista Elyanna Caldas. (TR)
À esquerda, Josefinaao lado do jornalista Alex, que a fezretomar a carreira.
À direita, a pianista aos8 anos, na suaprimeira audição, noCírculo Católico dePernambuco
Tatiana Resende é jornalista F O T O S : Á L B U M D E F A M Í L I A
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A insustentável ordem do dia
ó explicando numa linguagem capitular.Rendo-me à democracia regimental; aos que sa-
bem escrever; à razão e ao coração (em modestos ar-razoados); à beleza oculta da mulher (a física já põe amesa); à vontade de Deus (só nos dá o que merece-mos); aos meus arquivos históricos; ao amor e cultua-ção da instituição familiar; à verdade; à preservação danatureza, sua fauna e flora; aos meus discos e livros; à
igualdade social; ao respeito à Pátria em que nasce-mos; à Constituição do meu País; à amizade duradou-ra; à obrigação de ser honesto; à Memória e ensina-mentos da história passada; à compreensão do mal in- voluntário; à imparcialidade quanto à consistência dascoisas; às boas idéias que emanam dos sonhos; à espi-ritualidade e à vida extraterrena; aos pastores da noite;às boas maneiras e ao cumprimento da ordem natural.
Infelizmente, a contumélia institucional expan-de-se pelo meu jovem Brasil de 500 anos, cada diamais frágil de autoridade – óbvia e esperançosamentetemporária. Talvez este atual opróbrio dos nossos go- vernantes deva-se aos fluxos de um éon celeste propo-sital, para que mudemos de uma vez nossas vidas.
Não mais comporta a tolerância e o excesso decautela – vira covardia.
A ordem do dia há muito está sendo quebrada.A segurança do País torna-se cada vez mais insus-tentável à leveza de Kundera – pesada insegurança daliberdade.
A escalada desses pigmeus das drogas assombra
a sociedade, molesta o patri-mônio alheio, dá asas à anar-quia generalizada, amordaçaa liberdade de expressão, ma-ta pessoas inocentes, formaespetaculares guerrilhas domal, bloqueando o direito deir e de vir do cidadão. E nin-guém vê uma atitude de se- veridade por parte das auto-
ridades. Pasmem: até o nosso professor Cardoso vai àtelevisão reclamar contra a onda de violência que sealastra num poder paralelo, pedindo providências! Eagora, a quem?
A Imprensa foi sacudida com o brutal assas-sinato do jornalista Tim Lopes pelos donos dos mor-ros do Rio de Janeiro embriagados de cocaínas – que já foram presos várias vezes pela polícia e logo liber-
tados pelo Judiciário.E todos os dias a mesma cantiga da perua que
afugenta a sabedoria de cada exigência da cidadania,da sociedade organizada – corrompendo os valoreshumanos, programando revoluções sem sentido.
Começa a campanha eleitoral e nós, que esco-lheremos nossos governantes e representantes legislati- vos, devemos, de imediato, fiscalizar seus discursos –novos velhos lengalengas de palanques paroquiais –para que não esgotemos esses meios justos de cobran-ça. Ou recorreremos à misericórdia divina.
Inusitado é o bem comum do povo, pobre po- vo brasileiro, primeiro limite para se conceituar a li-berdade. Liberdade nascida do racionalismo do sé-culo XVIII, baseada no livre pensamento e na auto-nomia da vontade.
Esse tal de “roubai, roubai, matai, matai” pareceser a ordem do dia – maior prova de supressão doprincípio de finalidade da ordem social por um bandode meliantes que desmoraliza o bem comum, hoje de- vastado pelo Estado anárquico, atingindo a soberania
nunca absoluta que o norteia. Jáse ouvem enfurecidos clamoresde todas as classes sociais civili-zadas por uma revolução nosistema político do Brasil.
Cuidado, senhores con-gressistas, atuais e futuros!Nos longes de 19 a.C., Virgílio já advertia que o furor fornecearmas.
Rivaldo Paiva
S ú l t i m
a s p a l a v r a s
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