3Janeiro de 2013
Saúde, que futuro?Em entrevista ao‘Qualidade&Inovação’, Miguel
Guimarães, presidente doConselho Regional do Norteda Ordem dos Médicos, fala
sobre os desafios atuais daSaúde. “Sustentabilidade doServiço Nacional de Saúde
(SNS), gestão de recursoshumanos e racionamento em
Saúde” é o triângulo quecaracteriza as estratégias queo poder político define para o
futuro do setor.
Refundar o Estado Social», ou seja
repensar as suas funções tem sido o
tema central de 2013 até ao momento.
O primeiro-ministro lançou o mote: “defender
o Estado Social implica reformá-lo, tendo em
conta os recursos disponíveis na economia”.
Neste momento em que o país está mergulha-
do num clima de austeridade e recessão, o
Estado tem necessidade de obter poupança
em áreas onde cumpre funções, como:
Educação, Saúde, Segurança e Ação Social,
Habitação e Serviços Coletivos, Serviços
Culturais e Recreativos. Assim, para garantir
a coesão social, o Governo pede a colaboração
ativa de todos.
Neste sentido, sendo a Saúde um dos setores
mais afetados pelos cortes orçamentais
decorrentes da dívida financeira do país e
impostos pela troika, a Secção Regional do Norte
da Ordem dos Médicos não se põe de parte
deste debate, desde que este seja feito de forma
“séria, ética e politicamente correta”, garante
Miguel Guimarães, presidente do Conselho
Regional do Norte da Ordem dos Médicos
(CRNOM). Em entrevista, Miguel Guimarães
analisa a atualidade do setor da Saúde em
Portugal que, segundo o próprio, assenta num
importante triângulo: “sustentabilidade do
Serviço Nacional de Saúde (SNS), gestão de
recursos humanos e racionamento em saúde”.
Sustentabilidade do ServiçoNacional de Saúde
«Todos têm direito à proteção da saúde e o dever
de a defender e promover», consagra a
Constituição da República Portuguesa (artigo
64º). O direito à saúde é realizado «através de
um serviço nacional de saúde universal e geral e,
tendo em conta as condições económicas e sociais
dos cidadãos, tendencialmente gratuito» (alínea
a) do n.º 2 do artigo 64º). No entanto, a reforma
do SNS (“a par da anunciada «refundação» do
Estado social”) tem, por um lado, “posto em
causa a qualidade da saúde em Portugal” e, por
outro, “a equidade de acesso dos cidadãos
portugueses aos cuidados de saúde”, afirma
Miguel Guimarães.
A comprovar tal facto está o aumento das taxas
moderadoras no passado dia 21. O aumento de
alguns cêntimos deveu-se às atualizações feitas
com base na inflação de 2012, que se fixou nos
2,8%. Assim, uma consulta de especialidade,
num hospital, que tinha como taxa moderadora
o valor de 7,71 euros, em 2012, passou a custar
aos utentes mais quatro cêntimos, ou seja, 7,75
euros; enquanto um atendimento numa urgência
hospitalar custa, agora, 20,60 euros. No entanto,
o valor das taxas moderadoras – que anualmente
são atualizadas e têm um novo regime desde 1
de janeiro de 2012 – manter-se-á em 2013, no
que diz respeito aos serviços prestados nos
cuidados de saúde primários, nomeadamente
consultas de Medicina Geral e Familiar, ou outra
que não de especialidade. “É missão do CRNOM
estar alerta e contestar esta situação que, na
minha opinião, vai conduzir a que os doentes
deixem de ter acesso aos cuidados básicos de
saúde”, alerta o presidente. “A taxa moderadora
não deve ser menosprezada. Uma vez que um
doente, agora, paga 20,60 euros para recorrer à
urgência de um hospital público e paga um valor
similar para ir a uma consulta num hospital
privado, é normal que em casos menos graves
opte por ir ao hospital privado. A taxa
moderadora, neste caso, funciona como um
copagamento, arruinando a verdadeira essência
do SNS”, defende o dirigente do CRNOM.
Atualmente, “o Estado padece de um grave
problema”, defende Miguel Guimarães: “os
nossos impostos revertem, na totalidade, para
pagar a dívida portuguesa. Esta questão nunca
foi discutida de forma aberta e séria com a
população portuguesa, o que é um erro. O
princípio da nossa contribuição com os impostos
é a garantia de que o Estado cumpre as suas
funções sociais, o que começa a não se verificar
presentemente”. Por isso, “considero que está
na altura de se renegociar a dívida, alargando os
prazos de pagamento e diminuindo os juros
como muitos economistas defendem. A taxa de
desemprego está cada vez mais elevada, o
empobrecimento é generalizado, os impostos
aumentam e, a par disso, há menos apoios sociais
nas áreas da Educação, Saúde e Justiça. O país
não está a ficar só mais pobre, está a atingir uma
situação alarmante”, considera.
Nos últimos anos, tem-se assistido a drásticos
cortes orçamentais na Saúde, motivados pela
necessidade premente do Governo em reduzir a
despesa pública. O presidente do CRNOM
alerta, assim, que a sustentabilidade do SNS é,
antes de mais, uma questão política. “Não se
pode ‘governar à vista’, ou seja, consoante as
necessidades imediatas. Refundar o Estado
Social pressupõe uma reforma com base em
estudos concretos, em conhecimentos objetivos
e naquilo que pode ser o futuro da Saúde para
todos os portugueses, mantendo ou preservando
sempre o código genético do SNS, tal como
defendeu António Arnaut (conhecido como o
‘pai’ do SNS): “respeito pela dignidade do ser
humano, igualdade de acesso e tratamento e
solidariedade social, em que todos contribuímos
através dos nossos impostos para o SNS e,
quando precisamos, utilizamos o SNS em
igualdade de circunstâncias”, explica o
entrevistado. Por isso é que “a dignidade da
pessoa humana e a igualdade de todos perante a
doença estão consagrados na Constituição. O
SNS é absolutamente indispensável numa
sociedade que preza os direitos humanos e a
cidadania. E, portanto, a preservação do SNS é
obrigatória e um fator decisivo de coesão social”,
atesta o presidente do CRNOM.
Na base do sucesso do Serviço Nacional de Saúde
está, segundo Miguel Guimarães, a criação das
carreiras profissionais, e em particular das
carreiras médicas. Neste contexto, é perentório
ao afirmar que é vital continuar a cumprir o acordo
celebrado entre o Ministério da Saúde e os
sindicatos médicos, que pressupõe a abertura
de cerca de 2000 vagas para assistente nas
diversas unidades de saúde até ao final de 2013
e os concursos para assistente graduado e
assistente graduado sénior.
Acima de tudo, “defendemos a carreira médica,
porque esta é o garante que os médicos estão
permanentemente atualizados, que fazem
formação contínua e que estão integrados num
grupo em que existe massa crítica que potencia
os melhores diagnósticos e tratamentos para os
doentes”. É, por isso, “fulcral que a carreira
médica seja apoiada. Acreditamos que o acordo
seja cumprido e que a carreira médica saia
beneficiada”, ainda que, recentemente, tenham
sido anunciadas, pelo ministro da Saúde,
“propostas antagónicas, como a separação de
«
“Defendemos a carreira
médica, porque esta é o
garante que os médicos estão
permanentemente
atualizados, que fazem
formação contínua e que
estão integrados num grupo
em que existe massa crítica
que potencia os melhores
diagnósticos e tratamentos
para os doentes”
Miguel Guimarães, presidentedo Conselho Regional do Norteda Ordem dos Médicos
4Janeiro de 2013
médicos entre o setor público e o privado”, atenta
Miguel Guimarães.
Gestão de recursos humanosNo debate “Estado Social, que futuro?”,
organizado pela Antena 1, o ministro da Saúde
admitiu que o futuro pode passar por se criar
uma “separação de profissionais em termos de
setor público e privado”. Porém, Paulo Macedo
alertou que este é um debate para ter, a médio
prazo, e não para ser incluído na redução de
quatro mil milhões de euros da reforma do Estado.
Além do ministro, outras vozes já se levantaram
para defender a exclusividade de profissionais.
António Ferreira, presidente do Conselho de
Administração do Hospital de São João, no
Porto, veio a público revelar que podia dispensar
mais de mil trabalhadores, se os funcionários
trabalhassem 40 horas semanais e em regime de
exclusividade. “Se tivéssemos pessoas em
dedicação exclusiva, todos com horários de 40
horas semanais, totalmente motivadas e
dedicadas ao hospital, creio que seguramente
poderíamos fazer mais do que o que fazemos
com menos 20% das pessoas”, afirmou António
Ferreira, no programa «Olhos nos Olhos», na
TVI24. Neste regime, o responsável defende que
os trabalhadores deviam ter, para além do salário
base, “incentivos de acordo com a qualidade e a
quantidade produzida”.
Sobre esta problemática, Miguel Guimarães
defende que, antes de mais, o ministro da Saúde
“devia avaliar se os médicos que trabalham em
regime de exclusividade nos hospitais públicos
são ou não mais eficientes do que aqueles que
não estão em exclusividade de funções”. Depois,
“o regime de exclusividade – extinto em 2009 na
negociação da legislação da carreira médica entre
a ministra da Saúde Ana Jorge e os sindicatos
médicos – pressupõe uma remuneração especial.
Ora, numa altura em que nos estão a reduzir
drasticamente os vencimentos, acho profunda-
mente estranho que o ministro da Saúde e outros
dirigentes, nomeadamente o presidente do
Conselho de Administração do Hospital de São
João, falem em regime de exclusividade. Será
que têm dinheiro para pagar esse regime de
trabalho aos médicos? Será que todos os médicos
que queiram optar pelo regime de 40 horas
recentemente negociado entre o Ministério da
Saúde e os sindicatos médicos serão aceites pelos
Conselhos de Administração? São várias as
questões que podem ser colocadas. Na prática,
foi dada a indicação, pela troika, de que é
imperativo diminuir o número de funcionários
públicos, e o Governo está a tentar arranjar todas
as justificações para o fazer. Não me parece que,
neste momento, existam condições sociais,
económicas e políticas para fazer as coisas desta
forma. A acontecer seria um desastre social e
humano de dimensões consideráveis”, indicia
Miguel Guimarães.
Racionamento em saúdeEste foi um tema envolto em polémica nos
últimos tempos, devido ao parecer 64/2012 do
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da
Vida que foi firmemente criticado em alguns dos
seus pontos mais polémicos, que defendiam o
racionamento terapêutico administrativo e com
base na idade, pelo Conselho Nacional Executivo
da Ordem dos Médicos e, em especial, pelo seu
Bastonário.
Polémicas à parte, Miguel Guimarães foca-se
em questões mais importantes para o bem-estar
e para a qualidade dos cuidados a todos os
doentes. Em primeiro lugar esclarece a diferença
entre racionar e racionalizar: “tratar os doentes
da melhor forma possível gastando o menos
possível, ou seja, racionalizar, é um dever
deontológico de cada médico e é aquilo que
procuramos fazer no dia-a-dia”, afiança o
Presidente do CRNOM, acrescentado que o
“racionamento tal como está a ser defendido
pressupõe a limitação de tratamentos essenciais
para doentes com patologias graves”.
Na ótica do presidente do CRNOM, a ser
necessário introduzir fatores adicionais de
poupança e eficiência, a estratégia deve passar
não pelo racionamento terapêutico com base na
limitação do acesso e no custo, mas sim por
definir prioridades em saúde. “No SNS, deve-
-se, tal como já vai acontecendo, dar prioridade
aos doentes com patologias mais graves e avaliar
de forma transparente e rigorosa a necessidade
da introdução de novas tecnologias e dis-
positivos médicos assim como discutir, de forma
aberta e fundamentada, a questão da reutilização
de vários dispositivos médicos. Por exemplo,
no contexto atual, provavelmente não faz muito
sentido realizar, no SNS, cirurgias com intuitos
puramente estéticos”, refere.
No que aos medicamentos concerne, Miguel
Guimarães alerta que a enorme dívida que as
instituições públicas têm para com os laboratórios
farmacêuticos pode estar a pôr em risco o
fornecimento de alguns medicamentos aos
hospitais. “Os grandes laboratórios farma-
cêuticos são multinacionais que, rapidamente,
se podem retirar do mercado português, o que
seria mau para a qualidade do nosso SNS. Não
nos podemos esquecer que a qualidade e a
segurança alcançadas na Saúde a nível mundial
também resultam do avultado investimento em
investigação realizado pelos grandes laboratórios
farmacêuticos”.
Outra questão importante que Miguel Guimarães
denuncia relaciona-se com o facto dos doentes
“não estarem a ser tratados da mesma maneira
nos hospitais. Ainda recentemente foram
tornados públicos vários casos em que alguns
hospitais portugueses estão a recusar
terapêuticas a doentes com doenças oncológicas
e Hepatite C. Estas desigualdades entre a nossa
população começaram com o famoso acordo
entre os 14 hospitais do Norte (G14) que limitou
o acesso a alguns tipos de terapêuticas. Dito de
outra forma, em algumas patologias um doente
no Porto não tem acesso ao mesmo tipo de
tratamentos que um doente em Lisboa. Esta é
uma preocupação nossa e devia ser, também,
uma preocupação da Entidade Reguladora da
Saúde”, refere. A OM já propôs ao ministro da
Saúde colaborar nesta área, no sentido de definir
claramente protocolos de orientação clínica para
que todos os doentes em Portugal tenham
igualdade de acesso aos tratamentos mais
indicados em cada patologia e caso clínico.
Estratégias do CRNOMCom um novo ano a começar e com tantos
desafios para enfrentar no setor da Saúde, o
CRNOM pretende prosseguir os seus objetivos
e continuar a desenvolver o trabalho realizado
até agora. Miguel Guimarães – que foi eleito em
2010 para presidente do CRNOM, como
corolário de um percurso associativo de mais de
25 anos – adianta que “o debate sobre o
racionamento em saúde versus a definição de
prioridades éticas será um marco importante em
2013. A sociedade civil e os doentes devem ser
envolvidos e ouvidos através dos seus legítimos
representantes no sentido de decidir qual o
melhor caminho a seguir”.
Além disso, o Conselho Regional do Norte está,
também, empenhado em “garantir a qualidade
da formação contínua dos médicos a todos os
níveis e está preocupado com as saídas
profissionais. A qualidade da formação pré-
-graduada começa a ser deteriorada devido ao
número excessivo de alunos em Medicina”,
revela o presidente. “A qualidade pressupõe,
também, que os jovens médicos possam
prosseguir a sua formação específica numa
determinada especialidade, adquirindo
qualificações e competências técnicas que
garantem ao país e aos doentes cuidados de saúde
de elevada qualidade. Se o ministro da Saúde
está, de facto, preocupado com a qualidade dos
profissionais de Saúde, devia então estar
preocupado com o excesso de alunos que
frequentam atualmente as Faculdades de
Medicina”.
De resto, “investir cerca de 12-13 anos na
formação de um médico, que depois não tem
possibilidade de trabalhar em Portugal, é o
retrato da ineficiência do nosso país, facto que
será certamente bem aproveitado por outros
países bem mais eficientes que o nosso – como
Inglaterra, Alemanha ou França”. Para terminar,
Miguel Guimarães alerta o Governo para a
necessidade de se criar “equilíbrio entre as capa-
cidades formativas das Escolas Médicas e as
capacidades formativas dos vários serviços das
unidades de saúde, para que a absorção dos
profissionais pelo mercado de trabalho possa ser
feita com uma qualidade e competências
devidamente certificadas e reconhecidas. Só assim
podemos contribuir de forma positiva para a
mudança que o país necessita com urgência”
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