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EGBERTOGISMONTI

Apesar de multiinstrumentista, Gismonti mantém sua paixão pelo violão.

N<Io início dos anos 80, EgbertoGismonti começou a dedicar-se aoestudo da cítara indiana. Quandosentiu que dominava suficientemen-te o instrumento, decidiu incluir seutimbre exótico em algumas faixas doLP que preparava, para mostrar oresultado de seu trabalho. O nomedo disco — "Bandeira do Brasil" —acabou sendo censurado na época,sob o argumento de que é proibidaa utilização de símbolos nacionais emartigos comerciais. Só que Gismon-ti acabou encontrando uma alterna-tiva e, baseando-se numa norma daCarteira do Comércio Exterior (Ca-cex), conseguiu realizar, ao menosem parte, seu desejo. Diz a lei: todoproduto de exportação pode levarem sua embalagem a bandeira bra-sileira. Portanto, na capa e contra-capa de seu álbum lançado em1984, aparecem nada menos doque vinte bandeirinhas brasileiras.

Os burocratas do governo não ti-veram como impedir, já que a artede Gismonti é muito apreciada noexterior, talvez até mais do que noseu próprio país. Nascido em 5 dedezembro de 1944, na cidade deCarmo, Rio de Janeiro, Egberto éum músico incapaz de se assustarcom as armadilhas técnicas de qual-quer tipo de instrumento. Apesardisso, ele dedica ao piano e ao vio-lão uma atenção especial. Nesses ca-sos, mais do que aperfeiçoar umatécnica de execução impecável, Eg-berto consegue descobrir novos ca-minhos para esses instrumentos tra-dicionais, seja através da imensa di-versidade de timbres oferecida pelosmodernos sintetizadores computa-dorizados, seja na sonoridade origi-nal que consegue extrair de violõesacústicos especialmente desenvolvi-dos por ele, como os modelos de oi-to e de dez cordas.

"Sou um compositor do séculoXIX que recebe encomendas de mú-sicas dos reis do século XX", afirmaGismonti, fornecendo uma boa pis-ta para os críticos que quebram a ca-beça tentando localizar a área ondepoderiam encaixar o estilo musicaldo multiinstrumentista, marcado pe-la diversidade de inspirações e poruma rara habilidade de trafegar àvontade pelas mais diferentes e an-tagónicas manifestações musicais,do jazz ao baião, do rock à músicasinfónica. Egberto Gismonti Amincomeçou a estudar piano aos cincoanos de idade. Sua família ofereciaum ambiente bastante propício parao desenvolvimento de sua musicali-dade, e seu tio, contratado pela pre-feitura, era o compositor oficial dapacata Carmo. Mesmo assim, o mú-sico juvenil logo teve de deixar suacidade natal para tratar de aperfei-çoar seus conhecimentos. Estudouno Conservatório Brasileiro de Mú-sica, no Rio de Janeiro, onde com-pletou sua formação erudita e tevea oportunidade de reforçar sua ad-miração pela obra do compositorHeitor Villa-Lobos.

Incentivado por Tom Jobim e Ba-den Powell, Egberto inscreveu umacomposição no IIIFIC — Festival In-ternacional da Canção. Ele mesmofez o arranjo para orquestra, exigin-do a presença de cem figuras. A mú-sica "O sonho" ganhou um prémiohors-concours no evento e Gismontidespertou a atenção de vários artis-tas. Em menos de um ano, sua mú-sica acabou sendo gravada dezoitovezes, recebendo versões de nomesconsagrados como Elis Regina,Henry Mancini e Paul Mauriat. Asportas estavam abertas e o músicofoi convidado a gravar seu primeiroLP, em 1969. Esse ano seria espe-cialmente produtivo para Gismonti.Depois do lançamento do disco, fezas malas e viajou para Paris, ondefoi chefe da orquestra que acompa-nhava a cantora Marie Laforêt. Atemporada, prevista para apenas ummês, acabou se estendendo por umano e, nesse tempo, Egberto foi alu-no de Nadia Boulanger e Jean Bar-raqué, dois dos mais importantes

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Gismonti: entre o refinamento erudito e o acessível tom popular.

compositores franceses de músicaerudita. Apresentou-se no Festivalde San Remo, na Itália, no Festivalde Jazz de Berlim, e registrou o ál-bum "Orfeu Novo", na Alemanha.

De volta ao Brasil, participou no-vamente do FIC, com a música "Omercador de serpentes". Ao mesmotempo que desenvolvia uma carrei-ra paralela no exterior, Gismonticontinuou a gravar no Brasil. For-mou o grupo Academia de Dançase fez experiências com sintetizadorese com os sons eletrificados, o queaproximou sua arte dos territórios dafusion e do rock progressivo. Essa fa-se duraria até 1978, quando gravou"Nó Caipira", uma reaproximaçãocom a música brasileira e com ossons acústicos do violão, do pianoe da orquestra sinfónica.

Gozando já de grande prestígioentre os músicos de alta expressão,Gismonti realizou inúmeras excur-sões com grandes virtuoses. Tocoucom Airto Moreira, numa tempora-da norte-americana em 1975. NaEuropa, apresentou-se com o pianis-ta norte-americano Keith Jarrett.Juntamente com o jazzista HerbieHancock, realizou shows nos Esta-dos Unidos. E formou ainda umdueto com o saxofonista Paul Horn,do qual resultou a gravação do dis-co "Altura do Sol".

Mas foi ao lado do percussionista

Naná Vasconcelos que Egberto ob-teve o reconhecimento definitivo dacrítica internacional. O LP "Dançadas Cabeças", de 1977, trazia a iné-dita mistura do berimbau e do vio-lão, ambos os instrumentos levadosa realizar altos voos sonoros pelasmãos hábeis da dupla. O trabalhoganhou o Grammy, a mais prestigia-da premiação da indústria fonográ-fica norte-americana, e foi citado co-mo o mais importante lançamentodaquele ano em cinco países, emcinco diferentes categorias: músicapop na Alemanha, brasileira no Bra-sil, folclórica no Japão, experimen-tal na Inglaterra e jazz nos EstadosUnidos.

Posteriormente, Egberto realizououtras bem-sucedidas experiênciasviolonísticas com o álbum duplo"Solo" (1979) e o disco "Dança dosEscravos" (1988), ambos registradospela gravadora alemã ECM, empre-sa conceituadíssima no mercado fo-nográfico internacional, e que temem seu elenco de artistas algumasdas figuras mais representativas damúsica instrumental contemporâ-nea. Desde 1983, Gismonti tambémadministra seu próprio selo de gra-vação, o Carmo, encarregado deproduzir discos de artistas brasileirosespecializados em executar músicainstrumental.

As atividades de Gismonti não

costumam se limitar aos shows e es-túdios: "Invariavelmente, por ano,aparecem cerca de oito a dez pro-postas para que eu faça trilhas sono-ras, além das propostas de discospróprios", contabiliza. Ele realizoutrabalhos no cinema, TV, bale e emexposições de artes plásticas. Em1985, para homenagear um de seusgrandes mestres, Villa-Lobos, o mul-tiinstrumentista gravou o LP "OTrem Caipira" em que, com o auxí-lio de um arsenal de sintetizadorese músicos, Gismonti realizou adap-tações livres de algumas peças docompositor brasileiro erudito. Comoinfluências, Egberto também não seprende unicamente às partituras doscompositores eruditos e às obras dosgrandes jazzistas modernos. Um mo-mento marcante de sua carreira eque modificou bastante seu concei-to de música foi quando viajou àAmazónia. No meio da selva, no Al-to do Xingu, teve a chance de che-gar à aldeia dos índios yawalapiti.Foi admitido na Casa Sagrada, umaoca na qual o índio Sapaim tocariaa Jacuí, a flauta sagrada nativa.

"Antes de ir lá, eu estava com Ra-vel, Stravinsky e Villa-Lobos na mi-nha música", recorda Egberto. "Láeu senti que era mais, que era a lin-guagem para falar com os deuses."Percepção musical apurada, Gis-monti aperfeiçoou ainda mais a co-municação com sua pequena, masfiel, plateia.

Sua arte situa-se num saudávelmeio-termo entre o refinamentoerudito e o acessível tom popular. Secomparados às vendagens dos gran-des astros pop, seus discos podemdar a impressão de atingir uma fai-xa restrita de ouvintes. A influênciade Gismonti, porém, não pode sermedida unicamente através de nú-meros. Segundo Egberto, as pró-prias gravadoras que investem emseu trabalho têm plena consciênciadisso: "As companhias de discos sãoobrigadas a prestar contas aos seusacionistas do que venderam e tam-bém do que fizeram, sobretudo quan-do se trata de uma multinacional. Eume situo no campo do que fizeram,não do quanto venderam".