UNIVERSIDADE DE BRASLIA
DANIEL PITANGUEIRA DE AVELINO
DEMOCRACIA EM CONSELHOS:
anlise do processo decisrio em conselhos nacionais
BRASLIA-DF
2012
DANIEL PITANGUEIRA DE AVELINO
DEMOCRACIA EM CONSELHOS:
anlise do processo decisrio em conselhos nacionais
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Universidade de Braslia como requisito parcial para a obteno do grau de doutor em Poltica Social, na rea de concentrao Estado, Polticas Sociais e Cidadania. Orientadora: Profa. Dra. Debora Diniz
BRASLIA-DF
2012
DANIEL PITANGUEIRA DE AVELINO
DEMOCRACIA EM CONSELHOS:
anlise do processo decisrio em conselhos nacionais
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Universidade de Braslia como requisito parcial para a obteno do grau de doutor em Poltica Social, na rea de concentrao Estado, Polticas Sociais e Cidadania. Orientadora: Profa. Dra. Debora Diniz
Tese aprovada em 12/12/12.
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Debora Diniz Orientadora SER/UnB
Prof. Dr. Pedro de Carvalho Pontual Membro Externo SGPR
Prof. Dr. Jos Eduardo Elias Romo Membro Externo OGU/CGU-PR
Prof. Dr. Alexandre Bernardino Costa Membro Titular DIR/UnB
Prof. Dr. Cristiano Guedes Membro Titular SER/UnB
Prof. Dr. Newton Narciso Gomes Jnior Membro Suplente SER/UnB
Ao meu Rei, t vendo a, meu velho?
Jogamos duro. N mole no.
AGRADECIMENTOS
A todos e todas que contriburam para que este trabalho fosse possvel, em especial
Profa. Ivanete Salete Boschetti, pela orientao nos primeiros anos do curso, pelo exemplo
de militncia, compromisso e f na democracia,
Profa. Debora Diniz, pela orientao nos momentos de concluso, pelas lies de tica e
profissionalismo e por mostrar como nossos atos podem (e devem) tornam o mundo melhor,
aos Profs. Alexandre Bernardino, Pedro Pontual, Jos Eduardo Romo, Cristiano Guedes e
Newton Jnior, pela confiana e pela solidariedade na luta por uma democracia participativa,
aos professores, colegas e funcionrios da Universidade de Braslia, pelo companheirismo,
pela presena e por construir no dia-a-dia o que significa viver em universidade,
aos colegas de trabalho, conselheiros e conselheiras, que tornam estas ideias reais,
aos meus irmos, minha noiva, minha me, minha famlia e meus amigos, por tudo,
e a Clara, por me ensinar que no existe apenas um jeito certo de escrever ou jogar xadrez,
meu muito obrigado.
RESUMO
O presente estudo est fundamentado em concepes marxistas de democracia e
Estado e em uma consequente conceituao de conselhismo, baseada na obra de Rosa
Luxemburgo sobre sistemas de conselhos. O foco recai sobre as experincias brasileiras de
conselhos, como formaes sociais especficas, do fim do sculo XIX aos desafios mais
recentes de replicao e controle social. Ao longo desse tempo, os conselhos difundiram-se,
no mbito federal, por vrias reas de atuao estatal e, no mbito local, esto presentes em
mais de 97% dos municpios brasileiros, constituindo uma prtica destacada na administrao
pblica. A pesquisa uma anlise de conjuntura poltica do Conselho Nacional de Assistncia
Social (CNAS) no perodo de 2007 a 2008, com o objetivo de identificar a prevalncia de
interesses dentro de sua composio. A hiptese de que as decises do CNAS refletem,
majoritariamente, os interesses afirmados pelos representantes governamentais em
comparao com aqueles no governamentais. A pesquisa foi documental, realizada sobre
atas de 15 reunies ordinrias e 3 extraordinrias ocorridas entre fevereiro de 2007 e agosto
de 2008. As 2.207 manifestaes proferidas nessas reunies foram categorizadas segundo os
enunciados e comparadas de acordo com quatro conjuntos de critrios (condies de deciso,
resultados da deciso, momento deliberativo e momento decisrio). Isso forneceu um
conjunto de dados quantitativos adequados medio dos processos decisrios em rgos
colegiados. Os resultados mostraram o conselho como uma arena aberta cujos membros
governamentais ou no governamentais contribuem para a deciso, em um processo gradual e
participativo em que prevalece a construo de propostas coletivas. Ainda assim, as medidas
tambm indicaram um comportamento mais homogneo e articulado no segmento
governamental, em contraste com uma representao fragmentada da sociedade civil.
Palavras-chaves: Conselhos. Conselhismo. Processo decisrio.
ABSTRACT
This study lays its basis on Marxist conceptions of democracy and State, which leads
to a depiction of councilism, as perceived in Rosa Luxemburgs writings about council
systems. It focuses on Brazilian experiences of councils, considered as specific social
formations, from late 19th century until recent challenges of replication and social control.
Meanwhile, councils have spread among areas of federal government and more than 97% of
Brazilian municipalities, and are currently regarded as a remarkable practice in public
administration. The research conducted was documental and consisted of a conjunctural
analysis of the National Council of Social Assistance (CNAS) between 2007 and 2008, which
aimed to identify the prevalence of interests among its members. The hypothesis was that
CNAS decisions reflect mostly the interests of governmental representatives than those of
non-governmental ones. Reports from 15 ordinary and 3 extraordinary sessions between
February 2007 and August 2008 were analyzed, and the 2207 statements made in them were
categorized according to the forms of enunciation and compared under four criteria
(conditions of decision, results of the decision, behavior on the deliberative phase and
behavior on the decision phase). This resulted in a set of quantitative data that allowed the
measurement of the decision-making process in councils. The results revealed that councils
are an open arena where both governmental and non-governmental members contribute to
decision-making, in a gradual and participative proposal-building process. Nevertheless, a
more articulated and homogenous behavior was identified to the governmental side, as
opposed to a fragmented representation of the civil society.
Keywords: Councils. Councilism. Decision-making.
LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 - Distribuio absoluta das manifestaes, por segmento autor ........................... 122
Grfico 2 - Nmero de manifestaes segundo o segmento e a referibilidade ..................... 123
Grfico 3 - Nmero de manifestaes de juzo, por segmento autor .................................... 124
Grfico 4 - Resultado das manifestaes apresentadas, por segmento autor ........................ 125
Grfico 5 - Distribuio proporcional ao segmento das manifestaes (propositivas ou no) do governo decididas, segundo seu resultado .......................................................................... 127
Grfico 6 - Distribuio proporcional ao segmento das manifestaes (propositivas ou no) da sociedade civil decididas, segundo seu resultado ................................................................ 127
Grfico 7 - Nmero de manifestaes decididas, por segmento, segundo o mtodo de deciso129
Grfico 8 - Proporo das manifestaes de juzo de autoria do governo, segundo o segmento a que se destinam ............................................................................................................... 132
Grfico 9 - Proporo das manifestaes de juzo de autoria da sociedade civil, segundo o segmento a que se destinam ............................................................................................... 132
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Relao exemplificativa de conselhos com seus respectivos atos de criao, Brasil, 19001946 ........................................................................................................................... 73
Tabela 2 - Relao exemplificativa de conselhos departamentalizados com seus respectivos atos de converso, Brasil, 19331967 ................................................................................... 75
Tabela 3 - Relao exemplificativa de conselhos com seus respectivos atos de criao, Brasil, 19461964 ........................................................................................................................... 75
Tabela 4 - Relao exemplificativa de conselhos com seus respectivos atos de criao, Brasil, 19641988 ........................................................................................................................... 77
Tabela 5 - Frequncia absoluta dos municpios com conselhos, por rea, e percentual relativo ao total de municpios, Brasil, 2009...................................................................................... 83
Tabela 6 - Quadro comparativo das caractersticas de participao social no SUS e no Suas, Brasil, 2012.......................................................................................................................... 88
Tabela 7 - Relao dos atos normativos do SUS e do Suas com os respectivos projetos de lei originrios, Brasil, 2012 ....................................................................................................... 91
Tabela 8 - Mdia simples e desvio padro dos percentuais de presena dos conselheiros do CNAS, por segmento, 14/02/200714/08/2008 .................................................................. 120
Tabela 9 - Percentuais de presena, justificativa e ausncia por reunies dos conselheiros do CNAS, por segmento, 14/02/200714/08/2008 .................................................................. 120
Tabela 10 - Frequncias absolutas das manifestaes e frequncias relativas do nmero de propostas e alteraes de propostas em relao ao nmero de manifestaes, por segmento do CNAS, 14/02/200714/08/2008 ......................................................................................... 122
Tabela 11 - Resultados das proposies e alteraes, por segmento autor no CNAS, 14/02/200714/08/2008 (frequncias absolutas) ................................................................. 126
Tabela 12 - Frequncia absoluta do nmero de decises segundo o modo de deciso, o tipo de deciso e o segmento autor no CNAS, 14/02/200714/08/2008 .......................................... 130
Tabela 13 - Frequncias absolutas de manifestaes de juzo, por tipo de manifestao, segundo o segmento autor e o segmento destinatrio do CNAS, 14/02/200714/08/2008 ... 133
Tabela 14 - Frequncia absoluta dos eventos de votao realizados, segundo o segmento do CNAS autor da proposta e o nmero de votantes, com mdia, 14/02/200714/08/2008 ...... 136
Tabela 15 - Frequncia absoluta dos eventos de votao realizados, segundo o segmento do CNAS autor da proposta, o tipo do ato resultante, o resultado da votao e a proporo dos votos, 14/02/200714/08/2008 ........................................................................................... 137
Tabela 16 - Frequncia absoluta dos eventos de votao realizados, segundo o segmento autor da proposta e a quantidade de abstenes, com mdia e proporo de abstenes por votantes, 14/02/200714/08/2008 ..................................................................................................... 137
Tabela 17 - Frequncia absoluta dos eventos de votao realizados, segundo o tipo de ato resultante, por resultado, com mdia do nmero de votantes e de abstenes e proporo de abstenes por votantes, 14/02/200714/08/2008 ............................................................... 139
Tabela 18 - Percentual de convergncia de votos, por segmento do CNAS, 14/02/200714/08/2008 ......................................................................................................................... 141
SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................................. 13
1 DEMOCRACIA E CONSELHISMO ......................................................................................... 33
1.1 CONSELHOS E TEORIAS DEMOCRTICAS .................................................................................. 33
1.2 PARADIGMAS CONCEITUAIS SOBRE DEMOCRACIA ................................................................... 36
1.2.1 DEMOCRACIA E LIBERALISMO .................................................................................................. 36
1.2.2 DEMOCRACIA E MARXISMO ..................................................................................................... 40
1.3 CONSELHISMO .......................................................................................................................... 55
2 CONSELHOS NO BRASIL........................................................................................................ 66
2.1 PROVINCIALISMO: OS CONSELHOS DO BRASIL IMPRIO .......................................................... 66
2.2 AUTORITARISMO INSTRUMENTAL: OS CONSELHOS DA PRIMEIRA REPBLICA ....................... 69
2.3 AUTONOMIA E AUTORITARISMO: OS CONSELHOS DE 1946 A 1988 ........................................... 75
2.4 REPLICAO E CONTROLE SOCIAL: OS CONSELHOS DA CONSTITUIO DE 1988 AT HOJE ... 82
2.5 O CONSELHO NACIONAL DE ASSISTNCIA SOCIAL .................................................................. 93
3 O PROCESSO DECISRIO EM CONSELHOS .................................................................... 107
3.1 DESCRIO DA PESQUISA........................................................................................................ 107 3.1.1 OBJETIVO E HIPTESE ............................................................................................................ 109
3.1.2 CONCEITOS E MTODOS ......................................................................................................... 110
3.1.3 FONTES DE PESQUISA ............................................................................................................. 114
3.1.4 UNIVERSO DE ANLISE E CATEGORIAS ................................................................................... 116
3.2 RESULTADOS DA PESQUISA ..................................................................................................... 119
3.2.1 CONDIES DE PARTICIPAO ............................................................................................... 119
3.2.2 RESULTADO DAS PROPOSTAS ................................................................................................. 125
3.2.3 ANLISE DA DELIBERAO .................................................................................................... 131
3.2.4 ANLISE DA DECISO ............................................................................................................ 135
CONCLUSES ............................................................................................................................ 147
REFERNCIAS ........................................................................................................................... 150
13
INTRODUO
Conselho um tema recorrente no cenrio brasileiro. O aumento do nmero de
teses e dissertaes que tratam desse tema, assim como a multiplicao de grupos de
pesquisa que vm abordando esse assunto ao longo dos anos, demonstra um forte e
crescente interesse por ele no mbito acadmico. Talvez o melhor indicador da
relevncia atual desse debate seja o nmero de conselhos, que se expandem tanto no
governo nacional quanto nos governos locais. uma realidade poltica, portanto, que se
impe por sua prpria escala.
A primeira questo que decorre dessa escolha temtica identificar o que se
entende por conselho. Num cenrio de expanso do discurso e da prtica sobre
conselhos, de se esperar o encontro com uma heterogeneidade conceitual. Uma
indicao dessas variaes ser exposta logo a seguir, como uma amostra do que se
discute sobre conselhos no Brasil. Essa pluralidade de vises refora a necessidade de
explicitar uma opo conceitual.
possvel adotar a definio paradigmtica dos conselhos gestores, de Maria da
Glria Gohn (2007a), ou a dos conselhos de polticas pblicas, de Luciana Tatagiba
(2002). H, ainda, a possibilidade de entender os conselhos como instituies hbridas
(AVRITZER; PEREIRA, 2005) ou como interfaces socioestatais (PIRES; VAZ, 2012),
para usar a atualssima categoria proposta pelo Ipea. Em resumo, h um cardpio de
alternativas conceituais, em relao s quais necessria uma opo mais explcita.
O caminho mais adequado para este trabalho, no entanto, no trabalhar com
nenhum desses recortes conceituais. Ou, melhor dizendo, a opo adotar um conceito
que seja amplo o suficiente para dialogar com todos eles, sem excluir outras formas de
organizao colegiada que geralmente ficam margem da literatura especializada sobre
conselhos. Assim, com todos os riscos e limites prprios de uma abertura muito ampla,
a deciso procurar trabalhar com um conceito mais elstico de conselhos.
Por isso a palavra conselhos utilizada ao longo deste trabalho com pouca ou
nenhuma adjetivao. Isso significa, a princpio, um termo sinnimo de rgo
colegiado, seja ele qual for. Seria um espao de discusso, uma plenria, no qual os
indivduos se encontram e produzem afirmaes como um grupo. Por metonmia, o
termo conselho passa a ser empregado como um designativo do prprio grupo que se
rene in consilium.
14
A qualificao como rgo colegiado necessria, mas no suficiente para
explicar o que se entende por conselhos, por isso preciso fazer outros recortes
conceituais. O primeiro deles o reconhecimento dos conselhos aqueles que sero
tratados neste trabalho como rgos pblicos. A presena de representantes da
sociedade civil, paritria ou majoritariamente, e sua autonomia ou sua liberdade de
manifestao no afastam o fato de que essas instncias foram criadas pelo Estado, so
por ele mantidas e podem ser por ele extintas a qualquer tempo (respeitada a hierarquia
do ato de criao). o poder, quase soberano, de decidir sobre a prpria existncia do
conselho que fora a constatao de que se trata de um rgo pblico estatal, do qual a
sociedade pode fazer parte, mas no destacar da mquina pblica.
Com isso, ficam de fora algumas manifestaes especificamente autnomas e
autogeridas pela sociedade, como os conselhos populares propriamente ditos e as
formas colegiadas integrantes de sindicatos e associaes. Isso representa uma reduo
do conjunto de fenmenos abrangidos pelo termo, mas no implica perda significativa
de poder explicativo, dado que essas manifestaes da sociedade no exerccio da sua
autonomia no constituem o foco deste trabalho no mximo um elemento de
referncia ou inspirao, como o caso dos conselhos operrios citados no captulo 1.
Um segundo elemento que se prope como integrante do conceito de conselhos
o compartilhamento decisrio. Assim, s se justificaria a criao de um rgo
colegiado estatal se a ele fosse conferida a prerrogativa de incidir de alguma forma,
ainda que mnima, nas decises governamentais. Isso pode ser feito por meio da
emisso coletiva de uma opinio (nos chamados conselhos consultivos), de um
parecer especializado (nos conselhos tcnicos) ou mesmo da deciso em si (nos
conselhos diretores). Mesmo que no seja vinculante, mesmo que no seja a ltima
palavra sobre o assunto, a manifestao do conselho passa a fazer parte, em algum
momento, de um processo que vai levar a uma deciso governamental. Adotado esse
critrio, no so considerados conselhos aqueles rgos colegiados que funcionam
como mera plateia ou auditrio para a exposio de temas que no esto abertos a
discusso.
O critrio do compartilhamento decisrio no simples de ser aplicado. uma
caracterstica dificilmente perceptvel e no depende do que est expresso nos atos de
constituio do colegiado. Exige uma observao continuada do comportamento dos
seus membros, a fim de verificar o quanto eles interferem nos temas postos em pauta. A
dificuldade desencoraja a adoo do critrio, mas no a torna impossvel. Isso ser mais
15
bem discutido no captulo 3, que se constitui como uma alternativa de resposta a essas
preocupaes prticas.
Por fim, oportuno acrescentar um terceiro recorte conceitual, a abertura
participao externa, que no passa de uma decorrncia do segundo. Se h a expectativa
de compartilhamento decisrio por meio do conselho, importante questionar com
quem se deve dar esse compartilhamento. incua uma instncia colegiada formada
apenas por pessoas que j fazem parte do rgo deliberativo, ou seja, que j
participariam do processo decisrio de alguma forma. Fica desejvel certa abertura
participao de elementos externos ao caminho tradicional da deciso. O grau de
abertura ou de externalidade desses elementos depende de qual parmetro de
coletividade se adota para o compartilhamento decisrio.
Para quem mantm o foco na intersetorialidade entre as diversas reas de
atuao governamental, a participao de outros rgos governamentais no colegiado
pode ser considerada uma abertura suficiente. Para quem enfatiza o pacto federativo, a
abertura deve envolver a representao de rgos federais, estaduais e municipais. Para
quem discute territorialidade, adequada a participao de membros provenientes de
diferentes bases territoriais. Em resumo, o critrio do compartilhamento decisrio exige
a definio dos grupos com os quais essa deciso compartilhada, o que, por sua vez,
atrai uma discusso sobre critrios de representatividade nos conselhos.
Neste trabalho, o enfoque a relao entre Estado e sociedade, com a anlise de
como o equilbrio entre ambos envolveu, ao longo do tempo, formas administrativas que
concentravam mais ou menos o poder de deciso no polo governamental. Por essa
nfase, o critrio da abertura seria traduzido no reconhecimento da necessidade de
compartilhamento das decises com a sociedade civil, o que se materializa pela
presena de representantes no governamentais nos colegiados.
Vrios outros atributos podem ser derivados desses trs recortes natureza
estatal, compartilhamento decisrio e abertura ao externo , mas mais oportuno que a
proposta conceitual se encerre neles para evitar um estreitamento conceitual excessivo.
Firmado esse pacto, que garante uma posio conceitual para a qual retornar aps a
jornada, possvel traar um breve retrato da literatura brasileira sobre conselhos, a fim
de dialogar com essa pluralidade de concepes.
***
16
O conhecimento produzido no Brasil sobre conselhos variado, mas guarda
alguns elementos comuns. possvel perceber tendncias e linhas tericas que unem ou
afastam os autores e os conceitos defendidos por eles. Para efeito de anlise, a opo
feita aqui por agrupar os autores em dois grandes blocos histricos, em que a
Constituio Federal de 1988 o divisor de guas. O primeiro grupo, rotulado de
eutpico, envolve aqueles que escreveram desde o Perodo Imperial at a promulgao
da nova Carta Constitucional.
A forma de organizao dos conselhos do Brasil Imprio foi objeto de estudo de
autores da poca, entre os quais merece destaque a obra Estudos prticos sobre a
administrao das provncias no Brasil, de Paulino Jos de Souza, o Visconde do
Uruguay. O Visconde do Uruguay dedicou-se anlise da relao entre governantes e
governados no mbito local, sob o ponto de vista do administrador provincial. Ele
acompanhou as dvidas interpretativas suscitadas aps a edio do Ato Adicional de
1834, como aquelas que tratavam da extenso dos poderes das Assembleias
Legislativas, se legislativas ou deliberantes, em relao aos Conselhos Geraes (SOUZA,
1865). Defensor da participao do cidado nos negcios pblicos, por vezes
manifestou-se criticamente em defesa da existncia dos conselhos, como neste trecho,
em que questiona a extino dos Conselhos de Presidncia nas provncias: Tinha grandes defeitos a organisao de taes Conselhos, que podio com o tempo ser melhorados.
Era grande a falta de cidados habilitados para taes Conselhos, muito maior do que hoje, decorridos mais de 40 annos. Acabava o Brasil de ser uma colonia portugueza, sujeita a um Governo absoluto.
Adoptado o acto addicional, fixou a lei, que o seguio, de 3 de Outubro de 1834 attribuies dos Presidentes de Provincia, e extinguio os Conselhos de Presidencia.
Porque foro (como o Conselho de Estado) extinctos em 1834, no tempo do grande liberalismo, os Conselhos de Presidencia? Porque em varias Provincias no havia numero sufficiente de homens habilitados para exercer o officio de Conselheiros? Mas no acabava de ser creado em todas as Provincias numero de legisladores provinciaes muito superior ao dos Conselheiros? Numero pequeno de Conselheiros trocado, em grande de Legisladores.
Seria porque a instituio dos Conselheiros de Presidencia era defeituosa? Era-a sem duvida, como era a do antigo Conselho de Estado, mas no era muito possivel melhorar uma instituio que era de 1823? (SOUZA, 1865, p. v)
O autor demonstra, portanto, uma preocupao com a manuteno desses
espaos colegiados, assim como com o seu aprimoramento. Essa defesa, contudo, no
lhe retira a viso crtica necessria para perceber as insuficincias dessas instncias e os
17
problemas que podem surgir delas. Exemplo disso a anlise que faz das fragilidades
organizacionais daquele mesmo Conselho de Estado e das consequncias dessas falhas
para as decises do prprio colegiado: O caso e a soluo que deu a Seco pde sim ficar registrado na memoria dos Conselheiros que ento a compunho, mas alm de que este registro, que o tempo pde apagar, nem sempre fiel, muda o pessoal das Seces frequentemente. Os Ministros igualmente. O Conselho de Estado no tem uma Secretaria, no tem um Presidente para o servio ordinrio, no tem um centro para o seu trabalho, e harmonia das suas decises.
Apparece hoje uma questo. solvida por um modo. Passados tempos apparece a mesma. Frequentemente examinada como se pela primeira vez apparecesse (SOUZA, 1865, p. xlviii).
Em suma, Visconde do Uruguay, que pode ser considerado um dos pioneiros da
anlise dos conselhos, trata do tema sob a tica do administrador provincial, procurando
fornecer respostas prticas s questes recorrentes de quem milita nessa rea. Sua obra
bastante referenciada na legislao, com uma dedicao especial anlise de casos,
principalmente os questionamentos sobre a administrao local submetidos
Assembleia Geral ou ao Conselho de Estado. Dentro desse contexto, ele figura como
um defensor da instituio e manuteno dos conselhos, ressaltando sua importncia
para a vida poltica provincial, sem deixar de lado uma chamada crtica ao seu
aperfeioamento. Nesse sentido, destaca desafios mais que atuais, como o
monitoramento da efetividade das decises consiliares, a relao com o poder pblico, o
papel do conselheiro e as condies materiais e organizacionais de funcionamento do
colegiado.
Os conselhos no Estado Novo foram analisados por Francisco Jos de Oliveira
Viana, consultor da Justia do Trabalho. Para ele, os conselhos de reas especficas, de
inspirao europeia (1974), representam o reconhecimento da necessidade de
especializao na administrao pblica e um intuito de democratizao. Segundo
Oliveira Viana (1974, p. 71), a atividade consultiva destes Conselhos prende-se assim
muito intimamente, diramos mesmo muito democraticamente, s correntes, impulses e
inspiraes vindas das classes populares e dos centros mais representativos da nossa
organizao econmica. A defesa dos conselhos em Oliveira Viana est fundamentada
em algumas premissas que carecem de uma anlise mais apurada. A primeira o
elitismo e a incapacidade do povo-massa para a participao poltica: Nossa vida administrativa e nossa atividade idealista e poltica nas suas expresses mais altas uma pura criao pessoal e exclusiva de alguns homens, independentemente de qualquer sugesto vinda do povo. O que se tem feito de grande neste sentido sempre o produto de individualidades
18
marcantes e superiores e no de estrutura culturolgica de massa, da capacidade poltica da populao em geral (OLIVEIRA VIANA, 1999, p. 322-323, grifos do original).
A segunda, de inspirao positivista, a necessidade de uma tcnica objetiva
para o processo de tomada de deciso governamental. Os conselhos seriam esses
elementos de fundamentao tcnica da deciso poltica, na medida em que a
especializao permite a atuao estatal obedecendo s leis da cincia social; do
contrrio o fracasso certo (OLIVEIRA VIANA, 1999, p. 439, grifo do original).
Por fim, outro pressuposto que merece ser considerado a crena na democracia
por meio das representaes de classe, considerando que nestas organizaes
profissionais que eles, sejam legisladores ou administradores, encontram as fontes de
informaes mais seguras dos interesses coletivos (OLIVEIRA VIANA, 1974, p. 116).
Esse conjunto de valores resulta na sua concepo de democracia e participao pelos
conselhos: O princpio caracterstico do governo democrtico consiste em dar totalidade dos cidados uma parte igual na direo dos negcios pblicos diz Duguit. Ora, se assim , o melhor caminho para realizarmos a democracia no lutarmos, at com as armas na mo, para eleger deputados ao Parlamento; mas desenvolver os Conselhos Tcnicos e as organizaes de classe, aumentar a sua importncia, intensificar as suas funes consultivas e pr-legislativas, generalizar e sistematizar a praxe da sua consulta da parte dos poderes pblicos. este o verdadeiro caminho da democracia do Brasil (OLIVEIRA VIANA, 1974, p. 77, grifo do original).
Wanderley Guilherme dos Santos quem vai fazer a leitura das ideias de
Oliveira Viana como um expoente do autoritarismo instrumental brasileiro, ou seja, da
crena de que possvel um Estado forte, tolerando um sistema poltico autoritrio
transitrio, com o objetivo de desenvolver uma cultura e uma prtica democrticas em
uma sociedade que naturalmente no as reconhece ou seja, uma sociedade onde o
exerccio autoritrio do poder a maneira mais rpida de se conseguir edificar uma
sociedade liberal, aps o que o carter autoritrio do Estado pode ser questionado e
abolido (SANTOS, 1978). A leitura de Werneck Vianna, por sua vez, vai no sentido de
reconhecer na obra de Oliveira Viana uma busca por solues singulares para problemas
singulares. A proposta liberal no seria adequada realidade brasileira por conta da
incapacidade do povo-massa para o exerccio da democracia, o que requer inovaes
institucionais como os conselhos capazes de lidar com essa realidade e alter-la: Porque predomina no povo-massa uma orientao individualista e uma situao de atomizao diagnstico do atraso , deve-se procurar uma
19
nova matriz de direito pblico a ordenao corporativa moderna que salte o liberalismo e estabelea supostos e instituies superiores. [...] No chegaremos ao moderno como aprendizes do liberalismo, mas como inventores de uma nova ordem social (WERNECK VIANNA, 1991, p. 177-178).
Esses primeiros autores carregam consigo uma referncia de democracia mais
prxima da proposta liberal do que marxista (ainda que seja para propor uma alternativa
ao liberalismo europeu, como no caso de Oliveira Viana). Profundamente influenciadas
pelo contexto poltico de suas pocas, suas vises sobre os conselhos partem da
perspectiva estatal e de um projeto de nao em construo. Os conselhos seriam
mecanismos do Estado para a integrao de segmentos da sociedade (as lideranas
provinciais, no caso do Visconde de Uruguay, e as representaes de classes, no caso de
Oliveira Viana) ao debate governamental, a fim de tornar melhores as suas decises.
Alm do aspecto do autoritarismo instrumental, que j foi destacado, h, portanto, a
defesa dos conselhos como elementos de qualificao da deciso estatal. Em ambos os
casos, os autores escrevem do ponto de vista de administradores pblicos, ou de quem j
exerceu essas atividades. Tambm em ambos os casos, defendem a criao ou
permanncia dos conselhos em uma estrutura estatal que passa por transformaes
profundas. a voz da prtica, especificamente direcionada queles que promoviam
essas mudanas organizacionais, levantada em defesa dos conselhos como um mtodo
adequado de tomada de deciso.
A proposta marxista de democracia e de conselhismo alcana maior
reconhecimento no Brasil na segunda metade do sculo XX e tem sua voz amplificada
nos movimentos de contestao ditadura militar e de redemocratizao do pas.
Diversos autores escrevem sobre a democracia e a participao social, trazendo consigo
o tema dos conselhos.
Um dos exemplos mais notveis o de Florestan Fernandes. Para o autor,
necessria uma democracia de participao ampliada, na qual, por ironia da histria,
as classes trabalhadoras e no as classes burguesas iro conduzir a dinamizao e a
consolidao da democracia burguesa (FERNANDES, 1980, p. 66-67). No mbito de
uma sociedade de classes, a democracia pode ser defendida por vrios grupos
significando coisas distintas e contraditrias (FERNANDES, 1986, p.50-59), por isso
ele argumenta em favor de uma revoluo democrtica policlassista, ao mesmo tempo
burguesa e proletria. Florestan Fernandes faz parte de um grupo de intelectuais que
herda e reescreve as premissas marxistas da luta de classes, em um contexto brasileiro.
20
Sem se restringir a uma linearidade histrica de hegemonia burguesa sucedida por uma
revoluo do proletariado, o Brasil reuniria condies para fazer uma transformao
democrtica pela composio de foras entre os diversos segmentos da sociedade.
Sob essas premissas, Florestan Fernandes considera importante a organizao
dos conselhos, mas numa natureza autnoma em relao ao Estado a figura do
conselho popular. Para o autor, cabe ao conselho popular uma atividade permanente e
paralela na elaborao de diretrizes, aes e decises dotadas de legitimidade prpria
consagrada pelo direito objetivo da vox populi (FERNANDES, 1990, p. 133). Aqui
suas ideias refletem o contexto da poca de afirmao da autonomia dos movimentos
sociais em relao ao Estado e da possibilidade de atuao paralela entre ambos. As
formas de organizao popular, entre as quais os conselhos, seriam espaos de
articulao e formao poltica em que as questes seriam apresentadas, debatidas e
solucionadas pela prpria comunidade.
Essa concepo se aproxima da proposta de conselhos operrios defendida na
Alemanha do incio do sculo XX, tratados no captulo 1. Os conselhos populares
seriam formas auto-organizadas da sociedade que se afirmariam perante o Estado como
instrumento de transformao das relaes. Diferentemente das perspectivas at ento
adotadas no Brasil, os conselhos seriam, mais do que rgos da administrao pblica,
espaos de vocalizao popular. Um exemplo prximo da vox populi citada por
Florestan Fernandes foram os conselhos comunitrios de sade.
Outro autor de inspirao marxista a tratar dos conselhos no contexto brasileiro
foi Carlos Nelson Coutinho. Estudioso profundo das ideias de Antonio Gramsci,
Coutinho (2007) traz essa referncia terica para o Brasil em um contexto em que as
discusses marxistas so dominadas pelos manuais stalinistas e faz uma leitura que
reafirma a atualidade do seu pensamento. o caso de sua anlise sobre a concepo
gramsciana de vontade humana coletiva, considerada como a fora impulsionadora da
histria (COUTINHO, 1981). Permanecendo atual, essa discusso era ainda mais
significativa no contexto de fim da ditadura militar, no incio da dcada de 1980.
Um dos textos mais clebres de Carlos Nelson Coutinho foi publicado em 1979
com o ttulo A democracia como valor universal.1 Nele, o autor analisa as tenses e
1 Em uma entrevista revista Caros Amigos em 2009, o baiano de Itabuna (falecido recentemente, em setembro de 2012) afirma que no cientista poltico (Eu sou professor da escola de Servio Social) e comenta suas intenes ao escrever o artigo: Meu texto, Democracia como valor universal, no um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vnculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a ditadura que ainda existia e contra uma viso marxista-
21
contradies entre marxismo e democracia, para afirmar que no h incompatibilidades,
mas uma relao dialtica, na qual a relao da democracia socialista com a
democracia liberal uma relao de superao dialtica (Aufhebung): a primeira
elimina, conserva e eleva a nvel superior as conquistas da segunda (COUTINHO,
1979, p. 40, grifos meus). No mesmo texto, o autor trata dos organismos populares de
democracia direta, entre os quais os conselhos, como uma necessidade para a
superao da alienao poltica e do isolamento do Estado, mas mantendo uma
integrao (citando a preocupao de Max Adler) com os mecanismos tradicionais de
representao indireta, como partidos e parlamentos, para evitar converter a
democracia consiliar (dos conselhos operrios de base) numa representao puramente
corporativista, incapaz de operar como ponto de partida para uma direo hegemnica
unitria do conjunto da sociedade (COUTINHO, 1979, p. 38; 1980, p. 28).2
A crtica ao regime militar brasileiro e via prussiana como foi conduzida a
relao entre Estado e sociedade ao longo da histria do Brasil permeia todo o texto,
assim como uma reflexo sobre as prticas autoritrias naquilo que chamou golpismo
de esquerda. Sua exortao, portanto, em favor de uma democracia organizada de
massas, pautada pela participao social: Multiplicaram-se, sobretudo nos ltimos tempos, organismos de democracia direta, sujeitos polticos coletivos (comisses de empresa, associaes de moradores, comunidades religiosas de base, etc.) [...]. Isso abre a possibilidade concreta de intensificar a luta pelo aprofundamento da democracia poltica no sentido de uma democracia organizada de massas, que desloque cada vez mais para baixo o eixo das grandes decises hoje tomadas pelo alto (COUTINHO, 1979, p. 44).
Em comum, ambos os autores defendem uma proposta de conselhos de natureza
mais popular do que estatal. Os conselhos populares de Florestan Fernandes constituem
sua prpria fonte de legitimidade, com base no vox populi e na soberania popular.
Seriam espaos de decises apresentadas da sociedade para o governo e no o contrrio.
J os organismos de democracia direta de Carlos Nelson Coutinho seriam sujeitos
leninista, o pseudnimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Mais adiante, confessa que faria alteraes no ttulo: Uma alterao que eu faria no velho artigo era colocar no democracia como valor universal, mas democratizao como valor universal. Para mim a democracia um processo [...]. Ento, eu diria que sem democracia no h socialismo, e sem socialismo no h democracia. Acho que as duas coisas devem ser sublinhadas com igual nfase (SOUZA; SALLES; POMPEU, 2009). 2 Com base no texto de Coutinho (1979, p. 38) utilizada neste trabalho a expresso consiliar como adjetivo genrico referente a conselho. A forma conselhista, comumente utilizada na literatura contempornea com o mesmo significado, ser reservada aqui para um sentido mais especfico, referente a uma proposta de organizao poltica baseada em conselhos, ou a um conselhismo propriamente dito, como ser especificado nos captulos 1 e 2 adiante.
22
polticos coletivos de base, a disputar uma guerra de posio. O grande bloco
democrtico e popular assim formado seria um instrumento de presso, inclusive sobre
parlamentos, para a renovao democrtica de baixo para cima.
Essas posies representam o reconhecimento das doutrinas marxistas de ao
coletiva e de ocupao da arena poltica pelos elementos sociais, das quais os conselhos
podem ser um instrumento. No se trata de uma apropriao homognea e automtica
dos preceitos socialistas, contudo. Florestan Fernandes, por exemplo, apresenta, por
meio da ideia de democracia de participao ampliada, uma proposta de conciliao de
segmentos sociais que no inteiramente pautada pelo paradigma da luta de classes.
Carlos Nelson Coutinho, por sua vez, alm de reconhecer os mritos da democracia
liberal, prope uma composio com as formas tradicionais de democracia
representativa para alcanar a transformao do Estado brasileiro. Desse modo, assim
como os autores anteriormente citados interpretavam os preceitos liberais sua maneira,
essas leituras fazem uma adaptao crtica das ideias socialistas ao contexto brasileiro,
tambm de uma maneira prpria.
Outro ponto de destaque que nessas propostas no h o protagonismo estatal da
instituio desses espaos, mas uma mobilizao social tornada coletiva por meio da
organizao em conselhos. A tutela estatal para a democratizao da nao no mais
vista como necessria, uma vez que a prpria sociedade passa a ser reconhecida como
titular de legitimidade (no caso de Florestan Fernandes) e poder de presso (no caso de
Carlos Nelson Coutinho) para fazer valer suas opinies. Nesse sentido, muito
significativo observar como os discursos sobre democracia e conselhos passam a ser
proferidos por quem est fora dos cargos pblicos, mas envolvido com os movimentos
sociais. Gradativamente, o lugar de fala da literatura sobre conselhos migra das
reparties pblicas para as universidades.
Esses quatro autores Visconde de Uruguay, Oliveira Viana, Florestan
Fernandes e Carlos Nelson Coutinho tm em comum a defesa dos conselhos como
um instrumento adequado, uma boa prtica, um lugar bom, uma eutopia. Sua convico
no baseada em elementos ideais ou inexistentes (por isso no so utpicos), mas em
experincias concretas de organizao coletiva que eles acreditam ser adequadas ao
contexto brasileiro. Isso envolve experincias tanto vividas (como os conselhos do
Brasil Imprio, para o Visconde de Uruguay) quanto mais remotas (os conselhos
tcnicos da Europa, para Oliveira Viana, e os conselhos operrios, para Florestan
Fernandes e Carlos Nelson Coutinho), mas sempre experincias concretas.
23
Por essas razes, a lgica eutpica uma lgica de defesa de uma experincia
que j foi valorizada como positiva. muito interessante perceber como, mesmo
quando externo, o referencial passa por um processo de adaptao e traduo em
termos do contexto social e poltico brasileiro. Liberais ou marxistas, nenhum deles
prega a importao automtica de modelos estrangeiros.
Isso refora a impresso de que os conselhos so realmente uma experincia
tipicamente brasileira. No so o resultado de uma importao ou imposio de modelos
aliengenas, mas da composio de foras polticas e sociais do nosso pas ao longo do
tempo. A forma como se manifestou essa brasilidade dos nossos conselhos ser exposta
com mais detalhes no captulo 2.
Em relao aos autores eutpicos, resta considerar que o seu discurso de defesa
dos conselhos traz em si os elementos que permitem identificar de maneira bastante
ntida os seus destinatrios. Para o Visconde de Uruguay e Oliveira Viana, a natureza
estatal dos conselhos um elemento forte na sua conceituao, por isso quem detm o
poder de criar ou extinguir os conselhos propostos pelos autores o Estado, que se
identifica como o destinatrio implcito de suas apologias. Isso reforado se
considerado que, no perodo em que escreveram o Primeiro Imprio e o Estado Novo
, havia uma forte centralizao decisria no mbito governamental e pouco
reconhecimento da capacidade de mobilizao da sociedade.
Para o discurso eutpico de Florestan Fernandes e Carlos Nelson Coutinho, o
interlocutor implcito no o Estado, mas a sociedade. O tipo de conselho que eles
defendem no tem natureza estatal necessariamente e depende da mobilizao e
organizao da sociedade para sua criao. O Estado autoritrio da ditadura militar no
reconhecido por eles como um interlocutor adequado, por isso suas propostas
eutpicas pouco consideram a possibilidade de conselhos governamentais.
Com o fim da ditadura militar e a institucionalizao de diversos conselhos no
mbito da administrao pblica, proliferaram os estudos sobre o tema. Os autores a
partir desse perodo, embora pertencentes a tendncias muito variadas, guardam em
comum a caracterstica de enfatizar o modo de atuao dos conselhos. As instncias
colegiadas j so uma realidade ampla e difundida, cuja existncia no precisa tanto ser
defendida quanto compreendida. A esses autores, aqui chamados de sintpicos, fica o
desafio de prescrever modelos, princpios e parmetros comuns para o aperfeioamento
dos conselhos j existentes.
24
Nesse perodo ganhou fora no Brasil, alm das correntes j mencionadas, uma
linha de anlise dos conselhos sob a tica da democracia deliberativa. Com fundamento
na teoria de Jurgen Habermas (1984, 1994, 1997), essa viso entende os conselhos
como espaos de ampliao da esfera pblica e contribui para fortalecer os critrios da
deliberao como categorias de anlise na literatura brasileira. A noo habermasiana de
sociedade civil influenciou autores como a feminista inglesa Carole Pateman (1992), o
crtico do liberalismo Crawford MacPherson (1998) e os crticos do marxismo Joan
Cohen e Andrew Arato (1992), cujas obras tambm passaram a ser referncia nos
estudos sobre deliberao e participao.
Maria da Glria Gohn uma das autoras que se voltam para a anlise das
relaes entre Estado e sociedade brasileira aps a abertura poltica. Sua nfase na
organizao autnoma da sociedade, por meio do que conceitua como movimentos
sociais: aes sociais coletivas de carter sociopoltico e cultural que viabilizam
distintas formas da populao se organizar e expressar suas demandas (GOHN, 2007b,
p. 13). So, nessa linha, atores sociais que fazem uso de estratgias diferenciadas de
ao para defender suas propostas e que encontram no Estado um interlocutor frequente,
mas no se confundem com ele.
Na obra Conselhos gestores e participao sociopoltica, que ajudou a fortalecer
conselhos gestores como uma categoria de anlise e hoje referncia sobre o tema,
Maria da Glria Gohn discute a realidade dos conselhos no Brasil. Inicialmente,
diferencia os conselhos de acordo com a sua origem: Basicamente, podemos diferenciar trs tipos de conselho no cenrio brasileiro do sculo XX, no perodo considerado: os criados pelo prprio poder pblico Executivo, para mediar suas relaes com os movimentos e com as organizaes populares; os populares, construdos pelos movimentos populares ou setores organizados da sociedade civil em suas relaes de negociao com o poder pblico; e os institucionalizados, com possibilidade de participar da gesto dos negcios pblicos criados por leis originrias do poder Legislativo, surgidos aps presses e demandas da sociedade civil (GOHN, 2007a, p. 70).
Essa categorizao inicial, ainda com alguns sombreamentos, ajuda a confirmar
que a prtica brasileira comporta tipos diferentes de conselhos, orientados para
propsitos igualmente distintos. A diferenciao mais importante talvez seja entre os
conselhos de origem popular (o segundo tipo) e aqueles criados pelo poder pblico (os
dois demais). Na viso da autora, a organizao e a presso dos movimentos sociais
exercem um papel fundamental na formao de espaos democrticos, no apenas
25
quando organizam diretamente esses espaos de forma autnoma, mas tambm quando
influenciam o governo a admitir a necessidade de dilogo com esses segmentos e criam
estruturas que reconhecem sua participao na deciso estatal. Mais adiante, a autora
apresenta algumas das caractersticas dos conselhos gestores (uma subespcie daquele
terceiro tipo): De fato, os conselhos gestores foram a grande novidade nas polticas pblicas ao longo dos anos. Com carter interinstitucional, eles tm o papel de instrumento mediador na relao sociedade/Estado e esto inscritos na Constituio de 1988, e em outras leis de pas, na qualidade de instrumentos de expresso, representao e participao da populao. [...] Os conselhos gestores so importantes porque so frutos de lutas e demandas populares e de presses da sociedade civil pela redemocratizao do pas. [...] As novas estruturas inserem-se na esfera pblica e, por fora de lei, integram-se na esfera pblica vinculados ao poder Executivo, voltados para polticas pblicas especficas, responsveis pela assessoria e suporte ao funcionamento das reas onde atuam. Eles so compostos, portanto, por representantes do poder pblico e da sociedade civil organizada (GOHN, 2007a, p. 84-85).
A lista de conselhos apresentada por Gohn baseada no trabalho A nova
institucionalidade do sistema brasileiro de polticas sociais: os conselhos nacionais de
polticas setoriais, de Sonia Draibe, publicado em 1998. Nesse estudo, a autora destaca
os conselhos das polticas sociais e, mesmo reconhecendo que no so um fato novo na
institucionalidade brasileira, defende como novidade sua presena sistemtica e o papel
constitutivo que passaram a exercer (DRAIBE, 1998). Tambm prope alguns critrios
de anlise quanto composio, representao, natureza e articulao com um sistema
nacional de conselhos e termina por apresentar a lista citada por Gohn.
Duas outras autoras que seguem a anlise dos chamados conselhos gestores so
Luciana Tatagiba e Evelina Dagnino. A situao atual dos conselhos no Brasil
analisada por Tatagiba em diversos textos, entre os quais Os conselhos gestores e a
democratizao das polticas pblicas no Brasil. Nele, a autora indica dificuldades
relacionadas dinmica de funcionamento dos conselhos, o que sugere uma
participao mais reativa que propositiva (TATAGIBA, 2002).
Tambm Evelina Dagnino compartilha de algumas preocupaes com o
funcionamento dos conselhos gestores, situando sua anlise em um contexto de
construo da democracia no Brasil e na Amrica Latina. A autora atribui tenses e
dificuldades no funcionamento dos conselhos a uma confluncia perversa entre os dois
projetos polticos hoje existentes no Brasil: A, a perversidade e o dilema que ela coloca, instaurando uma tenso que atravessa hoje a dinmica do avano democrtico no Brasil. Por um lado, a constituio dos espaos pblicos representa o saldo positivo das dcadas de
26
luta pela democratizao, expresso especialmente mas no s pela Constituio de 1988, que foi fundamental na implementao destes espaos de participao da sociedade civil na gesto da sociedade. Por outro lado, o processo de encolhimento do Estado e da progressiva transferncia de suas responsabilidades sociais para a sociedade civil, que tem caracterizado os ltimos anos, estaria conferindo uma dimenso perversa a essas jovens experincias, acentuada pela nebulosidade que cerca as diferentes intenes que orientam a participao (DAGNINO, 2004, p. 143).
A viso conceitual sobre conselhos expandida por Leonardo Avritzer e Maria
de Lourdes Dolabela Pereira (2005), que fazem uso da expresso instituies hbridas
para definir os novos formatos participativos, como os conselhos e oramentos
participativos. Com nfase no espao local, os rgos hbridos so definidos como uma
nova forma institucional que envolve a partilha de espaos de deliberao entre as
representaes estatais e as entidades da sociedade civil (AVRITZER; PEREIRA,
2005, p. 18). Os autores apontam que essas instituies provocam mudanas tanto na
natureza do Estado, que deixa de ser hierrquico e bipolar e se organiza em mltiplos
nveis institucionais e numa multipolaridade de centros de deciso, quanto nas aes
sociais e coletivas no que se refere ao protagonismo do indivduo e dos movimentos
sociais (AVRITZER; PEREIRA, 2005, p. 18-19). Trazem ainda, com base em
Tatagiba (2002), o conceito de conselhos de polticas: Constitui-se numa instncia intermediria de debate e deliberao que no significa a supresso das instncias formais (os Poderes Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judicirio representados por autoridades, funcionrios e tcnicos) e da atuao livre, autnoma e democrtica da sociedade civil (AVRITZER; PEREIRA, 2005, p. 24).
Alm dos esforos de compreenso dos conselhos em geral, dos quais os textos
aqui descritos so apenas alguns exemplos, o debate conceitual marcado pelas
contribuies referentes a reas especficas de atuao do Estado. Na rea de sade, por
exemplo, h diversos estudos que tratam dos conselhos, como caso das anlises
envolvendo descentralizao, movimentos sociais e participao promovidos por
Amlia Cohn (1994, 2003). Vrias autoras tratam da questo dos conselhos na rea de
assistncia social, entre as quais importante citar os estudos sobre institucionalizao
da poltica de assistncia social de Aldaza Sposati (2004; 2007); sobre sua afirmao
como direito de Ivanete Boschetti (2003); sobre o controle democrtico da poltica
social de Elaine Rossetti Behring e Boschetti (2009); e sobre a representao da
sociedade civil de ngela Vieira Neves (2012). O trabalho de Raquel Raichelis Esfera
pblica e conselhos de assistncia social: caminhos da construo democrtica (1998)
27
trata dos conselhos de modo mais especfico e tornou-se uma referncia na rea de
assistncia social.
Outros interlocutores que voltam a ser reconhecidos no tema, alm dos
pesquisadores, so os pensadores envolvidos com a administrao pblica. Constituem
referncia hoje os estudos sobre interesse pblico e democracia de Tarso Genro (1995),
sobre participao e educao popular de Pedro de Carvalho Pontual (1994, 2008) e
sobre cogesto e partilha de poder de Celso Daniel (1994). Muito embora haja uma
explicitao maior do tema no discurso da esquerda brasileira, o assunto toca gestores e
lderes polticos de diversas linhas ideolgicas. Assim, com outra fundamentao sobre
democracia, h a discusso sobre controle da administrao e governabilidade de Luiz
Carlos Bresser Pereira (1998) e Nuria Cunill Grau (BRESSER-PEREIRA; GRAU,
1999), por exemplo.
O debate conceitual sobre conselhos passa, ento, a ser marcado pelo
reconhecimento intelectual de um conjunto de prticas que j se encontravam em
funcionamento. Essas prticas (conselhos, oramentos participativos, conferncias etc.),
consideradas participativas, formaram a base do conceito maior de participao social
ou democracia participativa, para representar a forma de interao entre Estado e
sociedade que se desenvolvia no Brasil e nos pases latinos que emergiam de regimes
ditatoriais. O texto de sntese mais reconhecido no Brasil sobre democracia participativa
provavelmente Para ampliar o cnone democrtico, de autoria de Boaventura de
Sousa Santos e Leonardo Avritzer. Na obra, os autores comparam as propostas liberais e
marxistas de democracia, bem como as suas formas hegemnicas e no hegemnicas,
para concluir que a participao um elemento comum dos movimentos ps-coloniais
dos pases da Amrica Latina, reivindicada pelos movimentos sociais pela
redemocratizao, que deu origem aos experimentalismos democrticos observados
posteriormente (SOUSA SANTOS; AVRITZER, 2003). Essas novas prticas
democrticas estariam relacionadas formao de uma nova gramtica (SOUSA
SANTOS, 2006) social e cultural, marcada pela inovao social e pela inovao
institucional.
O percurso da literatura brasileira sobre conselhos foi analisado recentemente
por Alexander Vaz (2011). O autor levanta uma srie de trabalhos que tratam dos
conselhos (vrios deles citados aqui) e tenta traar um panorama desses estudos segundo
seus focos de anlise. Considerando as pesquisas da dcada de 1990 at o presente, o
autor entende que,
28
nessas duas dcadas de investigao, os focos analticos cambiaram significativamente e a participao passou de varivel dummy para uma varivel carente de qualificao. A participao deixou de ser tratada em termos de ter ou no ter e em que quantidade, para ser tratada em termos de qualidade do seu processo, isto , o que a faz melhor ou pior (VAZ, 2011, p. 92).
No estudo, Alexander Vaz (2011) entende que a literatura brasileira sobre
conselhos est contida em dois momentos. No primeiro, chamado de laudatrio, os
estudos pretendiam estabelecer uma correlao entre trs variveis: participao direta,
que leva ao aprendizado democrtico, que por sua vez leva ao aprofundamento
democrtico. O segundo momento, a partir do final da dcada de 1990 at a atualidade,
seria caracterizado pelo enfoque na organizao e no modus operandi dos conselhos,
numa medio do sucesso em termos de eficincia. O autor conclui que a agenda de
pesquisa est voltada qualidade dos processos de participao, em especial por meio
da anlise da efetividade deliberativa, do desenho institucional e da representao e
representatividade.
Em um retrato contemporneo, no mbito acadmico tem destaque o trabalho da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), principalmente por meio do Projeto
Democracia Participativa (Prodep), sob a coordenao de Leonardo Avritzer. A UFMG
hoje a responsvel pela oferta dos cursos de especializao e aperfeioamento no
mbito do Programa de Formao de Conselheiros Nacionais, em parceria com a
Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica (SGPR).
Diversos institutos de pesquisa se voltam para a anlise dos conselhos em um
contexto nacional. Merece destaque o trabalho do Centro Brasileiro de Anlise e
Planejamento (Cebrap), que desenvolve projetos sobre governana democrtica
contempornea. De especial interesse para o debate conceitual, o Instituto de Estudos
Socioeconmicos (Inesc) e o Instituto de Estudos, Formao e Assessoria em Polticas
Sociais (Polis) conduzem atualmente pesquisas sobre a arquitetura da participao
social no Brasil (POLIS; INESC, 2011). Em estudo mais recente ligado a essa
iniciativa, Ana Cludia Teixeira, Clvis Henrique Leite de Souza e Paula Pompeu Fiuza
Lima (2012, p. 54) promoveram um extenso mapeamento e listagem dos conselhos
existentes, definidos como [...] espaos participativos, que podem ser tanto consultivos como deliberativos, em que prevista certa permanncia no tempo. So compostos por representantes do poder pblico e da sociedade civil, esta podendo ser dividida em diferentes segmentos. Os conselhos tm como finalidade incidir
29
nas polticas pblicas de determinado tema, sendo que suas atribuies variam nos diversos contextos.
Atualmente, o poder pblico tambm produtor de conhecimento sobre a
dinmica dos conselhos, em carter particular ou geral. No primeiro caso, os prprios
conselhos e os rgos gestores passam a escrever suas narrativas, promovendo uma
autoanlise em cada poltica setorial. Isso acontece, na assistncia social, pelos
Relatrios de Informaes das polticas sociais, pelos censos de conselhos e entidades e
pelas aes de formao, como o CapacitaSUAS. A rea de sade, entre outras
iniciativas, conta com as aes de educao popular e educao permanente, alm de
publicaes peridicas do prprio conselho, como o CNS em Revista. Foi tambm o
Conselho Nacional de Sade que promoveu em 2012, em parceria com a SGPR, o I
Colquio Interconselhos, com a presena de Boaventura de Sousa Santos.
No caso de produo de conhecimento em carter geral sobre conselhos, o rgo
do governo federal competente a SGPR. Alm de aes de disseminao de
informaes, como o I Seminrio Nacional de Participao Social, em 2011, o rgo foi
responsvel pelo desenho institucional de novas formas participativas, como o Frum
Interconselhos, em parceria com o Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto. A
SGPR edita algumas publicaes sobre conselhos, alm de manter parcerias nacionais e
internacionais de pesquisa na rea.
Nesse contexto de pesquisa sobre conselhos, a referncia mais destacada hoje no
Brasil o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea). Por meio da sua Diretoria
de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia (Diest), o Ipea
coordena uma rede de pesquisa sobre democracia participativa que envolve diversas
instituies estatais e no estatais, algumas das quais mencionadas anteriormente. O
projeto A efetividade das instituies participativas no Brasil, em parceria com a SGPR,
est em andamento, com o portal Participao em Foco j em funcionamento e diversas
pesquisas concludas. Entre elas, importante destacar Participao social como
mtodo de governo?, sobre interfaces socioestatais (PIRES; VAZ, 2012), e a srie
Conselhos nacionais: perfil e atuao dos conselheiros (IPEA, 2012a, 2012b). Com
base nas aes da SGPR, o Ipea (2010, p. 572-573) atualmente adota o seguinte
conceito de conselhos nacionais: A fim de se compreenderem as relaes entre Estado e sociedade mediadas por conselhos nacionais, adotaram-se trs critrios de seleo, os quais vm sendo utilizados pela Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica em suas sistematizaes e acompanhamento. A aplicao destes critrios gera uma amostra de instituies que inclui apenas:
30
- conselhos centrais em sua rea de polticas pblica excluem-se os conselhos auxiliares e complementares na execuo de polticas, como conselhos curadores ou conselhos gestores de fundos, ou de administrao de programas que compem polticas mais amplas, e os conselhos polticos;
- conselhos compostos significativamente pela sociedade civil, tanto numericamente quanto em seu processo de indicao e nomeao excluem-se conselhos em que o prprio governo define os representantes da sociedade civil, ou em que a representao desta seja muito reduzida; e
- conselhos criados por ato normativo de abrangncia ampla, isto , por decreto presidencial ou lei promulgada pelo Congresso excluem-se conselhos criados por portarias ministeriais e demais atos de abrangncia limitada.
O resultado, em relao ao trabalho do Ipea, no apenas uma grande
articulao com os pesquisadores, os rgos e as instituies envolvidos com o tema da
pesquisa em conselhos hoje no Brasil, mas tambm e principalmente a identificao dos
grandes pontos de convergncia entre esses estudos e, assim, as grandes lacunas na
produo de conhecimento. As pesquisas desenvolvidas pela Diest contribuem para uma
grande cartografia analtica da participao social no governo federal e, com isso,
tambm estimulam a pesquisa de base e algumas experimentaes metodolgicas
que fornecem importantes dados originrios de abrangncia nacional. Esse esforo
tambm acaba estimulando um novo vocabulrio de conceitos sobre a participao
social no Brasil.
Esse conjunto de atores, da Constituio Federal de 1988 at a atualidade, tem
em comum o fato de se deparar com os conselhos como uma realidade poltica j
constituda, heterognea e bastante difundida, em relao qual tentam propor
discursos, conceitos, relaes e formas que guardem certa uniformidade em relao ao
tpico, sintopias. No h necessariamente uma defesa dessas prticas como adequadas
(por isso no so eutpicos) nem como inteiramente inadequadas (por isso no so
distpicos). O que h um esforo de enfrentamento de uma heterogeneidade que se
lhes apresenta como cenrio a ser compreendido. Isso exige o desenvolvimento de
estruturas cognitivas que permitam lidar com essa diversidade e atuar sobre ela.
Por essas razes, a lgica sintpica uma lgica de busca ou promoo de
uniformidades em um cenrio fundamentalmente heterogneo. A conceituao a
primeira e mais bsica dessas uniformidades a serem discutidas. interessante perceber
a diversidade de conceitos empregados para representar os conselhos, mas tambm
como eles se relacionam, formando zonas de entendimento que se aproximam dessa
uniformidade. Isso no exclui os dissensos e as reas cinzentas (o Conselho de
31
Desenvolvimento Econmico e Social um conselho gestor?), mas permite a formao
de algumas sintopias sobre as quais se basear (o Conselho Nacional de Sade
certamente ).
Outra caracterstica peculiar do discurso sintpico que, em qualquer afirmao,
mesmo conceitual, h um elemento prescritivo. Assim, conceituar os conselhos acaba
sendo uma ao instrumental em direo ao objetivo de interferir sobre eles. Com isso,
formada uma nova camada de sintopias, representadas pelos parmetros mais
prescritivos sobre como deve ser um conselho, suas formas, suas relaes e sua atuao.
No h, portanto, uma defesa dos conselhos em si, mas de determinados modelos de
conselhos e, consequentemente, uma apologia queles que a se enquadram e uma
menor valorizao daqueles que so mais diatpicos.
O projeto sintpico no exclusivo de autores e pesquisadores sobre conselhos.
Alguns rgos pblicos sob os quais se estruturam sistemas de conselhos estabelecem
normas mais ou menos rgidas sobre como os colegiados subnacionais devem ser
constitudos. Essa uniformidade , at certo ponto, indispensvel para lidar com essa
diversidade, organiz-la ou simplesmente compreend-la. O ponto de equilbrio
reconhecer a necessidade de alguma previsibilidade (pelo menos conceitual), mas no
fazer disso um parmetro absoluto.
A pretenso deste trabalho partir de alguns parmetros conceituais e tericos,
como um fundamento inicial, mas no sentido da sua superao dialtica. Esses
parmetros correspondem aos pactos conceituais e ao contexto da produo intelectual
brasileira que foram apresentados nesta introduo, assim como ao corpo terico mais
geral que ser exposto no captulo 1. O elemento de contraste nessa relao dialtica
dado pelas manifestaes prticas de conselhos verificadas ao longo do tempo na
formao social brasileira, como discutido no captulo 2, o que traz um elemento de
heterogeneidade e distopia para colocar aqueles conceitos prova. Isso redunda na
anlise de conjuntura especfica realizada no captulo 3, como uma forma de
representao dessas diferenas em termos quantitativos.
Nem todo marco terico favorece essa trajetria da sintopia diatopia.
necessrio estar fundamentado em uma linha de pensamento que no apenas reconhea
a possibilidade da diferena, do conflito e da transformao, como tambm os considere
como elementos essenciais da realidade investigada e fornea algum acmulo
instrumental para lidar com eles de forma adequada. Por isso, foi feita a opo terica
pela perspectiva marxista, como ser mais bem apresentado no captulo 1.
32
Pelo mesmo motivo, necessria a adoo de formas metodolgicas
suficientemente versteis e adequadamente precisas. A versatilidade fundamental para
que possa ser aplicada a contextos com caractersticas muito diversas, em coerncia
com o conceito ampliado proposto no incio desta introduo. A preciso, por sua vez,
o elemento que proporciona comparabilidade entre os diferentes e permite a obteno de
concluses vlidas. Esse desafio foi enfrentado por meio da pesquisa emprica
quantitativa que se apresenta como anlise de conjuntura no captulo 3.
Esse um tema que no se esgota com esta abordagem, mas constitui uma
importante alternativa de mirada, neste especfico momento histrico da pesquisa sobre
conselhos no Brasil.
33
1 DEMOCRACIA E CONSELHISMO
Este captulo examina algumas perspectivas tericas mais especficas. A
primeira sobre a democracia segundo a viso marxista (e marxiana), com base nos
escritos de Karl Marx e Friedrich Engels. A segunda sobre a noo de conselhismo,
adotando como referncia principal os trabalhos de Rosa Luxemburgo. Em ambos os
casos, correlatos, so apresentadas informaes bsicas sobre o contexto histrico-
poltico da poca, naquilo que interferem na compreenso dos conceitos. H, por fim,
um breve retrato da literatura sobre conselhos no Brasil. O objetivo evidenciar, ao
final, quais os elementos que compem uma proposta conselhista, nessa perspectiva
especfica, e que acepo de democracia dela decorre.
1.1 Conselhos e teorias democrticas
Os conselhos podem ser compreendidos como um conjunto de prticas
decisrias desenvolvidas por diversos atores sociais e, ao mesmo tempo, como um tema
em discusso sobre as relaes polticas dentro de uma sociedade. Trat-los inicialmente
como prtica ou como conceito leva a diferentes abordagens e a diferentes resultados,
igualmente vlidos, mas com propsitos bastante distintos. Partir dos conselhos como
prticas significa considerar que h uma dinmica social, consolidada o suficiente para
ser percebida, pela qual os participantes reconhecem a si mesmos como parte de
conselhos ou outras expresses equivalentes, com comportamentos e ritos que
guardam alguma semelhana entre si . Por outro lado, partindo dos conselhos como
conceitos, h um esforo de elaborao sistemtica em que o elemento que se entende
como conselhos modelado e posto prova perante um conjunto amplo de
conhecimentos previamente reconhecido, de uma forma que guarde coerncia com os
outros elementos que fazem parte desse universo intelectual. No so abordagens
opostas, mas necessrias e complementares (desde que bem estabelecidos os papis de
cada uma), que sero desenvolvidas neste trabalho.
Na abordagem prtica, o ponto de partida a observao e a perspectiva de
abertura surpresa, ou seja, a possibilidade do encontro com o diferente e toda a
necessidade de reviso e reaprendizado que dele decorre: a postura da pesquisa
emprica. Do ponto de vista conceitual, o primeiro passo a anlise do conhecimento j
34
existente para a identificao do ponto de traduo, ou seja, a possibilidade de discusso
de novos conceitos para representar as novas inquietaes nos termos daquela
linguagem cognitiva: a postura da pesquisa terica. correto assumir que a diferena
uma questo de nfase, dado que, mesmo na abordagem prtica, necessrio o
manuseio de conceitos prvios, assim como no pode ser dispensada uma relao com a
observao prtica na abordagem terica. Mesmo sendo uma diferena de nfases,
preciso reconhecer que isso muda o trajeto desses dois caminhos, que, por isso,
requerem certo cuidado at para fazer com que se encontrem ao fim do percurso.
Na abordagem conceitual, a pesquisa emprica no necessariamente o ponto de
partida e, assim, a sntese intelectual, gozando de certa autonomia, pode se apresentar de
antemo. Quando isso acontece, a discusso conceitual prvia tambm tende a antecipar
a postulao de juzos de valor de maior relevncia que, assim antepostos, passam a
constituir premissas da argumentao, no consequncias. Na abordagem prtica, a
observao precede a sntese e, por isso, confere maior destaque ao debate dos
resultados que lhe sucedem. Quando isso acontece, a oferta a debate dos juzos de valor
ps-observacionais no apaga a necessidade de avaliar tambm os juzos de valor que
precederam a observao, ainda que silenciados.
A anlise dos conselhos paira ento entre esses dois riscos. De um lado, ao ser
muito extremados na discusso conceitual prvia, podemos acabar cristalizando
algumas premissas sobre o tema, antes mesmo de termos dados suficientes para saber se
correspondem prtica poltica de uma determinada sociedade, e em que medida. De
outro lado, ao partir de imediato para uma pesquisa emprica sem maiores preocupaes
conceituais, h a possibilidade de acabar trazendo tambm juzos prvios que, por terem
sido silenciados, foram subtrados ao debate, mas permanecem influenciando os
resultados.
Este trabalho prope adotar ambas as perspectivas, por isso precisa responder
aos dois riscos. Embora sejam igualmente graves, o segundo chama mais a ateno por
ser de mais difcil correo. Um desvio numa perspectiva conceitual, que est submetida
a um debate constante, pode ser revisto e reavaliado a qualquer momento, ao passo que
um desvio numa pesquisa emprica, embora reversvel, pode exigir uma quantidade
maior de recursos materiais para sua repetio, que nem sempre esto disponveis. Um
caminho possvel, conciliando as perspectivas, partir da anlise conceitual para uma
pesquisa emprica e, com base nos seus resultados, revisitar as premissas anteriormente
colocadas.
35
Nesse trajeto, as teorias democrticas ficam mais visveis como um primeiro
passo. Elas trazem, de acordo com cada paradigma, um conjunto de concepes sobre as
relaes polticas que se pretende estudar, formando uma base sobre a qual se assenta a
primeira anlise conceitual. Isso permite, segundo os diferentes recortes, perceber
relaes e intuir explicaes para fatos que, pela pura observao, podem parecer
desconexos. Os conselhos, assim, podem ser tomados desde o incio como elementos de
relaes polticas mais complexas, que indicam seu papel na sociedade e sua razo de
ser. Em outras palavras, as teorias democrticas tm ontologias prprias (SCHULTZ,
2002, p. 74).
Se essas teorias, por um lado, j indicam alguns elementos de entendimento
sobre os conselhos, por outro, so gerais o suficiente para no fazer disso um quadro
muito fechado. No h, assim, uma conceituao necessariamente decorrente da adoo
de uma perspectiva terica, mas um espectro de possibilidades relativamente aberto.
Isso fornece parmetros suficientes para iniciar um debate conceitual e adotar algumas
orientaes, ainda que provisrias, que precedam o trabalho prtico. Da anlise dos
resultados empricos, possvel rever essas escolhas preliminares, at mesmo para
reconhecer sua insuficincia.
Isso s possvel porque as ontologias decorrentes das propostas tericas so
marcadas pela sua natureza ideolgica. Como ideologias, fazem parte da dinmica de
relaes entre grupos dentro de uma determinada sociedade e so por elas afetadas, com
todas as marcas de autoria e comprometimento que seriam de se esperar em qualquer
processo poltico. Ao buscar uma concepo inicial de conselhos que seja fundamentada
em uma teoria especfica, preciso considerar que, com ela, so importados alguns
juzos sobre o lugar desses conselhos, o papel que devem exercer e sua relao com os
grupos sociais. So elementos que fazem parte de qualquer reforo ideolgico e podem
ser assim discutidos.
A importao ideolgica por meio das teorias democrticas no pode acontecer
de forma silenciada. A ideologia que se afirma como tal pode ser identificada, reforada
ou resistida, de acordo com a maneira como as relaes polticas se estabelecem naquele
contexto. A ideologia silenciada, por outro lado, mais vulnervel ao debate pblico e
por isso mantm seu carter de implicitude to mais aceita quanto menos for
discutida. Da advm o senso comum, como o reforo espontneo, ideolgico e
inconsciente (HALL, 1977, p. 325) s ideias disseminadas de forma indistinta sobre
36
determinado tema. A ideologia reforada de modo difuso pelo senso comum mais
difcil de ser identificada e, por isso, tambm mais difcil de ser resistida.
A disseminao do senso comum ao rotineira, uma forma de construir um
mundo cotidiano similar ou compartilhado (WALLACE; WOLF, 2006, p. 263).
Quanto mais difundida a prtica de conselhos, portanto, mais intensa a formao
espontnea, ideolgica e inconsciente de um senso comum sobre conselhos. Se o
propsito difundir essa ideologia, operar dentro dos parmetros do senso comum pode
ser o caminho mais proveitoso, mas no o caso aqui. Ao pretender problematizar os
conselhos como conceito e como prtica, inevitvel tambm colocar em questo as
ideologias sobre o tema.
A perspectiva conceitual sozinha no suficiente para enfrentar esse desafio. A
ideologia e o senso comum no so facilmente traduzveis em afirmaes mais
explcitas e, por isso, a perspectiva prtica aparece como uma maneira complementar de
compreenso. A observao de como as relaes se concretizam permite captar os
momentos sutis em que se revela uma influncia ideolgica e traz dados que auxiliam a
identific-la. Aliando esses dois aspectos o conceitual e o prtico , possvel uma
compreenso mais ampla dos conselhos, que leve em conta tambm a sua natureza
ideolgica. A anlise de conjuntura proposta no captulo 3 apresenta mais algumas
consideraes sobre essa abordagem.
Para isso, o primeiro passo a explicitao da teoria democrtica que sustenta o
trabalho. um ponto de partida, para o qual se pretende retornar.
1.2 Paradigmas conceituais sobre democracia
1.2.1 Democracia e liberalismo
Em termos bastante sintticos, por liberalismo entende-se uma determinada
concepo de Estado, na qual o Estado tem poderes e funes limitadas, e como tal se
contrape tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social
(BOBBIO, 2006, p. 7). H, portanto, uma definio por duplo contraste. Por um lado, a
concepo liberal constitui uma alternativa histrica concentrao de poder poltico e
econmico representada pelo absolutismo, forma de organizao estatal marcada pela
confuso patrimonial da coisa pblica com a figura do monarca, bem como pela
37
sobreposio quase completa entre o campo estatal e o econmico. Por outro lado,
igualmente o liberalismo antipdico ao Estado social, tambm marcado pela forte
interveno no campo econmico e pela funo de alocao de bens e servios para
indivduos, com maior ou menor grau de universalidade. H, aqui, um ponto comum
que se extrai desse contraste angular: o liberalismo defende a limitao da interveno
estatal na economia e a negao de sua funo de promotor de acmulo patrimonial,
seja do governante, seja dos indivduos.
Da possvel perceber o ncleo conceitual do liberalismo: o liberalismo
clssico construdo sobre uma concepo negativa de liberdade (GAUS, 2000, p. 91).
uma liberdade de natureza individual, uma proteo do ser humano contra a
interferncia externa que limita sua ao. Segundo Berlin (1969), o sentido fundamental
a liberdade do aprisionamento ou escravido pelos outros e o sentido poltico a
ausncia de dominao.
Mais ainda, o conceito de liberdade se relaciona com as escolhas e
possibilidades dos indivduos. Ou seja, o indivduo deve ser livre para que tenha a
oportunidade de decidir pela melhor entre as alternativas, ainda que opte por no faz-
lo: no simplesmente a ausncia de frustraes (o que pode ser obtido matando os
desejos), mas a ausncia de obstculos a possveis escolhas e atividades ausncia de
obstrues nos caminhos pelos quais um homem decide caminhar (BERLIN, 1969, p.
38). O ente tomado, geralmente, como ameaa a essa liberdade de escolha o Estado:
liberalismo poltico tende a pressupor uma definio negativa de liberdade: os liberais
geralmente afirmam que se algum quer favorecer a liberdade individual, deve
estabelecer fortes limitaes sobre as atividades do Estado (CARTER, 2003).
Trata-se, por fim, de uma afirmao de liberdade que tem contedo, titular e
destinatrio especficos: liberdade econmica e poltica dos indivduos contra o Estado.
Esses dois aspectos, segundo Norberto Bobbio (2006, p. 17-18), so representados
respectivamente pelo Estado mnimo e pelo Estado de direito: Enquanto o Estado de direito se contrape ao Estado absoluto entendido como legibus solutus, o Estado mnimo se contrape ao Estado mximo: deve-se, ento, dizer que o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direito e contra o Estado mximo em defesa do Estado mnimo, ainda que nem sempre os dois movimentos de emancipao coincidam histrica e praticamente.
No mbito econmico, importa dizer que o liberalismo se contrapunha tradio
de prticas confiscatrias, dirigentes e avassaladoras que a monarquia absolutista
38
impunha aos indivduos. Era, por assim dizer, um grito de liberdade ecoado
principalmente pela burguesia, traduzido em termos concretos como liberdade de
associao, liberdade de exerccio profissional, livre-iniciativa e livre mercado. Para
tanto, como principal violador dessas liberdades, deveria o Estado deixar de praticar
todo o conjunto de atos de interveno que emanavam do poder concentrado. Deveria
ser reduzido, portanto.
No entanto, no era o Estado intervencionista a nica ameaa liberdade
econmica pretendida. Havia a possibilidade de desequilbrio econmico decorrente da
sempre presente hiptese de monoplio, cartel e outras prticas consideradas desleais,
evidenciando falhas de mercado. Para isso, uma estrutura de correo de falhas e
soluo de conflitos entre pares era necessria, o que s poderia ser provido por uma
instituio dotada de algum nvel de autoridade. Tambm havia a iminncia de riscos
externos, tanto do poder poltico e blico de outras naes fortes quanto da competio
desigual com concorrentes estrangeiros eventualmente mais bem estabelecidos. Assim,
a proteo militar e alfandegria contra os riscos internacionais, do mesmo modo,
somente poderia ser garantida institucionalmente. Haveria, ainda, a ameaa ideolgica
de doutrinas no liberais, das quais o marxismo viria a ser o maior exemplo, que
igualmente demandavam respostas firmes e integradas. Por todas essas razes, o Estado
foi considerado como uma instituio necessria, para atuar na defesa da economia
contra ameaas internas e externas. Necessria, mas mnima.
Para garantir que o Estado necessrio permanecesse mnimo, seria preciso
estabelecer limitaes ao poder. No mbito poltico, o Estado mnimo vem
acompanhado do Estado de direito, cuja definio discutida por Norberto Bobbio
(2006) em trs categorias. A primeira o Estado de direito em sentido forte,
caracterizado pela subordinao dos poderes pblicos s leis gerais do pas (limite
formal) e pela subordinao das leis ao reconhecimento de alguns direitos fundamentais
constitucionais (limite material). O Estado de direito em sentido fraco seria aquele
apenas subordinado s leis, no desptico, e o Estado de direito em sentido
fraqussimo, cujo exemplo o Estado kelseniano, corresponderia quele que se resolve
no seu ordenamento jurdico.
Considerado o primeiro sentido, resta evidente o desafio de desenvolver uma
forma de organizao poltica que d conta das funes estatais sem cair na tentao da
concentrao de poderes. assim que o Estado liberal moderno vem a ser organizado
segundo vrios nveis de autolimitao. Uma primeira clivagem, de natureza funcional,
39
corresponde clssica doutrina da separao de poderes. Pelo estabelecimento de freios
e contrapesos, cada poder (ou funo) estatal teria a incumbncia de conter os excessos
dos demais, contribuindo para um equilbrio autorregulado. Outra fragmentao, de
natureza territorial, corresponde descentralizao administrativa, cuja forma mais
exemplar foi o federalismo desenvolvido nos Estados Unidos, que garante a autonomia
dos governos locais em determinadas atribuies, concentrando apenas algumas outras
no governo central e mantendo, assim, uma covigilncia.
Alm dessas duas limitaes, h uma terceira, que importa mais neste trabalho.
Trata-se da repartio do poder poltico soberano entre os cidados, que deu origem s
formas de democracia liberal. Seria um terceiro nvel de vigilncia, desta vez exercido
pelos indivduos sobre o Estado como um todo, a fim de evitar seu desvirtuamento e
eventuais abusos dos governantes. Essa vigilncia exercida pelos indivduos marca os
contornos da noo liberal de cidadania. O cidado liberal fiscaliza a atuao dos seus
representantes e, com isso, acaba por se envolver tambm no acompanhamento dos
comportamentos dos concidados, o que caracteriza a concepo do autogoverno: o
autogoverno [...] no o governo de cada um por si mesmo, mas de cada um por todos
os demais (MILL, 1859).
Em suma, a noo de liberdade, em favor dos indivduos e direcionada contra o
Estado, concretizada pelas estratgias de limitao de poder. Esse seria o espao da
democracia dentro do liberalismo.
No contexto da economia e do comrcio internacionais, as ideias de liberdade e
limitao do Estado ganham uma nova forma, numa macroperspectiva, em que se
consideram no somente os interesses de indivduos autogovernados, mas tambm os de
naes e grupos transnacionais em permanente disputa. Seria esse o vis do
neoliberalismo do sculo XX, marcado pela limitao da atuao protecionista do
Estado e pela promoo da livre circulao econmica internacional: a essncia da
posio neoliberal em relao ao comrcio internacional a proposio de que o
crescimento econmico ser mais rpido quando o movimento de bens, servios e
capital no for impedido por regulaes governamentais (MacEWAN, 2001).
A defesa de um Estado menos interventivo, contudo, apenas aparente. Por um
lado, a existncia de um aparato estatal suficientemente fortalecido , em geral, uma
vantagem estratgica da qual se pode tirar proveito na ampla arena do comrcio
internacional. Assim, a retrica neoliberal convive com prticas que seguem no sentido
oposto, como o protecionismo comercial, a guerra cambial e os subsdios fiscais. Alm
40
das medidas contra a concorrncia estrangeira, outra forma de atuao dos Estados a
defesa das empresas nacionais perante organismos multilaterais e instncias
transnacionais de soluo de conflitos comerciais. Em todos esses contextos, contar com
uma mquina pblica forte contra os concorrentes estrangeiros passa a ser uma
vantagem competitiva que nenhum grupo econmico poderia subestimar.
Por outro lado, tambm no mbito interno mantida a neces
Top Related