1. Marilena Chaui Convite Filosofia Ed. tica, So Paulo,
2000.
2. Convite Filosofia _______________________________ 2 SUMRIO
Introduo [01] Para que Filosofia? Unidade 1: A Filosofia [02]
Capitulo 1: A origem da Filosofia [03] Captulo 2: O nascimento da
Filosofia [04] Captulo 3: Campos de investigao da Filosofia [05]
Captulo 4: Principais perodos da histria da Filosofia [06] Captulo
5: Aspectos da Filosofia contempornea Unidade 2: A razo [07]
Captulo 1: A Razo [08] Captulo 2: A atividade racional [09] Captulo
3: A Razo: inata ou adquirida? [10] Captulo 4: Os problemas do
inatismo e do empirismo [11] Captulo 5: A razo na Filosofia
contempornea Unidade 3: A verdade [12] Captulo 1: Ignorncia e
verdade [13] Captulo 2: Buscando a verdade [14] Captulo 3: As
concepes da verdade Unidade 4: O conhecimento [15] Captulo 1: A
preocupao com o conhecimento [16] Captulo 2: A percepo
3. Marilena Chau _______________________________ 3 [17] Captulo
3: A memria [18] Captulo 4: A imaginao [19] Captulo 5: A linguagem
[20] Captulo 6: O pensamento [21] Captulo 7: A conscincia pode
conhecer tudo? Unidade 5: A lgica [22] Captulo 1: O nascimento da
lgica [23] Captulo 2: Elementos de lgica [24] Captulo 3: A lgica
aps Aristteles [25] Captulo 4: Lgica e Dialtica Unidade 6: A
metafsica [26] As indagaes metafsicas [27] Captulo 1: O nascimento
da metafsica [28] Captulo 2: A metafsica de Aristteles [29] Captulo
3: As aventuras da metafsica [30] Captulo 4: A ontologia
contempornea Unidade 7: As cincias [31] Captulo 1: A atitude
cientfica [32] Captulo 2: A cincia na Histria [33] Captulo 3: As
cincias da Natureza [34] Captulo 4: As cincias humanas
4. Convite Filosofia _______________________________ 4 [35]
Captulo 5: O ideal cientfico e a razo instrumental Unidade 8: O
mundo da prtica [36] Captulo 1: A cultura [37] Captulo 2: A
experincia do sagrado e a instituio da religio [38] Captulo 3: O
universo das artes [39] Captulo 4: A existncia tica [40] Captulo 5:
A filosofia moral [41] Captulo 6: A liberdade [42] Captulo 7: A
vida poltica [43] Captulo 8: As filosofias polticas 1 [44] Captulo
9: As filosofias polticas 2 [45] Captulo 10: A poltica contra a
servido voluntria [46] Captulo 11: A questo democrtica
5. Marilena Chau _______________________________ 5 Introduo
Para que Filosofia? As evidncias do cotidiano Em nossa vida
cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos
coisas, pessoas, situaes. Fazemos perguntas como que horas so?, ou
que dia hoje?. Dizemos frases como ele est sonhando, ou ela ficou
maluca. Fazemos afirmaes como onde h fumaa, h fogo, ou no saia na
chuva para no se resfriar. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por
exemplo, esta casa mais bonita do que a outra e Maria est mais
jovem do que Glorinha. Numa disputa, quando os nimos esto
exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: Mentiroso! Eu
estava l e no foi isso o que aconteceu, e algum, querendo acalmar a
briga, pode dizer: Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e
vamos nos entender. Tambm comum ouvirmos os pais e amigos dizerem
que somos muito subjetivos quando o assunto o namorado ou a
namorada. Freqentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela
diz, como ela age, dizemos que essa pessoa legal.
6. Convite Filosofia _______________________________ 6 Vejamos
um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano. Quando
pergunto que horas so? ou que dia hoje?, minha expectativa a de que
algum, tendo um relgio ou um calendrio, me d a resposta exata. Em
que acredito quando fao a pergunta e aceito a resposta? Acredito
que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias,
que o que j passou diferente de agora e o que vir tambm h de ser
diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou
esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples
pergunta contm, silenciosamente, vrias crenas no questionadas por
ns. Quando digo ele est sonhando, referindo-me a algum que diz ou
pensa alguma coisa que julgo impossvel ou improvvel, tenho
igualmente muitas crenas silenciosas: acredito que sonhar diferente
de estar acordado, que, no sonho, o impossvel e o improvvel se
apresentam como possvel e provvel, e tambm que o sonho se relaciona
com o irreal, enquanto a viglia se relaciona com o que existe
realmente. Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim,
posso perceb-la e conhec-la tal como , sei diferenciar realidade de
iluso. A frase ela ficou maluca contm essas mesmas crenas e mais
uma: a de que sabemos diferenciar razo de loucura e maluca a pessoa
que inventa uma realidade existente s para ela. Assim, ao acreditar
que sei distinguir razo de loucura, acredito tambm que a razo se
refere a uma realidade que a mesma para todos, ainda que no
gostemos das mesmas coisas. Quando algum diz onde h fumaa, h fogo
ou no saia na chuva para no se resfriar, afirma silenciosamente
muitas crenas: acredita que existem relaes de causa e efeito entre
as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa
para ela, ou que essa coisa causa de alguma outra (o fogo causa a
fumaa como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito).
Acreditamos, assim, que a realidade feita de causalidades, que as
coisas, os fatos, as situaes se encadeiam em relaes causais que
podemos conhecer e, at mesmo, controlar para o uso de nossa vida.
Quando avaliamos que uma casa mais bonita do que a outra, ou que
Maria est mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as
pessoas, as situaes, os fatos podem ser comparados e avaliados,
julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela
quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, que a
qualidade e a quantidade existem, que podemos conhec-las e us-las
em nossa vida. Se, por exemplo, dissermos que o sol maior do que o
vemos, tambm estamos acreditando que nossa percepo alcana as coisas
de modos diferentes, ora tais como so em si mesmas, ora tais como
nos aparecem, dependendo da
7. Marilena Chau _______________________________ 7 distncia, de
nossas condies de visibilidade ou da localizao e do movimento dos
objetos. Acreditamos, portanto, que o espao existe, possui
qualidades (perto, longe, alto, baixo) e quantidades, podendo ser
medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do sol, tambm se
nota que acreditamos que nossa viso pode ver as coisas
diferentemente do que elas so, mas nem por isso diremos que estamos
sonhando ou que ficamos malucos. Na briga, quando algum chama o
outro de mentiroso porque no estaria dizendo os fatos exatamente
como aconteceram, est presente a nossa crena de que h diferena
entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como so,
enquanto a segunda faz exatamente o contrrio, distorcendo a
realidade. No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho,
da loucura e do erro porque o sonhador, o louco e o que erra se
iludem involuntariamente, enquanto o mentiroso decide
voluntariamente deformar a realidade e os fatos. Com isso,
acreditamos que o erro e a mentira so falsidades, mas diferentes
porque somente na mentira h a deciso de falsear. Ao diferenciarmos
erro de mentira, considerando o primeiro uma iluso ou um engano
involuntrios e a segunda uma deciso voluntria, manifestamos
silenciosamente a crena de que somos seres dotados de vontade e que
dela depende dizer a verdade ou a mentira. Ao mesmo tempo, porm,
nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: no gostamos
tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E no so
mentira? que tambm acreditamos que quando algum nos avisa que est
mentindo, a mentira aceitvel, no seria uma mentira no duro, pra
valer. Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos
mentiras inaceitveis de mentiras aceitveis, no estamos apenas nos
referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade, mas
tambm ao carter da pessoa, sua moral. Acreditamos, portanto, que as
pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois
cremos que a vontade livre para o bem ou para o mal. Na briga,
quando uma terceira pessoa pede s outras duas para que sejam
objetivas ou quando falamos dos namorados como sendo muito
subjetivos, tambm estamos cheios de crenas silenciosas. Acreditamos
que quando algum quer defender muito intensamente um ponto de
vista, uma preferncia, uma opinio, at brigando por isso, ou quando
sente um grande afeto por outra pessoa, esse algum perde a
objetividade, ficando muito subjetivo. Com isso, acreditamos que a
objetividade uma atitude imparcial que alcana as coisas tais como
so verdadeiramente, enquanto a subjetividade uma atitude parcial,
pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, dio, medo, desejo).
Assim, no s acreditamos que a objetividade e a subjetividade
existem, como
8. Convite Filosofia _______________________________ 8 ainda
acreditamos que so diferentes e que a primeira no deforma a
realidade, enquanto a segunda, voluntria ou involuntariamente, a
deforma. Ao dizermos que algum legal porque tem os mesmos gostos,
as mesmas idias, respeita ou despreza as mesmas coisas que ns e tem
atitudes, hbitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos,
silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas -
famlia, amigos, escola, trabalho, sociedade, poltica - nos faz
semelhantes ou diferentes em decorrncia de normas e valores morais,
polticos, religiosos e artsticos, regras de conduta, finalidades de
vida. Achando bvio que todos os seres humanos seguem regras e
normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, polticos,
artsticos, vivem na companhia de seus semelhantes e procuram
distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais
entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e
racionais, pois regras, normas, valores, finalidades s podem ser
estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocnio. Como se
pode notar, nossa vida cotidiana toda feita de crenas silenciosas,
da aceitao tcita de evidncias que nunca questionamos porque nos
parecem naturais, bvias. Cremos no espao, no tempo, na realidade,
na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferena entre
realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos tambm
na objetividade e na diferena entre ela e a subjetividade, na
existncia da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da
sociedade. A atitude filosfica Imaginemos, agora, algum que tomasse
uma deciso muito estranha e comeasse a fazer perguntas inesperadas.
Em vez de que horas so? ou que dia hoje?, perguntasse: O que o
tempo? Em vez de dizer est sonhando ou ficou maluca, quisesse
saber: O que o sonho? A loucura? A razo? Se essa pessoa fosse
substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmaes por
outras: Onde h fumaa, h fogo, ou no saia na chuva para no ficar
resfriado, por: O que causa? O que efeito?; seja objetivo , ou eles
so muito subjetivos, por: O que a objetividade? O que a
subjetividade?; Esta casa mais bonita do que a outra, por: O que
mais? O que menos? O que o belo? Em vez de gritar mentiroso!,
questionasse: O que a verdade? O que o falso? O que o erro? O que a
mentira? Quando existe verdade e por qu? Quando existe iluso e por
qu? Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse:
O que o amor? O que o desejo? O que so os sentimentos? Se, em lugar
de discorrer tranqilamente sobre maior e menor ou claro e escuro,
resolvesse investigar: O que a quantidade? O que a qualidade?
9. Marilena Chau _______________________________ 9 E se, em vez
de afirmar que gosta de algum porque possui as mesmas idias, os
mesmos gostos, as mesmas preferncias e os mesmos valores,
preferisse analisar: O que um valor? O que um valor moral? O que um
valor artstico? O que a moral? O que a vontade? O que a liberdade?
Algum que tomasse essa deciso, estaria tomando distncia da vida
cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que so as crenas
e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existncia.
Ao tomar essa distncia, estaria interrogando a si mesmo, desejando
conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que
sentimos e o que so nossas crenas e nossos sentimentos. Esse algum
estaria comeando a adotar o que chamamos de atitude filosfica.
Assim, uma primeira resposta pergunta O que Filosofia? poderia ser:
A deciso de no aceitar como bvias e evidentes as coisas, as idias,
os fatos, as situaes, os valores, os comportamentos de nossa
existncia cotidiana; jamais aceit-los sem antes hav-los investigado
e compreendido. Perguntaram, certa vez, a um filsofo: Para que
Filosofia?. E ele respondeu: Para no darmos nossa aceitao imediata
s coisas, sem maiores consideraes. A atitude crtica A primeira
caracterstica da atitude filosfica negativa, isto , um dizer no ao
senso comum, aos pr-conceitos, aos pr-juzos, aos fatos e s idias da
experincia cotidiana, ao que todo mundo diz e pensa, ao
estabelecido. A segunda caracterstica da atitude filosfica
positiva, isto , uma interrogao sobre o que so as coisas, as idias,
os fatos, as situaes, os comportamentos, os valores, ns mesmos.
tambm uma interrogao sobre o porqu disso tudo e de ns, e uma
interrogao sobre como tudo isso assim e no de outra maneira. O que
? Por que ? Como ? Essas so as indagaes fundamentais da atitude
filosfica. A face negativa e a face positiva da atitude filosfica
constituem o que chamamos de atitude crtica e pensamento crtico. A
Filosofia comea dizendo no s crenas e aos preconceitos do senso
comum e, portanto, comea dizendo que no sabemos o que imaginvamos
saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Scrates, afirmava
que a primeira e fundamental verdade filosfica dizer: Sei que nada
sei. Para o discpulo de Scrates, o filsofo grego Plato, a Filosofia
comea com a admirao; j o discpulo de Plato, o filsofo Aristteles,
acreditava que a Filosofia comea com o espanto. Admirao e espanto
significam: tomamos distncia do nosso mundo costumeiro, atravs de
nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivssemos visto
antes,
10. Convite Filosofia _______________________________ 10 como
se no tivssemos tido famlia, amigos, professores, livros e outros
meios de comunicao que nos tivessem dito o que o mundo ; como se
estivssemos acabando de nascer para o mundo e para ns mesmos e
precisssemos perguntar o que , por que e como o mundo, e
precisssemos perguntar tambm o que somos, por que somos e como
somos. Para que Filosofia? Ora, muitos fazem uma outra pergunta:
afinal, para que Filosofia? uma pergunta interessante. No vemos nem
ouvimos ningum perguntar, por exemplo, para que matemtica ou fsica?
Para que geografia ou geologia? Para que histria ou sociologia?
Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou qumica?
Para que pintura, literatura, msica ou dana? Mas todo mundo acha
muito natural perguntar: Para que Filosofia? Em geral, essa
pergunta costuma receber uma resposta irnica, conhecida dos
estudantes de Filosofia: A Filosofia uma cincia com a qual e sem a
qual o mundo permanece tal e qual. Ou seja, a Filosofia no serve
para nada. Por isso, se costuma chamar de filsofo algum sempre
distrado, com a cabea no mundo da lua, pensando e dizendo coisas
que ningum entende e que so perfeitamente inteis. Essa pergunta,
Para que Filosofia?, tem a sua razo de ser. Em nossa cultura e em
nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa s tem o
direito de existir se tiver alguma finalidade prtica, muito visvel
e de utilidade imediata. Por isso, ningum pergunta para que as
cincias, pois todo mundo imagina ver a utilidade das cincias nos
produtos da tcnica, isto , na aplicao cientfica realidade. Todo
mundo tambm imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da
compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura v os
artistas como gnios que merecem ser valorizados para o elogio da
humanidade. Ningum, todavia, consegue ver para que serviria a
Filosofia, donde dizer-se: no serve para coisa alguma. Parece,
porm, que o senso comum no enxerga algo que os cientistas sabem
muito bem. As cincias pretendem ser conhecimentos verdadeiros,
obtidos graas a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem
agir sobre a realidade, atravs de instrumentos e objetos tcnicos;
pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e
aumentando-os. Ora, todas essas pretenses das cincias pressupem que
elas acreditam na existncia da verdade, de procedimentos corretos
para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicao prtica de
teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser
corrigidos e aperfeioados.
11. Marilena Chau _______________________________ 11 Verdade,
pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relao
entre teoria e prtica, correo e acmulo de saberes: tudo isso no
cincia, so questes filosficas. O cientista parte delas como questes
j respondidas, mas a Filosofia quem as formula e busca respostas
para elas. Assim, o trabalho das cincias pressupe, como condio, o
trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista no seja filsofo. No
entanto, como apenas os cientistas e filsofos sabem disso, o senso
comum continua afirmando que a Filosofia no serve para nada. Para
dar alguma utilidade Filosofia, muitos consideram que, de fato, a
Filosofia no serviria para nada, se servir fosse entendido como a
possibilidade de fazer usos tcnicos dos produtos filosficos ou
dar-lhes utilidade econmica, obtendo lucros com eles; consideram
tambm que a Filosofia nada teria a ver com a cincia e a tcnica.
Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia no seriam
os conhecimentos (que ficam por conta da cincia), nem as aplicaes
de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento
moral ou tico. A Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as
paixes e os vcios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a
capacidade de nossa razo para impor limites aos nossos desejos e
paixes, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia
dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade
ensinar- nos a virtude, que o princpio do bem-viver. Essa definio
da Filosofia, porm, no nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma
arte moral ou tica, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua
fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraosas: O que o homem?
O que a vontade? O que a paixo? O que a razo? O que o vcio? O que a
virtude? O que a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e
virtuosos? Por que a liberdade e a virtude so valores para os seres
humanos? O que um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as aes
humanas? Assim, mesmo se dissssemos que o objeto da Filosofia no o
conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade
para conhecer, mesmo se dissssemos que o objeto da Filosofia apenas
a vida moral ou tica, ainda assim, o estilo filosfico e a atitude
filosfica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosficas - o
que, por que e como - permanecem. Atitude filosfica: indagar Se,
portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais
a Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosfica possui
algumas caractersticas que so as mesmas, independentemente do
contedo investigado. Essas caractersticas so: - perguntar o que a
coisa, ou o valor, ou a idia, . A Filosofia pergunta qual a
realidade ou natureza e qual a significao de alguma coisa, no
importa qual;
12. Convite Filosofia _______________________________ 12 -
perguntar como a coisa, a idia ou o valor, . A Filosofia indaga
qual a estrutura e quais so as relaes que constituem uma coisa, uma
idia ou um valor; - perguntar por que a coisa, a idia ou o valor,
existe e como . A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de
uma coisa, de uma idia, de um valor. A atitude filosfica inicia-se
dirigindo essas indagaes ao mundo que nos rodeia e s relaes que
mantemos com ele. Pouco a pouco, porm, descobre que essas questes
se referem, afinal, nossa capacidade de conhecer, nossa capacidade
de pensar. Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se
dirigem ao prprio pensamento: o que pensar, como pensar, por que h
o pensar? A Filosofia torna-se, ento, o pensamento interrogando-se
a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si
mesmo, a Filosofia se realiza como reflexo. A reflexo filosfica
Reflexo significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de
retorno a si mesmo. A reflexo o movimento pelo qual o pensamento
volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo. A reflexo
filosfica radical porque um movimento de volta do pensamento sobre
si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como possvel o
prprio pensamento. No somos, porm, somente seres pensantes. Somos
tambm seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros
seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e
acontecimentos, e exprimimos essas relaes tanto por meio da
linguagem quanto por meio de gestos e aes. A reflexo filosfica
tambm se volta para essas relaes que mantemos com a realidade
circundante, para o que dizemos e para as aes que realizamos nessas
relaes. A reflexo filosfica organiza-se em torno de trs grandes
conjuntos de perguntas ou questes: 1. Por que pensamos o que
pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto ,
quais os motivos, as razes e as causas para pensarmos o que
pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos? 2. O que
queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando
falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto , qual o contedo
ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos? 3. Para que
pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que
fazemos? Isto , qual a inteno ou a finalidade do que pensamos,
dizemos e fazemos?
13. Marilena Chau _______________________________ 13 Essas trs
questes podem ser resumidas em: O que pensar, falar e agir? E elas
pressupem a seguinte pergunta: Nossas crenas cotidianas so ou no um
saber verdadeiro, um conhecimento? Como vimos, a atitude filosfica
inicia-se indagando: O que ? Como ? Por que ?, dirigindo-se ao
mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele
se relacionam. So perguntas sobre a essncia, a significao ou a
estrutura e a origem de todas as coisas. J a reflexo filosfica
indaga: Por qu?, O qu?, Para qu?, dirigindo-se ao pensamento, aos
seres humanos no ato da reflexo. So perguntas sobre a capacidade e
a finalidade humanas para conhecer e agir. Filosofia: um pensamento
sistemtico Essas indagaes fundamentais no se realizam ao acaso,
segundo preferncias e opinies de cada um de ns. A Filosofia no um
eu acho que ou um eu gosto de. No pesquisa de opinio maneira dos
meios de comunicao de massa. No pesquisa de mercado para conhecer
preferncias dos consumidores e montar uma propaganda. As indagaes
filosficas se realizam de modo sistemtico. Que significa isso?
Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e
rigorosos, busca encadeamentos lgicos entre os enunciados, opera
com conceitos ou idias obtidos por procedimentos de demonstrao e
prova, exige a fundamentao racional do que enunciado e pensado.
Somente assim a reflexo filosfica pode fazer com que nossa
experincia cotidiana, nossas crenas e opinies alcancem uma viso
crtica de si mesmas. No se trata de dizer eu acho que, mas de poder
afirmar eu penso que. O conhecimento filosfico um trabalho
intelectual. sistemtico porque no se contenta em obter respostas
para as questes colocadas, mas exige que as prprias questes sejam
vlidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras,
estejam relacionadas entre si, esclaream umas s outras, formem
conjuntos coerentes de idias e significaes, sejam provadas e
demonstradas racionalmente. Quando o senso comum diz esta minha
filosofia ou isso a filosofia de fulana ou de fulano, engana-se e
no se engana. Engana-se porque imagina que para ter uma filosofia
basta algum possuir um conjunto de idias mais ou menos coerentes
sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de
princpios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as
pessoas. Minha filosofia ou a filosofia de fulano ficam no plano de
um eu acho coerente.
14. Convite Filosofia _______________________________ 14 Mas o
senso comum no se engana ao usar essas expresses porque percebe,
ainda que muito confusamente, que h uma caracterstica nas idias e
nos princpios que nos leva a dizer que so uma filosofia: a
coerncia, as relaes entre as idias e entre os princpios. Ou seja, o
senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com
coerncia e lgica, que a Filosofia tem uma vocao para formar um todo
daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experincia
cotidiana. Em busca de uma definio da Filosofia Quando comeamos a
estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela . Nossa
primeira surpresa surge ao descobrirmos que no h apenas uma definio
da Filosofia, mas vrias. A segunda surpresa vem ao percebermos que,
alm de vrias, as definies parecem contradizer-se. Eis porque
muitos, cheios de perplexidade, indagam: afinal, o que a Filosofia
que sequer consegue dizer o que ela ? Uma primeira aproximao nos
mostra pelo menos quatro definies gerais do que seria a Filosofia:
1. Viso de mundo de um povo, de uma civilizao ou de uma cultura.
Filosofia corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idias,
valores e prticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o
mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o espao, o sagrado
e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o
verdadeiro e o falso, o possvel e o impossvel, o contingente e o
necessrio. Qual o problema dessa definio? Ela to genrica e to ampla
que no permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religio,
Filosofia e arte, Filosofia e cincia. Na verdade, essa definio
identifica Filosofia e Cultura, pois esta uma viso de mundo
coletiva que se exprime em idias, valores e prticas de uma
sociedade. A definio, portanto, no consegue acercar-se da
especificidade do trabalho filosfico e por isso no podemos
aceit-la. 2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia identificada com
a definio e a ao de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral,
dedicando-se contemplao do mundo para aprender com ele a controlar
e dirigir suas vidas de modo tico e sbio. A Filosofia seria uma
contemplao do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida
justa, sbia e feliz, ensinando-nos o domnio sobre ns mesmos, sobre
nossos impulsos, desejos e paixes. nesse sentido que se fala, por
exemplo, numa filosofia do budismo. Esta definio, porm, nos diz, de
modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior), mas
no o que e o que faz a Filosofia e, por isso, tambm no podemos
aceit-la.
15. Marilena Chau _______________________________ 15 3. Esforo
racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e
dotada de sentido. Nesse caso, comea-se distinguindo entre
Filosofia e religio e at mesmo opondo uma outra, pois ambas possuem
o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira o faz
atravs do esforo racional, enquanto a segunda, por confiana (f)
numa revelao divina. Ou seja, a Filosofia procura discutir at o fim
o sentido e o fundamento da realidade, enquanto a conscincia
religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionvel, que a
revelao divina indemonstrvel. Pela f, a religio aceita princpios
indemonstrveis e at mesmo aqueles que podem ser considerados
irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia no admite
indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrrio, a conscincia
filosfica procura explicar e compreender o que parece ser
irracional e inquestionvel. No entanto, esta definio tambm
problemtica, porque d Filosofia a tarefa de oferecer uma explicao e
uma compreenso totais sobre o Universo, elaborando um sistema
universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa
tarefa impossvel. H pelo menos duas limitaes principais a esta
pretenso totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicao sobre a
realidade tambm oferecida pelas cincias e pelas artes, cada uma das
quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no
caso das cincias) e para a expresso (no caso das artes), j no sendo
pensvel uma nica disciplina que pudesse abranger sozinha a
totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a prpria
Filosofia j no admite que seja possvel um sistema de pensamento
nico que oferea uma nica explicao para o todo da realidade. Por
isso, esta definio tambm no pode ser aceita. 4. Fundamentao terica
e crtica dos conhecimentos e das prticas. A Filosofia, cada vez
mais, ocupa-se com as condies e os princpios do conhecimento que
pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o
contedo dos valores ticos, polticos, artsticos e culturais; com a
compreenso das causas e das formas da iluso e do preconceito no
plano individual e coletivo; com as transformaes histricas dos
conceitos, das idias e dos valores. A Filosofia volta-se, tambm,
para o estudo da conscincia em suas vrias modalidades: percepo,
imaginao, memria, linguagem, inteligncia, experincia, reflexo,
comportamento, vontade, desejo e paixes, procurando descrever as
formas e os contedos dessas modalidades de relao entre o ser humano
e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente,
a Filosofia visa ao estudo e interpretao de idias ou significaes
gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, histria,
subjetividade, objetividade, diferena, repetio, semelhana,
conflito, contradio, mudana, etc.
16. Convite Filosofia _______________________________ 16 Sem
abandonar as questes sobre a essncia da realidade, a Filosofia
procura diferenciar-se das cincias e das artes, dirigindo a
investigao sobre o mundo natural e o mundo histrico (ou humano) num
momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e
quando as cincias e as artes ainda no ofereceram outras certezas
para substituir as que perdemos. Em outras palavras, a Filosofia se
interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo
das coisas) e a histrica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas,
espantosas, incompreensveis e enigmticas, quando o senso comum j no
sabe o que pensar e dizer e as cincias e as artes ainda no sabem o
que pensar e dizer. Esta ltima descrio da atividade filosfica capta
a Filosofia como anlise (das condies da cincia, da religio, da
arte, da moral), como reflexo (isto , volta da conscincia para si
mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o
sentimento e a ao) e como crtica (das iluses e dos preconceitos
individuais e coletivos, das teorias e prticas cientficas, polticas
e artsticas), essas trs atividades (anlise, reflexo e crtica)
estando orientadas pela elaborao filosfica de significaes gerais
sobre a realidade e os seres humanos. Alm de anlise, reflexo e
crtica, a Filosofia a busca do fundamento e do sentido da realidade
em suas mltiplas formas indagando o que so, qual sua permanncia e
qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que o ser
e o aparecer-desaparecer dos seres? A Filosofia no cincia: uma
reflexo crtica sobre os procedimentos e conceitos cientficos. No
religio: uma reflexo crtica sobre as origens e formas das crenas
religiosas. No arte: uma interpretao crtica dos contedos, das
formas, das significaes das obras de arte e do trabalho artstico.
No sociologia nem psicologia, mas a interpretao e avaliao crtica
dos conceitos e mtodos da sociologia e da psicologia. No poltica,
mas interpretao, compreenso e reflexo sobre a origem, a natureza e
as formas do poder. No histria, mas interpretao do sentido dos
acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreenso do que seja
o prprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ao humanos,
conhecimento da transformao temporal dos princpios do saber e do
agir, conhecimento da mudana das formas do real ou dos seres, a
Filosofia sabe que est na Histria e que possui uma histria. Intil?
til? O primeiro ensinamento filosfico perguntar: O que o til? Para
que e para quem algo til? O que o intil? Por que e para quem algo
intil? O senso comum de nossa sociedade considera til o que d
prestgio, poder, fama e riqueza. Julga o til pelos resultados
visveis das coisas e das aes, identificando utilidade e a famosa
expresso levar vantagem em tudo. Desse ponto de vista, a Filosofia
inteiramente intil e defende o direito de ser intil.
17. Marilena Chau _______________________________ 17 No
poderamos, porm, definir o til de outra maneira? Plato definia a
Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefcio
dos seres humanos. Descartes dizia que a Filosofia o estudo da
sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos
podem alcanar para o uso da vida, a conservao da sade e a inveno
das tcnicas e das artes. Kant afirmou que a Filosofia o
conhecimento que a razo adquire de si mesma para saber o que pode
conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade
humana. Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo
apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhec-lo
para transform-lo, transformao que traria justia, abundncia e
felicidade para todos. Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia um
despertar para ver e mudar nosso mundo. Espinosa afirmou que a
Filosofia um caminho rduo e difcil, mas que pode ser percorrido por
todos, se desejarem a liberdade e a felicidade. Qual seria, ento, a
utilidade da Filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os
preconceitos do senso comum for til; se no se deixar guiar pela
submisso s idias dominantes e aos poderes estabelecidos for til; se
buscar compreender a significao do mundo, da cultura, da histria
for til; se conhecer o sentido das criaes humanas nas artes, nas
cincias e na poltica for til; se dar a cada um de ns e nossa
sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas aes numa
prtica que deseja a liberdade e a felicidade para todos for til,
ento podemos dizer que a Filosofia o mais til de todos os saberes
de que os seres humanos so capazes.
18. Convite Filosofia _______________________________ 18
Unidade 1 A Filosofia
19. Marilena Chau _______________________________ 19 Captulo 1
A origem da Filosofia A palavra filosofia A palavra filosofia
grega. composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de
philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os
iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos,
sbio. Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e
respeito pelo saber. Filsofo: o que ama a sabedoria, tem amizade
pelo saber, deseja saber. Assim, filosofia indica um estado de
esprito, o da pessoa que ama, isto , deseja o conhecimento, o
estima, o procura e o respeita. Atribui-se ao filsofo grego
Pitgoras de Samos (que viveu no sculo V antes de Cristo) a inveno
da palavra filosofia. Pitgoras teria afirmado que a sabedoria plena
e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desej-la ou
am-la, tornando-se filsofos. Dizia Pitgoras que trs tipos de
pessoas compareciam aos jogos olmpicos (a festa mais importante da
Grcia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando
apenas para servir aos seus prprios interesses e sem preocupao com
as disputas e os torneios; as que iam para competir, isto , os
atletas e artistas (pois, durante os jogos tambm havia competies
artsticas: dana, poesia, msica, teatro); e as que iam para
contemplar os jogos e torneios, para avaliar o desempenho e julgar
o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de pessoa,
dizia Pitgoras, como o filsofo. Com isso, Pitgoras queria dizer que
o filsofo no movido por interesses comerciais - no coloca o saber
como propriedade sua, como uma coisa para ser comprada e vendida no
mercado; tambm no movido pelo desejo de competir - no faz das idias
e dos conhecimentos uma habilidade para vencer competidores ou
atletas intelectuais; mas movido pelo desejo de observar,
contemplar, julgar e avaliar as coisas, as aes, a vida: em resumo,
pelo desejo de
20. Convite Filosofia _______________________________ 20 saber.
A verdade no pertence a ningum, ela o que buscamos e que est diante
de ns para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do esprito)
para v-la. A Filosofia grega A Filosofia, entendida como aspirao ao
conhecimento racional, lgico e sistemtico da realidade natural e
humana, da origem e causas do mundo e de suas transformaes, da
origem e causas das aes humanas e do prprio pensamento, um fato
tipicamente grego. Evidentemente, isso no quer dizer, de modo
algum, que outros povos, to antigos quanto os gregos, como os
chineses, os hindus, os japoneses, os rabes, os persas, os hebreus,
os africanos ou os ndios da Amrica no possuam sabedoria, pois
possuam e possuem. Tambm no quer dizer que todos esses povos no
tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da
Natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.
Quando se diz que a Filosofia um fato grego, o que se quer dizer
que ela possui certas caractersticas, apresenta certas formas de
pensar e de exprimir os pensamentos, estabelece certas concepes
sobre o que sejam a realidade, o pensamento, a ao, as tcnicas, que
so completamente diferentes das caractersticas desenvolvidas por
outros povos e outras culturas. Vejamos um exemplo. Os chineses
desenvolveram um pensamento muito profundo sobre a existncia de
coisas, seres e aes contrrios ou opostos, que formam a realidade.
Deram s oposies o nome de dois princpios: Yin e Yang. Yin o
princpio feminino passivo na Natureza, representado pela escurido,
o frio e a umidade; Yang o princpio masculino ativo na Natureza,
representado pela luz, o calor e o seco. Os dois princpios se
combinam e formam todas as coisas, que, por isso, so feitas de
contrrios ou de oposies. O mundo, portanto, feito da atividade
masculina e da passividade feminina. Tomemos agora um filsofo
grego, por exemplo, o prprio Pitgoras. Que diz ele? Que a Natureza
feita de um sistema de relaes ou de propores matemticas produzidas
a partir da unidade (o nmero 1 e o ponto), da oposio entre os
nmeros pares e mpares, e da combinao entre as superfcies e os
volumes (as figuras geomtricas), de tal modo que essas propores e
combinaes aparecem para nossos rgos dos sentidos sob a forma de
qualidades contrrias: quente-frio, seco-mido, spero-liso,
claro-escuro, grande- pequeno, doce-amargo, duro-mole, etc. Para
Pitgoras, o pensamento alcana a realidade em sua estrutura
matemtica, enquanto nossos sentidos ou nossa percepo alcanam o modo
como a estrutura matemtica da Natureza aparece para ns, isto , sob
a forma de qualidades opostas. Qual a diferena entre o pensamento
chins e o do filsofo grego? O pensamento chins toma duas
caractersticas (masculino e feminino) existentes em alguns seres
(os animais e os humanos) e considera que o Universo inteiro
21. Marilena Chau _______________________________ 21 feito da
oposio entre qualidades atribudas a dois sexos diferentes, de sorte
que o mundo organizado pelo princpio da sexualidade animal ou
humana. O pensamento de Pitgoras apanha a Natureza numa
generalidade muito mais ampla do que a sexualidade prpria a alguns
seres da Natureza, e faz distino entre as qualidades sensoriais que
nos aparecem e a estrutura invisvel da Natureza, que, para ele, de
tipo matemtico e alcanada apenas pelo intelecto, ou inteligncia. So
diferenas desse tipo, alm de muitas outras, que nos levam a dizer
que existe uma sabedoria chinesa, uma sabedoria hindu, uma
sabedoria dos ndios, mas no h filosofia chinesa, filosofia hindu ou
filosofia indgena. Em outras palavras, Filosofia um modo de pensar
e exprimir os pensamentos que surgiu especificamente com os gregos
e que, por razes histricas e polticas, tornou-se, depois, o modo de
pensar e de se exprimir predominante da chamada cultura europia
ocidental da qual, em decorrncia da colonizao portuguesa do Brasil,
ns tambm participamos. Atravs da Filosofia, os gregos instituram
para o Ocidente europeu as bases e os princpios fundamentais do que
chamamos razo, racionalidade, cincia, tica, poltica, tcnica, arte.
Alis, basta observarmos que palavras como lgica, tcnica, tica,
poltica, monarquia, anarquia, democracia, fsica, dilogo, biologia,
cronologia, gnese, genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia,
farmcia, entre muitas outras, so palavras gregas, para percebermos
a influncia decisiva e predominante da Filosofia grega sobre a
formao do pensamento e das instituies das sociedades europias
ocidentais. por isso que, em decorrncia do predomnio da economia
capitalista criada pelo Ocidente e que impe um certo tipo de
desenvolvimento das cincias e das tcnicas, falamos, por exemplo, em
ocidentalizao dos chineses, ocidentalizao dos rabes, etc. Com isso
queremos significar que modos de pensar e de agir, criados no
Ocidente pela Filosofia grega, foram incorporados at mesmo por
culturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a
Filosofia. pelo mesmo motivo que falamos em orientalismos e
orientalistas para indicar pessoas que buscam no budismo, no
confucionismo, no Yin e no Yang, nos mantras, nas pirmides, nas
auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e de explicar a
realidade, a Natureza, a vida e as aes humanas que no so prprias ou
especficas do Ocidente, isto , so diferentes do padro de pensamento
e de explicao que foram criados pelos gregos a partir do sculo VII
antes de Cristo, poca em que nasce a Filosofia.
22. Convite Filosofia _______________________________ 22 O
legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu Por causa da
colonizao europia das Amricas, ns tambm fazemos parte - ainda que
de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assim
tambm somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o
pensamento ocidental europeu. Desse legado, podemos destacar como
principais contribuies as seguintes: ? A idia de que a Natureza
opera obedecendo a leis e princpios necessrios e universais, isto ,
os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por exemplo,
graas aos gregos, no sculo XVII da nossa era, o filsofo ingls Isaac
Newton estabeleceu a lei da gravitao universal de todos os corpos
da Natureza. A lei da gravitao afirma que todo corpo, quando sofre
a ao de um outro, produz uma reao igual e contrria, que pode ser
calculada usando como elementos do clculo a massa do corpo afetado,
a velocidade e o tempo com que a ao e a reao se deram. Essa lei
necessria, isto , nenhum corpo do Universo escapa dela e pode
funcionar de outra maneira que no desta; e esta lei universal, isto
, vlida para todos os corpos em todos os tempos e lugares. Um outro
exemplo: as leis geomtricas do tringulo ou do crculo, conforme
demonstraram os filsofos gregos, so universais e necessrias, isto ,
seja em Tquio em 1993, em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em
So Paulo em 1792, em Moambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as
leis do tringulo ou do crculo so necessariamente as mesmas. ? A
idia de que as leis necessrias e universais da Natureza podem ser
plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto , no so
conhecimentos misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados
por divindades, mas so conhecimentos que o pensamento humano, por
sua prpria fora e capacidade, pode alcanar. ? A idia de que nosso
pensamento tambm opera obedecendo a leis, regras e normas
universais e necessrias, segundo as quais podemos distinguir o
verdadeiro do falso. Em outras palavras, a idia de que o nosso
pensamento lgico ou segue leis lgicas de funcionamento. Nosso
pensamento diferencia uma afirmao de uma negao porque, na afirmao,
atribumos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que Scrates
um ser humano, atribumos humanidade a Scrates) e, na negao,
retiramos alguma coisa de outra (quando dizemos este caderno no
verde, estamos retirando do caderno a cor verde). Nosso pensamento
distingue quando uma afirmao verdadeira ou falsa. Se algum
apresentar o seguinte raciocnio: Todos os homens so mortais.
Scrates homem. Logo, Scrates mortal, diremos que a afirmao Scrates
mortal
23. Marilena Chau _______________________________ 23
verdadeira, porque foi concluda de outras afirmaes que j sabemos
serem verdadeiras. ? A idia de que as prticas humanas, isto , a ao
moral, a poltica, as tcnicas e as artes dependem da vontade livre,
da deliberao e da discusso, da nossa escolha passional (ou
emocional) ou racional, de nossas preferncias, segundo certos
valores e padres, que foram estabelecidos pelos prprios seres
humanos e no por imposies misteriosas e incompreensveis, que lhes
teriam sido feitas por foras secretas, invisveis, sejam elas
divinas ou naturais, e impossveis de serem conhecidas. ? A idia de
que os acontecimentos naturais e humanos so necessrios, porque
obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas tambm podem ser
contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e
deliberaes dos homens, em condies determinadas. Dessa forma, uma
pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela caia
natural e necessariamente; um ser humano anda porque as leis
anatmicas e fisiolgicas que regem o seu corpo fazem com que ele
tenha os meios necessrios para a locomoo. No entanto, se uma pedra,
ao cair, atingir a cabea de um passante, esse acontecimento
contingente ou acidental. Por qu? Porque, se o passante no
estivesse andando por ali naquela hora, a pedra no o atingiria.
Assim, a queda da pedra necessria e o andar de um ser humano
necessrio, mas que uma pedra caia sobre minha cabea quando ando
inteiramente contingente ou acidental. Todavia, muito diferente a
situao das aes humanas. verdade que por uma necessidade natural ou
por uma lei da Natureza que ando. Mas por deliberao voluntria que
ando para ir escola em vez de andar para ir ao cinema, por exemplo.
verdade que por uma lei necessria da Natureza que os corpos pesados
caem, mas por uma deliberao humana e por uma escolha voluntria que
fabrico uma bomba, a coloco num avio e a fao despencar sobre
Hiroshima. Um dos legados mais importantes da Filosofia grega ,
portanto, essa diferena entre o necessrio e o contingente, pois ela
nos permite evitar o fatalismo - tudo necessrio, temos que nos
conformar e nos resignar -, mas tambm evitar a iluso de que podemos
tudo quanto quisermos, se alguma fora extranatural ou sobrenatural
nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessrias que podemos
conhecer e nem tudo possvel por mais que o queiramos. ? A idia de
que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento
verdadeiro, felicidade, justia, isto , que os seres humanos no
vivem nem agem cegamente, mas criam valores pelo quais do sentido s
suas vidas e s suas aes.
24. Convite Filosofia _______________________________ 24 A
Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e
espantados com a realidade, insatisfeitos com as explicaes que a
tradio lhes dera, comearam a fazer perguntas e buscar respostas
para elas, demonstrando que o mundo e os seres humanos, os
acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e as aes
humanas podem ser conhecidos pela razo humana, e que a prpria razo
capaz de conhecer-se a si mesma. Em suma, a Filosofia surge quando
se descobriu que a verdade do mundo e dos humanos no era algo
secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por divindades a
alguns escolhidos, mas que, ao contrrio, podia ser conhecida por
todos, atravs da razo, que a mesma em todos; quando se descobriu
que tal conhecimento depende do uso correto da razo ou do
pensamento e que, alm da verdade poder ser conhecida por todos,
podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida a todos.
25. Marilena Chau _______________________________ 25 Captulo 2
O nascimento da Filosofia Ouvindo a voz dos poetas Escutemos, por
um instante, a voz dos poetas, porque ela costuma exprimir o que
chamamos de sentimento do mundo, o sentimento da velhice e da
juventude perene do mundo, da grandeza e da pequeneza dos humanos
ou dos mortais. Assim, o poeta grego Arquloco escreveu: E no te
esqueas, meu corao, que as coisas humanas apenas mudanas incertas
so. Outro poeta grego, Tegnis, cantando sobre a brevidade da vida,
dizia: Choremos a juventude e a velhice tambm, pois a primeira foge
e a segunda sempre vem. Tambm o poeta grego Pndaro falava do
sentimento das coisas humanas como passageiras: A glria dos mortais
num s dia cresce, Mas basta um s dia, contrrio e funesto, para que
o destino, impiedoso, num gesto a lance por terra e ela, sbito,
fenece. Mas no s a vida e os feitos dos humanos so breves e frgeis.
Os poetas tambm exprimem o sentimento de que o mundo tecido por
mudanas e repeties interminveis. A esse respeito, a poetisa
brasileira Orides Fontela escreveu: O vento, a chuva, o sol, o frio
Tudo vai e vem, tudo vem e vai. E o poeta brasileiro, Carlos
Drummond, por sua vez, lamentou: Como a vida muda. Como a vida
muda. Como a vida nuda. Como a vida nada. Como a vida tudo. ...
Como a vida senha
26. Convite Filosofia _______________________________ 26 de
outra vida nova ... Como a vida vida ainda quando morte ... Como a
vida forte em suas algemas. ... Como a vida bela ... Como a vida
vale mais que a prpria vida sempre renascida. O sentimento de
renovao e beleza do mundo, da vida, dos seres humanos o que
transparece nos versos do poeta brasileiro Mrio Quintana, nos
seguintes versos: Quando abro a cada manh a janela do meu quarto
como se abrisse o mesmo livro Numa pgina nova... E, por isso, em
outros versos seus, lemos: O encanto sobrenatural que h nas coisas
da Natureza! ... se nela algo te d encanto ou medo, no me digas que
seja feia ou m, , acaso, singular... Numa das obras poticas mais
importantes da cultura do Ocidente europeu, as Metamorfoses, o
poeta romano Ovdio exprimiu todos esses sentimentos que
experimentamos diante da mudana, da renovao e da repetio, do
nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte
final de sua obra, lemos: No h coisa alguma que persista em todo o
Universo. Tudo flui, e tudo s apresenta uma imagem passageira. O
prprio tempo passa com um movimento contnuo, como um rio... O que
foi antes j no , o que no tinha sido , e todo instante uma coisa
nova. Vs a noite, prxima do fim, caminhar para o dia, e claridade
do dia suceder a escurido da noite... No vs as estaes do ano se
sucederem, imitando as idades de nossa vida? Com efeito, a
primavera, quando surge, semelhante
27. Marilena Chau _______________________________ 27 criana
nova... A planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de
esperana o agricultor. Tudo floresce. O frtil campo resplandece com
o colorido das flores, mas ainda falta vigor s folhas. Entra, ento,
a quadra mais forte e vigorosa, o vero: a robusta mocidade, fecunda
e ardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da
mocidade, a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o
velho; as tmporas embranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: o
velho trpego, cujos cabelos ou caram como as folhas das rvores, ou,
os que restaram, esto brancos como a neve dos caminhos. Tambm
nossos corpos mudam sempre e sem descanso... E tambm a Natureza no
descansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas das
coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e
variados... Todos os seres tm sua origem noutros seres. Existe uma
ave a que os fencios do o nome de fnix. No se alimenta de gros ou
ervas, mas das lgrimas do incenso e do suco da amnia. Quando
completa cinco sculos de vida, constri um ninho no alto de uma
grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromtico nardo e da
mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes.
De suas cinzas, renasce uma pequena fnix, que viver outros cinco
sculos... Assim tambm a Natureza e tudo o que nela existe e
persiste. O que perguntavam os primeiros filsofos Por que os seres
nascem e morrem? Por que os semelhantes do origem aos semelhantes,
de uma rvore nasce outra rvore, de um co nasce outro co, de uma
mulher nasce uma criana? Por que os diferentes tambm parecem fazer
surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno
parece fazer surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o
passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar do tempo?
Por que tudo muda? A criana se torna adulta, amadurece, envelhece e
desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo
o verde e as cores no outono, at ressecar-se e retorcer-se no
inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, de cu azul e brisa
suave, repentinamente, se torna sombrio, coberto de nuvens, varrido
por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e troves?
Por que a doena invade os corpos, rouba-lhes a cor, a fora? Por que
o alimento que antes me agradava, agora, que estou doente, me causa
repugnncia? Por que o som da msica que antes me embalava, agora,
que estou doente, parece um rudo insuportvel? Por que o que parecia
uno se multiplica em tantos outros? De uma s rvore, quantas flores
e quantos frutos nascem! De uma s gata, quantos gatinhos
nascem!
28. Convite Filosofia _______________________________ 28 Por
que as coisas se tornam opostas ao que eram? A gua do copo, to
transparente e de boa temperatura, torna-se uma barra dura e
gelada, deixa de ser lquida e transparente para tornar-se slida e
acinzentada. O dia, que comea frio e gelado, pouco a pouco, se
torna quente e cheio de calor. Por que nada permanece idntico a si
mesmo? De onde vm os seres? Para onde vo, quando desaparecem? Por
que se transformam? Por que se diferenciam uns dos outros? Mas
tambm, por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite;
depois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da
primavera, o vero, depois deste, o outono e depois deste, novamente
o inverno. De dia, o sol; noite, a lua e as estrelas. Na primavera,
o mar tranqilo e propcio navegao; no inverno, tempestuoso e inimigo
dos homens. O calor leva as guas para o cu e as traz de volta pelas
chuvas. Ningum nasce adulto ou velho, mas sempre criana, que se
torna adulto e velho. Foram perguntas como essas que os primeiros
filsofos fizeram e para elas buscaram respostas. Sem dvida, a
religio, as tradies e os mitos explicavam todas essas coisas, mas
suas explicaes j no satisfaziam aos que interrogavam sobre as
causas da mudana, da permanncia, da repetio, da desapario e do
ressurgimento de todos os seres. Haviam perdido fora explicativa,
no convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade
sobre o mundo. O nascimento da Filosofia Os historiadores da
Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do
sculo VII e incio do sculo VI antes de Cristo, nas colnias gregas
da sia Menor (particularmente as que formavam uma regio denominada
Jnia), na cidade de Mileto. E o primeiro filsofo foi Tales de
Mileto. Alm de possuir data e local de nascimento e de possuir seu
primeiro autor, a Filosofia tambm possui um contedo preciso ao
nascer: uma cosmologia. A palavra cosmologia composta de duas
outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia,
que vem da palavra logos, que significa pensamento racional,
discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofia nasce como
conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde,
cosmologia. Apesar da segurana desses dados, existe um problema
que, durante sculos, vem ocupando os historiadores da Filosofia: o
de saber se a Filosofia - que um fato especificamente grego -
nasceu por si mesma ou dependeu de contribuies da sabedoria
oriental (egpcios, assrios, persas, caldeus, babilnios) e da
sabedoria de civilizaes que antecederam grega, na regio que, antes
de ser a Grcia ou a Hlade, abrigara as civilizaes de Creta, Minos,
Tirento e Micenas. Durante muito tempo, considerou-se que a
Filosofia nascera por transformaes que os gregos operaram na
sabedoria oriental (egpcia, persa, caldia e
29. Marilena Chau _______________________________ 29
babilnica). Assim, filsofos como Plato e Aristteles afirmavam a
origem oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles, povo
comerciante e navegante, descobriram, atravs das viagens, a
agrimensura dos egpcios (usada para medir as terras, aps as cheias
do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilnios (usada para
prever grandes guerras, subida e queda de reis, catstrofes como
peste, fome, furaces), as genealogias dos persas (usadas para dar
continuidade s linhagens e dinastias dos governantes), os mistrios
religiosos orientais referentes aos rituais de purificao da alma
(para livr-la da reencarnao contnua e garantir-lhe o descanso
eterno), etc. A Filosofia teria nascido pelas transformaes que os
gregos impuseram a esses conhecimentos. Dessa forma, da
agrimensura, os gregos fizeram nascer duas cincias: a aritmtica e a
geometria; da astrologia, fizeram surgir tambm duas cincias: a
astronomia e a meteorologia; das genealogias, fizeram surgir mais
uma outra cincia: a histria; dos mistrios religiosos de purificao
da alma, fizeram surgir as teorias filosficas sobre a natureza e o
destino da alma humana. Todos esses conhecimentos teriam propiciado
o aparecimento da Filosofia, isto , da cosmologia, de sorte que a
Filosofia s teria podido nascer graas as saber oriental. Essa idia
de uma filiao oriental da Filosofia foi muito defendida oito sculos
depois de seu nascimento (durante os sculos II e III depois de
Cristo), no perodo do Imprio Romano. Quem a defendia? Os pensadores
judaicos, como Filo de Alexandria, e os Padres da Igreja, como
Eusbio de Cesaria e Clemente de Alexandria. Por que defendiam a
origem oriental da Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a
Filosofia grega tornara-se, em toda a Antigidade clssica, e para os
poderosos da poca, os romanos, a forma superior ou mais elevada do
pensamento e da moral. Os judeus, para valorizar seu pensamento,
desejavam que a Filosofia tivesse uma origem oriental, dizendo que
o pensamento de filsofos importantes, como Plato, tinha surgido no
Egito, onde se originara o pensamento de Moiss, de modo que havia
uma ligao entre a Filosofia grega e a Bblia. Os Padres da Igreja,
por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram
elevados e perfeitos, no eram superstio, nem primitivos e incultos,
e por isso mostravam que os filsofos gregos estavam filiados a
correntes de pensamento mstico e oriental e, dessa maneira,
estariam prximos do cristianismo, que uma religio oriental. No
entanto, nem todos aceitaram a tese chamada orientalista, e muitos,
sobretudo no sculo XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia
como sendo o milagre grego. Com a palavra milagre queriam dizer
vrias coisas:
30. Convite Filosofia _______________________________ 30 ? que
a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grcia, sem que
nada anterior a preparasse; ? que a Filosofia grega foi um
acontecimento espontneo, nico e sem par, como prprio de um milagre;
? que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro
semelhante a eles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente
eles poderiam ter sido capazes de criar a Filosofia, como foram os
nicos a criar as cincias e a dar s artes uma elevao que nenhum
outro povo conseguiu, nem antes e nem depois deles. Nem oriental,
nem milagre Desde o final do sculo XIX da nossa era e durante o
sculo XX, estudos histricos, arqueolgicos, lingsticos, literrios e
artsticos corrigiram os exageros das duas teses, isto , tanto a
reduo da Filosofia sua origem oriental, quanto o milagre grego.
Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a
Filosofia tem dvidas com a sabedoria dos orientais, no s porque as
viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos
produzidos por outros povos (sobretudo os egpcios, persas,
babilnios, assrios e caldeus), mas tambm porque os dois maiores
formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesodo,
encontraram nos mitos e nas religies dos povos orientais, bem como
nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a
mitologia grega, que, depois, seria transformada racionalmente
pelos filsofos. Assim, os estudos recentes mostraram que mitos,
cultos religiosos, instrumentos musicais, dana, msica, poesia,
utenslios domsticos e de trabalho, formas de habitao, formas de
parentesco e formas de organizao tribal dos gregos foram resultado
de contatos profundos com as culturas mais avanadas do Oriente e
com a herana deixada pelas culturas que antecederam a grega, nas
regies onde ela se implantou. Esses mesmos estudos apontaram, porm,
que, se nos afastarmos dos exageros da idia de um milagre grego,
podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os
gregos imprimiram mudanas de qualidade to profundas no que
receberam do Oriente e das culturas precedentes, que at pareceria
terem criado sua prpria cultura a partir de si mesmos. Dessas
mudanas, podemos mencionar quatro que nos daro uma idia da
originalidade grega: 1. Com relao aos mitos: quando comparamos os
mitos orientais, cretenses, micnicos, minicos e os que aparecem nos
poetas Homero e Hesodo, vemos que eles retiraram os aspectos
apavorantes e monstruosos dos deuses e do incio do mundo;
humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade a
narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituies
humanas (como o trabalho, as leis, a moral);
31. Marilena Chau _______________________________ 31 2. Com
relao aos conhecimentos: os gregos transformaram em cincia (isto ,
num conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram
elementos de uma sabedoria prtica para o uso direto na vida. Assim,
transformaram em matemtica (aritmtica, geometria, harmonia) o que
eram expedientes prticos para medir, contar e calcular;
transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza e do
movimento dos astros) aquilo que eram prticas de adivinhao e
previso do futuro; transformaram em medicina (conhecimento racional
sobre o corpo humano, a sade e a doena) aquilo que eram prticas de
grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenas. E
assim por diante; 3. Com relao organizao social e poltica: os
gregos no inventaram apenas a cincia ou a Filosofia, mas inventaram
tambm a poltica. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e
praticavam a autoridade e o governo. Mas, por que no inventaram a
poltica propriamente dita? Nas sociedades orientais e no-gregas, o
poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da
vontade pessoal e arbitrria de um s homem ou de um pequeno grupo de
homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ningum e sem
justificar suas decises para ningum. Os gregos inventaram a poltica
(palavra que vem de polis, que, em grego, significa cidade
organizada por leis e instituies) porque instituram prticas pelas
quais as decises eram tomadas a partir de discusses e debates
pblicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assemblias
pblicas; porque estabeleceram instituies pblicas (tribunais,
assemblias, separao entre autoridade do chefe da famlia e
autoridade pblica, entre autoridade poltico- militar e autoridade
religiosa) e sobretudo porque criaram a idia da lei e da justia
como expresses da vontade coletiva pblica e no como imposio da
vontade de um s ou de um grupo, em nome de divindades. Os gregos
criaram a poltica porque separaram o poder poltico e duas outras
formas tradicionais de autoridade: a do chefe de famlia e a do
sacerdote ou mago; 4. Com relao ao pensamento: diante da herana
recebida, os gregos inventaram a idia ocidental da razo como um
pensamento sistemtico que segue regras, normas e leis de valor
universal (isto , vlidas em todos os tempos e lugares. Assim, por
exemplo, em qualquer tempo e lugar 2 + 2 sero sempre 4; o tringulo
sempre ter trs lados; o Sol sempre ser maior do que a Terra, mesmo
que ele parea menor do que ela, etc.). Mito e Filosofia Resolvido
esse problema, agora temos um outro que tambm tem ocupado muito os
estudiosos. O novo problema pode ser assim formulado: a Filosofia
nasceu
32. Convite Filosofia _______________________________ 32
realizando uma transformao gradual sobre os mitos gregos ou nasceu
por uma ruptura radical com os mitos? O que um mito? Um mito uma
narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da
Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da gua, dos
ventos, do bem e do mal, da sade e da doena, da morte, dos
instrumentos de trabalho, das raas, das guerras, do poder, etc.). A
palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do
verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do
verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para
os gregos, mito um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes
que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que
narra; uma narrativa feita em pblico, baseada, portanto, na
autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa
autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que
est narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os
acontecimentos narrados. Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem
ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta um escolhido
dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem
que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para
que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito - sagrada
porque vem de uma revelao divina. O mito , pois, incontestvel e
inquestionvel. Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que
nele existe? De trs maneiras principais: 1. Encontrando o pai e a
me das coisas e dos seres, isto , tudo o que existe decorre de
relaes sexuais entre foras divinas pessoais. Essas relaes geram os
demais deuses: os tits (seres semi-humanos e semidivinos), os heris
(filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano),
os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como
quente-frio, seco-mido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto,
belo-feio, certo-errado, etc. A narrao da origem , assim, uma
genealogia, isto , narrativa da gerao dos seres, das coisas, das
qualidades, por outros seres, que so seus pais ou antepassados.
Tomemos um exemplo da narrativa mtica. Observando que as pessoas
apaixonadas esto sempre cheias de ansiedade e de plenitude,
inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para
seduzi-la e tambm serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto
, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de
Cupido):
33. Marilena Chau _______________________________ 33 Houve uma
grande festa entre os deuses. To dos foram convidados, menos a
deusa Penria, sempre miservel e faminta. Quando a festa acabou,
Penria veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto
engenhoso). Dessa relao sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como
sua me, est sempre faminto, sedento e miservel, mas, como seu pai,
tem mil astcias para se satisfazer e se fazer amado. Por isso,
quando Eros fere algum com sua flecha, esse algum se apaixona e
logo se sente faminto e sedento de amor, inventa astcias para ser
amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora rico e
cheio de vida. 2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliana entre os
deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito
narra ou uma guerra entre as foras divinas, ou uma aliana entre
elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens. O poeta
Homero, na Ilada, que narra a guerra de Tria, explica por que, em
certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitria
cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor de um
lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus,
ficava com um dos partidos, aliava- se com um grupo e fazia um dos
lados - ou os troianos ou os gregos - vencer uma batalha. A causa
da guerra, alis, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas
apareceram em sonho para o prncipe troiano Paris, oferecendo a ele
seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras
deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do
general grego Menelau, e isso deu incio guerra entre os humanos. 3.
Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses do a quem os
desobedece ou a quem os obedece. Como o mito narra, por exemplo, o
uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo essencial, pois
com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar
os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno
quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para
a guerra. Um tit, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos
deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os
humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as
aves de rapina, eternamente, devorassem seu fgado) e os homens
tambm. Qual foi o castigo dos homens? Os deuses fizeram uma mulher
encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria
coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi
enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles
as maravilhas, abriu a caixa. Dela saram todas as desgraas, doenas,
pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem
dos males no mundo. Vemos, portanto, que o mito narra a origem das
coisas por meio de lutas, alianas e relaes sexuais entre foras
sobrenaturais que governam o mundo e o destino
34. Convite Filosofia _______________________________ 34 dos
homens. Como os mitos sobre a origem do mundo so genealogias,
diz-se que so cosmogonias e teogonias. A palavra gonia vem de duas
palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e
crescer) e do substantivo genos (nascimento, gnese, descendncia,
gnero, espcie). Gonia, portanto, quer dizer: gerao, nascimento a
partir da concepo sexual e do parto. Cosmos, como j vimos, quer
dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia a narrativa
sobre o nascimento e a organizao do mundo, a partir de foras
geradoras (pai e me) divinas. Teogonia uma palavra composta de
gonia e thes, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres
divinos, os deuses. A teogonia , portanto, a narrativa da origem
dos deuses, a partir de seus pais e antepassados. Qual a pergunta
dos estudiosos? a seguinte: A Filosofia, ao nascer, , como j
dissemos, uma cosmologia, uma explicao racional sobre a origem do
mundo e sobre as causas das transformaes e repeties das coisas;
para isso, ela nasce de uma transformao gradual dos mitos ou de uma
ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e
a teogonia? Duas foram as respostas dadas. A primeira delas foi
dada nos fins do sculo XIX e comeo do sculo XX, quando reinava um
grande otimismo sobre os poderes cientficos e capacidades tcnicas
do homem. Dizia-se, ento, que a Filosofia nasceu por uma ruptura
radical com os mitos, sendo a primeira explicao cientfica da
realidade produzida pelo Ocidente. A segunda resposta foi dada a
partir de meados do sculo XX, quando os estudos dos antroplogos e
dos historiadores mostraram a importncia dos mitos na organizao
social e cultural das sociedades e como os mitos esto profundamente
entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Por
isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam
em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do
interior dos prprios mitos, como uma racionalizao deles. Atualmente
consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a
Filosofia, percebendo as contradies e limitaes dos mitos, foi
reformulando e racionalizando as narrativas mticas,
transformando-as numa outra coisa, numa explicao inteiramente nova
e diferente. Quais so as diferenas entre Filosofia e mito? Podemos
apontar trs como as mais importantes: 1. O mito pretendia narrar
como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longnquo e
fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal
como existe no presente. A Filosofia, ao contrrio, se preocupa
em
35. Marilena Chau _______________________________ 35 explicar
como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto , na
totalidade do tempo), as coisas so como so; 2. O mito narrava a
origem atravs de genealogias e rivalidades ou alianas entre foras
divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao
contrrio, explica a produo natural das coisas por elementos e
causas naturais e impessoais. O mito falava em Urano, Ponto e Gaia;
a Filosofia fala em cu, mar e terra. O mito narra a origem dos
seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e
marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia
explica o surgimento desses seres por composio, combinao e separao
dos quatro elementos - mido, seco, quente e frio, ou gua, terra,
fogo e ar. 3. O mito no se importava com contradies, com o fabuloso
e o incompreensvel, no s porque esses eram traos prprios da
narrativa mtica, como tambm porque a confiana e a crena no mito
vinham da autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao
contrrio, no admite contradies, fabulao e coisas incompreensveis,
mas exige que a explicao seja coerente, lgica e racional; alm
disso, a autoridade da explicao no vem da pessoa do filsofo, mas da
razo, que a mesma em todos os seres humanos. Condies histricas para
o surgimento da Filosofia Resolvido esse problema, temos ainda um
ltimo a solucionar: O que tornou possvel o surgimento da Filosofia
na Grcia no final do sculo VII e no incio do sculo VI antes de
Cristo? Quais as condies materiais, isto , econmicas, sociais,
polticas e histricas que permitiram o surgimento da Filosofia?
Podemos apontar como principais condies histricas para o surgimento
da Filosofia na Grcia: ? as viagens martimas, que permitiram aos
gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por
deuses, tits e heris eram, na verdade, habitados por outros seres
humanos; e que as regies dos mares que os mitos diziam habitados
por monstros e seres fabulosos no possuam nem monstros nem seres
fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a
desmistificao do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicao
sobre sua origem, explicao que o mito j no podia oferecer; ? a
inveno do calendrio, que uma forma de calcular o tempo segundo as
estaes do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se
repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstrao nova, ou
uma percepo do tempo como algo natural e no como um poder divino
incompreensvel; ? a inveno da moeda, que permitiu uma forma de
troca que no se realiza atravs das coisas concretas ou dos objetos
concretos trocados por semelhana, mas uma troca abstrata, uma troca
feita pelo clculo do valor semelhante das
36. Convite Filosofia _______________________________ 36 coisas
diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstrao e
de generalizao; ? o surgimento da vida urbana, com predomnio do
comrcio e do artesanato, dando desenvolvimento a tcnicas de
fabricao e de troca, e diminuindo o prestgio das famlias da
aristocracia proprietria de terras, por quem e para quem os mitos
foram criados; alm disso, o surgimento de uma classe de
comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de
prestgio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e
de sangue (as linhagens constitudas pelas famlias), fez com que se
procurasse o prestgio pelo patrocnio e estmulo s artes, s tcnicas e
aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia
surgir; ? a inveno da escrita alfabtica, que, como a do calendrio e
a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstrao e de
generalizao, uma vez que a escrita alfabtica ou fontica,
diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os
hierglifos dos egpcios ou os ideogramas dos chineses -, supe que no
se represente uma imagem da coisa que est sendo dita, mas a idia
dela, o que dela se pensa e se transcreve; ? a inveno da poltica,
que introduz trs aspectos novos e decisivos para o nascimento da
Filosofia: 1. A idia da lei como expresso da vontade de uma
coletividade humana que decide por si mesma o que melhor para si e
como ela definir suas relaes internas. O aspecto legislado e
regulado da cidade - da polis - servir de modelo para a Filosofia
propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um
mundo racional. 2. O surgimento de um espao pblico, que faz
aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele
que era proferido pelo mito. Neste, um poeta- vidente, que recebia
das deusas ligadas memria (a deusa Mnemosyne, me das Musas, que
guiavam o poeta) uma iluminao misteriosa ou uma revelao
sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decises dos deuses que
eles deveriam obedecer. Agora, com a polis, isto , a cidade
poltica, surge a palavra como direito de cada cidado de emitir em
pblico sua opinio, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar
uma deciso proposta por ele, de tal modo que surge o discurso
poltico como a palavra humana compartilhada, como dilogo, discusso
e deliberao humana, isto , como deciso racional e exposio dos
motivos ou das razes para fazer ou no fazer alguma coisa. A
poltica, valorizando o humano, o pensamento, a discusso, a persuaso
e a deciso racional, valorizou o pensamento racional e criou
condies para que surgisse o discurso ou a palavra filosfica.
37. Marilena Chau _______________________________ 37 3. A
poltica estimula um pensamento e um discurso que no procuram ser
formulados por seitas secretas dos iniciados em mistrios sagrados,
mas que procuram, ao contrrio, ser pblicos, ensinados,
transmitidos, comunicados e discutidos. A idia de um pensamento que
todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e
transmitir, fundamental para a Filosofia. Principais caractersticas
da Filosofia nascente O pensamento filosfico em seu nascimento
tinha como traos principais: ? tendncia racionalidade, isto , a
razo e somente a razo, com seus princpios e regras, o critrio da
explicao de alguma coisa; ? tendncia a oferecer respostas
conclusivas para os problemas, isto , colocado um problema, sua
soluo submetida anlise, crtica, discusso e demonstrao, nunca sendo
aceita como uma verdade, se no for provado racionalmente que
verdadeira; ? exigncia de que o pensamento apresente suas regras de
funcionamento, isto , o filsofo aquele que justifica suas idias
provando que segue regras universais do pensamento. Para os gregos,
uma lei universal do pensamento que a contradio indica erro ou
falsidade. Uma contradio acontece quando afirmo e nego a mesma
coisa sobre uma mesma coisa (por exemplo: Pedro um menino e no um
menino, A noite escura e clara, O infinito no tem limites e
limitado). Assim, quando uma contradio aparecer numa exposio
filosfica, ela deve ser considerada falsa; ? recusa de explicaes
preestabelecidas e, portanto, exigncia de que, para cada problema,
seja investigada e encontrada a soluo prpria exigida por ele; ?
tendncia generalizao, isto , mostrar que uma explicao tem validade
para muitas coisas diferentes porque, sob a variao percebida pelos
rgos de nossos sentidos, o pensamento descobre semelhanas e
identidades. Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o
gelo diferente da neblina, que diferente do vapor de uma chaleira,
que diferente da chuva, que diferente da correnteza de um rio. No
entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo
elemento (a gua), passando por diferentes estados e formas (lquido,
slido, gasoso), por causas naturais diferentes (condensao,
liquefao, evaporao). Reunindo semelhanas, o pensamento conclui que
se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de
maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O
pensamento generaliza porque abstrai (isto , separa e rene os traos
semelhantes), ou seja, realiza uma sntese. E o contrrio tambm
ocorre. Muitas vezes nossos rgos dos sentidos nos fazem perceber
coisas diferentes como se fossem a mesma coisa, e o pensamento
demonstrar que se trata de uma coisa diferente sob a aparncia da
semelhana.
38. Convite Filosofia _______________________________ 38 No ano
de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as
cores da bandeira nacional e saram s ruas para exigir o impedimento
do presidente da Repblica. Logo depois, os candidatos a prefeituras
municipais contrataram jovens para aparecer na televiso com a cara
pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as Foras Armadas
brasileiras, para persuadir jovens a servi-las, contrataram jovens
caras-pintadas para aparecer como soldados, marinheiros e
aviadores. Ao mesmo tempo, vrias empresas, pretendendo vender seus
produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para, de cara
pintada, fazer a propaganda de seus produtos. Aparentemente,
teramos sempre a mesma coisa - os jovens rebeldes e conscientes, de
cara pintada, smbolo da esperana do Pas. No entanto, o pensamento
pode mostrar que, sob a aparncia da semelhana percebida, esto
diferenas, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um movimento
poltico espontneo, os segundos fizeram propaganda poltica para um
candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as
Foras Armadas a aparecer como divertidas e juvenis, e os ltimos,
mediante remunerao, estavam transferindo para produtos industriais
(roupas, calados, vdeos, margarinas, discos, iogurtes) um smbolo
poltico inteiramente despolitizado e sem nenhuma relao com sua
origem. Separando as diferenas, o pensamento realiza, nesse caso,
uma anlise.
39. Marilena Chau _______________________________ 39 Captulo 3
Campos de investigao da Filosofia Os perodos da Filosofia grega A
Filosofia ter, no correr dos sculos, um conjunto de preocupaes,
indagaes e interesses que lhe vieram de seu nascimento na Grcia.
Assim, antes de vermos que campos so esses, examinemos brevemente
os contedos que a Filosofia possua na Grcia. Para isso, devemos,
primeiro, conhecer os perodos principais da Filosofia grega, pois
tais perodos definiram os campos da investigao filosfica na
Antigidade. A histria da Grcia costuma ser dividida pelos
historiadores em quatro grandes fases ou pocas: 1. a da Grcia
homrica, correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta Homero, em
seus dois grandes poemas, Ilada e Odissia; 2. a da Grcia arcaica ou
dos sete sbios, do sculo VII ao sculo V antes de Cristo, quando os
gregos criam cidades como Atenas, Esparta, Tebas, Megara, Samos,
etc., e predomina a economia urbana, baseada no artesanato e no
comrcio; 3. a da Grcia clssica, nos sculos V e IV antes de Cristo,
quando a democracia se desenvolve, a vida intelectual e artstica
entra no apogeu e Atenas domina a Grcia com seu imprio comercial e
militar; 4. e, finalmente, a poca helenstica, a partir do final do
sculo IV antes de Cristo, quando a Grcia passa para o poderio do
imprio de Alexandre da Macednia, e, depois, para as mos do Imprio
Romano, terminando a histria de sua existncia independente. Os
perodos da Filosofia no correspondem exatamente a essas pocas, j
que ela no existe na Grcia homrica e s aparece nos meados da Grcia
arcaica. Entretanto, o apogeu da Filosofia acontece durante o
apogeu da cultura e da sociedade gregas; portanto, durante a Grcia
clssica. Os quatro grandes perodos da Filosofia grega, nos quais
seu contedo muda e se enriquece, so: 1. Perodo pr-socrtico ou
cosmolgico, do final do sculo VII ao final do sculo V a.C., quando
a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as
causas das transformaes na Natureza.
40. Convite Filosofia _______________________________ 40 2.
Perodo socrtico ou antropolgico, do final do sculo V e todo o sculo
IV a.C., quando a Filosofia investiga as questes humanas, isto , a
tica, a poltica e as tcnicas (em grego, ntropos quer dizer homem;
por isso o perodo recebeu o nome de antropolgico). 3. Perodo
sistemtico, do final do sculo IV ao final do sculo III a.C., quando
a Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado
sobre a cosmologia e a antropologia, interessando-se sobretudo em
mostrar que tudo pode ser objeto do conhecimento filosfico, desde
que as leis do pensamento e de suas demonstraes estejam firmemente
estabelecidas para oferecer os critrios da verdade e da cincia. 4.
Perodo helenstico ou greco-romano, do final do sculo III a.C. at o
sculo VI depois de Cristo. Nesse longo perodo, que j alcana Roma e
o pensamento dos primeiros Padres da Igreja, a Filosofia se ocupa
sobretudo com as questes da tica, do conhecimento humano e das
relaes entre o homem e a Natureza e de ambos com Deus. Filosofia
Grega Pode-se perceber que os dois primeiros perodos da Filosofia
grega tm como referncia o filsofo Scrates de Atenas, donde a diviso
em Filosofia pr- socrtica e socrtica. Perodo pr-socrtico ou
cosmolgico Os principais filsofos pr-socrticos foram: ? filsofos da
Escola Jnica: Tales de Mileto, Anaxmenes de Mileto, Anaximandro de
Mileto e Herclito de feso; ? filsofos da Escola Itlica: Pitgoras de
Samos, Filolau de Crotona e rquitas de Tarento; ? filsofos da
Escola Eleata: Parmnides de Elia e Zeno de Elia; ? filsofos da
Escola da Pluralidade: Empdocles de Agrigento, Anaxgoras de
Clazmena, Leucipo de Abdera e Demcrito de Abdera. As principais
caractersticas da cosmologia so: ? uma explicao racional e
sistemtica sobre a origem, ordem e transformao da Natureza, da qual
os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a Natureza,
a Filosofia tambm explica a origem e as mudanas dos seres humanos.
? Afirma que no existe criao do mundo, isto , nega que o mundo
tenha surgido do nada (como o caso, por exemplo, na religio
judaico-crist, na qual Deus cria o mundo do nada). Por isso diz:
Nada vem do nada e nada volta ao nada. Isto significa: a) que o
mundo, ou a Natureza, eterno; b) que no mundo, ou na Natureza, tudo
se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer,
41. Marilena Chau _______________________________ 41 embora a
forma particular que uma coisa possua desaparea com ela, mas no sua
matria. ? O fundo eterno, perene, imortal, de onde tudo nasce e
para onde tudo volta invisvel para os olhos do corpo e visvel
somente para o olho do esprito, isto , para o pensamento. ? O fundo
eterno, perene, imortal e imperecvel de onde tudo brota e para onde
tudo retorna o elemento primordial da Natureza e chama-se physis
(em grego, physis vem de um verbo que significa fazer surgir, fazer
brotar, fazer nascer, produzir). A physis a Natureza eterna e em
perene transformao. ? Afirma que, embora a physis (o elemento
primordial eterno) seja imperecvel, ela d origem a todos os seres
infinitamente variados e diferentes do mundo, seres que, ao
contrrio do princpio gerador, so perecveis ou mortais. ? Afirma que
todos os seres, alm de serem gerados e de serem mortais, so seres
em contnua transformao, mudando de qualidade (por exemplo, o branco
amarelece, acinzenta, enegrece; o negro acinzenta, embranquece; o
novo envelhece; o quente esfria; o frio esquenta; o seco fica mido;
o mido seca; o dia se torna noite; a noite se torna dia; a
primavera cede lugar ao vero, que cede lugar ao outono, que cede
lugar ao inverno; o saudvel adoece; o doente se cura; a criana
cresce; a rvore vem da semente e produz sementes, etc.) e mudando
de quantidade (o pequeno cresce e fica grande; o grande diminui e
fica pequeno; o longe fica perto se eu for at ele, ou se as coisas
distantes chegarem at mim, um rio aumenta de volume na cheia e
diminui na seca, etc.). Portanto o mundo est em mudana contnua, sem
por isso perder sua forma, sua ordem e sua estabilidade. A mudana -
nascer, morrer, mudar de qualidade ou de quantidade - chama-se
movimento e o mundo est em movimento permanente. O movimento do
mundo chama-se devir e o devir segue leis rigorosas que o
pensamento conhece. Essas leis so as que mostram que toda mudana
passagem de um estado ao seu contrrio: dia-noite, claro-escuro,
quente-frio, seco-mido, novo-velho, pequeno-grande, bom-mau,
cheio-vazio, um-muitos, etc., e tambm no sentido inverso,
noite-dia, escuro-claro, frio-quente, muitos- um, etc. O devir ,
portanto, a passagem contnua de uma coisa ao seu estado contrrio e
essa passagem no catica, mas obedece a leis determinadas pela
physis ou pelo princpio fundamental do mundo. Os diferentes
filsofos escolheram diferentes physis, isto , cada filsofo
encontrou motivos e razes para dizer qual era o princpio eterno e
imutvel que est na origem da Natureza e de suas transformaes.
Assim, Tales dizia que o princpio era a gua ou o mido; Anaximandro
considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas;
Anaxmenes, que era o ar ou o frio; Herclito afirmou
42. Convite Filosofia _______________________________ 42 que
era o fogo; Leucipo e Demcrito disseram que eram os tomos. E assim
por diante. Perodo socrtico ou antropolgico Com o desenvolvimento
das cidades, do comrcio, do artesanato e das artes militares,
Atenas tornou-se o centro da vida social, poltica e cultural da
Grcia, vivendo seu perodo de esplendor, conhecido como o Sculo de
Pricles. a poca de maior florescimento da democracia. A democracia
grega possua, entre outras, duas caractersticas de grande
importncia para o futuro da Filosofia. Em primeiro lugar, a
democracia afirmava a igualdade de todos os homens adultos perante
as leis e o direito de todos de participar diretamente do governo
da cidade, da polis. Em segundo lugar, e como conseqncia, a
democracia, sendo direta e no por eleio de representantes, garantia
a todos a participao no governo, e os que dele participavam tinham
o direito de exprimir, discutir e defender em pblico suas opinies
sobre as decises que a cidade deveria tomar. Surgia, assim, a
figura poltica do cidado. (Nota: Devemos observar que estavam
excludos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes:
mulheres, escravos, crianas e velho