Julho/Agosto 2004 Vol. X N.º 4 347
PNEUMONIA EM ORGANIZAÇÃO CRIPTOGÉNICA - CASO CLÍNICO/MARIA DO CÉU DÓRIA,FILIPA BARROS, JOSÉ LOMELINO ARAÚJO, MANUEL COSTA MATOS
CASO CLÍNICO/CLINICAL CASE
MARIA DO CÉU DÓRIA1, FILIPA BARROS1, JOSÉ LOMELINO ARAÚJO2, MANUEL COSTA MATOS3
Recebido para publicação/Received for publication: 04.05.03Aceite para publicação/Accepted for publication: 04.06.28
REV PORT PNEUMOL X (4): 347-353
RESUMO
Pneumonia em organização criptogénica (POC)é a designação dada, segundo a nova classificaçãodas pneumonias intersticiais idiopáticas, ao padrãohistológico de pneumonia em organização em quenenhuma causa ou associação é reconhecida(idiopática), vindo substituir o termo bronquiolite
ABSTRACT
Cryptogenic organizing pneumonia (COP) isone of the recognized histological patterns ofidiopathic interstitial pneumonias, in which nocause or association is identified. Idiopathic bron-chiolitis obliterans-organizing pneumonia (BOOP)is a synonymous.
Pneumonia em organização criptogénica - caso clínico
Cryptogenic organizing pneumonia - case report
1 Internas do Internato Complementar de Medicina Interna, Serviço de Medicina.2 Assistente Graduado em Medicina Interna, Serviço de Medicina.3 Director do Serviço de Medicina Interna
Centro Hospitalar de Cascais
348 Vol. X N.º 4 Julho/Agosto 2004
REVISTA PORTUGUESA DE PNEUMOLOGIA/CASO CLÍNICO
This rare entity is characterized by involvementof alveoli and bronchioles, which are filled with in-traluminal polyps of fibroblastic tissue (Masson bo-dies). The clinical presentation often mimics that ofcommunity-acquired pneumonia. Persistent non-pro-ductive cough, exertional dyspnoea and weight lossare common features, and in one-half of the cases theonset is heralded by a flu-like syndrome. Definitivediagnosis depends on histological data, and video-as-sisted thoracoscopic (VAT) has become the establishedtechnique. Spontaneous recovery is rare; corticos-teroid therapy provides cure in two thirds of cases.
The authors present a case of a patient whoselung biopsy by VAT confirmed the diagnosis. She wastreated with corticoids without recurrence in a twoyear follow-up.
REV PORT PNEUMOL 2004; X (4): 347-353
Key-words: cryptogenic organizing pneumonia, bron-chiolitis obliterans-organizing pneumonia, interstitialpneumonia.
obliterante com pneumonia em organização (BOOP).É uma entidade rara caracterizada pelo
preenchimento das pequenas vias aéreas por póliposde tecido fibroblástico (corpos de Masson).Clinicamente, é muitas vezes difícil o diagnósticodiferencial com pneumonia adquirida na comunidade,sendo frequente um quadro de tosse seca persistente,dispneia de esforço e emagrecimento, precedido emcerca de metade dos doentes de síndroma tipo gripal.O diagnóstico definitivo depende da confirmaçãohistológica, frequentemente por biópsia pulmonartranstorácica (BPTT). É rara a recuperaçãoespontânea, mas a corticoterapia permite cura emdois terços dos casos.
Os autores apresentam o caso clínico de umadoente em que a BPTT permitiu a confirmaçãodiagnóstica, tratada com corticoterapia, sem recaídanos 2 anos seguintes.
REV PORT PNEUMOL 2004; X (4): 347-353
Palavras-chave: pneumonia em organizaçãocriptogénica, bronquiolite obliterante com pneumo-nia em organização, pneumonia intersticial
INTRODUÇÃO
A pneumonia em organização é um padrãohistológico de pneumonia intersticial idiopática.Pode surgir em associação a várias entidadesclínicas, sendo designada por pneumonia emorganização criptogénica (POC) quando nenhumaetiologia é reconhecida. O diagnóstico final exigeexclusão de doença subjacente e adequada avalia-ção clínico-radiológico-histológica, frequentementecom recurso a biópsia pulmonar transtorácica(BPTT). A corticoterapia permite a recuperaçãocompleta na maioria dos casos, sendo o prognósticohabitualmente favorável.1,2,3
CASO CLÍNICO
Os autores apresentam o caso clínico de umadoente de 55 anos, admitida para esclarecimento deum quadro caracterizado por febre baixa (< 38,3 °C),tosse pouco produtiva (expectoração seromucosa),sudorese nocturna, dispneia de esforço, astenia, ano-rexia e emagrecimento de 2 kg, com cerca de 2 mesesde evolução. Desconhecia antecedentes patológicos,negando hábitos tabágicos, etílicos, tóxicos, medi-camentosos ou história epidemiológica relevante.
Fez, em ambulatório, terapêutica com AINE eantibioterapia empírica (amoxicilina e ácidoclavulânico durante 10 dias e posteriormente comdoxiciclina por sete dias) sem melhoria.
Julho/Agosto 2004 Vol. X N.º 4 349
PNEUMONIA EM ORGANIZAÇÃO CRIPTOGÉNICA - CASO CLÍNICO/MARIA DO CÉU DÓRIA,FILIPA BARROS, JOSÉ LOMELINO ARAÚJO, MANUEL COSTA MATOS
Na admissão, o exame objectivo revelou febre(38 °C), estabilidade hemodinâmica, taquicardia,ausência de sinais de dificuldade respiratória emrepouso, e à auscultação pulmonar murmúrio ve-sicular mantido com fervores crepitantes na baseesquerda.
O radiograma do tórax apresentava reforçointersticial difuso bilateral com hipotransparênciaheterogénea nas bases (Fig. 1). Analiticamente,relevância para velocidade de sedimentação (VS)de 124 mm/1.ªh, proteína C reactiva (PCR) elevada(12,8 mg/dl), anemia normocrómica e normocítica(Hb 10,3 g/dl), transaminases elevadas (ALT 260U/L, ALT 75 U/L) sem padrão de colestase, gaso-metria arterial (FiO2 21 %) com hipoxemia ligeira(PaO2 82 mmHg, SaO2 96 %).
Foi medicada com claritromicina (15 dias),seguida de antibioterapia com piperacilina/tazo-bactam (14 dias), oxigénio (FiO2 35 %) e bronco-dilatadores inalatórios, sem melhoria clínica ouradiológica (Fig. 2).
A TAC torácica evidenciou múltiplas imagens deconsolidação peribrônquica e subpleural, algumascom padrão de “vidro despolido”, persistindo embora
com migração topográfica, na reavaliaçãoimagiológica duas semanas depois (Fig. 3).
A broncofibroscopia foi normal. O exame dolavado broncoalveolar mostrou predomínio demonócitos (61 %), com 33 % de linfócitos e 6 %de polimorfonucleares; o exame microbiológico ea pesquisa de células neoplásicas foram negativos.O estudo histológico do tecido pulmonar obtido porbiópsia pulmonar transbrônquica (BPTB) revelouinfiltrado inflamatório linfóide e formaçõespolipóides miofibroblásticas no interior dos alvéolos,aspectos sugestivos de pneumonia em organização.A BPTT confirmou estas alterações (Fig. 4).
O exame microbiológico do sangue, expec-toração, urina e marcadores das hepatites víricas eVIH foram negativos. O estudo serológico deinfecção a CMV, EBV, Mycoplasma pneumoniae,Chlamydia psittaci, Legionella pneumophila,Coxiella burnetti, Adenovírus, vírus Influenza,Parainfluenza, Brucella, Salmonella e Trepo-nema pallidum não foi compatível com infecçãorecente. Os marcadores tumorais, autoanticorpose factor reumatóide foram negativos e o doseamentodo complemento normal. Foram realizados ecocar-
Fig. 1 – Radiograma do tórax PA na admissão hospitalar.
350 Vol. X N.º 4 Julho/Agosto 2004
REVISTA PORTUGUESA DE PNEUMOLOGIA/CASO CLÍNICO
diograma transtorácico (sem alterações), ecografiaabdominal (normal), biópsia hepática (colestasediscreta) e endoscopia digestiva alta (duodenitecrónica).
Não se identificando nenhum agente ou entidadepotencialmente responsável pela situação clínico-
-patológica descrita, admitiu-se tratar-se de umcaso de pneumonia em organização criptogénica(POC), na classificação das pneumonias intersticiaisidiopáticas. A doente iniciou corticoterapia (predni-solona 1mg/kg/dia), assistindo-se a evolução clínicafavorável (apirexia mantida, desaparecimento da
Fig. 2 – Radiograma do tórax PA após segundo curso de antibio- terapia.
TAC torácica após segundo curso de antibioterapia -imagens de consolidação peribrônquica e subpleural.
Fig. 3 –
Julho/Agosto 2004 Vol. X N.º 4 351
PNEUMONIA EM ORGANIZAÇÃO CRIPTOGÉNICA - CASO CLÍNICO/MARIA DO CÉU DÓRIA,FILIPA BARROS, JOSÉ LOMELINO ARAÚJO, MANUEL COSTA MATOS
tosse e dispneia de esforço, com melhoria gradualdas queixas de astenia), laboratorial e imagiológica,com resolução praticamente completa dasalterações parenquimatosas na TAC realizada aos
2 meses de terapêutica (Fig. 5). A corticoterapiafoi descontinuada progressivamente e posterior-mente interrompida, sem recaída nos dois anosseguintes.
Histologia de biópsia pulmonar por VAT - infiltradoinflamatório linfóide septal e massas polipóidesmiofibroblásticas preenchendo o lúmen dos alvéolos ebronquíolos terminais.
Fig. 4 –
TAC torácica aos 2 meses de corticoterapia - resoluçãopraticamente completa das alterações parenquimatosas.
Fig. 5 –
352 Vol. X N.º 4 Julho/Agosto 2004
REVISTA PORTUGUESA DE PNEUMOLOGIA/CASO CLÍNICO
DISCUSSÃO
As pneumonias intersticiais idiopáticas, um dostipos de doença difusa do parênquima pulmonar,foram recentemente reclassificadas. A nova classi-ficação baseia-se em sete padrões histológicos.1,2
O interstício pulmonar é, embora não exclusiva-mente, o local primário de lesão. Considera-se pneu-monia intersticial idiopática quando, após correlaçãoclínico-radiológico-histológica, nenhuma etiologia éreconhecida2.
A pneumonia em organização é um dessespadrões histológicos, sendo caracterizada pelopreenchimento dos alvéolos, ductos alveolares e,por vezes, dos bronquíolos terminais, por póliposde tecido fibroblástico (corpos de Masson). Estepadrão pode estar associado a infecções,exposição a fármacos, tóxicos ou fumos, doençasdo colagéneo, neoplasias, etc. Nos raros casos emque não é possível identificar um factor responsávelpelo seu aparecimento, é designada por pneumo-nia em organização criptogénica (POC).1-4
A POC atinge de igual forma os dois sexos,sendo mais frequente em não fumadores eprevalente na 5.ª e 6.ª décadas de vida. Caracteriza--se por um quadro clínico de duração variável,habitualmente com menos de 3 meses de evolução,de tosse seca ou com expectoração sero-mucosa,dispneia, emagrecimento, febre intermitente emialgias, precedido em cerca de metade dosdoentes de síndroma tipo gripal. Analiticamente écomum a elevação da VS, da PCR e neutrofilia. Oenvolvimento pulmonar é quase sempre bilateral eperiférico, com opacidades alveolares difusas, porvezes recorrentes ou migratórias. A TAC frequen-temente mostra áreas de consolidação do espaçoaéreo, com distribuição subpleural ou peribrônquicaem mais de metade dos casos. O diagnósticodefinitivo depende da confirmação histológica,muitas vezes apenas possível por biópsia pulmonartranstorácica. Com corticoterapia assiste-se, em doisterços dos doentes, a recuperação clínica e imagio-lógica completa, sendo habitualmente mantida pelo
menos seis meses. Com a redução da dose sãofrequentes as recaídas, sendo importante a rea-valiação periódica.2-9
O caso clínico exposto apresentou significativasdificuldades diagnósticas. Tal como frequentementeocorre na POC, foi inicialmente interpretado comopneumonia, não se verificando melhoria comantibioterapia de amplo espectro. A embolizaçãoséptica por endocardite foi também excluída peloecocardiograma transtorácico e reforçada pelasseriadas hemoculturas negativas. A tuberculose foiconsiderada, quer pela sintomatologia, quer pelasalterações analíticas observadas; no entanto opadrão imagiológico, a negatividade dos examesmicrobiológicos e a biópsia hepática afastaram estahipótese. As típicas alterações da TAC e o estudohistológico da BPTB foram muito sugestivas destetipo de pneumonia intersticial idiopática. Apesardisso, e atendendo aos potenciais efeitossecundários da terapêutica a instituir, foi realizadaBPTT. A investigação exaustiva de possível causaidentificável permitiu concluirmos tratar-se de umcaso idiopático de pneumonia em organização(POC). Com a corticoterapia a evolução foinotável, sem recaídas e com resolução praticamentecompleta das alterações imagiológicas.
AGRADECIMENTOS
Um agradecimento especial à Dra. Graça Freitas(Serviço de Pneumologia, Hospital de Santa Marta) e DraEugénia Pinto (Serviço de Anatomia Patológica, Hospitalde Santa Marta) pela disponibilidade e colaboração
prestadas na orientação diagnóstica deste caso clínico.
BIBLIOGRAFIA
1. NICHOLSON AG. Classification of idiopathic interstitialpneumonias: making sense of the alphabet soup. Histopa-thology 2002; 4: 381-391
Julho/Agosto 2004 Vol. X N.º 4 353
PNEUMONIA EM ORGANIZAÇÃO CRIPTOGÉNICA - CASO CLÍNICO/MARIA DO CÉU DÓRIA,FILIPA BARROS, JOSÉ LOMELINO ARAÚJO, MANUEL COSTA MATOS
2. American Thoracic Society/European Respiratory SocietyInternational Multidisciplinary Consensus Classificationof the Idiopathic Interstitial Pneumonias. Am J Respir CritCare Med 2002; 165: 277-304
3. CORDIER JF. Update on cryptogenic organising pneumo-nia (idiopathic bronchiolitis obliterans organising pneumo-nia). Swiss Med Wkly 2002; 132: 588-591
4. FLAHERTY KR, TOEWS GB, TRAVIS WD, COLBY TV,KAZEROONI EA, GROSS BH, JAIN A, STRAW-DERMAN RL 3RD, PAINE R, FLINT A, LYNCH JP3RD, MARTINEZ FJ . Clinical significance of histologicalclassification of idiopathic interstitial pneumonia. Eur RespirJ 2002 ; 19 : 275-283
5. TALMADGE E, KING JR. Cryptogenic organizing pneu-monitis. UpToDate 10.3
6. DAVISON AG, HEARD BE, MCALLISTER WAC,TURNER-WARWICK MEH. Cryptogenic organizingpneumonitis. Q J Med 1983; 52: 382-94
7. ALASALY K, MULLER N, OSTROW DN, CHAMPIONP, FITZGERALD JM. Cryptogenic organizing pneumonia- a report of 25 cases and a review of the literature. Medi-cine 1995; 74:201-11
8. CORDIER JF, LOIRE R, BRUNE J. Idiopathic bronchioli-tis obliterans organizing pneumonia - definition of charac-teristic clinical profiles in a series of 16 patients. Chest1989; 96:999-1004
9. CORDIER JF. Cryptogenic organizing pneumonitis. Bron-chiolitis obliterans organizing pneumonia. Clin Chest Med1993;14: 677-92
Top Related