RAILDE DA GLÓRIA FERNANDES
DO FEMINISMO A AUTOAJUDA: uma análise a partir dos estudos
de gênero
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
MONTES CLAROS
Março/2013
RAILDE DA GLÓRIA FERNANDES
DO FEMINISMO A AUTOAJUDA: uma análise a partir dos estudos
de gênero
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Montes Claros,
como parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em História.
Área de concentração: História Social
Linha de Pesquisa: Cultura, Relações Sociais e
Gênero
Orientadora: Profa.: Dra.: Regina Célia Lima
Caleiro
Co-orientadora: Profa.: Dra.: Cláudia de Jesus
Maia
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
MONTES CLAROS
Março/2013
F363f
Fernandes, Railde da Glória.
Do feminismo a autoajuda [manuscrito] : uma análise a partir dos estudos
de gênero / Railde da Glória Fernandes. – 2013.
136 f. : il.
Bibliografia: f. 133-136.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros -
Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2013.
Orientadora: Profa. Dra. Regina Célia Lima Caleiro.
Coorientadora: Profa. Dra. Cláudia de Jesus Maia.
1. Feminismo – Gênero – Estudo. 2. Feminismo – Discurso -Subjetividade.
3. Autoajuda – Análise literária. I. Caleiro, Regina Célia Lima. II. Maia,
Cláudia de Jesus. III. Universidade Estadual de Montes Claros. IV. Título. V.
Título: Uma análise a partir dos estudos de gênero.
Dedico este trabalho a uma mulher forte e de muita
personalidade que inspirou muitas outras mulheres
em minha família, minha avó Romana, um exemplo
de vida. Ela nos deixou recentemente, mas está viva
em nossa memória e hoje descansa em paz...
AGRADECIMENTOS
Após uma longa caminhada de pesquisa, estudos e escrita, finalmente chega o
momento de agradecer a todos que contribuíram para que eu conseguisse alcançar o fim
da jornada.
Meus sinceros agradecimentos à minha orientadora professora Dra. Regina Célia
Lima Caleiro, por ter confiado em mim, e confiado no meu trabalho. Agradeço pela
compreensão nos momentos mais difíceis. Sobretudo agradeço por me tratar com
dignidade e humanidade.
À professora Dra. Cláudia de Jesus Maia, pela coorientação, pelas dúvidas tiradas,
pelos livros emprestados e por ter sido o impulso inicial para minhas pesquisas sobre
mulheres. Às professoras Dra. Helen Ulhôa e Dra. Telma Borges pelas contribuições na
qualificação. À Helen, ainda agradeço pelas conversas nos corredores, por tirar minhas
dúvidas sobre Análise de Discurso, e por ter me ouvido nos momentos de angústia
devido aos percalços da pesquisa.
Às pessoas que formaram o que eu sou hoje, meus pais Evanide e Jaime, duas
pessoas que tinham a educação e o conhecimento como um tesouro a ser conquistado.
Sinto-me imensamente satisfeita por poder realizar esse sonho por eles. À minha irmã
Rayanne em especial por acompanhar os momentos de escrita, por fazer partes das
discussões e pelas correções gramaticais. Ao meu cunhado Oscar que é como um irmão,
por sua presença constante. À Tia Vanda que sempre foi como uma mãe para mim,
oferecendo o mesmo apoio, e às suas filhas Gal e Leidy pela força. Agradeço à Maria
Clara, por me fazer rir com sua inocência de criança, uma pessoinha cheia de vida
sempre nos impulsiona a querer viver mais e melhor.
A uma pessoa mais do que especial, fundamental não só na caminhada desse
mestrado, mas em minha vida como um todo. Meu namorado, colega, amigo e porto
seguro, Fabiano César. Agradeço pelo apoio incondicional, por me compreender, por
me acalentar, por enxugar as minhas lágrimas, e por me dar a esperança de um futuro
melhor.
Agradeço à banca de avaliação composta pelas professoras Dra. Helen Ulhôa
Pimentel e Dra. Vera Lúcia Puga, por terem aceitado nosso convite.
Amigas são aquelas pessoas com quem podemos jogar conversa fora e esquecer-
se dos problemas, dessa forma agradeço à Chris com quem já compartilho as alegrias e
as tristezas há 10 anos. À Neiva, amiga, vizinha e companheira de caminhada que
escuta pacientemente a novela da minha vida. Nossa caminhada é um momento muito
especial do meu dia, pois é sempre bom conversar com pessoas sábias. À Clarice, que
entende como ninguém cada palavra do que eu digo, pois foi o meu espelho quando
ainda na graduação eu tracei meus objetivos acadêmicos.
A outras pessoas importantes a quem sou muito grata, o colega e professor Jânio
Marques Dias pelo empréstimo de material, e ao colegiado do PPGH por ter me
recebido como representante discente nas reuniões com as quais aprendi muito sobre a
vida acadêmica em suas nuances positivas e negativas.
Finalmente agradeço a CAPES, pela bolsa de estudo que me proporcionou
dedicação integral à pesquisa.
“Sinto necessidade de mudar de nível, de mudar, apenas.
Não, não sou contra a sexualidade, ao contrário. Tenho,
entretanto, um engajamento feminista, um engajamento
comigo mesma, que impede o cego assujeitamento às
imposições sobre meu corpo e meu ser. Procuro, ao
contrário, perfurar as evidências infladas de certezas e
verdades, as que criam obrigações e fixam identidades,
encobrindo a face do poder.” (Tânia Navarro Swain,
2008)
RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar a literatura de autoajuda no que tange à constituição
de um ideal feminino na primeira década do século XXI. Acreditamos que essa
literatura trabalhe em contraponto ao discurso feminista, visto que, estamos em uma
época em que as mulheres vivenciam novas possibilidades de atuação na sociedade e
uma subjetividade mais fundamentada pelos ideais de independência, ainda assim
encontramos esses livros, que trazem conselhos ainda pautados por valores patriarcais.
Buscamos então compreender como esta literatura constrói um modelo de feminilidade
e conduta para suas leitoras. Através dos estudos de gênero analisamos a constituição de
sujeito enquanto homem e mulher. Três livros de autoajuda foram escolhidos para a
análise, levando em conta seus índices de vendagem e a conformidade com o objetivo
proposto. Para a análise desse corpus documental laçamos mão da Análise do Discurso
de vertente francesa inspirada pelos estudos do discurso de Michel Foucault, que visa
analisar sentidos produzidos por um texto, levando em conta suas condições de
produção, como o contexto histórico, social e cultural em que é produzido.
PALAVRAS-CHAVE: autoajuda, gênero, feminismo, discurso, subjetividade
ABSTRACT
The objective of this study is to analyze the self-help literature regarding the formation
of a feminine ideal in the first decade of this century. We believe that this literature is
worksat counterpoint to the feminist discourse, since we are in a time when women
experience new possibilities of action in society and a more subjectivity groundedby the
independence ideals of these books that bring councils still ruled by patriarchal values.
Thereby, we seek to understand how this literature builds a model of femininity and
conduct for its readers. Through gender studies we intend to analyze the constitution of
the subject as man and wife. Three self-help books were chosen for analysis, taking into
account their levels of selling and compliance with the proposed objective. For the
analysis of this documentary corpus we used Discourse Analysis of French slope
inspired by studies of the speech of Michel Foucault, which aims to analyze meanings
produced by a text, taking into account their production conditions, such as the
historical, social and cultural that is produced.
KEYWORDS: self-help, gender, feminism, discourse, subjectivity
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Capa do livro Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem
amor................................................................................................................................31
FIGURA 2 – Capa do livro Porque os homens mentem e as mulheres choram.............32
FIGURA 3 – Capa do livro Porque os homens amam as mulheres poderosas...............33
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
CAPÍTULO 1 - OS CAMINHOS DA PESQUISA................................. ................... 14
1.1 Contextualizando a leitura feminina ............................................................. 14 1.2 As leituras para o bello sexo ......................................................................... 16 1.3 Ideal feminino em mudança. ........................................................................ 17
1.4 A autoajuda ................................................................................................... 23 1.5 As fontes e seus recursos de legitimação...................................................... 27
1.6 A constituição do sujeito .............................................................................. 34 1.7 Estudos sobre as construções de gênero ....................................................... 37 1.8 Gênero como categoria analítica .................................................................. 41 1.9 Análise do discurso ....................................................................................... 44
CAPÍTULO 2 - CONSTRUINDO AS DIFERENÇAS .............................................. 54
2.1 A origem das diferenças ............................................................................... 55 2.2 As capacidades cognitivas ............................................................................ 73
2.3 Trabalho ........................................................................................................ 82
CAPÍTULO 3 - AMOR, CASAMENTO E SEXUALIDADE .................................. 92
3.1 A conquista do amor ..................................................................................... 92 3.2 Casamento .................................................................................................... 98 3.3 Conselhos para o cotidiano dos casais ........................................................ 105
3.4 Sexualidade ................................................................................................. 116 3.5 A atração sexual.......................................................................................... 121
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 127
FONTES.......................................................................................................................133
REFERÊNCIAS. ........................................................................................................ 134
10
INTRODUÇÃO
O século XX foi um marco no que diz respeito à condição feminina na sociedade.
Nele se situam vários esforços de grupos sociais diversos em busca da ampliação da
atuação feminina no mundo público. A entrada de maior número de mulheres nas
universidades fez ressurgir discursos acerca da condição de opressão por que passavam.
Os movimentos feministas levantaram a bandeira da independência, fizeram ouvir as
vozes de lutas e determinação em busca de uma sociedade com mais oportunidades para
as mulheres. Embora tendo sido considerado um movimento de mulheres de classe
média, aos poucos o discurso da independência se alastrou pela sociedade, forçando a
conquista de inúmeros direitos.
Na primeira década do século XXI, as mulheres encontram-se bem colocadas no
mercado de trabalho, apesar da defasagem salarial em relação aos homens. Elas são
maioria nas universidades, ocupam cargos públicos de destaque, como o de Presidente
da República como é o caso da história recente do Brasil. Neste contexto, observa-se
que as mudanças foram significativas para o mundo feminino, devido a isso, as
mulheres vivenciam uma época em que suas identidades se encontram cada vez mais
variadas e contraditórias; pois pesar de os discursos sobre mulheres independentes
serem fortes em alguns aspectos como o trabalho e a educação, em outros como o
casamento, a maternidade e o domínio sobre seu corpo ainda verifica-se resquícios de
uma cultura patriarcal. A instabilidade das identidades e a velocidade com que essas
mudanças aconteceram geraram uma busca por uma posição em que possam se afirmar
enquanto mulheres de uma nova época. A literatura de autoajuda serve então como uma
ferramenta útil, oferecendo um caminho a seguir, pois estabelece em seu discurso
formas de comportamento para as mulheres.
A literatura de autoajuda pode ser classificada como literatura de massa, que por
sua vez, está relacionada à cultura de massas, isto é, um produto cultural produzido em
massa com vistas ao consumo. Existem variadas temáticas dentro da categoria da
autoajuda, e dentre elas, a autoajuda sentimental. Esses livros se apresentam como um
manual para ajudarem homens e mulheres a se entenderem em suas relações amorosas.
Com isso definem papéis sociais para ambos os sexos, baseando-se em estudos
científicos, depoimentos de pessoas e exemplos de situações do cotidiano de casais.
Alguns livros se dirigem especificamente às mulheres e pretendem guiá-las para que
11
tenham relacionamentos saudáveis. Neste intuito estabelecem comportamentos ditos
adequados para se alcançar sucesso no amor.
O objetivo deste trabalho é analisar essa literatura de autoajuda no que tange à
constituição de um ideal feminino na primeira década do século XXI. Acreditamos que
essa literatura trabalhe em contraponto ao discurso feminista, visto que, estamos em
uma época em que as mulheres vivenciam novas possibilidades de atuação na sociedade
e uma subjetividade mais pautada pelos ideais de independência. Buscamos então
compreender como essa literatura constrói um modelo de feminilidade e conduta para
suas leitoras. Portanto, a problematização desta pesquisa girou em torno de duas
questões: A partir de que modelos a autoajuda constrói identidades para as mulheres no
início do século XXI? Essa literatura funciona como um contradiscurso ao discurso do
feminismo?
Partimos da hipótese de que a autoajuda ao mesmo tempo em que se utiliza das
ideias da nova condição feminina, reforça valores patriarcais na constituição de um
modelo ideal de mulher. Acreditamos ser possível extrair desses livros comportamentos
tidos como ideais para as mulheres e identificar assim o impasse vivido por muitas ao
vivenciar a experiência de ser uma nova e uma antiga mulher simultaneamente. Essa
literatura funciona então como uma prática discursiva que constrói uma realidade sobre
o comportamento feminino no novo século.
Para alcançar os objetivos que aqui propomos, fizemos uma pesquisa entre vários
livros de autoajuda sentimental e chegamos a três títulos que se encaixam no objetivo da
pesquisa. Levamos em consideração aqueles que estiveram mais tempo nas listas dos
livros mais vendidos no país entre os anos de 2000 a 2010. Os livros escolhidos foram:
Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? dos autores Allan e Barbara
Pease, publicado no Brasil no ano 2000; Por que os homens mentem e as mulheres
choram?, dos mesmos autores e publicado no Brasil em 2003; e Por que os homens
amam as mulheres poderosas?, da escritora e radialista americana Sherry Argov, este
publicado no Brasil em 2009.
Para a análise do corpus documental laçamos mão da Análise do Discurso de
vertente francesa, que visa analisar sentidos produzidos por um texto, levando em conta
suas condições de produção, como o contexto histórico, social e cultural em que é
produzido. Ancoramo-nos nos estudos dos discursos feitos por Michel Foucault, em que
12
entende-se que um enunciado não se encerra em si mesmo, está situado em uma gama
de significados que dão sentido às palavras e expressões. Em síntese, um discurso
sempre remete a outros discursos. Portanto, buscamos na literatura de autoajuda
identificar os sentidos produzidos pelos livros; procuramos entender em que discursos
se apóiam para definir os comportamentos de homens e mulheres, bem como a
determinar os passos que as mulheres devem seguir para obter êxito e satisfação em
seus relacionamentos.
No primeiro capítulo, situamos o contexto histórico e metodológico que permeia
esta pesquisa. A leitura direcionada para as mulheres pode ser observada no Brasil
desde o século XIX, em que manuais de aconselhamento e romances procuravam
ensiná-las a desenvolver seu papel social de mãe, esposa e dona de casa. A literatura de
autoajuda se apresenta no início do século XXI como um manual para as mulheres
guiarem suas vidas e alcançarem sucesso em seus relacionamentos, embora em formato
diferente daqueles do século XIX, a autoajuda também constrói identidades para elas,
definindo os comportamentos aceitáveis. Ainda neste capítulo dissertamos acerca do
surgimento e do funcionamento na autoajuda, um produto da cultura de massas que vem
crescendo mais a cada dia. Apresentamos os estudos sobre a constituição do sujeito, os
estudos de gênero e a análise do discurso, sendo estes os referenciais teóricos e
metodológicos a qual nos ancoramos neste trabalho.
As discussões sobre as diferenças entre os sexos estão presentes em vários meios
de debates. Percebemos este assunto presente na mídia, nas revistas femininas, em
propagandas publicitárias entre outros. Na literatura de autoajuda esse tema não
somente é recorrente como existem títulos especificamente para definir, ou segundo os
autores, para esclarecer as diferenças entre os sexos. Devido a isso no segundo capítulo
analisamos a forma pela qual os livros selecionados definem a origem das diferenças
entre os sexos, e como essas diferenças refletem em questões como as capacidades
cognitivas e o mundo do trabalho.
As mulheres são associadas nos discursos sociais às questões sentimentais, são
caracterizadas como seres amorosos, carinhosos e prontos para oferecer esses
sentimentos aos outros. O casamento é visto até os dias de hoje, apesar de todas as
mudanças trazidas pelos feminismos, como um ponto alto na vida feminina, a realização
13
de um sonho; a literatura de autoajuda traz o mesmo discurso, associando o destino das
mulheres inevitavelmente ao matrimônio.
A sexualidade feminina foi alvo de muitas investidas por parte de várias
instituições. Segundo Regina Caleiro e Jacqueline Machado, “a conduta da mulher, a
feminilidade e a maternidade, sua sensibilidade e afetividade, sempre despertaram
receio e significaram mistério para os homens.” (CALEIRO, MACHADO, 2007, p. 7)
De acordo com essas autoras, viver seus desejos, ou desejar se deliciar com os prazeres
mundanos eram consideradas atitudes de mulheres loucas até meados do século XX.
Dessa forma a sexualidade feminina é vista com muito receio, devendo ser domesticada
das mais variadas formas. A literatura de autoajuda trata da sexualidade feminina como
destinada a dar prazer aos homens, para as mulheres, segundo esses livros, o importante
é o amor. Portanto, no terceiro capítulo, fizemos uma análise das questões relacionadas
ao amor, casamento e sexualidade das mulheres nos discursos da autoajuda.
Nas considerações finais trazemos nossas últimas reflexões sobre o tema
dissertado nesta pesquisa, e apresentamos o percurso que nos levou aos estudos de
gênero, do feminismo e da autoajuda.
14
Capítulo 1
OS CAMINHOS DA PESQUISA
1.1 Contextualizando a leitura feminina
A leitura é o que transforma em obras as letras, frases e enredos. E a leitura é
sempre determinada pelo lugar de fala ocupado por um leitor numa
sociedade, num dado momento histórico. Portanto é feita através do crivo de
classe, raça ou gênero. Essas mesmas noções, de classe, raça ou gênero são
mutáveis e construídas no decorrer da História. (TELLES, 1997, p. 402)
Para falarmos sobre uma literatura produzida para mulheres é preciso antes situar
o momento histórico em que as mulheres começaram a ser instruídas. Segundo Monica
Yumi Jingenzi, no século XIX, os termos educação e instrução aparecem interligados e
se diferenciam no tocante à finalidade de cada um. Educação pressupunha o
desenvolvimento das capacidades morais, enquanto instrução dizia respeito às
capacidades intelectuais. Deduzimos então que as mulheres foram ensinadas a ler
aumentando sua capacidade intelectual, com a intenção de que lessem textos específicos
que as educariam moralmente. O século XIX possui uma característica particular no que
diz respeito à educação:
A mudança da corte portuguesa para o Brasil representou o início de uma
fase de mudanças sócio culturais entre as quais destacam-se a promoção de
festas cívicas, e edificação do Real teatro de São João, o início oficial da
produção impressa e a defesa da imigração européia, com o intuito de
branquear a população, especialmente a carioca, mais próxima a corte. A
essas intervenções somaram-se a intenção de iluminar os espíritos por meio
da instrução ministrada numa variada gama de instituições, as quais iam
desde os próprios lares, até os cursos recém instalados de engenharia e
medicina. (FARIA FILHO et al, 2009, p. 72)
Os homens deveriam se ver como parte de um mundo civilizado, pautado pelo
ideal de progresso, a educação por via das Luzes era vista como um sintoma do
progresso. Essa temática passou a fazer parte dos discursos políticos da época. O
discurso da educação, no entanto, não era pautado como educação para todos, visto que
a educação era diferenciada levando-se em conta as hierarquias sociais de classes e de
gênero. O lugar de se educar não era somente a educação escolar, pois nos moldes de
15
um sistema educacional, esta ainda não existia, então outros lugares possuíam os
mesmos objetivos, como o teatro por exemplo.
(...) o teatro, verdadeira “escola da moral pública”, não sendo, pois, a
educação obra apenas da escola,(...) deveria conscientizar e servir como
veículo da razão, devendo para isso seduzir o espectador. Por sua vez, a
literatura, por meio de suas linguagens e discursos metaforizados, deveria
propagar intenções moralizadoras e civilizatórias. Não menos importante, a
imprensa deveria servir como instrumento da ação educacional posta em
marcha por uma elite que se auto-representava como portadora dos signos da
civilidade. (FARIA FILHO, et al, 2008, p. 72)
De acordo com Elisa Maria Verona, neste contexto de mudanças, as mulheres
exerciam um novo papel, e começaram a ser educadas para ocupar outro lugar a ser
desempenhado no ambiente social que surgia. Estavam mais expostas à vida pública,
pois apareciam nos eventos ao lado de seus maridos e precisavam se comportar de
acordo com as novas prerrogativas sociais do mundo civilizado1. Saber conversar sobre
assuntos agradáveis, ter fala suave, ar reservado, atitude modesta e silenciosa e nada de
bebidas alcoólicas. “A mulher da segunda metade do século deixou de ser tão alheia ao
mundo exterior à sua casa, alargou-se a paisagem de muita Iaiá brasileira no sentido de
maior variedade de contatos com a vida extradoméstica.” (VERONA, 2007, p.31)
Vale ressaltar que esta mudança não significou igualdade de direitos não
extrapolando os limites da casa, a mulher de elite passou a ser vista como formadora
dos indivíduos. A construção da nação civilizada requeria cidadãos valorizadores da
pátria, a mulher como mãe e esposa seria responsável pela harmonia familiar e pela
educação dos cidadãos para servir à pátria. Então era preciso “educá-la adequadamente
para o bem geral da nação.” (FARIA FILHO, et al, 2008, p.73) As famílias estando
bem, a nação também estaria, e dessa forma, as mulheres teriam uma contribuição muito
importante no estabelecimento dessa harmonia.
1 Aqui faz-se referencia à sociedade burguesa, as mulheres das classes mais baixas já faziam parte da
esfera pública, não no que diz respeito a direitos e importância, mas a esfera pública como espaço onde
trabalhavam.
16
1.2 As leituras para o bello sexo
A educação feminina estimulava a formação de um sujeito adequado aos moldes
do que a sociedade entendia como ideal para uma mulher. As moças aprendiam as
primeiras letras e os afazeres domésticos, até mesmo a maternidade e os cuidados com o
outro, seja marido ou filhos. Apesar de os serviços domésticos serem considerados
características naturais das mulheres, os bancos escolares ainda serviam como lugar
onde se aprendia a ser menina, reforçando assim suas habilidades supostamente natas.
“A instrução da mulher não deveria extrapolar o necessário para bem educar os filhos.”
(VERONA, 2007, p. 40)
A literatura teve um papel fundamental para os objetivos civilizatórios no
Oitocentos, na medida em que se percebe uma função pedagógica dos escritores. Em
suas narrativas instruíam os leitores com a intenção de contribuir para seu
aperfeiçoamento moral. Nos livros dedicados às mulheres, estas foram representadas
como seres amáveis, além de delicadas e recatadas. Enfatizavam sua natureza materna e
seu comprometimento em cuidar da família. As moças deveriam ler livros de instrução
que as tornassem boas senhoras, e os romances neste sentido eram proibidos, visto que
as tornavam bobas e sonhadoras, perdendo seu tempo com amores. Os romances eram
vistos como esvaziadores da mente das moças, e se não era possível controlar seus
pensamentos, sua imaginação, o esforço se direcionava a controlar suas leituras. Assim,
os romances perigosos, aqueles que versavam sobre romances, amores, e que
desenvolviam a inteligência das mulheres2, eram banidos e em seu lugar entravam
aqueles que contribuíam para a formação das moças e senhoras respeitáveis3.
Empecilhos a parte, o romance impôs-se à cena cultural brasileira no
decorrer do século XIX, e isso não obstante os variados ataques dos
incrédulos das suas intenções morais. Através desse ‘grande instrumento de
reconstrução social’, os literatos puderam exercer o poder de falar ‘à
numerosa classe dos que sabem ler’, ‘infiltrando nela os princípios de moral’
e exercendo uma influencia civilizadora. Também puderam estabelecer com
o público feminino relações bastante íntimas, quando a sua leitura com um
senso didático muitas vezes excessivo. (VERONA, 2007, p. 85)
2 As moças que adquiriam conhecimentos além daqueles próprios ao seu sexo, não eram bem vistas,
devido a isso, os livros que as proporcionavam conhecimento eram considerados perigosos. 3 Sobre este assunto ver: Madame Bovary de Gustave Flaubert, O primo Basílio de Eça de Queirós,
Senhora de José de Alencar, Helena de Machado de Assis entre outros.
17
Esses escritos trabalhavam então na constituição do sujeito feminino, seus
discursos estabeleciam um tipo de mulher ideal, com a ajuda de outros discursos, como
os discursos médicos, por exemplo, enfatizavam os detalhes da “natureza feminina”.
Além disso, determinavam as formas corretas de se comportar, de se vestir, passando
pelas principais ocupações das mulheres e até mesmo as doenças que sentiam, sempre
associando-as à constituição específica do corpo feminino. Enquanto o homem figurava
como o provedor do lar, a mulher devia se ocupar dos assuntos domésticos, quando
mãe, zelando pela educação dos filhos, aperfeiçoando cada vez mais suas “prendas”.
Deveria ainda aprender a agradar ao seu esposo, “mesmo depois que o pássaro já estava
preso ele poderia desinteressar-se e voar” (VERONA, 2007, p. 102). Estar sempre
bonita e ser cordial para receber bem o marido quando este chegava do trabalho eram
estratégias da boa esposa, mulher ideal. Os discursos da literatura do século XIX,
direcionados para mulheres, buscavam construir um modelo de mulher, mãe, esposa e
dona de casa, imbuídas de manter a ordem e a harmonia do lar, contribuindo assim para
o progresso da nação. Em meados do século XX, ocorre uma ruptura nessa forma de
representação feminina, não obstante, percebe-se muitas permanências. A nova mulher
que surge neste período deve conviver e manter suas atribuições “naturais”, mesmo
agregando novos papéis ao seu cotidiano.
1.3 Ideal feminino em mudança
O século XX é um marco na história no que se refere às mudanças culturais,
sociais e econômicas. Hobsbawn o caracteriza como um século curto iniciado em 1914
com a Primeira Guerra Mundial e terminando em 1991 com a queda da União Soviética.
Nesse período, considerado pelo autor como breve, as transformações foram muito
rápidas e deixaram um legado inquestionável na história contemporânea. É nele que se
situam as duas grandes guerras mundiais e com elas, mudanças políticas, econômicas e
sociais. Segundo Eric Hobsbawm, os anos pós-guerra foram de extraordinário
crescimento econômico e transformação social, anos que provavelmente mudaram de
maneira mais profunda a sociedade humana do que qualquer outro período de brevidade
18
comparável. (HOBSBAWN, 1995, p. 15) Para as mulheres, o século XX foi ainda mais
marcante, pois representou conquistas e visibilidade significativas. Interessa-nos em
particular neste trabalho as mudanças ocorridas no mundo feminino, pois segundo
Hobsbawm, houve uma “amplitude da nova consciência de feminilidade.”
(HOBSBAWN, 1995, p. 306) Houve uma entrada em massa das mulheres no mercado
de trabalho, assim como uma expansão da educação superior para elas, e com isso, de
forma direta ou indireta um reflorescimento dos movimentos feministas ocidentais.
Segundo Margareth Rago:
Ser mulher, até aproximadamente o final dos anos 1960, significava
identificar-se com a maternidade e a esfera privada do lar, sonhar com um
“bom partido” para um casamento indissolúvel e afeiçoar-se a atividades
leves e delicadas, que exigissem pouco esforço físico e mental. (RAGO,
2004, p. 31)
A maternidade foi por muito tempo um pressuposto básico na vida de toda
mulher, reinava um imaginário social construído de acordo com as formulações da
medicina do século XIX, em que todos os males do corpo feminino foram associados ao
útero. As transformações sociais e culturais ocorridas no século XX foram aos poucos
minando algumas concepções já enraizadas no corpo social. Os avanços tecnológicos,
os rearranjos da economia e as contestações dos movimentos sociais contribuíram para
promover uma visão diferente sobre o lugar das mulheres na sociedade. No Brasil,
como atesta Margareth Rago, essas mudanças foram sentidas.
Embora as mudanças culturais e mentais sejam muito difíceis e custosas,
esse regime de verdade foi questionado e derrubado, à medida em que a
acelerada modernização socioeconômica, desde a década de 1970 no Brasil,
levou milhares de mulheres ao mercado de trabalho e que o feminismo
emergente passou a pressionar incisivamente por uma redefinição de seu
lugar na sociedade. (RAGO, 2004, p. 33)
Dessa forma podemos considerar que o processo de mudança sobre a vida das
mulheres está associado a um contexto histórico específico. Com o passar do tempo o
discurso sobre a independência e a individualidade feminina foi cada vez mais se
alastrando na sociedade. Direitos civis lhes foram assegurados, principalmente no que
se refere às condições de trabalho. Segundo Hobsbawn, os fatores que levaram as
19
mulheres a trabalhar fora de casa não estão associados a uma nova consciência que elas
adquiriram de sua própria condição social. Está ligado, em maior grau, ao fato de serem
preferidas pelos patrões devido ao menor custo de mão de obra, à pobreza em que
muitas viviam, por serem consideradas dóceis e mais fáceis de lidar. (HOBSBAWN,
1995, p.309)
No entanto, essa conjuntura histórica não anula o fato de que a longo prazo a
consciência das mulheres sobre si mesmas foi modificada, o discurso sobre a nova
condição feminina foi se intensificando através de vários mecanismos, e a literatura é
um deles.
Logicamente que não pretendemos aqui homogeneizar esse fator como
pertencendo a todos os lugares e classes sociais. Porém, entende-se que a abrangência
do discurso pode ser percebida nos últimos tempos. Segundo Rago: “Ser mulher no
século XXI, deixou de implicar necessariamente gravidez e parto, o que traduz uma
enorme ruptura com a ideologia da domesticidade.” (RAGO, 2004, p.33) Inferimos
disso um domínio maior das mulheres sobre seu próprio corpo. A pílula
anticoncepcional, por exemplo, foi um fator de fundamental importância, uma vez que,
deu possibilidades de escolha para as mulheres serem mães quando quisessem ou
mesmo de não ter filhos, implicando assim uma possibilidade de dedicação maior à
carreira profissional.
No início do século XXI, as mulheres estão se valorizando mais. Aliás até
mesmo intelectuais pouco atentos às questões de gênero não podem deixar
de reconhecer que a única revolução que realmente vingou no século XX, foi
a feminista, provocando não apenas o acesso das mulheres à cidadania, mas
acentuando um fenômeno igualmente profundo, embora menos perceptível,
pelo menos até recentemente: a feminilização da cultura. (RAGO, 2004,
p.33)
O século XX proporcionou às mulheres um direito à existência cujo fundamento
deixa de girar em torno de seu parceiro/marido. Ainda há muito a ser avaliado, visto
que, essa condição pode ser generalizada, mas o mais importante a se assinalar é a
possibilidade de outra forma de vida.
As lutas femininas em prol da igualdade de direitos, entretanto, datam de bem
antes. Desde o século XIX, as mulheres, sobretudo as operárias, reivindicavam seus
direitos e melhores condições de trabalho. “O discurso que propõe a inserção da mulher
20
na vida política e civil em condição de igualdade com os homens, tanto de deveres
quanto de direitos, será repetido durante todo o século XIX pelas feministas na sua luta
pelo sufrágio.” (PITANGUY, 2003, p. 34). Esses momentos iniciais de lutas podem ser
chamados de “primeira onda do feminismo”, que em meados do século XIX agitou
países como Inglaterra, França, Rússia e Estados Unidos. “Essa primeira versão do
movimento caracterizou-se pela luta em prol de direitos civis e políticos que buscava
igualar juridicamente homens e mulheres.” (MESTRE, 2004, p. 12) Esses movimentos
são de fundamental importância para as mudanças de mentalidade de muitas mulheres,
pois demonstravam a possibilidade de outras formas de vida e, sobretudo, as
apresentavam a muitos direitos que desconheciam e que poderiam usufruir.
As mulheres que comandaram esses movimentos faziam parte das camadas
econômicas superiores da população. Suas reivindicações se restringiam ao mundo em
que viviam, como acesso ao mercado de trabalho e a conciliação deste com os afazeres
domésticos. Neste ponto, os movimentos não alcançavam as mulheres de menor poder
aquisitivo, uma vez que, as mulheres pobres já trabalhavam há algum tempo e estavam
mais preocupadas em se manter vivas e a sua prole.
Hobsbawm situa no século XX mais precisamente no pós-1945, a emergência de
uma nova consciência feminina.
A entrada em massa das mulheres casadas – ou seja, em grande parte mães –
no mercado de trabalho e a sensacional expansão do ensino superior
formaram o pano de fundo pelo menos nos países ocidentais típicos, para o
impressionante reflorescimento dos movimentos feministas a partir da
década de 1960. Na verdade os movimentos de mulheres são inexplicáveis
sem esses acontecimentos. (HOBSBAWN, 1995, p. 305)
As mulheres adentraram o século XX sem direito ao voto, a educação superior e
até mesmo sem serem reconhecidas como cidadãs. As mudanças ocorridas na sociedade
nesse período propiciaram transformações significativas para elas. Em tempos de
guerras, as mulheres foram incitadas a trabalhar fora de casa e exercer alguma atividade
remunerada. Com os homens nas frentes de batalha, estas se tornaram força de trabalho
útil, não só para sustentarem seus lares, mas também para continuarem movimentando a
economia e a própria indústria bélica. Com o fim da guerra, as mulheres eram
convencidas a retomarem os seus lugares no cuidado com os filhos e com os afazeres
21
domésticos que eram seus lugares por natureza. Muitas eram as propagandas que
utilizavam a imagem da mulher feliz em seu lar para convencê-las a voltarem ao seu
lugar natural. Assim foi na primeira e na segunda guerra. A grande questão é que com o
fim desta última, muitas questões mudaram a nível cultural, social e nas mentalidades
das pessoas, e no decorrer dos anos os papéis femininos foram se modificando e as
próprias mulheres já não consideravam o espaço privado como único lugar que
deveriam ocupar.
Segundo Hobsbawn as mulheres tiveram um papel impressionante nas mudanças
socais ocorridas a partir da segunda metade do século XX. A entrada em massa no
mercado de trabalho aliado ao acesso a melhores níveis de educação formal, sobretudo
no ensino superior, resultou em transformações nas formas como as mulheres viam a si
mesmas. O ressurgimento do movimento feminista está firmemente atrelado a essas
questões; as mulheres se tornaram não apenas um grupo com interesses específicos, mas
uma força política. Conseguiram visualizar melhor as desigualdades entre os sexos, a
separação estabelecida entre o público e o privado, a casa e o resto do mundo. Assim,
muitas delas voltaram suas forças para criticar e combater as desigualdades sexuais.
Vários movimentos feministas debruçaram-se sobre muitos e urgentes problemas: desde
o fardo que sobrecarrega as mulheres na carreira profissional e no trabalho doméstico
até a questão dos cuidados com os filhos; além “da injustiça das leis do casamento e a
falta de formação e de emprego para mulheres.” (THÉBAUD, 1995, p. 600)
A emergência das mulheres como sujeitos históricos visíveis, como agentes
políticos culminou em inúmeras mudanças no mundo feminino. No que se refere à
legislação, a política feminista segundo François Thébaud possuía abrangência nacional
e internacional. Em 1975, foi celebrado o ano da mulher e do mesmo ano até 1983 foi
um período considerado a década da mulher, o que sublinhou a visibilidade alcançada
pelas questões femininas. O aparecimento de uma sólida rede de mulheres ativistas e a
adoção pelas Nações Unidas de resoluções tendentes a dar uma maior atenção às
preocupações destas. (THÉBAUD, 1995, p. 584)
Em pouco tempo as conquistas femininas foram consideráveis, mas o feminismo
como um grupo único não existe. Vários autores sublinham que existem vários
feminismos, considera-se que a bandeira da independência e autonomia seja
preponderante em todos, mas questões pontuais mudam de acordo a cada grupo.
22
O feminismo não é um substantivo cujas propriedades possam ser definidas
de forma exata e definitiva, poder-se-ia dizer, antes, que o termo feminismo
indica historicamente conjuntos variados de teorias e práticas centradas em
volta da constituição e da legitimação dos interesses das mulheres. Nesta
perspectiva, o que o feminismo é ou foi é mais uma questão histórica do que
uma questão de definição. (ERGAS, 1995, p. 588)
Grande parte dos movimentos feministas proveio de grupos de mulheres
intelectualizadas que possuíam acesso ao conhecimento desenvolvendo uma visão mais
crítica de si mesmas e da sua condição social. O desenvolvimento tecnológico
visualizado na segunda metade do século XX, bem como as novas formas de relações
sociais, permitiram que o debate feminista alcançasse um número maior de mulheres.
Neste ponto, destacam-se os programas de rádio e televisão e os jornais impressos que
divulgavam as reivindicações feministas. Segundo Hobsbawn nas décadas de 1970 e
1980 uma forma política e ideologicamente menos específica de consciência feminina
se espalhou entre as massas do sexo, muito além de qualquer coisa alcançada pela
primeira onda do feminismo. (HOBSBAWN, 1995, p.306) As mulheres como um grupo
se tornaram uma força política importante.
As mudanças apesar de tudo não ocorreram de forma ampla, embora tivessem
sido significativas. As mulheres se viram carregando o duplo fardo de velhas
responsabilidades domésticas e novas responsabilidades no emprego, pois as
transformações nas relações entre os sexos ou nas esferas públicas e privadas ainda não
aconteceram de forma efetiva. Contudo, essas transformações foram significativas de
acordo com Hobsbawn, e até mesmo revolucionárias, no que tange as expectativas do
mundo sobre o lugar delas na sociedade.
Nos países desenvolvidos, o feminismo de classe média, ou o movimento de
mulheres educadas ou intelectuais, alargou-se numa espécie de sensação
genérica de que chegara a hora da libertação feminina, ou pelo menos da
autoafirmação das mulheres. Isso se dava porque o feminismo específico de
classe média inicial, embora às vezes não diretamente relevante para os
interesses do resto do grupo feminino ocidental, suscitava questões que
interessavam a todas e essas questões se tornaram urgentes à medida em que
a convulsão social que esboçamos gerava uma profunda e, muitas vezes
súbita, revolução moral e cultural, uma dramática transformação das
convenções de comportamento social e pessoal. As mulheres foram cruciais
nessa revolução cultural, que girou em torno das mudanças na família
tradicional e nas atividades domésticas – e nelas encontraram expressão – de
23
que as mulheres sempre tenham sido o elemento central. (HOBSBAWN,
1995, p. 310)
O movimento feminista e as mudanças sociais do século XX introduziram na
sociedade outra forma de se ver as mulheres, o privado deixou de ser o seu lugar
natural, o discurso sobre seus avanços e suas conquistas no mercado de trabalho e sobre
força feminina foi amplamente divulgado. No século XXI, as mulheres são consideradas
sujeitos que também habitam o “espaço público”, a independência feminina enquanto
discurso se tornou uma questão mais recorrente e de certa forma normal.
No entanto, a ideia do casamento como um fundamento natural da vida feminina
e sua responsabilidade em manter o matrimônio tem sido uma continuidade em alguns
meios sendo reforçada por diversas práticas discursivas dentre elas a literatura de
autoajuda. Com esse pressuposto, o objetivo deste trabalho é analisar a referida
literatura, mais precisamente a que tem como público alvo as mulheres. Funcionando
como os manuais de aconselhamentos para moças, semelhantes àqueles do século XIX,
esta literatura promove representações femininas através de discursos que transitam
entre as antigas atribuições femininas e as novas adquiridas após a década de 1960, com
o movimento feminista. Interessa-nos analisar os discursos dessa literatura no que tange
à constituição de um modelo de mulher e à contradição existente entre as formas de
comportamento feminino, ou até mesmo a convivência de discursos diversos.
1.4 A autoajuda
A literatura de autoajuda é composta por livros que funcionam como manuais de
aconselhamento, ensinando a seus leitores como proceder diante das mais variadas
situações da vida cotidiana. “Identifica-se, por meio dela, um amplo conjunto de livros
que visa a fornecer ao leitor variadas alternativas para a solução de seus problemas, ou
para o aprimoramento de suas habilidades.” (ALVES, 2005, p. 12) Ensinam a enfrentar
uma gama de circunstâncias, como comunicar-se corretamente, emagrecer, encontrar o
equilíbrio interior, gerir a própria carreira, ter melhor desempenho sexual, educar os
filhos, ser bem sucedida nas relações afetivas, dentre outros. De acordo com Francisco
Rüdiger, “a literatura de autoajuda constitui uma das mediações através das quais as
24
pessoas comuns procuram construir um eu de maneira reflexiva, gerenciar os recursos
subjetivos e, desse modo, enfrentar os problemas colocados ao indivíduo pela
modernidade.” (RÜDIGER, 1996, p. 14)
A autoajuda, segundo alguns estudos, surgiu no século XIX, através do trabalho
do médico e publicista vitoriano Samuel Smiles, em 1859. O livro foi intitulado Self-
help, e era destinado a trabalhadores comuns que estavam em busca de melhorias de
vida, através de estudos em conjunto, onde aprendiam a ler, escrever, e noções de
química, geografia e matemática. O autor pretendia mostrar aos seus leitores, o bem que
o indivíduo pode fazer a sim mesmo, e que a busca da felicidade depende de cada um,
da disciplina na busca de seus ideais e do cumprimento do dever individual, cultivando
um bom caráter.
Neste contexto, self-help significava, essencialmente, força de vontade
aplicada ao cultivo de bons hábitos. O conceito chave não era realização ou
prazer, mas caráter. A vida bem sucedida que a doutrina da autoajuda
pregava não se baseava na satisfação individual dos desejos, mas confundia-
se com a prática do trabalho e o cumprimento dos deveres estabelecidos pela
sociedade. A felicidade individual e o sucesso, caso se queira empregar o
termo, não eram conseguir qualquer coisa na vida, mas formar um bom
caráter. (RÜDIGER, 1996, p. 34)
A noção de autoajuda estava associada a uma transformação no indivíduo para se
viver bem na sociedade. As melhorias em seu interior beneficiariam todo um conjunto
de relações sociais. Percebe-se um aspecto moral imbricado na obra do médico Samuel
Smiles, o cultivo do caráter era visto como essencial, sendo este um dos maiores valores
que um homem poderia ter. Essa forma literária foi se tornando popular e visava guiar
os indivíduos em busca de uma vida plena e digna. “Com o passar dos anos, a expressão
autoajuda foi se tornando corrente, passando a designar na virada do século, uma
verdadeira tendência de comportamento.” (RÜDIGER, 1996, p. 34)
O conteúdo moral da autoajuda transformou-se em meados do século XX em
culto do sucesso e do cuidado da personalidade. A literatura de autoajuda tornou-se um
produto da indústria cultural, “caracterizado pelo sucesso de vendagem, a dependência
aos esquemas de marketing e a repetição de fórmulas padronizadas, que suplantaram as
barreiras nacionais.” (RÜDIGER, 1996, p16) A crença no poder da mente, no cultivo de
si, tornou-se fenômeno da cultura de massas. Inserindo-se então na chamada literatura
25
de massa, uma produção literária voltada para o consumo, produzida em larga escala,
com a finalidade de agradar ao público consumidor. Arnaldo Cortina ressalta que, “as
editoras investem nesse tipo de livros porque há um mercado que demanda o produto”
(CORTINA, 2011, p.135) Esse produto literário possui muitos temas, prometendo
ajudar o leitor a resolver os mais variados problemas do seu cotidiano, e assim, cada vez
mais, aumentam as vendagens desses livros, que começam a constar nas listas de livros
mais vendidos das editoras.
A literatura de massa tem no mercado o principal agente valorativo desta
produção. Assim, estar entre os “mais vendidos”, significa não apenas um
resultado, mas uma agregação de valor e consolidação da qualidade de uma
obra para a massa, legitimada pela própria massa através do consumo.
(ARANHA, BATISTA, 2009, p.127)
A passagem da autoajuda, que valorizava aspectos morais da vida do indivíduo,
para uma literatura voltada para o consumo em massa, prometendo sucesso em diversas
áreas da vida individual, tem estreita relação com as mudanças ocorridas na sociedade a
partir da transformação desta em sociedade de consumo. Segundo Rüdiger, na medida
em que, os pontos de referência dos indivíduos deixaram de ser pautados pela religião e
pela tradição, vivencia-se uma liberdade relativamente sem limites, a partir daí os
sujeitos vão em busca de referências para guiar suas vidas. Dessa forma, a literatura
oferece auxílio, servindo como um manual de sobrevivência numa sociedade em que o
sucesso é um valor imprescindível. De acordo com Arnaldo Cortina:
Com a complexidade do sistema econômico capitalista do mundo
globalizado, a dimensão do consumo cria novos padrões de comportamento
e altera as relações sociais. O homem contemporâneo ocidental não tem mais
as certezas e o padrão de crença e de comportamento característicos do
capitalismo do início do século XX. A intensificação do consumo e a
transformação na percepção do tempo causada pelos avanços tecnológicos
levam os homens a um estado de carência e, para supri-lo, precisa buscar
outras respostas. A busca da literatura de autoajuda é uma das consequências
desse estado. (CORTINA, 2011, p. 142)
Podemos situar então a literatura de autoajuda destinada ao público feminino.
Nesse contexto, levamos em conta que a partir da segunda metade do século XX, os
padrões de comportamento feminino foram se modificando, no que diz respeito à
26
sexualidade, à maternidade ao casamento e ao trabalho por exemplo. Os livros que
explicam as diferenças entre homens e mulheres reforçam a ideia de que, na atualidade
devido às mudanças ocorridas, homens e mulheres não sabem mais quais são os seus
papéis; a busca pela igualdade entre os sexos é para eles uma das causas das desavenças
entre os casais. Defendendo as diferenças, prometem selar a paz entre os sexos. Nos
manuais de comportamento feminino, as figuras da mulher independente e da mulher
submissa se intercalam. Apesar de se dizer destinado a ambos os sexos, os livros
deixam de forma clara a intenção de ajudar as mulheres a serem bem sucedidas em suas
relações com seus parceiros, visto que, para os autores são as mulheres quem reclamam
mais dos relacionamentos.
Estudamos aqui dois tipos de livros, os que delimitam as diferenças entre homens
e mulheres, e os que ensinam as mulheres a terem sucesso com seu parceiro, nas
palavras da própria autora, ensinam as mulheres boazinhas a se tornarem mulheres
poderosas. Ambos os livros intencionam guiar pessoas que estejam perdidas em seus
relacionamentos amorosos, leitores que estejam em busca de uma identidade, ou de um
modelo a seguir.
A literatura de autoajuda caracteriza-se textualmente pelo discurso
prescritivo, tendo como principal objetivo propor regras de conduta e
fornecer conselhos. Os livros que compõem seu acervo constituem manuais
para serem empregados, e não para exporem uma doutrina; constituem textos
técnicos, que são consumidos para serem objeto de aplicação prática por
parte de seu leitor. (RÜDIGER, 1996, p. 21)
A literatura de autoajuda possui duas características principais, em primeiro lugar,
valoriza o indivíduo como agente de sua própria vida, é ele quem tem o poder de
transformar aquilo que o incomoda. Em segundo lugar, possui consonância com
padrões e estilos de vida tidos como modelos e almejados pelo público leitor. Esses
padrões podem conduzi-lo a uma situação de maior felicidade e realização pessoal. “O
objetivo é que o leitor, seguindo as prescrições oferecidas pelos autores das obras, esteja
instrumentalizado para alcançar seus objetivos.” (ALVES, 2005, p. 13) Vera Lúcia
Alves, estudando as receitas de conjugalidade na literatura de autoajuda ainda identifica
mais três características marcantes dessa literatura: “Expõe claramente o assunto
tratado; faz a promessa de um benefício, que o leitor venha acreditar que receberá;
27
relata momentos embaraçosos por que tenha passado o autor, bem como o caminho por
ele utilizado na superação dos obstáculos.” (ALVES, 2005, p. 18)
A autoajuda em geral se pretende um manual para se alcançar vários objetivos, e
para tanto se apresenta de uma forma muito simples. Os exemplares dos livros que aqui
tratamos estão disponíveis de forma muito fácil, em supermercados, perfumarias,
padarias, rodoviárias, aeroportos e em revistas de cosméticos e variedades. Os preços
são muito acessíveis, destoando da média de preços de livros no Brasil4, mas isso não
acontece por acaso, uma vez que, os livros são produzidos para um público muito vasto
e assim sendo o material que o compõe é de qualidade inferior, o que influencia para
que o preço seja acessível.
1.5 As fontes e seus recursos de legitimação
A literatura de autoajuda contribui para criar representações de diversas formas de
sujeitos ideais, construindo assim o próprio sujeito. Utilizamos nesta pesquisa como
fontes, três livros de autoajuda publicados na primeira década do século XXI e que
foram amplamente consumidos em várias partes do mundo, entre elas o Brasil. Segundo
a Editora Sextante, uma das responsáveis pela publicação destas obras no país, elas
figuram na lista dos livros mais vendidos da Revista Veja, Época, jornal O Globo e
Folha de São Paulo. 5
Os livros Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?, e Por que os
homens mentem e as mulheres choram? publicados no Brasil em 2000 e 2003
respectivamente, são dos autores Allan e Barbara Pease6, que são reconhecidos,
internacionalmente segundo o website dos próprios autores, por sua habilidade de fazer
rir ao mesmo tempo em que propõem o entendimento das diferenças entre homens e
mulheres, gerando menos conflitos e estresse e promovendo aceitação, tolerância e
harmonia entre os parceiros. Com mais de 25 milhões de livros vendidos sobre temas
como relacionamento humano e linguagem corporal, os autores vêm supostamente
ajudando pessoas do mundo inteiro a construir relações mais saudáveis e prazerosas.
4 Esses livros são encontrados em comércios variados e em revistas de variedade, e variam entre R$ 10 a
20 reais. 5 http://www.sextante.com.br/noticias/?p=3434
6Mais sobre os autores em: http://www.peaseinternational.com/
28
Suas obras já foram traduzidas para mais de 50 idiomas e estão disponíveis em 100
países.7 Os livros foram publicados originalmente na Austrália e nos Estados Unidos.
No Brasil até 2009 o primeiro já contava com mais de 800.000 cópias vendidas. Para a
escrita dessa obra, segundo os autores, eles percorreram vários países e consultaram
dezenas de cientistas sobre as diferenças entre homens e mulheres. Investigaram
conclusões das últimas pesquisas sobre o cérebro e a biologia Evolutiva, analisaram
trabalhos de psicólogos, observando as transformações sociais e entrevistaram dezenas
de pessoas.8
O outro livro que analisamos, Por que os homens amam as mulheres poderosas?
foi publicado no Brasil em 2009, é de autoria da escritora norte-americana Sherry
Argov, ela ainda é apresentadora de rádio nos Estados Unidos, onde fala sobre
relacionamentos aconselhando os ouvintes. O título original da obra é Why Men Love
Bitches. A expressão “bitch” não possui tradução literal em português, pode significar
“vacas” ou “cadelas”. Segundo a autora, essa foi uma provocação feita, já que as
mulheres independentes são assim denominadas. Evidentemente ela se refere à
realidade americana, e por isso no Brasil o título foi adaptado, assim como várias
questões do texto. A intenção da autora é transformar as mulheres “boazinhas” em
mulheres “poderosas” e ensinar as mulheres poderosas ter um relacionamento amoroso
feliz. Segundo informações da editora Sextante, Sherry Argov criou um verdadeiro
manual que vai promover uma guinada na vida amorosa das mulheres, utilizando
exemplos de histórias reais para demonstrar na prática as atitudes certas e erradas, além
de entrevistas com os homens, para que estes definam como uma mulher deve ser para
conquistá-los.9 A escritora mostra que é possível transformar-se de “capacho” para uma
mulher encantadora e cheia de magnetismo. “Não se trata de uma fórmula mágica, e sim
de um conjunto de mudanças de atitude que vão torná-la mais confiante e segura de si, e
conseqüentemente, muito mais atraente aos olhos deles.” 10
Partimos do pressuposto de que essa literatura dissemina discursos sobre mulheres
e funciona como uma prática discursiva que constitui sujeitos, além do mais definem
papéis sociais diferenciados para homens e mulheres e utilizam fortemente argumentos
7 http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=67&sid=2
8 http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=67&sid=2
9 http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4431&sid=2
10 http://www.esextante.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4431&sid=2
29
de diferenças biológicas para criar as diferenças de gênero, hierarquizando as posições
que cada um deve ocupar.
Para que as ideias desses livros tenham legitimidade, seus autores se utilizam de
alguns recursos em sua produção. O primeiro deles é o uso de pesquisas de público,
com estas eles pretendem aproximar o leitor de uma maioria de indivíduos, e dessa
forma estabelecer uma verdade sobre o comportamento de homens e mulheres. Na
introdução de um dos livros que analisaremos os autores dizem o seguinte:
“Catalogamos as 40 perguntas mais frequentes de leitores de todo o mundo e
procuramos respondê-las usando nossa experiência e bom senso” (PEASE A., PEASE
B., 2003, p. 7) assim invocam o leitor a uma leitura confiável. Sherry Argov utiliza o
mesmo recurso:
O material dos meus livros advém menos da minha opinião e mais das
informações que reuni em centenas de entrevistas com homens que sentaram
e conversaram abertamente comigo. Eles me apresentaram sua perspectiva
em relação às informações que em geral estão reservadas apenas ao sexo
masculino, a respeito do que realmente faz um homem se apaixonar e fazer
um pedido de casamento. (ARGOV, 2010, p. 20)
Nesse trecho da autora, podemos ver ainda mais uma questão importante, além de
se basear em entrevistas, ela ainda reforça que são entrevistas com homens, que ao
dizerem aquilo que gostam, enquadram o comportamento feminino em uma visão
masculina do relacionamento. No livro Por que os homens amam as mulheres
poderosas?, a autora Sherry Argov afirma, “este livro trata daquilo que os homens
nunca comentam”, dessa forma, legitima seu texto através de supostos segredos que os
homens teriam contado apenas para ela.
No intuito de dar legitimidade aos seus argumentos e estabelecer padrões de
comportamento, os livros recorrem a expressões de generalização, com isso pretendem
demonstrar que onde houver homens e mulheres, esses comportamentos são verificados,
independente de sua cultura ou dinâmica social. “Mulheres de todo o mundo têm uma
aversão especial pelo hábito masculino de ficar mudando de canal. Ao fim de um longo dia, a
mulher prefere relaxar assistindo, de preferência, a uma novela cheia de relacionamentos e
emoção.” (PEASE A., PEASE B., 2000, p.38)
Outro elemento importante a ser analisado é a forma de se referir aos sexos, na
autoajuda estes são citados como “o homem” e “a mulher”, generalizando assim o
30
masculino e o feminino como portadores de uma identidade única, a partir disso
estabelecem comportamentos para cada sexo, sem levar em conta a subjetividade de
cada pessoa.
Os testemunhos utilizados pelos autores como exemplos servem para reforçar a
ideia da universalidade do comportamento, ao citar os milhares de depoimentos
relatando os mesmos fatos, os autores acreditam chegar à totalidade do comportamento
humano. Vale ressaltar que os livros enfatizam que depoimentos são de pessoas de
todas as partes do mundo. Com essa estratégia, a universalidade se faz presente, assim
como insere essa literatura de autoajuda em um âmbito de consumo global, uma vez que
esses livros foram traduzidos para várias línguas e revendidos em vários países.
O uso da segunda pessoa do singular para se referir ao leitor é mais um recurso
que visa o sucesso dos livros de autoajuda, a escrita do texto se estabelece em forma de
diálogo, com isso tem-se a impressão de que o autor está falando diretamente para uma
pessoa, fazendo com que cada leitor se sinta único.
Outro recurso importante utilizado pela autoajuda é o discurso de autoridade,
como as pesquisas científicas, usadas para confirmar seus argumentos. Esse recurso é
mais perceptível nos livros do casal Pease, como veremos no exemplo:
Em 1997, Berte Pakkenberg, do Departamento de Neurologia do Hospital
Municipal de Copenhague, na Dinamarca, demonstrou que, em média, o
homem possui cerca de 4 bilhões a mais de neurônios que a mulher, apesar
de que, em geral, ela alcança uma pontuação cerca de 3% mais alta nos
testes de inteligência. (PEASE A., PEASE B., 2000, p.33)
Embora citem muitas vezes pesquisas científicas, os autores não passam as
referências dessas pesquisas. Não colocamos em dúvida aqui o fato de biologicamente
homens e mulheres serem diferentes, mas analisamos a forma como a autoajuda se
utiliza dessas diferenças para criar modelos de conduta e diferenças de gênero em
relações amorosas hierarquizadas.
A estética do livro também é estratégica para a eficácia de sua circulação. A capa
possui letras e desenhos divertidos, e já dá uma ideia do que o leitor vai encontrar no
conteúdo. A imagem abaixo é do livro Por que os homens fazem sexo e as mulheres
fazem amor.
31
FIGURA 1 – Capa do livro Por que os homens fazem sexo e
as mulheres fazem amor?
A capa desse livro é chamativa possui desenhos divertidos e cores vivas. Como o
título indica, para os autores, em um relacionamento os homens estão focados em sexo e
as mulheres buscam amor. A imagem que ilustra a capa do livro demonstra a mesma
ideia. O casal está em sua cama e a caixa de texto acima de suas cabeças indica aquilo
que cada um quer. O mesmo desenho é usado para representar uma nádega feminina
como desejo dos homens e um coração representando o amor, desejo das mulheres. O
segundo livro dos autores Allan e Barbara Pease chama-se Por que os homens mentem e
as mulheres choram? e sua capa também já indica o conteúdo, assim como chama a
atenção do leitor.
32
FIGURA 2 – Capa do livro Por que os homens
mentem e as mulheres choram?
Nesta imagem as caixas de texto demonstram as dúvidas de homens e mulheres
em relação ao sexo oposto. O casal representado neste livro é o mesmo do livro anterior
indicando que os autores continuam a temática. Uma das características da autoajuda é o
status que seus escritos ganham quando um livro atinge um grande número de
vendagem. Como podemos perceber nessa capa o nome dos autores ganha destaque, e o
livro Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?, serve como referência
para que o consumidor adquira mais um exemplar sobre o assunto.
Sherry Argov em seu livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? ,
busca apresentar às suas leitoras uma mulher que consegue dominar seu parceiro, sem
33
perder a feminilidade. Dessa forma a capa de seu livro faz referência a uma mulher
poderosa que deixa os homens aos seus pés.
FIGURA 3 – Capa do livro Por que os homens amam as
mulheres poderosas?
Na imagem acima os desenhos foram colocados de forma proposital para
representar as ideias da autora. A mulher é representada por uma bota de cano longo
bico e salto fino, o que demonstra ao mesmo tempo força, poder e feminilidade. A
representação da mulher aparece em tamanho maior para simbolizar que a mulher
poderosa consegue ter poder sobre seu parceiro, que aparece na imagem representada
34
por um desenho de um homenzinho com uma expressão suave e apaixonada no rosto,
além de uma flor nas mãos simbolizando seu romantismo. Essas capas com desenhos
coloridos e divertidos servem para chamar a atenção do público consumidor,
aumentando o número de vendas.
No interior dos livros assuntos são postos em tópicos, muitas vezes seguidos de
resumos em forma de máximas para que o leitor memorize. Segundo Maria Lúcia P.
Alves, nos livros de autoajuda:
Temas complexos são apresentados, de forma a se dividirem em temas
menores, com seus pontos principais sumarizados, apresentados em
sequência lógica e frequentemente repetidos. Os capítulos têm, no máximo
três páginas e, em cada uma delas, frases sintetizando a ideia do autor que,
em muitos exemplares, aparecem em negrito ou em meio a ilustrações,
recebendo destaque gráfico especial, de forma a se sobressaírem. Os
conselhos são unificados. O leitor é envolvido no texto pelas perguntas que
lhe são colocadas. Em algumas obras, ele deve responder questionários e
testes que precedem a exposição do tema. (ALVES, 2005, p. 18)
A autoajuda sentimental, aquela direcionada a resolver assuntos amorosos e de
relacionamento, como os exemplares que analisamos nesse trabalho, são em sua maioria
direcionados a mulheres. Em seu estudo do ano de 2005 Alves, buscando dados de
pesquisas de mercado sobre o perfil dos leitores brasileiros, identificou que os leitores
de autoajuda são em sua maioria mulheres. No geral “o leitor de autoajuda é aquele que
acredita ou quer acreditar em seu poder pessoal a fim de aprimorar sua condição de
vida” (ALVES, 2005, p. 23)
1.6 A constituição do sujeito
Na segunda metade do século XX, alguns autores falam em um descentramento
do sujeito. Não mais um sujeito único e universal como o sujeito do Iluminismo nascido
com um núcleo interior que o acompanhava desde o início de sua vida. O sujeito na
modernidade tardia como denomina Stuart Hall não possui um centro de coesão,
“assume várias identidades em diferentes momentos, identidades que não são unificadas
em torno de um “eu” coerente.” (HALL, 2006, p. 13)
35
Start Hall salienta que o descentramento do sujeito seria uma ruptura nos
discursos do conhecimento moderno. O primeiro descentramento considerado por este
autor está ligado às tradições do pensamento marxista, segundo o qual os homens fazem
a história, mas somente em condições que são dadas entrando em um processo que já
está em andamento. Os marxistas da década de 1960 interpretaram esta questão no
sentido de que os indivíduos não são os autores ou agentes da história, eles podiam agir
sob as bases históricas que já foram alicerçadas por seus antecessores e sob as quais eles
nasceram, “utilizando os recursos materiais que lhes foram fornecidos por gerações
anteriores”. (HALL, 2006, p. 34) Essa abordagem abalou a ideia de essência universal
de homem.
A descoberta do inconsciente por Freud segundo Hall foi o segundo
descentramento. De acordo com esta visão a identidade do sujeito é formada em sua
interação com os outros e não adquirida desde o nascimento de forma permanente,
assim vai contra a ideia cartesiana de sujeito racional provido de uma identidade fixa e
unificada.
Assim a identidade é realmente algo formado ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado
sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, sempre “em processo”
sempre “sendo formada”. (HALL, 2006, p. 38)
Sausurre através de seus estudos sobre a linguagem é citado como o terceiro
descentramento para Stuart Hall. Nesta perspectiva os indivíduos não são autores do que
dizem, suas afirmações estão envoltas por uma rede de significados, a linguagem não é
um sistema individual, ela preexiste a nós.
Nossas afirmações são baseadas em proposições e premissas das quais nós
não temos consciência, mas que são, por assim dizer, conduzidas na corrente
sanguínea de nossa língua. Tudo o que dizemos tem um “antes” e um “
depois” – uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. (HALL,
2006, p. 41)
Todas essas perspectivas teóricas constituem para Hall a discussão sobre o
descentramento do sujeito, refutam a ideia de um “eu” unificado, racional que não se
36
modifica desde o seu nascimento. Delineiam um sujeito formado através de inúmeras
intervenções sociais constituindo ao longo do tempo sua forma de pensar, de falar e de
relacionar com o mundo. O descentramento principal da identidade do sujeito seria
então, segundo este autor, como o sugerido por Michel Foucault, pensador que produziu
uma genealogia do sujeito moderno.
Michel Foucault é considerado o pensador mais importante dos estudos da
constituição do sujeito, “identificou o sujeito com algo que é fruto das relações de poder
e saber.” (MAIA, JARDIM, 2004, p. 82) Segundo Foucault o sujeito é atravessado por
práticas discursivas que o enquadra, fundado em um modelo desejável de sujeito.
As práticas discursivas instituem saberes e não podem ser vistas
independentes das práticas políticas e sociais. O sujeito é envolvido nessas
relações e é cortado pelos enunciados, surgindo enquanto objeto no dado
instante de sua enunciação. É quando a formação discursiva se consolida, se
agrupa em saberes a respeito de algo, para posteriormente, fundá-lo. (MAIA,
JARDIM, 2004, p. 82)
O poder na concepção foucaultiana não é uma coisa em si, não é um objeto
natural, são práticas sociais constituídas historicamente. Portanto o que é passível de
estudo são as relações de poder disseminadas por toda a estrutura social. Os exercícios
do poder se dão através de discursos que atravessam a vida dos indivíduos, enunciados
que criam efeitos de verdade e que acabam sendo naturalizados socialmente. Assim, o
objetivo do poder é controlar as ações humanas, guiando a vida dos homens, com vistas
a sua máxima utilização.
O poder possui uma positividade, visto que toda relação de poder produz um
saber. As relações de poder produzidas através de discursos estão presentes em todas as
relações sociais. Segundo Foucault:
As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele
que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na
sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte,
relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo.
(FOUCAULT, 2006, p.231)
37
Os indivíduos, portanto, estão sujeitos a uma maquinaria que os enquadra e
determina suas posições. A cada passo que se dá entra-se em uma nova relação de
poder. Na vida profissional, na família, nas relações amorosas. São disciplinados a agir
de um determinado jeito, cada tomada de decisão está submetida a uma teia complexa
de esquadrinhamento com vistas ao assujeitamento. Tratamos a literatura de autoajuda
como uma prática discursiva investida de saberes diversos, que ao ser consumida
penetra na vida dos leitores influenciando seus comportamentos e os constituindo
enquanto sujeitos femininos ou masculinos.
O feminismo é considerado por Hall o quinto descentramento, que propôs não só
uma crítica teórica, como também foi um movimento social de grande relevância.
O feminismo faz parte daquele grupo de “novos movimentos sociais”, que
emergiram durante os anos sessenta (o grande marco da modernidade tardia),
juntamente com as revoltas estudantis, os movimentos juvenis
contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos civis, os movimentos
revolucionários do “Terceiro Mundo”, os movimentos pela paz e tudo aquilo
que está associado com ‘1968’. (HALL, 2006, p. 44)
A relação desse movimento com o descentramento do sujeito se deu através de
vários questionamentos feitos por ele, como a distinção entre o “público” e o “privado”,
sendo essas esferas diferenciadas e fixas para homens e mulheres respectivamente.
Além disso o feminismo colocou no jogo das discussões áreas novas da vida social,
como a família, a sexualidade, o trabalho doméstico e sua divisão e o cuidado com as
crianças. “Ele também enfatizou, como uma questão política e social, o tema da forma
como somos formados e produzidos como sujeitos generificados. Isto é, politizou a
subjetividade, a identidade e processo de identificação (como homens/mulheres,
mães/pais, filhos/filhas). (HALL, 2006, p. 45) Assim este movimento contribui para a
noção de descentramento e constituição do sujeito, de forma significativa.
1.7 Estudos sobre as construções de gênero
A noção de sujeito constituído contribuiu para o desenvolvimento da
epistemologia feminista, na medida em que os historiadores procuravam compreender
38
as maneiras pelas quais as identidades de gênero são historicamente construídas e
constituintes do sujeito através das práticas discursivas. Segundo Margareth Rago, as
mulheres não poderiam mais ser pensadas “como uma essência biológica pré-
determinada, anterior à História, mas como uma identidade construída social e
culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinares e pelos
discursos/saberes instituintes.” (RAGO, 1998, p. 27) Esta noção é cara a este trabalho
na medida em que consideramos a autoajuda como uma prática discursiva que constrói
identidades de gênero para mulheres e homens. Assim como o “gênero” tem sido um
conceito chave para a história, quando esta trabalha investigando as formas pelas quais
as mulheres foram produzidas enquanto sujeito.
Assim as características ditas como masculinas e femininas são construídas
através de discursos que atravessam toda a vida do indivíduo, ajustando-o às normas
vigentes e aceitáveis socialmente. Esses discursos podem ser políticos, pedagógicos,
religiosos, midiáticos, entre outros, todos fazendo parte de uma mesma rede de
significação.
O texto da historiadora Joan Scott, professora de Ciências Sociais no Instituto de
Estudos Avançados de Princeton, historiadora militante feminista norte americana,
intitulado: “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”, publicado em 1986,
traduzido e divulgado no Brasil em 1990, se tornou um texto clássico para desvendar a
relação entre gênero e conhecimento histórico. Scott defende o gênero como categoria
analítica para entender como as diferenças socialmente construídas para os sexos
funcionam nas relações sociais humanas e como o gênero dá sentido à organização e a
percepção do conhecimento histórico. (SCOTT, 1990, p. 74) Para esta autora o uso do
termo gênero implica o reconhecimento político desse campo de pesquisa.
Nessas circunstâncias, o uso do termo “gênero” visa sugerir a erudição e a
seriedade de um trabalho, pois “gênero” tem uma conotação mais objetiva e
neutra do que “mulheres”. “Gênero” parece se ajustar à terminologia
científica das ciências sociais, dissociando-se assim da política ruidosa do
feminismo. (SCOTT, 1990, p. 75)
Assim, a historiadora defende o gênero como uma ferramenta teórica e política.
Enquanto a História das Mulheres buscava alçar as mulheres enquanto sujeitos
39
históricos, o gênero trata das mulheres sem lhes nomear (SCOTT, 1990, 75). É então,
uma busca de legitimidade acadêmica, uma vez que a História das mulheres levantava
uma bandeira de cunho político e militante mais acentuado, sofria então críticas e
preconceitos principalmente no que diz respeito à objetividade científica da pesquisa. O
termo gênero é usado de forma relacional, ao se estudar as mulheres, consequentemente
está se estudando também os homens, já que o mundo feminino faz parte do masculino.
Afasta dessa forma a ideia de esferas separadas, como se cada sexo vivenciasse suas
experiências independente do outro, “o termo gênero também é utilizado para designar
as relações sociais entre os sexos.” (SCOTT, 1990, p. 75)
O uso do conceito de gênero rejeita qualquer explicação biológica que determine
as diferenças e justificam a subordinação feminina pela sua inferioridade física. As
diferenças entre os sexos são construções culturais que determinam os papéis adequados
para homens e mulheres.
Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das
identidades subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é segundo esta
definição uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a
proliferação dos estudos sobre o sexo e sexualidade, “gênero” tornou-se uma
palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática
sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens. (SCOTT,
1990, p. 75)
Para Scott, desvendar os sistemas de significado que concedem hierarquias sociais
para homens e mulheres, os modos pelos quais as sociedades representam o gênero, faz
parte de trabalhar com um processo de significação construído na sociedade. A
identidade generificada é construída através da linguagem. No entanto, o que se entende
por masculino e feminino em uma sociedade não é uma ideia fixa, posto que, depende
das suas utilizações contextuais. O sujeito então é constituído como homem ou como
mulher através de práticas discursivas e sistemas de significação que o assujeitam
durante toda a sua vida. Na autoajuda as prescrições dos autores para seus leitores
definem o que seria o comportamento ideal para cada sexo, e o entendimento das
diferenças é que traria a harmonia para os relacionamentos. Esses livros constroem
identidades generificadas como podemos verificar por este trecho do livro Por que os
homens amam as mulheres poderosas.
40
A mulher poderosa está disponível algumas vezes, mas outras não. Porém
ela é amável o suficiente para levar em consideração as preferências do
namorado quanto ao dia em que ele gostaria de vê-la, de forma que ela
possa, às vezes, adaptar seus planos aos desejos dele. A conseqüência disso?
Um relacionamento em que ninguém domina ninguém. (ARGOV, 2009, p.
14)
A autora Sherry Argov define o comportamento ideal para que uma mulher seja
poderosa, vemos o discurso trabalhando através de características de gênero muito
definidas para as mulheres, como amável por exemplo. A mulher ideal de Sherry Argov
deve se fazer de difícil, mas estar disposta a mudar de ideia e adaptar sua vida a vida de
seu parceiro, tudo isso em prol do desejo máximo da vida feminina segundo os
discursos sociais construtores de representações femininas: um excelente
relacionamento.
A dicotomia masculino e feminino é constante nas análises e na compreensão das
sociedades, homens e mulheres são entendidos como polos opostos que se relacionam
dentro de uma lógica de dominação e submissão. Para Scott é necessária uma “rejeição
do caráter fixo e permanente da oposição binária, de uma historicização e de uma
desconstrução genuína dos termos da diferença sexual.” (SCOTT, 1990, p. 84)
A desconstrução (...) faz perceber que a oposição é construída e não inerente
e fixa. A desconstrução sugere que se busquem os processos e as condições
que se estabelecem os termos da polaridade. Supõe que se historicize a
polaridade e a hierarquia nela implícita. (LOURO, 2001, p. 32)
Mulheres e homens não estão em posições fixas em pólos opostos, o trabalho da
desconstrução revela até mesmo que ambos os sexos não possuem identidades fixas. A
hierarquia entre um pólo dominado e outro dominante, sendo respectivamente o
masculino e o feminino, como uma via de mão única deve ser perturbada, pois a noção
do poder se exercendo de um só lado cria a ideia de mulheres vítimas e estáticas. Em
dois exemplares de livros de autoajuda que analisamos os pólos opostos já aparecem em
seus títulos, Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? e Por que os
homens mentem e as mulheres choram?. Os homens são citados em primeiro nos dois
títulos, sinalizando que os homens são a referência e as mulheres são a diferença deles.
Nesta pesquisa, buscamos demonstrar o trabalho discursivo da autoajuda ao construir
posições opostas e hierarquizadas para homens e mulheres.
41
A história do movimento feminista é marcada pela negação das hierarquias e das
polarizações entre o masculino e o feminino, trabalhando assim pela desnaturalização da
condição de cada sexo. Os/as historiadores/as feministas estão agora bem
posicionados/as para teorizar suas práticas e para desenvolver o gênero como uma
categoria analítica.
1.8 Gênero como categoria analítica
As preocupações das teóricas feministas com os estudos de gênero concentravam-
se na formulação de uma categoria que servisse para elucidar os processos pelos quais
homens e mulheres eram colocados em uma hierarquia.
O termo gênero faz parte da tentativa empreendida pelas feministas
contemporâneas para reivindicar um certo terreno de definição, para
sublinhar a incapacidade das teorias existentes para explicar as persistentes
desigualdades entre as mulheres e os homens. (SCOTT, 1990, p. 85)
A proposta dessa categoria de análise buscava ainda superar o caráter
essencialmente descritivo e interpretativo dos primeiros estudos sobre as mulheres
(História das Mulheres) que evitavam colocar e resolver problemas analíticos. A
concepção de gênero de Scott repousa em duas proposições: “(1) O gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significação às relações de poder.”
(SCOTT, 1990, p. 86) Ou seja, gênero é um primeiro campo, através do qual o poder é
articulado. Scott chama a atenção para a necessidade de se historicizar o gênero como
meio de desconstruir o próprio conceito. Segundo ela, “os homens e as mulheres reais
não cumprem os termos das prescrições de sua sociedade ou de nossas categorias de
análise”. Assim, ao se empreender a pesquisa, deve-se antes de tudo, “examinar as
maneiras pelas quais as identidades de gênero são realmente construídas e relacionar
seus achados com toda uma série de atividades de organizações e representações
historicamente situadas.” (SCOTT, 1990, p. 15)
Para Scott, quatro elementos intercalados constituem as relações sociais baseadas
nas diferenças percebidas entre os sexos. Em primeiro lugar estão os símbolos
42
culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas, a autora cita a
imagem de Eva e Maria como símbolos que carregam o significado de comportamento
feminino reprovável e aceitável. O segundo elemento se compõe de conceitos
normativos que expressam interpretações dos significados dos símbolos, que tentam
limitar e conter suas possibilidades metafóricas.
Esses conceitos estão expressos nas doutrinas religiosas, educativas,
científicas, políticas ou jurídicas e tomam a forma típica de uma posição
binária fixa, que afirma de maneira categórica e inequívoca o significado do
homem e da mulher, do masculino e do feminino. (SCOTT, 1990, p. 86)
Assim, são determinados os comportamentos de cada sexo, comportamentos que
são naturalizados através de várias práticas discursivas institucionalizadas. Para a
historiadora é necessário explodir essa noção binária de dominação, de fixidez, de
naturalização, de desvendar como essas representações são construídas como
evidências, e nesse ponto se encontra o terceiro elemento da análise, deve-se incluir
uma concepção de política bem como uma referência às instituições e a organização
social. As desigualdades de gênero são construídas em vários meios sociais e não estão
restritas as relações de parentesco. O mercado de trabalho sexualmente segregado, as
divisões masculinas e femininas, as instituições educativas definindo o que é útil se
ensinar a cada sexo, no meio político, o sufrágio universal masculino, todos esses
fatores fazem parte do processo de construção do gênero.
O quarto aspecto do gênero para Scott é a identidade subjetiva. Aqui a autora se
refere às formas pelas quais as pessoas realmente se representam através das identidades
generificadas. Os livros que analisamos nesta pesquisa definem de forma hierarquizada
a forma como cada sexo deve agir, constroem as diferenças de gênero utilizando
discursos de autoridade, citando cientistas, médicos, psicólogos, antropólogos e vários
campos do saber que podem legitimar seus argumentos.
Partindo desse raciocínio, inferimos que as identidades de gênero são construídas
historicamente e constituem o sujeito que passa a se identificar como masculino e
feminino. Essas identidades não são fixas, estão em permanente construção, são
múltiplas convivendo muitas vezes contraditoriamente em um mesmo sujeito. Ao se
adequarem às representações de gênero disponíveis na sociedades os indivíduos também
43
se autorrepresentam. As representações são absorvidas subjetivamente por cada pessoa
a quem se dirige. Teresa de Lauretis aponta questões fundamentais para se entender
esses processos de representações de gênero. Segundo essa autora gênero é uma
representação, “o sistema sexo-gênero é tanto uma construção sócio-cultural quanto um
aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado a indivíduos
dentro da sociedade. (de LAURETIS, 1994, p.212) Dessa forma, as características,
comportamentos e atitudes atribuídos a homens e mulheres são construções sociais.
Para Teresa de Lauretis, a construção do gênero é o produto e o processo tanto da
representação quanto da auto representação. (de LAURETIS, 1994, p.217) A forma
como se representa o gênero é sua construção.
A construção do gênero se faz segundo Lauretis através de tecnologias de gênero
e discursos institucionais. Esses meios produzem representações de gênero e podem
controlar o campo do significado social. Entendemos então que a construção do gênero
se faz através de práticas discursivas que estabelecem o real.
Guacira Lopes Louro também disserta sobre as identidades de gênero. Segundo
essa autora, as identidades de gênero identificam os sujeitos social e historicamente
como sendo masculinos ou femininos. Dessa forma, os sujeitos, identificando-se como
masculinos ou femininos a partir de suas identidades de gênero, possuem formas
específicas de vivenciar suas identidades. A pretensão então é entender o gênero como
constituinte da identidade do sujeito. Guacira Louro, fazendo também uma leitura de
Stuart Hall, compreende as identidades como estando constantemente sendo formadas, e
o sujeito é empurrado em diferentes direções.
Ao afirmar que o gênero institui a identidade do sujeito (assim como a
etnia, a classe, ou a nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir,
portanto a algo que transcende o mero desempenho de papéis, a ideia
é perceber o gênero fazendo parte do sujeito, constituindo-o (LOURO,
2001, 25)
O gênero é, portanto, uma identidade que também constitui o sujeito, faz parte do
“eu” de cada um. E essa identidade, assim como as outras que constituem o sujeito, está
sempre se formando e reformulando de acordo com a direção e o momento da vida em
que é empurrado.
44
Vários elementos contribuem nessa dinâmica das identidades, “as diferentes instituições
e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são também constituintes dos gêneros.
Essas práticas e instituições ‘fabricam os sujeitos’”, (LOURO, 2001, 25) sendo assim,
pode-se entender a literatura de autoajuda como uma prática que institui um sujeito de
um tipo, oferece identidades para seus leitores e essas identidades não necessariamente
estão de acordo com todas as outras assumidas pelo indivíduo. Nos livros podemos
perceber a representação de mulheres enquanto mães, profissionais, donas de casa, e
amantes. Quatro identidades que ao longo da história relacionam as mulheres ao
cuidado com o outro, ao mercado de trabalho, aos afazeres domésticos e à sexualidade.
Na literatura de autoajuda uma mulher de verdade precisa desempenhar todos esses
papéis, como podemos ver pela afirmação da autora Sherry Argov: “O que a mulher
boazinha precisa saber é que, mesmo que ela faça o maior esforço para ser uma dona de
casa exemplar, o homem sempre vai querer uma prostituta na cama.” (ARGOV, 2009,
p. 39)
1.9 Análise do discurso
Ao longo do tempo, portanto, vários foram os mecanismos discursivos
direcionados às mulheres, como demonstrado aqui. No século XIX, romances, revistas e
jornais foram utilizados para ensiná-las a serem “verdadeiras damas”. Neste início de
século percebe-se a autoajuda como um mecanismo similar, que seguindo os rastros
históricos da subjetivação feminina, se apresenta como manuais de aconselhamento que
podem proporcionar às mulheres relacionamentos felizes e duradouros. Buscamos
através desses livros de autoajuda inverter as evidências de um discurso que se pretende
uma ferramenta para o bem estar feminino em tempos de revolução feminina, em que as
mulheres não mais são consideradas apenas esposas e mães por excelência, mas
conquistaram espaço na vida pública, e o movimento feminista se tornou um dos
grandes marcos na história das mulheres. Questionamo-nos a que veio essa literatura?
De que forma ela pretende constituir um novo “ser” mulher, moderno e moldado pelos
valores libertários da atualidade? Analisamos os livros de autoajuda como um
documento histórico que pode ser abordado pelo princípio da inversão das evidências de
Michel Foucault que busca nos discursos
45
(...) procurar cercar as formas da exclusão, da limitação, da apropriação (...)
mostrar como se formaram (os discursos), para responder a que
necessidades, como se modificaram e deslocaram, que força exerceram
efetivamente, em que medida foram contornadas.” (FOUCAULT, 1996, p.
60)
Os trabalhos de Michel Foucault contribuíram para uma modificação na forma de
abordagem dos documentos, não mais tomando estes como representantes fiéis da
realidade ou da verdade. Foucault desmistificou a razão unívoca do documento, sua
onipotência diante dos fatos. “A noção de arqueologia de Foucault traz uma profunda
transformação para a história ao modificar a maneira pela qual era visto o documento.”
(PIMENTEL, 2004, p. 18) A partir das proposições desse autor é possível interrogar o
documento em sua materialidade discursiva.
A história mudou a sua posição acerca do documento: ela considera como
sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade, nem
qual é o seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo:
ela organiza, recorta, distribui em séries, distingue o que é pertinente do que
não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações.
(FOUCAULT, 2005, p. 7)
A análise do documento leva em conta as condições em que foi produzido, sua
finalidade, suas características, os sentidos emanados das suas camadas de
interpretação. Segundo Cláudia Maia:
O documento deve ser pensado em sua materialidade, não como memória ou
reflexo do acontecimento, mas como outro acontecimento: não aquilo que
me permite reconstruir o acontecimento do passado em sua totalidade, mas
como práticas discursivas que produzem objetos históricos. É o tratamento
dos documentos que os torna acontecimentos. (MAIA, 2011, p.48)
Busca-se elucidar dessa forma as produções de verdades através das quais são
regidas as práticas cotidianas; como essas verdades são produzidas, consolidadas num
jogo de forças que possuem determinado interesse, determinado fundamento. Buscamos
entender aqui, através dos documentos selecionados, as produções discursivas sobre as
mulheres no período que abarca os anos entre 2000 e 2010. Compreender a relação do
46
discurso da autoajuda com outros discursos sobre as mulheres ao longo da história,
levando em conta as modificações por que passaram a partir do ponto alto do
movimento feminista na década de 1960. Buscamos inverter as evidências de um
discurso que determina as atitudes necessárias para se tornar uma mulher ideal e feliz
em seu relacionamento. Entender em que matrizes de sentido essa literatura se apóia
para construir relações de gênero, e instituir representações das mulheres como
detentoras de poder sobre suas vidas, mas igualmente subordinadas a regras de
comportamento alicerçadas em valores patriarcais. Essa carga semântica que o
documento carrega é um dado cultural e é constituída por cada sociedade de acordo com
as condições históricas. Segundo Foucault:
Por mais que o livro se apresente como um objeto que se tem na mão, por
mais que ele se reduza ao pequeno paralelepípedo que o encerra, sua unidade
é variável e relativa. Assim que a questionamos ela perde sua evidência; não
se indica a si mesma, só se constrói a partir de um campo complexo de
discursos. (FOUCAULT, 2005, p. 26)
Os discursos produzidos pela literatura de autoajuda aqui analisada só se
sustentam em relação a outros discursos em trânsito pelo corpo social. São discursos
que instituem modelos de comportamento para as mulheres consumidoras de suas
ideias, que se utilizam destes aconselhamentos para guiar sua conduta em busca de
melhores formas de vida e relacionamentos supostamente mais saudáveis. Dessa forma,
entendemos a autoajuda como uma prática discursiva que constrói o real. As práticas
discursivas são “a linguagem em ação, isto é, maneiras a partir das quais as pessoas
produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas.” (MAIA, 2011, p.
57)
Para esta abordagem recorremos aos princípios e procedimentos da Análise do
Discurso que se tornou uma ferramenta teórica e metodológica de grande utilidade para
historiadores. A análise do discurso procura compreender como a língua gera sentidos
em confluência com o trabalho simbólico e com a história. A análise do discurso então
visa compreender, segundo Eni Orlandi, como objetos simbólicos produzem sentido.
A Análise do discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus
limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação.
47
Também não procura um sentido verdadeiro através de uma chave de
interpretação. Não há esta chave, há método, há construção de um
dispositivo teórico. Não há uma verdade oculta atrás do texto. Há
gestos de interpretação que a constituem e que o analista com seu
dispositivo, deve ser capaz de compreender. (ORLANDI, 1999, p. 26)
As palavras inscritas nos textos ou nas falas orais são, através desta abordagem,
retiradas de sua aparente fixidez, destituídas de uma ingenuidade despretensiosa, uma
vez que, são carregadas de sentidos estabelecendo formas de ver e de representar o
mundo. A AD11
está associada à ideia do sujeito descentrado, este é, o tempo todo,
constituído e atravessado pelo movimento da linguagem, não tem acesso aos
significados múltiplos do que diz, o “sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado
pelo real e pela língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o
modo como elas o afetam.” (ORLANDI, 1999, p. 19) Cada palavra utilizada no dia a
dia dos sujeitos já chega carregada de significados que eles não sabem ao certo como
foram construídos.
O discurso funciona em um complexo processo de constituição de sujeitos e de
produção de sentidos. Assim, a subjetivação se efetiva através de discursos que se
movimentam na sociedade e que vão ganhando significância para os indivíduos. As
práticas de subjetivação feminina funcionam através de vários mecanismos, e ao longo
do tempo, construíram imagens e representações que determinaram “verdades” sobre as
mulheres. Segundo Michel Foucault, a verdade é uma “espécie de erro que tem a seu
favor o fato de não poder ser refutada, sem dúvida porque o longo cozimento da história
a tornou inalterável.” (FOUCAULT, 1979, p. 19)
Pretendemos, dessa forma, recortar superfícies discursivas nos livros de autoajuda
utilizados como fonte de pesquisa para extrair dessas superfícies os sentidos produzidos
acerca da condição das mulheres no início do século XXI. Não buscamos a origem
desse discurso, pois a busca da origem não é objetivo da análise, segundo Foucault “não
é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem, é preciso tratá-la no jogo
de sua instância.” (FOUCAULT, 2005, p. 28) O que é importante para a análise é a
emergência do discurso, suas condições de possibilidades.
11
AD se refere à abreviação de Análise do discurso, para facilitar a leitura do texto.
48
Os discursos devem ser entendidos em suas condições de produção, ou seja,
na situação circunstância em que emerge num enunciado, o que se faz uma
enunciação. As palavras significam pela língua e pela história. Assim o dito
está sempre constituído pelos já ditos; (...) (MAIA, 2011, p. 58)
Aquilo que a autoajuda determina como comportamento feminino, a ênfase dada
ao casamento como fundamento da vida das mulheres, o trabalho doméstico como
atribuição natural biologicamente determinado para o feminino está associado a
discursos que instituem essa mulher real em várias instâncias de enunciação. Segundo
os autores Allan e Barbara Pease “homens e mulheres evoluíram de modos diferentes
porque tinha de ser assim. Os homens caçavam, as mulheres ficavam com o grupo. Os
homens protegiam, as mulheres cuidavam.” (PEASE,PEASE, 2000, p.10) Os discursos
que determinam os homens como os provedores do lar e as mulheres como donas de
casa estão presentes em variados meios discursivos, dessa forma a afirmação feita nesse
livro de autoajuda está ligado a outros discursos de circulam na sociedade. Os sentidos
produzidos pelos discursos estão ancorados nos já-ditos, necessitando-se do trabalho do
pesquisador para identificar essas relações.
Supõe-se assim que tudo o que o discurso formula já se encontra articulado
nesse meio silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente
sob ele, mas que lhe recobre e faz calar. O discurso manifesto não passaria
afinal de contas, da presença repressiva do que ele diz; e esse não dito seria
um vazio minando, do interior tudo o que se diz. (FOUCAULT, 2005, p. 28)
O primeiro procedimento do pesquisador frente ao documento deve ser a
transformação da superfície linguística em um objeto discursivo, assim se delineia a
questão posta pelo trabalho e que orientará a análise das fontes. Nesse ínterim Eni
Orlandi destaca duas ferramentas para a análise: o dispositivo teórico e o dispositivo
analítico. O primeiro se refere aos princípios gerais da AD enquanto forma de
conhecimento em seus conceitos e métodos. O dispositivo analítico é o questionamento
do analista, aquilo que ele formula para desencadear a análise. “O que define a forma do
dispositivo analítico é a questão posta pelo analista, a natureza do material que analisa e
a finalidade da análise” (ORLANDI, 1999, p. 27) A partir disso mobiliza-se os
conceitos que fundamentarão a pesquisa. Neste trabalho o dispositivo teórico utilizado,
49
como salienta a autora, está baseado aos princípios da AD, sobretudo no que diz
respeito aos conceitos de memória discursiva e formação discursiva. O dispositivo
teórico abrange os estudos de gênero, buscando compreender como a autoajuda constrói
comportamentos ideais para homens e mulheres.
As condições de produção do discurso demonstram o seu funcionamento, se
referem aos sujeitos, à situação e ao contexto sócio-histórico em que é produzido.
Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito, e temos as
circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as consideramos
em sentido mais amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-
histórico, ideológico. (ORLANDI, 1999, p.30)
Um discurso está sempre em relação a outros discursos, se apóia em outros que o
sustentam, está sempre em processo de funcionamento e não se esgota em uma única
interpretação. As palavras possuem significados pela língua e pela história, possuem
uma memória que é ativada no momento de sua pronunciação. Esta é a memória
discursiva, também denominada interdiscurso:
Este é definido como aquilo que fala antes em outro lugar, independente, ou
seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna
possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que
está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma
situação discursiva dada. (ORLANDI, 1999, p. 31)
Quando o individuo fala, ele tem a ilusão de ser a origem daquela ideia, no
entanto esta está situada em uma rede de significação anterior a ele, e a qual ele não tem
acesso imediato. O esquecimento segundo Orlandi é o que faz com que essa situação
seja possível, ele é parte da constituição dos sujeitos e dos sentidos. Se todo o sentido já
estivesse óbvio e determinado não haveria a necessidade de dizer, mas pelo
esquecimento o sujeito fala e pode constituir novos sentidos. “Os sentidos se realizam
em nós, eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na
história e é por isto que significam e não pela nossa vontade.” (ORLANDI, 1999, p. 36)
A história assim determina a significação das palavras. O interdiscurso é um conjunto
50
de formulações já realizadas que são esquecidas e que se manifestam determinando
aquilo que é dito. A memória discursiva é assim a historicidade do discurso.
Os discursos funcionam relacionados a outros discursos, configurando assim
relações de sentido nas quais um dizer aponta para outro que o sustenta, assim como
para aquilo que ainda será dito. As fontes aqui estudadas propagam discursos que se
ancoram em outros tantos. Como demonstrado anteriormente, desde o século XIX já se
produzia manuais de aconselhamento para mulheres nos quais o romance e a
sensibilidade feminina, por exemplo, já eram características naturalizadas e
constituintes da mulher ideal.
Os sentidos se agrupam em regularidades discursivas que, segundo Foucault, são
“uma ordem em seu aparecimento sucessivo, correlações em sua simultaneidade,
posições assimiláveis em um espaço comum, funcionamento recíproco, transformações
ligadas e hierarquizadas.” (FOUCAULT, 2005, p. 42) As palavras se significam através
de relações constituídas em formações discursivas específicas, como define este autor:
No caso em que se puder descrever entre um certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso em que os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva. (FOUCAULT, 2005, p. 42)
A literatura de autoajuda se insere em uma formação discursiva que carrega em si
marcas do patriarcalismo, as proposições dos autores que analisamos aqui estão de
acordo com uma série de discursos sociais que definem esferas separadas para homens e
mulheres na sociedade. Além de cada sexo ocupar um lugar específico, esses lugares
são posições hierarquizadas, tendo os homens como seus principais agentes e as
mulheres como seguidoras deles; o mundo feminino gira em torno do masculino
estando as mulheres em constante posição de submissão.
A análise de discurso busca nos documentos superfícies discursivas, matrizes de
sentido e significações possíveis. Desse modo todo discurso não existe em si, ele faz
parte de uma posição sócio-histórica em que as palavras são produzidas.
As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um
discurso. E todo discurso se delineia na relação com outros: dizeres
51
presentes e dizeres que se alojam na memória. As formações discursivas
podem ser vistas como regionalizações do interdiscurso, configurações
específicas dos discursos em suas relações. O interdiscurso disponibiliza
dizeres, determinando, pelo já-dito, aquilo que constitui uma formação
discursiva em relação a outra. Dizer que a palavra significa em relação a
outras, é afirmar essa articulação de formações discursivas dominadas pelo
interdiscurso em sua objetividade material contraditória. (ORLANDI, 1999,
p. 43)
O enunciado, objeto de análise do pesquisador, deve ser interrogado em sua
relação com uma formação discursiva para compreender o sentido que ali está. É pelas
formações discursivas que se identificam os sentidos das palavras, uma vez que, uma
mesma palavra pode significar de forma diferente em formações discursivas diversas.
Quando existe uma coerência, uma regularidade de sentidos em torno de uma
representação, identifica-se uma formação discursiva. Quando nos livros de autoajuda
vemos afirmações como esta “O cérebro feminino é programado para nutrir, cuidar e
criar os filhos. Por isso, as mulheres vivem recolhendo as coisas que eles deixam pela
casa, preparam seus pratos favoritos, lhes dão dinheiro e os protegem das agruras da
vida.” (PEASE E PEASE, 2003, p. 51) Identificamos uma formação discursiva que
relaciona as mulheres à maternidade, não apenas no sentido de que possuem a
capacidade de gerar outro indivíduo, mas no sentido de que o cuidado com os filhos é
responsabilidade única da mãe, além do fato de que a maternidade aparece nesse sentido
como um destino inevitável para as mulheres, uma obrigação, não uma escolha.
As evidências dos sentidos que circulam na sociedade impedem que vejamos a
historicidade de sua construção. A constituição dos sujeitos se dá através da
interpelação que o inscreve em uma formação discursiva.
Atravessado pela língua e pela historia, sob o modo do imaginário, o sujeito
só tem acesso a parte do que diz. Ele é materialmente dividido desde a sua
constituição: ele é sujeito de e sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história,
pois para se constituir, para se produzir sentidos ele é afetado por elas. Ele é
assim determinado, pois se não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se ele
não se submeter à língua e à história ele não se constitui, ele não fala, não
produz sentidos. (ORLANDI, 1999, p. 49)
Pela análise das condições de produção dos discursos, percebemos que estes
possuem relações com outros tantos, evocando memórias ou interdiscursos que são
agrupados em uma formação discursiva que englobam o sujeito. Este é assujeitado, mas
52
ocupa um lugar de fala, uma posição para o que diz fazer sentido. A posição que o
sujeito ocupa é constitutiva do que ele diz, aí temos em questão a imagem que ele faz
dele, e a imagem que os outros têm dele. Não se trata aqui da posição real do sujeito,
mas de uma projeção imaginária dessa posição. Isso configura as relações de força, o
lugar a partir do qual fala o sujeito é determinante do que ele diz. “Não são os sujeitos
físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na
sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso,
mas suas imagens que resultam de projeções.” (ORLANDI, 1999, p.42) Inferimos disso
que os livros de autoajuda estão carregados de sentidos e se utilizam de estratégias para
reforçar seus argumentos. Citam, a todo momento, médicos, psicólogos, etnólogos e
vários campos da ciência para legitimar aquilo que dizem, recobrindo assim o texto de
discursos de autoridade. Os leitores acreditam nas proposições dos manuais por se
basearem no discurso científico, que é, desde há muito tempo, considerado um discurso
de “verdade.” Na capa do livro Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem
amor?, encontramos os seguinte dizeres: “Uma visão científica (e bem humorada) das
nossas diferenças.” O termo “científico” serve para dar credibilidade ao discurso,
percebemos que a expressão “bem humorada” aparece entre parênteses, na intenção de
que o caráter supostamente científico do livro é que apareça em destaque.
Para análise deste trabalho selecionamos três livros de autoajuda tratados como
um documento histórico que produz efeitos de sentidos sobre mulheres na primeira
década do século XXI, invocando interdiscursos, memórias discursivas que visam
constituir novas/velhas mulheres. Este corpus foi selecionado por fazer parte de uma
gama de discursos que pretendem assujeitar as mulheres a uma específica forma de
comportamento. Ainda de acordo com Eni Orlandi, diante de um texto - que seria a
unidade que o analista tem à sua frente - o analista/pesquisador o remete imediatamente
a um discurso, que por sua vez, se explicita em suas regularidades pela sua referência a
uma ou outra formação discursiva que ganha sentido porque deriva de um jogo definido
pela formação ideológica dominante naquela conjuntura. (ORLANDI, 1999, p. 63) O ir
e vir constante entre a teoria, a consulta ao corpus e a análise é um dos pressupostos da
Análise de discurso.
A história se faz presente na língua porque as palavras refletem sentidos de
discursos já realizados ou possíveis. A historicidade do texto se faz através de uma
53
trama de sentidos. “O que constitui o texto como texto discursivo é o fato de, ao ser
referido à discursividade, constituir uma unidade em relação à situação.” (ORLANDI,
1999, p. 69) A compreensão do funcionamento do texto, enquanto trabalho simbólico,
se estabelece através dos fatos que determinam a memória da língua e é desse modo que
a história se faz presente. O discurso, por princípio, não se fecha. É um processo em
curso. Ele não é um conjunto de textos, mas uma prática. “É nesse sentido que
consideramos o discurso no conjunto das práticas que constituem a sociedade na
história, com a diferença de que a prática discursiva se especifica por ser uma prática
simbólica.” (ORLANDI, 1999, p. 71) Ao analisar os documentos chega-se aos
processos que produzem seus sentidos e que constituem os sujeitos e suas devidas
posições. A circulação do discurso permite que uma representação permaneça em vigor,
servindo de base para moldar o comportamento e as atitudes dos indivíduos. “O dizer se
sustenta na memória discursiva.” (ORLANDI, 1999, p. 83) É a partir dessas concepções
que buscamos os sentidos produzidos pela literatura de autoajuda sobre as mulheres, em
que memórias discursivas se apoiam para criar modelos de conduta que as levariam à
felicidade e ao sucesso conjugal.
54
Capítulo 2
CONSTRUINDO AS DIFERENÇAS
As representações de gênero estão presentes em vários discursos na sociedade. Os
papéis sociais de homens e mulheres são criados, recriados e reforçados em vários
campos como a educação, a religião e a mídia. Cada sexo é representado com
características próprias e muito definidas, não podendo um desempenhar a função do
outro. As mulheres estão relacionadas à beleza, aos afazeres domésticos, à
irracionalidade, à maternidade e ao casamento. São representadas muitas vezes como
seres superficiais, preocupadas apenas com sua aparência e a quantidade de sapatos que
têm. Enquanto os homens são a representação da força, eles são dotados de poder, são
os líderes, os provedores do lar. A identidade masculina está associada à racionalidade,
aos negócios, à vida pública, e ao heroísmo. Associá-los a uma característica feminina
se torna uma ofensa imperdoável.
Os estudos de gênero têm contribuído para revelar como essas características fixas
e hierarquizadas para homens e mulheres são construções sociais e culturais que
instituem um jeito de ser para cada um. Embora cada sexo seja biologicamente
diferente, o gênero trabalha para desconstruir aquelas características que nada tem a ver
com o biológico, mas que são criadas como naturais para o masculino e para o
feminino. Segundo Tânia Navarro Swain,
Em si, a diferença sexual não é positiva nem negativa, mas torna-se
política quando é marca da desigualdade, criada a partir de uma
evidência corpórea “natural”, o que oculta os mecanismos de poder de
sua construção. Se a diferença pode ser filosófica ou biológica em seu
ponto de partida, torna-se forma de poder política ao estabelecer a
desigualdade, a inferioridade sexual.
(NAVARRO-SWAIN, 2009, p.3)
Assim a forma diferenciada com que meninos e meninas são educados contribui
para determinar suas identidades de gênero, pois são perpassados em suas experiências
por discursos que os constituem enquanto homens ou mulheres, portanto, chegam à vida
adulta já moldados pelos ensinamentos que receberam desde o nascimento.
A diferenciação sexual é um tema constante de investida de variados meios
discursivos. Definir características, posicionamentos, comportamento de homens e
55
mulheres parece ser uma necessidade inerente à sociedade. Desse modo, são construídas
representações sociais, moldes de interpretação variados, plurais, ordenadores de
valores e lugares de fala. A circulação desses valores promove o que Michel Foucault
chama de regimes de verdade, ordenando o mundo em torno de pressupostos
historicamente construídos. Segundo Foucault: “A verdade está circularmente ligada a
sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a
reproduzem.” (FOUCAULT, 1979, p. 14) Assim, ao afirmar e reforçar os papéis de
cada sexo cria-se uma verdade, evidente por si mesma, que preenche a vida dos
indivíduos que passam a conduzir-se da forma determinada para cada sexo.
Os livros que analisamos aqui são mecanismos discursivos que produzem
verdades sobre os sexos. Com a pretensão de facilitar a vida dos casais, constroem
comportamentos adequados para cada um. Neste capítulo, selecionamos enunciados que
nos permitem analisar três temas dessa literatura que definem o lugar que homens e
mulheres devem ocupar na sociedade: a origem das diferenças, as capacidades de cada
sexo e a divisão do trabalho.
2.1 A origem das diferenças
Os livros dos autores Allan e Bárbara Pease, Por que os homens fazem sexo e as
mulheres fazem amor? e Por que os homens mentem e as mulheres choram?, são
caracterizados por explicar as diferenças entre homens e mulheres a fim de facilitar a
convivência entre os sexos. Segundo os autores, os livros se baseiam em sólidas
evidenciais científicas, crenças, histórias e conversas do dia a dia.
O livro da Sherry Argov, Por que os homens amam as mulheres poderosas? ,
busca transformar uma mulher que a autora considera “boazinha” em uma mulher
poderosa. A mulher poderosa para a autora é:
(...) amável, porém decidida. Ela sabe quem é, conhece seus pontos fortes e
fracos e gosta da própria companhia. Ela não abre mão da sua vida e se
recusa a correr atrás de um homem, por mais que sinta atraída por ele. Ela
não permite que ninguém tenha controle total sobre ela e sabe se defender
quando os outros passam dos limites. ”(ARGOV, 2009, p.7)
56
Embora a autora não fale diretamente sobre as diferenças sexuais, ela se baseia na
mesma matriz que o casal Pease para argumentar sobre os modos de ser de cada sexo.
Os três livros analisados aqui buscam a explicação das diferenças no comportamento
dos homens e mulheres do passado, ou melhor, nos homens e mulheres das cavernas.
Para justificar os argumentos citam áreas do conhecimento científico, pois segundo
esses livros as diferenças são determinadas pela constituição cerebral, diversa em
homens e mulheres. Vemos aqui o funcionamento dos discursos de autoridade, estes são
discursos inseridos em um lugar de fala que o reveste de poder e verdade. Em todos os
livros observados, os autores se referem ao momento histórico em que homens e
mulheres não conseguem se entender, e os relacionamentos se tornaram sofridos. Esse
momento histórico se localiza por volta dos anos 1960 quando as lutas dos movimentos
feministas se intensificaram e a vida das mulheres foi aos poucos sendo modificada. Os
livros propõem-se como um manual de sobrevivência para os casais em busca da
felicidade conjugal. De acordo com esses livros, a crença na igualdade dos sexos é
responsável pelos problemas que os indivíduos enfrentam com seus parceiros e marcam
a diferença, ou a consciência sobre a diferença, como uma realidade que deve ser
enfrentada, pois é a solução de todos os problemas.
A questão aqui é simples, homens e mulheres são diferentes. Nem melhores,
nem piores – apenas diferentes. Cientistas, antropólogos e sociólogos sabem
disso, mas têm também certeza de que afirmar publicamente suas conclusões
poderia transformá-los em verdadeiros párias de uma sociedade determinada
a acreditar que homens e mulheres têm as mesmas habilidades, aptidões e
potencialidades. (PEASE, 2000, p. 7)
Os autores enfatizam a diferença como algo imutável e evidente. Citam áreas do
conhecimento para legitimarem sua fala, mas não apresentam as fontes que utilizam
para fazerem esta afirmação. A posição em que se colocam é de defesa, neste enunciado
já deixam claro os motivos pelos quais supõem que as pesquisas que eles estão citando
não estejam à disposição de qualquer pessoa, pois segundo eles, apresentar as provas
científicas de que homens e mulheres são realmente diferentes tornariam os
pesquisadores mal vistos pela sociedade fadada a acreditar na igualdade. Allan e
Bárbara Pease desqualificam a crença de que homens e mulheres possam ser capazes
que realizar as mesmas atividades, então a falta de compreensão das diferenças é a
57
responsável pelos desentendimentos, e não as desigualdades entre os sexos. Os autores
oferecem aos leitores um manual de instruções sobre o funcionamento de cada sexo,
acreditam que com esses conhecimentos os casais possam ser mais felizes e obter
sucesso nos relacionamentos, pois “somente entendendo a diferença entre homens e
mulheres, poderemos começar a entender nossa vida coletiva – em vez das fraquezas
individuais.” (PEASE, A. PEASE, B. 2000, p. 7)
A máxima dos livros que analisamos aqui é a de que, quando os indivíduos
tomarem consciência das suas diferenças, divididas em masculinas e femininas, poderão
viver em harmonia. De acordo com o livro, “os relacionamentos não dão certo porque
os homens não compreendem que as mulheres não podem ser como eles, e as mulheres
esperam que os homens se comportem do mesmo modo que elas”. (PEASE, A.,
PEASE, b. 2000, p. 8) Neste excerto, o sentido produzido pela colocação das palavras
mostra pistas do ponto de vista que os autores defendem. Os homens não entendem por
que as mulheres não podem “ser” como eles, os homens então possuem uma essência
que os definem e que as mulheres não podem alcançar, pois faz parte da identidade
masculina imutável e natural. Em contrapartida, as mulheres se frustram por que os
homens não se “comportam” do mesmo jeito que elas, comportar significa agir, reagir a
um estímulo ou meio. Os homens então possuem uma essência, um ser, enquanto as
mulheres possuem um comportamento em face daquilo que estabelece como deve ser
uma mulher. Os homens “são”, as mulheres se “comportam”.
A ideia geral desses livros é que homens e mulheres evoluíram de acordo com as
necessidades físicas e biológicas de cada sexo, guiados pelo funcionamento do cérebro.
A base de sustentação dos argumentos de Allan e Barbara Pease é o comportamento dos
ancestrais humanos, comprovados através de inúmeras pesquisas científicas, que são
determinantes no comportamento das pessoas enquanto estas existirem. Os autores
narram uma história de harmonia entre os casais de tempos remotos, para a partir desse
pressuposto, justificar o posicionamento dos sexos na sociedade.
Homens e mulheres evoluíram de modos diferentes porque tinham de
ser assim. Os homens caçavam, as mulheres ficavam com o grupo. Os
homens protegiam as mulheres cuidavam. Os homens se tornaram
mais altos e mais fortes do que a maioria das mulheres, e seus
cérebros de desenvolveram para cumprir as tarefas que lhes cabiam.
As mulheres ficavam satisfeitas de ver seus homens saírem para
trabalhar enquanto elas mantinham o fogo aceso na caverna. Seus
58
cérebros, então, evoluíram para atender às funções que precisavam
desempenhar. (PEASE, A. PEASE, B. 2000, p. 11)
A forma como os autores utilizam as palavras, possui a intenção de carregá-las de
um significado imutável, definitivo. Segundo o enunciado acima, homens e mulheres
evoluíram de modos diferentes, porque “tinha que ser assim”, ou seja, não havia
alternativa, os autores deixam claro suas concepções deterministas. Mesmo havendo
uma distância de milhares de anos, homens e mulheres de tempos remotos e de hoje
evoluíram e se constituíram pelos mesmos motivos e finalidades. Os autores nesse
excerto já deixam claro o lugar de cada sexo, os homens saíam de suas casas para
trabalhar, enquanto as mulheres ficavam em casa gratas pela coragem e força de seu
parceiro.
As mulheres “mantinham o fogo aceso nas cavernas”, sentiam satisfação em ver
seus homens trabalhando, e seu cérebro evoluiu para as atividades que “precisava
desempenhar”. Os cérebros das mulheres então se desenvolveram para serem habitantes
do privado, para manterem o cuidado com a casa. Ao dizer que se sentiam satisfeitas
quando seus maridos saíam para trabalhar, vemos como os autores determinam a
valorização e admiração da mulher pelo homem, e não o contrário. Os homens
evoluíram por sua força ao executar suas tarefas, e assim a sua existência foi
determinada. As mulheres evoluíram por sua satisfação pelo que os homens faziam, e
pela dedicação em cuidar de sua caverna, o que não era um ato heróico, mas algo
inerente à sua natureza12
; desde os primórdios, de acordo com as fontes, a vida das
mulheres gira em torno dos seus parceiros. A divisão do espaço de homens e mulheres
feita pelos livros de autoajuda está aí determinada, ao homem o público, às mulheres o
privado, o conforto de sua casa, essa concepção repousa em um interdiscurso que
localiza o feminino e o masculino em esferas privadas de atuação. A ideia do
público/masculino e privado/feminino é um regime de verdade que já estava presente na
literatura do século XIX que citamos no primeiro capítulo, constitui-se um valor que
circula e adensa-se em discurso de verdade sobre os sexos. Ao longo dos anos essas
representações vêm sendo demonstradas e reforçadas em vários meios discursivos,
como a mídia televisiva e as propagandas publicitárias, por exemplo.
12
Assim como o trabalho doméstico das donas de casa nos dias de hoje, por ser considerado uma
obrigação das mulheres não é valorizado e reconhecido como trabalho.
59
Os autores idealizam uma realidade construída por eles sobre o passado para
construir comportamentos adequados no presente.
Era uma vez, há muito, muito tempo, homens e mulheres vivendo juntos,
felizes e trabalhando em harmonia. O homem, a cada dia, arriscava sua vida
em um mundo perigoso e hostil, caçando para levar o alimento à sua mulher
e filhos e enfrentando inimigos e animais selvagens. Desenvolveu o senso de
direção e a pontaria, tornando-se capaz de localizar a caça, atingi-la mesmo
em movimento e levá-la até o lugar onde vivia. A definição de seu trabalho
era simples: caçador de comida. Isso era tudo o que se exigia dele.
(PEASE,A. PEASE, B, 2000, p. 13)
Neste trecho, os autores narram o papel desempenhado pelos homens em uma
época distante, fazem referência a uma época feliz e harmônica, em que cada um sabia o
que deveria ser, e o que deveria fazer. As representações de gênero delegam aos homens
a coragem, a força e a habilidade de lidar com situações de risco. Ao afirmar que os
homens viviam em um mundo “perigoso e hostil”, caracteriza o mundo fora da casa, o
mundo público, como lugar dos homens por natureza, uma vez que as mulheres não
possuem força e poder suficientes para enfrentar o perigo. São frágeis e delicadas,
inabilitadas para as funções da vida extradoméstica. Por serem caçadores, os homens
evoluíram como os provedores, aqueles que detêm o sustento e a sobrevivência. Assim
nesse enunciado vemos o funcionamento da memória discursiva que remete um
discurso a outros com o mesmo sentido. O discurso da autoajuda ao definir os papéis
sociais dos homens, está relacionado a uma matriz de sentido que constrói a imagem
dos homens como o chefe da casa, o herói, pois detém o poder sobre a vida daqueles
que sustenta. As mulheres se sentiam protegidas pela coragem de seus parceiros, como
salientam os autores:
A mulher, por seu lado, se sentia valorizada ao ver seu homem expor a vida
pela família. Homem de sucesso era aquele que conseguia bastante comida, e
sua autoestima dependia do reconhecimento da mulher aos seus esforços. A
família só esperava que ele cumprisse suas tarefas de caçador e protetor –
nada mais. Não era preciso “repensar o relacionamento” e ninguém lhe pedia
que levasse o lixo para fora nem trocasse as fraldas do bebê. ( PEASE A.,
PEASE, B. 2000, p. 14)
60
Neste excerto os autores fazem referência ao modo de vida dos antepassados a
partir de valores atuais. Reforçam a ideia de que os homens adquiriam poder através de
sua capacidade de promover a família, enquanto as mulheres lhes deviam gratidão. Os
sentidos produzidos neste enunciado fazem referência ao modelo de família patriarcal,
composto pelo homem como o responsável pelo sustento, proteção, e por conseqüência
pela vida de todos aqueles que dele dependem. “A família esperava que ele cumprisse
suas tarefas de caçador e protetor – nada mais”, aqui os autores estabelecem uma ordem
de funcionamento para as famílias, a ênfase dada ao trabalho dos homens como
caçadores e protetores está relacionada nos dias de hoje à valorização do trabalho
masculino. Os autores se utilizam dessa história, criada por eles, demonstrando como os
homens e as mulheres do passado viviam, para assim produzir uma imagem de como
homens e mulheres seriam felizes se mantivessem ou voltassem a viver esses padrões de
comportamento. Definem o papel das mulheres como em muitos outros discursos, que
as relaciona com a vida doméstica e a maternidade.
O papel da mulher era também muito claro. A necessidade de ser uma
perpetuadora da espécie apontou a direção em que devia evoluir e as
habilidades a desenvolver para cumprir suas funções. Precisava ser capaz de
detectar sinais que indicassem a aproximação do perigo, ter excelente senso
de direção a curta distância, orientando-se por detalhes da paisagem para
encontrar o caminho, e, com sua extraordinária sensibilidade, identificar
pequenas mudanças na aparência e no comportamento das crianças e adultos.
Tudo muito simples: ele era o caçador da comida; ela, a guardiã da cria.
(PEASE, A. PEASE, B. 2000, p. 14)
Segundo o casal Pease, a biologia de cada sexo determina a forma como deveriam
evoluir. Dos homens das cavernas até a época de publicação dos seus livros, cada sexo
se desenvolveu para cumprir as mesmas funções. Nesse sentido, as mulheres são
“perpetuadoras da espécie”, e as habilidades que desenvolveram ao longo de milhares
de anos, possui a única finalidade de cumprir a sua função de mãe, ou como eles dizem
“guardiã da cria”. A identidade feminina está relacionada às funções do seu útero, como
vimos no capítulo anterior, os discursos que relacionam as mulheres ao uso de seu
sistema reprodutor são muitos constantes. As mulheres constituem-se na literatura de
autoajuda aqui analisada, um ser pautado pelas determinações da biologia, a
maternidade é um pressuposto básico da vida de todas elas, sendo a função primordial
de sua existência. Segundo Swain, “receptáculo, depositário de sementes, as mulheres
61
são útero antes de serem humanas, classificadas em termos de orifícios e humores.”
(NAVARRO-SWAIN, 2009, p.14)
O enunciador continua, as mulheres deveriam ter “excelente senso de direção a
curta distância”, pela metodologia de trabalho que aqui empreendemos, buscamos os
sentidos produzidos pelas palavras que estão além de sua evidência no discurso, as
palavras não são dispostas nos textos de forma aleatória, sem intencionalidade. Como
sublinha Swain “se o discurso é uma forma de ação, a linguagem é também uma
tecnologia do gênero, pois sua instauração de sentidos é um vetor que nos aponta para a
construção de um real em grades de enunciação constituídas em sentido.” (NAVARRO-
SWAIN, 2009, p. 6) Através do enunciado em destaque acima, podemos compreender a
intenção desse discurso, ao dizer que as mulheres precisam ter senso de direção de curta
distância, os autores instauram uma forma de vida e existência para as mulheres que não
seja além daquilo que seu corpo biológico poderia determinar. As mulheres não
precisam ir além dos limites da casa, o espaço privado é o seu lugar por natureza, assim
não necessitam mesmo ter a capacidade de se guiar a distâncias longas, pois, o mundo
além da casa não lhe pertence. A capacidade de estar atenta a qualquer perigo
demonstra que as mulheres estão na maioria das vezes em posição de ameaça, os
autores dizem que os homens protegem as mulheres, são dotados de força, mas não
precisam detectar os perigos, pois não estão ameaçados, eles lutam contra aquilo que
possa colocar em risco seus dependentes, mas não a eles mesmos.
A mulher evoluiu como parideira e defensora da prole. Como resultado, o
cérebro feminino se programou para nutrir, educar e prover de amor e
carinho a vida das pessoas. O homem evoluiu com uma programação
totalmente diferente – caçar, guerrear, proteger, prover materialmente e
resolver problemas. Pesquisas científicas propiciadas pelas novas técnicas de
ressonância magnética do cérebro confirmam essas programações diferentes.
(PEASE, A. PEASE, B. 2003, p. 9)
Podemos perceber pelo enunciado acima que os autores não estão dizendo
somente que os antepassados eram caçadores e guardiões da cria, e sim que homens e
mulheres evoluíram para ocuparem essas posições. Ao longo da história, muitos foram
os discursos que buscaram assujeitar as mulheres e os homens a um padrão de
comportamento adequado ao seu sexo. Sobre essa constituição de meninos e meninas no
discurso social Margareth Rago afirma:
62
À menina são atribuídos qualificativos como passividade, docilidade, desejo
de poder em seu território natural, o lar, instinto de maternidade,
romantismo, enquanto que ao sexo masculino correspondem a vocação do
poder, a capacidade de formar iniciativas, tenacidade, desejo de liberdade e
racionalidade. (RAGO, 1997, p. 83)
A autoajuda é mais um desses discursos que no início do século XXI reduz as
mulheres apenas às funções de seu útero, assujeitando-as a uma posição dócil e
domesticada, devido a sua constituição natural amorosa e carinhosa. Nesses livros,
servir às pessoas faz parte da identidade feminina, sempre disposta a cuidar do outro. As
fontes fazem referência à sensibilidade feminina, característica imprescindível para ser
mulher. As emoções são determinantes de suas ações, ao passo que os homens agem
pela razão.
A mulher passava o dia cuidando das crianças, colhendo frutos e sementes e
se relacionando com outras mulheres do grupo. Não tinha que se preocupar
com a parte principal do abastecimento de comida, e seu sucesso estava
ligado à capacidade de manter a vida em família. Sua autoestima dependia
do valor que o homem dava a suas habilidades de zeladora e mãe. Ter filhos
era um ato mágico, sagrado mesmo, como se só ela conhecesse o segredo da
vida. Ninguém esperava que fosse caçar, enfrentar inimigos ou trocar
lâmpadas. (PEASE, A. PEASE, B., 2000, p. 14)
As representações femininas disseminadas pela literatura de autoajuda aqui
analisada busca estabelecer posições sociais para homens e mulheres, a maternidade
para estas é a função primordial de sua existência. O discurso da maternidade está
presente em várias outras instâncias discursivas, sobre o discurso da maternidade
Raquel Soihet afirma:
A maternidade tem se constituído num dos mitos da nossa cultura,
exercendo-se em seu nome forte manipulação sobre a mulher que, desde
muito cedo, é bombardeada com estímulos para o exercício de tal mister
como algo para o qual não cabe qualquer modalidade de opção. Com efeito,
repetem para a mulher desde a infância que ela é feita para conceber e
cantam-lhe o esplendor da maternidade; os inconvenientes de sua condição
– regras, doenças, o tédio das tarefas caseiras, etc. tudo é justificado por esse
maravilhoso privilégio de pôr os filhos no mundo. (SOIHET, 1986, p. 91)
63
O interdiscurso no último enunciado do livro de autoajuda analisado acima,
aponta para o instinto materno como um fator natural do qual as mulheres não podem
escapar. Margareth Rago estudando o discurso médico sanitarista entre 1890 e 1930
aponta que:
A valorização do papel materno difundido pelo saber médico desde meados
do século passado, procurava persuadir as mulheres de que o amor materno é
um sentimento inato, puro e sagrado e que a maternidade e a educação da
criança realizam sua ‘vocação natural. (RAGO, 1997, p. 79)
A estratégia dos autores da autoajuda não se difere dos estudados por Rago e
Soihet, pois recorrem à ideia de que “ter filhos era um ato mágico, sagrado mesmo,
como se só ela conhecesse o segredo da vida”, defendem o instinto materno como um
privilégio feminino, uma “graça” da qual ela possui o prazer de desfrutar. Essas
representações constroem a maternidade como algo obrigatório para as mulheres.
Embora a materialidade do corpo exista e as mulheres sejam mesmo dotadas da
capacidade de gerar outro ser em seu ventre, essa condição não deve ser definidora de
suas ações no mundo. A imagem da mulher como um ser iluminado, uma zeladora
natural, possuidora de um amor incondicional pela criança que gera, foi construído ao
longo do tempo, em “redes de significações que definem a maternidade como desejo
inato da mulher e constituinte de uma natureza feminina.” (MAIA, 2011, p. 286) O
enunciador, que analisamos, fixa a identidade feminina em torno de sua capacidade de
ser mãe, sendo essa a maior atribuição das mulheres, fator ao redor do qual todas as
capacidades femininas evoluíram. Dessa forma, possuem a intenção de convencer suas
leitoras de seu destino natural, assujeitando-as à representação de mãe, verdadeira
mulher. O assujeitamento é segundo Swain, “a resposta individual à interpelação do
social que cria as identidades e a identificação a um grupo, definindo sua inserção no
espaço societal.” (NAVARRO-SWAIN, 2000, p.54)
O movimento feminista teve como uma de suas reivindicações o direito das
mulheres poderem escolher ou não serem mães, ou em que momento isso poderia
acontecer. Dessa forma as mulheres teriam mais condições de construir suas carreiras
profissionais, além de terem o domínio sobre o próprio corpo. A literatura de autoajuda
que analisamos se apóia em uma memória discursiva que atrela as mulheres ao papel da
mãe santificada, para Tânia Navarro Swain,
64
Apesar das transformações ocorridas em algumas normas sociais (de
maneira pontual e localizada) graças em grande parte aos feminismos, o
casamento e a maternidade povoam os sonhos e o imaginário das mulheres,
que se consideram completas apenas se forem mães e esposas. (NAVARRO-
SWAIN, 2000, p.54)
A literatura que analisamos funciona como uma prática discursiva que produz
sentidos sobre as mulheres e traz um retrocesso neste sentido, pois constrói as
representações das mulheres primordialmente como mães; esses livros fazem parte de
uma gama de discursos que na última década clamam para as mulheres retornarem aos
lares, nas posições de mães esposas e donas de casa.
Ainda no enunciado que estamos analisando, segundo os autores, as mulheres não
precisavam se preocupar com a parte principal do abastecimento de comida, nesse ponto
o discurso deixa claras as desigualdades entre os sexos. A divisão de trabalho feita por
eles carrega o sentido daquilo que é mais e menos importante na dinâmica social e
familiar, sendo as atividades masculinas consideradas centrais, e as atividades femininas
aquelas que dão suporte e garantem o papel central aos homens.
Depois de comer, os homens se sentavam em volta do fogo, contavam
historias, faziam brincadeiras e riam. Era uma versão pré-histórica da
contínua troca de canais com o controle remoto ou da total concentração na
leitura do jornal. Estavam exaustos depois de tanto esforço e precisavam se
recuperar para caçar novamente no dia seguinte. As mulheres continuariam a
cuidar das crianças e a garantir o descanso e a alimentação dos homens.
Cada um apreciava o que o outro fazia – eles não eram considerados
preguiçosos e nem elas se sentiam como criadas oprimidas. (PEASE, A.
PEASE, B. 2000, p. 14)
Os autores recorrem a expressões de generalização para convencer os leitores da
naturalidade desses comportamentos. “Homens e mulheres de todas as culturas, credos e
raças vivem em constante duelo com seus parceiros por causa de opiniões,
comportamentos, atitudes e crenças.” (PEASE, A. PEASE, B. 2000, p. 9) Universalizam
os comportamentos na intenção se instaurar uma verdade sobre os sexos, uma verdade
tão evidente que ultrapassa os limites do tempo, da diversidade social cultural e
geográfica. “Colocar em questão não somente as evidências sociais, mas também
biológicas é um dos mecanismos que permite à modificação das representações sociais,
65
criadoras de seres e relações sociais que fixam os corpos e as significações sociais”.
(NAVARRO-SWAIN, 2009, p.20) No enunciado em destaque, narram uma cena bem
feliz e divertida, fazem analogia a uma situação da atualidade para reforçar o fato de que
homens e mulheres não mudaram ao longo do tempo. Cometem anacronismo quando
reportam a outras sociedades valores e situações da sociedade atual. Assim, no fim do
dia, os homens chegavam a suas cavernas e ficariam olhando para a fogueira da mesma
forma que fazem atualmente ao assistir televisão ou ler um jornal. Teriam o seu
descanso após um dia árduo de trabalho. As mulheres continuariam fazendo suas
tarefas, que inclui garantir o descanso dos seus parceiros, o discurso trabalha então
desqualificando o trabalho feminino, o trabalho doméstico. Isso porque, a atividade
importante é aquela que traz o alimento para casa, o trabalho feito ininterruptamente
pelas mulheres não deveria ter descanso, pois não é dotado de esforço, é uma obrigação
natural ligada a sua condição de mulher.
Ao construir a ideia de que no mundo dos antepassados os papéis eram marcados
e por isso os casais eram felizes, os autores inserem uma crítica à igualdade entre os
sexos. Dissertando sobre a divisão das tarefas eles afirmam que os homens não eram
considerados preguiçosos e nem as mulheres se sentiam criadas oprimidas. Essa
literatura tenta convencer seus leitores de que as diferenças sexuais são determinadoras
da divisão dos espaços que cada um deve ocupar e que essa divisão é natural, pois cada
sexo se desenvolveu de acordo com a natureza do seu corpo. O discurso desses livros
determina um momento datado para que os problemas enfrentados pelos casais
acontecessem. Segundo a autoajuda que utilizamos como fonte, nos dias atuais,
A família não mais depende unicamente do homem para sua sobrevivência e
não se espera mais que a mulher fique em casa exercendo as funções de mãe
e zeladora. Pela primeira vez na história as espécies humana, a maior parte
dos homens e mulheres se confunde na hora de definir suas atividades. Você
faz parte da primeira geração a ter que encarar situações que seus
antepassados nunca conheceram. Pela primeira vez, buscamos em nosso
parceiro amor, romance e realização pessoal, já que a sobrevivência,
garantida para muitos pela estrutura da sociedade moderna através de fundos
de pensão, aposentadorias, leis de proteção ao consumidor e varias
instituições não governamentais, não é tão prioritária. (PEASE, A., PEASE,
B., 2003, p. 15)
66
Através dessa fala é visível mais uma vez a posição dos autores, que além de
marcarem os papéis de gênero, universalizam os comportamentos, falam em “história da
espécie humana”, assim ignoram as diferenças culturais sociais e geográficas; para eles
todos os homens e mulheres do universo possuem o mesmo comportamento. Essa é uma
estratégia para convencer os leitores, pois se em todo o mundo a diferença é marcada
entre homens caçadores e provedores e mulheres mães e zeladoras, os livros não deixam
margem para que os leitores possam imaginar que poderiam ser diferentes. Tânia
Navarro Swain ao analisar essas teorias de homens e mulheres das cavernas como
moldes universais para os comportamentos atuais afirma que:
Essa universalização é totalmente desprovida de fundamento, na medida em
que os dados a respeito dessas sociedades – indícios – estão sujeitos à
interpretação dos analistas impregnados de suas representações sociais. Nada
pode provar esta divisão de trabalho, a não ser as pressuposições contidas em
suas próprias concepções de gênero. As generalizações históricas a respeito
das relações mulheres/homens são fruto de um positivismo anacrônico que
se fundamenta apenas na afirmação de suas premissas: é natural porque é, e
sendo assim, sempre foi. (NAVARRO-SWAIN, 2001, p. 36)
Os autores da autoajuda instauram papéis de gênero através de um discurso
universalizante marcado pela diferença e pela hierarquia entre os sexos. As mudanças
nos moldes de comportamento para homens e mulheres, tão desejadas e buscadas pelos
feminismos, aparecem para os autores como um acontecimento negativo que
desorganizou a sociedade, é um mal que deve ser combatido.
As transformações ocorridas nas relações sociais ocidentais desde a década de
1960 são o marco em que os autores situam o desequilíbrio nas leis naturais que regiam
as relações entre os sexos:
Se você nasceu antes de 1960, é bem possível que tenha crescido vendo seus
pais se relacionarem segundo os antigos princípios de sobrevivência entre
homem e mulher. Eles repetiam o comportamento que aprenderam com os
pais deles, que, por sua vez, imitaram os pais deles, que copiaram os pais
deles, e assim por diante, até chegar ao povo das cavernas com seus papéis
claramente definidos. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, P. 15)
67
No livro Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor, o casal Pease
faz uma crítica indireta ao feminismo, situam a década de 1960 como o momento em
que as relações entre os casais foram modificadas. Na década em questão, ocorreram
muitas mudanças em algumas esferas da vida cotidiana, o movimento feminista foi um
dos responsáveis por questionar os lugares ocupados por cada sexo, e a hierarquia que
colocava os homens como detentores do mundo e as mulheres como submissas ao poder
masculino. Allan e Bárbara Pease afirmam que após a década de 1960, as famílias
foram desestruturadas, devido ao índice alto de divórcios que eles encontraram em suas
pesquisas. Em seu segundo livro, Por que os homens mentem e as mulheres choram?,
os autores fazem uma crítica mais contundente ao feminismo, responsabilizando-o
claramente pela infelicidade conjugal no início do século XXI.
No final do século XX, à medida em que as mulheres conquistavam cada vez
mais liberdade, e o homem era visto como inimigo a ser vencido, os
relacionamentos e as famílias passaram a viver em enorme tensão. As
mulheres estavam irritadas, e os homens, perplexos e confusos. Durante
gerações, os papéis haviam sido nitidamente definidos. O homem era o chefe
da família e o principal responsável por seu sustento, sua palavra era a lei e
suas áreas de decisão, claras. A mulher era a mãe, dona-de-casa, secretária,
professora ou assistente social. (PEASE, A. PEASE, B., 2003, p.8)
Como no primeiro livro, os autores afirmam que as diferenças são o ponto de
equilíbrio e harmonia entre os casais, portanto, saudáveis para a sociedade. No
momento em que o discurso feminista se alastra no campo social e que as mulheres
finalmente começam a tomar consciência de que podem e devem desempenhar outros
papéis, os autores afirmam que as famílias começaram a se desintegrar. Sabemos que a
ideia de família carrega uma memória discursiva associada a equilíbrio, a família é uma
instituição sagrada, dessa forma os autores se utilizam do discurso da família para
demonstrar o quanto a igualdade entre os sexos é nociva para a sociedade. No livro
anteriormente citado, a hierarquia entre os sexos continua muito presente e é
apresentada de forma mais enfática, o poder dos homens sobre as mulheres está bem
explicito, ele era o chefe da família e sua palavra era lei, e assim:
A vida parecia simples. De repente, tudo começou a mudar. Seriados e
comerciais de TV passaram a mostrar homens como idiotas incompetentes
68
diante de mulheres superiores, inteligentes e cada vez mais adeptas da causa
da igualdade. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 8)
Os livros de autoajuda que analisamos trabalham em prol da dominação de um
sexo sobre o outro, divide a sociedade em polos opostos e hierarquizantes, em que o
natural é o masculino dominar e o feminino servir. Numa época em que as mulheres
alcançaram mais espaço no mundo público, o discurso da autoajuda demonstra uma
inversão de papéis com a pretensão de desprezar o movimento feminista e a luta pela
igualdade.
Hoje em dia ser homem tornou-se uma árdua tarefa. Os homens estão
inseguros quanto à sua identidade e faltam-lhes exemplos a serem seguidos.
Desde que, na década de 1960, as feministas passaram a ter mais voz e mais
êxitos, a taxa de suicídio entre mulheres diminuiu mais de 34%, enquanto
que entre os homens aumentou 16%. Mesmo assim, as mulheres continuam
falando da cruz que carregam nesta vida. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p.
9)
Neste enunciado os autores colocam os homens como as maiores vítimas das
mudanças. A essência dos indivíduos nos livros de autoajuda está no sexo que os define,
“ser homem” se refere a um posicionamento constituído por discursos que definem o
que ser homem e o que é ser mulher na sociedade. Os indivíduos existem e vivem de
acordo com a posição que seu sexo define. Nesse excerto vemos que a identidade dos
homens foi atingida quando o poder que tinham sobre a vida das mulheres começou a
ser questionado, destituídos de poder, não se encaixam mais na representação que o
constitui. Ser homem no século XXI, já não seria mais sinônimo de deter poder, de ser o
chefe, aquele que dita as leis. É interessante notar que a autoajuda aqui analisada em
algumas partes do texto não faz referência ao “feminismo” enquanto movimento
político, mas sim às “feministas”, mulheres que se revoltaram contra o que a natureza
determina e instauraram o caos nas relações sociais. Vê-se aí o trabalho do interdiscurso
no que se refere às feministas, estas foram vistas e estereotipadas como mulheres
amarguradas e infelizes. A palavra “feminista” carrega a memória de mulheres feias,
mal amadas que tentaram tomar o poder, o que promoveu ao longo da história um
preconceito contra o movimento e suas representantes. Assim os autores ao invés de
localizar o feminismo como um movimento político, nomeiam as mulheres feministas e
criam um inimigo a ser vencido, responsável até pelo aumento da taxa de suicídio entre
69
os homens. Nesse excerto anteriormente citado, também chama atenção o fato de a
diminuição das taxas de suicídio feminino não ser visto como um avanço, uma
conquista. O texto enfatiza a dura realidade dos homens que destituídos do seu lugar
natural tiram a própria vida, pois, sem poder, esta já não tem mais sentido.
Ao fim do último enunciado os autores pretendem demonstrar que as feministas
não obtiveram êxito, pois as mulheres continuam insatisfeitas e infelizes em suas vidas,
reforçam que a ideia de igualdade entre os sexos foi prejudicial para homens e também
para as mulheres, e dizem:
Mas as coisas estão difíceis também para as mulheres. O feminismo
começou prometendo libertá-las dos grilhões que as mantinham aprisionadas
ao fogão, mas hoje cerca de 50% das mulheres do mundo ocidental
trabalham – mesmo quando não querem. (...) Elas agora enfrentam
enfermidades relacionadas ao estresse, exatamente como sempre aconteceu
com os homens. (PEASE A., PEASE., 2003, p. 9)
O casal Pease faz um trabalho contundente contra o feminismo, reduzem seu
significado e seus objetivos, a fim de torná-lo um acontecimento nocivo e fracassado. O
trabalho das mulheres é colocado como uma questão negativa, os autores afirmam que
elas ficaram mais estressadas devido ao trabalho fora de casa. Dão a ideia, portanto, de
que, a vida que as mulheres tinham antes era perfeita e não causava nenhum dano à
saúde, visto que era uma função natural do seu sexo, além do mais os autores
caracterizam o trabalho doméstico como menos importante. Suely Kofes estudando a
relação entre patroas e empregadas faz a seguinte afirmação:
Ser mulher seria, portanto constituir-se a partir do mundo doméstico e ser
parte constitutiva dele. Espaço que não é apenas de tarefas, de esferas
desenhadas pela divisão social e sexual do trabalho. Mas local definidor da
feminilidade. Ser mulher seria ser dona do espaço doméstico. É também ser
doméstica. O doméstico seria ele próprio feminino. (KOFES, 1994, p. 186)
Podemos entender então que a literatura de autoajuda define o trabalho doméstico
como atributo natural das mulheres, e por fazer parte de sua constituição enquanto
sujeito, não requer grande esforço, não é considerado um trabalho no sentido estrito do
termo, nada mais é do que sua obrigação por ser mulher. Segundo Michelle Perrot, o
70
trabalho doméstico resiste às revoluções igualitárias. As tarefas não são compartilhadas
entre homens e mulheres. (PERROT, 2012, p. 115) Os homens por sua vez sempre
“trabalharam”, apesar de também sofrerem das enfermidades advindas das suas
atividades, mas sendo eles mais fortes, não sofriam e seu trabalho era um ato de
bravura. Ao dizer que as mulheres sofrem as enfermidades “exatamente como sempre
aconteceu com os homens”, os autores determinam o trabalho fora da casa como
atividades especificamente masculinas, as mulheres, ao desempenhar essas atividades,
estão agindo como os homens e tendo as mesmas doenças que eles, devido à situação
não ser normal para elas. Mais uma vez percebe-se a polarização do mundo entre as
esferas masculinas e femininas.
As mulheres de hoje são superatarefadas, estressadas e cada vez mais
solitárias. Estima-se que 25% de todas as mulheres do mundo ocidental
serão solteiras permanentes no ano de 2020. Trata-se de uma situação
antinatural, em total desacordo com nossas necessidades humanas e
biológicas básicas. Estamos todos muito confusos. (PEASE, A., PEASE, B.,
2003, p. 9)
A principal consequência das mudanças na vida das mulheres, no entanto não era
somente o estresse causado pelo trabalho, e sim o fato de que sua nova posição afastaria
os homens delas. No trecho acima, os autores determinam que todas as mulheres devem
se casar, sendo a solteirice uma situação antinatural. Afirmam então a necessidade do
corpo de uma atividade sexual, pois não ter um parceiro sexual está em desacordo com
as necessidades humanas biológicas básicas. Nesse excerto notamos a presença do
dispositivo da sexualidade, termo criado por Michel Foucault e que se refere à noção de
que todas as pessoas têm pulsões sexuais sem que possam controlar, é um elemento
natural da vida de todos os indivíduos.
A sexualidade tornou-se fator de inteligibilidade nas sociedades modernas,
assim todas as pessoas, agora aprisionadas em corpos naturalizados e
sexuados, estão obrigadas a uma prática sexual, pois ela é que define o
sujeito, lhe atribui uma identidade, um significado e um lugar no mundo.
(FOUCAULT, apud, MAIA, 2011, p. 258)
Assim a literatura de autoajuda reforça o discurso que instaura a necessidade de
uma atividade sexual para os sujeitos, mas mais do que isso classifica as mulheres
71
solteiras como antinaturais. A imagem negativa da mulher solteira povoa o imaginário
cultural há muito tempo. A invenção da “solteirona” foi tema de pesquisa da
historiadora Cláudia de Jesus Maia, segunda ela, a solteirona foi vista por muito tempo
como “um sujeito marginal outrificado” (MAIA, 2011, p. 3), uma imagem criada
através de discursos instauradores da mulher ideal.
Se em outros contextos históricos, “solteirona” era apenas um status jurídico
ou uma condição de desprestígio social, com o discurso científico – moral –
sobretudo, do segundo quartel do século XIX e primeira metade do século
XX – “solteirona” passou a ser um desvio da natureza, uma anomalia social,
um ser desprezível e risível, a figura da diferença. (MAIA, 2011, p. 3)
Embora trabalhando com discursos sobre mulheres no século XXI, a literatura de
autoajuda propaga a imagem da mulher solteira tal qual a citada por Maia, falando das
mulheres em um espaço de tempo de mais de meio século. Após a década de 1960, com
os movimentos feministas e a revolução sexual, as mulheres ao atingirem em parte seus
objetivos de igualdade e conquistarem carreiras profissionais, também deixaram de ter o
casamento como fundamento de suas vidas.
Ao contrário do que ocorreu com nossas mães e tias, o casamento e a
maternidade estão deixando de ser o principal projeto da vida da mulher. Se
antes o sinônimo de felicidade e realização pessoal era encontrar um bom
marido, ter uma casa confortável e filhos bonitos e educados, hoje grande
parte das mulheres deseja e prioriza a formação escolar, a carreira
profissional e vivência de variadas experiências. (MAIA, 2008, p. 4)
Os livros que analisamos aqui funcionam como um discurso de oposição aos
discursos do feminismo e fazem uma caminhada em marcha ré ao definir as
representações femininas, buscam convencer suas leitoras a retomarem posições que
limitam suas ações na sociedade.
Segundo os livros que pesquisamos, quando não se casam, as mulheres estão
desligadas de sua função natural, de ser esposa e mãe. Para combater isso, os autores
determinam o destino natural das mulheres e dos homens reforçando a todo o momento
os caminhos de sua evolução.
72
A mulher evoluiu como parideira e defensora da prole. Como resultado, o
cérebro feminino se programou para nutrir, educar e prover de amor e carinho
a vida das pessoas. O homem evoluiu com uma programação totalmente
diferente – caçar, guerrear, proteger, prover materialmente e resolver
problemas. Pesquisas científicas propiciadas pelas novas técnicas de
ressonância magnética do cérebro confirmam essas programações diferentes.
(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p.9)
Uma das estratégias do discurso deste tipo de autoajuda é repetir inúmeras vezes o
lugar que homens e mulheres devem ocupar na sociedade, criando então representações
de gênero pautadas em uma hierarquia em que os homens são dotados da força, do
poder, da coragem. Desde a época das cavernas, habitam o espaço público, seu por
natureza. Às mulheres é resguardada a capacidade surreal, sagrada e abençoada não só
de gerar outra vida, mas de serem definidas em todos os aspectos por essa capacidade,
elas são as responsáveis por cuidar das outras pessoas, abdicarem de si mesmas em prol
dos outros. Todas essas questões são construídas em cima da crítica ao feminismo, visto
como um acontecimento que desestruturou a sociedade, que quebrou as regras naturais
da vida, a aura sagrada das famílias patriarcais.
No início do século XXI, quando as mulheres alcançaram muitos direitos, quando
finalmente puderam assumir outras identidades não só de “guardiãs da cria”, a literatura
de autoajuda aqui analisada busca a volta da sociedade patriarcal; objetiva convencer
seus leitores que lugar de mulher é em casa, agradecida pelo sustento que o homem tão
bravamente lhe proporciona. Um fator importante de ser ressaltado é que os autores não
conseguem enxergar um mundo que não seja polarizado entre masculino e feminino,
quando falam de mudanças nos comportamentos, fazem uma inversão dos papéis.
Talvez um dia homens e mulheres venham a se parecer. Talvez as mulheres
venham a gostar de ver corridas de automóveis e façam compras com
absoluta objetividade. Os assentos de vaso sanitário serão fixados, as
mulheres só falarão durante os comerciais e os homens só lerão a Playboy
pelo seu valor literário. Mas nós duvidamos que isso aconteça nos próximos
milênios. Enquanto isso não acontece vamos seguir aprendendo a entender,
administrar e gostar de nossas diferenças. E seremos recompensados com
amor e carinho. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p.12)
A compreensão e aceitação das diferenças, de acordo com nossas fontes, é que
levará homens e mulheres a se entenderem em seus relacionamentos. Nesse enunciado
mesmo a igualdade entre os sexos sendo vista de forma equivocada, os autores afirmam
73
que ainda demoraria “milênios” para que homens e mulheres fossem iguais. Com isso
eles deixam a impossibilidade de qualquer mudança. Os livros que analisamos aqui
transformam a luta pela igualdade em mera equivalência de comportamentos, anulam
seu significado na busca por direitos civis, por oportunidades de trabalho e educação, e
o direito das mulheres tomarem as decisões em suas vidas, sem que para isso dependam
da aprovação masculina.
2.2 As capacidades cognitivas
Homens e mulheres são diferentes, esse é o pressuposto básico dos livros
analisados aqui, mas existem vários outros títulos que trabalham com a mesma temática
da diferença sexual, estabelecendo esferas diversas para homens e mulheres se situarem
na sociedade. As diferenças sexuais são assunto em várias instâncias discursivas, são
explicadas por variados fatores, sempre marcando posicionamentos hierárquicos.
Segundo Swain:
Em si, a diferença sexual não é positiva nem negativa, mas torna-se política
quando é marca de desigualdade, criada a partir de uma evidência corpórea
“natural”, o que oculta os mecanismos de poder de sua construção. Se a
diferença pode ser filosófica ou biológica em seu ponto de partida, torna-se
forma de poder política ao estabelecer a desigualdade, a inferioridade sexual.
(NAVARRO-SWAIN, 2009, p. 3)
A literatura de autoajuda constrói um discurso baseado em um suposto
conhecimento científico para criar e explicar as diferenças, afirmam que se utilizam de
recentes estudos para dar credibilidade a seus argumentos. Investe-se de discursos de
autoridade, como a biologia e a medicina para convencer seus leitores. Refutam
qualquer tipo de explicação que demonstre outras formas de ver a diferença. Segundo os
autores, na década de 1980 surgiram muitas pesquisas que buscavam explicar essas
diferenças. “Durante a maior parte do século XX, essas diferenças foram explicadas
pelo condicionamento social, ou seja: somos como somos por causa das atitudes de
nossos pais e professores, que, por sua vez, refletem as atitudes da sociedade em que
vivem.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.11) Podemos incluir no período citado pelo
74
enunciado, os estudos feministas de gênero, que afirmam a construção social e cultural
do feminino e do masculino ao longo da história, o enunciador demonstra conhecimento
sobre esses estudos, mas se coloca em posição de crítica contrária. Na continuação do
texto os autores dizem que:
.
Meninas de vestem de rosa e ganham bonecas de presente, meninos se
vestem de azul e ganham uniformes de jogadores de futebol. Mocinhas são
tocadas e acariciadas, rapazes levam tapas nas costas e aprendem que
homem não chora. Até recentemente, acreditava-se que quando uma criança
nasce sua mente é uma página em branco, na qual os educadores imprimem
suas escolhas e preferências (PEASE, A. PEASE, B., 2000,p. 11)
Esse enunciado apresenta meninos e meninas de forma estereotipada, utilizam de
uma forma de escrita com um tom de ironia para desqualificar o argumento de que a
educação define o modo de ser das crianças. Ao utilizar a expressão “até recentemente”,
procuram demonstrar que são estudos ultrapassados, que apenas “acreditavam” que as
crianças não nasciam com características femininas ou masculinas, mas adquiriam
depois, de acordo com a educação que recebiam. Colocam em dúvida esses estudos
através de um jogo de palavras que aparentemente estão aleatórias no texto. Assim eles
apresentam os seus argumentos.
Recentes estudos de biologia mostram, porém, um panorama completamente
novo e apontam os hormônios e o cérebro como os principais responsáveis
por nossas atitudes, preferências e comportamento. Isso quer dizer, ainda que
criados em uma ilha deserta, sem uma sociedade organizada ou pais que os
influenciassem, meninos competiriam física e mentalmente entre eles,
formando grupos com uma nítida hierarquia, e meninas trocariam toques e
carinhos, se tornariam amigas e brincariam com bonecas. (PEASE, A.
PEASE, B., 2000, p. 12)
Os discursos da diferença construídos em torno dos fatores biológicos ganham
aspecto de diferenças naturais, uma vez que o corpo é visto como uma evidência
imutável. Segundo esses livros de autoajuda, o que define os homens e as mulheres são
os hormônios e o cérebro, já vemos aí a construção de polos opostos, em que hormônios
funcionam como definidores das atitudes e comportamentos femininos, pois são
inúmeros os discursos que responsabilizam os hormônios femininos por suas
instabilidades de comportamento, como a TPM, por exemplo. Então o hormônio é que
75
guia as mulheres, é o lugar do emocional. O cérebro é o representante da razão, assim,
definidor e guia dos comportamentos masculinos, que não são guiados pelas emoções.
Os homens por agirem racionalmente têm mais controles sobre si mesmos o que
propicia mais força e poder, são mais confiáveis para desenvolver as funções mais
importantes na sociedade.
O texto ainda afirma que, se vivessem em uma sociedade sem organização social,
sem nada que os influenciassem, meninos competiriam “física e mentalmente”, ou seja,
meninos usariam seus cérebros para demonstrar sua força e inteligência. As meninas por
sua vez, demonstrariam suas emoções com trocas de carinho entre amigas e “brincariam
com bonecas”, atividade em que já estariam desenvolvendo sua função primordial de
mãe. Suas atitudes são definidas por seus hormônios, por sua capacidade de reprodução
que guia seus comportamentos, portanto menos confiáveis e instáveis para ocuparem
cargos e posições importantes.
Desde os anos 1960, vários grupos vêm tentando nos convencer a renegar
nossa herança biológica. Afirmam que governos, seitas religiosas e sistemas
educacionais se aliaram ao objetivo masculino de dominação, reprimindo as
mulheres que tentaram se destacar. Historicamente, parece certo. Mas então
como os homens conseguiram dominar por tanto tempo. A biologia explica.
(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 12)
Neste excerto podemos perceber que a autoajuda que analisamos não visualiza as
diferenças apenas como um fator organizador da sociedade, mas afirma a dominação de
um sexo pelo outro como consequência natural dessas diferenças. Segundo ela, “alguns
grupos” procuraram fazer com que a herança biológica definidora dos papéis masculino
e feminino fosse negada, a década de 1960 não está colocada no texto por mero acaso, a
estratégia dos autores é falar do feminismo sem o nomear. Esse enunciado reconhece a
dominação masculina e utiliza do argumento da história para defender sua permanência,
que seria explicada pela biologia. E continuam dizendo: “Homens e mulheres devem ser
iguais no direito à oportunidade de desenvolver plenamente suas potencialidades, mas,
definitivamente não são idênticos nas capacidades inatas.” (PEASE, A., PEASE, B.,
2000, p.12) A igualdade entre homens e mulheres se justifica pelo direito de
desenvolverem suas “potencialidades”, inferimos disso, que o desenvolvimento de cada
sexo está condicionado ao que a natureza lhe proporciona, podem evoluir somente
76
dentro dos limites estabelecidos para o seu sexo, homens com o potencial para a força e
o poder, e mulheres com o potencial para cuidar e zelar por outrem.
O argumento central em que a autoajuda aqui analisada se sustenta é que na
história que os autores contaram sobre os ancestrais humanos, os indivíduos possuem as
capacidades necessárias para a sobrevivência. Homens eram caçadores e assim
evoluíram e adquiriram as capacidades necessárias para trazer o sustento para a família.
As mulheres eram as guardiãs da cria, se desenvolveram e evoluíram adquirindo as
capacidades básicas de mãe e zeladora da caverna. Essa história é uma analogia aos
papéis determinados pela sociedade patriarcal que define o espaço público para os
homens e o espaço privado para as mulheres. A desconstrução dessa divisão foi uma das
bandeiras levantadas pelo movimento feminista quando da sua primeira onda, em que
este criou o slogan “o pessoal é político” e pretendia desencarcerar o mundo feminino
dos muros das casas, do espaço doméstico. Mas a teoria dos homens das cavernas serve
na literatura de autoajuda para justificar comportamentos atuais.
Como caçador, o homem precisava ser capaz de identificar e perseguir alvos
distantes. Desenvolveu, então, um tipo de visão em que parece usar antolhos,
para que não se desvie o foco. A mulher precisava de um raio de visão que
lhe permitisse perceber algum predador se aproximando. É por isso que o
homem moderno consegue facilmente encontrar o caminho de um bar muito
afastado, mas não é capaz de achar qualquer coisa na geladeira, no armário
ou na gaveta. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 18)
Toda a identidade masculina é construída em cima de sua propensão natural em
ser caçador, sua visão se desenvolveu em linha reta, mas no texto acima, chama atenção
a afirmação de que os homens possuem essa visão para “não desviar o foco”. O discurso
constrói assim a imagem dos homens como possuidores de objetividade em suas ações,
ele é o personagem ativo em suas atividades. O raio de visão das mulheres apenas lhes
permitiria perceber algum predador dentro dos limites da casa. Ao afirmar que os
homens, devido à sua visão direta, conseguem enxergar na atualidade um bar distante,
os autores delimitam os espaços de cada sexo, o bar é um espaço masculino. São
constantes as propagandas de cerveja que mostram homens em bares, sendo essa uma
característica essencial da masculinidade; as mulheres aparecem nessas propagandas
como acessórios, estando relacionadas à cerveja, são objetos de consumo tal qual a esta.
No ambiente doméstico a visão masculina é restrita, não conseguem encontrar nada na
77
geladeira, armários e gavetas. O espaço doméstico está delimitado aqui como não sendo
masculino. Os homens não têm as capacidades necessárias para agir nesses espaços, são
servidos por mães ou esposas.
A identidade feminina foi construída ao longo do tempo em torno de suas
capacidades sensitivas, emotivas, e as fontes pesquisadas reforçam essas imagens.
A mulher escuta melhor que o homem e distingue muito bem os sons mais
agudos. O cérebro feminino é programado para ouvir um choro de criança no
meio da noite, enquanto o pai pode não perceber e continuar dormindo. A
mulher é capaz de ouvir um gato miando ao longe, mas o homem, com sua
excelente habilidade de orientação espacial, consegue dizer onde está o
bichano.(PEASE, A. PEASE, B., 2000, p. 23)
A maternidade é eixo definidor da identidade feminina. A capacidade de audição
das mulheres existe para que elas escutem o choro do bebê no meio da noite. No trecho
citado, a autoajuda reforça a divisão desigual no cuidado com os filhos, estes são de
responsabilidade total das mulheres. Além de ter a capacidade de gerar os filhos em
seus ventres, são responsáveis pelo cuidado e a educação por toda a vida. Os pais são
responsáveis apenas pelo sustento. Essa literatura não sinaliza a possibilidade de os
homens ajudarem suas parceiras nas tarefas domésticas ou no cuidado com as crianças a
fim de melhorarem seus relacionamentos, pois essa atitude para eles é uma inversão dos
papéis naturalizados para os sexos. Essa representação também delimita espaços, pois se
as mulheres é que devem cuidar integralmente dos filhos, elas não poderão exercer
nenhuma atividade profissional, enquanto a busca pelo sustento que os homens fazem,
pressupõe que eles tenham um trabalho que lhes gere renda. Os autores justificam até
mesmo características triviais com a ideia de a mulher ser a guardiã da cria:
Como guardiã da cria e colhedora de frutos, a mulher sempre tinha de provar
o que dava aos filhos, vendo se estavam doces e maduros. Eis aí uma
provável causa de as mulheres gostarem tanto de doces e de estar entre elas a
maioria dos provadores de alimentos. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 28)
Esse recurso é utilizado no texto para dar mais credibilidade aos argumentos. Os
autores relacionam situações do cotidiano das pessoas, com situações da vida dos
supostos antepassados, buscando uma identificação dos leitores com suas idéias, através
disso então, instauram comportamentos estereotipados. Ao se referir a alimentos doces
78
sendo preferidos pelas mulheres, o texto busca relacioná-las ao que acredita ser o
comportamento ideal para elas. A docilidade nas atitudes, a sensibilidades, a doação de
si pelo outro, o carinho que estão sempre prontas a dar e receber. A sensibilidade é um
atributo essencial da feminilidade, pois através dela as mulheres podem tornar-se boas
mães, boas esposas, dóceis, e por consequência mais conformadas com seu destino
biológico.
Não é que as mulheres sejam supersensíveis. Os homens é que tiveram os
sentidos embotados. Como no mundo feminino a percepção é muito mais
desenvolvida, elas esperam que eles também sejam capazes de ler seus sinais
de linguagem verbal, vocal e corporal e adivinhar seus desejos, tal como
faria outra mulher. Por causa da origem e evolução da espécie humana,
como já vimos, isso não é possível. A mulher parte do princípio de que o
homem vai ser capaz de descobrir o que ela quer ou precisa e, quando isso
acontece, diz que ele é “insensível, nem desconfiou”. Ele reclama: “Eu sou
obrigado a ler os seus pensamentos?”. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 29)
Após defender os comportamentos tidos como ideais para as mulheres, os autores
inserem o enunciado acima. Nele existe uma contradição em relação ao pressuposto
básico do livro, qual seja, as diferenças são biológicas, uma vez que afirmam que os
homens “tiveram seus sentimentos embotados”. Infere-se dessa afirmação que os
discursos que constituíram a ideia de masculinidade retiravam desta a possibilidade de
expressar sentimentos. Outro aspecto importante desse trecho é o trabalho do discurso
para que as mulheres se conformem com sua condição e com o comportamento
masculino, percebido com a expressão “isso não é possível”. Em todos os três livros de
autoajuda que analisamos aqui, os comportamentos de cada sexo são demonstrados e a
solução apresentada tanto pelo casal Pease, quanto pela escritora Sherry Argov, que se
baseiam na conformidade das mulheres diante da situação, ou da mudança de
comportamento por parte delas. Consideram que os homens são como são e não podem
mudar, devido à sua masculinidade, força imprescindível para sua existência, enquanto
as mulheres são serem maleáveis, mais compreensivas, e mais dispostas a mudar em
prol do relacionamento. Podemos ver esses aspectos nos trechos que analisaremos
abaixo, o livro cita situações do cotidiano dos casais como a solução de problemas.
Todo homem acha que a única pessoa capacitada para resolver os próprios
problemas e por isso não acha necessário discuti-los com ninguém. Ele só
79
pede ajuda quando sente necessidade de uma opinião especializada e
considera que assim está dando um inteligente passo estratégico. O homem a
quem ele pede opinião, por sua vez, se sente honrado com a consulta.
(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 33)
Esse trecho constrói a imagem dos homens como seres autônomos, em que diante
de seus problemas, buscam a solução sozinhos. As fontes reforçam a força e inteligência
masculina a todo o momento. Nesse enunciado criam uma imagem dos homens em
torno da sua racionalidade. Ao pedir ajuda a uma opinião especializada, não estão
exatamente assumindo a dúvida, mas traçando uma estratégia para chegar ao melhor
resultado. Na última frase do enunciado é que fica claro o sentido produzido pela
expressão “opinião especializada”, pois homens recorrem a outros homens, apenas seus
pares têm condições de fornecer uma via mais rápida na solução do problema.
Por isso, quando a mulher oferece um conselho que o homem não pediu, ele
sente como se ela declarasse que o considera incompetente, incapaz de
resolver seus problemas. Para o homem, pedir conselho é uma demonstração
de fraqueza. É por isso que ele raramente fala e respeito das coisas que o
preocupam. Ele adora oferecer soluções e conselhos aos outros. O contrário
não é verdadeiro. Conselhos não solicitados, especialmente vindos de uma
mulher, não são bem-vindos. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 33)
O enunciado acima marca a diferença, as mulheres são incapazes de fornecer
soluções para os problemas masculinos, ao passo que, um homem pode oferecer uma
opinião a outro homem que a recebe, ficando o primeiro honrado em ser solicitado. Os
homens podem oferecer soluções quando as mulheres se encontram com problemas,
pois é da natureza deles essa capacidade, ao passo que as mulheres estão acostumadas
com a demonstração de dúvida e fraqueza. Nesse caso, as mulheres devem receber os
conselhos masculinos, fazendo com que seus parceiros se sintam úteis. “Para o homem,
pedir conselho é uma demonstração de fraqueza”, a imagem masculina construída na
autoajuda, assim como em vários outros discursos na sociedade, gira em torno do poder
e da força. Os homens não podem demonstrar dúvida ou fraqueza em nenhum
momento, suas palavras são dotadas de credibilidade simplesmente pelo lugar de fala
que ocupam. No fim do texto acima, os autores deixam ainda mais claro esse
posicionamento; os homens não gostam de pedir conselhos e nem que lhes ofereçam
soluções, colocando em dúvida sua capacidade, principalmente se as soluções ou
80
conselhos vierem de uma mulher. Com isso o livro analisado determina a falta de
credibilidade das ideias femininas, destituídas de poder de fala, e de inteligência
suficiente para serem iguais aos homens.
Situações que supostamente, segundo os autores, todos os casais do mundo
passam, são usadas como exemplo para explicar as diferenças e fornecer soluções, como
dissemos antes, as mudanças de atitude partem na maioria das vezes das mulheres. Os
autores citam assim, o hábito masculino de assistir televisão passando de um canal para
outro. Segundo eles, esse hábito é uma herança dos ancestrais que, após um longo dia
de caçada, chegavam a suas cavernas e se sentavam diante da fogueira pensando nos
acontecimentos do dia. Segundo o livro, casais de todas as partes do mundo entram em
conflito por causa da televisão, e a solução oferecida por eles é a seguinte:
Para resolver o problema do controle remoto, a mulher deve dizer ao homem
que isso a perturba e pedir para ele, por favor, não o fazer quando ela estiver
assistindo ao seu programa. E, se não adiantar, ela deve considerar a hipótese
de comprar seu próprio aparelho de TV e ir ver seu programa em outro
cômodo. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 40)
A solução do problema pressupõe a submissão das mulheres em relação aos
homens, pois em nenhum momento os autores citam a possibilidade de mudanças no
comportamento masculino. As mulheres devem se adequar ao comportamento deles.
Em seguida o livro passa a relatar a atitude feminina que mais irrita os homens, o choro.
As glândulas lacrimais da mulher são mais ativas que as do homem.
Raramente um homem chora em público, porque, em todo o processo
evolutivo, o homem que demonstra emoção se coloca em situação de risco.
Ao transmitir fraqueza, ele encoraja outros a atacá-lo. Para a mulher, no
entanto, exibir suas emoções é sinal de confiança: a que chora se torna o
bebê, e a amiga desempenha o papel dos pais protetores. (PEASE, A.,
PEASE, B., 2000, p. 54)
Nesse enunciado o choro é uma demonstração de fraqueza, uma característica
feminina. Mais uma vez nota-se uma contradição nas afirmações, pois segundo os
autores, nas mulheres as glândulas lacrimais são mais ativas, e por isso as mulheres
choram mais. Os homens não choram devido ao seu processo evolutivo que o formou
para evitar demonstrar fraqueza, ou seja, não é a sua formação biológica que determina
seu comportamento, mas a necessidade de demonstrar força e evitar que fosse atacado.
81
Na última frase do enunciado, os autores afirmam que as mulheres quando choram
sinalizam confiança em relação a uma pessoa próxima, nesse caso a amiga. E mais uma
vez eles estabelecem a condição materna como atributo da essência feminina, uma
mulher chora nos ombros de outra, pois demonstra suas fraquezas e a “amiga”, poderá
ajudá-la exercitando seu papel de cuidadora. Segundo as fontes que analisamos, o choro
também é uma forma das mulheres conseguirem aquilo que querem, é uma arma de
chantagem emocional, diferente dos homens que são objetivos ao demonstraram suas
vontades. Sendo assim o choro é uma das atitudes femininas que mais causa atrito com
seus parceiros. Como podemos ver, a atitude masculina que irrita as mulheres se baseia
na capacidade masculina de resolver seus problemas sozinhos, sem a ajuda delas, ou
seja, essa capacidade provém da inteligência, autonomia e força; enquanto o choro
feminino é fruto da fraqueza inerente a esse sexo, ligado às emoções. De acordo com as
fontes,
Os homens são de longe mais vítimas do que vilões. Eles preferem pedir
diretamente o que querem, enquanto as mulheres tendem a não dizer
exatamente o que desejam. A muitas falta a auto-estima necessária para se
considerarem merecedoras do objeto de seus desejos. Defensoras do ninho,
elas têm uma necessidade incontornável de serem amadas. Sua função
sempre foi nutrir os relacionamentos – com parceiros, filhos e outros grupos
familiares e sociais – e seus cérebros estão estruturados para fazê-los
funcionar. Recorrem, pois, com freqüência, á chantagem emocional para
conseguir o que querem, em vez de dizê-lo diretamente, para não se
arriscarem a ouvir uma recusa. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 85)
Os movimentos feministas e as ideias de luta emanadas deles em prol de maiores
direitos e liberdade feminina, foram em muitos aspectos mal interpretados. Muitos
meios discursivos viam a luta feminina como instauradora de uma “guerra dos sexos”,
cada um buscando dominar o outro. O discurso da autoajuda passa a mesma impressão,
como podemos notar na citação acima, homens e mulheres estão em constante luta. A
dependência feminina está visível no excerto, as mulheres precisam chorar para
conseguirem aquilo que querem, segundo os autores, “a muitas falta autoestima” para se
sentirem merecedoras daquilo que querem. A inferioridade feminina está marcada nesse
texto, uma vez que as mulheres são descritas como tão dependentes dos homens que
precisam fazer chantagem emocional para alcançarem seus objetivos, além de sofrerem
com a autoestima baixa. A autoestima é a avaliação subjetiva que cada pessoa faz de si,
82
positiva ou negativamente. Esse sentimento está muitas vezes associado às mulheres,
pois no desempenho de sua função de mãe, esposa, e de doar a si mesma para o cuidado
de outros, as mulheres supostamente deixam de cuidar dos seus interesses. As
construções de gênero em torno do feminino tornam os desejos individuais das
mulheres desejos egoístas, estando elas condicionadas e condenadas a dispensar seu
carinho a amor natural aos filhos e companheiros, e na ausência destes, no caso das
solteiras, devem se dedicar a alguma atividade igualmente altruísta.
Por esse enunciado os autores continuam dizendo sobre a necessidade
“incontornável” das mulheres de serem amadas, assim marcam a identidade feminina
sempre em dependência do outro para se sentir completa e satisfeita.
No decorrer da história, os homens sempre ocuparam posições mais
poderosas e sempre puderam dominar mais abertamente do que as mulheres.
Sem força suficiente para impor sua vontade, as mulheres tiveram de confiar,
durante séculos em seus estratagemas e em suas astúcias para conseguir o
que queriam. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 59)
A autoajuda não sinaliza para as mulheres a possibilidade de viver em função de
si mesmas. Esses livros foram escritos em um momento histórico em que as mulheres
gozam de maior liberdade de decisão sobre suas vidas, mesmo que ainda sujeitas a
várias formas de assujeitamento. Elas possuem mais liberdade fora da clausura do
sistema patriarcal, mas os livros promovem uma volta aos padrões de comportamento
em vias de superação. Traçam para as mulheres um destino em retrocesso, recriando sua
identidade em torno do casamento e da maternidade.
2.3 Trabalho
A carreira profissional é uma das temáticas constantes quando se trata de direitos
e história das mulheres. Após a década de 1960, com a luta dos feminismos, o número
de mulheres que tiveram acesso à educação e em consequência a uma carreira
profissional aumentou consideravelmente. A literatura de autoajuda aborda esse assunto
em seu discurso, fazendo uma divisão do trabalho baseada nas funções evolutivas de
homens e mulheres. Sherry Argov não disserta diretamente sobre essa divisão, mas cita
83
em seu texto a relação das mulheres com sua independência financeira. Em todos os
livros o que fica evidente é a velha separação entre os homens como provedores e as
mulheres como dependentes deles.
Como já dissemos antes, a matriz de discussão de Allan e Barbara Pease é a
dinâmica social dos antepassados, teoria criada por eles para justificarem seus
argumentos. De acordo com essa visão, os homens eram caçadores, saíam de suas casas
todos os dias em busca de comida, enquanto as mulheres ficavam em suas casas
cuidando das crias e da organização. Elas também saíam com outras mulheres para
colher frutos, atividade que para os autores seria secundária, pois a parte importante do
sustento era a caça trazida pelos homens. Visualizamos nesse modelo a divisão do
trabalho do universo patriarcal, em que os homens sendo os provedores trabalham fora
de casa para providenciarem o sustento da família, enquanto as mulheres são as donas
de casa, atributo que contempla suas funções de mãe e esposa.
Esse panorama foi modificado a partir dos anos 1960, o movimento feminista
lutou por mais espaço para as mulheres no mercado de trabalho. Nessa primeira década
do século XXI, as mulheres já são maioria nas universidades, desempenham funções
antes consideradas masculinas, são chefes de família e não dependem mais apenas dos
homens para sobreviverem. Chama-nos a atenção então uma literatura que trabalha pela
volta do modelo patriarcal da divisão do trabalho em um período em que este já havia
em partes sido superado. Tecendo suas considerações acerca das diferenças entre os
sexos, os autores começam mostrando um modelo de mulheres polivalentes:
Todos os estudos que pesquisamos confirmam: o cérebro masculino é
especializado. Compartimentado. Configurado para se concentrar em uma
atividade específica. Por isso, a maioria dos homens diz que só pode fazer
uma coisa de cada vez. O cérebro feminino é configurado para tarefas
múltiplas. A mulher atende um telefonema enquanto prepara a nova receita e
assiste à televisão. Ou dirige, retoca a maquiagem, ouve rádio e fala ao
telefone viva-voz. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 37)
Nesse enunciado, os autores citam “estudos” para darem mais credibilidade à sua
fala, para eles os homens só conseguem fazem uma atividade de cada vez. Esse
argumento serve para defender a ideia de que a única tarefa masculina é o trabalho, e
nas horas vagas os homens se dedicam a descansar, por isso quando chegam em casa
não podem se dedicar a nenhuma outra tarefa. As mulheres possuem a capacidade de
84
fazer várias coisas ao mesmo tempo. No enunciado acima, os autores fazem questão de
citar apenas situações consideradas atividades femininas, como cozinhar, se maquiar,
assistir televisão, falar ao telefone. Em meio a esses exemplos citam “dirigir”, fazem
uma mistura com as palavras, mas o sentido produzido pelo texto coloca as atividades
femininas como menos importantes. Outra questão relevante é a sobrecarga de trabalho
feminino. Com esse discurso de que as mulheres por sua natureza possuem trilhas
“múltiplas”, os autores reforçam a desigualdade na divisão do trabalho, sobretudo no
trabalho doméstico, visto que os homens devido a sua constituição biológica só
conseguem fazer uma coisa de cada vez, então vão ao trabalho e quando chegam
precisam descansar. O trabalho doméstico além de ser tratado como menos importante,
faz com que as mulheres estejam sempre em constante atividade.
A autoajuda afirma características consideradas femininas e masculinas que já
povoam o imaginário social, mas citam estudos e pesquisas científicas para dar
credibilidade às afirmações. Segundo os livros analisados aqui, as mulheres têm uma
capacidade maior de falar, desenvolveram essa habilidade devido à sua evolução, já que
passavam horas com seus filhos e com outras mulheres colhendo frutos e conversando.
Os homens sendo caçadores não podiam falar durante a caçada, pois poderiam afugentar
a presa. Assim, as mulheres até os dias atuais falam mais do que os homens e isso se
torna um problema para os relacionamentos, além de definir as atividades que devem
desenvolver. “A finalidade da fala da mulher é a própria fala. Mas o homem entende
aquela ‘falação’ como uma busca de soluções e com seu cérebro analítico, interrompe a
toda hora.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 54) Mais uma vez os autores definam as
mulheres como indivíduos sem objetivos, menos racionais que os homens. A fala em
excesso das mulheres é prejudicial profissionalmente.
No campo profissional, o modo de falar feminino pode ser desastroso, pois
os homens não conseguem seguir raciocínio sinuoso e indireto e acabam
virando as costas ao que talvez fossem boas sugestões e propostas. Uma
conversa cheia de rodeios pode ser excelente para estabelecer
relacionamentos, mas não serve de nada quando se trata do controle de um
carro ou avião, em que as informações têm que ser absolutamente claras.
Os homens usam frases curtas, diretas, que se encaminham para uma
solução, um desfecho. Em assuntos profissionais, esse tipo de fala funciona
muito bem, levando a uma comunicação eficiente e afirmando autoridade.
(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 59)
85
Nos enunciados acima os autores limitam os campos de atuação das mulheres
devido a sua inaptidão em falar de forma direta como os homens, percebe-se que o
modelo de profissional seria o modelo masculino de ser. No texto, não fica claro a que
área de atuação os autores de referem, mas é possível perceber que estão delimitando as
áreas masculinas como impróprias para a forma de ser das mulheres. Segundo os
autores a conversação feminina é útil para estabelecer relacionamentos, com isso
reduzem as mulheres a emoções e sentimentos. Em citação anterior, os autores sugerem
que as mulheres conseguem fazer muitas coisas ao mesmo tempo, entre elas dirigir,
entretanto no texto acima, dizem que a fala feminina em excesso não é útil para dirigir
ou pilotar um avião. Analisando os sentidos produzidos pelos livros podemos notar que
o tempo todo estão falando de características entre os sexos condicionadas pelo cérebro,
portanto naturais, inerentes aos indivíduos, com isso marcam os lugares que homens e
mulheres devem ocupar, de forma definitiva e imutável.
Em reuniões de trabalho, a mulher que pensa alto é vista como
inconseqüente alienada ou indisciplinada. No mundo dos negócios, para
impressionar a ala masculina, a mulher deve calar seus pensamentos e só
falar quando chega a uma conclusão. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 53)
O uso da linguagem indireta e de trilhas múltiplas nos negócios pode ser
problemático. Para poderem tomar decisões, os homens precisam ser
apresentados a ideias e informações claras, lógicas e organizadas. A mulher
precisa usar a linguagem direta, dando horários, cronogramas, respostas
conclusivas e prazos. Nos negócios, deve ser direta com os homens,
abordando um assunto de cada vez, com começo, meio e fim, sem perder-se
em atalhos. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 121)
Quando os autores afirmam que a fala das mulheres as prejudica no mundo dos
negócios, ou para guiar veículos, os autores estão deixando claro que essas são
atividades masculinas. A solução para que as mulheres possam obter sucesso na vida
profissional é agir como os homens. Mas quando se trata dos homens, os livros não
oferecem alternativas para os homens conseguirem desempenhar as funções femininas,
uma vez que a masculinidade seria afetada.
A capacidade de orientação espacial, segundo as fontes pesquisadas, seria
responsável pela habilidade de mensurar espaços, distâncias e velocidade, fazer cálculos
e traçar estratégias.
86
As tomografias mostram que essa capacidade está localizada na parte frontal
do hemisfério direito do cérebro de homens e rapazes e é um de seus pontos
mais fortes. Desde os tempos mais remotos, a orientação espacial masculina
se desenvolveu de modo a que caçadores pudessem avaliar a velocidade,
direção e distância da caça, calcular quanto precisariam correr para alcançá-
la com uma pedra ou uma lança. Nas mulheres, essa capacidade é encontrada
em ambos os hemisférios, mas não tem uma localização específica e
mensurável. Por isso, apenas 10% delas têm boa ou excelente orientação
espacial. (PEASE A., PEASE, B., 2000, p. 65)
A orientação espacial é utilizada no livro para definir as áreas adequadas a
homens e mulheres no campo profissional. Assim, os homens é que são detentores desta
habilidade, o que faz com que ocupem os maiores cargos das empresas e estejam em
profissões em que possam utilizar essa capacidade. “Para alguns, essa pesquisa pode
parecer sexista, já que vamos discutir habilidades e capacidades em que os homens são
nitidamente superiores e atividades e ocupações nas quais a própria biologia faz com
que eles se destaquem.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 65) Como estratégia de
escrita, os autores se colocam na defensiva, afirmam a superioridade masculina nas
atividades profissionais, mas lançam mão do argumento da biologia para se
justificarem, os homens dominam porque faz parte da natureza, portanto, não é passível
de questionamento.
As representações de gênero marcam polos opostos para homens e mulheres, ao
definir as capacidades de cada um, segregam ambos os sexos em identidades imutáveis,
por serem fruto da natureza. A literatura de autoajuda que analisamos aqui se reveste de
um discurso de ordem para as relações conjugais, e através disso, instauram papéis de
gênero que limitam a atuação do sujeito na sociedade de acordo com o sexo. Através da
explicação da orientação espacial, definem que os homens devem ocupar as profissões
que exijam raciocínio lógico e força, típica de um caçador, enquanto nas mulheres...
A capacidade de orientação espacial não é um ponto forte em mulheres e
meninas porque caçar e encontrar o caminho de casa não fazia parte das
atribuições femininas. É por isso que elas têm tanta dificuldade em ler mapas
e guias de ruas. As mulheres não desenvolveram suas habilidades espaciais
porque o máximo que vêm caçando através dos tempos é o bicho homem.
(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 66)
O enunciado produz sentidos relevantes quando analisamos os processos de
subjetivação feminina, afirmam que as mulheres não precisavam achar o caminho de
87
casa, pois não precisavam sair de dentro dela. Essa afirmação da autoajuda se ancora em
uma memória discursiva que traduz a casa, o lar, como o espaço de atuação das
mulheres. Embora esse panorama tenha sido mudado desde a segunda metade do século
XX, essa literatura busca assujeitar as mulheres leitoras a um modelo feminino que já
não se sustenta mais. O que salientamos aqui não é a impossibilidade das mulheres
serem donas de casa no século XXI, mas sim a limitação da vida das mulheres ao
espaço doméstico de forma obrigatória, além de demonstrarmos a desvalorização do
trabalho doméstico, por ser uma atividade feminina.
Os autores se utilizam da ironia para demonstrar uma imagem feminina que gira
em torno do masculino, afirmam que ao longo do tempo as mulheres só caçaram o
“bicho homem”, reduzem as mulheres a uma dependência até mesmo psicológica dos
homens, pois os sentidos produzidos por esses enunciados colocam a identidade das
mulheres incompleta se não houver um homem que preencha os espaços vazios.
Enquanto os homens com sua capacidade de orientação espacial produziram grandes
feitos ao longo da história, as mulheres se ocupavam com o amor e o romance,
buscando um “marido” para que assim pudessem desenvolver suas habilidades naturais.
Se estudarmos a História, vamos ver que praticamente nenhuma mulher se
destacou em áreas que exigem habilidade espacial e raciocínio matemático,
como xadrez, engenharia espacial e composição musical. Pode surgir quem
afirme que tudo isso é resultado da tirania machista, mas olhe em volta: em
nosso mundo que progrediu na oferta de oportunidades são muito raras as
mulheres que superam aos homens em habilidades que dependam das
relações espaciais. Por quê? A principal razão está na estrutura de seu
cérebro, que é um fator fortíssimo na determinação de seus interesses.
(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 70)
Além de usar a biologia como estratégia de convencimento, nesse excerto os
autores usam a História para dar ênfase e credibilidade à sua fala. Convidam os leitores
a refletirem e tirarem as suas próprias conclusões, incitam o pensamento do leitor, no
entanto esse pensamento já está guiado pelos argumentos do livro. No texto analisado,
os autores já se defendem das críticas que podem receber, mesmo que alguém possa
dizer que a divisão natural do trabalho é fruto de uma tirania machista, eles convocam
os leitores a olharem para a realidade em que vivem. A história das mulheres vem
mostrando desde os seus primeiros estudos o apagamento das mulheres na história,
confinadas em suas casas, recebendo uma educação inferior, não era de se estranhar que
88
uma história que registra os grandes feitos dos homens, não evidenciasse as mulheres.
Os feitos das mulheres não mereciam registros, pois eram menos importantes, e assim,
se o leitor da autoajuda remeter à história chegará à conclusão de que realmente
nenhuma mulher se destacou nas áreas citadas pelos autores.
Como dissemos no início deste trabalho, no século XIX a educação feminina
visava preparar as mulheres para ser mãe e esposa. Ao longo do tempo, essa divisão
permaneceu e as escolas ofereciam atividades adequadas para meninas e meninos. Em
consequência disso, as profissões também foram separadas de acordo com os sexos,
mesmo que as mulheres tivessem saído dos limites da casa, ocupavam no mercado de
trabalho profissões adequadas para seu sexo. As mulheres eram professoras, secretárias,
empregadas domésticas, babás, entre outras profissões em que pudessem desempenhar
suas habilidades femininas, cuidar e servir ao outro. A literatura de autoajuda analisada
neste trabalho, mesmo sendo escrita em um momento em que esses grilhões em grande
parte foram quebrados e as mulheres puderam assumir profissões tidas como
masculinas, defendem que as mulheres devem ocupar cargos em que possam
desempenhar suas capacidades naturais.
As mulheres devem procurar por áreas que têm maior capacidade, optar por
carreiras e ocupações em que podem exercer as aptidões naturais que estão
de acordo com as orientações de sua estrutura social. (...) As pesquisas
mostram que o cérebro feminino se adapta melhor à tarefa de ensinar porque
suas habilidades de comunicação e interação são mais desenvolvidas. As
mulheres se destacam em áreas em que é preciso mais criatividade do que
raciocínio abstrato, como as artes, o ensino, os recursos humanos e a
literatura. Enquanto os homens jogam xadrez, as mulheres dançam e cuidam
da decoração. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.70)
O discurso da autoajuda busca constituir mulheres de acordo com padrões
ultrapassados e representa um retrocesso na luta pela igualdade de direitos e acesso a
oportunidades. Funciona como um discurso contrário ao discurso feminista, pois
submete às mulheres a representações que as limitam, enquanto o feminismo
proporcionou uma nova forma de se colocar no mundo.
A autora SherryArgov aborda a questão do trabalho em um capítulo intitulado
“Garantindo seu certificado de propriedade”, nessa frase as mulheres já são associadas à
posse, segundo a autora as mulheres devem ser independentes e serem donas de si
89
mesmas. As mulheres, segundo o livro Por que os homens amam as mulheres
poderosas?, devem manter sua independência financeira, a fim de garantir que tenha a
“propriedade” de si mesmas em suas mãos. Apesar do discurso da independência
presente nesse pensamento, o livro assinala que as mulheres são passíveis de serem
posse de alguém, que seja ela mesma ou um homem.
É isso o que, por experiência própria as mães dizem às filhas: se uma mulher
abre mão de sua independência financeira e se torna dependente de um
homem, ela tem muito menos escolhas na vida. Está sempre à mercê de
alguém. É por isso que, para uma mulher manter sua independência, ela deve
ter total propriedade de si mesma. (ARGOV, 2009, p. 146)
Quando você tem recursos financeiros e profissionais, só permanece em um
relacionamento porque quer, e não porque o parceiro é sua única fonte de
sustento. Se decidir ir embora, basta pegar a mala e sair. É essa
independência que faz com que ele a respeite e admire. (ARGOV, 2009, p.
147)
No enunciado acima, o trabalho feminino serve para que as mulheres tenham uma
segurança ao sair do relacionamento, além de fazer com que os homens as admirem
mais. Sherry Argov em seu livro trata qualquer atitude feminina como um meio de
chamar a atenção masculina. Mesmo quando o assunto é independência feminina, as
mulheres devem pensar em causar boa impressão para que aquelas que estejam em um
relacionamento consigam mantê-los e as que ainda não estiverem, consigam conquistar
um parceiro. Um elemento importante desse enunciado se situa no trecho: “Se decidir ir
embora, basta pegar a mala e sair”, inferimos desse trecho que de forma geral, as
mulheres a que a autora se refere e a quem direciona seu discurso possuem menos
condições financeiras que seus parceiros. Argov refere-se em seu texto invariavelmente
a situações em que os homens possuem mais dinheiro que as mulheres.
É importante deixar claro que você coloca sua dignidade acima de tudo,
mesmo que esteja namorando um homem extremamente bem sucedido. Ele
precisa sentir que, se não a tratar bem, você sai da mansão dele e volta para o
seu pequeno apartamento, sem hesitar. (ARGOV, 2009, p. 147)
Apesar de defender um modelo de mulher moderna, poderosa e independente,
esse livro reforça a desigualdade entre os sexos. Não assinala a possibilidade de em uma
relação ser a mulher detentora de maior poder financeiro. No enunciado acima, essa
90
questão fica bem clara quando a autora faz referência à “mansão” do homem e ao
“pequeno apartamento da mulher”. A defasagem salarial entre homens e mulheres é
uma questão que ainda ocorre em diversas profissões, homens e mulheres
desempenham a mesma função e recebem salários diferentes. O sentido produzido pela
autoajuda torna esse fato uma questão natural. Ao mesmo tempo em que induz as
mulheres a serem independentes, deixa claro que qualquer posição que as mulheres
ocuparem, elas não estarão em igualdade com os homens. Ainda falando sobre o
trabalho feminino a autora diz:
Não é uma questão de ele pagar a maioria das contas, mas sim de você
conseguir ou não ser independente, se for necessário. Dessa forma, ele não
possui seu certificado de propriedade, trata-se de um arrendamento com
opção de compra. Ele pode se sentir o “chefão da casa”. Lembre-se, ele deve
se sentir como o Poderoso Chefão no que se refere ao seu habitat e seu
território. Por outro lado, não pode achar que tem a chave da sua
subsistência. (ARGOV, 2009, p.151)
Segundo o livro da autora, as mulheres devem trabalhar para que adquiram uma
independência financeira que poderá ser usada “se for necessário”. Por esse enunciado
vemos que na realidade das mulheres, ser independente é uma exceção e não uma regra.
A independência serve para os homens não possuírem “certificado de propriedade”
sobre as mulheres, é uma espécie de “arrendamento com opção de compra”, ou seja, as
mulheres são propriedade de seus parceiros enquanto a relação vai bem, mas podem
comprar deles o certificado de propriedade quando não estiverem mais satisfeitas. Esse
enunciado afirma o poder masculino, e aconselha as mulheres a garantirem essa
posição, pois é a ordem correta das coisas.
Tudo o que uma mulher precisa para equilibrar a relação é pagar uma conta
de luz com seu próprio dinheiro ou levar para casa, de vez em quando,
algumas compras feitas no supermercado. Qualquer uma dessas atitudes
expressa gratidão dela; o homem fica feliz em pagar todo o resto. Ele não
precisa sentir que tudo é igual, somente recíproco. (ARGOV, 2009, p. 152)
A diferença na valorização da renda feminina e masculina está exposta no texto
acima, para “equilibrar a relação”, as mulheres precisam apenas pagar algumas contas.
Se pensarmos nos dois polos, o masculino e o feminino, o discurso da autoajuda
91
reafirma o poder econômico como masculino, uma vez que são as mulheres quem
precisam de meios para equilibrar a relação. Ao trazer algo para casa, comprado com o
seu próprio dinheiro as mulheres demonstram a gratidão para com o parceiro, gratidão
pelo sustento que eles as oferecem. Assim, a ideia de igualdade e independência da
autora não se sustenta na medida em que ela vai dissertando sobre a questão. Em seu
texto ela procurar oferecer uma ideia de mulher moderna, independente, mas se
contradiz ao determinar a desigualdade como forma de equilibrar o relacionamento. A
renda feminina é vista apenas como complementar, mas não essencial.
A frase final desse enunciado deixa bem clara a questão posta pela autora, o
homem não precisa sentir que sua parceira é igual a ele, mas que ela se sente grata e
satisfeita com a vida que ele lhe proporciona. O que vemos aqui é mais uma vez uma
imagem feminina que gira em torno do masculino, as mulheres em todas as suas
atitudes pretendem apenas manter o relacionamento. Os homens são apresentados como
troféus a serem conquistados, o poder feminino prometido pela autora é o poder de
conquistar um parceiro. Esse sentido da vida feminina dialoga com vários discursos
sobre as mulheres que tornam o casamento como o objetivo maior da vida delas, sem o
qual elas não estão completas e não conquistam sucesso em suas vidas.
92
Capítulo 3
AMOR, CASAMENTO E SEXUALIDADE
A literatura de autoajuda analisada aqui através dos livros, Por que os homens
fazem sexo e as mulheres fazem amor? e Por que os homens mentem e as mulheres
choram?, dos autores Allan e Barbara Pease, e Por que os homens amam as mulheres
poderosas? da autora Sherry Argov, constroem diferenças de gênero a partir da
abordagem de assuntos variados. Neste capítulo trataremos do processo de conquista do
parceiro, do casamento e da sexualidade, esses temas são citados nos livros e em cada
um deles os comportamentos sexuais são diferenciados.
3.1 A conquista do amor
Os livros que estudamos neste trabalho possuem a intenção de facilitar a
convivência entre os casais. Segundo suas teorias, conhecendo melhor as características
de cada sexo, a convivência se torna mais agradável e os conflitos amenizados. Mas
antes do relacionamento em si vem a conquista do parceiro. O livro da escritora Sherry
Argov é o mais relevante quando se trata desse assunto. A autora ensina as mulheres a
se tornarem “mulheres poderosas” para conquistar um parceiro ou para manterem o que
já têm. Nos três livros que analisamos os relacionamentos amorosos são prioridades e
anseios femininos. De acordo com Ana Antunes das Neves:
Frequentemente classificado como feminino, o amor aparece como sendo
um sentimento das mulheres. Assim, as qualidades expressivas do amor e da
intimidade são vulgarmente reconhecidas como preocupações femininas,
manifestadas através de fatores emocionais intensos, tais como a
gratificação, a afirmação, a prestação de cuidados e a paixão. (NEVES,
2007, p. 613)
Sherry Argov, através de seu livro constrói a imagem de uma mulher ideal, uma
mulher poderosa que gosta de si mesma antes de qualquer coisa, que busca seus
objetivos, mas o que nos chama a atenção é que todos os esforços da “mulher poderosa”
não são para sua individualidade, e sim para conquistar um homem, assim toda a
93
finalidade da vida feminina, nesse livro, se torna o relacionamento amoroso. Segundo
Tânia Swain:
(...) o processo de subjetivação das mulheres é flexionado por um dispositivo
amoroso, composto de traços enunciados enquanto femininos valores morais
específicos: o dom de si, a abnegação, o cuidado de outrem, o amor, a
realização amorosa como coroamento de uma existência. O processo de
subjetivação, portanto, não fez em busca de si, mas do outro, em um quadro
histórico, que lhe dá significação. (NAVARRO-SWAIN, 2009, p. 12)
A autora Sherry Argov fala em seu livro sobre um desafio mental, que seria um
método de conquista a que as mulheres devem se submeter, em que elas se fazem de
difíceis para os homens, como salienta a autora: “Os homens em geral não se vêem
diante de uma mulher que não mede sacrifícios para conquistá-los. Elas não oferecem o
desafio mental que os homens procuram.” (ARGOV, 2009, p.13) Está determinado
nessa fala o comportamento ideal para as mulheres conseguirem a atenção do homem
que deseja, devem ser uma mulher capaz de fazer com o que o homem lute por ela. Mas
em seguida Argov faz uma ressalva:
Por outro lado, as mulheres erram ao imaginar que, se tiverem doutorado, se
souberem defender suas ideias em uma discussão sobre política internacional
ou se entenderem de investimentos, serão naturalmente capazes de oferecer
um estímulo mental ao homem. (ARGOV, 2009, p. 13)
Neste enunciado percebemos uma advertência por parte da autora, as
características citadas acima não são relevantes para uma mulher conquistar um
parceiro, constitui um erro que não deve ser cometido. A palavra “naturalmente”
empregada nesse texto serve para classificar estas atividades como não pertencentes às
mulheres, e devido a isso não servem para chamar a atenção do homem desejado. Com
a afirmação de que as mulheres jamais devem demonstrar seus conhecimentos, a autora
de forma sutil marca as questões citadas no enunciado como parte do universo
masculino. A mulher poderosa defendida pela autora precisa afirmar sua feminilidade
constantemente, ela possui objetivos, gosta mais de si mesma, mas tudo isso sem perder
o jeito doce, amável típicos das mulheres. Argov se utiliza de um discurso de poder
feminino, defende uma mulher independente, mas ao mesmo tempo coloca as mulheres
94
dentro de um modelo mais antigo, pois o casamento e a conquista de um parceiro
aparecem como um dos maiores objetivos da vida feminina.
O jogo de gato e rato que as mulheres acham enlouquecedor é, na verdade,
muito excitante para os homens. Essa é uma diferença básica entre os sexos.
A mulher, em geral, caminha para chegar a um destino: um compromisso. Já
o homem acha mais divertido o percurso para chegar ao destino. (ARGOV,
2009, p. 28)
A diferenciação entre os sexos é feita de forma mais direta nesse texto, mas o que
nos chama mais atenção é a metáfora usada para definir o processo de conquista dos
casais, “um jogo de gato e rato”, ou seja, uma caçada em que temos um predador e uma
presa. O poder masculino está mais uma vez evidenciado. Segundo a autora, os homens
gostam de ter que lutar pelo que querem, acham mais emocionante a batalha, pois com
ela demonstram seu poder e suas capacidades, as mulheres devem então oferecer um
desafio para que eles queiram conquistá-las
A mulher poderosa compreende que, quando um homem deseja alguma
coisa, ele vai a luta, e o fato de ter que correr atrás torna o objeto ainda mais
atraente. Quando ele não obtém sucesso imediato, começa a ansiar pelo que
procura. A mulher boazinha joga água fria nesse processo, porque o homem
tende a ficar entediado com algo que não exige dele um grande investimento
pessoal. (ARGOV, 2009, p. 29)
O livro de Argov demonstra um jogo de sentidos ao definir a mulher poderosa. À
primeira vista parece um texto inofensivo construindo para as mulheres uma nova forma
de se colocar no mundo, valorizando sua individualidade e pensando em seu bem estar e
satisfação pessoal. Entretanto com a metodologia empreendida neste trabalho, podemos
buscar os sentidos produzidos pelas palavras, penetrar nas camadas do discurso,
desvendando outras intenções, além daquelas que estão em evidência. No enunciado
acima, a autora compara as mulheres a um mero objeto a ser adquirido pelos homens,
dizer que as mulheres poderosas compreendem esse processo e por isso obtêm mais
sucesso, serve como um argumento que legitima sua fala. Dando seguimento ao texto,
Sherry Argov cita a caçada, mais uma vez aludindo ao processo de conquista dos
homens e das mulheres.
95
Vamos usar como exemplo uma caçada. O homem sai para caçar com os
amigos. Fica acampado a semana inteira, dorme nas piores condições, é
devorado por mosquitos e ainda tem que comer uma gororoba sofrível. No
entanto, ele se submete a tudo isso para conseguir abater um alce. E, quando
consegue, fica mais vaidoso do que um pavão e quer exibir a cabeça do
pobre animal, colocando-o na parede do escritório. (ARGOV, 2009, p. 29)
A metáfora da caça coloca as mulheres em uma situação de completa inércia e
submissão, a mulher poderosa segundo Argov compreende o funcionamento desse
processo e se coloca nessa situação, pois é assim que conseguirá o parceiro ideal. As
mulheres são presas prontas para serem abatidas. A sua conquista pelo homem significa
a efetivação do poder masculino. Essa alegoria chega a ser violenta, a autora coloca as
mulheres em uma posição lastimável de vítimas, nas palavras dela, os homens querem
no fim de tudo, exibir a cabeça do “pobre animal”. Como ela mesma cita a situação para
exemplificar, inferimos que compara as mulheres a esse animal, colocando-as em uma
posição indefesa. Em pleno século XXI, um livro como esse vendeu milhares de cópias,
disseminando um discurso de poder feminino que na realidade serve para encobrir a
velha ideia de subordinação. Os sentidos produzidos por esse livro constroem mulheres
submetidas a um padrão de comportamento patriarcal, promovem a volta de um
comportamento dócil, um modelo de mulher reduzida às vontades masculinas.
A literatura de autoajuda em sua categoria sentimental traz livros direcionados às
mulheres, como já dissemos antes, no campo social, os sentimentos e as emoções são
considerados femininos, os homens possuem a seu favor o poder e a racionalidade. O
livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? traz como um de seus
ensinamentos o comportamento ideal para que as mulheres conquistem um parceiro,
assim, devem se tornar difíceis de serem conquistadas, não devem deixar o homem
perceber que estão disponíveis, mas ao mesmo tempo, devem se colocar em uma
posição de presa. Segundo a autora, quando as mulheres correm atrás de um homem,
elas acabam com a sensação de poder dele. De acordo com Argov: “Quando ela (a
mulher) corre atrás de um homem, produz o mesmo efeito que provocaria se deixasse
um alce morto na porta da casa dele.” (ARGOV, 2009, p. 29) E mais uma vez as
mulheres são comparadas a um animal morto, o que representa sua fraqueza e sua
condição de inferioridade diante de um homem poderoso que precisa do poder para se
sentir completo. “Homens são caçadores, e por isso ficam mais interessados em
96
conquistar uma presa quando ela resiste a eles. A maioria dos homens sente atração pela
mulher poderosa porque é emocionante a tentativa de dominá-las.” (ARGOV, 2009, p.
44)
A mulher poderosa se torna o exemplo, pois compreende a necessidade natural
dos homens de exercitarem seu poder, até mesmo para conquistar uma mulher. Os
homens são os agentes da ação, as mulheres são passivas, não devem agir, devem
esperar que eles cheguem até elas. A mulher poderosa é uma mulher de atitude, mas
suas atitudes se resumem a compreender como funciona o universo masculino e se
submeter a ele. Em um relacionamento, mesmo as mulheres sendo poderosas, não
devem tomar a iniciativa, pois correm o risco de fazer com que o parceiro se
desinteresse. Como vimos, Sherry Argov, a exemplo dos escritores Allan e Barbara
Pease, recorrem a teoria de que os homens e mulheres de hoje são evoluções dos
homens das cavernas, sendo o homem o caçador e a mulher a guardiã da cria.
No livro Por que os homens amam as mulheres poderosas?, a autora busca
construir a imagem de uma mulher adequada às mudanças ocorridas na vida das
mulheres desde a década de 1960; desenha o perfil de uma mulher que valoriza a si
mesma, possui independência financeira, mas uma análise mais detalhada desse
discurso mostra um outro lado. A mulher poderosa de Sherry Argov nada mais é do que
uma releitura de um ideal feminino muito presente na história, na literatura e em outros
meio discursivos desde há muito tempo. No enunciado a seguir podemos ver isso de
forma bem clara: “As mulheres bem sucedidas profissionalmente são, com freqüência,
as que se pegam dizendo: ‘Eu não deveria ter que me desculpar por ser forte. ’ Elas não
entendem por que não conseguem ‘achar um bom homem. ’” (ARGOV, 2009, p. 78)
Apesar de defender a independência financeira das mulheres, sinaliza nesse excerto a
incompatibilidade entre uma vida profissional bem sucedida e o relacionamento com
um “bom homem”.
A autora continua, dizendo: “É por que um bom homem deseja uma boa m-u-l-h-
e-r. Ser poderosa não significa perder a feminilidade nem tentar abertamente vestir as
calças dentro de casa. Significa apenas não admitir ser pisada por ninguém.” (ARGOV,
2009, p. 78) A feminilidade carrega em si as marcas da fraqueza, da delicadeza,
qualquer atitude das mulheres que seja diferente disso é um ponto negativo para
conseguir um parceiro. No enunciado acima a autora grafou a palavra “mulher” com
97
todas as letras separadas, esse artifício foi usando para dar ênfase à palavra, significando
no texto a mulher enquanto essência. Nesse sentido, para ser uma mulher de verdade é
preciso seguir determinadas regras de comportamento, e nunca perder a tal
feminilidade.
A expressão “vestir as calças dentro de casa” busca marcar o homem como o
detentor do poder, essa expressão constitui um interdiscurso que localiza o poder nas
mãos dos homens. Essa ideia também aparece nos outros dois livros que analisamos
aqui. No último trecho extraído do livro Por que os homens amam as mulheres
poderosas?, fica claro que as mulheres não devem ser os chefes dos lares e dos
relacionamentos, a mulher poderosa entende que para ser “poderosa” não precisa e não
deve ocupar o lugar superior dos homens na relação. A divisão binária e hierárquica
entre os sexos está demonstrada nesse livro, embora sua autora possua a intenção de
modificar a conduta das mulheres, transformando-as em pessoas mais autônomas, o
discurso preponderante revela que os velhos papéis destinados as mulheres continuam
sendo incentivados, reafirmados, reconstruindo um padrão de comportamento patriarcal.
A igualdade de direitos nos relacionamentos não aparece como opção no discurso
da autoajuda, é citado apenas para ser criticado. A ênfase dos autores é em
relacionamentos em que um exerce domínio sobre o outro, cabendo às mulheres
entenderem que é natural que os dominadores sejam os homens. No livro de Sherry
Argov encontramos referências à luta pela igualdade entre os sexos: “A supermulher
clássica deseja um relacionamento em que o homem e a mulher sejam ‘iguais’. Essa é
uma boa teoria, mas na prática, acaba gerando uma relação desigual.” (ARGOV, 2009,
p. 78) A expressão “supermulher clássica” foi usada nesse texto como forma de crítica,
determinando uma posição indesejável para as mulheres. A palavra “iguais” foi grafada
no texto entre aspas, artifício usado para desqualificar a ideia de igualdade. Ao dizer que
a ideia de igualdade é uma boa teoria, Argov reduz todo um movimento de lutas e
direitos conquistados a uma simples teoria que não possui utilidade na prática. Outro
ponto importante é o fato de que os três livros que analisamos aqui tratam o feminismo
e a ideia de igualdade entre os sexos se referindo a situações básicas do cotidiano dos
casais, estando sempre homens e mulheres atrelados uns aos outros, como se não
existisse a possibilidade de individualidade para ambos. As questões a que o feminismo
realmente se refere, os direitos civis, os direitos sobre o corpo, a luta contra a violência
98
e todos esses fatores são apagados, reduzindo o feminismo a apenas uma pequena
parcela de mulheres que querem “tomar” o poder.
3.2 Casamento
A identidade feminina construída através de discursos sociais relaciona as
mulheres a questões sentimentais; as mulheres são consideradas mais emotivas, mais
sensíveis e mais ligadas aos relacionamentos do que os homens. Como vimos, a teoria
do casal Pease defende que as mulheres evoluíram como guardiãs da cria e devido a isso
seu cérebro foi programado para amar e cuidar do outro.
O casamento aparece na sociedade como um anseio típico feminino, o maior
objetivo da vida das mulheres, através dele é que elas poderão desempenhar seu papel
de cuidadora e o mais importante de todos, o de mãe.
Na literatura de autoajuda que analisamos, o casamento apresenta-se como uma
necessidade feminina que coaduna com características naturais das mulheres. Como
analisamos neste trabalho, desde a década de 1960, os discursos sobre as mulheres
passaram a conviver com as novas formas de ser mulher introduzidas pelo movimento
feminista que questionou os valores e padrões antes impostos para as mulheres. Mas a
visão do casamento como um fim necessário para a vida feminina ainda persiste e a
autoajuda contribui para reforçar essa questão. Atravessadas durante toda a vida por
discursos que as constituem, sobretudo enquanto esposas e mães, muitas mulheres
sonham com o casamento de forma tradicional, ainda que tenham uma carreira
profissional, sejam independentes, ou conscientes de que não precisariam mais de um
homem para dar significado a sua existência como fora em outros tempos.
As mulheres, segundo a autoajuda analisada aqui, são as mais interessadas nos
relacionamentos, acima de tudo no casamento; os homens apesar de em algum momento
de suas vidas se submeterem a ele, não o possui como um grande objetivo. De acordo
com o livro “Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor”,
A mulher sempre acha que o relacionamento é mais importante para ela do
que para ele – e é mesmo. Entender essa diferença é se livrar da pressão e
aprender a não se julgarem tão severamente. (PEASE, A., PEASE, B., 2000,
p. 77)
99
O cérebro feminino é programado para encontrar um homem que se
comprometa a dar assistência até que os filhos estejam criados. Isso se
reflete nas qualidades que a mulher busca em um companheiro para um
relacionamento estável. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.102)
No primeiro enunciado, os autores se utilizam da diferença entre os sexos para
justificar a maior responsabilidade das mulheres com o relacionamento. Para que as
mulheres não se sintam mal em seus relacionamentos, os autores aconselham a entender
as diferenças entre homens e mulheres, no intuito de que a harmonia se estabeleça. Com
isso, esse livro reforça as diferenças e desigualdades, usando-as como um antídoto para
os males do casamento. Desde que nascem, as mulheres são educadas para cuidarem do
outro, a serem sempre amorosas, pois é uma característica necessária para o
desenvolvimento pleno de sua feminilidade. Esse processo é feito através da
constituição de um indivíduo em mulher, os discursos que instauram o modelo perfeito
de comportamento atravessam os indivíduos durante toda a sua vida e os constituem de
acordo com os valores desejáveis para seu sexo biológico. Dessa forma, as meninas
desde sua infância convivem com brinquedos ligados à maternidade, à vida doméstica, e
por consequência ao casamento. No segundo enunciado percebemos esse fator de forma
mais clara, durante toda a sua vida, as mulheres estão sempre em busca do parceiro
ideal, para que enfim elas realizem o seu destino: ser esposa e mãe. Em “Porque os
homens mentem e as mulheres choram”, o casal Pease afirma:
Um relacionamento é apenas uma negociação com regras - se você quer
amor, amizade, sexo, e uma pessoa para cuidar de você tem que dar algo em
troca. O que as mulheres querem em troca é amor, dedicação e fidelidade.
Elas não têm a menor intenção de roubar a liberdade do homem. (PEASE,
A., PEASE, B., 2003, p. 88)
Nesse texto, os autores estão falando para os homens, como se os tranquilizasse
sobre o que é um relacionamento, e já delimitam aquilo que os homens esperam dele:
amor, amizade, sexo e alguém para cuidar deles. Ao passo que as mulheres só precisam
de amor, dedicação e fidelidade. Como podemos perceber, o papel das mulheres está
relacionado à doação de si, pois elas é que cuidam e não precisam ser cuidadas, em
outras palavras, elas servem. Outra diferença nessa afirmação é que os homens
procuram por sexo, e essa necessidade não é citada quando se trata das mulheres. A
100
sexualidade feminina na literatura é vista como secundária, mas falaremos mais
profundamente desse assunto no próximo tópico. Esse excerto faz referência ainda a
liberdade masculina, que poderia ser prejudicada pelo casamento. As mulheres não
estão relacionadas na autoajuda a ideia de liberdade, uma vez que, seu discurso está
inserido em uma formação discursiva em que as mulheres estão submetidas a todo o
momento de suas vidas ao domínio de um homem. Antes do casamento aos pais e após
ele ao marido. Dessa forma, a liberdade não é uma condição relacionada às mulheres,
embora as fontes analisadas aqui tenham sido escritas em um momento histórico
quando muitas mulheres já possuem mais liberdade e já não são mais obrigadas a
contrair o matrimônio para que tenham um papel respeitável na sociedade.
A autoajuda trata o casamento como fundamental para saciar a necessidade das
mulheres de doar o seu amor, serem amadas e desenvolverem suas habilidades naturais.
Enquanto para os homens o casamento aparece como uma prisão criada ao longo da
história e que vai contra sua constituição biológica.
O macho da espécie humana tem as características físicas das espécies
poligâmicas. Não há dúvida: o homem tem que travar uma batalha constante
consigo mesmo para ficar com uma só mulher. (PEASE, A., PEASE, B.,
2000, p. 108)
Qual é a vantagem do casamento para o homem? Em termos de evolução
nenhum. O homem é como o galo, tem necessidade de espalhar ao máximo e
com a maior freqüência suas sementes genéticas. Apesar disso, a maioria dos
homens ainda se casa e, quando se divorcia, torna a casar ou viver com outra
mulher. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 124)
Nesse enunciado os autores buscam reforçar seus argumentos de que o casamento
é um empreendimento feminino. Através da afirmação de que os homens são
poligâmicos por natureza, os autores justificam a maior propensão dos homens à traição
em um relacionamento, além disso, esse livro incentiva as mulheres a se conformarem
com a situação. Ideias como essas criam relacionamentos desiguais e pretendem
assegurar as raízes biológicas dos comportamentos. Não pretendemos aqui entrar no
mérito de avaliar moralmente o lado positivo ou negativo da traição, mas sim
demonstrar como a autoajuda trabalha para construir relacionamentos disformes e que
trazem as marcas de valores patriarcais que subjugam as mulheres e sua existência.
101
Durante quase todo o tempo de existência da raça humana, os machos foram
polígamos por razões de sobrevivência. Havia pouca oferta de homens
porque muitos morriam nas caçadas e nas guerras. Era razoável, portanto,
que os sobreviventes adotassem as viúvas em seus haréns, o que também
aumentava a chance de também poderem transmitir seus genes. Do ponto de
vista da sobrevivência da espécie, fazia sentido que um macho tivesse 10 ou
20 fêmeas, mas não fazia sentido que uma fêmea tivesse 10 ou 20 machos, já
que ela só podia parir um filho de cada vez. Somente 3% das espécies
animais, raposas e gansos, por exemplo, são monógamos. (PEASE, A.,
PEASE, B., 2003, p. 87)
Nesse enunciado os autores se utilizam de uma universalização dos
comportamentos para justificarem suas teorias, segundo eles, os homens foram
polígamos em todos tempos de existência da raça humana, desconsideram assim as
mudanças e transformações por que passam todas as sociedade, além de citarem “toda a
raça humana”, afirmando assim que todos os homens são iguais independente das regras
sociais, culturais a que estão submetidos. Na teoria criada pelos autores, as atitudes
masculinas são atos de bravura, sua propensão à poligamia vem da necessidade de
sobrevivência da espécie. Nesse enunciado também, mais uma vez os autores reforçam
a maternidade como a principal função das mulheres. Podemos perceber que elas são
apenas o receptáculo do embrião, a ação da fecundação é do homem, são eles que
precisam disseminar seus genes. A centralidade do masculino na literatura fica bem
evidente nesse excerto, assim como as diferenças e desigualdades entre homens e
mulheres, que são justificadas pela necessidade de preservação da espécie humana. Essa
preservação se dá através da disseminação do gene pelo homem, esses livros não levam
em conta que para um ser humano nascer é necessário que haja um óvulo e um
espermatozóide. No discurso dos autores, as mulheres são apenas receptoras do gene
masculino.
Quando falam de casamento os três livros analisados aqui fazem a divisão entre os
interesses de homens e mulheres, em que homens visam sexo e mulheres visam amor.
“Muitos homens, ao assinar a certidão de casamento, pensam estar dando início a uma
era de sexo a qualquer hora. Só que isso nunca é discutido antes, e as mulheres não
pensam do mesmo modo.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 124) Essa fala reduz as
mulheres a meros objetos sexuais, que pelo casamento se tornam disponíveis
oficialmente para saciar os desejos masculinos. “Embora o casamento tenha se tornado
um ‘tigre desdentado’ nas sociedades ocidentais, ele ainda é o sonho da maioria das
mulheres.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.125) Nesse trecho os autores reforçam a
102
ideia de que o casamento é um desejo e uma necessidade feminina. Apesar de fazer uma
crítica sobre o casamento nesse excerto, os autores em seus livros não sinalizam
nenhuma alternativa de vida que não passe por ele, mas deixam claro constantemente
que ele só serve às mulheres.
Para a mulher, o casamento é a demonstração pública de que ela é “especial”
para um certo homem, que pretende ter com ela um relacionamento
monogâmico, além de lhe dar segurança. A sensação de ser “especial” tem
um efeito significativo sobre a ação química do cérebro feminino. Esse fato
foi comprovado por pesquisas que apontaram que a mulher tem de duas a
três vezes mais orgasmos nos relacionamentos monogâmicos e quatro a
cinco vezes mais quando faz sexo na cama do casal. (PEASE, A., PEASE,
B., 2000, p. 125)
Nesse enunciado vemos o trabalho da autoajuda em defender o casamento como
uma necessidade inconteste das mulheres. Afirmam que o casamento demonstra
publicamente o quanto aquela mulher é especial, ou seja, as mulheres não existem por si
mesmas, sua autoestima e valorização dependem dos homens. As mulheres são seres
indefesos, suas vidas giram em torno do masculino e seu poder fálico, assim o
casamento dá segurança para as mulheres. Os sentidos produzidos por esse enunciado
instauram a fraqueza como característica definidora do feminino. Através desse discurso
a autoajuda dissemina uma verdade sobre as mulheres, com seu grande poder de
circulação distribui representações nocivas sobre elas. Muitas mulheres buscam esse
tipo de literatura para tentar resolver problemas afetivos, convencidas durante toda a sua
vida de que precisam ser amadas, precisam se casar, a própria sociedade planta essa
necessidade. A autoajuda prescreve a elas um comportamento fundado em valores
patriarcais que as submete a relacionamentos desiguais.
Para justificar a afirmação de que as mulheres precisam de um parceiro fixo para
lhe dar amor e segurança, o livro usa como argumento de autoridade uma pesquisa que
diz que mulheres casadas têm mais prazer em suas relações sexuais. Essa afirmação
busca legitimar o casamento monogâmico para as mulheres, fazendo uma clara
diferenciação com o comportamento masculino, em que manter relações sexuais com
mais de uma mulher é natural, pois é um comportamento definido pela biologia. Nos
três livros de autoajuda que analisamos aqui, o único interesse dos homens em relação
ao sexo feminino é o prazer sexual.
103
O homem casado ou que tem um relacionamento estável sempre sonha em
segredo com o festival de sexo e divertimento que os solteiros aproveitam.
Imagina as festas, as aventuras, a liberdade e banheiras cheias de lindas
mulheres peladas. Tem medo de estar perdendo oportunidades que não
voltam mais. Ainda que, quando solteiro, nunca houvesse tidos essas
oportunidades. Esquece as noites que passou sozinho jantando comida
enlatada fria, os foras que levou na frente dos amigos e os longos jejuns de
sexo. Mas não consegue evitar a ligação que faz entre compromisso e
oportunidades perdidas. (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 126)
Através desse enunciado os autores reforçam a liberdade sexual como direito
masculino, um comportamento que faz parte da vida dos homens, embora não sejam
mais homens das cavernas e não precisem mais se preocupar em preservar a espécie
com tanta urgência. As mulheres aparecem mais uma vez como objetos sexuais,
passivas diante das necessidades masculinas. Os papéis sociais diferenciados e
hierárquicos estão presentes nesse enunciado. Os autores dizem que os homens casados
ao sonhar com a vida de solteiro, esquecem das noites que passaram sozinhos “jantando
comida enlatada fria”, o sentido dessa expressão faz referência ao papel de servidora
que a esposa possui. No casamento elas são as responsáveis por cuidar do marido, vesti-
lo, alimentá-lo, limpar o ambiente em que ele vive, servindo-o com seus dons naturais
para os serviços domésticos. Essas afirmações reduzem as mulheres ao serviço prestado
em prol de outros, apagando os traços de individualidade e a possibilidade de uma vida
em função de si mesma. Os autores recorrem ao discurso do amor para justificar a maior
propensão das mulheres para o casamento, e para nele, desempenhar todas as tarefas
domésticas.
O cérebro feminino é programado para nutrir cuidar e criar os filhos. Por
isso, as mulheres vivem recolhendo as coisas que eles deixam pela casa,
preparam seus pratos favoritos, lhes dão dinheiro e os protegem das agruras
da vida. Como resultado, os meninos crescem com pouquíssimas aptidões e
habilidades domésticas e com um baixo grau de entendimento de como se
relacionar com uma mulher. Sentem-se atraídos por mulheres que tal como a
mãe, vão nutri-los e servi-los. No começo de um relacionamento, a maioria
das mulheres assume esse papel, mas quando percebem que ele pode se
tornar permanentes as coisas azedam. É importante a mulher entender que,
ao reproduzir a figura materna, o homem reagirá com gritos, acessos de raiva
e fugas. Além do mais, há um sério risco de ele não achar a própria mãe
sexualmente atraente. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 51)
104
Esse enunciado demonstra uma contradição nos argumentos dos autores. Segundo
eles, o cuidado que as mães dispensam aos filhos, os alimentando, cuidando das suas
roupas faz com que os meninos não aprendam a fazer as tarefas domésticas. Essa
afirmação contradiz as afirmações anteriores que diziam que a biologia, ou seja, a
constituição natural do sexo masculino é que não favorecia a obtenção dessas
capacidades. Pelo enunciado acima entendemos que os homens não fazem essas
atividades porque não são ensinados a fazê-las, como são as mulheres desde a infância.
Ainda nesse enunciado os autores deixam claro que o primeiro requisito de escolha de
uma mulher pelos homens é aquela mulher que irá servi-lo assim como sua mãe, o que
reduz as mulheres às tarefas domésticas e ao serviço em prol do outro. Os autores
aconselham as mulheres a não agirem como as mães de seus parceiros, além do
comportamento infantil que eles podem desenvolver, as mulheres podem deixar de ser
sexualmente atraentes. A sexualidade novamente ganha destaque e serve como
argumento de persuasão dos autores. Mas apesar desse conselho, os autores seguem
esse tópico orientando as mulheres a ensinarem seus parceiros a se comportar no
ambiente doméstico, se a tarefa de ensinar e educar é da mãe, as mulheres são ao
mesmo tempo aconselhadas a serem e não serem como mães de seus parceiros.
Algumas mulheres ficam horrorizadas com a ideia de agradecer a um
homem por ele fazer uma coisa tão simples como recolher as próprias
roupas, mas é importante entender que os homens não evoluíram como
protetores de ninhos e, portanto, o cuidado não é um comportamento
“natural” para eles. Se a mãe não o treinou para fazer as coisas, caberá a
você treiná-lo. Mas, se continuar a recolher e guardar as coisas dele, terá de
aceitar que escolheu o papel de substituta da mãe e se conformar com isto.
(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 52)
Allan e Barbara Pease, ao contrário de Sherry Argov, afirmam que seus livros são
destinados a ambos os sexos, no entanto na maioria das vezes sua fala está direcionada
para as mulheres. Em um dos livros chegam a afirmar que pelo fato de os homens não
aceitarem bem serem criticados e ajudados por outros, é uma grande ofensa oferecer a
ele um livro de autoajuda: “Até um livro de autoajuda como presente de aniversário
pode ser interpretado como ‘Você não é grande coisa’”. (PEASE, A., PEASE, B., 2000,
p. 78) Dessa forma, com vistas a melhorar os relacionamentos entre os casais, o casal
105
Pease, além de afirmar que uma das saídas é aceitar as diferenças sexuais, aconselha
mudanças de comportamento por parte das mulheres. Uma vez que o relacionamento
interessa mais a elas, em decorrência da constituição natural de seu cérebro, elas devem
se adequar ao comportamento masculino. No enunciado acima, os autores aconselham
as leitoras a “treinarem” seus parceiros para as atividades domésticas, e caso não
consigam a única alternativa é se conformar, “em vez de criticar e culpar a mãe dele, o
mais eficaz nesse caso é treiná-lo para agir de forma diferente”. (PEASE, A., PEASE,
B., 2003, p. 101)
O casamento é um item fundamental para a vida das mulheres, segundo a
literatura de autoajuda que estudamos aqui, através dele elas realizam suas capacidades
naturais de amar e cuidar de outra pessoa. Sem o casamento as mulheres não adquirem
reconhecimento social, realização, proteção e segurança. Esse discurso está presente
também na literatura produzida para mulheres no século XIX, como analisamos
anteriormente, e repousa numa memória discursiva que caracteriza o matrimônio como
fundamento e objetivo da vida das mulheres.
3.3 Conselhos para o cotidiano dos casais
A literatura de autoajuda sentimental é um manual de aconselhamento que
prescreve comportamentos ideais para seus leitores alcançarem satisfação em seus
relacionamentos amorosos. Nos livros que usamos como fonte para esta pesquisa, os
autores Allan e Barbara Pease e Sherry Argov, dissertam sobre vários assuntos
relacionados à vida dos casais, oferecem conselhos para melhorar o cotidiano de seus
leitores. Como já dissemos anteriormente, em sua grande maioria as mudanças de
comportamento são destinadas às mulheres, como veremos a seguir:
A mulher nunca deve chamar um bombeiro, construtor, consultor financeiro,
técnico em computação nem qualquer técnico antes de consultar o seu
próprio homem. Em vez disso, ela deve lhe dizer o que considera necessário,
pedir a sua opinião e dar-lhe um prazo. Desta forma, se é ele quem acaba
chamando um bombeiro, vai achar que resolveu o problema sozinho.
(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 93)
106
Os autores citam profissionais que as mulheres poderiam precisar, mas salienta
que elas não devem chamar nenhum deles sem antes consultar “o seu próprio homem.”
Através dessa afirmação os autores marcam essas profissões como masculinas, as
mulheres não devem buscar ajuda de outro homem antes de consultar o seu,
assegurando o lugar dele de autoridade do lar. A forma certa de resolver o problema é
pedir a opinião do parceiro e esperar para que ele solucione o problema, é
imprescindível que os homens achem que agiram sozinhos. A opinião ou atitude das
mulheres em assuntos masculinos não é bem-vinda nem bem vista.
A adaptação das mulheres aos costumes dos homens é importante para garantir a
harmonia do casal, a autoajuda oferece representações para as mulheres, buscam
instaurar uma verdade sobre o comportamento certo de acordo com o que a natureza já
programou para cada sexo. Dessa forma, os autores criam a representação de um
universo feminino que gira em torno do masculino.
Se o seu parceiro é maníaco por esportes ou por algum hobby, você tem duas
opções. A primeira é envolver-se. Aprenda o que puder sobre o interesse
dele, acompanhe-o a um evento e você ficará surpresa de ver a quantidade de
outras “viúvas do esporte” que também desfrutam os seus aspectos sociais.
(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 96)
Nesse enunciado os autores afirmam o esporte como um interesse tipicamente
masculino, fazendo novamente as diferenciações de gênero. As mulheres devem se
adaptar ao gosto do parceiro, buscando se interessar pelas mesmas coisas que ele.
Quando os autores dizem que elas ficarão surpresas ao ver nos eventos a quantidade de
“viúvas do esporte” que existem, pretendem uma normalização da situação. Querem
fazer as leitoras entenderem que se existem tantas mulheres na mesma situação é por
que é um fato normal e que elas apenas devem se acostumar. Em seguida oferecem uma
segunda opção para as mulheres.
A segunda opção é usar a obsessão dele por esportes como uma
oportunidade positiva de estar com seus próprios amigos, com sua família,
fazer compras e começar seu próprio hobby. Não lute contra o hobby do seu
homem. Junte-se a ele ou use o tempo disponível para fazer algo positivo
para você mesma. (PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 96)
107
A outra alternativa para as mulheres se adaptarem ao gosto dos parceiros pelo
esporte ou outro hobby é aproveitar para se dedicar a si mesma, mas as opções que o
livro oferece estão ligadas a características que eles afirmam serem femininas:
afetividade, relacionamentos pessoais e consumismo. Aconselham as mulheres a
procurarem o seu próprio hobby, o que dá a entender que até então elas não o possuíam,
que sua ocupação era unicamente o parceiro. As mulheres não devem lutar contra o
hobby do parceiro, e sim se juntar a ele, ou buscar outras coisas para fazer. Percebemos
que para a literatura de autoajuda, os comportamentos masculinos não são passiveis de
mudança, fazem parte da essência dos homens. Esses exemplos triviais do cotidiano
criam representações que muitas leitoras levam para suas vidas, instaurando a
desigualdade entre os casais, pois parte apenas das mulheres o esforço pelo
relacionamento, o abandono de si mesmas para viver em função do parceiro.
Sherry Argov ao aconselhar as mulheres a agirem bem em seus casamentos
pretende assegurar que o poder masculino não seja destituído, os homens somente são
bons para suas parceiras se elas mantiverem e respeitarem o poder deles, pois segundo a
autora: “O poder inebria o homem, assim como o romance inebria a mulher”. (ARGOV,
2009, p. 66) Nesse excerto a autora faz a divisão clássica, comparando o poder com o
romance, já delimitando através disso o lugar de cada um na dinâmica do
relacionamento. Argov defende o ego masculino como o combustível que faz os
homens agirem, e a mulher poderosa de seu livro tem consciência disso e faz o possível
para massagear o ego do seu homem, como salienta a autora:
É o ego que leva os homens à guerra, que os faz construir grandes empresas,
malhar exaustivamente nas academias e até roubar. E é o ego que os faz se
apaixonarem. (...) Um homem precisa sentir-se viril. É por isso que ele não
para na rua para pedir informações sobre como chegar a um lugar. (ARGOV,
2009, p. 66)
No primeiro enunciado a autora relaciona o ego masculino com a conquista de
guerras, negócios, corpo forte através da malhação e até roubar. Todas essas atividades
aparecem no texto como demonstrações de força dos homens, em seguida a autora diz
que é o ego que faz com que os homens se apaixonem, associando assim a paixão por
uma mulher às conquistas citadas antes. O sentido produzido por esse enunciado
108
caracteriza as mulheres como “algo” a ser conquistado, estando em uma situação
vulnerável e passiva diante da vontade de poder dos homens.
Argov afirma categoricamente que os homens “precisam sentir-se viril”, a
virilidade está inscrita em uma memória discursiva que a relaciona com o poder. A
identidade masculina é ancorada o tempo todo à necessidade de controle e de domínio
por parte dos homens. No exemplo citado pela autora, os homens não pedem
informações na rua para não demonstrar falhas ou fraquezas. Os discursos que exaltam a
virilidade e o poder fálico estão muito presentes na sociedade, e ao longo da história
vem sendo reforçado, construindo uma identidade masculina revestida de um poder
arbitrário, uma vez que passa por cima dos direitos das mulheres. É através desse
sentimento de poder que muitos homens aprisionam suas esposas, como posses, como
mais uma conquista que está sob seu domínio. É através desse ego masculino que
muitos homens não aceitam o fim de um relacionamento e tiram a vida de suas
companheiras, como prova de seu poder. Os livros que analisamos contribuem para
propagar esse discurso de força e domínio, ensinando as mulheres a não resistirem,
ensinam a conformidade com as diversas situações do cotidiano. Através de um
discurso de poder feminino, da defesa de uma mulher moderna, cheia de si, Argov
busca naturalizar as desigualdades entre os sexos, o domínio dos homens sobre suas
companheiras é visível em seu texto.
A mulher poderosa, em suma, é aquela que entende como a “natureza” funciona,
mantém e alimenta uma virilidade intocável. Segundo Sherry Argov, “a mulher
poderosa não domina o homem, mas também não se deixa dominar. Todo seu
investimento é no sentido de construir um amor companheiro que faça os dois
crescerem.” (ARGOV, 2009, p. 67) A poderosa não se deixa dominar porque ela é
conformada com as necessidades de domínio dos homens, e isso não a torna dominada,
apenas consciente. Nesse enunciado a autora apela para os sentimentos femininos para
convencer sua leitora de seus argumentos. O livro Por que os homens amam as
mulheres poderosas?, tenta convencer as mulheres de que precisam de amor, não de
poder. No decorrer do livro a autora cita vários exemplos do cotidiano dos casais e
através deles ensinam as mulheres o comportamento ideal para manter o
relacionamento.
109
Uma óbvia infração do código “peniano”: quando você age como um
Tarzan, ele se sente uma Jane. Se seu homem for extremamente suscetível,
não mate nem um inseto quando ele estiver por perto. Não troque um pneu.
De preferência, não troque nem uma lâmpada. E se alguém fizer uma
pergunta a vocês morda a língua e deixe que ele responda. (ARGOV, 2009,
p. 68)
No início do enunciado, através da expressão “código peniano”, a autora já deixa
a entender que existem regras para se relacionar com os homens, e as mulheres
poderosas sabem que devem se submeter a ele, se quiser ter um bom relacionamento.
Em seguida a autora introduz uma metáfora: “quando você age como um Tarzan ele se
sente uma Jane”. Ou seja, quando você age como um homem ele se sente uma mulher,
quando você age com força ele se sente fraco. O sentido produzido por essa metáfora é
o de que os homens são os heróis, a força, e as mulheres são a fraqueza, a fragilidade.
Através desse enunciado a autora ensina as mulheres a não fazer nenhuma atividade que
seja “masculina”. Colocam as mulheres em uma situação de dependência, a espera de
que seus parceiros resolvam os pequenos problemas, salvando assim seu sentimento
viril de poder. A última frase, “se alguém fizer uma pergunta a vocês morda a língua e
deixe que ele responda”, parece saída de um manual de casamento do século XIX, mas
como estamos vendo, em pleno século XXI, Sherry Argov orienta as mulheres a serem
submissas, seres menores que seus parceiros.
Para todo macho, a sensação de ser homem é essencial. Isso não significa
que você deva ser dócil o tempo todo. Enquanto você demonstra que é um
“desafio mental”, lembre-se de que seu parceiro precisa ter o ego
massageado. Existe uma grande diferença entre cuidar do ego masculino e
sentir carente. (ARGOV, 2009, p. 68)
A primeira frase desse enunciado poderia ser reescrita de outra forma, para
entendermos melhor o seu sentido: “para todo macho, a sensação de ter poder é
essencial”. Como vemos, a autora faz a diferenciação entre macho e homem, em que
“macho” representa o biológico, e “homem” representa o poder, o centro, a força o
domínio. As mulheres não devem ser dóceis o tempo todo, essa afirmação da autora
serve apenas para amenizar o lado perverso de seus conselhos machistas. As mulheres
devem se lembrar de ser um desafio mental, devem agir como um território a ser
constantemente conquistando, oferecendo alguma resistência apenas para entusiasmar
110
mais os homens no processo de tomada de poder. A última frase é um alerta para as
mulheres, pois elas devem massagear o ego masculino e se sentirem bem com isso, não
devem se sentir “carentes”.
Os trabalhos domésticos são um ponto de atrito e discórdia entre os casais,
segundo a literatura que estamos analisando. Como vimos antes, o casal Pease defende
que as mulheres possuem uma capacidade natural para desempenhar esses trabalhos,
essa capacidade está inscrita na biologia. As mulheres que quiserem ajuda devem treinar
seus parceiros para as pequenas tarefas. Sherry Argov orienta as mulheres a alimentar o
ego dos companheiros fazendo com que sintam úteis e imprescindíveis, pois assim eles
podem se interessar em ajudar em casa.
Você quer que ele a ajude em casa? Faço-o se sentir necessário (ou seja,
poderoso). Dê a ele algumas tarefas. Não importa se for programar o DVD
ou pendurar um quadro. Quando usa aquela furadeira elétrica barulhenta, ele
se sente um Rambo. Se o quadro ficar totalmente torto – e vai ficar -,
simplesmente espere ele sair da sala para endireitá-lo. (ARGOV, 2009, p.
70)
As metáforas usadas pela autora sempre fazem referência a um modelo masculino
de força e coragem, como o Rambo, citado nesse enunciado. Lembrando que em seu
livro Argov estimula as mulheres a trabalharem e terem sua independência financeira -
embora o dinheiro das mulheres seja apenas um complemento à renda principal que é a
masculina – a autora ao falar do serviço doméstico, questiona as leitoras se elas querem
que seus parceiros “ajudem em casa”, dando a entender então que o trabalho doméstico
é uma responsabilidade delas, que os homens podem “ajudar”, e pelos exemplos dados
por ela no texto, eles ajudam em pequenas coisas, como ajustar um quadro. Como
podemos perceber os aconselhamentos da autora são fundamentados pelo senso comum
no que diz respeito às atividades de homens e mulheres.
O importante para a autora é as mulheres estarem o tempo todo cuidando do ego
masculino: “Os homens têm egos gigantescos que precisam ser massageados. E é
exatamente isso que a mulher poderosa faz. De pequenas maneiras, ela dá a impressão
que ele é o herói do mundo dela”. (ARGOV, 2009, p. 71) Argov, utiliza a “mulher
poderosa” como artifício para propagar um discurso com raízes patriarcais, constrói
uma imagem de mulher que vive em função dos homens, o “desafio mental” de que a
111
autora fala, é uma espécie de ocupação das mulheres, elas devem estar constantemente
atentas para satisfazer seus parceiros.
Através de um discurso supostamente atual, de valorização das mulheres e do
poder feminino tão em voga na primeira década do século XXI, Sherry Argov reforça
estereótipos masculinos e femininos, fazendo com que suas leitoras se identifiquem e
utilizem os ensinamentos da autora em seu cotidiano.
A mulher poderosa divide com justiça e inteligência o espaço pessoal dentro
da casa. Ele fica com 20% do closet, mas tem direito à garagem inteirinha,
assim como à churrasqueira. Como sabe que os homens gostam de demarcar
território, além de negociar as divisões, ela mantém como espaço sagrado o
escritório dele, sua mesa de trabalho e a poltrona onde ele se acomoda
quando chega em casa no fim do dia. (ARGOV, 2009, p. 75)
Neste enunciado a autora elogia a mulher poderosa por saber separar com
“justiça”, e “inteligência” os espaços na casa do casal. O maior espaço destinado às
mulheres é o “closet”, ao fazer essa referência, a autora se insere em um interdiscurso
que relaciona as mulheres ao universo da beleza e da futilidade. Em muitas propagandas
publicitárias, ditos populares, mídia televisiva, vemos esse discurso em funcionamento
reduzindo as mulheres à exterioridade de seu corpo. A autora afirma que os homens têm
direito à garagem inteira, inferimos disso que a autora pretende mais uma vez
demonstrar que as mulheres não têm posses, como no caso que analisamos antes em que
a autora falava da mansão do homem e do pequeno apartamento da mulher. As
representações femininas oferecidas por esse livro são de mulheres superficiais; a
mulher poderosa é uma mulher superficial, mas consciente e conformada com isso. O
início da última frase do enunciado acima nos mostra essa conformidade da mulher
poderosa, “como sabem que os homens gostam de demarcar território”, ou seja, a
mulher poderosa é aquela que reconhece e assegura o exercício do poder masculino.
Sherry Argov afirma que a mulher poderosa faz a divisão justa dos espaços da casa, o
escritório é o lugar sagrado dos homens, enquanto as mulheres buscam assegurar maior
espaço no closet. À primeira vista essa divisão pode parecer despretensiosa, mas se
fizermos uma análise mais apurada, vamos perceber que de uma forma simbólica a
autora estabelece os lugares ocupados por cada um na casa. Além disso, ela cria a
representação dos sexos a partir de estereótipos já existentes na sociedade. As mulheres
112
são ligadas ao mundo da moda, da beleza e da superficialidade, enquanto os homens são
relacionados ao trabalho, ao poder financeiro.
O livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? descreve como seria a
mulher poderosa, fruto do seu tempo, pós-revolução feminina, dona de si, independente.
Mas ao analisarmos esse livro através da metodologia da análise do discurso e dos
estudos de gênero, percebemos uma produção de sentido que cria uma mulher em
moldes patriarcais. Argov ensina suas leitoras a se comportarem em seus
relacionamentos para que atinjam o objetivo principal, a felicidade conjugal. Dessa
forma ela orienta:
Além de precisar sentir que “está com a razão”, um homem tem necessidade
de “ser dono da ideia”. Então, lembre-se, a ideia é sempre dele, mesmo que
não seja. Não tente competir com ele, não vale a pena. (...) Quando
estiverem com um grupo de amigos e ele receber o crédito por uma ideia
sua, não crie um deus-nos-acuda. Ele precisa mostrar quem é o chefe. Não o
corrija nem tente “desmascará-lo” na frente dos outros, pois isso vai ferir a
masculinidade dele. É como uma mãe repreendendo o filho na frente dos
amiguinhos. Publicamente, o homem precisa “salvar a própria honra”.
(ARGOV, 2009, p. 75)
Percebemos nesse enunciado a produção de sentidos em torno da masculinidade
semelhante a que Allan e Barbara Pease fazem em seus livros, caracterizam os homens
como uma massa homogênea, que têm necessidade de estar com a razão, ou seja, de ter
o poder em suas mãos. Argov aconselha suas leitoras a manter um comportamento tal
qual os manuais do século XIX aconselhavam, as mulheres não devem parecer ter mais
opiniões que seus parceiros. Argov dialoga com as leitoras fazendo com que estas
pensem que estão no poder, mas seu discurso apenas mantém um padrão de
comportamento antigo, em que as mulheres são acessórios de seus parceiros, devendo
manter-se caladas como uma “boa moça”. Segundo a autora, os homens “precisam
mostrar quem é o chefe”, e as mulheres poderosas são aquelas que garantem que eles se
sintam assim, abdicam de suas ideias, de suas vontades e de seu espaço. Essa ideia se
encontra numa formação discursiva onde a família é dirigida pelo chefe, pelo homem,
aquele que possui o poder sobre a esposa e os filhos, é o tradicional provedor. A
masculinidade aparece nesse enunciado como um poder sagrado, que não deve ser
questionado, constitui a identidade masculina, é a força e o poder que o mantém de pé.
113
A última frase é emblemática para a análise que empreendemos nesse trabalho,
“Publicamente, o homem precisa ‘salvar a própria honra’”, esta afirmação se insere em
um interdiscurso em que a honra é um item importante na constituição da
masculinidade. Segundo Carlos Alberto Dória, analisando a noção de honra nos países
ibéricos, “a honra é a consideração de uma história de vida à luz de uma ótica social que
sacramenta a desigualdade entre as pessoas tomadas individualmente ou nas categorias
que integram (família, gênero, ordem etc.).” (DÓRIA, 1994, p.58, 1994) A honra
aparece na fala de Argov como atributo fundamental da masculinidade, atributo este que
deve ser resguardado não só pelos homens, mas igualmente pelas mulheres que
convivem com eles. Como verificamos no excerto acima, os ensinamentos para as
mulheres seguem as mesmas regras comportamentais de séculos atrás, séculos de
dominação e subordinação.
O matrimônio nas fontes pesquisadas como podemos perceber, aparece como um
empreendimento feminino. São as mulheres que precisam em primeiro lugar se esforçar
para “arranjar um marido”. Allan e Barbara Pease salientam que a biologia dos homens
não está de acordo com as regras de monogamia inerentes ao casamento em várias
sociedades, ao passo que as mulheres já nascem com os dons necessários para cuidar do
outro, ser amada e manter os relacionamentos. Desde a década de 1960 após a revolução
feminina, o casamento passou a ser desconstruído enquanto destino e objetivo único da
vida das mulheres, os discursos de liberdade e independência eclodiram com mais força
em diversos meios discursivos.
No século XXI, no período que analisamos aqui, entre 2000 e 2010, percebe-se
possibilidades variadas para as mulheres na sociedade, maior acesso a educação de nível
superior, mais espaço no mercado de trabalho em áreas antes ocupadas apenas por
homens, a possibilidade de escolher ou não a maternidade. O mais importante é
sublinhar as novas possibilidades que as mulheres têm ao seu alcance, entendemos ser
plenamente legítima a escolha em ser mãe, esposa e dona de casa, mas é fundamental a
noção de escolha, e não de um destino imutável. A literatura de autoajuda que
analisamos traz um discurso que defende a volta de um modelo patriarcal nas relações
entre os sexos. Os escritores Allan e Barbara Pease, nos dois livros que analisamos, se
utilizam de argumentos de autoridade como as ciências biológicas e médicas para
reforçar que os papéis ocupados por homens e mulheres são determinados pela natureza,
114
e que o único caminho para a felicidade conjugal é reconhecer as diferenças. Não
obstante, essas diferenças não ficam ao nível do biológico, se tornam diferentes
posições ocupadas na sociedade, criam uma hierarquia em que os homens são o centro,
enquanto as mulheres vivem em função do outro, e não de si mesmas; elas não
vivenciam sua individualidade, estão biologicamente destinadas a viver em função do
bem estar de outrem.
O livro de autoajuda escrito por Sherry Argov é um manual de aconselhamento
muito semelhante aos manuais de casamento do século XIX e meados do século XX. A
autora busca em suas próprias palavras “transformar uma mulher boazinha em uma
mulher poderosa”. Através de um discurso de poder e independência Argov vai
demonstrando um comportamento tal qual ao que o feminismo buscou romper. As
mulheres poderosas são aquelas que vivem em função de seus relacionamentos
amorosos e até a independência financeira serve apenas para chamar a atenção de um
parceiro ideal.
A autora representa as mulheres como coadjuvantes na vida conjugal, a função
delas é manter o poder “natural” dos seus parceiros. A masculinidade aparece no livro
de Argov como uma questão sagrada e o poder das mulheres, representadas nesse livro,
é apenas a conformidade com o status quo. Nas palavras da autora, a mulher poderosa
“parece abrir mão do poder, mas cresce nesse processo e garante a harmonia do
relacionamento.” (ARGOV, 2009, p. 76) Como podemos perceber, a autora deixa em
dúvida a questão do poder. Pelos conselhos dados por ela, não fica claro se as mulheres
deixam ou não de ter poder, mas quando ela diz que elas ganham com isso, fica claro
que as mulheres abrem mão do poder em prol de um crescimento pessoal e a felicidade
conjugal.
Podemos verificar essa questão pela fala da própria autora: “Quando você sabe
que está no controle da situação, não precisa demonstrar nem alardear isso. Se ele a
tratar com amor, respeito e consideração, você terá todo o poder de que necessita.”
(ARGOV, 2009, p. 76) Verifica-se pelo discurso desse livro a tentativa de desconsiderar
as mulheres como alguém que pode ter o controle do relacionamento. Sherry Argov
busca retratar as mulheres estando satisfeitas em serem subordinadas às vontades do
parceiro. Como a autora salienta várias vezes em seu texto, as mulheres poderosas
115
entendem a necessidade de domínio natural dos homens e buscam garantir que eles
possam exercê-lo.
Ainda no último enunciado a escritora orienta as mulheres a não demonstrarem o
poder, mesmo quando estão no controle, ou seja, os homens devem ter sempre a
impressão de que são os chefes. A autora propõe basicamente uma troca, em que as
mulheres abrem mão de ter o controle, ou mesmo de ter relação igualitária, para terem a
garantia daquilo que a natureza supostamente determina como essencial para sua
sobrevivência, o amor, o respeito e a consideração. O discurso de Argov está
relacionado ao do casal Pease, uma vez que ambos descrevem as necessidades de cada
sexo na dinâmica dos relacionamentos e estas são ditadas pela natureza, dessa forma os
homens precisam estar no comando, precisam ter o papel principal no casamento,
namoro ou na constituição da família.
As mulheres são movidas pelos sentimentos, necessitam de amor e carinho,
precisam ser protegidas e têm o dom natural de servir ao outro; são o segundo elemento,
as coadjuvantes no relacionamento. Nesse teatro matrimonial descrito pela literatura de
autoajuda analisada nesse trabalho, os papéis sociais e representações de gênero são
reforçados de forma hierárquica, reafirmando as desigualdades entre os sexos, trazendo
para o século XXI o retorno da família patriarcal e da divisão binária da sociedade.
Como nos outros livros que analisamos Sherry Argov também faz referência ao
feminismo sem o nomear. Ao orientar as mulheres a não pressionarem seus parceiros,
ou seja, não dar ordens a eles, a lhes massagear o ego, a deixar que ele se sinta nas
palavras da autora, o “homem da casa, o garanhão, a lenda”, Argov cita a revolução
feminina: “Agora que as mulheres estão bem estabelecidas no trabalho, os homens não
se sentem mais tão necessários aos olhos delas. Eles não se sentem os ‘homens da casa’,
como acontecia no passado. Como Erica Jong disse, ‘cuidado com o homem que elogia
a libertação feminina. Ele está prestes a largar o emprego.’” (ARGOV, 2009, p. 121)
Neste trecho a independência financeira das mulheres aparece como fator de mudança
nas relações conjugais, uma vez que diminui a dependência das mulheres em relação
aos homens. Devido a isso, eles não se sentem mais os “homens da casa”. Através dessa
expressão podemos perceber que a palavra “homem” já carrega em si o sentido de
poder. O “homem da casa” é aquele que comanda, que sustenta, é a força, o personagem
116
principal. Quando em uma família é a mulher quem tem mais poder, quem comanda, é
comum ouvirmos que ela é o “homem da casa”.
A autora Sherry Argov fala em seu livro sobre uma mulher independente,
poderosa, que tem o domínio sobre a sua própria vida. O discurso da autora se baseia no
discurso feminista sobre as mulheres, mas através de seus ensinamentos reforça
comportamentos de submissão feminina. O mundo das mulheres poderosas gira em
torno dos homens, todas as atitudes ensinadas pela autora têm uma única intenção:
agradar o sujeito masculino, indispensável para a existência feminina. Até mesmo a
forma como as mulheres devem expressar aquilo que querem no relacionamento deve
ser em uma posição subordinada, como aconselha a autora: “Nunca reivindique como
um direito aquilo que você puder pedir como um favor.” (ARGOV, 2009, p. 121) Em
seu discurso Argov cria uma mulher passiva e conformada, porém se utiliza da figura de
uma mulher poderosa para dar mais credibilidade aos seus ensinamentos. Ressaltando
que estamos falando aqui sobre o discurso que os livros de autoajuda que usamos como
fonte disseminam, analisar o uso que as leitoras fazem desses discursos não é a nossa
intenção, compreendemos que a análise da recepção desses discursos seria outro
trabalho de pesquisa.
3.4 Sexualidade
Quando se trata de sexualidade, os livros de autoajuda seguem a lógica de
determinar as diferenças baseadas na biologia dos corpos, que por sua vez é
condicionada pela necessidade de sobrevivência dos homens primitivos. Segundo os
autores Allan Pease, Barbara Pease e Sherry Argov, a sexualidade é determinada pela
necessidade de procriação e preservação da espécie humana.
O momento de escrita desses livros é o século XXI, mas no que se refere à
sexualidade os autores se valem das mesmas ideias que para eles faziam sentido nos
primórdios da humanidade. “A entusiástica e impulsiva disposição do homem para o
sexo tem uma finalidade clara: assegurar a continuidade da espécie humana.” (PEASE,
A., PEASE, B., 2000, p. 101) Os homens são caracterizados como seres extremamente
sexuais, é através do sexo que eles realizam suas vontades de poder. “Na mulher, o
117
hipotálamo é muito menor que no homem. Além disso, ela tem pouca quantidade de
testosterona. É por isso que as mulheres, em geral, têm menos impulso sexual e são
menos agressivas.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p. 102) O trabalho dos autores em
dar credibilidade ao discurso é bem visível nesse enunciado, se utilizam de palavras
científicas como: “hipotálamo”, para demonstrar que possuem profundo conhecimento
da anatomia humana. Ainda nesse enunciado, afirmam que a pouca testosterona das
mulheres faz com que elas tenham menos impulso sexual e sejam menos agressivas. Os
autores relacionam dessa forma a agressividade como característica natural dos homens.
Percebemos nesses livros de autoajuda uma necessidade de reafirmar toda a
existência de homens e mulheres com a formação de uma família. Homens e mulheres
se relacionam com a única finalidade de gerar filhos e formar uma família nos moldes
tradicionais, com pai (homem), mãe (mulher) e filhos13
. “O cérebro feminino é
programado para encontrar um homem que se comprometa a dar assistência até que os
filhos estejam criados. Isso se reflete nas qualidades que a mulher busca em um
companheiro para um relacionamento estável.” (PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.102)
A construção da imagem das mulheres, enquanto mães e esposas, está evidente nesse
enunciado, pois os livros criam uma representação feminina que somente possui
legitimidade se for desempenhando os papéis que a autoajuda considera naturais para os
sexos. Assim, a sexualidade feminina está relacionada à procriação.
Os discursos sobre a sexualidade, que são disseminados pelo tecido social,
difundem os homens enquanto seres sexuais. As propagandas de televisão, as novelas,
os ditados populares constituem o masculino em torno do desejo sexual. Neste contexto
as mulheres aparecem como seres passivos, objetos do desejo masculino, despossuídas
de desejo sexual. Os ensinamentos dados para as mulheres ao longo de suas vidas
giram em torno da repressão dos desejos, faz parte da constituição social das mulheres
um comportamento recatado, digno de uma “moça de família”. “Misteriosa, a
sexualidade feminina atemoriza. Desconhecida, ignorada, sua representação oscila entre
dois pólos contrários: a avidez e a frigidez. No limite da histeria.” (PERROT, 2012, p.
65)
Através dos estudos de gênero compreendemos que a sexualidade é construída por
discursos que atravessam os sujeitos, construindo representações que contribuem para
13
Tanto Allan e Barbara Pease quanto Sherry Argov ignoram a homossexualidade. Para esses autores o
modelo natural de família é formado por homem e mulher.
118
os constituírem na sociedade. A literatura de autoajuda do casal Pease e de Sherry
Argov, é mais um desses discursos, no entanto sendo escrita em um momento histórico
em que as mulheres já alcançaram ou possuem a possibilidade de alcançar novos
patamares, esses livros trabalham pela negação e repressão da sexualidade feminina.
O que pretendemos ressaltar é que apesar de todas as conquistas femininas, os
estereótipos de homens como “garanhões do sexo” e das mulheres como eternas
apaixonadas são reforçados nos livros de autoajuda que analisamos neste trabalho.
Como afirma Allan e Barbara Pease: “O macho da espécie humana tem as
características físicas das espécies poligâmicas. Não há dúvida: o homem tem que travar
uma batalha constante consigo mesmo para ficar com uma só mulher.” (PEASE, A.,
PEASE, B., 2000, p.108) O sexo é apresentado como uma necessidade fundamental
dos homens, faz parte da constituição da própria masculinidade.
A promiscuidade está instalada no cérebro masculino, é uma herança da
evolução. Através da história, os homens morreram em guerras e mais
guerras. Assim fazia sentido tentar de qualquer jeito aumentar a população.
Sempre voltavam menos guerreiros do que tinham partido. Mas os
sobreviventes tinham á sua disposição cada vez mais viúvas, criando um
harém que servia muito bem à estratégia de preservação da espécie. (PEASE,
A., PEASE, B., 2000, p.108)
As diferenças de gênero construídas em torno da sexualidade nos livros
pesquisados, reforçam padrões de comportamento baseados em valores antigos. Os
autores buscam outros discursos para reforçar suas afirmações. No enunciado acima, os
autores justificam a necessidade dos homens em ter relações sexuais com várias
mulheres citando acontecimentos históricos. Como podemos perceber, os autores não
estão citando nem um fato específico, eles buscam acontecimentos gerais que possam
dar veracidade ao que estão dizendo. A centralidade do masculino na literatura de
autoajuda é muito perceptível nesse enunciado, os homens são heróis que foram para as
guerras para salvar suas nações, aqueles que sobreviveram ainda tiveram a missão
grandiosa de espalhar seus genes em prol da preservação da espécie humana. A figura
das mulheres, nesse enunciado descritas como “viúvas”, é apenas uma personagem
secundária, como ressaltam os autores, elas ficavam “à disposição” dos homens, dando
a entender a inércia desses seres diante das situações. Após citar um evento do passado,
em que os homens precisam ser promíscuos em favor da humanidade, os autores
119
introduzem uma forma das mulheres se adaptarem a esta necessidade deles por sexo
diferenciado na vida moderna.
Por que homem gosta que a mulher se vista como uma prostituta (mas não
em público)? O cérebro masculino precisa de variedade. Como a maioria dos
mamíferos, o homem é programado para acasalar com o máximo possível de
fêmeas. É por isso que, mesmo em um relacionamento monogâmico, o
homem adora novidades, como roupa íntima sexy. Ao contrário de outros
mamíferos, ele engana a si mesmo e finge que tem um harém ao ver sua
mulher vestida com diferentes roupas sensuais. (PEASE, A., PEASE, B.,
2000, p.110)
Já no início desse texto vemos o trabalho do discurso classificando as mulheres de
acordo com o exercício de sua sexualidade, segundo os autores, a prostituta é uma
profissional especializada na venda de sexo, é a sexualidade em forma de pessoa. Se
vestir como prostituta, no contexto desse livro, é se vestir com sensualidade, deixando
sua sexualidade à mostra. Os sentidos produzidos por esse enunciado demonstram que
esse comportamento é aceitável para as mulheres apenas quando estão com seus
parceiros, destinando assim seu corpo exclusivamente para ele, e determinando que ter
apenas um parceiro sexual é a regra para as mulheres. Os homens são “programados
para acasalar com o máximo possível de fêmeas”, e as mulheres precisam se adaptar a
isso. No enunciado os autores recomendam o uso e troca constante de roupas “íntimas
sexy”, como não podia faltar os autores citam um estudo para justificar esta afirmativa:
Um estudo feito nos Estados Unidos apontou que as mulheres que usam uma
variedade de roupas íntimas sensuais têm companheiros muito mais fiéis do
que aquelas que preferem as bem-comportadas. Essa é uma das formas de
adaptar ao relacionamento monogâmico a necessidade masculina de variar.
(PEASE, A., PEASE, B., 2000, p.111)
O argumento chave desse enunciado se encontra nas consequências do uso das
roupas íntimas sensuais: fidelidade. Assim, o livro cria um discurso que determina os
comportamentos adequados para as mulheres conseguirem que seus parceiros fiquem
apenas com elas. Está demonstrado mais uma vez que na literatura de autoajuda, que
estudamos aqui, o mundo feminino gira em torno do masculino, os homens são o centro
e as mulheres precisam se adaptar ao seu modo imutável e geneticamente determinado
de ser.
120
Após o auge do feminismo, as mudanças pelas quais o movimento passou no
decorrer dos anos, as mudanças nas visões sobre as mulheres se modificaram
substancialmente. Embora haja muito ainda a ser mudando, as novas possibilidades de
atuação das mulheres são reais, as identidades femininas não giram em torno apenas do
casamento e da maternidade, a liberdade sexual vivida pelas mulheres no início do novo
milênio é um fator de destaque. No entanto, a literatura de autoajuda busca através de
seu discurso fazer o caminho inverso, além de tentar convencer as mulheres de que seu
mundo é apenas um acessório do mundo masculino, separam as mulheres de acordo
com regras morais.
A teoria da mãe/prostituta afirma que um homem vai ver você ou como
“mãe” ou como “prostituta”. A prostituta, no caso, é qualquer mulher com
quem ele esteja fazendo sexo, com quem deseja fazer sexo ou com quem já
tenha feito sexo. O oposto da prostituta é a mãe. Um homem sente por uma
mulher que seja doce e gentil o mesmo que sente pela própria mãe. Mas,
como ela não é um desafio e está sempre disponível, ele começa a não ter
medo de perdê-la. (ARGOV, 2009, p. 38)
As identidades femininas referidas nesse excerto são construídas através da forma
como exercem sua sexualidade. A prostituta é a mulher que é sexualmente livre, não
tem recatos, é sensual; a mãe é a mulher sem sexualidade, ou pelo menos possui uma
sexualidade reprimida, é sagrada e terna. Sherry Argov define as mulheres em apenas
essas duas categorias, e a prostituta é a mulher ideal pelo que ela escreve nesse trecho.
De acordo com Tânia Swain, as imagens da mãe e da prostituta são “o binômio
constitutivo da representação social das mulheres. Mãe, esposa, sexo domesticado,
moralidade, espaço privado, família, reprodução social. Prostituta, mulher pública,
liberação do vício e da lascívia latentes no feminino.” (NAVARRO-SWAIN, 2007, p.
218)
Como já dissemos antes, o livro de Sherry Argov é rico em contradições. No
último trecho que citamos do livro, ela descarta a possibilidade das mulheres agirem
como “mães” de seus parceiros, mas em outras ocasiões em seu livro afirma que cabe às
mulheres treinarem seus parceiros para pequenas ajudas em casa, como fariam a suas
mães. Segundo esta autora, o “que a mulher boazinha precisa saber é que, mesmo que
ela faça o maior esforço para ser uma dona de casa exemplar, o homem sempre vai
querer uma prostituta na cama.” (ARGOV, 2009, p. 39) A sexualidade feminina aparece
121
aí como uma forma de satisfazer os desejos sexuais masculinos e manter os homens nos
relacionamentos.
3.5 A atração sexual
Quando se fala em sexualidade, um das imagens mais utilizadas por variados
discursos na sociedade é a imagem do corpo feminino. Não importa qual é o produto
que esteja sendo anunciado, o corpo feminino serve para vender muitos desses produtos.
O corpo feminino é a representação maior do sexo, através disso todo um discurso foi
construído em torno de corpos perfeitos, sensuais, como se a função do corpo feminino
fosse apenas sexual. Na literatura de autoajuda esse discurso é reforçado. Nela também
são mostrados estereótipos em torno dos motivos pelos quais homens e mulheres
escolhem seus parceiros, e o que causa a atração sexual em ambos.
Quase todos os estudos sobre a atração chegaram as mesmas conclusões a
que chegaram pintores, poetas e escritores nos últimos seis mil anos: o corpo
e a aparência da mulher exercem maior atração sobre os homens do que sua
inteligência e qualidades, mesmo no politicamente correto século XXI.
(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 159)
Nesse enunciado os autores se utilizam do tempo e da história para justificar seus
argumentos. Afirmam que o corpo feminino é sexualizado desde muitos anos atrás,
citam estudos para comprovar essa afirmação, mas não citam a referência desses
estudos e nem entram em detalhes sobre sua conclusão. Através desse discurso os
autores constroem uma realidade em que o corpo feminino é fundamental para que os
homens se interessem pelas mulheres; a inteligência e as qualidades delas não são
importantes, assim reduzem as mulheres ao corpo. Quando dizem que o corpo feminino
é o fator principal para atrair os homens, os autores afirmam que é assim até no
“politicamente correto século XXI”, percebemos mais uma vez uma tentativa de ignorar
os avanços que ocorreram nos discursos sobre as mulheres nos últimos tempos. Nos
enunciados a seguir essa ideia fica ainda mais clara
122
O homem moderno quer de uma mulher as mesmas coisas imediatas que os
seus ancestrais, mas, como você verá os critérios masculinos na escolha de
uma parceira para a vida não são os mesmos. Cabe entender que o corpo da
mulher evoluiu como um sistema de sinalização sexual permanente,
desenvolvido para atrair a atenção do homem. O que torna um homem
atraente para uma mulher, porém, é algo muito diferente. (PEASE, A.,
PEASE, B., 2003, p. 159)
O corpo feminino, segundo o enunciado acima, possui como única finalidade de
existência chamar a atenção dos homens. Através desse enunciado podemos perceber
um discurso que torna as mulheres objetos sexuais para simples satisfação dos homens.
Esse discurso está relacionado com vários outros discursos que fazem as mesmas
afirmações. As diferenças de gênero em relação à sexualidade são construídas no
discurso dos Pease e de Argov em conformidade com a memória discursiva sobre a
sexualidade de ambos os sexos. O sexo é uma necessidade física masculina e está
presente em todas as suas atitudes, enquanto para as mulheres é uma questão secundária
nos relacionamentos, elas necessitam mais de carinho e de afeto. Através desse discurso
a constrói-se modelos de comportamentos, justificados pela biologia e pela evolução
dos seres humanos. Podemos perceber também que os livros que analisamos tratam do
senso comum sobre homens e mulheres, mas investem esse senso comum de um
discurso científico para dar mais credibilidade ao que estão dizendo. Os autores também
seguem a regra da maioria para justificar suas afirmações, como veremos abaixo.
Ver pornografia é uma atividade quase que totalmente masculina. 99% dos
sites pornográficos da internet são dirigidos aos homens, e a grande maioria
das imagens de homens nus é destinada a homossexuais. Quando vê a
imagem erótica de uma mulher, um homem nunca pensa se ela sabe
cozinhar, tocar piano ou lutar pela paz mundial. Ele é atraído pelas formas e
curvas e pela sugestão virtual de que ela seja capaz de transmitir os seus
genes. Jamais lhe ocorre se ela tem uma personalidade simpática. (PEASE,
A., PEASE, B., 2003, p.167)
O mercado da pornografia é construído para os homens, uma vez que usa as
imagens de corpos femininos como bandeira de venda. Um dos motivos para isso é a
própria forma como a sexualidade de homens e mulheres é tratada historicamente na
sociedade. O que influencia para que exista um mercado de produtos eróticos para
homens e não para mulheres. Assim é a construção da sexualidade masculina e feminina
123
que determinam esse mercado e não fatores biológicos ou evolutivos. A sexualidade ao
longo da vida dos homens é tratada de forma livre, sendo seu exercício uma
demonstração de força fálica. Enquanto as mulheres são criadas para reprimir sua
sexualidade já que socialmente a liberdade sexual delas não é bem vista. Ainda nesse
enunciado o livro reduz as mulheres ao seu corpo, sendo este o único interesse dos
homens, e o que dá significado às mulheres.
A literatura de autoajuda trata da sexualidade tendo os homens como o centro da
questão, eles necessitam da sexualidade para exercerem sua masculinidade, enquanto as
mulheres aparecem apenas satisfazendo essas necessidades e não buscando seu próprio
prazer, reforçam a ideia de que os homens em um relacionamento buscam sexo e as
mulheres buscam amor, fazendo a divisão clássica entre razão/masculino e
emoção/feminino.
O homem se sente estimulado pelo que vê. A mulher pelo que ouve. O
cérebro masculino, de acordo com sua estrutura sente atração pelas formas
femininas, e é por isso que imagens eróticas exercem tanto impacto sobre
ele. A mulher, com receptores de informações sensoriais mais apurados,
gosta de palavras doces. A sensibilidade feminina ao que escuta é tanta que
muitas mulheres chegam a fechar os olhos quando o homem que elas amam
sussurra bobagens carinhosas ao seu ouvido. (PEASE, A., PEASE, B., 2003,
p. 113)
Vale a pena reforçar que a literatura de autoajuda faz um trabalho de
universalização dos comportamentos. No texto acima o livro afirma que todos os
homens se sentem estimulados pelo que veem, e todas as mulheres se estimulam pelo
que ouvem, assim, os autores consideram que homens e mulheres em qualquer situação,
sociedade e cultura sejam iguais. Esse discurso homogeneizador serve para atingir o
maior número de pessoas, tornando os comportamentos de homens e mulheres iguais. O
amor é o motor da vida feminina, enquanto o sexo é o que move os homens. A
autoajuda reforça esses estereótipos, buscando sempre justificar os comportamentos
pela biologia dos corpos. A sexualidade feminina é acessória, as mulheres servem para
estimular o desejo de seus parceiros, pois o prazer sexual é próprio dos homens, as
mulheres se sentem satisfeitas apenas em serem amadas. A literatura que trabalhamos
aqui, como muitos outros discursos, constrói o corpo feminino enquanto objetos
124
sexuais, faz referência a esse fato de forma muito direta, buscando a naturalização dessa
ideia.
A atração é um alerta: ele é um macho, e seu papel tradicional é aproveitar
toda e qualquer oportunidade para aumentar a tribo. (...) É o mesmo quando
ele olha a página central de uma revista masculina. Não interessa a
personalidade daquela mulher nua, se ela cozinha ou sabe tocar piano. O que
salta aos olhos são as curvas, as formas, os atributos físicos – e só. Não é
muito diferente de admirar um belo presunto no balcão do mercado.
(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 114)
A palavra macho já carrega em si significados investidos de poder. A sexualidade
é um elemento fundamental na construção da identidade masculina. Assim, os discursos
sociais constroem representações e imagens de homens relacionando-os com a
capacidade de ser ativo e efetivo em uma relação sexual, sobretudo heterossexual. No
enunciado exposto acima, os autores afirmam que o papel tradicional do “macho” é
aproveitar todas as oportunidades para aumentar a tribo, ou seja, os homens têm uma
necessidade sexual que se manifesta a todo o momento em seu dia a dia. Mesmo
vivendo em uma época em que a preservação da espécie já não é mais uma preocupação
intensa, segundo esses autores, a sexualidade masculina funciona da mesma forma que
milênios atrás.
O corpo feminino é o objeto de desejo masculino. Na visão da literatura de
autoajuda, o corpo das mulheres funciona como uma sinalização permanente para
despertar o desejo sexual dos homens. Nesse sentido, as mulheres existem apenas na
materialidade dos seus corpos, seus desejos, seus anseios, suas opiniões, personalidades,
lutas e vontades não aparecem. No último excerto os autores dizem que ao olhar um
corpo feminino nu, não importa quem seja aquela mulher, para os homens apenas o
corpo é importante. A expressão utilizada pelos autores, diz que esse processo não é
diferente de “admirar um belo presunto no balcão”, fazendo referência ao corpo da
mulher apenas como um pedaço de carne à disposição para o consumo dos homens, um
objeto sem dono à mercê de quem dele quiser usufruir. Os autores Allan e Barbara
Pease elaboraram um esquema para definir como funciona a atração sexual para cada
sexo.
125
O que estimula a mulher O que estimula o homem
1. Romance 1. Pornografia
2. Compromisso 2. Nudez Feminina
3. Comunicação 3. Variedade sexual
4. Intimidade 4. Roupas íntimas
5. Toque não sexual 5. Disponibilidade da mulher
Os elementos estimuladores estão distribuídos nesse quadro de acordo com as
diferenças de gênero construídas na sociedade. O desejo sexual das mulheres está
condicionado aos sentimentos e às emoções, em busca de seu destino incontornável, o
casamento. Enquanto o masculino se estimula por elementos materiais, em que o
principal objeto é o corpo feminino. Podemos perceber pelo discurso da autoajuda que
mais uma vez são as mulheres que se adaptam às condições dadas como naturais dos
homens. Em outros pontos do texto os autores deixam claro que os homens não são
propensos às questões amorosas e que o relacionamento e o romance não são
importantes para eles. Mesmo se dirigindo aos casais, os autores não ensinam os
homens a se adaptarem à suposta necessidade de amor e carinho das mulheres. Dessa
forma, embora o desejo sexual delas dependa disso, elas devem se contentar com aquilo
que eles estão dispostos a oferecer, pois também, como afirma os autores, as mulheres
estão mais dispostas a se sacrificar pelo relacionamento. Os desejos sexuais masculinos
por outro lado, moldam o comportamento das mulheres, pois os elementos que os
estimulam são visuais, materiais e corporais, fazendo com que as mulheres tenham que
adaptar seus corpos e seus hábitos para satisfazerem seus parceiros.
As lutas feministas, entre outras coisas, buscavam que as mulheres possuíssem o
direito sobre seus corpos. Não mais dominadas pelos desejos dos homens, corpos
moldados para satisfazê-los, mas donas do seu destino e do seu prazer. A autoajuda
através de seu discurso patriarcal promove a volta a um modelo de corpos/objetos se
utilizando de discursos de autoridade apoiados pela biologia e outros campos do saber.
Fixam estereótipos sobre os sexos fazendo um caminho inverso na busca da igualdade
entre homens e mulheres. Os livros que analisamos trabalham com discursos contrários
às conquistas históricas do feminismo e procuram em seu texto desqualificá-lo, e assim
percebemos uma enorme preocupação dos autores em criticar suas proposições, fazendo
126
uma campanha contra essa forma de pensamento, tentando mostrar aos seus leitores que
este foi apenas um movimento com teorias vazias, sem aplicabilidade na prática. Sobre
a aparência feminina como item principal da atração sexual os autores discorrem
citando o feminismo:
Até o início do movimento feminista, na década de 1960, as mulheres se
vestiam pela razão de sempre: atrair os homens e superar outras mulheres. O
feminismo disse as mulheres que vestir-se para atrair os homens não era
mais relevante – a beleza interna agora contava mais do que a aparência,
uma ideia que atraiu milhões de mulheres. Elas acreditaram que podiam ficar
livres da obrigação opressiva de estarem sempre bonitas para os homens.
(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p. 168)
A maioria das mulheres compreende isso (que os homens as escolhe pela
aparência), até porque as pesquisas científicas já provaram reiteradas vezes,
ainda que não seja “politicamente correto” reconhecê-lo. As feministas em
geral abominam a ideia de a mulher ser julgada por sua aparência física e
classificam os homens como superficiais e frívolos. Mas isso não muda o
fato de que a primeira reação deles às mulheres é irresistivelmente visual.
(PEASE, A., PEASE, B., 2003, p.170)
No primeiro enunciado, os autores afirmam que as mulheres se vestem
unicamente para atrair os homens e competir com outras mulheres, marcando assim a
identidade feminina em torno de fatores externos, moldando seu comportamento pelos
valores de outros, além de caracterizar a futilidade como atributo feminino. Quando
dizem que até a década de 1960 as mulheres se vestiam pela razão de “sempre”, ou os
autores usam essa palavra para dar ênfase a um fato que eles querem que pareça natural,
ou próprio das mulheres. O marco dos autores é o feminismo que mudou a forma das
mulheres se enxergarem no mundo, mas constroem sua fala colocando as ideias
feministas como enganadoras.
No segundo enunciado, os autores utilizam a expressão a “maioria das mulheres”
para convencer seu leitor de que a aparência não só é fundamental para que os homens
se sintam atraídos, como é um fato dado normal e de conhecimento geral. As pesquisas
científicas aparecem novamente para reforçar os argumentos dos autores. A autoajuda
se baseia em dados do senso comum, busca discursos de autoridade em vários campos
das ciências até para justificar uma afirmação como esta, a aparência das mulheres deve
ser cultuada para que possa atrair os homens, mas o contrário não é relevante. As
feministas, na fala do casal Pease, formam um grupo que representa a anormalidade, um
127
grupo de contradição, que vai contra as regras da vida, da natureza e da própria história.
No enunciado acima os autores são categóricos, embora as feministas tragam novas
formas de ser mulher e de se significar na sociedade, nada muda, pois o mundo está
natural e historicamente condenado a ser divido entre homens e mulheres. Está
destinado a ser hierarquizado, polarizado, um lugar onde um domina outro, e sendo a
natureza quem determina essa divisão não há o que contestar.
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa surgiu do interesse em evidenciar as formas pelas quais os discursos
sociais constroem representações de gênero que determinam como devem ou não agir
mulheres e homens na sociedade. Motivados pelos estudos sobre representações
femininas desenvolvidos na graduação, através dos discursos das músicas de massa,
investigamos nesta dissertação mais uma tecnologia de gênero que procura instaurar
uma sociedade hierarquizada e dividida em pólos opostos, masculino e feminino. A
literatura de autoajuda apareceu por acaso em nossas mãos e mostrou-se bastante
instigante frente às leituras e pesquisas efetuadas anteriormente. Com esses
pressupostos tornou-se uma fonte de pesquisa rica em dados, o que nos permitiu fazer
uma análise que contemplou várias instâncias da vida social. Estudar mulheres, gênero e
feminismo, não se constituiu aqui apenas em um processo para a obtenção de um título
acadêmico, mas também para um processo de conhecimento e crescimento pessoal. Fica
a vontade de que esse texto possa contribuir para que outras pessoas possam também se
compreender como integrantes de um processo histórico, independente de seu sexo,
gênero ou opção sexual.
Não é preciso procurar muito para encontrarmos diversos discursos que estão a
todo o momento definindo maneiras de como ser homem e como ser mulher. Essas
pedagogias sexuais estão presentes desde os primeiros ensinamentos dados às crianças
nas escolas até os preparativos para o casamento visto como ponto alto da vida adulta.
Os feminismos, que emergiram com mais força na década de 1960, procuraram
desconstruir os papéis tradicionalmente fixados de forma hierárquica para os sexos.
Muitas mudanças podem ser verificadas, as mulheres gozam de mais liberdade de
escolha, têm mais espaço no mercado de trabalho, e podem escolher identidades outras
que não passam pelo crivo da maternidade, do matrimônio, e da vida doméstica. Apesar
dessas mudanças ainda não serem vistas amplamente, foram extremamente importantes
e modificaram a configuração das famílias e da sociedade.
Nesse contexto, em pleno século XXI, encontramos manuais de comportamento
que sugerem a volta ao modelo patriarcal de família e de ser mulher na sociedade
contemporânea. A literatura de autoajuda é um produto cultural comercializado em
larga escala, e se enquadra na categoria de literatura de massas, possui um alto índice de
vendagens fazendo com que seus discursos circulem para um grande número de
129
pessoas. Analisamos aqui os livros: Por que os homens mentem e as mulheres choram?
e Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? dos autores Allan e
Barbara Pease. Também o livro Por que os homens amam as mulheres poderosas? da
escritora Sherry Argov. Esses três livros aparecem entre os livros de autoajuda mais
vendidos no Brasil no período de 2000 a 2010.
Para o desenvolvimento da pesquisa utilizamos como metodologia a Análise do
discurso, que nos foi muito útil, pois permitiu abrir as camadas sedimentadas do
discurso da autoajuda. Buscamos, nos sentidos produzidos pelos livros sobre as
mulheres, discursos que se apóiam em outros discursos, e ao longo da história
construíram uma imagem de mulher essência, aquela que se enquadra nos ideais da boa
esposa e da boa mãe.
Os estudos de gênero serviram de base para nossas análises, através deles
percebemos o caráter construído dos papéis sociais destinados a homens e mulheres. A
literatura de autoajuda defende a idéia de que cada sexo possui um lugar definido na
sociedade, e as características dessa definição provêm da evolução biológica dos seres
humanos. Como vimos, Allan e Barbara Pease afirmam que os comportamentos dos
homens e mulheres da atualidade são baseados nas necessidades básicas de seus
ancestrais. Dessa forma, os homens eram os caçadores, saiam de suas casas para trazer o
sustento para a mulher e sua prole. As mulheres eram segundo os autores, as guardiãs da
cria, ficavam nas cavernas cuidando dos filhos e da organização da casa. Através dessa
matriz de comportamento, os autores definem uma série de outros comportamentos para
os indivíduos na atualidade.
A intenção do casal Pease é fornecer saídas para que os casais se entendam em
seus relacionamentos. A década de 1960, a revolução sexual e os movimentos
feministas são o marco em que os autores localizam o desarranjo nos papéis tradicionais
de mulheres e de homens. Segundo os autores, quando as mulheres passaram a gozar de
mais liberdade, e de terem carreiras profissionais, não dependiam mais exclusivamente
dos homens para lhes fornecer o sustento. Nas palavras dos autores, os homens não
eram mais necessários. Dessa forma, defendem que a compreensão das diferenças é a
solução para os casamentos e a reconstrução do ideal de família.
Que o corpo biológico de homens e mulheres é diferente não temos nenhuma
dúvida, no entanto, essas diferenças são nocivas quando servem de bandeira para as
130
desigualdades. A literatura de autoajuda escrita pelo casal Pease, reforça as
desigualdades de gênero, definindo as mulheres enquanto seres inferiores e frágeis
diante do poder absoluto e natural dos homens. Esses livros objetivam implantar
novamente uma sociedade dividida em polos opostos, em que um é o dominador e o
outro o dominado. Seu discurso pretende enclausurar as mulheres no mundo privado,
guardadas pelas paredes do lar. Definidas pelas funções do seu útero, a literatura de
autoajuda prega que as mulheres desenvolvam atividades relacionadas à sua condição
natural de mãe, atividades em que possam cuidar do outro, zelar pelo bem estar, dar
amor e carinho, mesmo em um ambiente profissional.
Sherry Argov escreveu um livro direcionado às ditas “mulheres boazinhas” que,
segundo ela, seriam as mulheres sempre à disposição dos homens e sem amor próprio.
Em lugar disso, ela propõe um novo modelo de mulher: a poderosa. No decorrer do
livro a autora apresenta situações do cotidiano demonstrando as formas certas e erradas
de agir. Sobre as diferenças sexuais, Argov se fundamenta nos mesmos argumentos do
casal Pease, sobre a teoria dos ancestrais. A mulher poderosa que a autora apresenta é
uma mulher moderna, independente, dona da própria vida. No entanto, quando
analisamos o livro percebemos um quadro bem diferente. A mulher descrita por Argov é
uma mulher conformada com sua condição de submissão, e a consciência de sua
situação faz com que ela tenha atitudes submissas proporcionando assim a harmonia do
casal. A mulher poderosa conhece o funcionamento da mente dos homens, e busca
garantir que seu ego e sua masculinidade não sejam afetados. Seu poder está em saber
dar ao homem o seu lugar.
Em todos os livros que analisamos, as mulheres estão relacionadas ao mundo dos
sentimentos, são amorosas e dependem dos relacionamentos com seus parceiros para se
sentirem completas. O casamento aparece como um desejo de todas e é uma espécie de
objetivo de vida. A maternidade por sua vez é o elemento definidor do sentido da vida
feminina, todas as suas outras características provêm do instinto materno. Os homens
são representados como troféus, embora a literatura de autoajuda também crie para eles
modelos de comportamento ideais, também os constitua em identidades que não se
sustentam mais, delegam a eles todo o poder nos relacionamentos. Mesmo sendo escrita
no século XXI, essa literatura define os homens como o chefe, a cabeça da casa, o
provedor, o centro das relações amorosas e de família.
131
Outra questão importante a se assinalar é a universalização dos comportamentos
por parte dos autores analisados. Ou seja, homens e mulheres são iguais, em qualquer
lugar do mundo, e em qualquer tempo histórico. Com isso estabelecem uma pretensa
verdade sobre os comportamentos, fazendo com que seus leitores acreditem em suas
proposições e até mesmo utilizem os aconselhamentos oferecidos por eles em seu dia a
dia.
Buscamos analisar neste trabalho a literatura de autoajuda sentimental enquanto
um discurso de contraposição às conquistas históricas dos feminismos. Como podemos
perceber, essa literatura busca o retorno das relações de gênero no termos do
patriarcalismo. Esses livros caracterizam o feminismo como um acontecimento que
desorganizou a ordem natural da sociedade. Fazem parte de uma gama de discursos que
subjetivam as mulheres, oferecem representações baseadas em antigos papéis
tradicionais. No momento histórico em que as mulheres lutam por mais conquistas, e
para efetivar as já adquiridas, vemos um tipo de tecnologia de gênero buscando o
retrocesso.
O percurso que fizemos neste trabalho demonstrou uma construção histórica dos
discursos sobre as mulheres. Como vimos, desde o século XIX, a literatura trabalhava
para moldar o comportamento feminino, através de romances e manuais de casamento
ensinava as moças a melhor forma de agir, em busca de um relacionamento feliz, uma
vez que o maior objetivo da vida das mulheres era o matrimônio. Com o advento do
feminismo, com a coragem de mulheres que lutaram pelos seus direitos, tais mulheres
ganharam mais visibilidade enquanto sujeito político. As reivindicações das feministas
ecoaram em diversos meios, e aos poucos os discursos sobre as mulheres e as
possibilidades de atuação na sociedade foram se modificando. A literatura de autoajuda
nos mostrou que ainda há muito caminho a seguir em busca de uma sociedade que
realmente trate homens e mulheres de forma igualitária.
As fontes que analisamos fazem parte de uma série de discursos que buscam a
subjetivação das mulheres em seres delicados, dóceis e submissos. Ignoram as
consequências maléficas das desigualdades de gênero instaladas através das diferenças
sexuais. Através de seu discurso prescritivo, guiam as mulheres para uma vida de
coadjuvante na sociedade, garantindo o papel principal para os homens, perpetuando
uma sociedade injusta nas relações entre os sexos.
132
Gostaríamos de demonstrar neste trabalho uma história diferente, uma história
apenas de lutas e conquistas das mulheres. O tema deste trabalho poderia ser a forma
como as mulheres estão bem colocadas na sociedade, já longe das opressões de outrora,
longe das prisões em torno de seu corpo, das representações obrigatórias. Seria
gratificante escrever sobre a liberdade que todas gozam nesse início de século XXI. No
entanto, nos defrontamos com mecanismos de submissão ainda vivos, e se reinventando
a cada dia. Porém nossa intenção não é apenas mostrar como as mulheres sofrem, como
são injustiçadas. Pelo contrário, nossa intenção é mostrar que as mulheres ainda têm
muitos caminhos a percorrer, embora essas tecnologias de gênero se alastrem de forma
assustadora.
Nesta pesquisa reiteramos as palavras de finalização do nosso trabalho
monográfico anterior a essa dissertação. A sociedade necessita de mecanismos que
revertam a situação das mulheres, que criem nelas uma consciência de seus direitos
enquanto ser humano, que não sejam vistas ou julgadas apenas como sexo biológico,
mas agentes de suas próprias histórias, libertas das relações de poder que subjugam sua
própria existência.
133
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