Escritos de Filosofia III
Linguagem e Cogniccedilatildeo
Escritos de Filosofia III
Linguagem e Cogniccedilatildeo
Organizadores
Marcus Joseacute Alves de Souza
Maxwell Morais de Lima Filho
Diagramaccedilatildeo Marcelo A S Alves
Capa Carole Kuumlmmecke - httpswwwbehancenetCaroleKummecke
Arte de Capa Pedro Lucena
Revisatildeo ortograacutefica Marcus Viniacutecius Matias
Revisatildeo das regras da ABNT Iuri Rocio Franco Rizzi
O padratildeo ortograacutefico e o sistema de citaccedilotildees e referecircncias bibliograacuteficas satildeo prerrogativas de
cada autor Da mesma forma o conteuacutedo de cada capiacutetulo eacute de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor
Todos os livros publicados pela Editora Fi
estatildeo sob os direitos da Creative Commons 40
httpscreativecommonsorglicensesby40deedpt_BR
httpwwwabecbrasilorgbr
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs)
Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo [recurso eletrocircnico] Marcus Joseacute Alves de Souza Maxwell Morais de Lima
Filho (Orgs) -- Porto Alegre RS Editora Fi 2019
242 p
ISBN - 978-85-5696-748-0
Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg
1 Filosofia 2 Cogniccedilatildeo 3 Linguagem 4 Loacutegica 5 Mente I Tiacutetulo
CDD 100
Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico
1 Filosofia 100
Para Bia Jorginho
Tissi Camu e o Ecossistecircmico Rudaacute
Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Marcus Joseacute Alves de Souza
1 14
Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica
Manfredo Arauacutejo de Oliveira
2 40
Encheiriacutedion Capiacutetulo I Traduccedilotildees e Comentaacuterios
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio
3 53
A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva da Filosofia Analiacutetica da Mente
Taacuterik de Athayde Prata
4 69
A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico A Criacutetica de John Searle agraves Principais
Correntes da Filosofia da Mente
Maxwell Morais de Lima Filho
5 98
Da Natureza Humana As Perspectivas Epistemoloacutegicas de Piaget Chomsky e
Foucault
Argus Romero Abreu de Morais
6 116
Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche A Leitura de Guumlnter Abel
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa
7 133
Habermas e o Problema do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira
8 146
Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes para se Pensar a Natureza de Sistemas
Formais Uma Abordagem Wittgensteiniana
Marcos Silva
9 158
Revisitando o Argumento da Linguagem Privada
Marcus Joseacute Alves de Souza
10 172
O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico
Ricardo S Rabenschlag
11 184
A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo
Sagid Salles
12 201
O Leibniz de Deleuze Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido
William de Siqueira Piauiacute
Sobre os Organizadores 242
Apresentaccedilatildeo
Marcus Joseacute Alves de Souza
O empreendimento filosoacutefico eacute uma atividade coletiva especialmente
por seu caraacuteter corretivo estabelecido em debate puacuteblico Eacute claro que haacute
momentos de reflexatildeo solitaacuteria mas mesmo estes satildeo momentos de
organizaccedilatildeo discursiva que visam agrave correccedilatildeo em debate e o debate com
os autores eacute fundamental para o desenvolvimento do empreendimento
filosoacutefico Ao apresentar este novo volume da seacuterie Escritos de Filosofia
Linguagem e Cogniccedilatildeo gostariacuteamos de enfatizar estes dois aspectos
sugeridos no iniacutecio o aspecto coletivo e o corretivo deste trabalho Na
dimensatildeo coletiva este eacute mais um fruto da atividade do Grupo de Pesquisa
Linguagem e Cogniccedilatildeo da Universidade Federal de Alagoas Ele resulta da
continuidade de um trabalho que desde 2014 reuacutene profissionais de
Filosofia de variadas instituiccedilotildees para apresentarem e debaterem suas
pesquisas Num Estado com pouca tradiccedilatildeo em realizaccedilatildeo deste tipo de
atividade a reuniatildeo coletiva para divulgaccedilatildeo de pesquisas eacute uma conquista
que deve ser ressaltada pois fortaleceu o Grupo de Pesquisa e originou
uma linha do receacutem-criado Mestrado Acadecircmico de Filosofia da UFAL
(2018) Mas filoacutesofos se reuacutenem especialmente para apresentar ideias e
debatecirc-las numa perspectiva de autocorreccedilatildeo entre pares Isso vem se
dando nas atividades do Grupo inclusive nos Encontros seis ateacute agora
mas sobretudo atraveacutes desta seacuterie de publicaccedilotildees Aqui o aspecto
corretivo ganha relevo A perspectiva eacute incrementar ainda mais uma
tradiccedilatildeo de publicaccedilotildees que mantenha o debate de ideias vivo
contribuindo para o avanccedilo das discussotildees filosoacuteficas daqueles que
tomarem contato com cada publicaccedilatildeo da seacuterie Escritos de Filosofia
Linguagem e Cogniccedilatildeo Possibilitando assim a acareaccedilatildeo criacutetica dos vaacuterios
12 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
escritos e animando o avanccedilo do conhecimento filosoacutefico num acircmbito da
Filosofia que reuacutene temas relacionados agraves aacutereas de Loacutegica da Filosofia da
Linguagem da Filosofia da Mente e da Epistemologia
Os textos aqui apresentados satildeo resultado do IV Encontro Linguagem
e Cogniccedilatildeo realizado em novembro de 2017 que reuniu mais uma vez
profissionais de vaacuterias instituiccedilotildees (UFAL UFAM UFPI UFS UFC UFPE
UFSJ PUC-Rio UnB dentre outras) no intuito de avanccedilarmos a pesquisa
filosoacutefica nos contextos alagoano e nordestino Como nas outras ediccedilotildees
as temaacuteticas de investigaccedilatildeo estatildeo relacionadas agrave loacutegica agrave linguagem agrave
consciecircncia e ao conhecimento
Eacute importante afirmarmos que para aleacutem de uma possiacutevel
organicidade temaacutetica dos textos este livro eacute resultado tambeacutem de
confluecircncias de amizades construiacutedas pelo interesse filosoacutefico Nisso
nossos Encontros tecircm se mostrado frutiacuteferos ao mostrar a forccedila da
tradiccedilatildeo de associar a ldquoamizade ao saberrdquo
Esta eacute a terceira coletacircnea da seacuterie Escritos de Filosofia Linguagem e
Cogniccedilatildeo mostrando continuidade e esforccedilo em darmos publicidade ao
trabalho de pesquisa realizado Reforccedilando e aprofundando laccedilos teoacutericos
de investigaccedilatildeo este volume eacute composto de 12 capiacutetulos escritos por 14
pesquisadores de 8 instituiccedilotildees (UFAM UFPI UFC UECE UFPE UFAL
UFS e UFSJ) O leitor teraacute oportunidade de refletir e avaliar criticamente
sobre uma diversidade de temas filosoacuteficos Neste ponto eacute interessante
destacar que os temas abarcados vatildeo aleacutem daquilo que ficou conhecido
como ldquoFilosofia Analiacuteticardquo haja vista a salutar heterogeneidade de autores
e abordagens jaacute presente nos outros volumes
O leitor poderaacute pensar a trajetoacuteria histoacuterico-filosoacutefica da conhecida
ldquoreviravolta linguiacutesticardquo e avaliar se efetivamente saiacutemos de um marco
reflexivo da subjetividade para o da linguagem em Filosofia Ler um
trabalho cuidadoso de traduccedilatildeo comentada de um capiacutetulo do Encheiriacutedion
de Epicteto Tomar contato com uma reflexatildeo sobre o conceito de
consciecircncia em Sartre numa perspectiva analiacutetica Compreender a criacutetica
de John Searle agraves principais correntes da Filosofia da Mente Revisitar o
Marcus Joseacute | 13
tema da natureza humana a partir de trecircs autores natildeo-analiacuteticos Piaget
Foucault e Chomsky Rediscutir os temas da consciecircncia da linguagem e
da natureza em Nietzsche a partir da avaliaccedilatildeo de Guumlnter Abel
Aprofundar no conhecimento da temaacutetica da objetividade dentro do
pensamento de Habermas Refletir sobre o conceito de jogo em sistemas
loacutegicos formais Retomar a discussatildeo do argumento da linguagem privada
de Wittgenstein Avaliar aspectos filosoacuteficos do pensamento dos ldquonovos
ateusrdquo Aproximar-se da problemaacutetica da vagueza numa avaliaccedilatildeo criacutetica
da teoria trivalente da vagueza e as dificuldades loacutegico-filosoacuteficas do
estabelecimento da precisatildeo conceitual Analisar de modo criacutetico a
interpretaccedilatildeo que Deleuze faz de Leibniz Enfim o leitor teraacute oportunidade
de pensar temas autores e abordagens variadas neste volume Esperamos
que seja de proveito para conhecimento inicial ou mesmo de
aprofundamento para o leitor experiente em Filosofia e que todos tenham
uma leitura filosoficamente estimulante
Agradecemos aos participantes que gentilmente forneceram os textos
para a composiccedilatildeo deste trabalho coletivo Agradecemos agrave agecircncia de
fomento agrave pesquisa de Alagoas FAPEAL (Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa
do Estado de Alagoas) pelo apoio financeiro ao evento que deu origem a
este volume Ao apoio do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e
Artes (ICHCA) e do Curso de Filosofia da UFAL A todos que contribuem
com as atividades o Grupo de Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo da UFAL Agrave
Editora Fi pela parceria nesta publicaccedilatildeo
Maceioacute setembro de 2019
1
Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta
de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica
Manfredo Arauacutejo de Oliveira 1
A filosofia se encontra hoje diante de um desafio que tem a ver com
a proacutepria forma de sua configuraccedilatildeo enquanto teoria ou seja o desafio da
articulaccedilatildeo de um novo paradigma teoacuterico O ponto de partida desta
situaccedilatildeo foi certamente a reviravolta linguiacutestica ou seja a substituiccedilatildeo no
pensamento de Frege da anaacutelise de sensaccedilotildees representaccedilotildees e juiacutezos pela
anaacutelise das expressotildees linguiacutesticas Quine (1981 p 23) ao fazer um
balanccedilo dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do seacuteculo
XX afirmou que o evento decisivo e irreversiacutevel da filosofia depois de
Hume foi a reviravolta linguiacutestica Que significa isto para a filosofia Hoje
haacute pensadores que defendem que ela apenas significou uma radicalizaccedilatildeo
da reviravolta transcendental da filosofia moderna Faremos uma breve
apresentaccedilatildeo da proposta da fenomenologia transcendental no
pensamento de Husserl que levantou a pretensatildeo de articular o paradigma
transcendental da forma mais rigorosa possiacutevel para poder depois mostrar
que a reviravolta linguiacutestica natildeo necessariamente se deve entender como
uma radicalizaccedilatildeo deste paradigma mas articula antes um quadro teoacuterico
propriamente poacutes-transcendental
1 Graduado pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) Doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilian de Munique (LMU) e Professor Emeacuterito da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 15
A Filosofia Transcendental Preacute-Linguiacutestica O Mundo se nos Daacute em
Intuiccedilotildees Puras A Fenomenologia Husserliana
Para Husserl a filosofia exige uma mudanccedila radical de postura o que
revela o caraacuteter ingecircnuo da atitude da postura natural Essa transformaccedilatildeo
radical de postura nos vai mostrar que todos os entes soacute nos podem ser
dados na esfera da subjetividade transcendental atraveacutes de muacuteltiplos
modos de manifestaccedilatildeo que satildeo em princiacutepio variaacuteveis e ilimitados Neste
sentido fenomenologia natildeo eacute simples descriccedilatildeo do que aparece sem que
possa haver uma decisatildeo sobre o que o ente eacute em sua essecircncia e seu ser
mas ela eacute precisamente o esclarecimento dos entes em sua essecircncia em
seu sentido e em seu ser Nesta perspectiva se deve dizer que a questatildeo
central da fenomenologia natildeo eacute o ser mas o sentido embora natildeo seja claro
como Husserl interpreta o sentido De qualquer modo ele sempre tematiza
o sentido e natildeo o ser mesmo (PUNTEL 2011 p 305)
Isto se faz atraveacutes do retorno agraves vivecircncias intencionais nas quais os
sentidos vecircm agrave doaccedilatildeo Dessa forma o tema especiacutefico da fenomenologia
eacute a correlatividade entre as ldquoformas de doaccedilatildeordquo dos objetos e os momentos
intencionais das vivecircncias (dos atos intencionais) em suas inuacutemeras
modificaccedilotildees (TUGENDHAT 1967 p 172)2 Numa palavra fenomenologia
eacute anaacutelise da correlaccedilatildeo entre objeto intencional e ato intencional ou seja
trata-se de determinar a partir da intenccedilatildeo o sentido do ldquointendidordquo
Portanto o que temos eacute sempre um objeto num modo determinado de nos
dar-se natildeo haacute objeto sem a mediaccedilatildeo de seu modo de dar-se Fenocircmeno
eacute entatildeo aqui um correlato intencional da consciecircncia (FINK 1976 p 83)
e a subjetividade eacute o princiacutepio da originariedade (FINK 1976 p 91)
Ser eacute entatildeo ser para a consciecircncia esta eacute a tese baacutesica da filosofia
transcendental e natildeo se pode entender o projeto husserliano de filosofia
sem vinculaacute-lo agrave tradiccedilatildeo do pensamento transcendental de Kant e
sobretudo de Fichte3 no giro reflexivo da filosofia na expressatildeo de
2 A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl cf PORTA (2003 p 85-106)
3 Essa eacute a tese baacutesica de Siemek Cf SIEMEK (2001 p 190 e ss) Cf OLIVEIRA (1973 p 139-220)
16 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Tugendhat (1976 p 16 e ss) aceita e radicalizada por Husserl Isto significa
dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos enquanto
idecircntico atraveacutes das diferentes formas de consciecircncia se formam atraveacutes
de nossas accedilotildees sinteacuteticas no como de sua doaccedilatildeo isto eacute nos diferentes
tipos de objetualidade (HABERMAS 1984 p 37) Para a postura
fenomenoloacutegica todos os entes abstratos ou concretos reais ou ideais tecircm
seus modos de doaccedilatildeo (HUSSERL 1963 p 169) Numa palavra tudo se
revela na consciecircncia como objeto constituiacutedo por atos constituintes e
portanto a subjetividade emerge como a fonte uacuteltima de toda doaccedilatildeo de
sentido
Husserl rejeita este meacutetodo regressivo natildeo no sentido da pergunta
pelas condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento objetivo mas no sentido
de que esta pergunta no pensamento de Kant natildeo realiza um retorno agrave
intuiccedilatildeo e neste sentido eacute em uacuteltima anaacutelise uma construccedilatildeo atraveacutes de
deduccedilatildeo Com isto todo o procedimento se radica em suposiccedilotildees natildeo
intuiacutedas o que tem como consequecircncia que desta forma natildeo eacute possiacutevel
atingir a autodoaccedilatildeo da subjetividade em seu ser em si ela eacute apenas
ldquoconstruiacutedardquo num pensamento vazio
O grande ausente no pensamento de Kant eacute precisamente a intuiccedilatildeo
que Husserl denomina o ldquoPrinciacutepio dos Princiacutepiosrdquo entendida como a
fonte originaacuteria a evidecircncia fundante de todo conhecimento (HUSSERL
1950 p 25 e STROumlKER 1987 p 1-34) Desta forma a tese central da
fenomenologia eacute que soacute o retorno aos atos intencionais pode produzir
aquela autodoaccedilatildeo em evidecircncia intuitiva que constitui o cerne da
fenomenologia Assim as coisas mesmas natildeo satildeo objetos no sentido de
uma ldquoposiccedilatildeo transcendente de serrdquo mas o que eacute intuiacutedo na satisfaccedilatildeo de
atos intencionais (GADAMER 1987 p 118)
Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a respeito
da forma suprema do dar-se da realidade a noacutes pode iniciar-se com a
criacutetica articulada por E Tugendhat (1976 p 85-87) conhecido eacute para
Husserl precisamente o que nos eacute imediatamente dado Para Tugendhat
justamente nisto se mostra o caraacuteter unilateral da concepccedilatildeo husserliana
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 17
de conhecimento a funccedilatildeo do conceito para o que eacute sensivelmente preacute-
dado perde importacircncia frente ao papel da intuiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que eacute
significado de tal modo que ascensatildeo no conhecimento significa
exclusivamente maior proximidade da coisa e natildeo igualmente aumento
em diferenciaccedilatildeo e distinccedilatildeo
Este preacute-conceito da fenomenologia ou seja de que a simples
presenccedila garante por si mesma o cumprimento uacuteltimo de uma intenccedilatildeo
significante tem para Tugendhat enormes consequecircncias na concepccedilatildeo
husserliana da filosofia Em primeiro lugar isto eacute decisivo para o modelo
de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepccedilatildeo da
consciecircncia pura como o campo absoluto precisamente porque o campo
do que se daacute adequadamente Em segundo lugar para a consequecircncia
metoacutedica de que a anaacutelise fenomenoloacutegica se restringe ao que eacute
simplesmente dado intuitivamente na intuiccedilatildeo originaacuteria (HUSSERL
1950 p 52) A natildeo consideraccedilatildeo da questatildeo da determinaccedilatildeo tem como
resultado que o determinado eacute aceito ingenuamente e natildeo eacute considerado
expressamente mas por outro lado ele eacute o ponto de chegada de um
processo de determinaccedilatildeo que se faz atraveacutes de sua relaccedilatildeo agrave forma de seu
dar-se Isto conduz sempre a uma absolutizaccedilatildeo da experiecircncia em
questatildeo
De fato aqui se situa a questatildeo fundamental de confronto com o
pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto
fenomenologia transcendental mesmo na sua formulaccedilatildeo uacuteltima de
filosofia do mundo vivido como o originariamente dado Trata-se para ele
de atingir a dimensatildeo mais originaacuteria do pensamento enquanto tal e esta
eacute para ele a intuiccedilatildeo que se daacute originariamente e que constitui a fonte de
justificaccedilatildeo de todo conhecimento Isso leva segundo E Fink (1976 p 85)
a uma postura ldquointencionalistardquo na concepccedilatildeo do ser e da verdade
enquanto posiccedilatildeo especiacutefica da fenomenologia enquanto filosofia Na
realidade aqui natildeo se articula propriamente uma justificaccedilatildeo mas se
defende a tese de que se trata em uacuteltima instacircncia de um ver de um
mostrar-se a dimensatildeo originaacuteria se mostra daacute-se
18 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Como diz Habermas (1984 p 47-59) em Husserl a intuiccedilatildeo sensiacutevel
serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuiccedilatildeo possiacutevel pois
aqui aparece em niacutevel elementar o que constitui a intuiccedilatildeo a autodoaccedilatildeo
de um objeto Sua suposiccedilatildeo fundamental eacute que temos na experiecircncia
sensiacutevel acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente Para E
Fink (1976 p 84) em Husserl a percepccedilatildeo intuitiva constitui de fato o
modo originaacuterio de autodoaccedilatildeo Sua tese eacute que em Husserl isto natildeo
significa um intuicionismo inimigo do pensamento mas defesa do
ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo e do caraacuteter secundaacuterio do pensamento Habermas
aponta para a dificuldade de defesa desta tese do ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo a
partir inclusive de consideraccedilotildees do proacuteprio Husserl (1964) em sua obra
ldquoErfahrung und Urteilrdquo A razatildeo fundamental eacute que em cada intuiccedilatildeo
originaacuteria jaacute estatildeo presentes determinaccedilotildees categoriais o que para ele
significa que o modelo de uma filosofia da consciecircncia tem que ser
substituiacutedo pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na
linguagem
Que significa isto para a filosofia Em primeiro lugar que depois da
reviravolta linguiacutestica natildeo podemos mais analisar nossa capacidade de
conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir uma
vez que noacutes enquanto sujeitos cognoscentes jaacute sempre nos encontramos
no horizonte de nossas praacuteticas no mundo vivido Linguagem e realidade
estatildeo mutuamente imbricadas de tal modo que toda experiecircncia humana
eacute linguisticamente impregnada Com isto supera-se definitivamente o
ldquomito do dadordquo uma vez que mesmo a experiecircncia sensiacutevel jaacute eacute mediada
linguisticamente de tal modo que ela perde a autoridade epistecircmica
daquela instacircncia que nos daria imediatamente a realidade pura Para
Habermas (1984 p 20) foi meacuterito de W Sellars (2003 p 23 ss) em sua
criacutetica ao empirismo do Ciacuterculo de Viena de ter explicitado esta
consequecircncia da reviravolta linguiacutestica
Isto tem como consequecircncia a eliminaccedilatildeo do primado da
intencionalidade e de sua substituiccedilatildeo pelo primado de uma compreensatildeo
linguiacutestica Neste caso a urgecircncia de uma fundamentaccedilatildeo que eacute central na
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 19
filosofia natildeo pode satisfazer-se atraveacutes de uma consideraccedilatildeo
fenomenoloacutegica da histoacuteria da originaccedilatildeo do mundo vivido mas atraveacutes
da acareaccedilatildeo das pretensotildees de validade que levantamos em nossas
praacuteticas simboacutelicas ordinaacuterias Natildeo intuiccedilatildeo mas argumentos eacute o que pode
justificar a aceitaccedilatildeo ou natildeo das pretensotildees de validade e por conseguinte
eacute neste niacutevel que se situa uma teoria filosoacutefica
Em direccedilatildeo semelhante Apel rearticula a filosofia transcendental
claacutessica a partir do diaacutelogo com as filosofias que saiacuteram da reviravolta
linguiacutestica a filosofia analiacutetica e a filosofia hermenecircutica Para ele essa
reviravolta provocou uma transformaccedilatildeo daquilo que constitui a questatildeo
central desta tradiccedilatildeo de pensamento filosoacutefico ou seja a pergunta pelas
condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido Foi nesse contexto que
Tugendhat (1976 p 16) 4 interpretou a reviravolta linguiacutestica como
radicalizaccedilatildeo do movimento do pensamento que constitui o cerne da
filosofia transcendental que ele denomina de ldquoreviravolta reflexivardquo cujo
cerne consiste em dizer que a filosofia natildeo tem como tarefa o
conhecimento direto dos objetos do mundo mas sua especificidade eacute uma
reflexatildeo sobre como os objetos do mundo enquanto tais nos podem ser
dados
Eacute neste sentido estrito que K-O Apel afirma ser a filosofia da
linguagem a nova ldquofilosofia primeirardquo ou seja natildeo uma filosofia primeira
enquanto pergunta pelo ente enquanto tal ou pela estrutura da
consciecircncia transcendental enquanto fundamento do conhecimento
vaacutelido mas uma filosofia primeira agrave altura da consciecircncia criacutetica alcanccedilada
em nossos dias o que neste contexto significa a consciecircncia da
inevitabilidade da mediaccedilatildeo linguiacutestica de nosso acesso ao mundo
Neste sentido eacute que natildeo haacute como diz J McDowell (2005 p 64)
qualquer experiecircncia originaacuteria que esteja fora da esfera conceitual natildeo
haacute uma fronteira exterior para aleacutem da esfera conceitual como ele diz
comentando Wittgenstein
4 ldquoSie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstaumlnde sondern in der gleichzeitigen Reflexion darauf wie uns diese Gegenstaumlnde gegeben sein koumlnnenwie sie uns zugaumlnglich werdenrdquo
20 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
natildeo existe lacuna ontoloacutegica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer
ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de
coisa que pode ocorrer Quando algueacutem pensa de modo verdadeiro aquilo em
que ele pensa eacute aquilo que ocorre Como o mundo eacute tudo que ocorre (como ele
proacuteprio escrevera) natildeo haacute lacuna entre o pensamento enquanto tal e o
mundo
Natildeo haacute portanto nenhuma lacuna entre o pensamento enquanto tal
e o mundo mas um jogo reciacuteproco entre conceitos e intuiccedilotildees entre
receptividade e espontaneidade (McDOWELL 2005 p 40) o que poreacutem
natildeo nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um
controle racional sobre nosso pensamento Isso natildeo significa contudo que
o mundo seja completamente no espaccedilo de um sistema de conceitos
Precisamos de um trabalho longo e paciente o que implica uma obrigaccedilatildeo
permanente de reflexatildeo O importante aqui eacute afirmaccedilatildeo de que a realidade
natildeo estaacute fora da esfera conceitual e a rejeiccedilatildeo do ldquomito do dadordquo significa
precisamente que natildeo existe uma presenccedila pura originaacuteria fora da esfera
conceitual Eacute isto que McDowell chama de ldquoo caraacuteter indelimitado do
conceitualrdquo
A Posiccedilatildeo da Filosofia-Sistemaacutetico-Estrutural de L B Puntel
A questatildeo do papel exercido pela linguagem na filosofia constitui
certamente para L B Puntel uma questatildeo central partindo-se de uma nova
forma de articular a filosofia e suas questotildees que eacute resultado do que se
convencionou denominar de ldquogiro ou reviravolta linguiacutesticardquo da filosofia
(OLIVEIRA 2015) Natildeo se trata aqui de um novo objeto ou um novo campo
de investigaccedilatildeo para uma teoria filosoacutefica mas da filosofia mesma em sua
configuraccedilatildeo teoacuterica Isto significa dizer que a tematizaccedilatildeo da linguagem
natildeo constitui uma disciplina filosoacutefica nova mas sua consideraccedilatildeo faz
parte da tematizaccedilatildeo dos pressupostos irrenunciaacuteveis da articulaccedilatildeo da
filosofia enquanto uma forma de atividade teoacuterica na vida humana jaacute que
o que estaacute em jogo aqui eacute a instacircncia imprescindiacutevel de articulaccedilatildeo de uma
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 21
teoria filosoacutefica sem ela nada eacute dado a uma teoria filosoacutefica o que seria
dizer que a teoria seria inviaacutevel
A tese baacutesica da reviravolta linguiacutestica eacute de que natildeo eacute mais possiacutevel
pensar a filosofia sem a mediaccedilatildeo da linguagem e isto tem consequecircncias
fundamentais em sua articulaccedilatildeo o que se configura como tese da
centralidade da linguagem na filosofia Na proposta da filosofia
sistemaacutetico-estrutural de Puntel (OLIVEIRA 2014 p 190 ss) esta eacute
elucidada no contexto de uma ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo da revoluccedilatildeo
transcendental que caracteriza o pensamento moderno e desemboca
numa filosofia poacutes-transcendental Que significa propriamente isto
Uma filosofia sistemaacutetico-estrutural na proposta de Puntel (2008 p
97 ss) radica-se na concepccedilatildeo fundamental de que filosofia eacute uma
atividade humana que se distingue de outras atividades em razatildeo de seu
objetivo baacutesico isto eacute a elaboraccedilatildeo e a apresentaccedilatildeo de teorias Teoria eacute a
forma de discurso metoacutedico e rigorosamente ordenado que se compotildee de
sentenccedilas puramente declarativas Nesta posiccedilatildeo em oposiccedilatildeo a vaacuterias
propostas hoje existentes a filosofia eacute concebida como um
empreendimento estritamente teoacuterico Esta ldquoatividaderdquo e seu ldquoprodutordquo
tecircm a ver com o ldquomundordquo compreendido como a totalidade ilimitada dos
ldquoobjetosrdquo ou ldquocamposrdquo ou ldquoacircmbitosrdquo a totalidade do que eacute dado na
linguagem
A uniatildeo desses trecircs fatores baacutesicos nos autoriza a falar da ldquodimensatildeo
expositivardquo como sendo o especiacutefico da atividade filosoacutefica Por esta razatildeo
seu primeiro trabalho consiste precisamente no esclarecimento da
dimensatildeo da teoricidade e da explicitaccedilatildeo do conceito de uma teoria
filosoacutefica pela apresentaccedilatildeo de seus componentes irrenunciaacuteveis Numa
palavra sendo a filosofia uma atividade que se efetiva na esfera da
linguagem tendo assim a linguagem como seu pressuposto primeiro
exige-se para o cumprimento de sua tarefa a tematizaccedilatildeo de seus
pressupostos linguiacutesticos o que eacute uma decorrecircncia da reflexividade que
caracteriza a atividade teoacuterica neste niacutevel de sua efetivaccedilatildeo Isto implica
22 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
dizer que uma filosofia deve comeccedilar pela consideraccedilatildeo de sua mediaccedilatildeo
linguiacutestica
Num sentido programaacutetico Puntel elabora uma quase-definiccedilatildeo de
filosofia que serviraacute de fio condutor para toda a exposiccedilatildeo ldquoa filosofia
sistemaacutetico-estrutural eacute a teoria das estruturas universais (mais gerais) do
universo do discurso [universe of discourse] ilimitadordquo (PUNTEL 2008
p 33) ldquoUniverso do discursordquo pode ser explicitado por conceitos mais
determinados do ponto de vista do conteuacutedo como ldquomundordquo ldquouniversordquo
ldquorealidaderdquo e em uacuteltima instacircncia ldquoserrdquo A dimensatildeo do universo do
discurso eacute o dado abrangente dado eacute compreendido aqui como o
ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila portanto algo linguisticamente articulado
precisamente aquilo que eacute dado para ser compreendido ou explicado pela
filosofia seu objeto sua temaacutetica especiacutefica tudo o que eacute candidato a um
tratamento teoacuterico-filosoacutefico
A pretensatildeo proacutepria de qualquer teoria eacute assim compreender um
dado um setor do mundo ou o mundo enquanto tal no caso de uma teoria
filosoacutefica Desta forma eacute tarefa do filoacutesofo sistemaacutetico-estrutural tentar
integrar numa teoria compreensiva todos estes dados que num primeiro
momento emergem justamente como candidatos agrave compreensatildeo como
candidatos agrave teoria Daiacute porque a formaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica
consiste em trabalhar a interconexatildeo entre a dimensatildeo dos dados e a
dimensatildeo das estruturas isto eacute os componentes irrecusaacuteveis da
linguagem enquanto os pressupostos irrenunciaacuteveis para a compreensatildeo
de qualquer dado de tal forma que as estruturas afinal se revelam como
estruturas dos dados e os dados enquanto incluiacutedos na dimensatildeo das
estruturas
Uma pergunta se revela aqui como fundamental Que eacute entatildeo
compreender Que implica o compreender Esta eacute uma questatildeo que
subjaz a todo empreendimento teoacuterico uma vez que compreender um
determinado X constitui a tarefa especiacutefica de qualquer empreendimento
teoacuterico ldquosendo que ldquocompreenderrdquo neste caso eacute um conceito geral para
ldquoentenderrdquo ldquoexplicarrdquo ldquoarticularrdquo (PUNTEL 2008 p 205) O X por sua
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 23
vez designa a coisa a temaacutetica o objeto do compreender o dado em
questatildeo
Neste contexto um procedimento teoacuterico se revela muito produtivo
as diferentes posiccedilotildees filosoacuteficas (PUNTEL 2008 p 206) podem ser
consideradas a partir de como elas pensam a relaccedilatildeo entre o compreender
e a coisa a ser compreendida A pergunta baacutesica aqui eacute entatildeo se o
compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao
contraacuterio De acordo com a primeira posiccedilatildeo (PUNTEL 1990 p 266 ss)
noacutes natildeo criamos produzimos ou constituiacutemos o mundo efetivo mas antes
o encontramos o mundo efetivo nos eacute preacute-dado Isto significa dizer que
apreendemos a realidade sem conceito sem linguagem5 sem teorias o
que segundo esta posiccedilatildeo se mostra em muitas experiecircncias Assim nesta
perspectiva uma coisa eacute a apreensatildeo da realidade outra a sua
compreensatildeo de tal forma que a verdadeira tarefa de uma atividade teoacuterica
consiste em descobrir o mundo em si mesmo aprendecirc-lo descrevecirc-lo e
explicaacute-lo O mundo portanto situa-se fora do conceitual isto constitui o
cerne do que se denomina de ldquorealismordquo
A posiccedilatildeo contraposta (normalmente denominada pelos realistas de
idealista hoje se fala mais de antirrealismo) procura desvelar a
ingenuidade desta primeira posiccedilatildeo ressaltando a mediaccedilatildeo irrecusaacutevel de
um sistema conceitual em toda atividade teoacuterica assim que admitir uma
realidade inteiramente desprovida de esquemas conceituais se mostra
impossiacutevel Realidade mundo universo soacute tecircm sentido no interior de um
esquema conceitual por noacutes articulado Distinguimos os objetos
justamente atraveacutes da introduccedilatildeo deste ou daquele esquema conceitual Jaacute
sempre estamos em relaccedilatildeo com o mundo pela atividade conceitual de tal
modo que fora desta relaccedilatildeo o mundo eacute simplesmente ininteligiacutevel Desta
forma falar de independecircncia do mundo natildeo significa afirmar que ele se
coloque para aleacutem da esfera conceitual
5 Haacute filoacutesofos que distinguem entre significado linguiacutestico e conteuacutedos mentais Cf Miller (2010 p 208) ldquoFiloacutesofos chamam estados mentais tais como crenccedilas desejos vontades intenccedilotildees esperanccedilas e assim por diante de atitudes proposicionais Podemos dizer que enquanto sentenccedilas possuem significado linguiacutestico atitudes proposicionais possuem conteuacutedo mentalrdquo Cf a respeito Branquinho (2006 p 72-78)
24 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Neste contexto McDowell (2005 p 65) estabelece uma distinccedilatildeo
fundamental
Pensamento pode significar o ato de pensar mas pode significar tambeacutem o
conteuacutedo que eacute pensado ndash aquilo que algueacutem pensa6 Ora se quisermos dar o
devido reconhecimento agrave independecircncia da realidade precisamos de uma
coerccedilatildeo exterior ao pensamento e ao juiacutezo entendidos enquanto exerciacutecios de
espontaneidade Esta coerccedilatildeo natildeo precisa vir de um lugar exterior aos
conteuacutedos pensaacuteveis7
Foram aqui apresentadas duas posiccedilotildees extremas que habitualmente
natildeo se articulam desta forma uma vez que as diferentes propostas
filosoacuteficas satildeo normalmente formas mistas portadoras de elementos de
ambas as posturas o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant
fundamentalmente marcado pela dicotomia radical entre sujeito e objeto
Putnam empenhou-se em caracterizar com rigor a primeira posiccedilatildeo
Ele defende a partir de 1976 a posiccedilatildeo denominada por ele mesmo de
ldquorealismo internordquo que levanta a pretensatildeo de articular uma posiccedilatildeo
intermediaacuteria entre o que ele chama de ldquorealismo metafiacutesicordquo8 da tradiccedilatildeo
e o ldquorelativismordquo muito difundido em nossos dias A primeira o realismo
metafiacutesico (PUTNAM 1996 p 205) eacute o que Moore e Russell teriam
retomado depois de ter sido recusado pelo idealismo moderno de Kant e
Hegel Putnam (1993 p 213) atribui ao proacuteprio Kant a distinccedilatildeo entre
estes dois tipos de realismo
Outros autores falam simplesmente de ldquorealismordquo ou como eacute caso de
Puntel (PUNTEL 1990 p 269) de ldquorealismo transcendenterdquo Para ele
pode-se distinguir aqui duas variantes a) O realismo transcendente
absoluto que afirma existir um uacutenico sistema conceitual correto
considerando os demais como algo puramente subjetivo 2) O realismo
6 Na perspectiva da filosofia sistemaacutetico-estrutural pensamento proposiccedilatildeo e estado-de-coisas satildeo expressotildees sinocircnimas e constituem o ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila Cf Puntel (2008 p 214-216)
7 McDowell (2005 p 73) tambeacutem afirma o seguinte ldquoO objeto de uma experiecircncia [] eacute entendido como parte do mundo pensaacutevel tomado como um todordquo
8A respeito das raiacutezes teoacutericas do realismo metafiacutesico no pensamento de Putnam cf Engel (1994 p 363-364)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 25
transcendente moderado que admite uma pluralidade de sistemas
conceituais e os interpreta como tambeacutem as teorias como diferentes
aproximaccedilotildees ao uacutenico mundo efetivo
Em nossos dias o realismo metafiacutesico para Putnam constitui a tese
especiacutefica dos materialistas9 Sua tese baacutesica eacute que a fiacutesica constitui uma
configuraccedilatildeo de uma teoria verdadeira e acabada da estrutura do mundo
Putnam admite ter sido precisamente esta sua primeira posiccedilatildeo teoacuterica jaacute
que tambeacutem ele defendeu a tese de que as ciecircncias descrevem e explicam
uma realidade inteiramente independente de noacutes Constituiu um
argumento decisivo para ele neste momento o fato de que a transformaccedilatildeo
de significaccedilatildeo dos termos teoacutericos natildeo demanda que se deixe de falar de
uma uacutenica e mesma realidade o que seria impossiacutevel se ela natildeo se situasse
para aleacutem de nossas teorias
O realismo metafiacutesico se fundamenta entatildeo na crenccedila de que haacute
apenas uma teoria verdadeira capaz de expor exaustivamente a estrutura
do mundo como ele eacute em si mesmo independente de noacutes de nossas
concepccedilotildees a seu respeito Numa palavra o realista metafiacutesico afirma que
podemos falar de coisas e pensar nelas como elas satildeo em si mesmas em
sua constituiccedilatildeo intriacutenseca independentemente de nosso espiacuterito de nossa
linguagem de nossas teorias A razatildeo disto eacute a relaccedilatildeo de correspondecircncia
entre as expressotildees de nossa linguagem e certos tipos de entidades
independentes Nesta perspectiva o mundo eacute entendido enquanto a
totalidade invariaacutevel de objetos independentes de nosso espiacuterito de nossa
linguagem de nossas teorias (PUTNAM 1993 p 156) Hoje se defende a
tese de que estas entidades tecircm nos objetos materiais seu paradigma e de
que a correspondecircncia em tela eacute uma relaccedilatildeo causal
Numa palavra o mundo efetivo nos eacute preacute-dado enquanto plenamente
estruturado em si mesmo (ldquoa ready-made worldrdquo expressatildeo sugerida por
N Goodman) e o objetivo fundamental de toda e qualquer atividade
9 Cf Putnam (1996 p 208) ldquoMetaphysics or the enterprise of describing the ldquofurniture of the worldrdquo the ldquothings in themselvesrdquo apart from our conceptual imposition has been rejected by many analytic philosophers (though not as I remarked by Russell) and by all the leading brands of continental philosophy Today apart from relics it is virtually only materialists (or ldquophysicalistsrdquo as they like to call themselves) who continue the traditional enterpriserdquo
26 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
teoacuterica consiste em apresentar o mundo como ele eacute em si mesmo da
maneira mais fiel possiacutevel Putnam denomina esta posiccedilatildeo de
ldquoexternaliacutesticardquo jaacute que sua postura pressupotildee que noacutes podemos dispor do
ldquoponto de vista de Deusrdquo (ldquoGodacutes-Eye Viewrdquo) que teria condiccedilotildees de
alcanccedilar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo
que fosse possiacutevel comparar linguagem e mundo e decidir se haacute
correspondecircncia entre os dois
Neste caso tornar-se-ia possiacutevel distinguir claramente entre o que
realmente eacute o caso e o que se julga ser o caso (PUTNAM 1990 p 102) Esta
eacute a razatildeo pela qual uma teoria correspondencial da verdade eacute um elemento
essencial desta posiccedilatildeo uma teoria que segundo ele foi contestada por
Kant (PUTNAM 1990 p 92-93) Putnam (1990 p 85) chama a teoria da
correspondecircncia de ldquoteoria da semelhanccedila de relaccedilatildeordquo precisamente por
ela sustentar que a relaccedilatildeo vigente entre nossas representaccedilotildees e os
objetos externos eacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila
Satildeo vaacuterias as razotildees que levaram Putnam a abandonar esta posiccedilatildeo
Puntel (2008 p 480) enumera as trecircs mais importantes 1) A
compreensatildeo de que a crenccedila de que poderiacuteamos dispor de uma
perspectiva de Deus eacute uma presunccedilatildeo e uma ilusatildeo 2) O realismo
metafiacutesico produz uma consequecircncia inadmissiacutevel uma vez que o abismo
entre linguagem (teoria) e mundo eacute insuperaacutevel para seres finitos natildeo se
pode afastar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por noacutes
elaborada possa enganar-se em relaccedilatildeo ao mundo e isto eacute certamente
ininteligiacutevel 3) O contato com o uacuteltimo Wittgenstein o levou a considerar
o realismo metafiacutesico uma teoria ingecircnua quanto ao sentido que
simplesmente natildeo se sustenta mais
Na perspectiva pragmaacutetica aberta por Wittgenstein a referecircncia a um
jogo de linguagem eacute essencial o que significa dizer que o significado
linguiacutestico natildeo se esgota na esfera da semacircntica Isto conduz agrave afirmaccedilatildeo
da primazia da dimensatildeo pragmaacutetica na linguagem e consequentemente a
uma articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas de forma inteiramente diferente
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 27
Como diz Zilhatildeo (1993 p 204) para descrever a mudanccedila radical de
perspectiva
[hellip] soacute no interior dos jogos de linguagem correspondentes eacute que
determinadas expressotildees mesmo quando apresentam uma estrutura formal
declarativa adquirem o caraacutecter de ldquopensamentosrdquo e ldquoproposiccedilotildeesrdquo isto eacute a
sua simples aparecircncia formal considerada independentemente do uso que
elas tenham num contexto determinado natildeo nos autoriza a classificaacute-las de
acordo com qualquer categoria
No entanto para Puntel a posiccedilatildeo alternativa articulada por Putnam
o ldquorealismo internordquo que eacute uma versatildeo da posiccedilatildeo antirrealista apesar de
ter um aspecto profundamente correto tem tambeacutem uma dimensatildeo
inaceitaacutevel Certamente a tese de que o mundo (a natureza a realidade o
universo as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta
independecircncia do espiacuterito respectivamente da linguagem enquanto tal se
autodestroacutei em sua enunciaccedilatildeo portanto natildeo eacute inteligiacutevel e por isto
inaceitaacutevel (PUNTEL 1990 p 271-72) Antes de tudo porque
inteligibilidade implica algo conceitual
Na realidade um tal mundo natildeo passa de um constructo
contraditoacuterio por um lado o mundo eacute aceito como algo independente de
qualquer elemento conceitual por outro lado se fala de mundo relaciona-
se com o mundo o que inclui elementos conceituais em muacuteltiplas formas
linguisticamente expressos A Keller defende a tese de que a palavra em
contraposiccedilatildeo a siacutelabas sem sentido caracteriza-se por ser uma sequecircncia
de sons com significado A partir daqui ele justifica a vinculaccedilatildeo entre
ldquoconceito e linguagemrdquo afirmando que jaacute que natildeo existe significado sem
uma sequecircncia de sons pelo menos pensada natildeo existe conceito sem uma
sequecircncia de sons sem palavra nenhum conceito (KELLER 1979 p93)
Esta tese antirrealista eacute para Puntel correta mas insuficiente porque
ele natildeo mostrou em que sentido exatamente a tese de uma realidade
concebida deste modo seria nua O argumento aqui eacute que questotildees a
respeito da dicotomia entre pensamentoatos
constituintesespiacuteritolinguagem e mundonaturezarealidadecoisa
28 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
mesma natildeo podem ser elucidadas sem a referecircncia clara a uma tese
ontoloacutegica central que eacute o pressuposto de qualquer empreendimento
teoacuterico o que possa ser aquela dimensatildeo que habitualmente se denomina
mundorealidadecoisa mesma ela eacute portadora de qualquer forma de uma
estruturaccedilatildeo imanente fundamental ou seja de uma expressabilidade
plena sem a qual a teoria seria privada de sentido
Puntel (2008 p 482) emprega o termo ldquoexpressabilidaderdquo como uma
espeacutecie de foacutermula abreviada de uma seacuterie de termos como
inteligibilidade conceituabilidade compreensibilidade explicabilidade
articulabilidade etc Portanto se o ser enquanto tal eacute expressaacutevel e eacute isto
que todo empreendimento teoacuterico em princiacutepio pressupotildee sob pena de ou
ser autocontraditoacuterio ou natildeo ter sentido entatildeo a esta universalidade
corresponde uma instacircncia de sua expressatildeo igualmente universal uma
instacircncia expressante a linguagem de modo que parafraseando Gadamer
se pode dizer ldquoo ser que pode ser entendido eacute o universo do discursordquo
(PUNTEL 2008 p 526-527) o que implica uma relaccedilatildeo essencial entre o
ser e a linguagem
Em contraposiccedilatildeo ao realismo metafiacutesico a posiccedilatildeo aqui eacute que a
expressabilidade do mundo pressuposta por nossos empreendimentos
teoacutericos natildeo eacute compreensiacutevel sem uma instacircncia que a exprima ou seja a
tese de um ldquomundo nurdquo sem qualquer relaccedilatildeo a algo como linguagem
espiacuterito conceitualidade etc numa palavra a tese de um mundo
enclausurado em si mesmo eacute uma impossibilidade metafiacutesica e por esta
razatildeo ininteligiacutevel
Quando se afirma [] a ldquoindependecircncia absolutardquo do mundo (do universo
etc) isso daacute a impressatildeo de que se estaacute afirmando algo natildeo inteligiacutevel a saber
um ldquomundo natildeo conceitualizadordquo ldquonatildeo estruturadordquo totalmente
incompreendido e incompreensiacutevel situado fora do alcance do compreensiacutevel
do articulaacutevel etc Esta eacute a aporia em que incorre o realista (metafiacutesico)
(PUNTEL 2008 p 498)
Portanto a linguagem diz o mundo ela eacute a instacircncia intransponiacutevel
da expressabilidade do mundo e por isto seu lugar na filosofia eacute
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 29
absolutamente central Partindo das teses da antropologia do iniacutecio do
seacuteculo XX A Keller apresenta esta problemaacutetica afirmando que o ser
humano enquanto ldquoser biologicamente carenterdquo natildeo estaacute contudo preso
por seus instintos a um meio ambiente especiacutefico mas eacute relacionado ao
mundo em seu todo Ele natildeo conhece contudo esta totalidade
simplesmente atraveacutes de um conjunto desordenado de impressotildees mas a
capta atraveacutes de esquemas aprendidos o que se pode denominar a
ldquoestrutura-enquantordquo porque ele sempre capta algo enquanto algo
determinado isto eacute linguisticamente delimitado Daiacute porque para o ser
humano a linguagem eacute tatildeo vitalmente necessaacuteria como o instinto para o
animal (KELLER 1979 p 121 129)
Em segundo lugar para Puntel Putnam como os antirrealistas em
geral sempre afirma que a realidade (o mundo o universo) se refere a
ldquonosso espiacuteritordquo aldquonossa linguagemrdquo Isto significa dizer que a maneira
como o mundo estaacute estruturadodepende da linguagem em que ele se
expressa e essa linguagem para ele eacute sempre ldquonossa linguagemrdquo Desta
forma nem tudo se pode dizer em cada linguagem trata-se aqui de uma
grandeza limitada Nossas visotildees do mundo satildeo sempre diferentemente
relativas agraves nossas diferentes linguagens Eacute por isto afirma Humboldt
(1903a p 14-15) que soacute atraveacutes da linguagem captamos o mundo seus
objetos propriedades e relaccedilotildees e a linguagem eacute sempre um todo uma
estrutura cujas partes devem ser consideradas em seu papel no todo
Realizamos isso no entanto sempre numa linguagem determinada
de uma forma determinada Cada linguagem efetiva uma transformaccedilatildeo
do mundo em linguagem (HUMBOLDT 1903b p 28) articula uma visatildeo
do mundo (Weltansicht) uma concepccedilatildeo peculiar do mundo e de sua
estrutura10 uma ontologia proacutepria Assim se a cultura engendra a
linguagem a linguagem entatildeo eacute frente ao indiviacuteduo uma potecircncia que
determina seu pensamento e sua experiecircncia configurando sua visatildeo do
mundo Desta forma cada linguagem eacute em si mesma uma individualidade
espiritual (HUMBOLDT 1903b p 151) que delimita o caraacuteter nacional de
10 A respeito das questotildees epistemoloacutegicas que marcam essa posiccedilatildeo cf Kutschera (1975 p 332 e ss)
30 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
tal forma que o ser humano natildeo fala como ele fala simplesmente porque
deseja falar assim mas porque tem que falar assim11 Nele a maneira de
falar eacute um constrangimento de sua natureza intelectual (HUMBOLDT
1903b p 127) Na perspectiva da concepccedilatildeo pragmaacutetica contudo nada haacute
aqui de necessaacuterio
[hellip] nada haacute de necessaacuterio no facto de usarmos os nossos sinais do modo como
os usamos isto eacute em vez de uma forma loacutegica que espelha a forma da
realidade a gramaacutetica eacute algo de arbitraacuterio [hellip] Natildeo se pode assim falar de uma
gramaacutetica errada mas tatildeo soacute de uma desadequaccedilatildeo de uma linguagem ou jogo
de linguagem em funccedilatildeo de determinadas necessidades praacuteticas [hellip] na
linguagem tal como no xadrez se seguirmos outras regras gramaticais
estaremos respectivamente ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de
regras ou a jogar outro jogo (ZILHAtildeO 1993 p 205-206)
Aqui se manifesta uma conexatildeo muacutetua entre pensamento e palavra
(HUMBOLDT 1903a p 27) pensando a partir da consciecircncia Humboldt
defende o caraacuteter inseparaacutevel da consciecircncia e da linguagem humanas
uma vez que a linguagem eacute o oacutergatildeo que estrutura o pensamento Neste
sentido a linguagem natildeo eacute apenas meio de expressatildeo e comunicaccedilatildeo de
conteuacutedos de pensamento portanto de uma verdade jaacute articulada sem ela
mas antes pensamento e linguagem instituem uma unidade indissoluacutevel
(HUMBOLDT 1903b p 22 ss)12
O grande problema aqui e que toca o cerne das filosofias da
subjetividade inclusive as que fizeram a reviravolta linguiacutestica eacute o
seguinte estas afirmaccedilotildees levam a estabelecer a subjetividade como
instacircncia doadora de sentido a tudo A questatildeo se potildee igualmente numa
filosofia pragmaacutetica jaacute que o elemento central da pragmaacutetica (OLIVEIRA
2012 p 87-106) consiste na consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem e
falantes ou da linguagem na perspectiva da maneira como os falantes a
usam o que significa que aqui eacute determinante a accedilatildeo dos falantes Nesse
11 Uma tese que foi desenvolvida por Sapir (1929 p 209) ldquoHuman beings do not live in the objective world alone not alone in the world of social activity as ordinarily understood but are very much at the mercy of the particular language which has become the medium of expression for their societyrdquo
12 Cf Sellars (1973 p 82) ldquoThinking at the distinctly human level [hellip] is essentially verbal activityrdquo
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 31
sentido a passagem da subjetividade para a intersubjetividade proposta
como mudanccedila de paradigma na realidade natildeo resulta na superaccedilatildeo do
caraacuteter determinante da subjetividade na filosofia ou seja da postura em
que a subjetividade eacute a instacircncia teoacuterica que determina tudo
Ora noacutes somos entes puramente contingentes entatildeo
inevitavelmente se levanta a questatildeo ldquoComo poderiam entatildeo os lsquoentes
humanosrsquo (mesmo em sua totalidade como quer que esta seja pensada)
ser tomados como lsquoparacircmetrorsquo para o que eacute o mundordquo (PUNTEL 2008
p 482-483) Como nesta postura natildeo se pode falar de forma coerente do
grande mundo uma soluccedilatildeo razoaacutevel poderia ser reduzir a grande
dimensatildeo do mundo ao nosso mundo entendido como nosso mundo
vivido com a consequecircncia de ter que avaliar como sem sentido ou como
ficccedilatildeo tudo aquilo que natildeo for compatiacutevel com este mundo como por
exemplo muito do que eacute elaborado pelas ciecircncias
A implausibilidade desta posiccedilatildeo aponta para a verdadeira questatildeo
neste contexto como entender a linguagem (espiacuterito) a fim de que se
legitime a afirmaccedilatildeo de que natildeo tem sentido falar de um mundo sem
nenhuma relaccedilatildeo a ela Esta eacute a questatildeo irrefutaacutevel em primeiro lugar
para a articulaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica precisamente enquanto uma
atividade teoacuterica Numa palavra trata-se antes de tudo da determinaccedilatildeo
de um criteacuterio universal de teoricidade e justamente de um criteacuterio
linguiacutestico pois a linguagem eacute o primeiro pressuposto de uma teoria que
se compotildee de sentenccedilas especificamente de sentenccedilas teoacutericas em
segundo lugar para o enfrentamento da questatildeo do lugar central atribuiacutedo
agrave subjetividade pela filosofia moderna A resposta a esta questatildeo implica
uma virada no pensamento moderno que vai justificar falar de uma
despontencializaccedilatildeo da subjetividade
A primeira etapa nesta direccedilatildeo consiste para Puntel na diferenciaccedilatildeo
entre duas formas diferentes de compreensatildeo da linguagem Quando
familiarmente nos referimos a signos linguiacutesticos entatildeo o ser humano
com sua histoacuteria obras e contingecircncias se revela seu autor e nesta
32 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
perspectiva haacute razatildeo para falar de ldquonossardquo linguagem uma vez que sem o
ser humano natildeo se pode falar de siacutembolos linguiacutesticos bem determinados
Eacute justamente nesse sentido que A Keller (1979 p 42) entende a
linguagem como um sistema de formas de proferimentos produzido pelo
ser humano que para expressar-se para entender-se para organizar seus
conhecimentos e comunicaacute-los e para defrontar-se de diferentes formas
com a realidade Numa palavra na medida em que a linguagem se
constitui de siacutembolos linguiacutesticos assim compreendidos ela eacute uma
produccedilatildeo histoacuterico-contingente de sujeitos humanos de tal forma que a
referecircncia a estes sujeitos eacute ineliminaacutevel Nisto tecircm razatildeo os pragmaacuteticos
aqui a accedilatildeo humana eacute simplesmente decisiva ldquoisto eacute o modo particular
atraveacutes do qual intervimos na realidaderdquo (ZILHAtildeO 1993 p 207) embora
se deva afirmar tambeacutem como o faz Kutschera que a linguagem eacute natildeo soacute
uma criaccedilatildeo da comunidade e da cultura humanas mas igualmente sua
condiccedilatildeo de possibilidade Nela com uma quantidade finita de expressotildees
e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma
quantidade infinita de informaccedilotildees que possibilitam a forma determinada
de comunicaccedilatildeo que gera a comunidade e a cultura A linguagem eacute assim
a pressuposiccedilatildeo da qualidade especificamente humana de uma
comunidade (KUTSCHERA 1998 p 105 ss)
No entanto a linguagem entendida no sentido maximal ou seja
como linguagem absolutamente universal natildeo eacute um produto humano
mas jaacute estaacute dada com o mundo entendido como ser em seu todo Ela eacute a
instacircncia da expressabilidade universal enquanto esfera correlata agrave
expressabilidade do ser enquanto tal
ldquoexpressabilidaderdquo eacute uma relaccedilatildeo que soacute eacute explicaacutevel e desse modo
compreensiacutevel se tambeacutem seu reverso for reconhecido X eacute expressaacutevel se e
somente se houver um Y que eacute a instacircncia expressante de X [hellip] a
expressabilidade universal do mundo tem como pressuposto ou [hellip] como
implicaccedilatildeo uma instacircncia expressante universal [hellip] uma linguagem
(PUNTEL 2008 p 501)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 33
Isto significa dizer que o relacionamento com a realidade soacute ocorre
linguisticamente Numa palavra a expressabilidade universal implica uma
instacircncia expressante universal uma linguagem universal que
consequentemente tem que ter um caraacuteter diferente da ldquonossardquo
linguagem Neste sentido ela natildeo eacute um produto humano puramente
contingente mas uma estruturalidade imanente ou seja um momento
estrutural do mundo entendido como ser em seu todo e dessa maneira ela
jaacute estaacute dada com o mundo em sentido do todo da realidade Enquanto tal
ela eacute um sistema semioacutetico objetivo (PUNTEL 1990 p 135)
O ser na medida em que eacute expressaacutevel enquanto tal possui uma
relaccedilatildeo imanente essencial com a linguagem que eacute precisamente a
instacircncia correlata a esta expressabilidade universal uma caracteriacutestica
imanente do ser em si mesmo Neste contexto linguagem eacute entendida
como um sistema semioacutetico abstrato que conteacutem uma quantidade
inumeraacutevel de expressotildees Este eacute para Puntel o ldquolocus originariusrdquo da
compreensatildeo da linguagem ou melhor da linguisticidade Ele denomina
por esta razatildeo a linguagem assim entendida como ldquolinguagem originaacuteriardquo
e eacute ela que ocupa a posiccedilatildeo primordial na filosofia
Assim a linguagem enquanto linguisticidade do ser enquanto tal eacute a
linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso
da expressabilidade universal do ser em seu todo Esta linguagem assim
entendida eacute coextensiva ao ser em seu todo pois o mundo (o universo o
ser) em seu todo eacute expressaacutevel o pressuposto ineliminaacutevel de qualquer
passo teoacuterico Nada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser articulado em
forma de linguagem
Neste sentido a expressabilidade eacute um momento estrutural imanente
do mundoe desse modo coextensional com o mundo como o eacute
consequentemente a linguagem Isso significa dizer que todo conteuacutedo
conceitual eacute articulado no seio da linguagem e eacute precisamente nesse
sentido que a linguagem emerge como meio indispensaacutevel da expressatildeo
ou da exposiccedilatildeo no sentido de que conteuacutedos conceituais natildeo existem sem
sua articulaccedilatildeo linguiacutestica
34 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
[hellip] linguagem constitui meio indispensaacutevel da expressatildeo ou exposiccedilatildeo no
seguinte sentido se compreendidos adequada e rigorosamente os assim
chamados ldquoconteuacutedos conceituaisrdquo natildeo existem sem sua articulaccedilatildeo (ou
articulabilidade) linguiacutestica (PUNTEL 2008 p 226)
Eacute nessa oacutetica que tem sentido a afirmaccedilatildeo de Kutschera articulada na
linguagem da semacircntica e da ontologia composicionais natildeo conhecemos
o mundo primeiro no pensamento e depois exprimimos o conhecido na
linguagem mas captamos a realidade os objetos suas diferenccedilas
propriedades e relaccedilotildees em forma linguiacutestica Pensamento e linguagem se
desenvolvem sempre juntos os pensamentos soacute se exprimem em forma
linguiacutestica A linguagem eacute o ldquomeacutediumrdquo do pensamento (KUTSCHERA
1998 p 111) Uma consequecircncia primeira fundamental aqui eacute que eacute na
articulaccedilatildeo linguiacutestica que eacute possiacutevel apreender o que eacute o conteuacutedo
conceitual como ele eacute estruturado
Quando se entende poreacutem linguagem como siacutembolos linguiacutesticos
entra em jogo o ser humano com sua histoacuteria ou seja aqui a linguagem eacute
produccedilatildeo humana e eacute isto que explica a contingecircncia histoacuterica dessas
linguagens13 Ela entatildeo se revela como a pressuposiccedilatildeo na expressatildeo de
V Kutschera (1998 p 113) de todas as nossas produccedilotildees culturais de
nossa autocompreensatildeo de nossa autoconsciecircncia e de nosso pensamento
Mas quando se leva em consideraccedilatildeo a estruturalidade semacircntico-
ontoloacutegica da linguagem entatildeo ela eacute o resultado da expressabilidade da
proacutepria realidade e ldquofalantes e sujeitos satildeo determinados e entendidos a
partir da linguagem e natildeo a linguagem a partir dos falantes ou sujeitosrdquo
(PUNTEL 2008 p 130)
Entendendo assim a linguagem no sentido maximal ou seja como
um sistema semioacutetico composto de uma quantidade infinita natildeo
enumeraacutevel de expressotildees isto eacute quando a linguagem eacute entendida como
13 Cf Zilhatildeo (1993 p 206) ldquoA analogia adequada que nos permite compreender a ligaccedilatildeo que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo eacute-nos dada pela consideraccedilatildeo das ferramentas que usamos Se soubermos olhar para elas poderemos ficar a saber tudo o que haacute para saber tanto acerca da lsquoformarsquo do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [hellip]rdquo
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 35
o reverso da expressabilidade do mundo entatildeo a fala sobre o mundo (a
realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica
sua reduccedilatildeo ao mundo da nossa linguagem e com isto cai tambeacutem por
terra a dicotomia ldquoem si e para noacutesrdquo Uma primeira consequecircncia desta
tese eacute que natildeo pode haver entidades excluiacutedas da dimensatildeo da linguagem
pois isto implicaria que tais entidades natildeo seriam expressaacuteveis Assim a
quantidade de sentenccedilas deve corresponder pelo menos ao nuacutemero de
entidades ou de fatos do mundo
O caraacuteter unilateral da posiccedilatildeo antirrealista se mostra justamente
nareduccedilatildeo da linguagem a uma criaccedilatildeo humana e consequentemente agrave
ldquonossa linguagemrdquo no desconhecimento total da linguagem maximal ou
absolutamente universal Isto significa dizer que falta aqui uma visatildeo para
o ldquotodordquo do fenocircmeno da linguagem e consequentemente a compreensatildeo
de que ldquonossardquo linguagem eacute apenas um segmento de uma linguagem
muito mais abrangente ou seja de um sistema semioacutetico composto de
uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees que eacute o ldquoinversordquo
da expressabilidade universal do ser em seu todo Nesse sentido a
linguagem possui um poder de expressatildeo muitiacutessimo maior do que a
linguagem entendida como sistema semioacutetico de comunicaccedilatildeo
Na consideraccedilatildeo da linguagem maximal a referecircncia agrave subjetividade
se torna simplesmente supeacuterflua uma tese que Apel (1973 p 240 ss) jaacute vecirc
presente na posiccedilatildeo de Wittgenstein Ele defende a tese de que o Tractatus
de Wittgenstein eacute uma filosofia transcendental sem sujeito uma vez que
Wittgenstein identifica o sujeito com a operaccedilatildeo formal constitutiva da
linguagem Com isto a referecircncia ao sujeito se torna supeacuterflua Em
contraposiccedilatildeo a esta posiccedilatildeo Apel defende a tese do caraacuteter irrecusaacutevel
pelo menos implicitamente de uma autorreferecircncia da linguagem a si
mesma que eacute depois da reviravolta linguiacutestica a nova forma de auto-
reflexividade Com isto se daacute a referecircncia a um sujeito individual como
suporte da forma loacutegica a fim de que ela possa exercer sua funccedilatildeo
transcendental Portanto a referecircncia ao sujeito eacute ineliminaacutevel
36 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Puntel (2008 p 129) denomina a linguagem maximal que de
nenhuma forma eacute tematizada pelas diferentes formas de filosofia
antirrealista como a de Apel de originaacuteria ou antes o ldquolocus originariusrdquo
de compreensatildeo da linguagem ldquono sentido de sistema semioacutetico que se
baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo do
ser)rdquo Neste contexto uma observaccedilatildeo eacute absolutamente fundamental
a linguagem filosoacutefica e cientiacutefica infinita natildeo enumeraacutevel natildeo eacute compreendida
como se fosse uma grandeza ldquomanipulaacutevelrdquo ela eacute antes uma espeacutecie de ideia
reguladora ou emolduradora em qualquer caso uma assunccedilatildeo metafiacutesica cuja
funccedilatildeo principal consiste em desempenhar um importante papel explanatoacuterio
(PUNTEL 2008 p 522)
Uma pergunta que emerge neste contexto inevitavelmente eacute o que eacute
mesmo essa linguagem maximal essa linguagem universal Para Puntel
(2008 p 527) se tem que dizer em primeiro lugar que ela por um lado
natildeo existe em lugar algum mas por outro lado existe em toda parte no
sentido de que ldquonada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser lsquoarticulado em
forma de linguagemrsquordquo Ocorre que o falante escolhe um certo ldquosegmentordquo
desta linguagem para se adequar a seus objetivos poreacutem este segmento
de nenhuma forma se identifica simplesmente com a totalidade da
linguagem o que tambeacutem vale para uma linguagem artificial que conteacutem
uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees direcionadas ao
objetivo da exposiccedilatildeo e natildeo da comunicaccedilatildeo Eacute esta a razatildeo porque se fala
aqui de linguagem maximal e ela natildeo soacute constitui o lugar originaacuterio da
compreensatildeo da linguagem mas soacute a partir daqui se pode compreender
adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da
linguagem na filosofia
Referecircncias
APEL K-O Wittgenstein und Heidegger die frage nach dem sinn von sein und die
sinnlosigkeitsverdacht gegen alle metaphysik In _____ Transformation der
philosophie (vol 1) Frankfurt am Main Suhrkamp 1973
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 37
BRANQUINHO J Atitude proposicional In _____ MURCHO D amp GOMES N G (Orgs)
Enciclopeacutedia de termos loacutegico-filosoacuteficos Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
ENGEL P Quine et les post-quiniens reacutealisme et antireacutealisme In MEYER M (Ed) La
philosophie anglo-saxonne Paris PUF p 348-368 1994
FINK E Naumlhe und distanz phaumlnomenologische vortraumlge und aufsaumltze
FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1976
GADAMER H-G Die phaumlnomenologische bewegung In _____ Gesammelte werke vol
3 Tuumlbingen 1987
HABERMAS J Vorlesungen zu einer sprachtheoretischen grundlegung der soziologie
(197071) In _____ Vorstudien und ergaumlnzungen zur theorie des
kommunikativen handelns Frankfurt am Main Suhrkamp 2 ed 1984
HUMBOLDT W v Gesammelte schriftenVol IV Berlim Academia Real Prussiana das
Ciecircncias (Org) 1903a
_____ Gesammelte schriften Vol VI Berlim Academia Real Prussiana das Ciecircncias
(Org) 1903b
HUSSERL E Ideen zu einer reinen phaumlnomenologie und phaumlnomenologischen
philosophie Haag Martinus Nijhoff 1950 (Husserliana vol III)
_____ Die krisis der europaumlischen wissenschaften und die transzendentale
phaumlnomenologie 2 ed Haag Martinus Nijhoff 1963 (Husserliana vol VI)
_____ Erfahrung und urteil untersuchungen zur genealogie der logik 3 ed Hamburg
Claassen Verlag 1964
KELLER A Sprachphilosophie FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1979
KUTSCHERA F v Sprachphilosophie 2 ed Muumlnchen Wilhelm Fink Verlag 1975
_____ Die teile der philosophie und das ganze der wirklichkeit BerlinNew York W
de Gruyter 1998
McDOWELL J Mente e mundo Aparecida Ideias amp Letras 2005
38 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
MILLER A Filosofia da linguagem Satildeo Paulo Paulus 2010
OLIVEIRA M A de Subjektivitaumlt und vermittlung studien zur entwicklung des
transzendentalen denkens bei I Kant E Husserl und H Wagner Muumlnchen Wilhelm
Fink Verlag 1973
_____ A centralidade da intersubjetividade uma leitura pragmaacutetica da filosofia
transcendental em J Habermas In _____ Antropologia filosoacutefica
contemporacircnea subjetividade e inversatildeo teoacuterica Satildeo Paulo Paulus 2012
_____ A ontologia em debate no pensamento contemporacircneo Satildeo Paulo Paulus 2014
_____ A reviravolta linguiacutestico-pragmaacutetica na filosofia contemporacircnea4 ed Satildeo
Paulo Loyola 2015
PORTA M A G Platonismo e intencionalidad a propoacutesito de Bernard Bolzano (2ordf Parte)
Siacutentese v 30 n 96 p 85-106 2003
PUNTEL L B Grundlagen einer theorie der wahrheit BerlinNew York de Gruyter
1990
_____ Estrutura e ser um quadro referencial teoacuterico para uma filosofia sistemaacutetica Satildeo
Leopoldo Editora Unisinos 2008
_____ Ser e Deus um enfoque sistemaacutetico em confronto com M Heidegger Eacute Leacutevinas e
J-L Marion Satildeo Leopoldo Editora Unisinos 2011
PUTNAM HVernunft wahreit und geschichte Frankfurt am Main Suhrkamp 1990
_____ Auf messers schneide interner realismus und relativismus In Von einem
realistischen standpunkt schriften zu sprache und wirklichkeit Ed e trad por V
C Muumlller Reinbek bei Hamburg Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH 1993
_____ Why there isnacutet a ready-made world In _____ Realism and reason Philosophical
Papers vol 3 Cambridge Cambridge University Press 1996
QUINE W V O The pragmatists` place in empiricism In MULVANEY R J amp ZELTNER
P M (Orgs) Pragmatism its sources and prospects University of South California
Press 1981
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 39
SAPIR E The status of linguistics as a science Language v 5 n 4 p 207-214 1929
SELLARS W Conceptual change In PEARCE G amp MAYNARD P (Orgs) Conceptual
change Dordrecht D Reidel 1973
_____ Empirismo e filosofia da mente Com uma introduccedilatildeo de Richard Rorty e um guia
de estudos de Robert Brandom Petroacutepolis Vozes 2003
SIEMEK M J Husserl e a heranccedila da filosofia transcendental Siacutentese v 28 n 91 p 189-
202 2001
STROumlKER E Phaumlnomenologische studien Frankfurt am Main V Klostermann 1987
TUGENDHAT E Der wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger Berlin de Gruyter
1967
_____ Vorlesungen zur einfuumlhrung in die sprachanalytische Philosophie Frankfurt
am Main Suhrkamp 1976
ZILHAtildeO A Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem estudos sobre
Wittgenstein Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993
2
Encheiriacutedion Capiacutetulo I
Traduccedilotildees e Comentaacuterios
Aldo Dinucci 1
Alfredo Julien 2
Antonio Carlos Tarquiacutenio 3
O Encheiriacutedion termo que em grego significa ldquoadaga punhal arma
portaacutetil ou livro portaacutetil manualrdquo foi composto por Luacutecio Flaacutevio Arriano
de Nicomeacutedia4 tomando por base suas compilaccedilotildees das aulas de Epicteto
Consistindo em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do
Estoicismo tenha sempre ao alcance da matildeo os princiacutepios para enfrentar
as dificuldades da vida e vencecirc-las o Encheiriacutedion tornou ceacutelebre o nome
de Epicteto Seguem breves mas importantes traduccedilotildees e comentaacuterios
sobre o primeiro capiacutetulo do Encheiriacutedion de Epicteto A primeira traduccedilatildeo
comentada foi realizada por Aldo Dinucci e Alfredo Julien pesquisadores
que dedicaram alguns anos agrave traduccedilatildeo da obra culminando com uma
ediccedilatildeo em Coimbra da mesma pelos Classica Digitalia A segunda por
Antonio Carlos Tarquiacutenio filoacutesofo radicado em Satildeo Paulo que tem se
dedicado intensamente nas uacuteltimas deacutecadas ao estudo de Epicteto
publicando em 2017 o livro Uma filosofia do desapego a askesis de
desapropriaccedilatildeo epictetiana agrave luz da katharsis do Feacutedon de Platatildeo resultado
1 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
2 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)
3 Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)
4 Ca 86-160
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 41
de suas pesquisas de doutorado sobre o velho de Nicoacutepolis Imediatamente
abaixo temos o texto em grego estabelecido pela primeira vez por Boter
em 1999
[11] Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ ἡμῖν τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἐφ ἡμῖν μὲν
ὑπόληψις ὁρμή ὄρεξις ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα οὐκ ἐφ
ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα ἡ κτῆσις δόξαι ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα
ἔργα[12]καὶ τὰ μὲν ἐφ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα ἀκώλυτα παραπόδιστα
τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀσθενῆ δοῦλα κωλυτά ἀλλότρια[13] μέμνησο οὖν ὅτι
ἐὰν τὰ φύσει δοῦλα ἐλεύθερα οἰηθῇς καὶ τὰ ἀλλότρια ἴδια ἐμποδισθήσῃ
πενθήσεις ταραχθήσῃ μέμψῃ καὶ θεοὺς καὶ ἀνθρώπους ἐὰν δὲ τὸ σὸν
μόνον οἰηθῇς σὸν εἶναι τὸ δὲ ἀλλότριον ὥσπερ ἐστίν ἀλλότριον οὐδείς σε
ἀναγκάσει οὐδέποτε οὐδείς σε κωλύσει οὐ μέμψῃ οὐδένα οὐκ ἐγκαλέσεις
τινί ἄκων πράξεις οὐδὲ ἕν οὐδείς σε βλάψει ἐχθρὸν οὐχ ἕξεις οὐδὲ γὰρ
βλαβερόν τι πείσῃ [14] τηλικούτων οὖν ἐφιέμενος μέμνησο ὅτι οὐ δεῖ
μετρίως κεκινημένον ἅπτεσθαι αὐτῶν ἀλλὰ τὰ μὲν ἀφιέναι παντελῶς τὰ δ
ὑπερτίθεσθαι πρὸς τὸ παρόν ἐὰν δὲ καὶ ταῦτ ἐθέλῃς καὶ ἄρχειν καὶ
πλουτεῖν τυχὸν μὲν οὐδ αὐτῶν τούτων τεύξῃ διὰ τὸ καὶ τῶν προτέρων
ἐφίεσθαι πάντως γε μὴν ἐκείνων ἀποτεύξη δι ὧν μόνων ἐλευθερία καὶ
εὐδαιμονία περιγίνεται [15] εὐθὺς οὖν πάσῃ φαντασίᾳ τραχείᾳ μελέτα
ἐπιλέγειν ὅτι lsquoφαντασία εἶ καὶ οὐ πάντως τὸ φαινόμενονrsquo ἔπειτα ἐξέταζε
αὐτὴν καὶ δοκίμαζε τοῖς κανόσι τούτοις οἷς ἔχεις πρώτῳ δὲ τούτῳ καὶ
μάλιστα πότερον περὶ τὰ ἐφ ἡμῖν ἐστιν ἢ περὶ τὰ οὐκ ἐφ ἡμῖν κἂν περί τι
τῶν οὐκ ἐφ ἡμῖν ᾖ πρόχειρον ἔστω τὸ διότι lsquoοὐδὲν πρὸς ἐμέrsquo
Encheiriacutedion Capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Aldo Dinucci e
Alfredo Julien)
[11] Das coisas existentes algumas satildeo encargos nossos outras natildeo Satildeo
encargos nossos o juiacutezo o impulso o desejo a repulsa ndash em suma tudo quanto
seja accedilatildeo nossa Natildeo satildeo encargos nossos o corpo as posses a reputaccedilatildeo os
cargos puacuteblicos ndash em suma tudo quanto natildeo seja accedilatildeo nossa [12] Por
natureza as coisas que satildeo encargos nossos satildeo livres5 desobstruiacutedas6 sem
5 Eleutheros livre por oposiccedilatildeo a escravo Para Epicteto quem deseja o que natildeo eacute encargo seu necessariamente torna-se escravo pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso agrave coisa desejada (cf Diatribes I 419)
6 Akolytos adjetivo verbal de privaccedilatildeo da accedilatildeo relacionada ao verbo kolyo que significa ldquoafastar desviarrdquo adquirindo o sentido de ldquoimpedirrdquo Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to kolyon com o significado de ldquoobstaacuteculordquo
42 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
entraves7 As que natildeo satildeo encargos nossos satildeo deacutebeis8 escravas obstruiacutedas9
de outrem10 [13] Lembra entatildeo que se pensares11 livres as coisas escravas por
natureza e tuas as de outrem tu te faraacutes entraves12 tu te afligiraacutes13 tu te
inquietaraacutes14 censuraraacutes tanto os deuses como os homens Mas se pensares
teu unicamente o que eacute teu e o que eacute de outrem como o eacute de outrem ningueacutem
jamais te constrangeraacute15 ningueacutem te faraacute obstaacuteculos natildeo censuraraacutes
ningueacutem nem acusaraacutes quem quer que seja de modo algum agiraacutes
constrangido ningueacutem te causaraacute dano natildeo teraacutes inimigos pois natildeo seraacutes
persuadido em relaccedilatildeo a nada nocivo [14] Entatildeo almejando coisas de
tamanha importacircncia lembra que eacute preciso que natildeo te empenhes de modo
comedido mas que abandones completamente algumas coisas e por ora
deixes outras para depois Mas se quiseres aquelas coisas e tambeacutem ter cargos
e ser rico talvez natildeo obtenhas estas duas uacuteltimas por tambeacutem buscar as
primeiras e absolutamente natildeo atingiraacutes aquelas coisas por meio das
quaisunicamente resultam a liberdade e a felicidade16 [15] Entatildeo pratica dizer
prontamente a toda representaccedilatildeo bruta17 ldquoEacutes representaccedilatildeo e de modo
algum lteacutesgt o que se afigurardquo18 Em seguida examina-a e testa-a com essas
mesmas regras que possuis em primeiro lugar e principalmente se eacute sobre
ldquoimpedimentordquo Assim a-kolytos refere-se a algo para o que natildeo haacute impedimento quanto agrave sua obtenccedilatildeo sendo portanto ldquodesimpedidordquo
7 Aparapodistos optamos traduzir o termo por ldquosem entravesrdquo pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a accedilatildeo relacionada ao verbo podizo que significa ldquosujeitar os peacutes com travasrdquo referindo-se principalmente a armadilhas para animais Cf o substantivo feminino podistra que pode significar tanto ldquoarmadilha que prende pelos peacutesrdquo (Antologia Palatina 6 107) quanto ldquoteia de aranhardquo (Antologia Palatina 9 372)
8 Asthene privado de forccedila no sentido de ldquoforccedila fiacutesica vigorrdquo
9 Kolytos Cf nota acima sobre akolutos
10 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para qualificar o que eacute encargo nosso e o que natildeo eacute o que eacute encargo nosso eacute livre desobstruiacutedo sem entraves o que natildeo eacute encargo nosso eacute deacutebil escravo de outrem
11 Oio ldquopensarrdquo no sentido de ldquopresumirrdquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute ldquopressentir crer estimarrdquo
12 Empodizo significa literalmente ldquometer os peacutes em uma armadilhardquo
13 Pentheo verbo relacionado ao substantivo to penthos que siginifica ldquodor afliccedilatildeordquo
14 Tarasso significa primariamente ldquoremexerrdquo ldquoagitarrdquo no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compotildeem
15 Anankazo ldquoforccedilarrdquo ldquoconstrangerrdquo
16 Felicidade traduz eudaimoniacutea No contexto do paganismo grego daimoniacuteos eacute um adjetivo que qualifica tudo o que proveacutem da divindade ou eacute enviado por um deus Associado ao prefixo ldquoeṷrdquo (ldquobemrdquo no sentido de coisas boas) esse vocaacutebulo tem significaccedilatildeo proacutexima agrave de ldquobem-aventuranccedilardquo na acepccedilatildeo cristatilde
17 Trata-se do adjetivo trachys apresentado por Bailly (2000) com o significado de ldquoruderdquo adquirindo diversos sentidos dependendo do substantivo ao qual esteja ligado ldquoAacutesperordquo ao se tratar de uma pedra ldquopedregosordquo ao se referir a um rio ou a um terreno ldquoroucardquo ao qualificar um tipo voz ldquogrosseiro duro cruel violento e irasciacutevelrdquo ao se referir ao comportamento de algueacutem Simpliacutecio (Comentaacuterio ao Encheiriacutedion de Epicteto V 15) observa que tal representaccedilatildeo eacute chamada tracheiacutea (dura bruta) por ser contraacuteria agrave razatildeo tornando ldquoaacutesperardquo a vida Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por ldquoharshrdquo Gourinat (1998) por ldquopeacuteniblerdquo Garciacutea (1995) por ldquobrutardquo
18 Phainoacutemenon ldquoo que estaacute se manifestando ou se mostrandordquo particiacutepio presente meacutedio do verbo phaaino
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 43
coisas que satildeo encargos nossos ou natildeo E caso esteja entre as coisas que natildeo
sejam encargos nossos tem agrave matildeo que ldquoNada eacute para mimrdquo
A expressatildeo ephi hemin que ora traduzimos por ldquosob nosso encargordquo
ou ldquoencargo nossordquo natildeo possui equivalente direto que possa dar conta de
seu significado Literalmente poderiacuteamos traduzi-la por ldquoalgumas coisas
estatildeo sobre noacutes outras natildeordquo Henrique Murachco traduz expressatildeo
semelhante (to epi emoi) por ldquono que estaacute sobre mimrdquo no sentido ldquode
quanto a mimrdquo ldquono que me concernerdquo (2001 p 573) No caso do
Encheiridion de Epicteto a traduccedilatildeo poderia ser ldquoalgumas coisas nos
concernem outras natildeordquo Bailly (2000) citando a mesma expressatildeo
acentua a ideia de dependecircncia e de poder que ela expressa traduzindo-a
por ldquoautant qursquoil est em mon pouvoirrdquo enfatizando assim a ideia de
controle (cf Xenofonte Ciropeacutedia 54 11) A expressatildeo possui imagem
concreta e clara referindo-se a algo que eacute colocado sobre noacutes sustentado
por noacutes pois nos encontramos embaixo fornecendo seu apoio A opccedilatildeo
por ldquoencargo nossordquo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto
a isso que estaacute sobre noacutes (e do que somos a causa primaacuteria)
A expressatildeo eacute diferentemente vertida por diferentes tradutores
Oldfather a traduz por ldquothings under our controlrdquo (2000) White por
ldquowhat is up to usrdquo (1983) Gourinat por ldquochoses qui deacutependent de nousrdquo
(1998)
Como dissemos epi expressa uma relaccedilatildeo de dependecircncia Satildeo
portanto coisas que dependem de noacutes Como Epicteto diraacute na continuaccedilatildeo
do texto eacute preciso que nos concentremos sobre as coisas que estatildeo sob
nosso controle em trecircs sentidos Em relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo (phantasia)
retirando dela todo juiacutezo (hypolepsis) equivocado a partir da
compreensatildeo de que nada que natildeo depende de noacutes eacute por si mesmo um
bem ou um mal Em relaccedilatildeo ao impulso (horme) uma vez cientes de que
produzimos nosso bem e nosso mal eacute preciso moderar os impulsos e
encontrar o modo de agir segundo a natureza Em relaccedilatildeo ao desejo
(orexis) e agrave repulsa (ekklisis) partindo mais uma vez da compreensatildeo de
que nada externo eacute por si soacute um bem ou um mal eacute preciso que o desejo e
44 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
a repulsa se apliquem natildeo mais agraves coisas que natildeo dependem de noacutes
(sendo-nos necessaacuterio desejaacute-las como satildeo) mas agraves coisas que estatildeo sob
nosso controle
Traduzimos por juiacutezo o vocaacutebulo grego hypolepsis que eacute substantivo
relacionado ao verbo hypolambano que expressa a ideia de sucessatildeo e de
substituiccedilatildeo adquirindo os sentidos de ldquoreacuteplica resposta concepccedilatildeo e
pensamentordquo O vocaacutebulo ldquojuiacutezordquo empregado aqui para traduzir essa
noccedilatildeo deve ser entendido como um parecer ou uma opiniatildeo que orienta
nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta Vale a
pena ressaltar que no contexto deste capiacutetulo o vocaacutebulo estaacute associado
ao verbo oiocedil traduzido aqui por ldquopensarrdquo No capiacutetulo 20 do Encheiriacutedion
apresenta-se uma associaccedilatildeo clara entre hypolepsis e dogma (opiniatildeo) No
capiacutetulo 5 apresenta-se tambeacutem uma associaccedilatildeo entre dogma (opiniatildeo) e
phantasiacutea (representaccedilatildeo) por meio do verbo phainomai (afigurar-se) Eacute
interessante notar que o juiacutezo nesses exemplos envolve a ponderaccedilatildeo ndash
como a consideraccedilatildeo sobre se algo eacute livre ou escravo - mas tambeacutem
sentimentos relacionados agraves nossas recusas medos e desejos Oldfather
(2000) traduz hypolepsis por ldquoconceptionrdquo White (1993) por ldquoopinionrdquo
Gourinat (1998) por ldquojugementrdquo e Garciacutea (1995) por ldquojuiciordquo
A noccedilatildeo de phantasiacutea que ora traduzimos por representaccedilatildeo eacute de
fundamental importacircncia para a compreensatildeo da filosofia estoica por
relacionar-se tanto a questotildees loacutegicas quanto epistemoloacutegicas e eacuteticas
Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasiacutea uma
modificaccedilatildeo da faculdade diretriz eles divergem ao explicar essa mudanccedila
Para Lesses (1998 p 6) Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma
concepccedilatildeo ingecircnua de representaccedilatildeo mental segundo a qual as phantasiacuteai
perceptivas satildeo coacutepias de qualidades que os objetos representados
possuem (cf Dioacutegenes Laeacutercio 7504) Aleacutem disso Annas (1991 p 74-75)
compreende estar implicado nas observaccedilotildees de Crisipo que as phantasiacuteai
satildeo proposicionais ou articulaacuteveis em forma linguiacutestica Ora quanto agraves
alternativas para traduzirmos o termo phantasiacutea parece-nos que
impressatildeo estaacute mais proacuteximo de Cleanto que de Crisipo pois a metaacutefora
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 45
utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questatildeo eacute justamente
agrave da impressatildeo sobre a cera metaacutefora que eacute criticada por Crisipo por seu
caraacuteter imageacutetico A concepccedilatildeo de Crisipo sobre a phantasiacutea ndash adotada
desde entatildeo pelo Estoicismo ndash eacute que ela tem duas facetas uma sensiacutevel
(pois como dissemos trata-se de uma modificaccedilatildeo da faculdade diretriz)
e outra virtual (pois a essa modificaccedilatildeo eacute afixado um juiacutezo que descreve e
avalia aquilo que efetuou a modificaccedilatildeo) Assim sendo parece-nos que a
palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo (que possui de acordo com o Aureacutelio o sentido
filosoacutefico geral de ldquoconteuacutedo concreto apreendido pelos sentidos pela
imaginaccedilatildeo pela memoacuteria ou pelo pensamentordquo) serve para o nosso
propoacutesito e por ela traduziremos phantasiacutea
Traduzimos por lsquoimpulsorsquo o termo grego horme que eacute substantivo
relacionado ao verbo ornumi (ldquolevantar-serdquo) designando o primeiro bote
de um assalto ou ataque adquirindo os sentidos de elatilde e de impulso Entre
as traduccedilotildees consultadas para este trabalho a uacutenica exceccedilatildeo a ldquoimpulsordquo
como vocaacutebulo para traduzir horme eacute a opccedilatildeo de Oldfather (2000) que
emprega ldquochoicerdquo (ldquoescolhardquo) Horme deve ser entendido no contexto do
pensamento epictetiano como o iacutempeto para a accedilatildeo a tendecircncia para agir
desta ou daquela maneira diante de determinada coisa
Traduzimos por lsquodesejorsquo o termo grego orexis que eacute o nome da accedilatildeo
do verbo orego que apresenta o significado de ldquoestender ou tender na
direccedilatildeo de algordquo (por exemplo estender as matildeos para o ceacuteu ou para pedir
algo a algueacutem) de onde ldquodesejordquo ldquoapetiterdquo Eacute uma palavra difiacutecil para ser
transportada ao contexto cultural presente Embora sua traduccedilatildeo por
ldquodesejordquo seja corrente eacute preciso ter cautela com ela pois natildeo se deve
entender orexis no sentido do emaranhado de pulsotildees originadas em niacutevel
inconsciente que caracteriza a visatildeo moderna da subjetividade humana
Orexis descreve a accedilatildeo de tender em direccedilatildeo a algo Uma forma de
apreender da maneira mais precisa possiacutevel seu significado eacute ter em conta
que orexis se opotildee a ekklisis que expressa o movimento contraacuterio o de
afastar-se Para Epicteto desejamos as coisas que consideramos boas (cf
Diatribes I42-3)
46 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
lsquoRepulsarsquo eacute nossa escolha para traduzir eacutekklisis termo grego que
identifica a accedilatildeo de declinar expressando o movimento contraacuterio de klisis
que significa a accedilatildeo de inclinar-se Eacute empregado para descrever o
movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o decliacutenio de
um astro Oldfather (2000) White (1983) e Gourinat (1998) optaram
traduzi-lo por ldquoaversatildeordquo Garciacutea (1998) por ldquorechazordquo No Aureacutelio
ldquoaversatildeordquo apresenta os significados de ldquooacutedio rancor antipatiardquo que natildeo
cabem no presente caso Optamos entatildeo por ldquorepulsardquo para expressar a
ideia de repelir afastar ou evitar algo sem a conotaccedilatildeo de aversatildeo Para
Epicteto repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf Diatribes
I42-3)
Encheiriacutedion capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Antonio Carlos
Tarquiacutenio)
(1-1) Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes19 outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute
propriamente nosso20 julgamento de valor21 impulso para agir desejo
aversatildeo - em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa
alccedilada22 o corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos
- em uma palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem
propriamente (1-2) E as coisas que nos competem satildeo por natureza livres
sem impedimentos sem entraves e as que natildeo satildeo fracas escravas
impedidas de outrem (1-3) Lembra entatildeo que se consideras as coisas
escravas por natureza livres e as coisas alheias proacuteprias seraacutes impedido
estaraacutes triste e perturbado censuraraacutes tanto os deuses como tambeacutem os
homens Mas se consideras ser teu somente o teu e o alheio como eacute alheio
ningueacutem te obrigaraacute nem te impediraacute natildeo censuraraacutes a ningueacutem tampouco
acusaraacutes a algueacutem nenhuma accedilatildeo contra vontade ningueacutem te prejudicaraacute
natildeo teraacutes inimigo uma vez que ningueacutem te convenceraacute de algo danoso23 (1-
4) Lembra-te enfim de que aspirando coisas de tal tamanho24 natildeo eacute preciso
19 Satildeo de nossa alccedilada
20 Eacute de nossa competecircncia
21 Aceito a traduccedilatildeo de Pierre Hadot da palavra hypolepsis
22 Natildeo satildeo de nossa competecircncia natildeo satildeo propriamente nossos
23 Ou seja que tenha sofrido algo de danoso Ningueacutem nos convenceraacute de havermos sido prejudicados
24 Isto eacute tatildeo grandes Elevadas
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 47
se mover moderadamente para alcanccedilaacute-las25 mas umas abandonar
completamente e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois
Mas se queres tambeacutem essas coisas (isto eacute as elevadas e grandes) e mandar e
enriquecer talvez natildeo obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade) por
tambeacutem demandares as primeiras (as elevadas e grandes) erraraacutes o alvo
totalmente pelo menos daquelas (coisas) atraveacutes das quais tatildeo somente
dominarias a liberdade e a felicidade (1-5) Enfim exercita-te rapidamente em
acrescentar a toda fantasia26 que ldquoeacutes impressatildeo e de modo algum o que se
mostra (sendo)rdquo A seguir investiga-a e submeta-a a esses cacircnones os quais
tens e em primeiro lugar esse e sobretudo qual dos dois se a respeito das
coisas sobre noacutes ou a respeito das coisas que natildeo estatildeo sobre noacutes e se for algo
a respeito das que natildeo estatildeo sobre noacutes por isso esteja agrave matildeo ldquonada perante
a mimrdquo
O primeiro capiacutetulo do Enquiriacutedio de Epicteto enfeixa ideias preciosas
que auxiliam o acesso agrave compreensatildeo de sua proposta filosoacutefica Nele
encontramos pontos essenciais de sua doutrina de seu ensinamento Se
no seguimento da obra outros temas surgem e encontram em tempo
oportuno explicaccedilatildeo eacute nos seus cinco itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que
vemos traccedilado o panorama de pensamento do filoacutesofo estoico
Desde o iniacutecio do Enquiriacutedio de Epicteto vecirc-se o estabelecimento de
uma linha divisoacuteria que possui como principal objetivo demarcar a zona
do eu - do verdadeiro eu - distinguindo-a da regiatildeo em que se situam as
coisas em relaccedilatildeo estreita com o corpo Eis a afirmativa de Epicteto a este
respeito
Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute
propriamente nosso julgamento de valor impulso para agir desejo aversatildeo
- em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa alccedilada o
25 Tocaacute-las obtecirc-las
26 Optamos por traduzir phantasiacutea por fantasia em vez de usar os habituais termos ldquorepresentaccedilatildeordquo e ldquoimpressatildeordquo que carreiam consigo interpretaccedilotildees tatildeo incompatiacuteveis entre si que para utilizaacute-los se faria necessaacuteria uma elucidaccedilatildeo criacutetica de cada uma delas De acordo com Sexto Empiacuterico a traduccedilatildeo de phantasiacutea para ldquoimpressatildeordquo (typosis) eacute compatiacutevel com o pensamento de Cleantes conforme a metaacutefora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemocircnico agrave feiccedilatildeo de um sinete sobre a cera Jaacute Crisipo entende a he phantasiacutea ao modo de uma alteraccedilatildeo (heteroiosis) da alma Sexto Empiacuterico M VII 228-230 Doravante citado com a sigla SE
48 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos - em uma
palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem propriamente27
Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais agrave face dessa
tese epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses fama
riquezas inclusive nossos corpos natildeo devam ser situados no campo de
nossas preocupaccedilotildees habituais por natildeo nos pertencerem propriamente
Pois essas satildeo coisas que se no passado jaacute se procuravam hoje muito mais
Em contrapartida o desejar o julgar o agir e o evitar natildeo causam
indignaccedilatildeo como fazeres nossos apesar da descoberta nos uacuteltimos seacuteculos
do inconsciente que parece gerar consequecircncias seriacutessimas em torno das
faculdades aniacutemicas do homem
Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas ldquonatildeo
sobre noacutesrdquo e continuaraacute aparecendo principalmente nas Liccedilotildees de
Epicteto28 toda vez que ele se referir agrave distinccedilatildeo essencial em que figura o
campo de responsabilidade especiacutefica humana Vejamos por exemplo este
trecho das Liccedilotildees
Pois o corpo nos eacute estranho seus membros nos satildeo estranhos nossos teres
nos satildeo estranhos Se por conseguinte tu te prendes a alguma dessas coisas
como a alguma coisa pessoal receberaacutes o castigo que merece aquele que deseja
aquilo que lhe eacute estranho29
Se o corpo e seus amigos natildeo nos pertencem propriamente as obras
da alma satildeo nossas30 natildeo soacute como propriedades inalienaacuteveis mas
sobretudo porque satildeo livres desimpedidas e isentas de qualquer
obstaacuteculo como o Enquiriacutedio de Epicteto inicia separando esferas de
27 E I 1
28 Traduzo Epiktetoi diatribai por Liccedilotildees de Epicteto Seratildeo representadas com a sigla L
29 L IV 1 130-131
30 ldquoE as obras da alma satildeo o impulso para agir o impulso de se afastar o desejar o preparar o intentar o assentirrdquo L IV 11 6 O termo ldquoobras da almardquo demonstra que a real distinccedilatildeo eacute entre a psykhe e o corpo Ora as obras da alma satildeo as obras do hegemocircnico ldquoOs estoicos afirmam que o hegemocircnico eacute a parte mais alta da alma aquela que produz as fantasias os assentimentos as sensaccedilotildees as tendecircncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) 847 Aeacutecio IV 21 1-4 = Pseudo-Plutarque 903A12c-10 Crisipo Oeuvre Philosophique Doravante citado com a sigla Chrys OC
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 49
responsabilidade aquilo por que sou responsaacutevel daquilo pelo que natildeo sou
responsaacutevel nem sempre se consegue perceber a questatildeo de fundo por
traacutes da divisatildeo Entretanto quando Epicteto trata do assunto por outro
acircngulo notamos aquilo que estaacute em jogo na separaccedilatildeo a centralizaccedilatildeo da
vida humana nos valores da alma
Em uma declaraccedilatildeo visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto
se perguntando sobre quem no filoacutesofo do Jardim produziu seus escritos
deixou que sua barba crescesse e tambeacutem quem nele afirmou certa vez
viver seus uacuteltimos dias em estado de felicidade E conclui sua indagaccedilatildeo
com a pergunta A carne (sarks) ou a escolha (prohairesis)31 ou seja
se Epicuro escolheu escrever a prohairesis eacute aquele ato espiritual que o
define mesmo que sua filosofia negue isso Na passagem que segue se
clareia por inteira a noccedilatildeo de que o bem humano eacute por excelecircncia e
essencialmente de ordem espiritual Digo ldquoespiritualrdquo no sentido de
indicar o hegemocircnico em uma das suas funccedilotildees primordiais32 mesmo
sabendo se tratar de um pneuma corpoacutereo uma vez que o proacuteprio Epicteto
compara-o ao corpo utilizando termos antiteacuteticos
A divindade eacute uacutetil mas o bem tambeacutem eacute Entatildeo eacute verossiacutemil onde a essecircncia
da divindade laacute tambeacutem a do bem Entatildeo qual eacute a essecircncia da divindade A
carne Natildeo viria a ser Campo Natildeo viria a ser Fama Natildeo viria a ser A mente
a ciecircncia o pensamento correto Logo procura nessas coisas simplesmente a
essecircncia do bem33
Na introduccedilatildeo ao livro Le Manuel drsquoEacutepicteacutete Pierre Hadot se refere agrave
concentraccedilatildeo do eu qual exerciacutecio espiritual que se poderia derivar
diretamente da separaccedilatildeo sugerida por Epicteto Seria a separaccedilatildeo do eu
do natildeo-eu34 e natildeo discordamos
31 L II 23 21
32 O ato de escolher a prohairesis
33 L II 8 1-3
34 Na medida em que se potildee em operaccedilatildeo a distinccedilatildeo entre as coisas dependentes de noacutes e as coisas independentes de noacutes o eu eacute como que recolocado dentro de seus limites porque natildeo avanccedila mais sobre o que natildeo lhe diz respeito O eu reposicionado deixa para fora de si o natildeo-eu ou seja todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente
50 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Distinguir o que depende de noacutes e o que natildeo depende de noacutes a causalidade
interior e a causalidade exterior eacute finalmente distinguir o eu do natildeo-eu Eacute um
exerciacutecio de concentraccedilatildeo e de delimitaccedilatildeo do eu eu natildeo sou os objetos que
me circundam e que por vezes me satildeo caros esta marmita ou este cavalo ou
esta lacircmpada eu natildeo sou pode-se dizer os atributos gramaticais que o
Destino me impotildee rico ou pobre saudaacutevel ou doente senhor ou escravo
poderoso ou miseraacutevel eu natildeo sou os meus membros eu natildeo sou o meu corpo
nem a emoccedilotildees involuntaacuterias que podem emocionaacute-lo35
O que estaacute no cerne da cisatildeo preceituada por Epicteto eacute a fixaccedilatildeo de
um lugar o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se
voltar a fim de concentrar todos os seus esforccedilos Na verdade a
concentraccedilatildeo do eu demarca dois itineraacuterios bem definidos um em que a
parte dirigente da alma36 eacute assentada a tiacutetulo de oficina e outro em que eacute
definida a principal tarefa do homem ou seja o seu ofiacutecio
Oficina e ofiacutecio juntam-se num mesmo caminho espiritual Enquanto
a primeira diz respeito ao princiacutepio diretor da alma ao hegemocircnico como
lugar de trabalho a segunda se define como o proacuteprio trabalho no cuidado
dele
Referecircncias
ANNAS J Hellenistic philosophy of mind Berkeley University of California Press 1991
BAILLY A Le grand dictionnaire grecfranccedilais Paris Hachette 2000
DINUCCI A O manual de Epicteto aforismos da sabedoria estoica Satildeo Cristoacutevatildeo
EdiUFS 2007
DINUCCI A JULIEN A Epicteto testemunhos e fragmentos Satildeo Cristoacutevatildeo EdiUFS
2008
35 Hadot (2000 p 44-45) Cf L III 24 56 IV 1 129-130
36 Crisipo se refere ao hegemocircnico como o verdadeiro ldquoeurdquo Cf Galeno Sobre as doutrinas de Hipoacutecrates e de Platatildeo II 2 9 1-11 6
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 51
_____ O Encheiridion de Epicteto Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra
2014
DIOacuteGENES LAEacuteRCIO Lives of eminent philosophers vol I IITrad R D Hicks Harvard
Loeb Classical Library 1925
EPICTETO The Encheiridion of Epictetus and its three christian adaptations Trad
G Boter Leiden Brill 1999
_____ Epictetus EncheiridionTrad G Boter Berlim De Gruyter 2007
_____ Manual Trad P O Garciacutea Madrid Editorial Gredos 1995
EPICTETO Enchiridion Trad G Long Nova York Prometheus 1991
_____ Manuel drsquoEacutepictegravete Trad P Hadot Paris LGF 2000
_____ Penseacutees (Manuel) in extenso In Les stoiciumlens textes choisis Org J Brun Paris
PUF 1998 p 118-39
_____ The discourses of Epictetus as reported by Arrian (Books I II III amp IV)
fragments Encheiridion Trad W A Oldfather Cambridge Loeb 2000
_____ The discourses of Epictetus with the Enchiridion and fragments Trad George
Long Londres George Bell amp Sons 1877
_____ Epictetus the handbook the EncheiriacutedionTrad N P White Cambridge
Hacket 1983
LESSES G Content cause and stoic impressions Phronesis XLIII1 1998 p 2-24
MAacuteXIMO PLANUDES Greek anthology vol I IIITrad W R Paton Harvard Loeb
Classical Library 1916-8
MURACHCO Henrique Liacutengua grega visatildeo semacircntica loacutegica orgacircnica e funcional Satildeo
Paulo Discurso EditorialEditora Vozes 2001
SEXTO EMPIacuteRICO Against the professors Trad R G Bury Harvard Loeb 1949
SCHENKL H Epictetus dissertationiones ab Arriani digestae Stutgart Taubner 1965
52 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
SCHWEIGHAUSER Epicteteae philosophiae monumenta 3 vol Leipsig Weidmann
1800
XENOFONTE Cyropaedia vol I II Symposium Apology Trad Walter Miller Harvard
Loeb Classical Library 1914
_____ Memorabilia oeconomicus Symposium ApologyTrad E C Marchant O J
ToddHarvard Loeb Classical Library 1923
3
A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva
da Filosofia Analiacutetica da Mente
Taacuterik de Athayde Prata 1
Alguns Problemas a Respeito da Consciecircncia
Enquanto escrevo estas palavras estou consciente Isso significa que
estou desperto e assim capaz de interagir com meu ambiente imediato
atraveacutes de percepccedilotildees bem como de accedilotildees Sinto a temperatura desta sala
ao mesmo tempo em que vejo as letras surgindo na tela do computador
enquanto sinto a textura das teclas ao deslizar meus dedos sobre elas
Assim entendida minha consciecircncia eacute algo que diz respeito ao
funcionamento de meu organismo e dessa forma pertence a aqueles que
David Chalmers chamou de ldquoproblemas faacuteceisrdquo (easy problems) isto eacute
problemas que se referem a (i) funccedilotildees de modo que se precisa apenas
buscar o (ii) mecanismo que as desempenha (cf CHALMERS 1995 p
202) De acordo com ele ldquoPara uma explanaccedilatildeo do sono e da vigiacutelia seraacute
suficiente uma adequada explanaccedilatildeo neurofisioloacutegica dos processos
responsaacuteveis pelo comportamento contrastante do organismo nesses
estadosrdquo (CHALMERS 1995 p 201) E a diferenccedila entre sono e vigiacutelia eacute
constitutiva da consciecircncia como uma propriedade de um organismo
Mas se eu enquanto organismo posso ser qualificado como
ldquoconscienterdquo natildeo eacute difiacutecil perceber que haacute um uso plenamente legiacutetimo
desse adjetivo em relaccedilatildeo agrave minha vida psicoloacutegica em seus detalhes mais
1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
54 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
especiacuteficos ou seja em relaccedilatildeo a meus estados eventos e processos
mentais entidades psiacutequicas que podem tambeacutem ser conscientes Minhas
percepccedilotildees (da temperatura da sala das letras na tela da textura das
teclas) minhas intenccedilotildees (de digitar certas palavras de escrever um texto
para um evento acadecircmico) assim como meus pensamentos (p ex a
respeito do tema filosoacutefico da consciecircncia) ou minhas eventuais emoccedilotildees
(como a ansiedade de concluir o texto a tempo) tudo isso satildeo fenocircmenos
mentais que podem ou natildeo se tornar conscientes
Entra aqui em cena a distinccedilatildeo proposta por David Rosenthal entre
(a) consciecircncia de criatura (que seria um tema mais permeaacutevel agrave pesquisa
empiacuterica do funcionamento orgacircnico) e (b) consciecircncia de estado (que
seria um tema mais especiacutefico da investigaccedilatildeo filosoacutefica)2 Eacute interessante
notar que Rosenthal eacute um filoacutesofo que assume uma perspectiva anti-
cartesiana no sentido de recusar a ideia defendida pelo filoacutesofo francecircs
da consciecircncia como a essecircncia da mente3 Para ele natildeo haacute grande
dificuldade para se perceber que diversos estados mentais existem
desprovidos de consciecircncia por exemplo quando ldquosabemos sem que nos
seja dito o que outra pessoa estaacute pensando ou sentindo E algumas vezes
sabemos isso mesmo quando a pessoa na verdade natildeo estaacute ciente [aware]
pelo menos a princiacutepio de ter esses sentimentos e pensamentosrdquo
(ROSENTHAL 1986 p 329)
Uma visatildeo como essa segundo a qual os fenocircmenos mentais satildeo em
si mesmos inconscientes tem para Rosenthal a importante vantagem de
2 ldquoDois assuntos satildeo frequentemente confundidos nas discussotildees sobre a consciecircncia Uma questatildeo eacute o que eacute para um estado mental ser consciente Supondo que nem todos os estados mentais satildeo conscientes noacutes queremos saber como os estados conscientes se diferenciam daqueles que natildeo satildeo E ainda que todos os estados mentais fossem conscientes noacutes ainda perguntariacuteamos em que consiste a sua consciecircncia Denominamos essa a questatildeo da consciecircncia de estado Esse seraacute meu principal tema no texto que segue Mas noacutes natildeo descrevemos apenas estados mentais como sendo conscientes ou natildeo noacutes tambeacutem atribuiacutemos consciecircncia a criaturas Assim existe uma segunda questatildeo a questatildeo sobre o que eacute para uma pessoa ou outra criatura ser consciente ou seja como criaturas conscientes se diferenciam daquelas que natildeo satildeo conscientes Denominamos esta a questatildeo da consciecircncia de criaturardquo (ROSENTHAL 1997 p 729)
3 Descartes caracterizou o pensamento para ele a propriedade essencial do mental como ldquotudo quanto estaacute de tal modo em noacutes que somos imediatamente conscientes [consci]rdquo (DESCARTES 1979 p 169 [AT VII p 160 AT IX p 124]) E em conformidade a isso ele entendeu que ldquonenhum pensamento pode existir em noacutes do qual nos natildeo estejamos conscientes [fit conscia] no exato momento em que ele existe em noacutesrdquo (cf AT VII p 246 AT IX p 190) Os nuacutemeros romanos datildeo as referecircncias nos volumes em latim (volume VII) e em francecircs (volume IX) da ediccedilatildeo completa das obras de Descartes feita por Charles Adam e Paul Tannery (AT)
Taacuterik de Athayde Prata | 55
possibilitar uma explanaccedilatildeo informativa da consciecircncia como uma
propriedade de estados mentais pois se a consciecircncia jaacute caracteriza de
saiacuteda todos os fenocircmenos psiacutequicos como pensava Descartes ldquotoda
tentativa de explanar a consciecircncia formulando condiccedilotildees necessaacuterias e
suficientes para um estado mental ser consciente vatildeo fracassar
automaticamente Se a consciecircncia jaacute estaacute embutida na mentalidade toda
explanaccedilatildeo seraacute natildeo informativardquo (ROSENTHAL 1986 p 330) E eu
acrescentaria que essa perspectiva tem a vantagem adicional de ser
compatiacutevel com os incontaacuteveis e no meu entender muito convincentes
indiacutecios de que a maior parte de nossa vida mental ocorre
independentemente da consciecircncia (cf por exemplo SEARLE 1992 p
164 1997 p 236 2004 p 244-45)
Entretanto esse tipo de perspectiva sobre a consciecircncia que a
considera natildeo essencial para o psiacutequico natildeo foi aceita por importantes
filoacutesofos do seacuteculo passado entre os quais se encontra Jean-Paul Sartre
(1905-1980) um dos mais influentes intelectuais do seacuteculo XX que
produziu uma obra de enorme abrangecircncia se estendendo desde a
escritura em diversos gecircneros literaacuterios passando pela filosofia pelos
textos de cunho poliacutetico4 e que na juventude empreendeu
interessantiacutessimas reflexotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia e os
fundamentos da psicologia5 Em sua mais importante obra anterior a O
ser e o nada (1943) o livro O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da
imaginaccedilatildeo (1940) Sartre (1996 p 36) afirma sem reservas que ldquoa
existecircncia de um fenocircmeno psiacutequico e o sentido que ele tem para a
consciecircncia satildeo uma coisa soacuterdquo o que o leva admitir em nota de rodapeacute que
ldquoessas constataccedilotildees nos obrigam a rejeitar inteiramente a existecircncia de um
inconscienterdquo (SARTRE 1996 p 36 nota no 13)
4 Como afirma Annie Cohen-Solal (2007 p 16) a mais conhecida bioacutegrafa de Sartre ele ldquoabordou todos os domiacutenios da escrita (romance novela filosofia teatro cinema biografia autobiografia ensaio criacutetico reportagem jornaliacutestica canccedilatildeo entre outros)rdquo
5 Em uma entrevista concedida jaacute no final de sua vida Sartre declarou que no iniacutecio de sua carreira filosoacutefica ldquoo que eu chamava de lsquofilosofiarsquo era pura e simplesmente psicologiardquo (COHEN-SOLAL 1986 p 90)
56 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Apesar das diversas passagens de sua obra que atacam a ideia de
inconsciente6 existem inteacuterpretes que questionam se Sartre de fato estava
comprometido com a rejeiccedilatildeo a essa ideia (cf GENNARO 2002 p 299-301)
Mas o fato eacute que ela natildeo eacute (pelo menos agrave primeira vista) compatiacutevel com sua
perspectiva pois de acordo com ele quando a consciecircncia (de algo) e uma
autoconsciecircncia impliacutecita natildeo satildeo concebidas como unificadas somos
confrontados com graves problemas No meu entendimento Sartre parte da
constataccedilatildeo de que introduzir uma dualidade na consciecircncia a torna
incompreensiacutevel pois leva a teorias insustentaacuteveis Em termos sumaacuterios a
dualidade nos deixa diante de um dilema
Ou paramos em um termo qualquer da seacuterie conhecido ndash cognoscente
conhecido ndash cognoscente conhecido pelo cognoscente etc e entatildeo a totalidade
do fenocircmeno cai no desconhecido quer dizer esbarramos sempre com uma
reflexatildeo natildeo consciente de si como derradeiro termo ndash ou entatildeo afirmamos a
necessidade de regressatildeo ao infinito (idea ideae ideae etc) o que eacute absurdo
(SARTRE 1943 p 18-19 SARTRE 1997 p 23)
Se haacute uma dualidade entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a
autoconsciecircncia entatildeo ou (I) esta autoconsciecircncia eacute inconsciente ou (II) a
autoconsciecircncia exige (para se tornar consciente) uma outra consciecircncia a
respeito dela que por sua vez exige outra e assim ad infinitum dois
resultados que parecem insatisfatoacuterios ndash pois uma consciecircncia
inconsciente parece uma contradiccedilatildeo em termos7 e um regresso ao
6 Jaacute em A transcendecircncia do ego (1937) seu primeiro texto escrito sob a influecircncia husserliana ele escreveu ldquoSem mesmo se dar conta os teoacutericos do amor-proacuteprio supotildeem que o refletido eacute anterior original e dissimulado no inconsciente Eacute penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipoacutetese Mesmo se o inconsciente existisse o que nos faria acreditar ser ele o depositaacuterio de espontaneidades da forma refletida A definiccedilatildeo do refletido natildeo eacute a do que eacute colocado por uma consciecircnciardquo (SARTRE 1966 p 40-41 SARTRE 2010 p 198-99)
7 Eacute interessante notar que Franz Brentano um dos mais importantes pensadores da virada do seacuteculo XX (JACQUETTE 2004 p 1) autor que sem duacutevida atraveacutes de sua influecircncia sobre Husserl estaacute na raiz de muitas das concepccedilotildees de Sartre natildeo concordava com a visatildeo de que o inconsciente eacute uma noccedilatildeo contraditoacuteria apesar de Brentano ter sido um ferrenho opositor dessa noccedilatildeo Nas palavras de Brentano ldquoAlgumas pessoas iriam apenas balanccedilar a cabeccedila diante dessa questatildeo Supor uma consciecircncia inconsciente parece a elas absurdo Mesmo eminentes psicoacutelogos como por exemplo Locke e John Stuart Mill consideravam essa ideia uma contradiccedilatildeo direta Mas algueacutem que presta atenccedilatildeo agraves determinaccedilotildees feitas a seguir dificilmente iraacute julgar assim Esse algueacutem reconheceraacute que quem levanta a questatildeo sobre a existecircncia de uma consciecircncia inconsciente natildeo estaacute sendo ridiacuteculo como algueacutem que perguntasse se existe um vermelho natildeo vermelho Uma consciecircncia inconsciente eacute tatildeo pouco uma contraditio in adjecto quanto uma visatildeo natildeo vistardquo (BRENTANO 1924 p 143-4 [102-3])
Taacuterik de Athayde Prata | 57
infinito significa que a consciecircncia permanece natildeo explicada (aleacutem do fato
de que a proacutepria ideia de que haacute um regresso infinito parece insustentaacutevel
ndash de modo que a concepccedilatildeo comprometida com um regresso se mostra
absurda) Eacute interessante notar que essas dificuldades ndash (I) e (II) ndash satildeo
aplicaacuteveis ao tipo de teoria proposta por Rosenthal Ao conceber a
consciecircncia de um estado mental como decorrente do monitoramento
deste estado por um outro estado mental a respeito do primeiro
Rosenthal se expotildee ao perigo do regresso ao infinito e eacute para evitar esse
regresso que ele concebe o estado mental de ordem superior como
inconsciente o que evidentemente o leva a recair no primeiro termo do
dilema apontado por Sartre o pensamento que gera a consciecircncia do
estado mental de niacutevel inferior eacute ele proacuteprio inconsciente8
Devido a essas dificuldades Sartre conclui que ldquoConsciecircncia de si natildeo
eacute dualidade Se quisermos evitar regressatildeo ao infinito tem de ser relaccedilatildeo
imediata e natildeo cognitiva de si a sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24)
Exatamente por isso ele opta por colocar o ldquoderdquo da expressatildeo ldquoconsciecircncia
de sirdquo entre parecircnteses de modo a indicar que essa partiacutecula eacute empregada
por imposiccedilatildeo da gramaacutetica (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25) e natildeo
deve ser entendida como sugerindo uma dualidade entre a lsquoconsciecircnciarsquo e
o lsquosirsquo E a ideia da consciecircncia como uma relaccedilatildeo imediata a si mesma
constitui aquele que Kathleen Wider (1997 p 1) considera ser a alegaccedilatildeo
fundamental de Sartre sobre a consciecircncia a saber a alegaccedilatildeo de que
ldquotoda consciecircncia eacute por sua proacutepria natureza autoconsciecircnciardquo No ensaio
sobre A transcendecircncia do ego Sartre defendera que ldquoo tipo de existecircncia
da consciecircncia implica ser consciecircncia de si E ela toma consciecircncia de si
na exata medida em que eacute consciecircncia de um objeto transcendenterdquo
(SARTRE 1966 p 23-4 2010 p 188) Tomando o exemplo de uma
percepccedilatildeo ndash ou seja nos termos dele uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo ndash
Sartre afirma em O ser e o nada que a consciecircncia de si enquanto uma
8 A respeito da teoria de Rosenthal sobre a consciecircncia de estados mentais Uriah Kriegel afirma ldquoO estado de segunda ordem S2 em virtude do qual [o estado de primeira ordem] S1 eacute consciente eacute ele mesmo um estado inconsciente Assim o fato de que S2 representa o eu natildeo implica que por ter S2 o eu eacute consciente de si mesmo pois S2 natildeo eacute uma representaccedilatildeo consciente do eurdquo (KRIEGEL 2002 p 522-23) Cf tambeacutem Kriegel (2005 p 28)
58 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoconsciecircncia espontacircneardquo da percepccedilatildeo ldquoeacute constitutiva de minha
consciecircncia perceptivardquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24) e tomando o
exemplo da accedilatildeo de contar alguns cigarros afirma que ldquoa consciecircncia natildeo
teacutetica de contar eacute condiccedilatildeo mesma de minha atividade aditivardquo (SARTRE
1943 p 19 1997 p 24)
Mas se a assunccedilatildeo de uma dualidade na consciecircncia nos leva a um
dilema entre duas posiccedilotildees insustentaacuteveis a concepccedilatildeo por assim dizer
unitaacuteria da consciecircncia que a entende como uma unidade indissoluacutevel
entre uma (i) consciecircncia de algo e uma (ii) autoconsciecircncia natildeo estaacute livre
de suas proacuteprias dificuldades A concepccedilatildeo sartriana que vecirc essa
autoconsciecircncia como constitutiva ou como condiccedilatildeo de toda consciecircncia
intencional de objetos parece tornar a consciecircncia um fenocircmeno
misterioso inexplicaacutevel pois natildeo conseguimos formar uma noccedilatildeo clara de
qual seja a sua estrutura jaacute que ldquoa consciecircncia de si que caracteriza toda
consciecircncia de algo parece estar de algum modo misturada a esta
consciecircncia de algo de maneira que natildeo eacute nada faacutecil discerni-lasrdquo (PRATA
2017 p 460) e se essas noccedilotildees natildeo podem ser discernidas natildeo eacute possiacutevel
articular uma explicaccedilatildeo do que seja propriamente a consciecircncia
Consciecircncia Posicional e Consciecircncia Natildeo Posicional
Antes de examinar a dificuldade de explicar a consciecircncia tal como
concebida por Sartre eacute importante compreender uma distinccedilatildeo
importante proposta por ele a distinccedilatildeo entre (i) a consciecircncia posicional
ou teacutetica (cf SARTRE 1966 p 28 2010 p 191) por um lado e (ii) a
consciecircncia natildeo posicional (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou natildeo
teacutetica (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) por outro lado A consciecircncia
posicional eacute aquela que potildee um objeto de determinado modo Por exemplo
uma consciecircncia perceptiva potildee seu objeto como existente jaacute que a
percepccedilatildeo se articula enquanto apreensatildeo de algo que existe previamente
a ela ao passo que uma consciecircncia em imagem potildee seu objeto
(imaginado) de diferentes formas (p ex como ausente ou como
Taacuterik de Athayde Prata | 59
inexistente ndash cf SARTRE 1996 p 26) que pressupotildeem que a consciecircncia
eacute a criadora dessa imagem mental E eacute importante notar que o que cada
consciecircncia potildee eacute um objeto que portanto eacute concebido implicitamente
como algo que transcende a consciecircncia existindo para aleacutem de toda
consciecircncia que se possa ter dele9 Jaacute a consciecircncia natildeo posicional natildeo potildee
um objeto pois ela eacute um tipo especial de relaccedilatildeo que natildeo se volta para algo
contra-posto (ob-jectum) agrave consciecircncia mas eacute uma relaccedilatildeo desta
consciecircncia consigo mesma (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)
A respeito dessa distinccedilatildeo a importante inteacuterprete Kathleen Wider
entende que as duas formas de consciecircncia a posicional e a natildeo posicional
podem ser elucidadas em termos do foco da atenccedilatildeo do sujeito consciente
em cada caso enquanto a consciecircncia posicional implica em uma atenccedilatildeo
focada em um objeto (distinto da proacutepria consciecircncia) a consciecircncia natildeo
posicional apreende aquilo em que o sujeito natildeo concentra a sua atenccedilatildeo
Nas palavras de Wider (1997 p 41)
Por um lado qualquer coisa que cai no campo de ciecircncia [awareness] de
algueacutem e para a qual sua atenccedilatildeo estaacute direcionada eacute um objeto que eacute posto
pela consciecircncia Por isso Sartre chama a consciecircncia desse objeto de
consciecircncia teacutetica ou posicional Por outro lado algueacutem tem apenas uma
consciecircncia natildeo teacutetica ou natildeo posicional de qualquer coisa que cai em seu
campo de ciecircncia mas ao qual ele natildeo estaacute presentemente prestando atenccedilatildeo
Se percebo um objeto ou imagino uma paisagem posiciono essa
referecircncia transcendente agrave minha consciecircncia de determinada maneira ndash
como existente no caso da percepccedilatildeo ou como p ex existente em outro
lugar no caso da imaginaccedilatildeo ndash e minha atenccedilatildeo eacute absorvida por essa
referecircncia transcendente Mas ao mesmo tempo em que minha atenccedilatildeo se
absorve na coisa ndash percebida ou imaginada ndash eu apreendo implicitamente
minha proacutepria consciecircncia perceptiva ou imaginativa pois se percebo
apreendo implicitamente ndash na periferia da atenccedilatildeo ndash minha percepccedilatildeo
9 De acordo com Sartre haacute ldquoalgo de excessivo no mundo das lsquocoisasrsquo a cada instante haacute sempre infinitamente mais do queo que podemos ver para esgotar a riqueza de minha percepccedilatildeo atual seria necessaacuterio um tempo infinitordquo (SARTRE 1996 p 22)
60 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
como passiva ao passo que se imagino apreendo implicitamente minha
imaginaccedilatildeo como criadora (cf PRATA 2016 p 81-82) Essa apreensatildeo
impliacutecita pode ser transformada em uma consciecircncia posicional de
consciecircncia ndash uma consciecircncia posicional da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
Mas nesse caso estamos diante de uma reflexatildeo ou seja uma consciecircncia
reflexiva (cf abaixo)
A Opacidade da Consciecircncia na Teoria de Sartre
A avaliaccedilatildeo de que a teoria de Sartre natildeo eacute capaz de fornecer uma
explicaccedilatildeo da consciecircncia parece ser confirmada pela maneira como ele
em diversas passagens se refere ao fenocircmeno da consciecircncia atraveacutes de
metaacuteforas o que de fato sugere que ele natildeo dispunha de conceitos claros
sobre a estrutura da consciecircncia Penso que a necessidade do uso de
metaacuteforas surge de uma estrutura conceitual obscura como encontramos
em determinada passagem de O ser e o nada na qual apoacutes afirmar a
autoconsciecircncia ldquonatildeo teacuteticardquo10 como constitutiva de todo ato mental (como
uma operaccedilatildeo de contar) nega que isso implique um ciacuterculo vicioso mas
se exprime em termos relativamente nebulosos
Contudo natildeo haacute esse ciacuterculo vicioso ou se preferirmos eacute da proacutepria natureza
da consciecircncia existir ldquoem ciacuterculordquo O que se pode exprimir assim toda existecircncia
consciente existe como consciecircncia de existir Compreendemos agora porque a
consciecircncia primeira de consciecircncia natildeo eacute posicional eacute uma soacute com [un avec] a
consciecircncia da qual eacute consciecircncia (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)
A autoconsciecircncia eacute una com a consciecircncia de algo a respeito da qual
ela eacute e justamente essa unidade parece tornar o fenocircmeno opaco a uma
explicaccedilatildeo conceitual E logo em seguida ele se exprime em termos que
tornam essa opacidade ainda mais flagrante Nas palavras de Sartre
10 Conforme discutido acima uma consciecircncia ldquonatildeo-teacuteticardquo (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) equivale a uma consciecircncia ldquonatildeo-posicionalrdquo (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou seja trata-se de uma consciecircncia que natildeo potildee seu objeto como algo distinto de si mesma (cf SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)
Taacuterik de Athayde Prata | 61
Natildeo haacute antes uma consciecircncia que recebesse depois [grifado no original] a
afecccedilatildeo ldquoprazerrdquo tal como se colore a aacutegua ndash do mesmo modo como natildeo haacute
antes um prazer (inconsciente ou psicoloacutegico) que recebesse depois a
qualidade de consciente como um feixe de luz Haacute um ser indivisiacutevel
indissoluacutevel [grifo meu] ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas
qualidades como seres menores mas um ser que eacute existecircncia de ponta a ponta
(SARTRE 1943 p 21 1997 p 26)
Aqui ele rejeita a ideia de que a relaccedilatildeo entre a (i) consciecircncia de algo
e a (ii) autoconsciecircncia seja comparaacutevel agrave relaccedilatildeo entre um sujeito e seu
predicado fazendo dela um ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo cuja
compreensatildeo se torna muito difiacutecil Desse modo natildeo parece restar
alternativa para Sartre aleacutem de recorrer a metaacuteforas para exprimir esse
modo de existecircncia peculiar da consciecircncia como quando ele afirma que a
autoconsciecircncia
Natildeo deve ser considerada uma nova consciecircncia mas o uacutenico modo de
existecircncia possiacutevel para uma consciecircncia de alguma coisa Assim como um
objeto extenso estaacute obrigado a existir segundo as trecircs dimensotildees tambeacutem uma
intenccedilatildeo um prazer uma dor natildeo poderiam existir exceto como consciecircncia
imediata de si mesmos (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25 grifado no original)
Neste trecho o modo de existecircncia da consciecircncia (enquanto
essencialmente marcada por uma autoconsciecircncia) eacute simplesmente
comparado a um fato bruto a saber o de que objetos espaciais
necessariamente existem nas trecircs dimensotildees E jaacute anos antes no ensaio
sobre A transcendecircncia do ego ele se expressara em termos semelhantes
ao dizer que o fato de a consciecircncia irrefletida ser consciecircncia de ser
consciecircncia de um objeto eacute ldquoa lei de sua existecircnciardquo (SARTRE 1966 p 24
2010 p 188-89 grifo meu)
Vejamos agora de modo mais detalhado a maneira como Sartre
concebe a consciecircncia atraveacutes de uma segunda distinccedilatildeo fundamental a
distinccedilatildeo entre (arsquo) consciecircncia irrefletida tida por ele como a forma
fundamental e (brsquo) consciecircncia reflexiva tida por ele como derivada
62 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Consciecircncia Irrefletida e Consciecircncia Reflexiva
Para articular adequadamente a relaccedilatildeo entre a consciecircncia e o eu no
esforccedilo de negar a noccedilatildeo husserliana de um eu transcendental Sartre
desenvolveu uma distinccedilatildeo entre (arsquo) a consciecircncia irrefletida (irreacutefleacutechie)
a forma mais fundamental originaacuteria e (brsquo) a consciecircncia reflexiva
(reacuteflexive) derivada da primeira na qual o fenocircmeno do ldquoeurdquo teria sua
origem (cf SARTRE 1966 p 37 2010 p 196) Na consciecircncia reflexiva
temos duas manifestaccedilotildees de consciecircncia11 a consciecircncia reflexionante
(reacutefleacutechissante) e a consciecircncia refletida (reacutefleacutechie) onde uma se debruccedila
sobre a outra colocando esta uacuteltima como seu objeto Entretanto essa
forma de consciecircncia (cindida entre duas manifestaccedilotildees) natildeo poderia ser
a forma mais fundamental pois a consciecircncia reflexionante que faz da
consciecircncia refletida um objeto jaacute eacute uma consciecircncia (mesmo quando essa
consciecircncia reflexionante natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo ulterior o que eacute
sempre possiacutevel ndash cf SARTRE 1966 p 29 2010 p 191) Portanto deve
haver algo nela (assim como tambeacutem nas manifestaccedilotildees de consciecircncia
voltadas para objetos exteriores) que jaacute a torne consciecircncia
Isso leva Sartre a articular sua concepccedilatildeo a respeito da consciecircncia
irrefletida a consciecircncia que natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo que se investe
completamente no visar um objeto para aleacutem dela proacutepria e eacute nesse
contexto que surge a tese basilar da teoria de Sartre a respeito da
consciecircncia (cf WIDER 1997 p 1) que podemos designar como a tese da
autoreferencialidade da consciecircncia irrefletida que pode ser formulada
nos seguintes termos ldquotoda consciecircncia posicional do objeto eacute ao mesmo
tempo consciecircncia natildeo posicional de sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p
24)12 Eacute exatamente por isso que a consciecircncia irrefletida eacute por si mesma
consciecircncia independentemente da reflexatildeo pois a consciecircncia irrefletida
11 Temos aqui um uso de ldquoconsciecircnciardquo que se refere a cada episoacutedio particular de vivecircncia consciente (cf SARTRE 1996 p 13) isto eacute nesse sentido cada episoacutedio de percepccedilatildeo cada episoacutedio de imagem mental cada episoacutedio de emoccedilatildeo eacute uma consciecircncia Esse uso eacute diferente de um outro aceito por sartre um uso mais globalizante no qual ldquoconsciecircnciardquo se refere agrave ldquomocircnada e o conjunto de suas estruturas psiacutequicasrdquo (SARTRE 1996 p 13)
12 Sartre caracteriza a noccedilatildeo de ldquoposicionalrdquo nos seguintes termos ldquoToda consciecircncia eacute posicional na medida em que se transcende para alcanccedilar um objeto e ela esgota-se nessa posiccedilatildeo [position] mesmardquo (SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)
Taacuterik de Athayde Prata | 63
(na medida em que eacute intencional) eacute uma relaccedilatildeo com um objeto
transcendente a ela que eacute simultaneamente uma relaccedilatildeo a si mesma
Para que se possa construir uma compreensatildeo teoacuterica adequada dessa
autoconsciecircncia preacute-reflexiva tal como concebida por Sartre eacute necessaacuterio no
meu modo de entender um modelo no qual os elementos constituintes dessa
autoconsciecircncia possam ser conceitualmente discernidos ao mesmo tempo
em que a sua unidade por assim dizer orgacircnica se mostre de maneira
inteligiacutevel Seguindo uma indicaccedilatildeo do professor Andreacute Leclerc13 me
proponho a investigar o modelo integrativo da consciecircncia articulado por
Uriah Kriegel para verificar se ele pode servir como um modelo adequado
para se compreender a teoria sartriana da consciecircncia (de) si
O Modelo Integrativo de Kriegel
Kriegel articula o seu modelo integrativo na tentativa de naturalizar
aquilo que ele denomina de ldquocaraacuteter subjetivordquo da experiecircncia consciente
visto por ele como um aspecto constituinte daquilo que ele chama de
ldquocaraacuteter fenomenalrdquo dessa experiecircncia Esse caraacuteter fenomenal pensado por
Kriegel corresponde a aquilo que Thomas Nagel (1974 p 436 2005 p 247)
chamou de subjetividade a saber lsquoo modo como eacute vivenciar um estado
mental x para a criatura que o vivenciarsquo Kriegel propotildee analisar esse caraacuteter
fenomenal em dois aspectos constituintes (a) o modo como eacute vivenciar o
estado mental x ndash que ele denomina caraacuteter qualitativo ndash e (b) o fato desse
modo se doar ao sujeito que vivencia esse estado mental ndash que Kriegel
denomina o caraacuteter subjetivo desse estado Na visatildeo de Kriegel (2005 p 24)
ldquoo caraacuteter qualitativo de uma experiecircncia consciente determina qual
experiecircncia consciente ela eacute mas eacute o caraacuteter subjetivo da experiecircncia que
determina se ela eacute de algum modo [at all] uma experiecircncia conscienterdquo
E eacute importante perceber que esse caraacuteter subjetivo se encontra em
uma relaccedilatildeo essencial com o conceito de ciecircncia [awareness] pois na exata
13 Aproveito para agradecer por essa observaccedilatildeo que o professor fez no debate de uma apresentaccedilatildeo que fiz sobre a teoria de Sartre no IX Encontro Interinstitucional de Filosofia em 2015 no Recife
64 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
medida em que uma experiecircncia se doa ndash ou se manifesta ndash ao sujeito
consciente este sujeito tem que estar ciente [aware] dessa experiecircncia (cf
KRIEGEL 2005 p 25)14 Mas Kriegel enfatiza que o modo como o sujeito
estaacute ciente de suas proacuteprias experiecircncias eacute bastante peculiar pois essa
ciecircncia normalmente natildeo estaacute focada na proacutepria experiecircncia mas sim
nos objetos ou estados de coisas extra-psiacutequicos que satildeo o tema dessa
experiecircncia Sendo assim ele se vecirc levado a introduzir uma distinccedilatildeo entre
(I) estar ciente de algo de modo focado e (II) estar ciente disso de modo
perifeacuterico15 A ideia baacutesica eacute do mesmo modo que em uma percepccedilatildeo
visual estamos cientes de maneira focada do objeto que estaacute no centro do
campo visual e estamos cientes de maneira perifeacuterica dos objetos que se
afastam desse centro no que diz respeito agraves nossas proacuteprias experiecircncias
estamos normalmente16 cientes delas de modo perifeacuterico ao mesmo
tempo em que temos uma ciecircncia focada dos objetos extra-psiacutequicos
dessas experiecircncias Como esclarece Kriegel (2005 p 26)
Minha sugestatildeo eacute que nossa ciecircncia de nossas experiecircncias conscientes eacute
normalmente uma forma de tal ciecircncia perifeacuterica natildeo-perceptiva Experiecircncias
conscientes exibem caraacuteter subjetivo em virtude do fato de que sempre que
temos uma experiecircncia consciente noacutes estamos perifericamente cientes de tecirc-la
Ele entende que o problema do caraacuteter subjetivo ldquoeacute o problema de
compreender como um estado mental pode incluir em si uma ciecircncia de si
proacutepriordquo (KRIEGEL 2005 p 30) E para explicar isso ele propotildee um
modelo teoacuterico baseado na integraccedilatildeo de informaccedilotildees que por essa razatildeo
eu denomino um modelo ldquointegrativordquo Para Kriegel a inclusatildeo de uma
ciecircncia de si mesmo no interior do proacuteprio estado mental consciente pode
14 Em um texto bastante conhecido no debate sobre a consciecircncia David Woodruff Smith (1986 p 149) escreveu ldquoum estado mental eacute consciente se o sujeito desse estado estaacute ciente [aware] de sua ocorrecircnciardquo
15Natildeo eacute difiacutecil perceber que essa maneira como Kriegel procura esclarecer o caraacuteter impliacutecito da ciecircncia que temos de nossas experiecircncias coincide com a maneira como Kathleen Wider (1997 p 41) interpreta a distinccedilatildeo sartriana entre consciecircncia posicional e natildeo posicional discutida na seccedilatildeo 2 acima
16A exceccedilatildeo satildeo os casos de reflexatildeo ndash no dizer de Sartre (1966 p 27-28 2010 p 190-91) ndash ou introspecccedilatildeo ndash no dizer de Rosenthal (1986 p 336-37 1997 p 730) caso que satildeo menos comuns do que os de consciecircncia natildeo reflexiva (cf KRIEGEL 2002 p 518 2003 p 105)
Taacuterik de Athayde Prata | 65
ser explicada atraveacutes da presenccedila de um tipo peculiar de conteuacutedo no
estado consciente conteuacutedo que conecta (a) a ciecircncia de um objeto ndash ou
estado de coisas ndash externo agrave mente com (b) a ciecircncia do proacuteprio estado
mental que se direciona a aquele objeto ndash ou estado de coisas ndash tornando-
se entatildeo necessaacuterio explicar como esse conteuacutedo eacute produzido E eacute aiacute que
entra em cena o modelo integrativo Nas palavras de Kriegel (2005 p 46)
A abordagem que pretendo introduzir sugere que esse tipo de conteuacutedo
representacional pode ser produzido simplesmente atraveacutes da integraccedilatildeo da
informaccedilatildeo carregada por o que eram inicialmente estados mentais separados
Quando os conteuacutedos desses estados mentais separados satildeo apropriadamente
integrados surge um (uacutenico) estado mental que possui exatamente o tipo
correto de conteuacutedo representacional
Apoacutes essa sinteacutetica exposiccedilatildeo do modelo de Kriegel somos obrigados
por motivos de espaccedilo a passar diretamente a uma discussatildeo da teoria de
Sartre
Consideraccedilotildees Finais
Se a visatildeo cartesiana da consciecircncia como a essecircncia da mente sofreu
fortes contestaccedilotildees ao longo do seacuteculo XX vimos que a perspectiva
sartriana ndash influenciada por Descartes ndash da autoconsciecircncia (impliacutecita)
como constitutiva de todo estado intencional parece inviabilizar uma
compreensatildeo teoacuterica adequada da consciecircncia Sartre defende uma
unidade essencial entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a autoconsciecircncia
porque a separaccedilatildeo desses elementos levaria a um dilema entre (I) uma
autoconsciecircncia inconsciente e (II) um regresso ao infinito (cf SARTRE
1943 p 18-19 1997 p 23 cf KRIEGEL 2005 p 28) Entretanto essa
visatildeo unitaacuteria tambeacutem eacute problemaacutetica pois torna a consciecircncia algo
inexplicaacutevel deixando a Sartre apenas a opccedilatildeo de recorrer a metaacuteforas ndash
como a do ldquociacuterculordquo e a das ldquotrecircs dimensotildeesrdquo (cf SARTRE 1943 p 20
1997 p 25) ou ainda a da ldquolei de existecircnciardquo (cf SARTRE 1966 p 24
2010 p 188-89) ndash ou entatildeo recorrer a conceitos obscuros ndash como o de um
66 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo (cf SARTRE 1943 p 21 1997 p 26) ndash para
tentar exprimir o que a consciecircncia eacute
Em outras palavras natildeo resta duacutevida de que o terreno em que esse
debate sobre a consciecircncia eacute travado eacute extremamente movediccedilo pois a
exposiccedilatildeo feita acima mostrou que se a visatildeo da consciecircncia como
essencialmente conectada a uma autoconsciecircncia eacute obscura a visatildeo que
separa a consciecircncia de algo da autoconsciecircncia tambeacutem natildeo funciona
pois recai no dilema acima mencionado ndash entre (I) e (II) Eacute aqui que o
modelo de Kriegel se mostra promissor pois a ideia de uma efetiva
integraccedilatildeo de estados mentais que existiam originalmente separados por
um lado nos fornece a distinccedilatildeo entre conceitos ndash o conceito da (i) ciecircncia
[awareness] do objeto por um lado e o conceito da (ii) ciecircncia do proacuteprio
estado mental por outro lado ndash que possibilita a articulaccedilatildeo de uma
explanaccedilatildeo propriamente dita jaacute que a unidade proposta por Sartre
concebida de uma maneira natildeo predicativa17 como vimos parece
inviabilizar qualquer explanaccedilatildeo conceitual E por outro lado a ideia da
integraccedilatildeo real de estados mentais (originalmente distintos) nos fornece
uma unidade diferente daquela que encontramos nos escritos do filoacutesofo
francecircs pois aleacutem de evitar o regresso ao infinito (como faz a unidade
misteriosa de Sartre) ela permanece permeaacutevel a uma explanaccedilatildeo
conceitual tornando-se assim uma opccedilatildeo mais atraente no cenaacuterio das
elaboraccedilotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia
Referecircncias
ADAM Ch TANNERY P (Orgs) Ouvres de Descartes ndash Meditationes de prima
philosophia Paris Vrin 1996 (Vol VII)
_____ Ouvres de Descartes ndash Meacuteditations et priacutencipes (traduction franccedilaise) Paris Vrin
1996 (Vol IX)
17 ldquoHaacute um ser indivisiacutevel indissoluacutevel ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas qualidades como seres menoresrdquo (SARTRE 1943 p 21 1997 p 26 grifos meus) Temos aqui uma terminologia ontoloacutegica que pressupotildee o discurso sujeito-predicado (cf IMAGUIRE 2007 p 274)
Taacuterik de Athayde Prata | 67
BRENTANO F Psychologie vom empirischen Standpunkt 2a ediccedilatildeo Leipzig Felix
Meiner 1924
_____ Psychology from an empirical standpoint London Routledge amp Kegan Paul 1995
CHALMERS D Facing Up To The Problem of Consciousness Journal of Consciousness
Studies vol 2 no 3 p 200-219 1995
COHEN-SOLAL A Sartre ndash 1905-1980 Porto Alegre Satildeo Paulo LPM Editores 1986
_____ Sartre Porto Alegre LampPM 2007
DESCARTES R Discurso do meacutetodo Meditaccedilotildees Objeccedilotildees e Respostas As Paixotildees
da Alma Cartas 2ordf ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1979
GENNARO R J Jean-Paul Sartre and the HOT Theory of Consciousness Canadian
Journal of Philosophy vol 32 no 3 p 293-330 setember 2002
IMAGUIRE G A substacircncia e suas alternativas feixes e tropos In Imaguire G Almeida
C L S Oliveira M A (Orgs) Metafiacutesica contemporacircnea Petroacutepolis Vozes p
271-289 2007
JACQUETTE D Introduction Brentanorsquos Philosophy In Jacquette D (Org) The
Cambridge companion to Brentano Cambridge Cambridge University Press p
1-19 2004
KRIEGEL U Consciousness permanent self-Awareness and higher order monitoring
Dialogue 41 p 517-40 2002
_____ Consciousness as intransitive self-consciousness two views and an argument
Canadian Journal of Philosophy vol 33 no 1 p 103-32 2003
_____ Naturalizing subjective character Philosophy and Phenomenological Research
vol LXXXI no 1 p 23-57 2005
NAGEL T What is it like to be a bat The Philosophical Review vol 83 no 4 p 435-50 1974
_____ Como eacute ser um morcego Cadernos de Histoacuteria e de Filosofia da Ciecircncia seacuterie
3 vol 15 no 1 p 245-62 2005
68 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
PRATA T A Consciecircncia e auto-relaccedilatildeo na primeira filosofia de Sartre em exame a partir
de um debate contemporacircneo a respeito da consciecircncia Aacutegora Filosoacutefica ano 16 n
2 p 76-92 2016
_____ A concepccedilatildeo sartriana da consciecircncia na perspectiva da filosofia analiacutetica da mente In
Oliveira Eacute A M Costa M R N Benvinda N M (Orgs) Liberdade loacutegica e accedilatildeo
homenagem ao Prof Dr Juan Adolfo Bonaccini Recife Editora UFPE p 455-68 2017
ROSENTHAL D Two concepts of consciousness Philosophical Studies 49 p 329-359 1986
_____ A theory of consciousness In Block N Flanagan O Guumlzeldere G (Orgs) The
nature of consciousness philosophical debates Cambridge (Massachusetts) MIT
Press p 729-753 1997
Sartre J-P Lrsquoecirctre et le neaacutent essai drsquoontologie pheacutenomeacutenologique Paris Gallimard 1943
_____ La transcendece de lrsquoego ndash esquisse drsquoune description pheacutenomeacutenologique Paris
Vrin 1966
_____ O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da imaginaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica
1996
_____ O ser e o nada ensaio de ontologia fenomenoloacutegica Petroacutepolis Vozes 1997
_____ A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica In Cadernos
Espinosanos XXII p 183-228 2010
SEARLE J R The rediscovery of the mind Cambridge Mass London MIT Press 1992
_____ A redescoberta da mente Satildeo Paulo Martins Fontes 1997
_____ Mind a brief introduction Oxford Oxford University Press 2004
SMITH D W The structure of (self-)consciousness Topoi n 5 p 149-56 1986
WIDER K The bodily nature of consciousness Sartre and contemporary philosophy of
mind Ithaca Cornell University Press 1997
4
A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico
A Criacutetica de John Searle agraves Principais Correntes
da Filosofia da Mente
Maxwell Morais de Lima Filho 1
Parece muito doce aquela cana
Descasco-a provo-a chupo-ahellip ilusatildeo treda
Augusto dos Anjos
Para Searle (2006 p 7-9) nem eacute verdade que o problema mente-
corpo seja insoluacutevel nem que seja necessaacuterio um projeto de naturalizaccedilatildeo
para atacaacute-lo pois basta reconhecermos que os fenocircmenos mentais satildeo
caracteriacutesticas de niacutevel superior causadas e realizadas no sistema nervoso
para resolvecirc-lo2
O famoso problema mente-corpo fonte de tanta controveacutersia ao longo dos
dois uacuteltimos milecircnios tem uma soluccedilatildeo simples [] Aqui estaacute ela os
fenocircmenos mentais satildeo causados por processos neurofisioloacutegicos no ceacuterebro
e satildeo eles proacuteprios caracteriacutesticas do ceacuterebro
[]
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) e Professor do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
2 Em Intencionalidade Searle (1995 p 21-2) critica tanto os dualistas quanto os fisicalistas por tentarem resolver um problema que sequer existe ldquoOs dualistas que percebem corretamente o papel causal do mental consideram que precisamente por esta razatildeo devem postular uma categoria ontoloacutegica separada Muitos fisicalistas que percebem corretamente que tudo o que temos no cracircnio eacute um ceacuterebro acham que por esta razatildeo devem negar a eficaacutecia causal dos aspectos mentais do ceacuterebro ou mesmo a existecircncia desses aspectos mentais irredutiacuteveis Acredito que ambas as visotildees estejam equivocadas Ambas tentam resolver o problema mente-corpo quando a abordagem correta eacute perceber que tal problema natildeo existe O lsquoproblema mente-corporsquo natildeo eacute um problema mais real que o do lsquoestocircmago-digestatildeorsquordquo
70 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo eacute
espantosamente difiacutecil talvez completamente insoluacutevel Os materialistas
concordam que se a intencionalidade e a consciecircncia realmente existem e satildeo
irredutiacuteveis a fenocircmenos fiacutesicos entatildeo de fato haveria um difiacutecil problema
mente-corpo mas eles pretendem ldquonaturalizarrdquo a intencionalidade e talvez
tambeacutem a consciecircncia Por ldquonaturalizaccedilatildeordquo de fenocircmenos mentais eles
entendem a sua reduccedilatildeo a fenocircmenos fiacutesicos
Perpassando as incontaacuteveis divergecircncias teoacutericas entre dualistas e
fisicalistas se encontra um liame terminoloacutegico herdado de Descartes que
contrapotildee o fiacutesico ao mental essa distinccedilatildeo substancial do mundo por sua
vez teria sido uacutetil para superar o aparente conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia
no seacuteculo XVII Sendo assim os assuntos concernentes agrave alma e agrave moral
humanas seriam tratados exclusivamente pela Religiatildeo enquanto os
cientistas se debruccedilariam sobre os mais diversos fenocircmenos naturais ndash
fiacutesicos quiacutemicos bioloacutegicos etc Em realidade natildeo houve uma completa
superaccedilatildeo do conflito como o proacuteprio Searle adverte (2010c) haja vista
que Galileu se retratou perante a Igreja e Descartes se mudou para a mais
tolerante Holanda Interessante notarmos que o filoacutesofo britacircnico Gilbert
Ryle tambeacutem menciona os pensadores italiano e francecircs na origem do erro
categorial presente na doutrina do fantasma na maacutequina Poreacutem no que
se refere ao conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia Ryle (1970 p 18-9) o
restringe agrave esfera pessoal de Descartes que aceitou o mecanicismo
galilaico somente na esfera corpoacuterea
[Q]uando Galileu mostrou que os seus meacutetodos de descoberta cientiacutefica eram
capazes de estabelecer uma teoria mecacircnica que abrangeria todos os
ocupantes do espaccedilo Descartes encontrou em si proacuteprio duas razotildees em
conflito Como homem de gecircnio cientiacutefico natildeo tinha outro remeacutedio senatildeo
sancionar as descobertas da mecacircnica ao passo que como homem religioso e
moral natildeo poderia aceitar como Hobbes aceitou os desencorajantes
corolaacuterios dessas descobertas ou seja que a natureza humana difere apenas
em grau de complexidade do mecanismo de um reloacutegio O mental natildeo poderia
ser uma variedade do mecacircnico
Maxwell Morais de Lima Filho | 71
Eacute justamente contra essa visatildeo que o autor drsquoA Redescoberta da
Mente defende que o passo que devemos dar antes mesmo de iniciar a
investigaccedilatildeo eacute abandonar o dualismo conceitual que estaacute presente nas
concepccedilotildees mais diacutespares do espectro da Filosofia da Mente o dualismo
de substacircncia o dualismo de propriedade o materialismo o monismo o
behaviorismo a teoria da identidade o funcionalismo e a inteligecircncia
artificial forte Se largarmos o dualismo conceitual dissolveremos o falso
dilema que nos faz acreditar que ou defendemos uma concepccedilatildeo dualista
ou uma fisicalista como ostenta Searle (2002a p 15) nesta passagem
Os filoacutesofos analiacuteticos juntamente com o restante da tradiccedilatildeo cartesiana
assumiram de modo caracteriacutestico que ldquomentalrdquo implica ldquonatildeo-materialrdquo ou
ldquoimaterialrdquo e que ldquomaterialrdquo ou ldquofiacutesicordquo implica ldquonatildeo mentalrdquo No entanto
quando se reflete sobre o modo como o ceacuterebro opera tem-se a impressatildeo de
que ambos os pressupostos satildeo obviamente falsos
Feitas essas ressalvas exporemos as criacuteticas que Searle tece agraves
principais correntes da Filosofia da Mente comeccedilando pelo dualismo de
substacircncia Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia rastreamos versotildees dessa
concepccedilatildeo sendo defendidas por pensadores desde a Greacutecia Antiga sendo
Platatildeo o mais insigne entre eles Tambeacutem registramos brevemente que o
dualismo de substacircncia se configurou como uma posiccedilatildeo-padratildeo tanto na
Patriacutestica como na Escolaacutestica e foi defendido por eruditos do porte de
Agostinho e de Tomaacutes de Aquino Em que pesem todos esses antecedentes
a versatildeo do dualismo de substacircncia que eacute levada em consideraccedilatildeo pela
maioria dos filoacutesofos da mente eacute aquela consumada na obra de Reneacute
Descartes Em resumo o filoacutesofo francecircs propunha uma cisatildeo entre o
domiacutenio fiacutesico res extensa (substacircncia material ou fiacutesica) e o domiacutenio
mental res cogitans3 (alma mente ou substacircncia mental) Para
fundamentar a dualidade ontoloacutegica o filoacutesofo francecircs parte do princiacutepio
de distinccedilatildeo para afianccedilar a possibilidade de concebermos claramente que
3 Cottingham (1999 p 26) nos adverte para natildeo nos desencaminharmos pelo significado religioso ou espiritual que foi imputado ao termo ldquoalmardquo tendo em conta que Descartes utiliza os vocaacutebulos ldquolrsquoacircme (ldquoalmardquo) e lrsquoesprit (ldquomenterdquo) mais ou menos indiferentemente simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente []rdquo
72 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
a discriminaccedilatildeo e a independecircncia entre corpo e alma decorrem do fato de
eles assim terem sido produzidos por Deus Mas afinal de contas em que
reside a diferenccedila fundamental entre esses dois domiacutenios ontoloacutegicos
Descartes (1996 p 326) responde a esse questionamento afirmando que
a caracteriacutestica crucial dos corpos eacute a extensatildeo e a da alma o pensamento
E embora [] eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente
conjugado todavia jaacute que de um lado tenho uma ideacuteia clara e distinta de mim
mesmo na medida em que sou apenas uma coisa pensante [res cogitans] e
inextensa e que de outro tenho uma ideacuteia distinta do corpo na medida em
que eacute apenas uma coisa extensa [res extensa] e que natildeo pensa eacute certo que este
eu isto eacute minha alma pela qual eu sou o que sou eacute inteira e verdadeiramente
distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele [independecircncia
entre alma e corpo]
Seguindo o raciociacutenio cartesiano ao examinar o meu corpo (ou outro
qualquer como uma mesa por exemplo) constatariacuteamos que ele tem uma
extensatildeo e a partir disso posso falar algo como ldquomeccedilo 174 mrdquo
Conquanto natildeo faria sentido algum aferirmos ao peacute da letra o
comprimento da minha crenccedila na democracia Logo haacute uma diferenciaccedilatildeo
ontoloacutegica entre o meu corpo (coisa fiacutesicasubstacircncia extensa) e a minha
mente (coisa natildeo fiacutesicasubstacircncia pensante) a coisa extensa eacute natildeo
pensante e a coisa pensante eacute natildeo extensa Decorre diretamente dessa
distinccedilatildeo a irredutibilidade e a independecircncia do mental em relaccedilatildeo ao
fiacutesico e entre outras coisas isso significa que natildeo haacute nenhum
impedimento para a persistecircncia de minha alma apoacutes a morte do meu
corpo Para Descartes (2004 p 227)
o corpo humano na medida em que difere dos outros corpos eacute constituiacutedo
por certa configuraccedilatildeo de membros e de outros acidentes desse modo ao
passo que a mente humana natildeo eacute constituiacuteda dessa maneira a partir de
acidentes nenhuns mas eacute pura substacircncia Pois embora todos os seus
acidentes se modifiquem ndash ela entende umas coisas quer outras sente outras
etc ndash nem por isso a proacutepria mente torna-se uma outra Ao passo que o corpo
humano torna-se outro em virtude apenas de que se modifique a figura de
qualquer uma de suas partes Disto se segue que tal corpo morre muito
Maxwell Morais de Lima Filho | 73
facilmente enquanto a mente ou a alma do homem (o que natildeo distingo) eacute
imortal por sua natureza
Jaacute em sua eacutepoca o filoacutesofo francecircs foi criticado por defender a
interaccedilatildeo entre esses dois tipos totalmente diferentes de substacircncia porque
restou inexplicado como algo fiacutesico causaria algo mental e inversamente
como o mental atuaria sobre o fiacutesico Na tentativa de resguardar seu
posicionamento interacionista ele recorreu agrave glacircndula pineal e aos
espiacuteritos animais resguardando agravequela a sede da alma e conferindo a estes
uacuteltimos a funccedilatildeo comunicativa entre as duas substacircncias Todavia
Descartes (1996 p 328-9) nos alerta para natildeo olvidarmos que o contraste
metafiacutesico entre espiacuterito e mateacuteria natildeo impede a sua iacutentima conjunccedilatildeo
como uma totalidade coerente
A natureza me ensina tambeacutem por esses sentimentos de dor fome sede etc
que natildeo somente estou alojado em meu corpo como um piloto em seu navio
mas que aleacutem disso lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo
confundido e misturado que componho com ele um uacutenico todo
Para Cottingham (1989) seria incorreto enquadrar a posiccedilatildeo de
Descartes como um dualismo pois existem atributos humanos que natildeo se
encaixariam nem como modos de extensatildeo nem como modos de
pensamento haja vista que seriam o resultado da uniatildeo de ambos Sendo
assim como os fenocircmenos psicofiacutesicos natildeo se identificariam nem aos
fenocircmenos fiacutesicos (res extensa) nem aos mentais (res cogitans)
estariacuteamos diante de um ldquotrialismo cartesianordquo Para justificar sua linha
de raciociacutenio Cottingham (1989 p 172) menciona uma carta que
Descartes enviou agrave rainha Elizabeth em 1643 na qual o filoacutesofo francecircs
reconhece a existecircncia de ldquotrecircs categorias ou noccedilotildees primitivasrdquo a forma
e o movimento se relacionam agrave extensatildeo a compreensatildeo e a vontade ao
pensamento e as sensaccedilotildees e paixotildees agrave uniatildeo entre o corpo e a alma
Independentemente de qual leitura exegeacutetica prevaleccedila ndash dualismo ou
trialismo ndash o ponto eacute que os expedientes da glacircndula pineal e dos espiacuteritos
animais utilizados por Descartes estatildeo longe de serem satisfatoacuterios Por um
74 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
lado eacute incoerente delimitar a alma na glacircndula pineal porque a res cogitans
eacute uma substacircncia natildeo extensa e portanto sem localizaccedilatildeo espacial por
outro ainda que se considere que os espiacuteritos animais sejam constituiacutedos de
uma substacircncia fiacutesica bastante delicada permanece aberta a questatildeo
original como os espiacuteritos animais que possuem massa e satildeo espacialmente
situados satildeo capazes de interatuar com uma substacircncia imaterial Natildeo
obstante as criacuteticas direcionadas ao dualismo de substacircncia ao longo dos
seacuteculos e o fato de ele ser minoritaacuterio no ambiente acadecircmico atual natildeo
devemos esquecer que essa concepccedilatildeo estaacute intimamente afinada tanto com
o senso comum quanto com o pensamento religioso pois a maioria das
Religiotildees ndash se natildeo todas ndash defende uma separaccedilatildeo entre a alma e o corpo
Para o autor drsquoA Redescoberta da Mente no entanto essa corrente seria
inconciliaacutevel com o arcabouccedilo conceitual proveniente das Ciecircncias da
Natureza segundo o qual as caracteriacutesticas de niacutevel superior se
fundamentam na microestrutura o que nos impede de tratarmos a
consciecircncia como se fosse uma substacircncia distinta ou uma entidade
adicional ao substrato fiacutesico Nesse sentido Searle (2010a p 4-5) assevera
que por ser causada e realizada neurofisiologicamente eacute que a consciecircncia
natildeo passa de uma caracteriacutestica de niacutevel superior do sistema nervoso
O cheiro da flor o som da sinfonia os pensamentos sobre os postulados da
geometria euclidiana ndash tudo eacute causado por processos bioloacutegicos de niacutevel
inferior no ceacuterebro e ateacute onde sabemos os elementos cruciais satildeo os
neurocircnios e as sinapses
[]
Assim eacute possiacutevel resumir da seguinte maneira as duas relaccedilotildees cruciais entre
consciecircncia e ceacuterebro os processos neurocircnicos de niacutevel inferior no ceacuterebro
causam a consciecircncia e a consciecircncia eacute apenas uma caracteriacutestica de niacutevel
superior de um sistema composto de elementos neurocircnicos de niacutevel inferior
Obviamente esse modo de pensar vai de encontro agrave tese central do
dualismo de substacircncia de que a distinccedilatildeo ontoloacutegica4 entre os dois
4 Por motivos distintos o eliminativista Rorty (1994 p 133) tambeacutem critica as categorias cartesianas ldquoEssas assim chamadas categorias ontoloacutegicas [de lsquomentalrsquo e de lsquofiacutesicorsquo] satildeo simplesmente os modos de embalar noccedilotildees deveras heterogecircneas de fontes histoacutericas deveras heterogecircneas que eram convenientes aos propoacutesitos do proacuteprio Descartes
Maxwell Morais de Lima Filho | 75
domiacutenios sustenta que o fiacutesico tem um modo de existecircncia diferente do
mental Portanto ao defender que a consciecircncia eacute uma caracteriacutestica
emergente do sistema nervoso o filoacutesofo estadunidense estaacute propondo
que o acircmbito fiacutesico eacute mais abrangente do que o dualista de substacircncia
poderia supor pois a mentalidade eacute fiacutesica Eacute somente a partir disso que
compreendemos a revisatildeo do adaacutegio cartesiano pretendida por Searle
(2006 p 26) quando afirma que ldquosou um ser pensante portanto sou um
ser fiacutesicordquo Mais do que isso como a consciecircncia emerge da organizaccedilatildeo e
da complexidade fiacutesicas Searle (2010d p 98) tambeacutem discorda do
posicionamento cartesiano de que os animais natildeo humanos satildeo
autocircmatos haja vista que o grau de semelhanccedila5 conosco ndash principalmente
com os primatas ndash leva-nos na direccedilatildeo contraacuteria
Do ponto de vista anatocircmico as semelhanccedilas satildeo grandes demais para que
essa especulaccedilatildeo [da ausecircncia de intencionalidade e de pensamento nos
animais natildeo humanos] pareccedila plausiacutevel ainda que remotamente do ponto de
vista fisioloacutegico como sabemos os mecanismos que produzem a
intencionalidade e o pensamento nos humanos tecircm estreitos paralelos com os
que se verificam em outros animais
Foi com o intuito de fugir das dificuldades que se impotildeem ao
dualismo de substacircncia que alguns filoacutesofos comprometidos com a
irredutibilidade dos fenocircmenos mentais propuseram o dualismo de
propriedade Essa abordagem postula a existecircncia de uma uacutenica
substacircncia a substacircncia fiacutesica (monismo fiacutesico) e de dois tipos de
propriedade mutuamente excludentes as fiacutesicas e as mentais Ao
observarmos uma pessoa qualquer diria o dualista de propriedade
Mas os seus propoacutesitos natildeo satildeo os nossos Os filoacutesofos natildeo devem pensar em seu conglomerado artificial como se fosse uma descoberta de algo preacute-existente ndash uma descoberta que por lsquointuitivarsquo ou lsquoconceitualrsquo ou lsquocategoacutericarsquo estabelece paracircmetros permanentes para a ciecircncia e a filosofiardquo
5 Changeux (1985 p 74) assegura que natildeo haacute diferenccedila significativa entre ldquoas peccedilas e parafusosrdquo que compotildeem por exemplo os ceacuterebros dos ratos e dos homens ldquoTanto ao niacutevel da anatomia macroscoacutepica do coacutertex como da sua arquitectura microscoacutepica natildeo ocorre qualquer brutal reorganizaccedilatildeo lsquoqualitativarsquo que leve do ceacuterebro lsquoanimalrsquo ao ceacuterebro lsquohumanorsquo Deu-se pelo contraacuterio uma evoluccedilatildeo quantitativa e contiacutenua do nuacutemero total de neuroacutenios da diversidade das aacutereas do nuacutemero de possibilidades conexionais entre neuroacutenios e por conseguinte da complexidade das redes de neuroacutenios que constituem a maacutequina cerebralrdquo
76 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
constatamos que o seu corpo ndash cabeccedila pernas braccedilos etc ndash tem um modo
de existecircncia fiacutesico poreacutem se analisarmos o ceacuterebro dela veremos que
aleacutem de possuir propriedades fiacutesicas ndash muitas delas semelhantes agraves que
satildeo encontradas na cabeccedila nas pernas e nos braccedilos ndash tal oacutergatildeo tambeacutem
possui propriedades mentais
Dessa maneira poderiacuteamos afirmar que esse enrugado oacutergatildeo
formado por bilhotildees de ceacutelulas e que pesa um quilo e meio possui
propriedades que se distinguem e natildeo se reduzem a nenhuma dessas
propriedades fiacutesicas Em geral contrapotildeem-se os aspectos subjetivo
qualitativo e privado das propriedades mentais agrave precisatildeo intersubjetiva
com que mensuramos os objetos e propriedades fiacutesicos o acesso direto agrave
dor estaacute restrito ao sujeito que a experiencia mas que ele pese oitenta
quilos eacute um dado objetivo quantitativo e publicamente acessiacutevel a
qualquer um que disponha de uma balanccedila Como explica Pereira (2013)
os filoacutesofos da mente se valem dos termos quale (singular) e qualia6
(plural) para se referir ao caraacuteter subjetivo e qualitativo dos fenocircmenos
mentais que experienciamos quando saboreamos o azedume do
tamarindo vemos a beleza de um flamboyant ouvimos uma bela canccedilatildeo
tocamos na pessoa querida ou cheiramos um bebecirc Abrantes (2005 p
226) nos alerta entretanto que os uacutenicos estados mentais
consensualmente considerados qualia satildeo as sensaccedilotildees Nesse sentido
muitos filoacutesofos negam ndash diferentemente de Searle ndash que haja qualquer
tipo de aspecto qualitativo envolvido na realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo
matemaacutetica como a adiccedilatildeo por exemplo
Para o dualista de propriedade as propriedades mentais satildeo especiais
em dois sentidos em primeiro lugar por conta de sua singularidade
bioloacutegica apesar de os objetos serem constituiacutedos basicamente pelos
6 Por salvaguardar que a consciecircncia eacute qualitativa Searle (2010b p 34) julga como absurda a tentativa daqueles que pretendem apartar o que para ele eacute inseparaacutevel ldquoNatildeo haacute dois problemas separados ndash o problema da consciecircncia e entatildeo um problema subsidiaacuterio o dos qualia O problema da consciecircncia eacute idecircntico ao dos qualia porque os estados conscientes satildeo acima de tudo estados qualitativosrdquo Em outras palavras Searle (2010c p 57-8) considera o termo qualia dispensaacutevel porque todos os fenocircmenos conscientes satildeo qualitativos ldquo[T]al como entendo esses termos qualia eacute somente uma designaccedilatildeo coletiva dos estados conscientes Na medida em que a lsquoconsciecircnciarsquo e os qualia satildeo coextensivos natildeo haacute razatildeo para introduzir um termo especiacuteficordquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 77
mesmos ldquoblocos de construccedilatildeordquo (aacutetomos) somente algumas estruturas
fiacutesicas possuem propriedades mentais a saber ceacuterebros complexos Em
segundo lugar a despeito de dependerem ontologicamente dos sistemas
fiacutesicos que as produzem as propriedades mentais satildeo irredutiacuteveis e
inexplicaacuteveis a partir dos conceitos provenientes das Ciecircncias Naturais
como a Fiacutesica a Quiacutemica e a Biologia
Para mostrar isso o filoacutesofo Frank Jackson (1986 2004) propocircs um
importante experimento de pensamento objetivando sustentar a
irredutibilidade dos qualia Imaginemos que Mary seja uma neurocientista
que sabe tudo acerca dos aspectos fiacutesicos e neurofisioloacutegicos das cores isto
eacute que ela domine o conhecimento sobre as leis oacutepticas das reflectacircncias
de luz bem como da anatomia e da fisiologia das ceacutelulas fotorreceptoras e
do coacutertex visual Natildeo obstante seu profundo conhecimento cientiacutefico ela
vive em um mundo preto e branco e portanto nunca experenciou
visualmente cores que natildeo estas duas Imaginemos ainda que um dia ela
saiu do seu laboratoacuterio alvinegro e percebeu pela primeira vez a cor
vermelha de uma maccedilatilde De acordo com essa linha de pensamento essa
experiecircncia visual traria um novo tipo de conhecimento a Mary a saber a
experiecircncia qualitativa de ver vermelho Ora argumenta Jackson se Mary
possuiacutea todo o conhecimento fiacutesico sobre as cores agrave sua disposiccedilatildeo e
mesmo assim aprende um novo fato cromaacutetico concluiacutemos que a sensaccedilatildeo
de ver vermelho (fato novo) aleacutem de natildeo ser fiacutesica eacute irredutiacutevel
ontologicamente a qualquer tipo de estado ou propriedade material Com
isso Jackson (2004 p 765) quer defender que as propriedades mentais
estatildeo acima e aleacutem da realidade fiacutesica e que se mantecircm intocadas pela
explicaccedilatildeo fiacutesico-bioloacutegica da visatildeo
A conclusatildeo [] eacute que os qualia satildeo deixados de fora da histoacuteria fisicalista E a
forccedila polecircmica do argumento do Conhecimento eacute que eacute tatildeo difiacutecil negar a sua
afirmaccedilatildeo central de que se pode ter toda a informaccedilatildeo fiacutesica sem ter todas as
informaccedilotildees que haacute para ter
78 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Searle (2000) natildeo admite essa diferenciaccedilatildeo e advoga que o mental eacute
fiacutesico por ser bioloacutegico ou seja os fenocircmenos mentais satildeo fenocircmenos
bioloacutegicos tais quais outros processos encontrados no mundo vivo como
a digestatildeo a fotossiacutentese e a mitose Portanto para sermos exitosos na
superaccedilatildeo do dualismo de propriedade devemos rejeitar a terminologia
que exclui a consciecircncia do mundo natural e a trata como se natildeo fosse
bioloacutegica Com o intuito de denunciar o quanto esse sistema de categorias
eacute problemaacutetico ele assevera que o dualista inevitavelmente estaraacute diante
de uma encruzilhada se pressupuser que as propriedades mentais estatildeo
acima e aleacutem das propriedades fiacutesicas Se levarmos em consideraccedilatildeo o
fechamento causal fiacutesico do Universo ndash todo evento fiacutesico possui como
causa suficiente outro evento fiacutesico ndash teriacuteamos como resultado que as
propriedades natildeo fiacutesicas satildeo causalmente ineficazes ou seja o mental
subsistiria como um domiacutenio epifenomecircnico
Nesse cenaacuterio as nossas sensaccedilotildees crenccedilas e desejos seriam
totalmente irrelevantes para o nosso comportamento assim como seria
ilusoacuteria a causaccedilatildeo mental O caminho alternativo eacute igualmente
problemaacutetico porque se comprometeria ndash na contramatildeo do que
pressupotildeem as melhores teorias cientiacuteficas ndash com a tese de que o Universo
natildeo eacute fisicamente fechado Essa conjuntura asseguraria a eficaacutecia causal
do mental em troca de acatarmos a sobreposiccedilatildeo causal de certos eventos
isto eacute comprometer-nos-iacuteamos com a sobredeterminaccedilatildeo causal por
afirmar que um evento fiacutesico F eacute duplamente produzido por um evento
fiacutesico F e por um evento mental M Segundo Searle7 (2014 p 107)
sabemos [] que quando eu levanto meu braccedilo haacute uma histoacuteria a ser contada
no niacutevel de disparos de neurocircnios neurotransmissores e contraccedilotildees
musculares que eacute suficiente para descrever [] o movimento do meu braccedilo
Entatildeo se supusermos que a consciecircncia tambeacutem funciona no movimento do
meu braccedilo entatildeo parece que temos duas histoacuterias causais distintas nenhuma
redutiacutevel agrave outra e para colocar muito brevemente a questatildeo meus
7 Em Lima Filho (2010b) analisamos em detalhes o problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico
Maxwell Morais de Lima Filho | 79
movimentos corporais tecircm muitas causas Noacutes temos [sobredeterminaccedilatildeo]
causal
O autor drsquoA Redescoberta da Mente eacute da opiniatildeo que apesar da
relutacircncia o dualista de propriedade acaba por cair na ldquovelhardquo dualidade
substancial como fica patente no uso de metaacuteforas que insinuam a
separaccedilatildeo entre os fenocircmenos conscientes a consciecircncia se origina do
ceacuterebro mas estaacute acima e aleacutem dos processos cerebrais por ser uma
propriedade emergente Esse modo de pensar nos conduz agrave imagem da
consciecircncia como uma cereja que por estar acima do bolo dele difere
Searle (2014 p 114) enxerga uma inconsistecircncia nessa posiccedilatildeo segundo a
qual a consciecircncia (cereja) eacute uma propriedade que estaacute acima e aleacutem do
ceacuterebro (bolo) afirmando que essa incongruecircncia acaba por minar o
monismo fiacutesico e passa a incidir em alguma versatildeo do dualismo de
substacircncia
A imagem verdadeira se vamos persistir na metaacutefora do bolo eacute que a
consciecircncia eacute o estado em que o bolo (ceacuterebro) estaacute Oficialmente o dualista
de propriedades diz que a consciecircncia eacute uma propriedade do ceacuterebro mas se
vocecirc considerar propriedades incontroversas do ceacuterebro como peso forma
cor solidez etc ningueacutem diz que elas ldquosurgem dordquo [hellip] ou estatildeo ldquoaleacutemrdquo [hellip]
do ceacuterebro e somente num sentido especial algumas delas podem ser descritas
como ldquoemergentesrdquo [hellip] e certamente natildeo como ldquoemergentes dordquo [hellip] ceacuterebro
Uma corrente que se opocircs fortemente ao dualismo foi o behaviorismo
analiacutetico8 Muitos estudiosos consideram como marco da Filosofia da
Mente Contemporacircnea o livro de Gilbert Ryle (1970 p 11) Concept of
Mind publicado originalmente em 1949 que principia resumindo a
posiccedilatildeo a ser combatida o ldquomito de Descartesrdquo ou o ldquodogma do fantasma
na maacutequinardquo
8 Natildeo devemos confundi-lo com a corrente psicoloacutegica associada aos nomes de John Watson Ivan Pavlov e Burrhus Frederic Skinner Como esclarece Blackburn (1997 p 39) em vez de levar em consideraccedilatildeo a introspecccedilatildeo e a subjetividade o behaviorismo psicoloacutegico inicialmente se orientou pela perspectiva metodoloacutegica de mensuraccedilatildeo das causas comportamentais Posteriormente sobretudo com Skinner passou a vigorar o empreendimento de se gerir a accedilatildeo humana por meio de estiacutemulos e reforccedilos
80 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A doutrina oficial que vem principalmente de Descartes eacute qualquer coisa
como isto com as exceccedilotildees duvidosas dos idiotas e das crianccedilas de colo todo
ser humano tem um corpo e um espiacuterito Alguns prefeririam dizer que todo
ser humano eacute simultaneamente corpo e espiacuterito O seu corpo e o seu espiacuterito
estatildeo geralmente reunidos mas depois da morte do corpo o espiacuterito pode
continuar a existir e a funcionar
O intento de Ryle eacute imunizar todos contra o ldquopatoloacutegicordquo legado
cartesiano valendo-se de anaacutelises conceituais com o duplo objetivo de
criticar as operaccedilotildees realizadas pelos defensores da ldquodoutrina oficialrdquo e de
situar o conceito mental no tipo loacutegico adequado Com o intuito de ilustrar
sua argumentaccedilatildeo contra o dualismo ele daacute o seguinte exemplo de erro
categorial Se apoacutes termos apresentado a Reitoria as Unidades
Acadecircmicas as Faculdades o Restaurante Universitaacuterio e os Museus que
compotildeem a nossa instituiccedilatildeo o que responderiacuteamos ao estrangeiro que
persistisse perguntando pela localizaccedilatildeo da Universidade haja vista que
ele afirma ter visto somente os departamentos administrativos as salas de
aula e os aparelhos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica Ora diz Ryle (1970 p 16)
devemos mostrar que o nosso colega se equivoca ao natildeo observar que a
Universidade eacute constituiacuteda pela coordenaccedilatildeo conjunta dos oacutergatildeos
burocraacuteticos espaccedilos didaacuteticos laboratoacuterios etc que ele observou em sua
visita ao campus
O seu erro [do estrangeiro] assenta na suposiccedilatildeo inocente de que era correto
falar da Christ Church da Bodleian Library do Ashmolean Museum e da
Universidade como se a ldquoUniversidaderdquo significasse um membro extra da
classe da qual estas outras unidades satildeo membros Ele estava a situar
erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras instituiccedilotildees
pertencem
Consoante o behaviorista algo semelhante ocorre quando nos
emocionamos ao ler um poema sentimos dor de dente desejamos um
chocolate ou cremos na Biacuteblia tendo em conta que natildeo estariacuteamos nos
referindo a eventos mentais interiores mas tatildeo somente ao nosso
comportamento seja ele real ou potencial Eacute justamente por esse motivo
Maxwell Morais de Lima Filho | 81
que ele pretende preservar a equivalecircncia semacircntica quando traduz a
crenccedila de Tomeacute no Cristianismo nas seguintes descriccedilotildees
comportamentais
(i) Se lhe oferecerem de presente a Biacuteblia ou o Coratildeo ele optaraacute pelo primeiro
(ii) Se lhe perguntarem em qual livro Deus se revela ele responderaacute que eacute na Biacuteblia
(iii) Se lhe questionarem sobre a autoria dos Dez Mandamentos ele afirmaraacute que
foram escritos por Deus
(iv) Se houver oportunidade ele pregaraacute a mensagem biacuteblica
Uma criacutetica inicial a essa proposta teoacuterica se reflete no repuacutedio de
sermos reduzidos agrave pura e simples mecacircnica comportamental
desconsiderando-se para tal fim a totalidade dos fenocircmenos subjetivos e
qualitativos que constituem a rica vida mental que todos noacutes inclusive os
behavioristas experimentamos Em outras palavras haacute uma distinccedilatildeo de
tipo9 entre a crenccedila cristatilde e a observaccedilatildeo comportamental de Tomeacute Para
ser consistente essa anaacutelise deveria levar em consideraccedilatildeo a
indeterminaccedilatildeo e o nuacutemero potencialmente infinito de vias relacionadas agrave
crenccedila religiosa de Tomeacute e natildeo apenas os quatro condicionais listados
anteriormente
Esse tipo de exame tambeacutem padece de circularidade porque o
behaviorista deve lanccedilar matildeo de hipoacuteteses adicionais natildeo explicitadas para
sustentar que a crenccedila no Cristianismo se traduz comportamentalmente
na inclinaccedilatildeo de ser presenteado por uma Biacuteblia Caso Tomeacute possua dez
traduccedilotildees comentadas da Biacuteblia em diferentes liacutenguas seria provaacutevel que
ele preferisse ganhar o Coratildeo de presente ndash na verdade a lista de regalos
passiacuteveis de corroborar a crenccedila de Tomeacute eacute deveras extensa sendo muito
difiacutecil determinaacute-la precisamente A disposiccedilatildeo comportamental de
preferir a Biacuteblia tambeacutem assume sub-repticiamente que Tomeacute sabe e gosta
de ler o que obviamente natildeo eacute necessaacuterio Por fim querer ganhar uma
9 Searle (2010h p 337) realccedila essa dessemelhanccedila entre os fenocircmenos mentais conscientes e a anaacutelise comportamental a partir desse exemplo da dor gaacutestrica ldquoO fato de sentir essa dor eacute completamente diferente ndash aliaacutes um tipo de fato completamente diferente ndash de quaisquer fatos inclusive condicionais que digam respeito a meu comportamento Ter uma dor de estocircmago eacute uma coisa adotar este ou aquele tipo de comportamento adequado a uma dor de estocircmago eacute algo totalmente diferenterdquo
82 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Biacuteblia soacute faz sentido se Tomeacute acreditar que ela natildeo viraacute com paacuteginas em
branco que ela estaacute redigida em liacutengua compreensiacutevel que sua mensagem
natildeo foi corrompida por editores inescrupulosos etc
A tentativa de se explicar a crenccedila de Tomeacute no Cristianismo
(analysandum) atraveacutes de sua conduta de pregaccedilatildeo evangeacutelica (analysans)
eacute malograda porque o comportamento que pretende esclarecer o estado
psicoloacutegico eacute ele proacuteprio intencional10 Ou seja os movimentos corporais
de pegar a Biacuteblia e sair de porta em porta anunciando que Jesus eacute a nossa
salvaccedilatildeo e a soluccedilatildeo para todos os nossos problemas soacute podem ser
denominados accedilotildees se forem causados por intenccedilotildees que satildeo tatildeo mentais
quanto o que se pretende elucidar a crenccedila de Tomeacute Eacute guiado por linha
de raciociacutenio semelhante que Searle (2010h p 339) afirma que o
behaviorista estaria diante de um dilema pois ou ele considera que o
comportamento eacute intencional ou natildeo por um lado permaneceria o
elemento mental se se admitir que o comportamento eacute intencionalmente
causado por outro caso natildeo se defenda isso
temos de interpretar o comportamento como uma seacuterie de movimentos
corporais descritos tatildeo somente como movimentos corporais e nenhuma
anaacutelise dos enunciados sobre crenccedilas desejos e intenccedilotildees em funccedilatildeo de
enunciados sobre movimentos corporais jamais seraacute suficiente porque os
movimentos ainda natildeo satildeo accedilotildees humanas e a noccedilatildeo de um movimento
corporal em si mesmo eacute insuficiente para qualquer anaacutelise dos estados
mentais
Desse modo o filoacutesofo estadunidense reitera que soacute podemos
acreditar em algo ou desejarmos alguma coisa se tivermos uma Rede
(Network) com diversas crenccedilas e desejos Poreacutem como o conteuacutedo
intencional natildeo eacute autointerpretativo Searle (2010g p 249-50) postula que
a Rede necessita de um Pano de Fundo (Background)11 constituiacutedo por
habilidades preacute-intencionais
10 Consoante Leclerc (2015) Roderick Chisholm defendeu na deacutecada de 50 que eacute impossiacutevel transpormos o ciacuterculo das noccedilotildees intencionais haja vista que a intencionalidade eacute indefiniacutevel a partir de termos natildeo intencionais
11 Vimos que a intransponibilidade do ciacuterculo intencional eacute sustentada por Chisholm porque os termos natildeo intencionais satildeo inuacuteteis para definir a intencionalidade Apesar de reconhecer a importacircncia da Rede Searle (1995
Maxwell Morais de Lima Filho | 83
Todos os fenocircmenos intencionais quer sejam crenccedilas desejos esperanccedilas
medos ou outros pressupotildeem capacidades natildeo intencionais de background
para que possam funcionar Com isso quero dizer que os estados intencionais
somente determinam suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo e portanto somente
funcionam como estados intencionais se for pressuposto um conjunto de
capacidades que nos permitem aplicar os estados intencionais A
intencionalidade natildeo eacute por assim dizer autointerpretante ou autoaplicativa
[hellip] [O] ponto importante dessas habilidades de background eacute que elas
mesmas natildeo satildeo representacionais Natildeo consistem num conjunto de regras
crenccedilas ou outros tipos de representaccedilotildees
Nos anos 50 e 60 do seacuteculo XX pouco apoacutes a proposta behaviorista
de Ryle filoacutesofos como Herbert Feigl Ullin Thomas Place John Jamieson
Carswell Smart e David Malet Armstrong defenderam uma teoria da
identidade mente-ceacuterebro segundo a qual os estados mentais nada mais
satildeo do que estados fiacutesicos que ocorrem no sistema nervoso Portanto
estamos diante de um monismo fiacutesico que identifica ontologicamente o
domiacutenio psicoloacutegico ao neurobioloacutegico como ocorre na identificaccedilatildeo entre
a dor e a descarga de fibras C Em artigo publicado originalmente em 1956
Place (2002) defende a hipoacutetese cientiacutefica de que a consciecircncia eacute um
processo cerebral sem se comprometer com a suposiccedilatildeo adicional de que
a linguagem neurobioloacutegica sirva para descrever os sonhos as fantasias e
as sensaccedilotildees Eacute justamente porque a assunccedilatildeo da identidade mente-
ceacuterebro eacute anaacuteloga agravequela das Ciecircncias Naturais ndash que se reflete por sua
vez na ausecircncia de equivalecircncia semacircntica entre as descriccedilotildees dos
fenocircmenos fiacutesicos e mentais ndash que natildeo seria irracional se Royce afirmasse
p 198) recua um passo ao advogar que o Pano de Fundo preacute-intencional eacute a condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer estado intencional ldquoO Background eacute lsquopreacute-intencionalrsquo no sentido de que embora natildeo seja uma forma ou formas de Intencionalidade eacute natildeo obstante uma precondiccedilatildeo ou um conjunto de precondiccedilotildees de Intencionalidaderdquo Portanto se a definiccedilatildeo de intencionalidade empregada por Searle eacute circular natildeo deixa de ser verdade que ela se explica a partir do Pano de Fundo Ressaltamos que os obstaacuteculos impostos por determinadas praacuteticas humanas situadas podem ser transpostos devido ao compartilhamento de um Background profundo Eis dois exemplos do proacuteprio Searle (2006 p 277) ldquoDiferenccedilas de Backgrounds locais tornam difiacutecil a traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra a generalidade do Background profundo torna-a possiacutevel de qualquer modo Se vocecirc lecirc a descriccedilatildeo de um jantar festivo na casa dos Guermantes em Proust provavelmente deve achar alguns aspectos da descriccedilatildeo enigmaacuteticos Isso tem a ver com diferenccedilas de praacuteticas culturais locais Mas existem certas coisas que vocecirc pode dar por certas Por exemplo os participantes natildeo comem enfiando a comida em seus ouvidosrdquo
84 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que sente dor e que as suas fibras C natildeo disparam haja vista que o
enunciado ldquoRoyce estaacute com dorrdquo natildeo eacute sinocircnimo de ldquoas fibras C de Royce
estatildeo disparandordquo do mesmo modo que natildeo seria um absurdo declarar
que a aacutegua deste copo natildeo eacute composta por H2O
Como Searle defende que os fenocircmenos mentais satildeo causados e
realizados no sistema nervoso ele natildeo veria problema algum em localizaacute-
los espaacutecio-temporalmente nos processos cerebrais subjacentes desde que
levemos em conta que uns e outros satildeo ontologicamente distintos ou seja
que aqueles fenocircmenos possuem caracteriacutesticas intriacutensecas que os tornam
irredutiacuteveis a padrotildees sinaacutepticos estes sim descritiacuteveis a partir do
vocabulaacuterio neurocientiacutefico de terceira pessoa Dito isso vemos o porquecirc
de Searle (2010e p 129-30) criticar a identificaccedilatildeo ontoloacutegica do
fisicalismo redutivo
Assim quando o teoacuterico da identidade nos diz que os estados mentais satildeo
somente estados cerebrais haacute um modo de compreender essa tese que eacute
perfeitamente compatiacutevel com nossa pressuposiccedilatildeo de senso comum sobre o
caraacuteter intriacutenseco e irredutiacutevel da consciecircncia e de outras formas de
intencionalidade [hellip] Mas em geral natildeo eacute isso o que os teoacutericos da identidade
querem dizer Um exame cuidadoso dos textos [hellip] revela que em geral os
teoacutericos da identidade [hellip] acabam por negar a existecircncia das caracteriacutesticas
intrinsecamente mentais do mundo
Outra objeccedilatildeo eacute feita agrave contundente asserccedilatildeo de que os estados
mentais compartilhados por duas pessoas implicam que eles satildeo
necessariamente determinados por processos neurofisioloacutegicos de tipo
idecircntico Assim sendo os mesmos estados fiacutesicos devem ocorrer nos
ceacuterebros de Jacoacute e de Luiz para que eles compartilhem a crenccedila de que
Januaacuterio eacute o maior dos sanfoneiros Ora jaacute que somos cercados por
estruturas bioloacutegicas e por artefatos que satildeo multiplamente realizaacuteveis do
ponto de vista fiacutesico por que o mesmo natildeo ocorreria com os estados
mentais Em outras palavras se olhos asas reloacutegios e cadeiras satildeo
compostos e organizados fisicamente de mais de um modo por que algo
semelhante natildeo se daria com a mentalidade Destarte nada impede que a
Maxwell Morais de Lima Filho | 85
mesma crenccedila na grandiosidade musical de Januaacuterio seja realizada por
padrotildees neurocircnicos de tipo X no velho Jacoacute e de tipo Y em seu filho Searle
(2010h p 344) se vale de outros exemplos para corroborar a tese da
realizaccedilatildeo muacuteltipla do mental e para explicitar o que faz com que dois
estados psicoloacutegicos sejam do mesmo tipo
Assim vocecirc e eu podemos ter cada qual a mesma crenccedila de que estaacute nevando
sem que nossas neurofisiologias sejam necessariamente de tipo idecircntico assim
como meu carro e o seu podem ter cada qual um carburador embora o meu
seja de accedilo e o seu de latatildeo Mas entatildeo o que os estados mentais tecircm em
comum capaz de tornaacute-los de tipo idecircntico Creio que a resposta oacutebvia eacute que
eles satildeo de tipo idecircntico por causa de suas caracteriacutesticas mentais comuns
sejam elas caracteriacutesticas de consciecircncia da intencionalidade ou de ambas ou
ainda outras espeacutecies de caracteriacutesticas mentais
Aliaacutes foi motivado por esse tipo de criacutetica ao fisicalismo redutivo que
surgiu nos anos 60 a teoria funcionalista que talvez ainda hoje seja a
concepccedilatildeo de maior prestiacutegio acadecircmico De acordo com uma de suas
vertentes os fenocircmenos mentais podem ser produzidos artificialmente
pelos chips de siliacutecio de computador o que demonstraria a inexistecircncia de
um viacutenculo necessaacuterio entre ceacuterebros complexos e estados mentais Como
natildeo seriam essencialmente bioloacutegicos o aspecto relevante residiria no
papel funcional envolvido nas relaccedilotildees entre os proacuteprios estados mentais
bem como destes com as informaccedilotildees provenientes do ambiente e que
direcionam o comportamento Essa centralidade do papel funcional estaacute
por traacutes do pressuposto metodoloacutegico do teste de Turing (1950) de que se
uma maacutequina manifesta um comportamento linguiacutestico tatildeo complexo
quanto o do ser humano eacute porque nos eacute similar em inteligecircncia e
mentalidade
Com o fito de atacar esse pressuposto behaviorista do funcionalismo
e para asseverar que toda e qualquer maacutequina de Turing eacute incapaz de
compreender os siacutembolos que manipula Searle12 (1980a) propocircs o
12 Apresentamos o ataque de Searle ao funcionalismo computacional em Lima Filho (2010a)
86 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
experimento de pensamento do quarto chinecircs Em linhas gerais podemos
expor o famoso Gedankenexperiment do seguinte modo confinado em um
quarto Searle passa a receber folhas escritas em chinecircs liacutengua da qual ele
natildeo conhece um soacute ideograma e que eacute incapaz de falar quaisquer palavras
tambeacutem o fornecem um manual com regras escritas em inglecircs que lhe
permite relacionar pelo formato os siacutembolos recebidos com outras folhas
redigidas em chinecircs que ele passa por debaixo da porta Esse processo
ocorre repetidamente ndash recebimento do texto em chinecircs consulta ao
manual e devoluccedilatildeo do siacutembolo correspondente ndash e sem que o filoacutesofo se
aperceba disso o falante de chinecircs julga que estaacute entabulando uma
conversaccedilatildeo porque dele recebeu respostas satisfatoacuterias sobre o seu nome
a sua origem e a sua profissatildeo O ponto nevraacutelgico da argumentaccedilatildeo eacute que
a manipulaccedilatildeo simboacutelica natildeo eacute suficiente para a compreensatildeo semacircntica e
que o maacuteximo alcanccedilaacutevel por um programa de computador eacute a simulaccedilatildeo13
ndash mas natildeo a duplicaccedilatildeo ndash de estados mentais Eis como Searle (1998a p
38-9) posteriormente resume o seu argumento
1 Programas satildeo totalmente sintaacuteticos
2 As mentes tecircm uma capacidade semacircntica
3 A sintaxe natildeo eacute a mesma coisa que a semacircntica nem eacute por si soacute suficiente
para garantir um conteuacutedo semacircntico
Consequentemente programas natildeo satildeo mentes
Para golpear o cognitivismo ndash linha para a qual os processos
cognitivos satildeo inconscientes e computacionais ndash Searle propotildee um
argumento assentado na tese de que a computaccedilatildeo eacute relativa ao
observador e eacute exclusivamente sintaacutetica Consoante Moural (2003)
podemos resumi-lo nessas quatro asserccedilotildees
13 Analogamente Searle (2007 p 66) afirma que um programa computacional simulador da digestatildeo eacute incapaz de decompor fiacutesico-quimicamente um pedaccedilo de pizza ldquo[U]m computador realiza um modelo ou uma simulaccedilatildeo de um processo E a simulaccedilatildeo computacional de uma mente eacute como a simulaccedilatildeo computacional da digestatildeo Eu natildeo sei por qual motivo as pessoas cometem um erro tatildeo bobo Veja se fizermos uma simulaccedilatildeo computacional perfeita da digestatildeo ningueacutem poderia pensar lsquovamos comprar uma pizza e pocirc-la no computadorrsquo Eacute um modelo uma fotografia da digestatildeo Nos mostra que a estrutura formal de funcionamento de fato natildeo digere nada Isso eacute o que ocorre com um computador Um modelo computacional do que eacute apaixonar-se ler um romance ou embriagar-se natildeo se apaixona nem lecirc um romance nem se embriaga de fato Somente faz uma representaccedilatildeo dessas coisasrdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 87
(i) Por definiccedilatildeo computaccedilatildeo consiste em uma manipulaccedilatildeo formal de siacutembolos
(ii) No entanto como nem a sintaxe nem os siacutembolos satildeo definidos em termos fiacutesicos
natildeo podemos consideraacute-los intriacutensecos agrave Fiacutesica
(iii) Como o significado da sintaxe e dos siacutembolos soacute podem ser atribuiacutedos perante
um observador segue-se que o mesmo deva se dar com a computaccedilatildeo
(iv) Consequentemente a possibilidade de realizarmos uma interpretaccedilatildeo
computacional do ceacuterebro natildeo nos autoriza a conjecturar que esse oacutergatildeo seja
intrinsecamente um computador
A distinccedilatildeo capital que permeia esse argumento eacute aquela entre as
caracteriacutesticas que independem e as que dependem do observador14 como
o satildeo respectivamente a massa da moleacutecula de aacutegua e a funccedilatildeo
cronomeacutetrica do reloacutegio Com isso Searle (2002b) faz uma discriminaccedilatildeo
entre estados mentais humanos e aqueles atribuiacutedos ao computador o
estado de consciecircncia de Searle eacute intrinsecamente intencional porque
existe independentemente do que pensemos a seu respeito diversamente
dos estados mentais que outorgamos agrave maacutequina e que possuem uma
intencionalidade relativa ao observador15 Portanto o medo expresso por
14 Para Searle (1998a p 42) as Ciecircncias da Natureza se distinguem das Ciecircncias Sociais pelo estudo dessas caracteriacutesticas ldquoAs ciecircncias naturais lidam com essas propriedades da natureza que satildeo intriacutensecas ou independentes do observador no sentido de sua existecircncia natildeo depender do que pensamos sobre ela Exemplos dessas propriedades satildeo a massa a fotossiacutentese a carga eleacutetrica e a mitose As ciecircncias sociais em geral lidam com propriedades que satildeo dependentes do observador ou relativas ao observador no sentido de que sua existecircncia depende de como os seres humanos tratam usam ou ao menos pensam a respeito delas Exemplos tiacutepicos satildeo o dinheiro a propriedade e o casamentordquo
15 Estamos diante de uma intencionalidade intriacutenseca quando adicionamos mentalmente dois e dois e obtemos quatro jaacute quando expressamos esse caacutelculo pela linguagem falada ou escrita referimo-nos agrave intencionalidade derivada por fim temos tambeacutem a intencionalidade ldquocomo serdquo quando falamos que o gramado ou o carro estatildeo
sedentos Como adverte Searle (2010f p 189-90) a sede do gramado ou do automoacutevel natildeo eacute intencional mas tatildeo somente metafoacuterica ldquoa intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo eacute intencionalidade de modo nenhum Quando afirmo que um sistema tem uma intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo lhe atribuo intencionalidade Estou afirmando apenas que o sistema se comporta como se tivesse intencionalidade embora natildeo a tenha de fatordquo Como a intencionalidade intriacutenseca precede a linguagem poderiacuteamos encontraacute-la em bebecircs humanos e em outras espeacutecies animais Eacute nesse sentido que as carecircncias de aacutegua e de alimento causariam os primordiais desejos de beber e de comer como assinala Searle (2000 p 91-2) ldquoAs formas biologicamente mais primitivas de intencionalidade satildeo as formas de desejo que envolvem necessidades fiacutesicas como a fome e a sede Ambas satildeo intencionais porque ambas satildeo formas de desejo A fome eacute um desejo de comer a sede um desejo de beberrdquo Searle (2012 p 24) vai aleacutem e advoga que esses estados mentais preacute-linguiacutesticos satildeo indissociaacuteveis de suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo ldquoEssas formas preacute-linguiacutesticas de intencionalidade jaacute possuem algumas propriedades loacutegicas cruciais Porque percepccedilotildees intenccedilotildees crenccedilas desejos e assim por diante satildeo formas de intencionalidade elas trazem em si especificamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees de sucesso ou fracasso Por exemplo um animal faminto tem o desejo de comer e patologias agrave parte assim ele tem a capacidade de reconhecer quando esse desejo eacute satisfeito e quando natildeo o eacuterdquo No entanto essa alegada intrinsecalidade dos estados mentais eacute posta em duacutevida por Gauker (2012 p 154) ldquoO fato de que os bebecircs os animais natildeo humanos e os hominiacutedeos preacute-linguiacutesticos possuam estados intencionais se isso fosse um fato natildeo mostraria
88 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Hal 9000 quando David Bowman estava desativando seus processos
superiores natildeo passa de uma fobia metafoacuterica Para Searle (1980a) natildeo haacute
qualquer arbitrariedade no criteacuterio que se funda na intencionalidade
intriacutenseca para diferenciar a mentalidade da decisatildeo de Bowman do pavor
figurado de Hal 9000 se assim o fosse estaria subjugado a nosso bel-
prazer encarar os nossos semelhantes como zumbis e a estiagem como
mental
Os argumentos levantados por Searle de que a sintaxe eacute insuficiente
para a semacircntica e de que ela natildeo eacute intriacutenseca agrave Fiacutesica natildeo raras vezes tem
conduzido agrave interpretaccedilatildeo de que ele seja repulsivo ao projeto de um
ceacuterebro e de uma mente artificiais No entanto essa chave de leitura eacute
injusta porque ambos os argumentos do filoacutesofo estadunidense satildeo
voltados para o programa do computador ndash e natildeo para o hardware
Justamente por se apoiar nas Ciecircncias da Natureza Searle natildeo nega que
uma funccedilatildeo possa ser multiplamente realizada como eacute o caso do voo
executaacutevel bioloacutegica ndash insetos aves e morcegos ndash ou tecnologicamente ndash
balotildees aviotildees helicoacutepteros e foguetes Por mais distintas que sejam as asas
da mosca e as do 14-bis elas compartilham poderes causais que permitem
ao animal e ao aviatildeo sobrepujarem a forccedila da gravidade Ora se a
consciecircncia eacute uma caracteriacutestica sistecircmica do ceacuterebro e desejamos
produzi-la artificialmente basta que dupliquemos os poderes causais
desse oacutergatildeo Nas palavras de Searle (2000 p 56)
Quando digo que o ceacuterebro eacute um oacutergatildeo bioloacutegico e a consciecircncia um processo
bioloacutegico eacute claro que natildeo estou dizendo ou sugerindo que seria impossiacutevel
produzir um ceacuterebro artificial a partir de materiais natildeo bioloacutegicos que tambeacutem
pudessem ser causa da consciecircncia e sustentaacute-la [] O ponto que deve ser
enfatizado eacute que tal ceacuterebro artificial teria de reproduzir as verdadeiras causas
dos ceacuterebros humanos e animais para produzir estados de consciecircncia
internos qualitativos e subjetivos A produccedilatildeo de comportamentos similares
por si soacute natildeo seria suficiente
que a intencionalidade dos estados mentais eacute lsquointriacutensecarsquo em qualquer sentido mas mostraria que a capacidade para pensar com as propriedades semacircnticas natildeo depende da posse de uma linguagem ao contraacuterio de minha hipoacuteteserdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 89
Dessa maneira o autor drsquoA Redescoberta da Mente aceita uma versatildeo
bem mais branda da tese de realizaccedilatildeo muacuteltipla em comparaccedilatildeo com a que
eacute acatada pelos funcionalistas pois nem todo material seria capaz de
efetuar a funccedilatildeo em questatildeo Como Searle (1984) diz abertamente o
ceacuterebro eacute uma maacutequina viva e portanto a sua constituiccedilatildeo bioloacutegica eacute
relevante para a produccedilatildeo e para a realizaccedilatildeo da mente ou seja eacute de nosso
conhecimento que os padrotildees sinaacutepticos satildeo efetivos para a emergecircncia de
estados intencionalmente intriacutensecos Contudo diferentemente do que se
daacute com o voo a nossa atual ignoracircncia sobre os detalhes bioquiacutemicos e
fisioloacutegicos nos impede por enquanto de duplicar os estados mentais em
estruturas natildeo bioloacutegicas
Para fechar o nosso itineraacuterio pela Filosofia da Mente apresentamos
a seguir o fisicalismo eliminativista corrente defendida por Paul
Feyerabend Richard Rorty Patricia e Paul Churchland Diferentemente da
abordagem fisicalista de Feigl Place Smart e Armstrong o eliminativista
rejeita a identificaccedilatildeo entre os fenocircmenos neurofisioloacutegicos e os mentais
haja vista que estes uacuteltimos natildeo passam de ilusatildeo Para defender a tese do
irrealismo do mental e a sua necessaacuteria eliminaccedilatildeo teoacuterica o fisicalista
eliminativo lanccedila matildeo da seguinte analogia histoacuterica no tempo das
Inquisiccedilotildees sustentava-se a necessidade de caccedilar e de queimar na fogueira
a mulher que pactuava com Satanaacutes mas atualmente nenhuma pessoa
sensata admitiria a existecircncia de bruxas Essa mudanccedila de perspectiva se
daacute porque o progresso epistecircmico revelou a falsidade do conceito de bruxa
e o eliminou do arcabouccedilo terminoloacutegico da Ciecircncia como aconteceraacute ndash
alega Paul Churchland (2004 p 79) ndash com os termos da Psicologia
Popular
[N]atildeo podemos esperar que uma explicaccedilatildeo realmente adequada de nossa vida
interior feita pela neurociecircncia revele categorias teoacutericas que correspondam
exatamente agraves categorias do arcabouccedilo de senso comum [posiccedilatildeo anti-
reducionista] Dessa forma devemos esperar que o antigo arcabouccedilo seja
simplesmente eliminado e natildeo reduzido por uma neurociecircncia amadurecida
90 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Consoante Teixeira (2008) a Psicologia Popular eacute a teoria que nos
permite explicar o comportamento humano evocando conceitos como
crenccedila desejo e intenccedilatildeo Desse modo o avanccedilo neurocientiacutefico natildeo
acarretaraacute a reduccedilatildeo da Psicologia Popular pois natildeo haacute uma
correspondecircncia um-a-um entre essas duas aacutereas o que demonstraria a
necessidade de suprimir os termos psicoloacutegicos que representam de modo
distorcido os estados neurofisioloacutegicos e as causas do comportamento Por
conseguinte uma Neurociecircncia16 avanccedilada e precisa propiciaraacute
eliminaccedilotildees teoacutericas como a de algueacutem que mencione a ativaccedilatildeo de suas
fibras C em tal regiatildeo do ceacuterebro no lugar de falar que estaacute com dor como
expotildee Churchland (2004 p 82)
Nossas explicaccedilotildees sobre os comportamentos uns dos outros iratildeo recorrer a
coisas como nossos estados neurofarmacoloacutegicos nossa atividade neural em
aacutereas anatocircmicas especiacuteficas e a outros estados que forem relevantes para a
nova teoria Nossa introspecccedilatildeo individual tambeacutem seraacute transformada e
poderaacute ser profundamente aprimorada em razatildeo de um arcabouccedilo conceitual
mais penetrante e preciso com o qual ela teraacute de trabalhar []
Searle (2006) trata com sarcasmo os eliminativistas ao perguntar se
deveria beliscaacute-los para provar que satildeo conscientes e que sentem dor
advogando que o fato de os estados mentais dependerem ontologicamente
dos processos neurobioloacutegicos natildeo os tornam aparentes ou ilusoacuterios Em
outras palavras por mais que conheccedilamos todos os pormenores
bioquiacutemicos e fisioloacutegicos dos processos cerebrais isso natildeo baniraacute ndash nem
ontoloacutegica nem explicativamente ndash o niacutevel dos fenocircmenos psicoloacutegicos
Estes fenocircmenos inexistiriam se houvesse uma distinccedilatildeo entre a aparecircncia
e a realidade17 mas esse natildeo eacute o caso como pontua Searle (2000 p 59)
16 Rorty (1997 p 158) pinta o hipoteacutetico progresso neurocientiacutefico com essas tintas ldquoNoacutes esperamos que a fisiologia possa algum dia traccedilar um caminho a partir da distribuiccedilatildeo de descargas eleacutetricas em meu ceacuterebro ateacute as interfaces [neuromusculares] em minha garganta e por conseguinte nos viabilizar predizer elocuccedilotildees por sobre a base dos estados cerebraisrdquo
17 Em outro texto Searle (1998c p 224) faz a seguinte comparaccedilatildeo ldquoReduccedilotildees eliminatoacuterias exigem uma distinccedilatildeo entre a realidade e a aparecircncia Por exemplo o Sol parece se pocircr mas na realidade eacute a Terra que realiza o movimento de rotaccedilatildeo Mas vocecirc natildeo pode fazer este movimento para a consciecircncia porque no que diz respeito agrave consciecircncia a realidade eacute a aparecircncia Se conscientemente tenho a impressatildeo de ser consciente entatildeo sou conscienterdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 91
Natildeo podemos fazer uma reduccedilatildeo eliminatoacuteria da consciecircncia porque o padratildeo
das reduccedilotildees eliminatoacuterias eacute mostrar que o fenocircmeno reduzido eacute apenas uma
ilusatildeo No entanto no que diz respeito agrave consciecircncia a existecircncia da ldquoilusatildeordquo eacute
a proacutepria realidade Isso quer dizer que se me parece que estou consciente
entatildeo eu estou Natildeo haacute nada na consciecircncia aleacutem de uma sequumlecircncia de
ldquoaparecircnciasrdquo desse tipo A esse respeito a consciecircncia eacute diferente dos poentes
porque eu posso ter a ilusatildeo de que o sol estaacute se pondo por traacutes das montanhas
quando na verdade ele natildeo estaacute fazendo isso
Dessa maneira os processos neurofisioloacutegicos satildeo capazes de explicar
minuciosamente a causa da dor mas isso natildeo significa deixaacute-la de lado
como um conceito preacute-cientiacutefico muito pelo contraacuterio haja vista que a
sensaccedilatildeo dolorosa possui uma ontologia de primeira pessoa no sentido de
ser experienciada por um sujeito e de possuir um modo de existecircncia
qualitativo que a diferencia dos disparos neurocircnicos que a causam Essa
caracteriacutestica real e ineliminaacutevel da mentalidade eacute expressa por Searle
(1998b p 57-8) ao declarar que
a pura sensaccedilatildeo qualitativa de dor eacute uma propriedade do ceacuterebro bem
diferente das descargas neuronais que causam a dor Logo em se tratando de
descargas neuronais vocecirc pode obter uma reduccedilatildeo causal de dor mas natildeo
uma reduccedilatildeo ontoloacutegica Isto eacute vocecirc pode fornecer uma anaacutelise causal
completa da razatildeo de sentirmos dores mas isso natildeo mostra que as dores natildeo
existam realmente
Fazendo um apanhado geral do que apresentamos constatamos que
o filoacutesofo estadunidense critica severamente todas as principais correntes
recusando igualmente o dualismo a reduccedilatildeo ontoloacutegica e a eliminaccedilatildeo da
Psicologia Popular Para ele a criacutetica ao dualismo acabou jogando o bebecirc
junto com a aacutegua suja do banho pois os fenocircmenos mentais conscientes
foram descartados juntamente com a alma imaterial Eacute como se o pavor
pelo conceito de alma justificasse a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer
92 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
subjetividade18 do seio da natureza O polo oposto tambeacutem eacute desalentador
pois a defesa da mentalidade se faz agraves custas de uma consciecircncia natildeo fiacutesica
Searle (2006 p 23-4) pinta com essas tintas o quadro sinoacuteptico da
Filosofia da Mente
Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais que soam
ldquocartesianosrdquo porque parece que se aceitarmos os fatos teremos de aceitar
toda a metafiacutesica cartesiana Qualquer espeacutecie de mentalismo que reconheccedila
os fatos oacutebvios de nossa existecircncia eacute considerada automaticamente suspeita
[hellip] De um modo talvez mais exasperante ainda eles satildeo auxiliados nesse erro
por aqueles filoacutesofos que de bom grado reconhecem a existecircncia da consciecircncia
e assim fazendo supotildeem estar afirmando a existecircncia de algo natildeo fiacutesico
Ao recusar ambas as posiccedilotildees Searle (2006 p 26-7) pretende articular
uma concepccedilatildeo que natildeo apenas leve em consideraccedilatildeo a subjetividade do
mental mas que a fundamente nas Ciecircncias Naturais deixando de lado
quaisquer ldquoaparatos cartesianosrdquo haja vista que o mental eacute fiacutesico
[O] fato de uma caracteriacutestica ser mental natildeo implica que natildeo seja fiacutesica o fato
de uma caracteriacutestica ser fiacutesica natildeo implica que natildeo seja mental Revisitando
Descartes [] poderiacuteamos dizer natildeo somente ldquopenso logo existordquo e ldquosou um ser
pensanterdquo mas tambeacutem sou um ser pensante portanto sou um ser fiacutesicordquo
[]
Minhas proacuteprias concepccedilotildees natildeo se encaixam em nenhum dos roacutetulos
tradicionais mas para muitos filoacutesofos a ideia de que algueacutem possa defender
um ponto de vista que natildeo se encaixe nessas categorias parece incompreensiacutevel
Pior ainda talvez haacute diversos substantivos e verbos que parecem ter significados
claros como se realmente apresentassem objetos e atividades bem definidos ndash
ldquomenterdquo ldquoegordquo e ldquointrospecccedilatildeordquo satildeo exemplos oacutebvios
A concepccedilatildeo positiva de Searle (1980b p 455) ndash por ele denominada
de naturalismo bioloacutegico ndash surgiu pela primeira vez quando rebateu as
criacuteticas feitas a Mentes Ceacuterebros e Programas no artigo Intencionalidade
Intriacutenseca ocasiatildeo na qual comparou os estados mentais agraves propriedades
18 Para mais informaccedilotildees sobre o importante papel da subjetividade no naturalismo bioloacutegico consultar Lima Filho (2017c)
Maxwell Morais de Lima Filho | 93
de um pneu Na ocasiatildeo seu principal alvo era atacar o funcionalismo
computacional ao apontar as limitaccedilotildees intriacutensecas ao programa de
computador ao mesmo tempo em que destacava a relevacircncia do estofo
bioloacutegico para a mentalidade No entanto tambeacutem vislumbramos nesse
texto o seu repuacutedio ao irrealismo do mental propugnado pelos fisicalistas
redutivos e eliminativos e ao caraacuteter natildeo fiacutesico resguardado pelos dualistas
de substacircncia e de propriedade Natildeo consiste nenhuma surpresa que a
estrateacutegia ofensiva de Searle tenha gerado contra-ataques dos mais
variados vieses dualistas e fisicalistas os quais o impulsionaram em parte
a desenvolver cada vez mais a sua posiccedilatildeo ancorada em dois grandes
compromissos teoacutericos a saber a subjetividade e a biologicidade do
mental Os fenocircmenos mentais ndash ontologicamente subjetivos ndash satildeo
bioloacutegicos tanto na acepccedilatildeo evolutiva quanto na funcional De acordo com
esta uacuteltima os processos neurofisioloacutegicos causam e sustentam a
mentalidade a qual surgiu historicamente devido aos processos evolutivos
que atuaram sobre linhagens animais no decorrer das eras geoloacutegicas19
Referecircncias
ABRANTES Paulo Cesar Coelho T Nagel e os limites de um reducionismo fisicalista (uma
introduccedilatildeo ao artigo ldquoWhat is it like to be a batrdquo) Cadernos de Histoacuteria e Filosofia
da Ciecircncia Campinas v 15 n 1 janeirojunho p 223-44 2005
BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Traduccedilatildeo de Desideacuterio Murcho
Pedro Galvatildeo Ana Cristina Domingues Pedro Santos Clara Joana Martins e Antocircnio
Horta Branco Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997
CHANGEUX Jean-Pierre O homem neuronal Traduccedilatildeo de Artur Jorge Pires Monteiro
Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1985
CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia uma introduccedilatildeo contemporacircnea agrave filosofia
da mente Traduccedilatildeo de Maria Clara Cescato Satildeo Paulo Editora UNESP 2004
19 Expomos a concepccedilatildeo naturalista de Darwin e o pano de fundo cientiacutefico do naturalismo bioloacutegico em Lima Filho (2015a 2015b 2017a e 2017b)
94 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
COTTINGHAM John A filosofia de Descartes Traduccedilatildeo de Maria do Rosaacuterio Sousa
Guedes Lisboa Ediccedilotildees 70 1989
_____ Descartes a filosofia da mente de Descartes Traduccedilatildeo de Jesus de Paula Assis Satildeo
Paulo Editora UNESP 1999
DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Traduccedilatildeo de J Ginsburg e Bento Prado Juacutenior Satildeo Paulo
Nova Cultural 1996
_____ Meditaccedilotildees sobre filosofia primeira Traduccedilatildeo de Fausto Castilho Campinas
Editora da Unicamp 2004
GAUKER Christopher Sobre a alegada prioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem
In TSOHATZIDIS Savas (Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila
significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora
UNESP 2012 p 143-63
JACKSON Frank What Mary didnt know The Journal of Philosophy v 83 n 5 p 291-
5 1986
_____ Epiphenomenal qualia In HEIL John (Ed) Philosophy of mind a guide and
anthology Oxford University Press 2004 p 762-71
LECLERC Andreacute Intencionalidade In BRANQUINHO Joatildeo SANTOS Ricardo (Eds)
Compecircndio em linha de problemas de filosofia analiacutetica Lisboa Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa p 1-25 2015 Disponiacutevel em lt
httprepositorioulptbitstream10451200431leclerc_2015_intencionalidadep
dfgt Acesso em 25 jul 2017
LIMA FILHO Maxwell Morais de O experimento de pensamento do quarto chinecircs a criacutetica
de John Searle agrave inteligecircncia artificial forte Argumentos ndash Revista de Filosofia n 3
p 51-8 2010a
_____ O problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico o dilema entre
epifenomenalismo e sobredeterminaccedilatildeo Cadernos UFS Filosofia v 8 p 85-96
agodez 2010b
_____ Teoria atocircmica biologia evolutiva e consciecircncia In SOUZA Marcus Joseacute Alves de
LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs) Escritos de filosofia linguagem e
cogniccedilatildeo Maceioacute EDUFAL 2015a p 31-46
Maxwell Morais de Lima Filho | 95
_____ A criacutetica de Darwin ao argumento teleoloacutegico de Paley In MAIA Antonio Glaudenir
Brasil OLIVEIRA Geovani Paulino (Orgs) Filosofia religiatildeo e secularizaccedilatildeo
Porto Alegre Editora Fi 2015b p 84-108
_____ Pode-se estudar cientificamente a consciecircncia In ARAUacuteJO Arthur et al (Orgs)
Pragmatismo filosofia da mente e filosofia da neurociecircncia Satildeo Paulo
Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia (Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF)
2017a p 379-95 Republicado em SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO
Maxwell Morais de (Orgs) Escritos de filosofia II linguagem e cogniccedilatildeo Maceioacute
EDUFAL 2017b p 67-89
_____ Subjetividade ontoloacutegica no naturalismo bioloacutegico de John Searle In TEMPLE
Giovana C (Org) Subjetividade no pensamento do seacuteculo XX Curitiba Appris
Editora 2017c p 267-85
MOURAL Josef The chinese room argument In SMITH Barry (Ed) John Searle
Cambridge University Press 2003 p 214-60
PEREIRA Roberto Horaacutecio de Saacute Qualia In BRANQUINHO Joatildeo SANTOS Ricardo
(Eds) Compecircndio em linha de problemas de filosofia analiacutetica Lisboa Centro
de Filosofia da Universidade de Lisboa p 1-14 2013 Disponiacutevel em
lthttpcompendioemlinhaletrasulisboaptqualia-roberto-horacio-pereiragt
Acesso em 27 jun 2016
PLACE Ullin Thomas Is conciousness a brain process In CHALMERS David (ed)
Philosophy of mind classical and contemporary readings New YorkOxford
Oxford University Press 2002 p 55-60
RORTY Richard A filosofia e o espelho da natureza Traduccedilatildeo de Antocircnio Tracircnsito Rio
de Janeiro Relume Dumaraacute 1994
_____ Fisicalismo natildeo-redutivo In _____ Objetivismo relativismo e verdade escritos
filosoacuteficos volume 1 Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume
Dumaraacute 1997 p 157-72
RYLE Gilbert Introduccedilatildeo agrave psicologia o conceito de espiacuterito Traduccedilatildeo de M Luiacutesa
Nunes Lisboa Moraes Editores 1970
SEARLE John Minds brains and programs Behavioral and Brain Sciences v 3 n 3 p
417-24 1980a
96 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ Intrinsic intentionality reply to criticisms of Minds brains and programs
Behavioral and Brain Sciences v 3 n 3 p 450-6 1980b
_____ Mente ceacuterebro e ciecircncia Traduccedilatildeo de Artur Moratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1984
_____ Intencionalidade Traduccedilatildeo de Julio Fischer e Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo
Martins Fontes 1995
_____ A consciecircncia como um problema bioloacutegico In _____ O misteacuterio da consciecircncia
e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji
Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra 1998a p 29-45
_____ Francis Crick o problema da integraccedilatildeo e a hipoacutetese dos quarenta hertz In _____
O misteacuterio da consciecircncia e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers
Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra
1998b p 47-62
_____ Como transformar o misteacuterio da consciecircncia no problema da consciecircncia In _____
O misteacuterio da consciecircncia e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers
Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra
1998c p 201-26
_____ Mente linguagem e sociedade filosofia no mundo real Traduccedilatildeo de F Rangel
Rio de Janeiro Rocco 2000
_____ Filosofia contemporacircnea nos Estados Unidos In BUNNIN Nicholas TSUI-JAMES
Eric (Eds) Compecircndio de filosofia Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Ediccedilotildees Loyola 2002a p 1-23
_____ Twenty-one years in the chinese room In PRESTON John BISHOP Mark (Eds)
Views into the chinese room new essays on Searle and artificial intelligence New
York Oxford University Press 2002b p 51-69
_____ A redescoberta da mente Traduccedilatildeo de Eduardo Pereira Ferreira 2 ed Satildeo Paulo
Martins Fontes 2006
_____ Los haacutebitos del pensamiento critico Entrevista a John Searle Traduccioacuten de Edison
Otero Bello Cuadernos de Neuropsicologiacutea Valparaiso v 1 n 1 p 58-71 2007
Maxwell Morais de Lima Filho | 97
_____ O problema da consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de
Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010a p 1-19
_____ Como estudar cientificamente a consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010b p 21-50
_____ A consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira
Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010c p 51-92
_____ As mentes dos animais In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio
Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010d p 93-119
_____ A intencionalidade e seu lugar na natureza In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010e p 121-42
_____ A explicaccedilatildeo da cogniccedilatildeo In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio
Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010f p 171-210
_____ A intencionalidade individual e os fenocircmenos sociais na teoria dos atos de fala In
_____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo
Martins Fontes 2010g p 231-53
_____ A filosofia analiacutetica e os fenocircmenos mentais In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010h p 335-73
_____ O que eacute a linguagem algumas observaccedilotildees preliminares In TSOHATZIDIS Savas
(Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo
de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora UNESP 2012 p 17-51
_____ Por que eu natildeo sou um dualista de propriedades Traduccedilatildeo de Joseacute Renato Freitas
Recircgo amp Juliana de Orione Arraes Fagundes Filosofando Revista de Filosofia da
UESB Vitoacuteria da Conquista n 2 juldez p 104-14 2014
TEIXEIRA Joatildeo de Fernandes A mente segundo Dennett Satildeo Paulo Perspectiva 2008
TURING Alan Computing machinery and intelligence Mind v 59 n 236 p 433-60 1950
5
Da Natureza Humana
As Perspectivas Epistemoloacutegicas
de Piaget Chomsky e Foucault
Argus Romero Abreu de Morais 1
Consideraccedilotildees Iniciais
Em 1971 convidados pelo apresentador holandecircs Fons Elders para
um debate televisivo Noam Chomsky e Michel Foucault aceitaram
esclarecer suas perspectivas a respeito dos conceitos de natureza humana
justiccedila e poder (CHOMSKY 2014) Poucos anos apoacutes em 1975 Jean Piaget
e Noam Chomsky se reuniram com renomados pesquisadores do mundo
na Abadia de Royaumont na Franccedila para discutirem as questotildees
vinculadas agrave aquisiccedilatildeo e agrave aprendizagem da linguagem humana
(PIATELLI-PALMARINI 1983)
A nosso ver aproximar tais debates torna-se interessante por
permitir elucidar os pressupostos epistemoloacutegicos de autores acadecircmicos
tatildeo relevantes do seacuteculo XX e com isso demarcar as linhas de tensatildeo entre
seus campos e as escolhas teoacutericas das suas pesquisas Nesse sentido no
presente trabalho Chomsky funciona como uma espeacutecie de elo virtual
entre Foucault e Piaget os quais natildeo produziram um debate particular
Natildeo obstante entendemos que os apontamentos feitos por estes dois
1 Professor colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Cultura Educaccedilatildeo e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGCELUESB) e poacutes-doutorando no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Teoria Literaacuteria e Criacutetica da Cultura da Universidade Federal de Satildeo Joatildeo del-Rei (PROMELUFSJ) Email argusromeroyahoocombr
Argus Romero Abreu de Morais | 99
uacuteltimos teoacutericos durante a defesa de seus pilares conceituais permitem
contrastaacute-los sendo marcante a distinccedilatildeo entre ambos no que diz respeito
agrave gecircnese do conhecimento humano nos indiviacuteduos por consequecircncia agrave
Histoacuteria das Ciecircncias
Assim pretendemos colocar face a face os vieses da autorregulaccedilatildeo em
Piaget do inatismo da linguagem em Chomsky e de um certo empirismo
histoacuterico em Foucault Evidentemente cada um desses pensadores natildeo soacute
possui uma enorme produccedilatildeo teoacuterica sobre distintos temas acadecircmicos
como tambeacutem apresentou mudanccedilas de perspectiva nas deacutecadas seguintes
Apesar disso entendemos que os fundamentos epistecircmicos das suas aacutereas de
pesquisa natildeo se alteraram significativamente ao longo do tempo garantindo
certa coerecircncia aos seus projetos de estudo
Natildeo eacute nosso intuito portanto em um breve texto dar conta da
amplitude das contribuiccedilotildees desses pensadores seja pela nossa incapacidade
de cumprir com tal propoacutesito seja pelos limites impostos pelo nosso recorte
investigativo o qual prioriza avaliar os argumentos dos trecircs estudiosos em
torno da existecircncia ou natildeo de uma natureza humana Cumpre-nos destacar
que nos vinculamos agrave epistemologia da Anaacutelise do Discurso Francesa (AD) a
qual pressupotildee a determinaccedilatildeo histoacuterica das formaccedilotildees sociais humanas
inclusive a do proacuteprio pensamento Foucault eacute considerado um dos
principais expoentes desse campo de estudos sendo por conseguinte a
partir do seu olhar discursivo que concluiremos o presente escrito tecendo
comentaacuterios criacuteticos aos demais domiacutenios Antes disso apresentaremos a
perspectiva piagetiana em seguida a abordagem chomskyana
A Funccedilatildeo Sensoacuterio-Motora como Fundamento da Formaccedilatildeo da Linguagem2
Eacute verdade que a auto-regulaccedilatildeo eacute em parte inata mas a tiacutetulo mais de
funcionamento do que de estrutura
Jean Piaget
2 Almejando tornar o texto mais fluido colocaremos as citaccedilotildees diretas ndash ipsis litteris ndash que fundamentam os nossos raciociacutenios em notas de rodapeacute Ressaltamos todavia que utilizaremos um nuacutemero expressivo de notas permitindo o acesso do leitor aos argumentos dos proacuteprios debatedoresautores Esperamos com isso possibilitar o esclarecimento e aprofundamento teoacutericos que o tema exige
100 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Segundo Piaget os estudos que definem a aprendizagem humana
pela associaccedilatildeo entre percepccedilotildees dos indiviacuteduos e objetos se mostraram
ineficientes na tentativa de explicar a formaccedilatildeo do conhecimento humano
(criacutetica ao meacutetodo empirista) Para o epistemoacutelogo esse modelo teoacuterico
tem por principal falha natildeo considerar a atividade do sujeito na construccedilatildeo
do proacuteprio conhecimento engendrado por dois processos
interdependentes o processo de assimilaccedilatildeo no qual os indiviacuteduos
assimilariam novos objetos a esquemas previamente conformados nas
suas estruturas cognitivas e no sentido inverso o processo de
acomodaccedilatildeo no qual os antigos esquemas se acomodam de acordo com as
particularidades dos novos objetos produzindo com isso novos esquemas
(PIATELLI-PALMARINI 1983)3
Busca-se assim definir os constructos cognitivos como frutos de
uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o ser e o mundo desconstruindo a
necessidade de um a priori universal inato ndash criacutetica ao Gerativismo ndash em
prol de um pensamento dinacircmicosistecircmico Desse modo a um soacute tempo
Piaget renega o empreendimento empirista segundo o qual o sujeito se
ajusta ao mundo pelas experiecircncias (o sujeito seria uma taacutebula rasa) e
descarta a empreitada gerativista chomskyana na qual a forma do sujeito
eacute preacutevia agrave experiecircncia e agrave forma do mundo (PIATELLI-PALMARINI 1983)4
Consoante Piaget apenas o funcionamento da inteligecircncia humana eacute
hereditaacuterio sendo essa definida como o mecanismo capaz de gerar
3 Ao criticar o Empirismo Behaviorista campo teoacuterico tambeacutem renegado por Chomsky Piaget destaca ldquoNenhum conhecimento se deve somente agraves percepccedilotildees pois estas satildeo sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de accedilotildees O conhecimento procede pois da accedilatildeo e toda a accedilatildeo que se repete ou se generaliza por aplicaccedilatildeo a novos objetos gera por isso mesmo um lsquoesquemarsquo ou seja uma espeacutecie de conceito praacutexico A ligaccedilatildeo fundamental constitutiva de todo o conhecimento natildeo eacute portanto uma simples associaccedilatildeo entre objetos mas a assimilaccedilatildeo dos objetos a esquemas desse indiviacuteduo Esse processo prolonga aliaacutes diversas formas de lsquoassimilaccedilotildeesrsquo bioloacutegicas das quais a assimilaccedilatildeo cognitiva eacute um caso particular enquanto processo funcional de integraccedilatildeo Em contrapartida quando os objetos satildeo assimilados aos esquemas de accedilatildeo haacute a obrigaccedilatildeo de uma acomodaccedilatildeo agraves particularidades desses objetos (cf os lsquoaccommodatsrsquo fenotiacutepicos em biologia) e essa acomodaccedilatildeo resulta de dados exteriores logo da experiecircnciardquo (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor)
4No dizer de Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor) ldquoCinquenta anos de experiecircncias ensinaram-nos que natildeo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observaccedilotildees Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas soacute o funcionamento da inteligecircncia eacute hereditaacuterio e soacute gera estruturas mediante uma organizaccedilatildeo de accedilotildees sucessivas exercidas sobre objetosrdquo
Argus Romero Abreu de Morais | 101
continuamente estruturas conceituais atraveacutes de operaccedilotildees sobre os
objetos A seu ver assim como a Psicanaacutelise de Jung o projeto gerativista
se equivoca ao confundir as estruturas gerais do espiacuterito com a existecircncia
de estruturas inatas base da suposiccedilatildeo da linguagem como faculdade
hereditaacuteria alocada no ceacuterebro humano Segundo aponta eacute possiacutevel a
existecircncia das primeiras sem que haja as segundas
Definida como construtivista a Epistemologia Geneacutetica piagetiana
expotildee aleacutem do argumento da confusatildeo entre universalidade e inatismo
dois motivos principais para negar a hipoacutetese nativista do Gerativismo
primeiro na forma como estaacute posta a Gramaacutetica Universal (GU) supotildee
que a linguagem humana seria resultado de mutaccedilotildees exclusivas agrave espeacutecie
humana sem que consiga contudo dar explicaccedilotildees plausiacuteveis sobre o(s)
porquecirc(s) desse privileacutegio segundo conseguir-se-ia chegar agraves mesmas
conclusotildees de existecircncia de estruturas universais caso se concebesse a
linguagem como produto de um processo de autorregulaccedilatildeo dispensando
com isso os problemas dos universais modulares de Chomsky (PIATELLI-
PALMARINI 1983)
A autorregulaccedilatildeo funciona portanto como o conceito-chave do
Construtivismo na medida em que eacute o mecanismo responsaacutevel tanto pela
construccedilatildeo humana do conhecimento quanto pela organizaccedilatildeo da
realidade natildeo caoacutetica do mundo Ambos tecircm em comum o fato de se
disporem em forma loacutegico-matemaacutetica Ademais diferentemente da
recursividade algoriacutetmica tal como proposta por Chomsky o pensamento
sistecircmico de Piaget sugere que o retorno agraves estruturas cognitivas de base
natildeo ocorre sobre as regras iniciais como se os componentes primeiros
fossem estaacuteveis na relaccedilatildeo entre o ser e o mundo5
5 Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 83) expressa do seguinte modo seu pensamento sistecircmico ldquoA auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio do organismo limita-se em geral e normalmente a conservar um certo estado de equiliacutebrio e em caso de desvio ou de nova formaccedilatildeo a reconduzi-lo ao estado inicial Enquanto que pelo contraacuterio a auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio dos comportamentos impele incessantemente o organismo o sujeito se se trata de comportamento cognitivo para novos avanccedilos O organismo fisioloacutegico natildeo tem razatildeo de espeacutecie alguma para variar [] A conservaccedilatildeo eacute a norma suprema para o equiliacutebrio fisioloacutegico Ao passo que pelo contraacuterio quando se aborda o terreno do comportamento este persegue dois objetivos o primeiro eacute a extensatildeo do meio superar o meio no qual o organismo estaacute atualmente mergulhado por exploraccedilotildees e pesquisas em novos meios e o segundo o reforccedilo dos poderes do organismo sobre o meiordquo
102 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Para Piaget haacute a superaccedilatildeo contiacutenua do modelo antecedente pelos
modelos subsequentes na mente da crianccedila que embora mais complexos
estavam presentes no anterior como possibilidade ndash latente ndash de
existecircncia e que quando concretizados superam o anterior englobando-
o a saber sensoacuterio-motor de 0 a 1824 meses periacuteodo que antecede a
proacutepria linguagem preacute-operatoacuterio de 162 anos a 78 anos periacuteodo
marcado pelo desenvolvimento das representaccedilotildeessiacutembolos o
operatoacuterio-concreto de 78 anos a 1112 anos periacuteodo da construccedilatildeo
loacutegica e por fim operatoacuterio-formal de 1112 anos em diante periacuteodo em
que a crianccedila eacute capaz de raciociacutenios hipoteacutetico-dedutivos (PIATELLI-
PALMARINI 1983)6
Logo todo sistema se torna subsistema de um novo sistema isto eacute uma
subestrutura da nova estrutura organizadora seguindo um movimento em
direccedilatildeo agrave maior complexidade No caso do pensamento humano quanto
mais proacuteximo da organizaccedilatildeo loacutegica do real melhor o sistema recriado pelas
suas estruturas intelectivas Nesse vieacutes supotildee-se que o ceacuterebro humano seja
capaz de reproduzir internamente a mesma complexidade que o mundo
produz de forma dessubjetivada externamente Isto eacute concluiacutedas as etapas
de amadurecimento cognitivo no indiviacuteduo este seria capaz de reproduzir
ainda que inconscientemente o mesmo niacutevel de complexidade das estruturas
do mundo na forma de conhecimento (matemaacutetico por excelecircncia)
(PIATELLI-PALMARINI 1983)7
Destarte conforme o epistemoacutelogo suiacuteccedilo tanto o pensamento
humano como as ideias cientiacuteficas parecem funcionar por meio da
6 No que diz respeitos agraves etapas de maturaccedilatildeo do conhecimento humano Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 40) especifica ldquoEm primeiro lugar um periacuteodo sensoacuterio-motor anterior agrave linguagem vecirc constituir-se uma loacutegica das accedilotildees (relaccedilotildees de ordem concatenaccedilatildeo de esquemas intersecccedilotildees estabelecimentos de correspondecircncia etc) fecunda em descobertas e mesmo invenccedilotildees (objetos permanentes organizaccedilatildeo do espaccedilo causalidade etc) Dos 2 aos 7 anos haacute uma conceptualizaccedilatildeo das accedilotildees logo representaccedilotildees com descoberta de funccedilotildees entre as co-variaccedilotildees de fenocircmenos identidades etc mas ainda sem operaccedilotildees reversiacuteveis nem conservaccedilotildees Estas duas uacuteltimas constituem-se ao niacutevel das operaccedilotildees concretas (7-10 anos) com lsquoagrupamentosrsquo logicamente estruturados mas ainda ligados agrave manipulaccedilatildeo de objetos Finalmente por volta dos 11-12 anos constitui-se uma loacutegica proposicional hipoteacutetico-dedutiva sem combinatoacuterio lsquoconjunto de partesrsquo grupos de quaternidade etcrdquo
7 A respeito da relaccedilatildeo entre conhecimento e realidade Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 81) assevera ldquoRecuso-me terminantemente por minha parte a pensar que as estruturas matemaacutetico-loacutegicas tivessem uma origem aleatoacuteria elas nada tecircm de fortuito natildeo eacute por seleccedilotildees de sobrevivecircncia que puderam constituir-se mas por uma adequaccedilatildeo propriamente dita e detalhada agrave realidaderdquo
Argus Romero Abreu de Morais | 103
acumulaccedilatildeo de saberes No primeiro caso atraveacutes da capacidade loacutegico-
matemaacutetica ndash capacidade racional ndash de interagir com o ambiente os
indiviacuteduos adquirem estruturas de comportamento ou morfoloacutegicas via
fenoacutetipo que ainda desprovidas de hereditariedade passam a modificar o
proacuteprio genoma humano de modo que a mudanccedila nos niacuteveis inferiores
incorre por consequecircncia nos niacuteveis superiores do meio epigeneacutetico Essa
aquisiccedilatildeo de ldquofenocoacutepiasrdquo seria de acordo com Piaget a responsaacutevel por
selecionar as variaccedilotildees ou mutaccedilotildees no proacuteprio genoma passando a serem
hereditaacuterias Isso explicaria no seu dizer o modo pelo qual a proacutepria
linguagem teria evoluiacutedo na espeacutecie humana8
No segundo caso pela forma como a realidade parece se organizar
por leis que em uacuteltima instacircncia seguem a loacutegica matemaacutetica Associada
agrave pureza das formas a praacutetica cientiacutefica seria a principal responsaacutevel por
intermediar a relaccedilatildeo entre o homem e o mundo criando instrumentais
teoacutericos que possam fazer com que aquele compreenda e transforme o seu
habitat Ademais como vimos o processo de desenvolvimento da
linguagem na crianccedila repetiria com alta semelhanccedila a evoluccedilatildeo das
proacuteprias descobertas cientiacuteficas (PIATELLI-PALMARINI 1983)9
Ao sugerir uma oacutetica sistecircmica para a construccedilatildeo do conhecimento
Piaget avanccedila agrave sua maneira na proposta de um sujeito processual
dinacircmico em detrimento da imutabilidade do sujeito cartesiano em
8 O conceito de fenocoacutepia eacute um dos principais vetores do debate Piaget-Chomsky Piaget (apud PIATELLI-
PALMARINI 1983 p 81-2) explica tal categoria da seguinte forma ldquoFenocoacutepia eacute um processo bioloacutegico em que certos comportamentos (eacute sobretudo vaacutelido no domiacutenio dos comportamentos) ou entatildeo uma certa forma ou estrutura morfoloacutegica satildeo primeiramente adquiridos pelo fenoacutetipo mas sem hereditariedade O fenoacutetipo pelo contraacuterio modifica o meio interior e modifica os niacuteveis superiores pelo meio epigeneacutetico e entatildeo as variaccedilotildees ou as mutaccedilotildees que podem produzir-se no genoma seratildeo selecionadas natildeo pelo meio exterior mas por esse meio interior ou epigeneacutetico que vai canalizaacute-las na mesma direccedilatildeo da conduta jaacute adquirida pelo fenoacutetipo por outras palavras haveria uma reconstruccedilatildeo geneacutetica ou gecircnica de uma aquisiccedilatildeo feita pelo fenoacutetipordquo
9 Sobre o tema Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 48) conclui ldquoPara periacuteodos mais vastos da histoacuteria eacute evidente que natildeo se encontra um paralelismo estaacutegio por estaacutegio mas eacute possiacutevel encontrar mecanismos comuns [] Ora deparamo-nos com um processo anaacutelogo [agrave histoacuteria da geometria ocidental] embora em escala reduzida nas crianccedilas as quais comeccedilam naturalmente pelo intrafigural mas descobrem por volta dos 7 anos que para determinar um ponto num plano natildeo basta uma medida sendo precisas duas que estejam dispostas de maneira ortogonal A essa etapa lsquointerfiguralrsquo (necessaacuteria tambeacutem para a construccedilatildeo de horizontais) sucede aquela que podemos denominar lsquotransfiguralrsquo em que as propriedades a descobrir natildeo podem ler-se numa uacutenica figura mas requerem uma deduccedilatildeo e um caacutelculo as curvas mecacircnicas os movimentos relativos etcrdquo
104 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Chomsky10 o qual antecede a experiecircncia Desse modo por um lado sua
perspectiva de geraccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da linguagem a partir dos
significantes sensoacuterio-motores ndash associaccedilatildeo de objetos a esquemas de accedilatildeo
ndash o opotildee ao modo pelo qual Chomsky entende o ldquonuacutecleo fixordquo da
linguagem por outro ao prescindir da opacidade do mundo em relaccedilatildeo agrave
linguagem bem como das rupturas e contradiccedilotildees advindas da histoacuteria
contrasta indiretamente sua teoria com a perspectiva do pensamento
sustentada por Foucault
O Algoritmo eacute o Sujeito
Se qualquer coisa fosse possiacutevel entatildeo nada seria possiacutevel
Noam Chomsky
Para Chomsky (1979) o ceacuterebro humano eacute arquitetado por diferentes
subsistemas inatos em interaccedilatildeo limitada os quais decorrem de distintos
processos evolutivos no Homo sapiens A linguagem seria uma dessas
faculdades isto eacute um subsistema da inteligecircncia humana que permite a
interface com o moacutedulo conceptual-intencional (semacircntico-pragmaacutetico) e
o perceptual-articulatoacuterio (sensoacuterio-motor) Sendo a forma da linguagem
restrita evolutivamente agraves formas representacionais possiacuteveis no ceacuterebro
humano pode-se adquirir apenas o que eacute biologicamente previsto11
Nesse vieacutes o empreendimento gerativista se baseia em pelo menos
trecircs hipoacuteteses importantes para as Ciecircncias Cognitivas em particular no
que toca agrave Linguiacutestica (I) a estrutura representacional do pensamento
humano eacute preacutevia a toda experiecircncia do corpo de modo que a linguagem
10 Sobre esse toacutepico Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 45) destaca ldquoMas o que os inatistas parecem esquecer de maneira surpreendente eacute que existe um mecanismo tatildeo geral quanto a hereditariedade e que num sentido ateacute a comanda eacute a auto-regulaccedilatildeo a qual desempenha um papel em todas as escalas desde o genoma e um papel tanto mais importante quanto mais se avizinha dos niacuteveis superiores e do comportamento A auto-regulaccedilatildeo cujas raiacutezes satildeo evidentemente orgacircnicas eacute assim comum aos processos vitais e mentais e suas accedilotildees tecircm aleacutem disso a grande vantagem de ser diretamente controlaacuteveis portanto eacute nessa direccedilatildeo e natildeo na da simples hereditariedade que conveacutem buscar a explicaccedilatildeo bioloacutegica das construccedilotildees cognitivas tanto mais que pelo jogo das regulaccedilotildees de regulaccedilotildees a auto-regulaccedilatildeo eacute por sua proacutepria natureza eminentemente construtivista (e dialeacutetica)rdquo
11 Para aprofundar essas questotildees sugerimos a leitura de Chomsky (2006 2008) e de Berwick e Chomsky (2017) Utilizaremos algumas passagens dessas obras no presente texto
Argus Romero Abreu de Morais | 105
deve ser explicada com relaccedilatildeo agrave heranccedila bioloacutegica da espeacutecie humana (II)
a linguagem humana eacute constituiacuteda por um conjunto de algoritmos ndash regras
de formaccedilatildeo ndash implementados no nosso ceacuterebro os quais fundariam o
ldquoestado inicial S0 geneticamente determinadordquo12 tambeacutem conhecido como
Gramaacutetica Universal (GU) a qual conteacutem os princiacutepios pelos quais pode-
se adquirir uma dada liacutengua natural ndash condicionada agrave experiecircncia humana
ndash ateacute chegar a um ldquoestado estacionaacuteriordquo (steady state) (III) a Linguiacutestica
deve se formalizar de modo a explicar como um indiviacuteduo eacute capaz de gerar
um nuacutemero infinito de frases em sua liacutengua vernaacutecula a partir de um
conjunto limitado de regras sintaacuteticas (infinitude discreta) em vista disso
a teoria chomskyana eacute chamada de Gramaacutetica Gerativa13
Se tanto Chomsky como Piaget parecem concordar com a existecircncia
de um ldquonuacutecleo fixordquo da linguagem o linguista norte-americano se afasta
do bioacutelogo suiacuteccedilo ao responder as duas principais criacuteticas piagetianas ao
seu modelo teoacuterico quais sejam (a) a inexplicabilidade das mutaccedilotildees na
espeacutecie humana responsaacuteveis por lhe dotar dessas estruturas inatas (b) a
consideraccedilatildeo da inteligecircncia sensoacuterio-motora na formaccedilatildeo da inteligecircncia
simboacutelica seria tatildeo eficiente quanto a hipoacutetese do inatismo na explicaccedilatildeo
da formaccedilatildeo desse ldquonuacutecleo fixordquo
12 Consoante Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoO desenvolvimento dessa pessoa (em um ambiente natural) efetua-se a partir do estado inicial S0 geneticamente determinado passa por uma sequecircncia de estados S1 S2 e atinge finalmente um lsquoestado estacionaacuteriorsquo (steady state) S8 o qual soacute parece entatildeo modificar-se de maneira secundaacuteria (digamos por acreacutescimo de vocabulaacuterio novo) O estado estacionaacuterio eacute alcanccedilado numa idade relativamente fixa aparentemente na puberdade ou um pouco antesrdquo
13 De acordo com Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoEle [investigador independente] abordaraacute ou deveria abordar o estudo das estruturas cognitivas como eacute o caso da linguagem humana de uma forma anaacuteloga agravequela como estudaria um oacutergatildeo do corpo ndash o olho ou o coraccedilatildeo por exemplo ndash a fim de determinar (I) as suas caracteriacutesticas num dado indiviacuteduo (II) suas propriedades gerais invariantes de uma espeacutecie agrave outra abstraccedilatildeo feita de todo o deacuteficit flagrante (III) seu lugar num sistema de estruturas desse tipo (IV) o curso do seu desenvolvimento no indiviacuteduo em questatildeo (V) o fundamento geneticamente determinado desse desenvolvimento (VI) os fatores que deram origem a esse oacutergatildeo no decorrer da evoluccedilatildeordquo No que concerne aos aspectos matemaacuteticos dos estudos da mente humana Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 2014 p 16) complementa ldquoEntendo por isso [teoria matemaacutetica da mente] simplesmente uma teoria abstrata articulada com precisatildeo e formulada com clareza que tenha consequecircncias empiacutericas que nos permita saber se a teoria estaacute certa ou errada ou se estaacute no caminho errado ou certo E que ao mesmo tempo tenha as propriedades da ciecircncia matemaacutetica isto eacute as propriedades do rigor e da precisatildeo e uma estrutura que nos permita deduzir conclusotildees a partir de hipoacuteteses e assim por dianterdquo Por fim Berwick e Chomsky (2017 p 108) esclarecem o que entendem por infinitude discreta ldquoDiscreta porque haacute frases de cinco palavras e frases de seis palavras mas nenhuma frase de cinco palavras e meia infinita porque natildeo haacute [virtualmente] uma frase que seja a frase mais longa da liacutenguardquo
106 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A esse respeito Chomsky responde que apesar de haver brechas na
teoria evolutiva no que concerne ao entendimento da seleccedilatildeo natural em
relaccedilatildeo ao corpo humano natildeo haacute outra compreensatildeo possiacutevel para
considerar a constituiccedilatildeo dos seus oacutergatildeos Nesse sentido considera-se que
a estrutura interna dos distintos oacutergatildeos do organismo bem como seu
desenvolvimento e funcionamento satildeo independentes das experiecircncias
ontogeneacuteticas do ser Isso o impede de concordar com a hipoacutetese das
fenocoacutepias a qual sugere que estruturas adquiridas poderiam ser
absorvidas pelo genoma
Como universalizar no desenvolvimento dos indiviacuteduos algo
adquirido Essa eacute uma questatildeo que de acordo com Chomsky natildeo pode
ser resolvida pelo mecanismo construtivo da autorregulaccedilatildeo o qual natildeo
limitaria o nuacutemero de estados possiacuteveis na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro A
soluccedilatildeo seria considerar que a mente se reduz causalmente ao ceacuterebro
Ademais a derivaccedilatildeo do sistema simboacutelico do estaacutegio sensoacuterio-motor na
crianccedila e a sua estabilizaccedilatildeo via processo de autorregulaccedilatildeo seriam
insuficientes para explicar o caraacuteter especiacutefico desse moacutedulo da
linguagem suas regras limites e relaccedilotildees com os demais aparatos da
inteligecircncia humana14
Chomsky (1977) relembra o curioso fato de tanto ele quanto Foucault
terem conseguido aproximar as suas opiniotildees acerca do tema da ldquonatureza
14 No dizer de Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 51) ldquoSe eacute verdade que ignoramos completamente como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias dotaram a espeacutecie humana da capacidade especiacutefica de aprender uma linguagem humana eacute igualmente verdadeiro que tambeacutem ignoramos como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias conduziram ao desenvolvimento das estruturas particulares do olho dos mamiacuteferos ou do coacutertex cerebral Natildeo concluiacutemos portanto
que essas estruturas em sua natureza fundamental no indiviacuteduo que chegou agrave maturidade satildeo determinadas por interaccedilatildeo com o meio ambiente []rdquo Berwick e Chomsky (2017 p 104 Itaacutelico dos autores) detecircm-se exclusivamente sobre o fato de a linguagem humana ser exclusiva agrave nossa espeacutecie e de sua breve existecircncia ser possiacutevel dentro de uma teoria evolucionista que considere aleacutem dos processos seletivos e adaptativos claacutessicos as mutaccedilotildees e os efeitos estocaacutesticos da Biologia Moderna ldquoDe maneira completamente desconhecida nossos antepassados desenvolveram conceitos humanos Em algum momento no passado muito recente ao que parece algum tempo antes de 80 mil anos atraacutes se pudermos julgar a partir de nossos representantes simboacutelicos indiviacuteduos em um pequeno grupo de hominiacutedeos na Aacutefrica Oriental sofreram uma pequena mudanccedila bioloacutegica que favoreceu o surgimento da operaccedilatildeo Merge ndash uma operaccedilatildeo que toma conceitos humanos como aacutetomos computacionais [leacutexico] e produz expressotildees estruturadas que sistematicamente interpretadas pelo sistema conceitual fornecem uma rica linguagem do pensamento [] A inovaccedilatildeo teve vantagens oacutebvias e se disseminou pelo pequeno grupo Em algum estaacutegio posterior a linguagem do pensamento interna estava ligada ao sistema sensoacuterio-motor []rdquo De acordo com essa abordagem a linguagem emerge como ldquoferramentardquo para o pensamento (foco na internalizaccedilatildeo) e natildeo para a comunicaccedilatildeo (foco na externalizaccedilatildeo) garantindo agravequeles que a possuem as vantagens da abstraccedilatildeo inferecircncia interpretaccedilatildeo organizaccedilatildeo da accedilatildeo e do planejamento em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que natildeo a possuem
Argus Romero Abreu de Morais | 107
humanardquo enquanto que o mesmo natildeo ocorreu com relaccedilatildeo agravequele
relacionado ao ldquoaspecto poliacutetico do saberrdquo A seu ver isso pode ser
explicado pela seguinte metaacutefora ldquoQuanto ao conceito de natureza
humana pareceu-me que cavaacutevamos a mesma montanha a partir de
direccedilotildees opostasrdquo (CHOMSKY 1977 p 78-9)
Embora seja difiacutecil supor um consenso entre o pesquisador norte-
americano defensor do inatismo da linguagem e o filoacutesofo francecircs um
dos principais nomes da empreitada filosoacutefica do ldquodescentramento do
sujeitordquo o primeiro supotildee que no fim das contas isso eacute possiacutevel pelo fato
de eles se deterem sobre as mesmas questotildees embora partindo de pontos
diferentes Para Chomsky (1977) a pesquisa cientiacutefica eacute devedora de dois
aspectos 1) as propriedades constituintes do espiacuterito e 2) as condiccedilotildees
sociais e intelectuais que possibilitam a emergecircncia e a consolidaccedilatildeo dos
saberes em um dado periacuteodo histoacuterico Natildeo se trataria de excluir um ou
outro pois ambos estatildeo relacionados Ele se deteria sobre o primeiro
abordando os processos de aquisiccedilatildeo e de desenvolvimento da linguagem
nos indiviacuteduos enquanto Foucault priorizaria a anaacutelise das condiccedilotildees
histoacutericas que possibilitam a conformaccedilatildeo social do conhecimento em
meio agraves relaccedilotildees de saber-poder (CHOMSKY 1977)15
15 Apesar de essa argumentaccedilatildeo parecer dirimir as distinccedilotildees epistemoloacutegicas dos autores via complementaridade o vieacutes chomskyano prioriza sempre os argumentos relacionados agraves estruturas cerebrais humanas em detrimento do vieacutes sociocultural foucaultiano inclusive quando tratam dos paracircmetros de cientificidade na produccedilatildeo do conhecimento humano como nos deixa entrever o seguinte raciociacutenio ldquoOra quando por felicidade acontece de algum aspecto da realidade conter a propriedade de uma das estruturas existentes em nossa mente entatildeo temos um
exemplo do conhecimento Isso quer dizer que afortunadamente a estrutura da nossa mente e a estrutura de algum aspecto da realidade coincidem o bastante para que possamos desenvolver um conhecimento inteligiacutevel Eacute exatamente essa limitaccedilatildeo inicial que existe em nossa mente quanto a certo tipo de conhecimento possiacutevel que proporciona a enorme riqueza e criatividade do conhecimento cientiacuteficordquo (CHOMSKY 2014 p 34) A ldquocoincidecircncia suficienterdquo entre as propriedades da mente e as propriedades do mundo parece curiosamente aproximar Chomsky de Piaget ou pelo menos do que o linguista norte-americano denomina de ldquodoutrinas do referencialismordquo abrindo a nosso ver uma possiacutevel contradiccedilatildeo teoacuterica com as seguintes passagens ldquoOs siacutembolos da linguagem humana e do pensamento satildeo muito diferentes [em relaccedilatildeo ao dos chimpanzeacutes] Seu uso natildeo estaacute automaticamente condicionado por estados emocionais e eles natildeo dependem de objetos independentes da mente ou eventos no mundo externo Para a linguagem e o pensamento ao que parece natildeo haacute uma relaccedilatildeo de referecircncia no sentido de Frege Peirce Tarski Quine e da filosofia contemporacircnea da linguagem e da menterdquo (BERWICK CHOMSKY 2017 p 102 Itaacutelico dos autores) Pouco depois Berwick e Chomsky (2017 p 103 Itaacutelicos dos autores) redefinem a referecircncia como um ldquoideal normativordquo para a ciecircncia ldquoPara a ciecircncia o conceito de referecircncia no sentido teacutecnico eacute um ideal normativo esperamos que os conceitos inventados de foacuteton ou de sintagma verbal se refiram a alguma coisa real dono mundo E eacute claro que o conceito de referecircncia eacute muito bom para o contexto para o qual foi inventado na loacutegica moderna para os sistemas formais em que a relaccedilatildeo de referecircncia eacute estipuladardquo Resta-nos perguntar qual o paracircmetro para
108 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Se Chomsky recorre a Descartes para estabelecer parte dos
fundamentos filosoacuteficos do Gerativismo notadamente no que concerne
ao entendimento da relaccedilatildeo entre sujeito cognoscente e objeto
cognosciacutevel16 pauta-se no corte copeacuternico-galileano da fundaccedilatildeo da ciecircncia
moderna para definir o modelo hipoteacutetico-dedutivo na pesquisa
linguiacutestica17 Logo o problema do conhecimento no sujeito eacute tambeacutem o
problema do que pode ser conhecido no mundo almejando compreender
tanto como as estruturas cognitivas humanas permitem o desvendamento
das estruturas da realidade vivenciada como a melhor forma de organizar
as primeiras no intuito de desenvolver programas investigativos
sistemaacuteticos Esse problema epistemoloacutegico eacute transversal a Piaget
Chomsky e Foucault em suas empreitadas teoacutericas de modo que eacute nesse
ponto em que suas distintas teorias sobre a formaccedilatildeo do ser tocam no
entendimento da Histoacuteria das Ciecircncias englobando a constituiccedilatildeo dos
campos disciplinares a validade das proposiccedilotildees cientiacuteficas e a
transformaccedilatildeo dos seus pressupostos ao longo do tempo
distinguir quais conceitos coincidem com a realidade e quais natildeo Quais os limites do imaginaacuterio humano em relaccedilatildeo ao simboacutelico e ao real
16 Nesse ponto Chomsky (2008 p 28) por vezes se ancora em Descartes Kant e Leibniz aproximando suas contribuiccedilotildees filosoacuteficas daquelas de Franccedilois Jacob e Jacques Monod ndash tambeacutem presentes no debate Piaget-Chomsky ndash para o entendimento da neurofisiologia da linguagem ldquoAcho que Monod estaacute certo ao comentar que lsquoessas descobertas [sobre um sistema analiacutetico primitivo em animais natildeo-humanos] apoiam num sentido novo as teses de Descartes e Kant contrariamente ao empirismo radical que tem dominado a ciecircncia por dois seacuteculos e que lanccedila suspeitas sobre qualquer hipoacutetese que postule a natureza inata das formas de conhecimentorsquo Ateacute onde sabemos os animais aprendem de acordo com um programa determinado geneticamente Natildeo haacute razatildeo para duvidar que isto seja verdade tambeacutem no que se refere lsquoagraves categorias fundamentais do conhecimento humanorsquo []rdquo Sobre o papel da experiecircncia na aprendizagem lembra ldquoQue a experiecircncia seja um requisito para colocar em funcionamento estruturas inatas ou para ativar um sistema de ideias inatas eacute algo admitido de modo bastante expliacutecito por Descartes
Leibniz e outros como parte de teorias que dificilmente podem ser consideradas lsquoempiristasrsquo []rdquo (CHOMSKY 2008 p 32-3) Em outra passagem afirma ldquoA ideia eacute lsquoinato agrave mentersquo no sentido em que Descartes argumentou que lsquoa ideia de um triacircngulo verdadeirorsquo eacute inatardquo (CHOMSKY 2008 p 48)
17 Sobre a importacircncia do corte copeacuternico-galileano para o estabelecimento do meacutetodo cientiacutefico moderno e consequentemente para a formaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Chomsky (2006 p 121) ressalta ldquoO que foi notaacutevel com respeito a Galileu e considerado muito ofensivo na eacutepoca foi que ele rejeitou muitos dados Ele estava disposto a dizer lsquoVejam se os dados refutam a teoria os dados provavelmente estatildeo erradosrsquo E os dados que descartou natildeo eram insignificantes Por exemplo ele defendia a tese de Copeacuternico mas natildeo era capaz de explicar porque os corpos natildeo se desprendiam da Terra se a Terra estaacute girando por que tudo natildeo estaacute solto no espaccedilordquo Em seguida complementa ldquoBem tudo isso eacute parte do que vocecirc poderia chamar de lsquoestilo galileanorsquo dedicaccedilatildeo agrave busca do entendimento natildeo apenas do registro O registro dos fenocircmenos em si eacute insignificante [] [] O reconhecimento de que esse eacute o caminho que a ciecircncia deve seguir se quisermos buscar o entendimento [] eacute um passo bastante grande e que tem muitas partes como a estrateacutegia galileana de descartar fenocircmenos recalcitrantes quando isso implicar um aumento de compreensatildeo a maior preocupaccedilatildeo poacutes-newtoniana com a inteligibilidade das teorias do que com o mundo e assim por dianterdquo (CHOMSKY 2006 p 125-6)
Argus Romero Abreu de Morais | 109
Para Foucault (CHOMSKY 2014) o problema da perspectiva
argumentativa de Chomsky (1977) estaria em natildeo reconhecer o fato de que
os lados da montanha natildeo podem ser separados de forma estanque pondo
o indiviacuteduo-sujeito de um lado e a constituiccedilatildeo histoacuterica do saber de
outro Isso ocasionaria um vieacutes metafiacutesico na explicaccedilatildeo da subjetividade
humana a qual poderia transformar sem ser transformada De certo
modo de tatildeo racionalista o vieacutes chomskyano entraria no campo do
idealismo rompendo com o vieacutes materialista da anaacutelise teoacuterica Tomando
por base esse raciociacutenio perguntamo-nos os domiacutenios histoacutericos do saber
possibilitam a constituiccedilatildeo e a emergecircncia das propriedades constituintes
do espiacuterito em um dado indiviacuteduo Passaremos a essa questatildeo na seccedilatildeo
seguinte
Pensamento e Discurso
E se o intelecto fosse uma estrutura complexa muacuteltipla e natildeo individual natildeo
lsquosujeita ao sujeitorsquo que produzisse resultados autecircnticos
Michel Foucault
O projeto filosoacutefico foucaultiano se interessa pelo entendimento
daquilo que ele chama de saber discursivo de modo a estabelecer uma
perspectiva da Histoacuteria das Ciecircncias ou das Ideias que natildeo se atenha agrave
criatividade centrada no indiviacuteduo no sujeito falante e no cientista assim
como na continuidade cumulativa do conhecimento Destarte o que se
estabelece como verdadeiro em cada periacuteodo histoacuterico depende da
maneira como uma dada sociedade organiza a validade ndash inclusive a
cientificidade ndash de determinados dizeres e por consequecircncia exclui a de
outros criando mecanismos sociais de controle do que se pode ou deve
dizer sobre um dado objeto
Para Foucault a liacutengua como sistema de signos criado socialmente
conforme definida por Saussure (2006) natildeo se reduz ao discurso
possuindo uma ordem simboacutelica proacutepria com sua loacutegica e suas regras
Consoante o linguista suiacuteccedilo a liacutengua seria uma forma sendo equivocado
110 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
consideraacute-la como uma substacircncia visto que como fato social ela
funciona tambeacutem como instituiccedilatildeo estabelecendo normas classificaccedilotildees e
nomenclaturas Ela seria aleacutem disso o principal sistema organizador da
linguagem humana sendo o signo a junccedilatildeo de um conceito (significado) a
uma imagem acuacutestica (significante) ambos psiacutequicos e em relaccedilatildeo
negativa com o mundo em si O valor de um dado signo se daacute por oposiccedilatildeo
aos demais maneira pela qual estabelece suas relaccedilotildees no sistema
linguiacutestico
Segundo Foucault (2008) a liacutengua natildeo se materializa no vaacutecuo pois
para que possa produzir sentido eacute recortada pela funccedilatildeo discursiva um
modo histoacuterico de organizaacute-la em zonas do conhecimento atribuindo-lhe
conceitos isto eacute objetos Liacutengua e discurso se atravessam pela funccedilatildeo
enunciativa18 constituindo os limites da cogniccedilatildeo humana Tratar-se-ia
portanto natildeo do pensamento do sujeito mas do pensaacutevel no sujeito natildeo
do dizer do falante mas do diziacutevel pelo falante os quais necessitam de preacute-
formaccedilotildees do saber histoacuterico para que possam constituir os estados
mentais e as possibilidades de fala nos indiviacuteduos19 Natildeo haacute assim
anterioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem sob pena de o
18 Nesta seccedilatildeo em alguns momentos remeteremos aos raciociacutenios de Foucault (2008) como forma de aprofundar sua perspectiva e instrumentais teoacutericos os quais natildeo satildeo trabalhados precisamente em Chomsky (2014) Sobre a singularidade do enunciado em relaccedilatildeo agraves demais categorias de estudos da linguagem Foucault (2008 p 103 Itaacutelicos nossos) esclarece ldquoUm enunciado natildeo tem diante de si (e numa espeacutecie de conversa) um correlato - ou uma ausecircncia de correlato assim como uma proposiccedilatildeo tem um referente (ou natildeo) ou como um nome proacuteprio designa um indiviacuteduo (ou ningueacutem) Estaacute antes ligado a um lsquoreferencialrsquo que natildeo eacute constituiacutedo de lsquocoisasrsquo de lsquofatosrsquo de lsquorealidadesrsquo ou de lsquoseresrsquo mas de leis de possibilidade de regras de existecircncia para os objetos que aiacute se encontram nomeados designados ou descritos para as relaccedilotildees que aiacute se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condiccedilatildeo o campo de emergecircncia a instacircncia de diferenciaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou dos
objetos dos estados de coisas e das relaccedilotildees que satildeo postas em jogo pelo proacuteprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitaccedilatildeo do que daacute agrave frase seu sentido agrave proposiccedilatildeo seu valor de verdaderdquo
19 Sobre o assunto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 23 Itaacutelicos nossos) destaca ldquoQuando estudamos a histoacuteria do conhecimento percebemos que existem duas linhas gerais de anaacutelise de acordo com uma delas deve-se demonstrar como sob que condiccedilotildees e por que razotildees o intelecto se modifica no que diz respeito a suas regras formadoras sem passar por um lsquoinventorrsquo que descobre a verdade e de acordo com a outra deve-se demonstrar como o funcionamento das regras de um intelecto pode produzir num indiviacuteduo conhecimento novo e ineacutedito Aqui meu objetivo junta-se com meacutetodos imperfeitos e de uma forma bem inferior ao projeto do sr Chomsky ao explicar o fato de que algumas poucas regras ou elementos precisos totalidades desconhecidas que nunca foram nem produzidas podem ser elucidadas pelos indiviacuteduos Para resolver este problema o sr Chomsky tem de reintroduzir o dilema do sujeito no campo da anaacutelise gramatical Para resolver um problema anaacutelogo no campo da histoacuteria com o qual me encontro envolvido eacute preciso fazer o oposto de certo modo introduzir o ponto de vista do intelecto de suas regras de seus sistemas de suas transformaccedilotildees de totalidades no jogo do conhecimento individual Tanto em um como no outro caso o problema da criatividade natildeo pode ser resolvido da mesma maneira ou melhor natildeo pode ser formulado nos mesmos termos dada a condiccedilatildeo das disciplinas em cujo interior ele eacute colocadordquo
Argus Romero Abreu de Morais | 111
primeiro funcionar como uma instacircncia imaterial pura sem
temporalidade nem espacialidade
Sendo a linguagem uma produccedilatildeo social anterior ndash externalizada ndash
aos indiviacuteduos (seres orgacircnicos) deve-se considerar que as formas
simboacutelicas satildeo as responsaacuteveis pela instituiccedilatildeo do sujeito (aquele que
concretiza o enunciado) natildeo sendo os primeiros a dizerem o que dizem
natildeo satildeo tambeacutem o locus da gecircnese semacircntica Engajar-se numa situaccedilatildeo
de produccedilatildeo de sentidos eacute necessariamente posicionar-se ndash ou ser
posicionado ndash de acordo com as regras enunciativas vivenciadas e
institucionalizadas em sociedade Os enunciados representam as regras
historicizadas da forma de pensar e natildeo o revelar da intencionalidade e
do conhecimento em si por vezes tidos como a priori universais em
relaccedilatildeo agravequelas20 Logo como emergecircncia das organizaccedilotildees histoacutericas do
pensamento em distintas praacuteticas sociais o sujeito irrompe fragmentado
visto que sua internalidade decorre das descontinuidades dos saberes que
lhe atravessam natildeo sendo possiacutevel encontrar sua essecircncia nem na
interioridade do espiacuterito (FOUCAULT 2008) O sujeito torna-se portanto
uma instacircncia simboacutelica fugidia e clivada uma forma natildeo uma substacircncia
Agora pode-se compreender com mais clareza o motivo pelo qual
Foucault (CHOMSKY 2014) sustenta que a competecircncia natildeo eacute inata assim
como as regras do pensamento humano natildeo satildeo matemaacuteticas As
regularidades se devem aos sistemas enunciativos e estes satildeo submetidos
agraves contradiccedilotildees histoacutericas decorrentes das diversas formas de organizaccedilatildeo
dos homens em sociedade A proacutepria verdade sobre um objeto portanto
20 No que concerne agrave criatividade na linguagem conceito central na abordagem chomskyana Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 27 Itaacutelicos nossos) afirma ldquoO que de fato existe satildeo criaccedilotildees possiacuteveis inovaccedilotildees possiacuteveis Em termos de linguagem ou de conhecimento soacute se pode criar algo novo aplicando determinado nuacutemero de regras que definiratildeo a aceitabilidade ou a gramaticalidade dessas afirmaccedilotildees ou que definiratildeo no caso do conhecimento o caraacuteter cientiacutefico das afirmaccedilotildeesrdquo Em seguida acrescenta ldquoTambeacutem natildeo vejo problema em dizer que essas regras devem permitir que compreendamos aquilo que eacute falado ou pensado por esses indiviacuteduos Mas dizer que essas regulamentaccedilotildees estatildeo conectadas como precondiccedilatildeo da existecircncia agrave mente humana ou [agrave] sua natureza eacute algo difiacutecil de aceitar para mim Parece-me que antes de chegar a esse ponto ndash e seja como for estou me referindo apenas ao conhecimento ndash devemos reinseri-las no acircmbito de outras praacuteticas humanas como a economia a tecnologia a poliacutetica a sociologia que podem servir-lhes como condiccedilotildees de formaccedilatildeo de modelos de lugar de surgimento etc Gostaria de saber por que natildeo se pode descobrir o sistema de regularidade de limitaccedilatildeo ndash que torna a ciecircncia possiacutevel ndash em outro lugar mesmo fora da mente humana nos sistemas sociais nas relaccedilotildees de produccedilatildeo na luta de classes etcrdquo (FOUCAULT apud CHOMSKY 2014 p 36)
112 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
estaria submetida agrave temporalidade da histoacuteria e natildeo a uma descoberta
apesar da histoacuteria Assim em uacuteltima instacircncia a verdade estaria
condicionada agrave historicidade das ideias visto que a veracidade de um dado
referente decorre dos regimes de verdade os quais satildeo criados e
reproduzidos pelos grupos e instituiccedilotildees sociais bem como pelas relaccedilotildees
de forccedila instituiacutedas entre eles em cada sociedade (FOUCAULT 2008)
Para o filoacutesofo a proacutepria noccedilatildeo de ldquonatureza humanardquo natildeo se
configuraria como um conceito cientiacutefico funcionando mais como uma
espeacutecie de ldquoindicador epistemoloacutegicordquo que organiza distintas incursotildees
cientiacuteficas ao longo do seacuteculo XX21 Nesse sentido podemos entender que em
uma abordagem discursiva da relaccedilatildeo pensamentolinguagemmundo a
proacutepria forma deve ceder espaccedilo ao funcionamento22 Isso significa que
Foucault almeja desconstruir a psicologia interna dos sujeitos nos seguintes
termos constituiccedilatildeo social da linguagem (externalismo em oposiccedilatildeo ao
internalismoinatismo) rarr regras de enunciaccedilatildeo histoacutericas rarr
discursividades rarr pensamento rarr fala rarr condiccedilotildees de enunciaccedilatildeo rarr
sujeito do discurso (subjetividade imanente agrave linguagem em oposiccedilatildeo agrave
subjetividade transcendente) rarr praacutetica discursiva (FOUCAULT 2008)
A singularidade de uma produccedilatildeo discursiva decorre do fato de a
liacutengua(gem) por consequecircncia o proacuteprio pensamento soacute se materializar
em uma dada praacutetica constrangida por possibilidades que natildeo satildeo da sua
proacutepria ordem23 A infinidade de possibilidades para a realizaccedilatildeo de um
21 Ao comentar sobre a ldquonatureza humanardquo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 8 Itaacutelicos nossos) pondera ldquoNatildeo foi estudando a natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutaccedilatildeo consonantal que Freud descobriu
os princiacutepios da anaacutelise dos sonhos ou que os antropoacutelogos culturais descobriram as estruturas dos mitos Tenho a impressatildeo de que na histoacuteria do conhecimento a ideia de natureza humana desempenhou principalmente o papel de um indicador epistemoloacutegico [semelhante ao ideal normativo de Berwick e Chomsky (2017)] para designar certos tipos de discurso relacionados ou contraacuterios agrave teologia agrave biologia ou agrave histoacuteria Para mim seria difiacutecil ver nisso um conceito cientiacuteficordquo
22 Sobre esse aspecto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 36) pontua ldquoTalvez a diferenccedila entre o sr Chomsky e eu seja que quando fala de ciecircncia ele provavelmente estaacute pensando na organizaccedilatildeo formal do conhecimento enquanto eu estou falando do conhecimento em si ou seja eu penso no conteuacutedo de diversos conhecimentos que se encontram dispersos numa sociedade especiacutefica que permeiam a sociedade e que se afirmam como o fundamento da educaccedilatildeo das teorias das praacuteticas etcrdquo
23 Segundo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 21 Itaacutelicos nossos) ldquoO que me preocupa eacute a substituiccedilatildeo das transformaccedilotildees do intelecto pela histoacuteria das descobertas do conhecimento Desse modo eu tenho ao menos aparentemente uma atitude completamente diferente da do sr Chomsky a propoacutesito da criatividade porque para mim a questatildeo eacute eliminar o dilema do sujeito cognoscente enquanto para ele a questatildeo eacute permitir que o dilema do sujeito falante reapareccedila Poreacutem se ele o fez reaparecer se ele o descreveu eacute porque tem condiccedilotildees de fazecirc-lo Jaacute faz
Argus Romero Abreu de Morais | 113
enunciado natildeo representa a sua aleatoriedade pois esse gozaria de uma
caracteriacutestica semelhante agrave linguagem em Chomsky tendendo agrave raridade
das suas regras A diferenccedila entre o algoritmo no Gerativismo e a funccedilatildeo
enunciativa na perspectiva discursiva de Foucault eacute que esta uacuteltima se
constitui externamente ao espiacuterito sendo adquirida pelas experiecircncias em
sociedade Essa espeacutecie de empirismo histoacuterico natildeo se associa ao
comportamentalismo skinneriano dado que natildeo se funda na
transparecircncia da relaccedilatildeo entre o sistema perceptual e o mundo e na
consequente abstraccedilatildeo das relaccedilotildees dos objetos pela induccedilatildeo direta A
linguagem eacute opaca ndash indeterminada ndash em sua estrutura fundamental
sendo o sujeito sua consequecircncia
Eacute nesse ponto que Chomsky pode ter visto semelhanccedila entre a sua
abordagem e a de Foucault de modo que o filoacutesofo francecircs natildeo abandona
necessariamente as capacidades da inteligecircncia humana apenas se opotildee agrave
reduccedilatildeo dos conceitos a sistemas loacutegicos a priori no espiacuterito Ambos
parecem concordar que a linguagem funda um limite do possiacutevel no ser
considerando-a como instacircncia que aponta recursivamente para si mesma
e que demarca os estados finitos do dizer e de suas propriedades de
encadeamento diferentemente do sujeito tendencialmente onipotente
piagetiano e de seu ajuste em relaccedilatildeo agraves estruturas loacutegicas do mundo
Por fim podemos concluir que Chomsky e Foucault satildeo
antirreferencialistas na medida em que negam a relaccedilatildeo direta entre
palavra e objeto24 Opotildeem-se contudo na associaccedilatildeo ao estruturalismo
saussureano para o qual a liacutengua eacute uma entidade coletiva fundada em uma
espeacutecie de contrato social e natildeo um objeto bioloacutegico internalizado como
pretende o Gerativismo Em semelhanccedila com Piaget para Foucault
(2008) o sujeito natildeo eacute uma preacute-formaccedilatildeo do espiacuterito pois se constitui na
relaccedilatildeo dinacircmica entre estruturas simboacutelicas natildeo-inatas e experiecircncias em
sociedade embora segundo o estudioso francecircs a gecircnese deva ceder
muito tempo que os linguistas tecircm analisado a linguagem como um sistema que possui valor coletivo [dentre os quais Saussure] O intelecto como uma soma coletiva de regras que possibilitam que tais conhecimentos sejam produzidosem determinado periacuteodo mal foi estudado ateacute agorardquo
24 Ver aparente paradoxo em Chomsky na nota 15
114 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
espaccedilo agrave singularidade os universais semacircnticos agraves contingecircncias o
indiviacuteduo agrave subjetividade e a loacutegica matemaacutetica agrave dinacircmica histoacuterica Em
siacutentese Foucault sustenta que tanto o pensamento humano quanto os
sistemas de pensamento se organizam pela descontinuidade das ideias
frutos da emergecircncia de possiacuteveis histoacutericos e de horizontes de validade
dos conhecimentos25
Consideraccedilotildees Finais
Cada praacutetica teoacuterica constroacutei os seus limites e as suas potencialidades
dentro de um domiacutenio mais vasto dos saberes Tais diaacutelogos natildeo satildeo
desinteressados pois propotildeem construir ou desconstruir pontes do
conhecimento autorizar ou desautorizar o olhar do outro definir enfim
a si e ao outro enquanto campo do saber No que concerne a este trabalho
retomamos os debates entre Piaget Chomsky e Foucault para demonstrar
que a AD natildeo estaacute alheia aos aspectos cognitivos dos sujeitos apenas os
incorpora a uma perspectiva de historicidade radical da linguagem Pode-
25 No dizer de Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 32 Itaacutelicos do autor) ldquoExiste haacute muito tempo a ideia de que as ciecircncias e o conhecimento seguiam certa linha de lsquoprogressorsquo obedecendo ao princiacutepio de lsquocrescimentorsquo e ao princiacutepio de convergecircncia de todos os tipos de saber [] Cada nova versatildeo torna o conhecimento completamente diferente em suas funccedilotildees em sua organizaccedilatildeo em suas relaccedilotildees internas O que se tem aiacute eacute um princiacutepio de divergecircncia muito mais do que de crescimento Eu diria antes que existem muitas maneiras diferentes de tornar possiacuteveis simultaneamente alguns tipos de conhecimento Portanto existe sempre de certo ponto de vista um excesso de informaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos possiacuteveis sistemas em determinado periacuteodo o que faz com que eles sejam conhecidos dentro de seus limites mesmo em sua deficiecircncia o que significa que natildeo se consegue perceber sua criatividade E de outro ponto de vista o do historiador existe um excesso uma proliferaccedilatildeo de sistemas para uma pequena quantidade de informaccedilatildeo daiacute a ideia amplamente difundida de que o que determina o movimento na histoacuteria da
ciecircncia eacute a descoberta de novos fatosrdquo Eacute notoacuteria a proximidade entre a perspectiva foucaultiana de saber descontinuidade e acontecimento discursivo na Histoacuteria das Ciecircncias e aquela de paradigma descontinuidade e revoluccedilatildeo cientiacutefica desenvolvida por Kuhn (1998 [1962] p 20-1) como podemos notar a seguir ldquoPreocupado com o desenvolvimento cientiacutefico o historiador parece entatildeo ter duas tarefas principais De um lado deve determinar quando e por quem cada fato teoria ou lei cientiacutefica contemporacircnea foi descoberta ou inventada De outro lado deve explicar os amontoados de erros mitos e supersticcedilotildees que inibiram a acumulaccedilatildeo mais raacutepida dos elementos constituintes do moderno texto cientiacutefico [] Contudo nos uacuteltimos anos alguns historiadores estatildeo encontrando mais e mais dificuldades para preencher as funccedilotildees que lhe satildeo prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulaccedilatildeo [] Talvez a ciecircncia natildeo se desenvolva pela acumulaccedilatildeo de descobertas e invenccedilotildees individuaisrdquo No capiacutetulo ldquoAs revoluccedilotildees como concepccedilotildees de mundordquo o fiacutesico acrescenta ldquoGuiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direccedilotildees E o que eacute ainda mais importante durante as revoluccedilotildees os cientistas veem coisas novas e diferentes quando empregando instrumentos familiares olham para os mesmos pontos jaacute examinados anteriormente Eacute como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares satildeo vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidosrdquo (KUHN 1998 p 145-6)
Argus Romero Abreu de Morais | 115
se com isso demonstrar os limites das abordagens logicizantes da relaccedilatildeo
pensamentolinguagemmundo aspecto transversal ao Construtivismo e
ao Gerativismo No sentido contraacuterio entendemos que a AD deve testar
seus fundamentos teoacutericos a partir da problemaacutetica da aquisiccedilatildeo da
linguagem a qual continuaremos a explorar em trabalhos futuros tendo
por foco avaliar os fundamentos epistemoloacutegicos de uma aquisiccedilatildeo do
discurso
Referecircncias
BERWICK R CHOMSKY N Por que apenas noacutes Linguagem e evoluccedilatildeo Satildeo Paulo
Editora Unesp 2017 [2016]
CHOMSKY N Diaacutelogos com Mitsuo Ronat Satildeo Paulo Cultrix 1977
_____ Sobre o minimalismo In CHOMSKY N Sobre natureza e linguagem Satildeo Paulo
Martins Fontes 2006 [1999] p 113-200
_____ Problemas do conhecimento e da liberdade Rio de janeiro Record 2008 [1971]
_____ Natureza humana justiccedila vs poder o debate entre Chomsky e Foucault Satildeo
Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 [1974]
FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2008
[1969]
KUHN T A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1998
[1962]
PIATELLI-PALMARINI M (Org) Teorias da linguagem teorias da aprendizagem o
debate entre Jean Piaget amp Noam Chomsky Satildeo Paulo Cultrix Editora da
Universidade de Satildeo Paulo 1983 [1979]
SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Satildeo Paulo Cultrix 2006 [1916]
6
Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche
A Leitura de Guumlnter Abel
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa 1
O presente texto esboccedila uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento de
Nietzsche e a filosofia da mente no que diz respeito ao tratamento de
algumas questotildees centrais aiacute presentes ndash em particular o problema da
consciecircncia no debate entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo
entre processos fiacutesicos e mentais Para a compreensatildeo de tais questotildees o
pensamento nietzscheano ndash aqui mediado pela interpretaccedilatildeo de Guumlnter
Abel ndash mostra sua relevacircncia e atualidade no sentido de uma superaccedilatildeo
daquela dicotomia
Em ldquoConsciecircncia ndash linguagem ndash natureza a filosofia da mente em
Nietzscherdquo (ABEL 2005 p 1-41)2 Abel parte da anaacutelise de alguns aspectos
da investigaccedilatildeo atual em filosofia da mente para a partir de uma exegese
do corpus nietzscheano3 apontar para sua pertinecircncia e relevacircncia dentro
desse contexto As reflexotildees de Nietzsche acerca dos acircmbitos e das relaccedilotildees
entre consciecircncia natureza e linguagem ndash a limitaccedilatildeo do consciente pelo
natildeo consciente a formaccedilatildeo de conceitos e da memoacuteria a ideia de natureza
como conjunto complexo de forccedilas por exemplo ndash mostram a importacircncia
que essa triacuteade tem para o seu pensamento
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE)
2 Esse texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001) Berlim De Gruyter
3 Em particular trechos da Gaia ciecircncia e Aleacutem de bem e mal bem como fragmentos poacutestumos de 1884 a 1887 contidos em KSA nos vols X XI XII e XIII da ediccedilatildeo criacutetica de G Colli e M Montinari (1999a 1999b 1999c 1999d)
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 117
O foco da anaacutelise de Abel recai sobre o debate ndash renovado na
atualidade apoacutes a chamada ldquoreviravolta linguiacutesticardquo iniciada por
Wittgenstein e a ldquoredescoberta da consciecircnciardquo (ABEL 2005 p 199) pela
filosofia analiacutetica ndash entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo
entre processos fiacutesicos e mentais em particular os processos consciente-
mentais Segundo Abel de uma maneira geral duas posturas antagocircnicas
podem daqui emergir de um lado a tese do materialismo fisicalismo
monista a defender que estados e processos mentais satildeo tatildeo somente
fenocircmenos da mateacuteria de outro a tese do mentalismo dualista que
defende a irredutibilidade daqueles a estes Ambas as posturas no entanto
por suas proacuteprias limitaccedilotildees natildeo poderiam ser superadas uma pela outra
Precisamente pela ldquoarmaccedilatildeo conceitual que implica ou tem como
consequecircncia essa natildeo resoluccedilatildeordquo (ABEL 2005 p 206) ter-se-ia entatildeo um
impasse E soacute uma modificaccedilatildeo na arquitetura mesma dessa armaccedilatildeo
conceitual tornaria possiacutevel um encaminhamento do problema de modo a
indicar as condiccedilotildees sob as quais ele natildeo poderia mais ocorrer
Os elementos de interpretaccedilatildeo apropriados a essa modificaccedilatildeo
poderiam ser encontrados segundo Abel no pensamento nietzscheano A
tese que defende e que aqui procuraremos expor eacute a de que as criacuteticas
realizadas por Nietzsche agrave questatildeo da consciecircncia expondo seus limites
apontam para uma reinterpretaccedilatildeo do fenocircmeno que natildeo se deixa reduzir
a um mero fisicalismo naturalista nem tampouco se deixa levar por uma
hipoacutestase do conceito-modelo ldquoConsciecircnciardquo A triacuteade acima citada seria
nesse sentido natildeo soacute de fundamental importacircncia para a compreensatildeo do
pensamento nietzscheano como por outro lado seu pensamento a esse
respeito ndash ao acentuar o papel da praacutexis interpretativa e das funccedilotildees
simboacutelicas linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas na constituiccedilatildeo da consciecircncia e
da autoconsciecircncia ndash mostra sua relevacircncia no sentido de uma superaccedilatildeo
daquela dicotomia Tais elementos foram reconstruiacutedos pelo autor em seis
seccedilotildees que seratildeo apresentadas a seguir princiacutepio do continuum modelo
do processo organizaccedilatildeo funcional consciecircncia e linguagem
fenomenalismo da experiecircncia interna e consciecircncia e corporeidade
118 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
O Princiacutepio do Continuum
Abel parte da compreensatildeo de que a superaccedilatildeo das dicotomias entre
mentalismo e materialismofisicalismo soacute pode ocorrer a partir de um
modo de ver natildeo dualista E Nietzsche segundo Abel defende tal
concepccedilatildeo a partir do que chama de princiacutepio do continuum o mundo
para Nietzsche constitui-se como um espectro de continuidade que vai do
inorgacircnico passando pelo orgacircnico ateacute as atividades cognitivas e aos
projetos e consecuccedilatildeo das accedilotildees O que significa que por um lado o
homem seria entendido como corporificaccedilatildeo de todas as atividades
ldquointeligentesrdquo que jaacute se encontram no orgacircnico e com as quais o ser
humano seria retraduzido na natureza por outro o ldquocaraacuteter espiritualrdquo
das atividades vivas poderia ser encontrado nas formas de manifestaccedilatildeo
orgacircnica e ateacute para aleacutem destas
Natildeo se trata aqui de uma superaccedilatildeo redutora ou derivativa do modelo
dualista na relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o consciente No modelo do
continuum a consciecircncia desponta como um fenocircmeno gradual que surge
a partir de ldquodiferenciaccedilotildees filogeneacuteticas e ontogeneacuteticas no acircmbito do
orgacircnicordquo (ABEL 2005 p 209) e cujos elementos jaacute se encontram
presentes em animais enquanto o tornar-se consciente e a autoconsciecircncia
somente no homem seriam encontrados Dois pressupostos do princiacutepio
nietzscheanos satildeo aqui delineados em primeiro lugar formas de vida preacute-
conscientes e orgacircnicas devem ser vistas como ldquoprocessos dinacircmicosrdquo jaacute
inteligentes e basilares para a formaccedilatildeo da consciecircncia por outro ldquoestados
mentais conscientesrdquo devem ser distintos dos ldquoinconscientesrdquo sendo este
acircmbito mais amplo e a partir do qual aquele pode ser explicado Em todo
caso por peticcedilatildeo de princiacutepio ldquoa consciecircncia mesma natildeo estaacute em condiccedilatildeo
de indicar uma lsquocausa objetivarsquo para sua proacutepria origemrdquo (ABEL 2005 p
209)
O que seria entatildeo o ldquoeurdquo da consciecircncia ou o lsquoSi mesmorsquo [Selbst] do
corpo humano Dois aspectos devem ser aqui observados por um lado
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 119
como o modelo do continuum abre-se a possibilidade de que esse ldquoeurdquo
ldquoinfluencie num certo sentido os processos orgacircnicosrdquo (ABEL 2005 p
208) ou seja que determinados pensamentos possam ser ldquoincorporadosrdquo
organicamente por outro o sujeito da consciecircncia ndash ou o que Abel chama
de ldquoeu consciente e lsquoindexicalrsquordquo ndash surge como uma delimitaccedilatildeo dentro da
ldquocorrente contiacutenua de acontecimentosrdquo e natildeo mais como uma coisa
individual que precede a consciecircncia de algo O Eu aparece assim como a
ponta de um processo da qual por isso mesmo prescinde o todo restante
Daiacute a formulaccedilatildeo de Nietzsche ldquoPara que em geral consciecircncia se ela eacute
no geral supeacuterfluardquo e agrave qual ele mesmo responde ldquouma rede de ligaccedilatildeo
entre homem e homemrdquo que teve de ldquodesenvolver-se somente enquanto
talrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354)
Modelo do Processo
Enquanto continuum que vai do orgacircnico ao consciente o mundo de
Nietzsche eacute um conjunto de ldquoefeitos cambiantes dinacircmicos altamente
complexos de variadas organizaccedilotildees de forccedilas vivas e inteligentesrdquo (ABEL
2005 p 215) ndash luta e arregimentaccedilatildeo de impulsos cujo pathos se mostra a
ele como vontade de poder [der Wille zur Macht] Os elementos da
natureza nesse sentido natildeo podem mais ser tomados coisas ndash corpos
materiais ocupando posiccedilotildees no espaccedilo-tempo mas ldquoeventosrdquo ou ldquoobjetos-
processordquo (ABEL 2005 p 216)4 Tal concepccedilatildeo certamente traz
consequecircncias natildeo somente para o status do conceito de ldquocoisardquo mas
tambeacutem para a ideia de ldquosujeitordquo A questatildeo que Abel aqui se coloca eacute os
processos devem ainda pressupor um sujeito ou eacute possiacutevel partir de
processos sem sujeito
A ideia de um sujeito da consciecircncia que a represente e organize seus
conteuacutedos parece implicada no momento mesmo em que a consciecircncia
4 Abel salienta aqui a proximidade da concepccedilatildeo nietzscheana com a fiacutesica contemporacircnea (objetos como uma identidade de eventos) e com as pesquisas em filosofia da linguagem (em particular as ideias de Reichenbach e Davidson)
120 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
enquanto consciecircncia-de-algo transitiva designada por meio da
intencionalidade manifesta-se Ocorre que tambeacutem o ldquoeurdquo o sujeito da
consciecircncia soacute se manifesta em virtude do surgimento desta uacuteltima5
Como afirma Nietzsche em Aleacutem do bem e do mal a ideia de um ldquosujeito
lsquoeursquordquo como condiccedilatildeo do predicado ldquopensordquo seria uma ldquofalsificaccedilatildeo dos
fatosrdquo (NIETZSCHE 2005 sect17) Ora com isso dois postulados expostos
na seccedilatildeo anterior comeccedilam a ser esclarecidos
(a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciecircncia jaacute depende de
uma amaacutelgama de processos sem sujeito e (b) que o estado e fenocircmeno da
consciecircncia repousa genealogicamente jaacute sobre estados mentais [eventos
processos] natildeo conscientes (ABEL 2005 p 218)
Haveria nesse sentido uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a ideia de um
ldquosujeito da consciecircnciardquo e a figura de ldquoprocessos sem sujeitordquo A pergunta
ldquoquem pensardquo deve ser respondida com ldquoalgo pensardquo no sentido de que
esse ldquoalgordquo jaacute natildeo eacute um ldquoeurdquo objeto e representaccedilatildeo mas um processo e
uma interpretaccedilatildeo ndash ou citando Nietzsche ldquouma interpretaccedilatildeo do processo
que natildeo pertence ao processo mesmordquo (NIETZSCHE 2005 sect17) ndash
designada com a palavra indexical ldquoeurdquo funccedilatildeo desse processo Da mesma
forma no plano linguiacutestico as sentenccedilas de processo natildeo seriam mais
vinculadas a um sujeito gramatical (ABEL 2005 p 221)6 A ideia de sujeito
enquanto ldquoindiviacuteduo-coisardquo dissolve-se nesse sentido pelo ldquoretorno do
sujeito da consciecircncia em si mesmo como sua consequecircncia internardquo
(ABEL 2005 p 220) Em seu lugar surgem o indiviacuteduo-evento e o eu-
interpretaccedilatildeo
A suspeita de uma contaminaccedilatildeo categorial [] de que somente indiviacuteduos-
coisa fornecem o modelo de referecircncia parece banida atraveacutes da passagem ao
esquema do evento e uma teoria natildeo dualista natildeo estaacute mais aprisionada ao
5 Veremos adiante (na seccedilatildeo ldquoFenomenalismo da experiecircncia internardquo) que o eu-consciecircncia a perspectiva da primeira pessoa surge no momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a consciecircncia
6 O autor faz aqui atraveacutes de Lichtenberg um paralelo entre a concepccedilatildeo nietzscheana (com o exemplo das expressotildees impessoais) e a criacutetica ao eu-portador feita por Wittgenstein (o do Tractatus assim como o das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas na comparaccedilatildeo entre olho e o campo visual)
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 121
leito de Procrusto do sujeito da consciecircncia Somente um modelo de referecircncia
baseado em indiviacuteduos-evento abre essa possibilidade (ABEL 2005 p 222)
A partir daqui abre-se o caminho para se pensar eventos mentais
conscientes e natildeo conscientes em uma ldquoco-pertenccedila natildeo dualistardquo com
processos orgacircnicos e corporais
Organizaccedilatildeo Funcional
A ideia de processo implicaria tambeacutem uma passagem do modelo de
organismo ao de organizaccedilatildeo Com efeito o orgacircnico em Nietzsche eacute
entendido como uma ldquoestrutura de organizaccedilatildeordquo na qual a consciecircncia o
pensamento consciente e outros processos mentais resultam como
ldquopropriedades e consequecircncias emergentes da co-relaccedilatildeo muacuteltipla e
altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem
a organizaccedilatildeo e garantem sua funcionalidaderdquo Aqui natildeo se trata
propriamente de uma relaccedilatildeo entre parte e todo ndash entre particular e
universal mas de uma combinaccedilatildeo de ldquomuacuteltiplas organizaccedilotildees de forccedilas
das partesrdquo cujos efeitos fazem surgir aqueles estados mentais e emergir
a ldquoespiritualidade viva e inteligenterdquo jaacute presente no orgacircnico (ABEL 2005
p 223)
Tambeacutem aqui haveria uma proximidade com a concepccedilatildeo
atualmente defendida e aceita nas pesquisas sobre o ceacuterebro ndash em
particular ao modelo dos ldquomultiple draftsrdquo desenvolvido por Dennett
(1991 cap 5 apud ABEL 2005 p 224) ndash de que estados mentais
conscientes e natildeo conscientes satildeo resultados da organizaccedilatildeo e da
complexa dinacircmica de configuraccedilotildees de neurocircnios ndash o que vale ser aqui
salientado dado que tal modelo vai de encontro agrave concepccedilatildeo cartesiana
centralista da consciecircncia na qual o ceacuterebro teria um centro ndash um ldquoolho
internordquo para as experiecircncias conscientes Por outro lado a proacutepria ideia
de um ldquofluxo da consciecircnciardquo natildeo pode ser vista como uma sequecircncia
unificada mas ao contraacuterio processos de conformaccedilotildees dinacircmicas e
muacuteltiplas combinaccedilotildees das partes do sistema envolvidas
122 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Na concepccedilatildeo nietzscheana diz Abel esse aspecto eacute enfatizado no
sentido da dependecircncia do ldquoperfil funcionalrdquo do orgacircnico em relaccedilatildeo agraves
combinaccedilotildees de suas partes A ldquoorganizaccedilatildeo processualrdquo pode ser
entendida como configuraccedilotildees de forccedilas que preponderam e dominam ndash
ldquoregentesrdquo mas que satildeo ao mesmo tempo ldquodependentes das forccedilas
particulares funcionaisrdquo ndash e forccedilas ldquoregidasrdquo As partes ndash eventos e
processos por sua vez jaacute natildeo podem ser representadas como elementos
atomiacutesticos mas como ldquoconsecuccedilatildeo efetivo-relacional do acontecerrdquo
(ABEL 2005 p 227) Para Nietzsche esse eacute um evento fundamental de
tudo o que eacute efetivo e vivo E eacute nesse sentido que para ele a vida pode ser
definida como ldquolsquouma forma duradoura do processo de afirmaccedilatildeo da forccedila
onde os lutadores crescem de modo desigual entre sirsquordquo (COLLI
MONTINARI 1999b KSA-XI 36 [22])
A centralidade que o aspecto da organizaccedilatildeo funcional ocupa na
concepccedilatildeo nietzscheana permite caracterizaacute-la segundo Abel como um
funcionalismo entendido no sentido de que estados e processos mentais ndash
em particular estados e processos natildeo conscientes exercem papeacuteis
funcionais e referem-se agrave organizaccedilatildeo funcional de um sistema podendo
ser descritos por uma terminologia funcionalista No entanto natildeo seria
possiacutevel aqui uma associaccedilatildeo ao funcionalismo defendido por Putnam
(1975 apud ABEL 2005 p 228) com base em um modelo computacional
de descriccedilatildeo do funcionamento e individuaccedilatildeo de estados mentais Isso
porque entraria na concepccedilatildeo nietzscheana um ldquoelemento de liberdade e
criatividaderdquo que permite ao eu da consciecircncia dispor dos conteuacutedos e
subsumi-los a um ldquotratamento imaginativo ou planejado do agirrdquo
Um uacuteltimo aspecto quanto agrave organizaccedilatildeo funcional em Nietzsche e
na filosofia da mente diz respeito a uma possiacutevel interpretaccedilatildeo
teleoloacutegico-normativa dos papeacuteis funcionais exercidos pelos processos
mentais Na concepccedilatildeo nietzscheana os processos de organizaccedilatildeo de
forccedilas satildeo eventos de autorregulaccedilatildeo e otimizaccedilatildeo das relaccedilotildees de forccedilas
atuando tanto na organizaccedilatildeo como nas partes nela envolvidas Essas
muacuteltiplas combinaccedilotildees soacute posteriormente apareceriam agrave consciecircncia como
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 123
em conformidade a um fim Natildeo haveria nesse sentido nenhuma
teleologia na coisa mesma mas apenas em como ela aparece agrave consciecircncia
ldquoA organizaccedilatildeo e a dinacircmica dos processos complexos de forccedilas se
realizam () de modo ateleoloacutegicordquo (ABEL 2005 p 231) Seria preciso
distinguir entre duas espeacutecies de finalidade seja a ideia de fim entendida
como um motivo ndash uma ldquoteleologia do atuar exoacutegenordquo ou no como uma
consequecircncia ndash uma ldquofuncionalidade e regularidade endoacutegenardquo Nesse
sentido soacute como expressatildeo de um ldquoolhar que observa posteriormenterdquo
uma conformidade a fins seria possiacutevel
Consciecircncia e Linguagem
Os modelos e organizaccedilotildees acima natildeo estariam bem esclarecidos sem
a compreensatildeo de que por detraacutes das representaccedilotildees sobre as quais a
consciecircncia se efetiva estatildeo os signos linguiacutesticos e funccedilotildees gramaticais
que por sua vez exercem-se no contexto de uma praacutexis interpretativa Em
outras palavras na base do fenocircmeno da consciecircncia aparece o
fundamento linguiacutestico-gramatical e interpretativo de todo pensar Para
Nietzsche soacute podemos pensar ldquode forma linguiacutesticardquo (COLLI
MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22]) O ldquopensar racionalrdquo eacute nesse sentido
um ldquointerpretar segundo um esquema que natildeo podemos dispensarrdquo
(COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22])
Para Abel o que assume significaccedilatildeo fundamental nos dias de hoje eacute
que se por um lado a consciecircncia apresenta a linguagem ndash enquanto uso
dos signos (linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticos) por outro na base mesma de
seu surgimento consecuccedilatildeo e desenvolvimento ela revela tambeacutem com a
linguagem o seu caraacuteter puacuteblico e social A consciecircncia (e suas
especificidades) nesse sentido eacute tematizada agora ldquona interseccedilatildeo dos
desenvolvimentos no acircmbito do natural-orgacircnico [] com os processos
nas esferas do social do histoacuterico e do culturalrdquo (ABEL 2005 p 233)
Jaacute em seus primeiros escritos postumamente publicados Nietzsche
aponta para o cerne comunicativo constitutivo da consciecircncia Na forma
124 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
como apresentado em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral o
homem natildeo apreende coisas objetos mas sensaccedilotildees ndash marcas de
excitaccedilotildees externas que satildeo por meio de transposiccedilatildeo metafoacutericas ndash do
objeto em imagem e da imagem em conceito ndash simplificadas
antropomorfizadas e restituiacutedas pela linguagem na forma de signos Por
uma ldquotransposiccedilatildeo artiacutesticardquo entatildeo a linguagem opera uma identificaccedilatildeo
do natildeo idecircntico da qual surge o conceito Mais ainda eacute nessa identificaccedilatildeo
que se constitui o objeto e tambeacutemo sujeito criador como esfera a ele
oposta com o qual natildeo pode ter senatildeo uma ldquorelaccedilatildeo esteacuteticardquo que eacute a sua
proacutepria criaccedilatildeoconstituiccedilatildeo
Tal processo nesse sentido soacute se justifica do ponto de vista de uma
praacutexis social ou seja por uma necessidade de comunicaccedilatildeo e de
ldquoestabilizaccedilatildeo de sistemas sociaisrdquo (ABEL 2005 p 235) A proacutepria
ldquoverdaderdquo nada mais eacute que uma metaacutefora cristalizada e aceita socialmente
isto eacute pelo rebanho Nietzsche ressalta as condiccedilotildees fisioloacutegicas e
histoacutericas do ldquoinstinto (ou impulso) de verdaderdquo que marca nossa
civilizaccedilatildeo e cujo cerne ilusoacuterio e metafoacuterico revela antes uma crenccedila na
verdade como valor incondicional ldquoas verdades satildeo ilusotildees cuja origem
estaacute esquecidardquo (NIETZSCHE 2007 1 30)
Essa compreensatildeo eacute retomada posteriormente em A gaia ciecircncia
Para Nietzsche na constituiccedilatildeo mesma da consciecircncia aparece uma
ldquonecessidade de comunicaccedilatildeordquo que pressupotildee por sua vez uma
ldquocapacidade [entendida como forccedila e arte] de comunicaccedilatildeordquo
[] posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas
sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeo () Consciecircncia eacute na realidade
apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas () o pensar que se torna
consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos ndash pois
apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de
comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia
(NIETZSCHE 2004 sect 354)
O pensar conceitual e a experiecircncia consciente efetivam-se nesse
sentido enquanto ldquosignos de comunicaccedilatildeordquo ou ldquoformaccedilotildees e abreviaccedilotildees
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 125
de signos sobre signosrdquo Segundo Abel a constituiccedilatildeo de um sistema
conceitual ndash pelo qual o eu da consciecircncia se efetiva ndash ocorre no momento
em que ela proacutepria eacute capaz de diferenciar conceitualmente algo de algo e
com essa delimitaccedilatildeo constituir objetos e a si proacutepria como objeto
O caraacuteter interpretativo da consciecircncia no entanto natildeo se restringe
a um aspecto de suas funccedilotildees simboacutelicas mas eacute sua proacutepria condicionante
no sentido de que os processos orgacircnicos mesmos jaacute pressupotildeem um
ldquointerpretar contiacutenuordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 2 [148])
sendo por ele caracterizados A consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo soacute procede
de modo interpretativo em sua consecuccedilatildeo mas tambeacutem jaacute repousa em
processos de interpretaccedilatildeo natildeo conscientesrdquo (ABEL 2005 p 237) sendo
jaacute um resultado dessas relaccedilotildees Daqui se tem como consequecircncia que ela
natildeo pode ser nem causa sui nem finis sui no sentido de que permanece
sem acesso a seu proacuteprio fundamento A tarefa de uma filosofia da mente
nesse sentido consistiria principalmente em destacar o caraacuteter simboacutelico
e principalmente interpretativo subjacente a estados processos e
fenocircmenos da consciecircncia
Sempre haveria no entanto o perigo de a consciecircncia de modo auto-
causal e auto-teleoloacutegico hipostasiar-se a si proacutepria e mascarar o caraacuteter
problemaacutetico de as representaccedilotildees que surgem na consciecircncia estarem agrave
disposiccedilatildeo e poder do eu-consciecircncia como se esta as antecedesse e
pudesse com elas relacionar-se de outro modo Uma suposta
autocertificaccedilatildeo da autoconsciecircncia compensaria a incerteza quanto ao
objeto e ao sujeito que ela representa Eacute a tendecircncia proacutepria agrave consciecircncia
de querer ir aleacutem natildeo soacute do fenomenalismo da experiecircncia exterior como
tambeacutem da interior (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 15 [90]) Esse
ponto seraacute abordado na proacutexima seccedilatildeo
Fenomenalismo da Experiecircncia Interna
Vimos que pela articulaccedilatildeo linguiacutestica a consciecircncia opera uma
simplificaccedilatildeo esquematizaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo (ABEL 2005 p 237) de
126 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
tudo o que ateacute ela chega do mundo exterior Da mesma forma na
experiecircncia interna natildeo deparamos com fatos como sendo algo primaacuterio
mas eles proacuteprios ldquotecircm de ser o resultado de interpretaccedilotildeesrdquo Sensaccedilotildees de
prazer e dor por exemplo bem como aquilo que costumamos chamar de
ldquosentido internordquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 14 [152]) satildeo
para Nietzsche segundo Abel ldquofenocircmenos tardios derivados
interpretados intelectualmente de processos de forccedilas que estatildeo ao fundordquo
(ABEL 2005 p 238-239)
Duas perspectivas aqui se abrem para a caracterizaccedilatildeo
dessefenomenalismo da percepccedilatildeointerior em primeiro lugar a ordem e
cronologia de causa e efeito eacute continuamente invertida de forma que por
meio da memoacuteria das experiecircncias internas passadas a causa eacute imaginada
ndash em adequaccedilatildeo agrave causa real ndash depois de o efeito jaacute ter sucedido Em
segundo lugar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem (conforme exposta
acima) conduz tambeacutem a uma relaccedilatildeo entre fenomenalismo e
perspectivismo de forma que as experiecircncias internas ndash que satildeo uacutenicas e
individuais satildeo pela linguagem traduzidas para a consciecircncia como
estados internos conhecidos delimitados e tangiacuteveis ao indiviacuteduo7
Natildeo podemos assim transgredir o mundo fenomenal Mas isso natildeo
quer dizer que aquilo a que natildeo temos acesso seja o mundo ldquoverdadeirordquo
e sim tatildeo somente o ldquoinformulaacutevel mundo sem forma do caos de
sensaccedilotildeesrdquo ldquouma outra espeacutecie de mundo fenomenal para noacutes
incognosciacutevelrdquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 9 [106]) Haveria
aqui segundo Abel uma forte criacutetica ao princiacutepio mesmo da racionalidade
moderna a autoconsciecircncia cartesiana ndash ou mais precisamente agrave ldquoideia de
uma autocertificaccedilatildeo fundamentalista numa experiecircncia pura preacute-
linguiacutestica preacute-conceitual e independente da interpretaccedilatildeordquo ABEL 2005
p 241) Na base desse fundamentalismo epistemoloacutegico ldquoo ponto de
partida errado ndash como se houvesse lsquofatos da consciecircnciarsquo ndash e nenhum
fenomenalismo na observaccedilatildeo de si mesmordquo Erro que resultaria em seis
7 Processo esse que como vimos natildeo subsiste independentemente de uma praacutexis social
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 127
pressuposiccedilotildees nenhuma delas para Nietzsche (COLLI MONTINARI
1999d KSA XIII 15 [90]) plena de sentido
(1) transparecircncia completa da consciecircncia (2) manutenccedilatildeo da ideia do dado
ao menos para o acircmbito da experiecircncia interna da consciecircncia (3) a
experiecircncia humana eacute independente da linguagem da descriccedilatildeo e por fim ateacute
mesmo da interpretaccedilatildeo (4) o fenomenalismo eacute restrito somente ao mundo
exterior () (5) haacute um ponto de observaccedilatildeo fixo (6) a consciecircncia tem acesso
imediato a seus proacuteprios estados de experiecircncia interna de si (ABEL 2005 p
238-239)
Com ofenomenalismo e perspectivismo da experiecircncia interna entra
em cena o eu-consciecircncia ndash a perspectiva da primeira pessoa que surge no
momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a
consciecircncia Tambeacutem com ele o ldquocaraacuteter subjetivo qualitativo e
fenomenal da vivecircncia conscienterdquo (ABEL 2005 p 241) Tais aspectos satildeo
segundo Abel discutidos na atual filosofia da mente a partir de duas teses
(1) que os aspectos subjetivos qualitativos e fenomenais satildeo fundamentais
para a experiecircncia interna (2) [que] esses aspectos subjetivos qualitativos e
fenomenais ligados agrave perspectiva da vivecircncia na primeira pessoa natildeo podem
ser reduzidos agrave conformidade a leis fiacutesicas [que satildeo] explicadas da perspectiva
neutra da [] intersubjetividade [Esta] no entanto eacute precisamente aquilo
que natildeo somente eacute dado na vivecircncia factual subjetiva qualitativa e fenomenal
mas tambeacutem sistematicamente excluiacuteda (ABEL 2005 p 242)
Consciecircncia e Corporeidade
Apesar de natildeo poder representar ou sequer distanciar-se da rede natildeo
consciente de seus condicionamentos a consciecircncia ndash enquanto eu-
consciecircncia tem no entanto a ldquopossibilidade de abrir-se retroagindo a si
mesma em contraposiccedilatildeo ao complexo de suas condiccedilotildeesrdquo (ABEL 2005
p 244) Transiccedilatildeo essa que segundo Abel pode ser vista como a passagem
de uma consciecircncia autoteleoloacutegica e autocausal para um eu-consciecircncia
que sem perder a autoconsciecircncia eacute o proacuteprio si-mesmo do corpo ndash aquilo
que Nietzsche chama de grande razatildeo Isso implicaria a transiccedilatildeo de uma
128 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoontologia moralrdquo (COLLI MONTINARI 1999b KSA XI 7 [4]) a uma
ldquofilosofia do corpordquo que comeccedila quando a pequena razatildeo se volta sobre si
por sua proacutepria autoconservaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo a seus
condicionamentos O que natildeo deve ser confundido como uma reduccedilatildeo a
um naturalismo ou biologismo ndash nem tampouco de uma ldquoneurofilosofiardquo
como em Churchland (1998) Natildeo se trata na filosofia do corpo de
Nietzsche de organismos corpos e neurocircnios mas do corpo-organizaccedilatildeo
Natildeo haacute aqui um ldquoalgordquo a ser estudado mas uma ldquocombinaccedilatildeo dinacircmica e
altamente complexa de [] inteligecircncias em processordquo (ABEL 2005 p
244) A passagem do eu-consciecircncia ao si-mesmo (o ldquodominador do eurdquo)
eacute nesse sentido a passagem de uma ldquosubjetividade produtorardquo para a
ldquoindividualidade no sentido da organizaccedilatildeo do corpo [Leib] () que cada
um eacute enquanto ser que interpretardquo ABEL 2005 p 246-7) Isto natildeo implica
um retorno da individualidade ao sujeito racional universal mas a
subsunccedilatildeo em uma ldquoindividualidade-corpordquo
Dois aspectos satildeo salientados aqui por Abel em primeiro lugar a
ldquocorporeidade preacute-cognitiva preacute-linguiacutestica e preacute-racional em seus
estados esteacuteticos pode ser vista como o lugar de surgimento dos signos
simbolizadores linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticosrdquo (ABEL 2005 p 247) em
cuja invenccedilatildeo estatildeo envolvidos estados corporais Na abertura do eu-
consciecircncia agrave rede de seus condicionantes revela-se ldquoo caraacuteter dos signos e
da interpretaccedilatildeo em sua posiccedilatildeo fundamentalrdquo (ABEL 2005 p 248) Por
outro lado o modo de consideraccedilatildeo do ldquofio-condutor do corpordquo apresenta-
se como um ldquofenocircmeno mais ricordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII
40 [15]) no sentido de que se situa no interior mesmo da posiccedilatildeo criticista
A posiccedilatildeo da consciecircncia bem como da criacutetica da linguagem eacute nesse
sentido aprofundada Trata-se nas palavras de Nietzsche ldquodo corpo em
todo o desenvolvimento do espiacuterito ele eacute a histoacuteria que se torna sensiacutevel
de que um corpo superior se formardquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X
24 [16]) Em que o mental por outro lado eacute a ldquolinguagem simboacutelica do
corpordquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X 7 [126])
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 129
Criacutetica da Consciecircncia e Criacutetica da Linguagem
Dois aspectos devem ser salientados quanto a este toacutepico por um
lado a importacircncia da consciecircncia e da linguagem nas relaccedilotildees humanas
ndash com o mundo com o outro e consigo ndash e por outro o reconhecimento
de seus limites ndash em uacuteltima instacircncia do limite-corpo que subjaz a ambas
linguagem e consciecircncia
No caso da linguagem os limites parecem ser bastante sutis no
sentido de que ela proacutepria enquanto ldquogramaacuteticardquo atua como preacute-
formadora do pensamento consciente e nesse sentido ldquoo que pode ser
pensado e dito em geral tem de estar jaacute na gramaacutetica de uma linguagemrdquo
(ABEL 2005 p 249) Como afirma Nietzsche em Crepuacutesculo dos iacutedolos
ldquoA lsquorazatildeorsquo na linguagem oh que velha e enganadora senhora Receio que
natildeo nos livremos de Deus porque ainda acreditamos na gramaacuteticardquo
(NIETZSCHE 2006 III sect5) Tais limites que a tornam suscetiacutevel a uma
petrificaccedilatildeo estatildeo precisamente pelo caraacuteter de universalidade das
sentenccedilas e palavras Principalmente quando estas se tornam conceitos
frutos da ldquoidentificaccedilatildeo do natildeo idecircnticordquo (NIETZSCHE 2007 1) e jaacute
distantes de sua ldquovivecircncia original uacutenica e totalmente individualizadardquo Haacute
aqui o risco de se fazer mitologia com o ldquomundo dos signosrdquo e de tornaacute-lo
o ldquoem si das coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 sect21)
Uma superaccedilatildeo no pensamento dos ldquoerrosrdquo da razatildeo petrificados na
linguagem ndash ou em uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo (NIETZSCHE 2006
III sect5) ndash seria no entanto impossiacutevel porque noacutes ldquonecessitamos do errordquo
O problema crucial aqui como aponta Abel eacute que o indiviacuteduo uma
sensaccedilatildeo ou o proacuteprio inefaacutevel jaacute pressupotildeem a linguagem quando satildeo
expressos comunicados Como entatildeo conciliar o caraacuteter individual de uma
sensaccedilatildeo com a pretensatildeo agrave universalidade e o caraacuteter comunicativo e
social da linguagem que a expressa
No acircmbito da consciecircncia por sua vez por intermeacutedio e constituiccedilatildeo
da linguagem tudo perde a individualidade e eacute traduzido para o acircmbito do
universal O que impede um acesso agrave profundidade e deixa agravequela apenas
130 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
um ldquomundo de superfiacutecies e signosrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354) A
consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo pertence propriamente agrave existecircncia
individual do homemrdquo A relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem mostra-se
uma relaccedilatildeo de constituiccedilatildeo universalizaccedilatildeo simplificaccedilatildeo e
superficializaccedilatildeo Os limites se datildeo em que nessa relaccedilatildeo com a iminecircncia
de uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo a consciecircncia corre de vaacuterias formas o
risco de hipostasiar-se a si mesma
Em primeiro lugar na medida em que ela pretende identificar-se com a ampla
situaccedilatildeo total de um homem Entatildeo conforme ela considera seu eu isto eacute o
sujeito como substacircncia ela assumiria como sujeito uma posiccedilatildeo aprioriacutestica
face aos conteuacutedos da consciecircncia Por fim na medida em que o eu isto eacute o
sujeito da consciecircncia vecirc suas determinaccedilotildees das representaccedilotildees da consciecircncia
dos objetos da experiecircncia como determinaccedilotildees ontoloacutegicas Aleacutem disso haacute o
risco de hipoacutestase no sentido de que [] a consciecircncia e a mente tendem a
entenderem a si mesmas de modo autoteleoloacutegico e autocausal como finis sui e
causa sui e que elas jaacute natildeo podem abrir-se desse modo agrave rede abarcante das
condiccedilotildees de sua proacutepria existecircncia (ABEL 2005 p 252)
A criacutetica de Nietzsche em suma natildeo se refere propriamente agrave
consciecircncia ndash erro necessaacuterio ndash nem tampouco tem caraacuteter reducionista
Antes dirige-se ao modelo cartesiano hipostasiado de reflexatildeo da
consciecircncia e da autoconsciecircncia em seus seis erros ou pressuposiccedilotildees
Filosofia Simboacutelica e Interpretativa da Mente
Pode-se formular a advertecircncia articulada na criacutetica da consciecircncia e da
linguagem do seguinte modo natildeo se confunda a circunstacircncia de que noacutes
temos a ver na consciecircncia assim como na autoconsciecircncia com signos e
interpretaccedilotildees com a concepccedilatildeo de que noacutes nos deparariacuteamos com as ldquocoisas
mesmasrdquo ou com as coisas-em-si-mesmas Assumir essa uacuteltima significa
recair no sofisma naturalista da consciecircncia (ABEL 2005 p 253-4)
Do que foi exposto quanto aspectos acima atenccedilatildeo especial deve ser
dada ao caraacuteter simboacutelico e interpretativo ndash semioacutetico ndash dos estados e
processos da consciecircncia da autoconsciecircncia e dos outros processos
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 131
mentais conscientes e natildeo conscientes Consciecircncia eacute consciecircncia de signos
cujos elementos (sintaacuteticos semacircnticos e pragmaacuteticos) natildeo os precedem
mas satildeo eles mesmos constituiacutedos em sua ldquoorientaccedilatildeo a algo ou a outras
pessoasrdquo ndash orientaccedilatildeo que tem o caraacuteter de uma ldquointerpretaccedilatildeo
construcionalrdquo (ABEL 2005 p 253-4) As funccedilotildees da interpretaccedilatildeo
constituem assim o fundamento dos signos Todos os estados processos
e fenocircmenos mentais bem como a comunicaccedilatildeo desses conteuacutedos
realizam-se em e como signos e interpretaccedilotildees O ponto chave nessa
concepccedilatildeo pragmaacutetica simboacutelica e interpretativa diz Abel eacute que ldquonoacutes
temos consciecircncia mente e pensamento natildeo por meio mas por forccedila dos
processos de signos e interpretaccedilotildeesrdquo (ABEL 2005 p 256) A
interpretaccedilatildeo nesse sentido ldquoeacute condiccedilatildeo e natildeo opccedilatildeo para o emprego
bem-logrado dos signosrdquo (ABEL 2005 p 257)
Para o autor a construccedilatildeo nos dias de hoje de uma teoria da
consciecircncia que parta dessa tese ou seja para aleacutem da dicotomia
materialismofisicalismo e mentalismo deve levar em consideraccedilatildeo cinco
aspectos (1) uma postura contra o fisicalismo das funccedilotildees simboacutelicas dos
signos e interpretaccedilotildees (2) a introduccedilatildeo de sistemas e signos e
interpretaccedilotildees natildeo linguiacutesticos e natildeo proposicionais revelando a
insuficiecircncia dos siacutembolos linguiacutesticos e proposicionais como uacutenico meio
de representaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo mentais (3) a consideraccedilatildeo aleacutem de
Nietzsche do pragmatismo de Peirce da teoria geral do siacutembolo de
Goodman e a teoria das formas simboacutelicas de Cassirer (4) a ideia de uma
relaccedilatildeo ou uma ligaccedilatildeo interna entre signos interpretaccedilotildees e
possibilidade de accedilatildeo (5) a consideraccedilatildeo dos valores avaliaccedilotildees e normas
(sentido e dever) no emprego dos signos e nas accedilotildees
Assim o fundamental na concepccedilatildeo de uma filosofia da mente a
partir do pensamento de Nietzsche deve estar na ideia de que os processos
de interpretaccedilatildeo estatildeo implicados desde o iniacutecio tatildeo logo se trate de
submeter o que estaacute na consciecircncia a uma delimitaccedilatildeo ordenaccedilatildeo
classificaccedilatildeo coerecircncia ou comunicaccedilatildeo O orgacircnico mesmo jaacute eacute para
Nietzsche uma interpretaccedilatildeo contiacutenua
132 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Referecircncias
ABEL Guumlnter ldquoConsciecircncia-Linguagem-Natureza ndash A filosofia da mente em Nietzscherdquo In
MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo
Discurso Editorial 2005
_____ ldquoVerdade e interpretaccedilatildeordquo In MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad
Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo Discurso Editorial 2005a
CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia Trad Maria C Cescato Satildeo Paulo UNESP 1998
COLLI G MONTINARI M (orgs) Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe
(KSA v X) Berlim Munique Nova York Walter de Gruyter 1999a
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XI) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999b
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XII) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999c
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XIII) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999d
NIETZSCHE Friedrich W Genealogia da moral (GM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo
Paulo Companhia das Letras 1998
_____ A gaia ciecircncia (FWGC) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das
Letras 2004
_____ Aleacutem de bem e mal (GBBM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia
de Bolso 2005
_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos (GDCI) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo
Companhia das Letras 2006
_____ Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WLVM) In Sobre verdade e
mentira Trad e Org Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2007
7
Habermas e o Problema do Mundo Objetivo
em Verdade e Justificaccedilatildeo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira 1
Introduccedilatildeo
O objetivo deste artigo eacute investigar a questatildeo do mundo objetivo a
partir da recente distinccedilatildeo que Habermas realiza entre verdade e
justificaccedilatildeo na obra de mesmo tiacutetulo Eacute preciso entatildeo entendermos o
lugar que o mundo objetivo passa a ter no pensamento habermasiano
sobretudo a partir da diferenccedila entre verdade e justificaccedilatildeo algo outrora
inexistente
Verdade e justificaccedilatildeo de 1999 reuacutene trabalhos escritos entre 1996 e
1998 que retomam o fio de uma reflexatildeo interrompida em Conhecimento
e Interesse (1987) Apesar de a pragmaacutetica da linguagem que Habermas
desenvolveu nos anos 1970 ter feito uso de conceitos como verdade
referecircncia validade objetividade realidade e racionalidade estes natildeo
foram abordados agrave luz da filosofia teoacuterica como em Verdade e justificaccedilatildeo
Habermas (2012) nos tempos da Teoria do agir comunicativo obra
de 1971 definia o sentido de verdade a partir da situaccedilatildeo ideal de fala
atraveacutes dos pressupostos idealizantes de 1) publicidade e total inclusatildeo de
todos os envolvidos 2) distribuiccedilatildeo equitativa dos direitos de
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) com Doutorado Sanduiacuteche pela Ludwig-Maximilian-Universitaumlt (LMU) em Munique Alemanha Poacutes-doutorando pela Universidade Federal do Piauiacute (UFPI) e Bolsista Capes Email julianocordeiro81gmailcom
134 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
comunicaccedilatildeo 3) caraacuteter natildeo violento de uma situaccedilatildeo que admite apenas
a forccedila natildeo coerciva do melhor argumento e 4) a probidade dos
proferimentos de todos os participantes Nesse sentido a verdade
relacionava-se diretamente com o consenso construiacutedo pelos sujeitos
atraveacutes da situaccedilatildeo ideal de fala
Entretanto Habermas em Verdade e justificaccedilatildeo partindo das
criacuteticas que recebeu por igualar o conceito de verdade agrave justificaccedilatildeo ao
longo de seu projeto teoacuterico afirma hoje em dia que a verdade natildeo pode
mais ser assimilada simplesmente agrave situaccedilatildeo ideal de fala agrave justificaccedilatildeo
pragmaacutetica dos sujeitos ldquoDe laacute para caacute percebi que essa assimilaccedilatildeo natildeo
pode dar certo Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade que
natildeo eacute errado mas eacute pelo menos incompletordquo (HABERMAS 2004 p 60)
A verdade agora tem a ver com o mundo objetivo que temos
inevitavelmente de pressupor nos atos de fala e nas nossas accedilotildees A
justificaccedilatildeo por sua vez seria um criteacuterio pragmaacutetico relacionado
unicamente aos sujeitos falantes natildeo podendo ser assimilado agrave verdade
como Habermas conceituava antes A verdade por assim dizer relaciona-
se com um pressuposto formal que os sujeitos precisam admitir sob pena
de natildeo falar nem agir no mundo
Poreacutem mesmo com a distinccedilatildeo habermasiana entre os conceitos de
verdade e justificaccedilatildeo continua natildeo estando em questatildeo a representaccedilatildeo
correta da realidade ou a estrutura ontoloacutegica do mundo Eacute impossiacutevel
determinar a significaccedilatildeo das palavras sem uma consideraccedilatildeo do contexto
social em que satildeo usadas porque eacute o uso que decide a significaccedilatildeo das
expressotildees linguiacutesticas caracteriacutestica central do pragmatismo No
Segundo Wittgenstein e tambeacutem em Habermas a ecircnfase eacute dada
sobretudo agrave pragmaacutetica
Como entatildeo entender o novo lugar que o mundo objetivo passou a
ter no pensamento habermasiano haja vista que ele continua a ser criacutetico
da noccedilatildeo representacionista de verdade Como conciliar a tese da
pressuposiccedilatildeo irrecusaacutevel de um mundo objetivo independente de nossas
descriccedilotildees e idecircntico para todos os observadores com a tese baacutesica da
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 135
reviravolta linguiacutestica de que natildeo temos acesso diretamente isto eacute natildeo
linguisticamente mediado a uma realidade ldquonuardquo Eacute o que veremos a
seguir
A Necessaacuteria Diferenccedila entre Verdade e Justificaccedilatildeo
Inicialmente Habermas conceituava a verdade como sinocircnimo de
justificaccedilatildeo Ou seja a verdade era aquilo que os sujeitos estabeleciam
consensualmente nas deliberaccedilotildees Wellmer (apud ALVARENGA 1999)
por exemplo numa criacutetica a Habermas destaca que racionalidade e
verdade natildeo necessariamente coincidem Para ele natildeo podemos afirmar
que havendo consenso racional exista verdade de imediato Nada impede
que no futuro seja considerado falso um consenso atual o que natildeo
implica que agimos irracionalmente A verdade eacute sempre algo maior do
que a racionalidade dos consensos situados Todo consenso encontra-se
sob reserva podendo no futuro ser posto em questatildeo mediante razotildees
Wellmer argumenta referindo-se agrave primeira concepccedilatildeo de verdade
de Habermas que um conceito de verdade como consenso eacute insuficiente
por natildeo abranger o aspecto da correspondecircncia da verdade Seria preciso
esse complemento na teoria discursiva de Habermas Mesmo que se
cumpram as condiccedilotildees ideais de fala tal fato natildeo significa que as razotildees
alegadas no processo deliberativo tenham sido boas Um consenso falso
pode ser racional no sentido de que foi alcanccedilado sob condiccedilotildees formais
de uma situaccedilatildeo ideal
Habermas a partir de tais criacuteticas reformulou sua concepccedilatildeo de
verdade distinguindo verdade de justificaccedilatildeo Ele assume que o consenso
natildeo pode ser considerado como um criteacuterio mas deve ser visto como um
mecanismo de certificaccedilatildeo da verdade Ele relaciona o conceito discursivo
mantido de aceitabilidade racional com um conceito de verdade
pragmaacutetico natildeo epistecircmico sem assimilar a verdade agrave assertibilidade
ideal ou seja agrave justificaccedilatildeo
136 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Inicialmente Habermas (2012) na Teoria do agir comunicativo
apresentou uma teoria consensual da verdade o consenso era o criteacuterio de
verdade O que eacute verdadeiro seria aquilo advindo de um consenso racional
e universal como consequecircncia de um diaacutelogo numa situaccedilatildeo ideal de fala
Entretanto como demonstra Puntel (2013) Habermas viu as dificuldades
dessa concepccedilatildeo uma vez que haacute uma incapacidade de explicar por que
mesmo as asserccedilotildees mais exaustivamente justificadas podem ser falsas
Habermas trabalha atualmente com uma concepccedilatildeo de verdade orientada
realisticamente denominada de realismo epistemoloacutegico pragmaacutetico
Os principais passos de Habermas na apresentaccedilatildeo e explicaccedilatildeo de
sua nova concepccedilatildeo pragmaacutetico-realista da verdade segundo Puntel
(2013) satildeo os seguintes 1) o ponto de partida satildeo pretensotildees de verdade
feitas no mundo da vida 2) a verdade eacute conceitualmente (natildeo
epistemologicamente) desconectada da justificaccedilatildeo a verdade eacute
transcendente agrave justificaccedilatildeo 3) a verdade implica uma referecircncia a um
mundo objetivo independente 4) a verdade articula a conexatildeo entre a
sentenccedilaproposiccedilatildeo qualificada como verdadeira e o mundo
Habermas (2004) explica que argumentos que nos convencem da
verdade de ldquoprdquo podem se revelar falsos em outra situaccedilatildeo epistecircmica Ou
seja por mais que ldquoprdquo seja bem justificado ele pode ainda revelar-se falso
A argumentaccedilatildeo permanece reforccedila ele como o uacutenico meio disponiacutevel
para se certificar da verdade de modo que natildeo haacute outra maneira de
examinar as pretensotildees de validade tornadas problemaacuteticas Entretanto a
justificaccedilatildeo natildeo pode ser validada ainda como verdade Habermas entatildeo
pretende salvar a dimensatildeo do mundo objetivo em sua teoria
relacionando-a com a verdade
Ele estabelece um conceito de verdade em que as pretensotildees de
validade transcendam toda justificaccedilatildeo ldquo() depois da
destranscendentalizaccedilatildeo do sujeito cognoscente continua a existir uma
lacuna entre o que eacute verdadeiro e o que conta como justificado ou
racionalmente aceitaacutevel para noacutesrdquo (HABERMAS 2002 p 44) Habermas
pretende assegurar a diferenccedila entre verdade e aceitabilidade racional
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 137
Contudo tal diferenccedila coloca os sujeitos numa situaccedilatildeo paradoxal De um
lado sem acesso direto agraves condiccedilotildees de verdade eles soacute podem resgatar as
pretensotildees de validade por meio de boas razotildees de outro as melhores
razotildees satildeo tambeacutem faliacuteveis Portanto Habermas defende que o abismo
entre aceitabilidade racional e verdade natildeo pode ser transposto uma vez
que todo acordo alcanccedilado pela justificaccedilatildeo eacute tambeacutem faliacutevel
Habermas (2004) destaca que verdade e falibilidade satildeo dois lados de
uma mesma moeda Ele entende que falta agrave justificaccedilatildeo no sentido por
exemplo de Richard Rorty uma referecircncia aos objetos Nesse sentido as
pretensotildees de validade devem transcender o contexto natildeo se satisfazendo
apenas com a justificaccedilatildeo alcanccedilada O verdadeiro para Habermas deve
ser defendido em todos os contextos possiacuteveis
Segundo ele uma concepccedilatildeo que faccedila justiccedila agrave intuiccedilatildeo realista de um
mundo que existe independentemente de noacutes mesmo sem a
representaccedilatildeo de uma correspondecircncia entre proposiccedilotildees e fatos favorece
o projeto de explicar os aspectos nos quais a verdade e a justificaccedilatildeo ao
mesmo tempo assemelham-se e distinguem-se Em suma a verdade eacute um
conceito que transcende toda justificaccedilatildeo natildeo podendo ser identificada
com o conceito de assertibilidade idealmente justificada
De acordo com Habermas a conexatildeo interna entre verdade e
justificaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo epistemoloacutegica pois natildeo estaacute em jogo a
representaccedilatildeo correta da realidade mas uma praacutexis que natildeo pode vir
abaixo O entendimento muacutetuo natildeo pode funcionar sem que os envolvidos
se refiram a um uacutenico mundo objetivo dentro de um espaccedilo puacuteblico
intersubjetivamente partilhado O conceito discursivo de verdade natildeo eacute
exatamente falso mas insuficiente ele natildeo explica o que nos autoriza a ter
por verdadeiro um enunciado suposto como idealmente justificado Dessa
forma asserccedilotildees bem justificadas podem se revelar falsas porque a
verdade deve transcender qualquer contexto de justificaccedilatildeo
Puntel (2013) destaca uma criacutetica a Habermas apontando-nos uma
dimensatildeo natildeo aprofundada por este Puntel com razatildeo critica Habermas
agrave medida que este rejeita a teoria tradicional da verdade sem oferecer uma
138 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
explanaccedilatildeo miacutenima do que ele chama de conexatildeo ou entrelaccedilamento de
verdade e mundo Sua concepccedilatildeo realista pragmaacutetica permaneceria vaga
Se Habermas acertou por um lado em separar verdade de
justificaccedilatildeo ele simultaneamente tambeacutem criou um novo problema em
sua filosofia O que realmente Habermas chama de mundo objetivo O que
de fato significa verdade em Habermas visto que esta se relaciona com um
mundo objetivo que apenas podemos pressupor mas natildeo tematizar tal
qual uma praacutexis que natildeo pode vir abaixo Que dimensatildeo eacute essa que
transcende a justificaccedilatildeo
O Estatuto do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo de um Novo
Acerto a um Novo Problema
Segundo Cliacutestenes Franccedila (2015) Habermas em Verdade e
justificaccedilatildeo substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da
justificaccedilatildeo deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuiacutena
Uma teoria da verdade e uma teoria da justificaccedilatildeo satildeo empreendimentos
teoacutericos distintos A primeira teoria da verdade de Habermas dos tempos
do Agir comunicativo era uma teoria antirrealista pois como vimos antes
a verdade era algo sinocircnimo de justificaccedilatildeo Ela natildeo dependia da
ocorrecircncia no mundo de um estado de coisas tendo a ver com a
legitimaccedilatildeo das pretensotildees de validade dos falantes
Jaacute em Verdade e justificaccedilatildeo a verdade natildeo se circunscreve agrave esfera
do discurso ela sempre o ultrapassa Portanto o maacuteximo que podemos
afirmar sobre a aceitabilidade racional de uma asserccedilatildeo eacute que muito
provavelmente ela eacute verdadeira mas natildeo podemos garantir que isso ocorra
de fato Criteacuterios de autorizaccedilatildeo entretanto satildeo formulados por teorias da
justificaccedilatildeo e natildeo por teorias da verdade Franccedila (2015) levanta a hipoacutetese
de que em Verdade e justificaccedilatildeo Habermas apresenta uma teoria da
justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade Habermas natildeo pode mais
dizer em que a verdade consiste mas apenas indicar o que nossas intuiccedilotildees
pragmaacuteticas realistas nos afirmam que ela seja
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 139
Para Franccedila (2015) agrave luz de Kirkham uma teoria da verdade seria
uma teoria metafiacutesica que buscaria fixar uma definiccedilatildeo do que seja a
verdade Uma teoria metafiacutesica da verdade contudo natildeo procuraria
oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos
encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro Jaacute uma teoria da
justificaccedilatildeo busca indicar as evidecircncias e garantias que algo deve possuir
para ser considerado como provavelmente verdadeiro Criteacuterios de
autorizaccedilatildeo satildeo formulados por teorias da justificaccedilatildeo e natildeo por teorias
da verdade
Habermas apresentaria em Verdade e justificaccedilatildeo uma teoria da
justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade A incorporaccedilatildeo de aspectos
realistas ao conceito da verdade na pragmaacutetica formal de Habermas
resultou no abandono de se oferecer uma definiccedilatildeo positiva do que eacute a
verdade de fato Como pensar a partir disso o problema do mundo
objetivo
Habermas chega ao mundo objetivo somente atraveacutes de anaacutelises das
accedilotildees e discursos que os falantes e agentes realizam no processo
comunicativo Mas isso natildeo transcende a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo
Segundo Puntel (2013) Habermas sempre privilegia a dimensatildeo
pragmaacutetica em relaccedilatildeo agrave semacircntica embora defenda que satildeo duas
dimensotildees co-originaacuterias
Ele supotildee que o ldquoproacuteprio mundordquo eacute o ldquoproacuteprio mundordquo apenas se
permanecer completamente intocado pela linguagem Habermas separa
fatos de objetos Ele natildeo menciona a perspectiva de que ao identificarmos
os objetos como elementos do ldquoproacuteprio mundordquo noacutes jaacute estamos falando
acerca desses objetos pertencentes ao ldquoproacuteprio mundordquo Aqui haacute como
pano de fundo a claacutessica criacutetica de Hegel a Kant
Se os fatos acerca dos objetos natildeo tecircm um status ontoloacutegico entatildeo somos
confrontados com uma declaraccedilatildeo incorreta Com efeito para que tenha um
significado inteligiacutevel lsquoser acerca de um objetorsquo deve ser entendido como
lsquoalcanccedilarrsquo ou lsquoatingirrsquo ou lsquoconcernirrsquo o proacuteprio objeto eacute algo sem sentido
declarar um fato acerca de um objeto e entatildeo defender que este fato nada tem
a ver com o objeto Se o fato expresso nada tem a ver com o objeto o objeto
140 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
permaneceria em um esplecircndido isolamento desconhecido inarticulado O
processo de aprendizagem que torna possiacutevel a expressatildeo de fatos acerca dos
objetos natildeo teria qualquer sentido (PUNTEL 2013 p 206)
Habermas (2004) por sua vez defende uma concepccedilatildeo nominalista
do mundo o mundo eacute a totalidade de objetos dos quais podemos
estabelecer fatos Segundo Habermas os fatos satildeo o que noacutes declaramos
acerca dos objetos Ele enfatiza que o nominalismo eacute menos suspeito do
que outras posiccedilotildees ontoloacutegicas especialmente as posiccedilotildees que atribuem
um status ontoloacutegico aos fatos De acordo com Puntel (2013) o argumento
de Habermas eacute incoerente visto que se os fatos tecircm uma relaccedilatildeo essencial
com a linguagem o mesmo deve ser dito dos objetos Se os fatos estatildeo
entrelaccedilados com a linguagem porque podem ser expressos o mesmo
ocorre com os objetos haja vista que podem ser referidos a algo
Habermas poreacutem defende que apenas os fatos satildeo tocados pela
linguagem natildeo os objetos
Podemos dizer que haacute um abismo que separa a dimensatildeo pragmaacutetica
da semacircntica em Habermas embora ele sempre argumente que satildeo duas
perspectivas inseparaacuteveis Esse eacute um aspecto a ser criticado no
pensamento de Habermas agrave medida que ele natildeo concilia de fato a
pragmaacutetica e a semacircntica Segundo Manfredo Oliveira (2010) do
pressuposto metodoloacutegico fundamental da razatildeo comunicativa Habermas
deriva uma consequecircncia temaacutetica draacutestica isto eacute a restriccedilatildeo do tema da
filosofia agrave dimensatildeo pragmaacutetica Dessa forma como tambeacutem aponta
Puntel (2013) a abordagem pragmaacutetica habermasiana considera que as
estruturas e praacuteticas da comunicaccedilatildeo satildeo a base uacutenica uacuteltima e decisiva
do pensar filosoacutefico privilegiando a linguagem natural em sua
integralidade
Habermas (2004) em Verdade e justificaccedilatildeo distingue entre as
funccedilotildees expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da
linguagem natural afirmando que elas se pressupotildeem mutuamente
aceitando a tese de Michael Dummett Poreacutem Habermas privilegia
claramente a dimensatildeo pragmaacutetica colocando a semacircntica em segundo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 141
plano O resultado eacute que o problema do mundo objetivo em Habermas
natildeo eacute explorado suficientemente em sua teoria aparecendo apenas como
pressuposiccedilatildeo formal
Natildeo haacute uma clareza acerca da relaccedilatildeo entre verdade e mundo
objetivo apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade
Nesse sentido podemos dizer que haacute um deacuteficit ontoloacutegico em Habermas
pois a ontologia aparece sempre agrave sombra em sua teoria mas nunca como
algo tematizado e sim pressuposto formalmente Ou seja haacute uma
postulaccedilatildeo da dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo propriamente da ontologia que
eacute a teoria dessa dimensatildeo A semacircntica eacute reduzida agrave pragmaacutetica (ou pelo
menos articulada em funccedilatildeo da pragmaacutetica e a ela submetida) referecircncia
central de toda a filosofia de Habermas
Como vimos antes Habermas diz que a justificaccedilatildeo natildeo pode ser mais
um criteacuterio de verdade mas ela continua sendo um mecanismo de
certificaccedilatildeo da verdade De acordo com Puntel poreacutem quando uma
sentenccedila eacute qualificada como verdadeira supotildee-se a correspondecircncia com
algo no mundo levantando-se a questatildeo de como deve ser concebido esse
algo
Se assim eacute ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulaccedilatildeo ou
conexatildeo eacute exprimiacutevel e portanto natildeo somente pode mas deve ser explicitada
ndash caso contraacuterio falar dela seria vazio e autocontraditoacuterio Mas isto eacute algo que
Habermas poderia ou deveria aceitar De fato ele natildeo apresenta qualquer
explicaccedilatildeo relevante da dimensatildeo da conexatildeo ou entrelaccedilamento e isto deve
ser considerado como resultado de sua posiccedilatildeo poacutes-metafiacutesica (PUNTEL
2013 p 198)
Segue-se daiacute que a articulaccedilatildeo teoacuterica da dimensatildeo pressuposta ndash do
entrelaccedilamentoconexatildeo de verdade e mundo ndash natildeo pode ser realizada
pelo discurso pragmaacutetico ou dentro de seu quadro referencial teoacuterico
pragmaacutetico Isso torna claro que a afirmaccedilatildeo de Habermas a respeito de
uma verdade incondicional eacute extremamente restrita Em suma eacute uma
afirmaccedilatildeo dentro do acircmbito da pragmaacutetica que torna Habermas incapaz
de articular uma verdade genuinamente incondicional
142 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Ele fala da importacircncia de se reconhecer a dimensatildeo da validade
incondicionada mas natildeo avanccedila para aleacutem de tal afirmaccedilatildeo Se haacute a
necessidade de separar verdade de justificaccedilatildeo ele teria que aprofundar e
tematizar o que estaacute chamando de verdadee mundo objetivo Ou seja que
algo eacute esse que se encontra para aleacutem da justificaccedilatildeo e que ao mesmo
tempo pode pocircr abaixo as justificaccedilotildees no mesmo instante em que soacute
temos acesso ao mundo objetivo pelas proacuteprias justificaccedilotildees
A mesma criacutetica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradiccedilatildeo
transcendental oriunda de Kant Este afirma que a representaccedilatildeo das
coisas como nos satildeo dadas deve regular-se como fenocircmenos e natildeo como
coisas em si Em Kant natildeo eacute possiacutevel no conhecimento a priori
acrescentar aos objetos nada a natildeo ser o que o sujeito pensante toma de si
mesmo Todavia Kant exemplifica que se natildeo eacute possiacutevel conhecermos os
objetos como coisas em si mesmas podemos contudo pensaacute-los
Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa natildeo tanto
com objetos mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida
em que ele deva ser possiacutevel a priori Um sistema de tais conceitos denominar-
se-ia filosofia transcendental (KANT 1974 p 33)
Habermas segue a mesma perspectiva de Kant postulando a
intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito
transcendental Poreacutem a orientaccedilatildeo continua a mesma quando Habermas
afirma que podemos conhecer apenas os fatos natildeo os objetos do mundo
O mundo em Habermas natildeo nos impotildee sua linguagem ele natildeo fala e soacute
responde em sentido figurado
Habermas elabora uma teoria filosoacutefica centrada na dimensatildeo
comunicativa (pragmaacutetica) Seria a partir dela que outras dimensotildees
poderiam ser compreendidas Percebemos que a dimensatildeo expositiva
(semacircntica) eacute posta em segundo plano Em Habermas o modo como as
coisas do mundo satildeo apreendidas e denominadas se orienta no contato
comunicativo entre pessoas O mundo objetivo para ele soacute eacute conhecido
com base na relaccedilatildeo com o quadro referencial da comunicaccedilatildeo Ele eacute
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 143
apenas considerado de tal modo que a interaccedilatildeo entre pessoas se faccedila
possiacutevel Contudo Habermas natildeo se interroga pela condiccedilatildeo de
inteligibilidade da proacutepria pragmaacutetica sendo sua consideraccedilatildeo do mundo
objetivo algo vago
Conclusatildeo
Habermas como vimos distingue verdade de justificaccedilatildeo
entendendo verdade tal qual demonstra Puntel de alguma maneira no
sentido da teoria da correspondecircncia relacionada ao mundo objetivo Uma
pergunta contudo permanece sem resposta em Habermas o que significa
compreender algo Eacute preciso destacar contra ele que haacute um deacuteficit acerca
de uma consideraccedilatildeo da linguagem em sua dimensatildeo estruturalno que diz
respeito agrave dimensatildeo ontoloacutegica
Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificaccedilatildeo
haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo
mundo para todos) ele ao mesmo tempo natildeo consegue esclarecer como
ocorre a relaccedilatildeo da co-originaridade entre exposiccedilatildeo e comunicaccedilatildeo natildeo
aprofundando o estatuto que o mundo objetivo possui em sua filosofia
teoacuterica Habermas natildeo avanccedila de forma mais profunda acerca de questotildees
ontoloacutegicas exigidas por sua nova posiccedilatildeo realista-pragmaacutetica
Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questotildees filosoacuteficas que
tradicionalmente seriam chamadas de metafiacutesicas como a tematizaccedilatildeo do
mundo objetivo A virada radicalmente epistecircmica de toda a filosofia
moderna como no esquema transcendental deslocou o sujeito para o
centro de toda a empresa teoacuterica e desse modo tambeacutem da filosofia Fala-
se como sabemos no acircmbito da modernidade de uma filosofia do sujeito
No caso de Habermas e de seu kantismo pragmaacutetico revirado
linguisticamente podemos falar de uma filosofia centralizada na
intersubjetividade e na pragmaacutetica mas que manteacutem ainda a dicotomia
entre sujeitos e mundo
144 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Em Verdade e justificaccedilatildeo os sujeitos supotildeem em comum um
mundo objetivo como totalidade dos objetos que podem ser tratados e
apreciados Eacute justamente o conceito de fracasso performativo que nos
conduz em Habermas a uma pressuposiccedilatildeo formal de nossas accedilotildees
linguiacutesticas e de nossas intervenccedilotildees no mundo objetivo entendido como
sistema de possiacuteveis referecircncias e possiacuteveis manipulaccedilotildees
Trata-se em Habermas de um postulado que inevitavelmente temos
de fazer caso contraacuterio a fala e a intervenccedilatildeo no mundo se tornariam
impossiacuteveis Os participantes do discurso assumem a mesma
pressuposiccedilatildeo formal de um mundo independente de noacutes de nossas
descriccedilotildees de nossos esquemas conceituais
Nesse sentido em Habermas a referecircncia ao mundo natildeo eacute
apresentada como constituindo uma caracteriacutestica componente da
semacircntica da linguagem mas como um pressuposto acrescentado para
que possamos explicar nossas falas e nossas intervenccedilotildees Habermas fala
de semacircntica apenas como dimensatildeo da linguagem (Darstellung der
Welt) mas nunca a analisa Como ressalta Puntel (2013) as tentativas de
Habermas de abordar questotildees filosoacuteficas centrais sem deixar de ser fiel
ao pensamento poacutes-metafiacutesico conduziram-no a problemas
fundamentais obscuridades incoerecircncias ausecircncias de esclarecimentos e
soluccedilotildees
Referecircncias
ALVARENGA N Verdade contingecircncia e falibilismo a teoria discursiva da verdade de J
Habermas agrave luz das criacuteticas de A Wellmer Siacutentese Belo Horizonte v 26 n 86 p
347-373 1999
FRANCcedilA C A problemaacutetica incorporaccedilatildeo do realismo na pragmaacutetica-formal de Juumlrgen
Habermas In CARVALHO M (Org) Teoria criacutetica Coleccedilatildeo XI Encontro ANPOF
2015 p 159-173
HABERMAS J Conhecimento e interesse Rio de Janeiro Guanabara 1987
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 145
_____ Agir comunicativo e razatildeo destranscendentalizada Rio de Janeiro Tempo
Brasileiro 2002
_____ Verdade e justificaccedilatildeo ensaios filosoacuteficos Satildeo Paulo Loyola 2004
_____ Teoria do agir comunicativo 1 racionalidade da accedilatildeo e racionalidade social Satildeo
Paulo Martins Fontes 2012
KANT I Criacutetica da razatildeo pura Satildeo Paulo Abril Cultural 1974
OLIVEIRA M A Eacute a filosofia uma pragmaacutetica Revista Tempo Brasileiro Juumlrgen
Habermas ndash 80 anos Laranjeiras n 181-182 p 103-126 2010
PUNTEL L O pensamento poacutes-metafiacutesico de Habermas uma criacutetica Siacutentese Revista de
Filosofia Belo Horizonte v 40 n 127 p 173-223 2013
8
Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes
para se Pensar a Natureza de Sistemas Formais
Uma Abordagem Wittgensteiniana
Marcos Silva 1
I want to say an education quite different from ours
might also be the foundation for quite different concepts
(Wittgenstein Zettel 387)
Em 1930 segundo algumas conversas documentadas em
Wittgenstein (1984a)2 estava discutindo com alguns membros influentes
do Ciacuterculo de Viena aspectos importantes de sua filosofia Essas
discussotildees pretendiam esclarecer novidades e dificuldades advindas da
revisatildeo e aprofundamento de toacutepicos de seu Tractatus (1984b) Neste
contexto histoacuterico fica claro pela dinacircmica das conversas que Waismann
conduziu as discussotildees para a filosofia da matemaacutetica uma vez que
Wittgenstein estava preparando-o para um painel a tomar lugar em
Koumlnigsberg naquele mesmo ano O painel trataria justamente de
diferentes perspectivas a respeito dos desafios filosoacuteficos concernentes agrave
crise dos fundamentos na matemaacutetica Nesta discussatildeo em Koumlnisberg Von
Neumann representaria o formalismo Carnap o logicismo e Heyting a
escola intuitionista Jaacute Waismann o quarto membro ilustre da mesa de
1 Professor Adjunto do curso de Filosofia da UFAL e bolsista de produtividade do CNPq (2018-2021) Agradeccedilo aos comentaacuterios valiosos de Luiz Henrique da Silva Santos a este trabalho
2 Estas discussotildees foram documentadas por Waismann e organizadas para publicaccedilatildeo por McGuinness em Wittgenstein und Wiener Kreis doravante WWK
Marcos Silva | 147
discussotildees sobre o estado da arte da filosofia da matemaacutetica seria
responsaacutevel por representar a filosofia de Wittgenstein
A literatura secundaacuteria sobre estes toacutepicos de discussatildeo acerca da
natureza da matemaacutetica no WWK de maneira frequente e acertada a meu
ver aborda os comentaacuterios de Wittgenstein como sendo muito criacuteticos em
relaccedilatildeo ao programa de Hilbert A criacutetica tinha como alvo a meta do
programa que consistia na procura por uma prova absoluta para a
consistecircncia da matemaacutetica (Hacker 1986 Engelmann 2013) Segundo
Wittgenstein provocativamente afirma a tentativa de se fornecer uma prova
absoluta da consistecircncia da aritmeacutetica seria anaacuteloga agrave procura por uma
ldquodoenccedila escondidardquo em um corpo funcional (WITTGENSTEIN 1984a p
120) Contudo acredito que o ponto faltante nesta literatura seja a observaccedilatildeo
de que nesta altura Wittgenstein natildeo foi de forma alguma criacutetico de uma
tese central da tradiccedilatildeo formalista Essa tese diz respeito agrave arbitrariedade da
sintaxe Assim como as regras de um jogo as regras da sintaxe de sistemas
formais seriam para formalistas arbitraacuterias ou seja natildeo residiriam na
essecircncia da linguagem da mente ou do mundo Com efeito Wittgenstein
teria afirmado contundentemente nas discussotildees com os membros do
Ciacuterculo de Viena que ldquoa verdade no formalismo eacute que toda sintaxe pode ser
concebida como se fosse um sistema de regras de um jogo (hellip) Eu gostaria
de afirmar que natildeo somente os axiomas da matemaacutetica mas toda a sintaxe eacute
arbitraacuteriardquo (WITTGENSTEIN 1984a p103 minha traduccedilatildeo)
Minha hipoacutetese de trabalho para se entender esta formulaccedilatildeo forte
de Wittgenstein eacute a de que ela ilustra a sua reaccedilatildeo agrave visatildeo de Frege esta
muito criacutetica ao formalismo Esta reaccedilatildeo me parece ser baseada em uma
ainda incipiente aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de jogos para se entender de maneira
geral a natureza das regras da sintaxe e particularmente a proacutepria noccedilatildeo
de sistemas formais Em junho de 1930 Wittgenstein e Waismann estavam
lendo Grundgetsetze II de Frege em Viena como a entrada ldquoo que dizer
em Koumlnigsbergrdquo do WWK nos mostra No Grundgesetze II Frege (1903
sect106-119) defendeu inter alia contra teses formalistas que identificam a
natureza de sistemas formais com jogos que 1) nuacutemeros da aritmeacutetica natildeo
148 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
podem ser reduzidos a meros sinais ou marcas fiacutesicas porque por
exemplo lsquo0rsquo natildeo tem a propriedade de resultar no sinal lsquo1rsquo quando
adicionado ao sinal lsquo1rsquo ou seja sinais fiacutesicos eles mesmos em uma folha
de papel por exemplo natildeo possuem propriedades matemaacuteticas 2) que
uma contradiccedilatildeo um conceito propriamente loacutegico pode somente ocorrer
nas regras do jogo de xadrez e natildeo nas configuraccedilotildees baacutesicas isto eacute em
nenhum arranjo fiacutesico atual de peccedilas (do xadrez) e 3) que eacute impossiacutevel
inferir regras de um sistema formal pela mera inspeccedilatildeo de posiccedilotildees de
alguns sinais assim como seria impossiacutevel inferir as regras de um jogo de
tabuleiro dado a partir da mera disposiccedilatildeo de suas peccedilas
Nesta altura nas discussotildees com Waismann Wittgenstein parece
concordar com todas essas criacuteticas de Frege ao formalismo contudo vale
notar que Wittgenstein (1984a p 105) acusou indiretamente Frege de ter
cometido uma espeacutecie de falaacutecia do falso dilema se loacutegica e matemaacutetica
natildeo satildeo uma questatildeo de mera inspeccedilatildeo de sinais fiacutesicos ou da disposiccedilatildeo
de marcas materiais em um folha de papel por exemplo o significado de
seus sinais natildeo precisam ser fundados em seu Bedeutung ou seja em sua
referecircncia a entidades abstratas como Frege argumentou Wittgenstein
critica o seguinte raciociacutenio Se o significado de sinais em um sistema
formal natildeo pode ser dado pela mera configuraccedilatildeo de suas marcas fiacutesicas
entatildeo o seu significado deveria ser dado pela sua referecircncia a
determinados objetos especiais Wittgenstein parece ter defendido que ou
bem Bedeutung ou bem meramente sinais fiacutesicos natildeo satildeo todas as
alternativas neste horizonte De fato noacutes precisamos de sinais isto eacute de
algumas marcas fiacutesicas organizadas para a elaboraccedilatildeo de sistemas formais
variados mas noacutes precisamos ainda de regras para manipular estes sinais
Como consequecircncia uma compreensatildeo adequada da metaacutefora de jogos
dos formalistas deveria redundar na assimilaccedilatildeo da ideia que noacutes natildeo
precisamos nos engajar com algum Bedeutung transcendente ao jogo ele
mesmo para garantirmos que os sinais de um sistema formal tenham
significado Em outras palavras sinais seriam sim necessaacuterios mas natildeo
suficientes para a constituiccedilatildeo de um sistema formal mas nem por isso
Marcos Silva | 149
deveriacuteamos postular uma referecircncia a coisas fora do sistema ele mesmo
para dotaacute-lo de significado caso compreendamos a natureza das regras
que organizam o sistema e governam a manipulaccedilatildeo dos seus sinais
Eacute importante notar que Wittgenstein depois desta criacutetica
imediatamente comeccedila a usar o vocabulaacuterio que Frege introduziu ao criticar
formalistas a saber sistemas formais como jogos mas natildeo a posiccedilatildeo de
Frege de que a loacutegica deveria representar leis de uma realidade abstrata
Parece que Frege assumiu o vocabulaacuterio formalista como o de regras e
jogos para mostrar em uacuteltima instacircncia seu absurdo ou ao menos sua
implausibilidade para se entender a aritmeacutetica e a loacutegica Acredito que
Wittgenstein assumiu o vocabulaacuterio formalista de Frege mas condenou seu
falso dilema a saber ou bem somente sinais ou bem a necessidade de um
Bedeutung ao mostrar que formalistas fazem um bom ponto ao defenderem
que toda a sintaxe eacute arbitraacuteria como as regras de jogos Wittgenstein
assumiu o vocabulaacuterio formalista de jogos para mostrar que quaisquer
regras sintaacuteticas poderiam ser outras as regras de sistemas formais natildeo
precisam estar ancoradas na realidade mesmo que rejeitemos que natildeo
devem ser redutiacuteveis a meros sinais ou marcas fiacutesicas Nestas discussotildees
documentadas em WWK Wittgenstein natildeo parecia estar preocupado com
nenhuma lei loacutegica da realidade ou do pensamento mas sim com as regras
para manipular sinais que satildeo estipuladas quando noacutes estipulamos um
sistema loacutegico Ao se entender sistemas como jogos deveriacuteamos entendecirc-los
como independentes de uma realizaccedilatildeo material especiacutefica uma vez que o
fato de o rei num jogo de xadrez ser de plaacutestico madeira ou ateacute mesmo uma
bola de papel eacute irrelevante para a constituiccedilatildeo do proacuteprio sistema Os
sistemas formais como jogos deveriam ser compostos de marcas fiacutesicas sim
mas que possam exercer funccedilotildees variadas no sistema sempre determinadas
pelas regras de manipulaccedilatildeo do jogo
Neste periacuteodo histoacuterico no comeccedilo da deacutecada de 1930 a discussatildeo de
Wittgenstein estaacute ainda circunscrita agrave natureza de sistemas formais e natildeo
eacute desenvolvida para um entendimento geral da linguagem ou das
atividades humanas como um todo Wittgenstein eacute um pensador radical
150 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Eacute razoaacutevel defender que o desenvolvimento de sua filosofia madura possa
ser visto como o desenvolvimento proacuteprio das consequecircncias radicais
desta metaacutefora de jogos natildeo somente para entender matemaacutetica e loacutegica
mas para se entender a linguagem a intencionalidade e a normatividade
peculiares de atividades de seres humanos
No que se segue eu gostaria de responder a pergunta acerca do
porquecirc e de como a noccedilatildeo de jogos desenvolvida por Wittgenstein em 1930
(e nāo de jogos de linguagem porque ele natildeo tinha ainda este conceito
nesta eacutepoca) poderia ainda ser relevante para a filosofia da loacutegica Esta
questatildeo fica ainda mais premente ao considerarmos os problemas
contemporacircneos associados agrave emergecircncia de tantos sistemas natildeo-claacutessicos
legiacutetimos e seu desafio agrave natureza da racionalidade
Eu natildeo pretendo apresentar aqui um quadro nem original e nem
exaustivo de caracteriacutesticas filosoficamente importantes de sistemas
formais ao serem vinculadas a natureza de jogos Mas em vez disso eu
espero defender algumas intuiccedilotildees de Wittgenstein no comeccedilo da deacutecada
de 1930 sobre jogos e regras antes mesmo de suas noccedilotildees maduras (e
elusivas) de jogos de linguagem e semelhanccedila de famiacutelia Minhas
preocupaccedilotildees natildeo redundam em avanccedilar e defender todas as ideias
associadas agrave loacutegica como jogos mas restringir minhas ambiccedilotildees a
promover esta visatildeo filosoacutefica como cogente
Eacute importante evidenciar que os primeiros sistemas de ldquodeduccedilatildeo
naturalrdquo como introduzidos por Jaskowski (1934) e Gentzen (1934-35)
foram desenvolvidos na deacutecada de 1930 Nestes sistemas axiomas
foacutermulas bem formadas e pretensamente evidentes de onde se partem as
derivaccedilotildees satildeo substituiacutedos por conjuntos de inferecircncias que definem o
significado do vocabulaacuterio loacutegico de maneira que natildeo faz sentido dizer que
um sistema loacutegico descreve alguma coisa na realidade Embora as
conexotildees entre diferentes abordagens da loacutegica na deacutecada de 1930 e o
embate contemporacircneo entre teoria da prova e teoria de modelos sejam
histoacuterica e conceitualmente importantes seu exame natildeo estaacute no escopo
deste trabalho
Marcos Silva | 151
Com efeito muito mais poderia ser dito a respeito de jogos e seu uso
em abordagens anti-realistas na loacutegica e na epistemologia A teoria de
jogos foi oficialmente apresentada em 1944 mas foi antecipada por Borel
na deacutecada de 1920 Aleacutem disso a analogia com jogo de xadrez foi
frequentemente usada por exemplo por Weyl (1944) para criticar o
formalismo de Hilbert Vale tambeacutem notar que depois da segunda guerra
mundial o loacutegico Paul Lorenzen (1961) desenvolveu uma influente loacutegica
baseada em jogos dialoacutegicos materiais Estes jogos natildeo foram
influenciados por Wittgenstein mas por outras sugestotildees filosoacuteficas de
natureza construtivista Estes exemplos mostram a seminalidade filosoacutefica
e teacutecnica em se aplicar a metaacutefora do jogo agrave loacutegica independentemente de
uma abordagem wittgensteiniana Um projeto de pesquisa mais
abrangente a respeito disto parece ser bem-vindo
No que se segue eu natildeo estou interessado diretamente na exegese da
filosofia de Wittgenstein3 portanto natildeo vou me concentrar em seu
desenvolvimento filosoacutefico Eu proponho em vez disso oferecer uma
abordagem filosoacutefica mais geral sobre a loacutegica que tambeacutem poderia ser uacutetil
para se entender a natureza do vocabulaacuterio loacutegico
De fato a seguir eu seleciono e brevemente discuto algumas
caracteriacutesticas filosoficamente atraentes a respeito de se pensar loacutegica em
termos de regras em jogos isto eacute em tomar loacutegica como um conjunto de
praacuteticas governadas por regras engajadas por agentes racionais A
motivaccedilatildeo principal aqui eacute a respeito de como esta abordagem poderia ser
filosoficamente seminal para se entender loacutegica e racionalidade em um
ambiente de uma grande pluralidade de jogos Em outras palavras eu vou
mostrar como ao aceitarmos a ideia de sistemas loacutegicos como jogos
poderiacuteamos nos prover de ferramentas filosoacuteficas e loacutegicas para se avanccedilar
discussotildees contemporacircneas em filosofia da loacutegica
Um primeiro ponto relevante em se desenvolver a metaacutefora formalista
a respeito de sistemas formais como jogos eacute o anti-representacionismo
3 Estes problemas conceituais e histoacutericos satildeo tatildeo importantes quanto controversos por um nuacutemero grande razotildees Ver Engelmann (2013) para uma apresentaccedilatildeo mais detalhada Algum anacronismo seraacute cometido no presente trabalho
152 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Regras de um jogo natildeo precisam descrever a experiecircncia e nem a realidade
Regras natildeo podem ser falsificadas e nem verificadas pela experiecircncia uma
vez que natildeo satildeo proposiccedilotildees empiacutericas e natildeo descrevem nada
(WITTGENSTEIN 1984b 61222) De fato noacutes testamos nossa experiecircncia
do mundo usando regras como criteacuterio mas a regra ela mesma natildeo pode
ser testada pela experiecircncia como uma proposiccedilatildeo descrevendo-a pode ser
testada Uma distinccedilatildeo deve ser feita aqui por um lado noacutes testamos uma
proposiccedilatildeo a partir da experiecircncia porque a proposiccedilatildeo descreve o que
ocorre falsa ou verdadeiramente por outro lado proposiccedilotildees empiacutericas satildeo
diferentes de regras na medida em que noacutes testamos ou avaliamos a
qualidade de nossas descriccedilotildees usando algumas regras como criteacuterios Os
criteacuterios eles mesmo natildeo satildeo nem verdadeiros nem falsos Criteacuterios podem
contudo ser tomados como adequados ou inadequados para um
determinado contexto ou uso mas eles natildeo podem ser falsificados a partir
da comparaccedilatildeo com a realidade O motivo da recusa ou rejeiccedilatildeo de criteacuterios
para avaliar a qualidade de nossas praacuteticas discursivas satildeo quase sempre
pragmaacuteticas ou seja baseados na sua legitimidade ou adequaccedilatildeo conceitual
em contextos variados de accedilatildeo e natildeo metafiacutesicos
Outro ponto relevante envolvido na abordagem da loacutegica a partir da
noccedilatildeo de jogos eacute a ecircnfase na generalidade ao inveacutes da universalidade do
conhecimento Regras satildeo gerais isto eacute noacutes podemos compreender um
sistema complexo com um nuacutemero pequeno de regras simples e gerais e
estas natildeo satildeo e natildeo precisam ser universais ou seja ser vaacutelidas para o
domiacutenio de todas as coisas Regras satildeo aplicadas a muitos casos por pessoas
diferentes em contextos diferentes e em muitos periacuteodos diferentes Neste
sentido uma regra natildeo eacute conectada com uma situaccedilatildeo particular mas sim
com uma multiplicidade de situaccedilotildees possiacuteveis Noacutes podemos muito bem
entender um sistema complexo em um momento pela compreensatildeo das
regras que governam seu comportamento De fato a partir do entendimento
comum da noccedilatildeo de regras noacutes podemos pensaacute-las como uma foacutermula geral
que pode determinar um nuacutemero infinito de aplicaccedilotildees
Marcos Silva | 153
Ademais como em uma perspectiva funcionalista para o
entendimento do comportamento de sistemas complexos podemos
associar o desenvolvimento da metaacutefora formalista de jogos com uma
reaccedilatildeo criacutetica ao essencialismo uma vez que natildeo precisamos entender a
essecircncia do mundo para entender o funcionamento de sistemas loacutegicos
Por outro lado esta metaacutefora tambeacutem redunda em uma criacutetica ao
fisicalismo uma vez que a base material eacute irrelevante para o entendimento
da constituiccedilatildeo do significado a partir das regras de um dado sistema O
que Wittgenstein defende eacute um desenvolvimento importante da analogia
formalista de sistemas formais com jogos a saber assim como a base
material de um jogo de tabuleiro natildeo define o significado de suas peccedilas os
sinais na folha de papel por exemplo natildeo determinam o significado destas
marcas Satildeo contudo as regras que fixam o significado tanto das peccedilas do
jogo quanto dos sinais em um sistema formal
Vale notar tambeacutem que um jogo ou uma atividade regrada natildeo
precisa nem ter uma justificaccedilatildeo e nem ter uma fundamentaccedilatildeo Hacker
(1986) apresenta esta caracteriacutestica de jogos como a autonomia ou
arbitrariedade da sintaxe Isto significa que noacutes natildeo precisamos pensar ou
entender a essecircncia da linguagem ou do mundo para aprender como jogar
um jogo Jogos sāo auto-contidos o que eacute dito ou feito em um jogo natildeo
precisa ter nenhuma relaccedilatildeo com o que eacute feito num outro jogo Aqui noacutes
podemos ter uma interessante liberaccedilatildeo de restriccedilotildees metafiacutesicas
relacionadas agrave exigecircncia de referecircncia ao mundo para que estruturas
linguiacutesticas tenham significado uma vez que jogos natildeo precisam ser
pensados em relaccedilatildeo a alguma coisa isto eacute eles natildeo precisam ser
comportar de acordo com um fato determinado no mundo
Em se jogando jogos noacutes temos um claro aspecto de Handlung
dentro de sua dinacircmica loacutegica Ou seja para entendermos o que eacute um jogo
noacutes somos obrigados a pensarmos em termos de alguma accedilatildeo passos
(ldquomovesrdquo) operaccedilotildees ou em uma palavra praacuteticas em atividades regradas
(geregelte Handlung) Existe um niacutevel performativo mandataacuterio em jogos
Regras satildeo instruccedilotildees para atividades (jogos) ou para a construccedilatildeo de algo
154 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
por exemplo A ecircnfase filosoacutefica deve estar no procedimento pelo qual ou
a teacutecnica a partir da qual alguma performance eacute desempenhada e natildeo no
conhecimento proposicional a partir do qual o mundo eacute conhecido
verdadeiramente Natildeo eacute acidental que regras com frequecircncia funcionem
como normas para a accedilatildeo uma vez que expressam o que eacute considerado
adequado ou inadequado correto ou incorreto aceitaacutevel ou inaceitaacutevel
legiacutetimo ou ilegiacutetimo Um operador loacutegico neste contexto pode ser
tomado apenas como um procedimento tomado como legiacutetimo pelo qual
manipulamos sinais ou como uma seacuterie de manipulaccedilotildees permitidas que
contribui com o significado para proposiccedilotildees complexas
Nesta visatildeo que enfatiza o elemento humano em sistemas formais
como atividades regradas de seres humanos uma via de compatibilidade
com o pluralismo loacutegico a tese contemporacircnea que defende a
possibilidade de vaacuterios sistemas loacutegicos conflitantes serem legiacutetimos
conjuntamente pode ser pavimentada Ao se manter que sistemas loacutegicos
satildeo jogos noacutes podemos falar de maneira muito natural a respeito de vaacuterios
caacutelculos sem que precisemos nos comprometer com a verdade ou a
falsidade de alguns deles Com efeito caacutelculos natildeo podem ser falsos no
mesmo sentido que uma proposiccedilatildeo empiacuterica pode ser falsa Mesmo a
loacutegica proposicional entendida classicamente natildeo pode ser verdadeira ou
falsa Como eacute defendido aqui um jogo natildeo pode ser nem falso nem
verdadeiro uma vez que natildeo precisa descrever nada
Aleacutem disso vale notar que natildeo haacute nem um jogo sem regra ou seja
num certo sentido natildeo haacute um jogo anaacuterquico nenhuma regra sem jogo
ou uma regra sem o sistema em que ela deva estar situada Em outras
palavras regras satildeo mortas sem um sistema e um sistema sem regras natildeo
eacute realmente um sistema Aqui noacutes temos uma motivaccedilatildeo para introduzir
o que podemos chamar de holismo loacutegico para cada passo (ldquomoverdquo) ou
operaccedilatildeo em uma atividade governada eles devem estar inseridos em um
sistema Analogamente em sistemas formais operaccedilotildees ganham
significado em relaccedilatildeo a muitas outras Como resultado desta visatildeo
Marcos Silva | 155
mudar uma regra formal significa mudar o jogo uma vez que natildeo haacute
mudanccedila local que natildeo impactaria globalmente no sistema formal inteiro
O desenvolvimento da visatildeo formalista inspirada por Wittgenstein
tambeacutem permite as propriedades muito seminais de sistemas formais
como flexibilidade e plasticidade a partir da noccedilatildeo de jogos Em principio
noacutes podemos rejeitaraceitar ou mudar qualquer regraprinciacutepio em um
sistema loacutegico (claro evitando trivializaccedilāo com notado por Da Costa
1958) Em outras palavras operar em um sistema loacutegico eacute um Handlung
com signos governado por regras que satildeo convencionais no sentido que
poderiam ser outras
Consequentemente noacutes podemos rejeitar a visatildeo tiacutepica a respeito da
normatividade oferecida pelo realista monista Se noacutes temos apenas uma
uacutenica loacutegica verdadeira natildeo importando aqui qual e se a loacutegica determinar
as condiccedilotildees de inteligibilidade de nossas praacuteticas e os limites de nossa
racionalidade entatildeo eacute faacutecil transformar a discussatildeo loacutegica em uma discussatildeo
normativa qualquer desvio da supostaloacutegica verdadeira (como qualquer
outra loacutegica com outros princiacutepios) deveria ser tomado como contrassensual
Desvios sob o ponto de vista de um monista satildeo instacircncias de mau raciociacutenio
ou mesmo ilustraccedilotildees de nenhum raciociacutenio ou seja de que nenhum
raciociacutenio foi de fato feito Se noacutes levarmos a noccedilatildeo de jogos devidamente a
seacuterio a resposta para a normatividade da loacutegica fica encapsulada em normas
de accedilatildeo ou em instruccedilotildees para praacuteticas associadas com uma finalidade
particular Eacute evidente que noacutes poderiacuteamos ter outras normas como de fato
outras comunidades tecircm Com efeito existem outras comunidades que
obedecem outras regras uma comunidade de matemaacuteticos de orientaccedilatildeo
intuicionista por exemplo (LOumlF 1996 2013)
Como um uacuteltimo ponto para a relevacircncia filosoacutefica de se pensar
sistemas formais como jogos vale se destacar que regras satildeo puacuteblicas e
natildeo fundamentadas em representaccedilotildees privadas mentais ou em quaisquer
leis da mente Regras devem ser aprendidas em um ambiente social e a
partir de interaccedilotildees sociais Aqui a noccedilatildeo de educaccedilatildeo ou de iniciaccedilatildeo em
uma praacutetica naturalmente ganha importacircncia dentro do escopo da
156 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
discussatildeo em filosofia da loacutegica e da matemaacutetica Esta visatildeo encoraja
consequentemente uma virada antropoloacutegica na abordagem de sistemas
formais uma vez que enfatiza o niacutevel institucional e social na performance
de um jogo A questatildeo natural eacute Quem joga o jogo Quem aplica os
sistemas autocircnomos ao mundo Responder a esta questatildeo propondo um
sujeito metafiacutesico imaterial fora do mundo ou mesmo um
transcendental impondo estruturas a priori as suas representaccedilotildees
parece ser altamente inadequado Uma resposta natural deveria ser que
indiviacuteduos materiais com uma histoacuteria natural e social jogam os jogos ou
performam atividades regradas em uma comunidade de outros
indiviacuteduos Com efeito regras devem ser sempre associadas com uma
forma de vida Um indiviacuteduo radicalmente isolado natildeo pode jogar um jogo
ou seguir uma regra se noacutes aceitarmos as consequecircncias do famoso
argumento contra a linguagem privada de Wittgenstein em suas
Investigaccedilotildees filosoacuteficas Um jogo jogado objetivamente deve poder ser
ensinado para outros indiviacuteduos a partir dos criteacuterios puacuteblicos pelos quais
se corrigem passos inadequados ou ilegiacutetimos em atividades regradas
Com estas observaccedilotildees neste curto ensaio pretendi mostrar como a
noccedilatildeo de jogos pode ainda ser relevante filosoficamente para se entender a
natureza de sistemas formais a partir de uma abordagem wittgensteiniana
usando principalmente os textos compilados como WWK
Referecircncias
BOREL Eacute La theacuteorie du jeu et les eacutequations inteacutegrates agrave noyau symeacutetrique Comptes
Rendus Hebdomadaires des Seacuteances de lrsquoAcademie des Sciences 173 1304ndash1308
1921English Translation (Savage LJ) The theory of play and integral equations
with skew symmetric kernels Econometrica 21 97ndash100 (1953)
DA COSTA N C A Nota sobre o conceito de contradiccedilatildeo Anais da Sociedade Paranaense
de Matemaacutetica1 6ndash8 1958
ENGELMANN MauroWittgensteinrsquos philosophical development phenomenology
grammar method and the antropological view Hampshire Palgrave Macmillan2013
Marcos Silva | 157
FREGE G Grundgesezte der arithmetic Band II Verlag Hermann Pohle Jena 1903
GENTZEN G 1934ndash1935 Untersuchungen uumlber das logische schliessen
(Investigations into logical inference) PhD thesis Universitaumlt
GoumlttingenPublished in Gentzen 1969 68ndash131
_____ The collected papers of Gerhard Gentzen ed M Szabo Amsterdam North-
Holland 1969
HACKER PM S Insight and illusion 2 ed Oxford 1986
JASKOWSKI S On the rules of suppositions in formal logic Studia Logica 15-32 1934
LOumlF Martin On the meanings of the logical constants and the justifications of the logical
laws Nordic Journal of Philosophical Logic Vol 1 No 1 p 11ndash60 Scandinavian
University Press 1996
_____ Verificationism then and now In M van der Schaar (ed) Judgement and the
epistemic foundation of logic 3 Logic epistemology and the unity of science 31 p
03-14 Springer Science amp Business Media Dordrecht 2013
LORENZEN Paul Ein dialogisches konstruktivitaumltskriterium In Infinitistic methods 1961
Infinitistic methods (Proceedings of the Symposium on Foundations of Mathematics
Warsaw 2ndash9 September 1959) Oxford Pergamon Press p 193ndash2001961
WEYL Hermann David Hilbert and his mathematical work Bull Am Math Soc 50 612ndash
654 1944
WITTGENSTEIN L Some remarks on logical form Proceedings of the Aristotelian Society
Supplementary Volumes Vol 9 Knowledge experience and realism p 162-171
Published by Blackwell Publishing on behalf of The Aristotelian Society 1929
_____ Wittgenstein und der Wiener kreis (1929-1932) Translated into English by
Joachim Schulte and Brian McGuinnessWerkausgabe Band 3 Frankfurt am Main
Suhrkamp 1984a
_____ Tractatus logico-philosophicus Tagebuumlcher 1914-16 philosophische
untersuchungen Werkausgabe Band 1 Frankfurt am Main Suhrkamp 1984b
9
Revisitando o Argumento da Linguagem Privada
Marcus Joseacute Alves de Souza 1
Introduccedilatildeo
Falar de ldquolinguagem privadardquo aponta para um conceito intuitivamente
ou aparentemente contraditoacuterio como pode existir uma linguagem privada
uma vez que a linguagem de um ponto de vista simplista pressupotildee
comunicaccedilatildeo interaccedilatildeo entre falantes Linguagem privada parece um
oxiacutemoro patente Entretanto do ponto de vista teoacuterico a depender de qual
moldura teoacuterica do significado se adere ldquolinguagem privadardquo natildeo eacute algo tatildeo
contraditoacuterio assim Deste modo ao se falar de ldquoargumento da linguagem
privadardquo natildeo se estaacute pensando num argumento que demonstre a
plausibilidade da linguagem privada Na acepccedilatildeo corrente dos estudos sobre
o pensamento de Wittgenstein objeto desta reflexatildeo ldquoargumento da
linguagem privadardquo eacute o argumento mais especificamente os argumentos
que tecircm a linguagem privada como objeto a rigor argumentos contra a
linguagem privada Segundo Hacker (2010 p 616) o que a expressatildeo indica
natildeo satildeo argumentos claros que o filoacutesofo apresenta na verdade satildeo
argumentos de tortuosa interpretaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo presentes nos
paraacutegrafos de 243 a 315 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas
A proposta deste artigo eacute modesta Primeiro apresentar um possiacutevel
modo de estruturaccedilatildeo do argumento que tornaria plausiacutevel uma
linguagem privada argumento se de enquadra no acircmbito de uma
1 Professor de Filosofia da UFAL Liacuteder do Grupo Linguagem e Cogniccedilatildeo-UFAL
Marcus Joseacute Alves de Souza | 159
compreensatildeo mental de caraacuteter privatista A seguir indicar trecircs pontos de
ataques contra o argumento extraiacutedos dos paraacutegrafos das Investigaccedilotildees
Filosoacuteficas tentando mostrar falhas nas premissas do argumento
formalizado da plausibilidade da linguagem privada Feito isso encerra-
se o artigo anunciando brevemente alguns elementos desdobrados da
proposta do filoacutesofo para pensar o mental dentro do quadro da
compreensatildeo de linguagem do filoacutesofo
Argumento a Favor da Linguagem Privada
Natildeo eacute claro que Wittgenstein tenha em mente um alvo apenas de ataque
nos trechos indicados como referecircncia do que ficou conhecido como
ldquoargumento da linguagem privadardquo2 todavia eacute possiacutevel determinar que o
filoacutesofo busca atacar certa imagem de privacidade que podemos chamar de
moderna e o modelo de teoria do significado subjacente a tal privacidade
modelo mentalista de significado Nesta imagem existe o mundo da proacutepria
mente e o mundo exterior agrave mente dos objetos materiais e da mente das
outras pessoas O mundo da proacutepria mente eacute privado inicialmente
encapsulado em si e acessiacutevel privadamente de modo direto ao sujeito mental
e de modo indireto por outros sujeitos mentais (outras mentes)
Numa acepccedilatildeo cartesiana a mente eacute uma substacircncia imaterial ligada
ao corpo do portador da mente mas o corpo poderia existir por si proacuteprio
Na mente cartesiana se desenrola os pensamentos sentimentos
sensaccedilotildees Estes satildeo fundamentalmente privados Tal compreensatildeo cria
um problema efetivo quanto ao conhecimento de outras mentes
Tal imagem tambeacutem sobrevive numa acepccedilatildeo empirista mesmo que
o candidato a mente seja algo empiricamente observaacutevel o ceacuterebro Parece
existir uma dificuldade em transpor das operaccedilotildees neuroloacutegicas toda a
gama de manifestaccedilotildees comportamentais e toda a gama de capacidades
2 Eacute possiacutevel perceber que o ataque eacute claro para uma imagem cartesiana de mente bem como o modelo linguagem x designaccedilatildeo no ldquoargumento da linguagem privadardquo mas eacute possiacutevel perceber pelo itineraacuterio reflexivo do filoacutesofo que mesmo uma compreensatildeo empiacuterica mentalista da linguagem ou mesmo o ataque pode se conectar com problemas detectados naquilo que foi o projeto de linguagem fenomenoloacutegica Cf Nielsen 2008 Parte I
160 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
intelectuais disposiccedilotildees etc da nossa espeacutecie e de outras semelhantes o
que faz com que se estabeleccedila uma independecircncia de esferas mental e
fiacutesica (manifestaccedilotildees comportamentais x operaccedilotildees neuronais) que
alimenta a mesma imagem de mente
A compreensatildeo que a mente eacute algo privado e que a linguagem eacute
expressatildeo externa do que estaacute interno eacute a concepccedilatildeo em termos gerais
comum tanto do idealismoracionalismo quanto do
fisicalismoempirismo Isso cria um problema para o conhecimento de
outras mentes sendo que o encaminhamento da soluccedilatildeo se estabeleccedila por
analogia entre minha mente que tenho acesso direto e a mente dos
outros que numa hipoacutetese otimista tenho acesso indireto
Assim um dos alvos talvez o principal dos trechos das Investigaccedilotildees
Filosoacuteficas seja a compreensatildeo privada da mente e associada a esta a
teoria do significado que decorre desta privacidade que daacute condiccedilotildees para
se pensar uma linguagem privada No sect 243 Wittgenstein (1999) daacute as
bases para esta linguagem Natildeo se trata de uma linguagem
circunstancialmente privada algo como monoacutelogos criptografados mas
uma linguagem radicalmente privada A indicaccedilatildeo do filoacutesofo eacute uma
linguagem que diga respeito agraves proacuteprias ocorrecircncias mentais vivecircncias
interiores que seriam nesta moldura radicalmente privadas
Mas seria tambeacutem pensaacutevel uma linguagem na qual algueacutem pudesse para seu
uso proacuteprio anotar ou exprimir suas vivecircncias interiores ndash seus sentimentos
seus estados de espiacuterito ndash Natildeo podemos fazer isso em nossa linguagem
costumeira ndash acho que natildeo As palavras dessa linguagem devem referir-se
agravequilo que apenas o falante pode saber agraves suas sensaccedilotildees imediatas privadas
Um outro pois natildeo pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN
1999 p 98 sect 243)
Assim aquilo sobre de que a linguagem se compotildee signos regras
referecircncia enfim todos seus elementos seriam privados apenas o criador-
usuaacuterio definiria o significado e apenas ele saberia o significado dos signos
De modo esquemaacutetico o argumento a favor da possibilidade de uma
linguagem privada poderia ser feito assim
Marcus Joseacute Alves de Souza | 161
- ldquoSensaccedilotildees satildeo privadas da mente da pessoa que as temrdquo (premissa 1 = P1)
- ldquoAs sensaccedilotildees satildeo inacessiacuteveis a outras pessoas uma vez que os outros natildeo tecircm
certeza se algueacutem tem ou natildeo uma sensaccedilatildeo particularrdquo (premissa 2 = P2)
- ldquoAlgueacutem pode dar um nome a uma sensaccedilatildeo particular na privacidade de sua mente
e usar este nome e o acerto deste nome nunca seria acessado por ningueacutem a
natildeo ser o usuaacuterio privadordquo (premissa 3 = P3)
- ldquoO significado de um termo nesta linguagem nada mais eacute que a referecircncia de uma
ocorrecircncia mental (sensaccedilatildeo) e seu modo de expressatildeo (signo) sobre uma
sensaccedilatildeo presente ou passada eacute a simples indicaccedilatildeo privada (ostensatildeo) desta
ocorrecircncia mentalrdquo (premissa 4 = P4)
rarr ldquoA linguagem privada eacute possiacutevel seria a linguagem de nossas ocorrecircncias
mentaisrdquo (Conclusatildeo)
Fazendo uma avaliaccedilatildeo inicial dessas premissas se pode estabelecer
sobretudo dentro de uma moldura privatista da mente e uma concepccedilatildeo
mentalista do significado que existe uma certa plausibilidade do argumento
A premissa 1 (P1) parece ser verdadeira as ocorrecircncias mentais as
sensaccedilotildees satildeo privadas ldquoningueacutem sente a minha dorrdquo por exemplo eacute uma
afirmaccedilatildeo claramente verdadeira o que aponta para a verdade da
premissa 1
A premissa 3 (P3) parece ser verdadeira tambeacutem parece ser
plausiacutevel admitir sua verdade Sendo privadas e sendo algo as sensaccedilotildees
podem ser nomeadas como qualquer objeto exterior na linguagem puacuteblica
(mesmo que passe por um processo mental de representaccedilatildeo) Como
apenas o criador e usuaacuterio conhece o termo soacute ele conhece sua associaccedilatildeo
referencial com o objeto e soacute ele conhece o objeto logo eacute possiacutevel admitir
que soacute ele sabe se acertou ou natildeo no uso deste termo
A premissa 4 (P4) tambeacutem pode ser plausiacutevel uma vez que pode se
admitir que o ato de ostensatildeo eacute fundamental para a instanciaccedilatildeo do
significado de um termo eacute possiacutevel admitir que semanticamente o
significado de um termo eacute sua substituiccedilatildeo por ostensatildeo no plano da
linguagem e como os elementos satildeo privados tal mecanismo pode ser
executado privadamente
162 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A premissa 2 (P2) parece ser a problemaacutetica pois parece existir uma
seacuterie de situaccedilotildees que claramente sabemos que uma pessoa tem dor por
exemplo o que aponta para uma implausibilidade da premissa Claro que
existem situaccedilotildees de simulaccedilatildeo de sensaccedilotildees mas seraacute possiacutevel duvidar que
ao enfiar um prego debaixo da unha de uma pessoa ela natildeo tenha dor Os
mais aferrados agrave moldura privatista da mente podem pensar que no maacuteximo
o que posso fazer eacute dado agraves reaccedilotildees da pessoa (comportamento) supor que
ela estaacute tendo dor pois natildeo sinto a dor dela logo natildeo tenho condiccedilotildees de
dizer com certeza que ela tem ou natildeo dor Assim mesmo que se possa pensar
que haacute uma inconfundiacutevel expressatildeo comportamental de dor natildeo existe clara
e confiaacutevel regularidade entre causa e efeito no caso das sensaccedilotildees Por mais
regular que seja a relaccedilatildeo entre enfiar um prego debaixo de uma unha de
algueacutem e este algueacutem gritar chorar se contorcer parece possiacutevel pensar
contra-exemplos desta regularidade algueacutem que fique impassiacutevel por
exemplo Assim parece natildeo existir uma correlaccedilatildeo perfeita entre tiacutepica causa
do comportamento de dor a dor e o comportamento de dor o que torna mais
plausiacutevel a premissa 2
Esta avaliaccedilatildeo preliminar tem como objetivo reforccedilar as bases da
plausibilidade da admissatildeo da linguagem privada P1 aponta para o
aspecto da natureza privada das ocorrecircncias mentais P2 para a dimensatildeo
epistemoloacutegica das ocorrecircncias mentais P3 e P4 para o mecanismo
semacircntico da proposta de linguagem privada
O exemplo recorrente de Wittgenstein eacute o da dor em algumas
ocasiotildees trabalha tambeacutem com o exemplo das cores Natildeo se pretende fugir
desses exemplos pois dado a sua vivacidade e forccedila retoacuterica servem
melhor para esclarecer a questatildeo e desdobrar para outros exemplos
Pontos de Ataque ao Argumento
A seguir tentaremos indicar a partir das reflexotildees de Wittgenstein o
ataque a este argumento na verdade indicando a inadmissibilidade do
argumento proposto para embasar a possibilidade da linguagem privada
Marcus Joseacute Alves de Souza | 163
A Engrenagem Solta
Este ponto de ataque pode ser detectado na sequecircncia dos paraacutegrafos
271 272 279 e 293 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas
Eacute uma das metaacuteforas recorrentes de Wittgenstein para explicar a
linguagem a das engrenagens Assim aponta para o fato do significado ser
uma articulaccedilatildeo de uma seacuterie de elementos
Para a formulaccedilatildeo deste ataque os paraacutegrafos apontam para a
ambiguumlidade possiacutevel na denotaccedilatildeo do significado de palavras de cores
Nos paraacutegrafos eacute possiacutevel perceber a alegaccedilatildeo de que cada pessoa processa
seu exemplar de cor na sua mente e que existe a possibilidade de confusatildeo
na denotaccedilatildeo das cores Eacute possiacutevel que eu e parte da humanidade tenham
uma sensaccedilatildeo de vermelho e outra parte tenha outra sensaccedilatildeo cromaacutetica
(WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 272)
Um empirista como Locke admite a mesma situaccedilatildeo mas
sabiamente ele aponta (como Wittgenstein) que eacute uma situaccedilatildeo
inverificaacutevel Ou seja se vocecirc tem um exemplar privado na memoacuteria que
vocecirc chama de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute verde e eu tenho um
exemplar privado que eu chamo de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute azul e
um terceiro chama seu exemplar privado de ldquovermelhordquo e ele na realidade
eacute vermelho Dado a privacidade efetiva natildeo posso verificar os exemplares
privados dos trecircs A questatildeo mais problemaacutetica entra pela porta dos fundos
pela linguagem Para Locke ndash e aqui eacute a oportunidade de expor uma teoria
mentalista standart do significado - os nomes satildeo marcas sensiacuteveis de ideias
armazenadas na memoacuteria assim as palavras estatildeo em associaccedilatildeo com ideias
da mente Se uma palavra natildeo ldquoexecutardquo a mesma ideia armazenada na
mente de duas pessoas ou mais pessoas ela natildeo seraacute significativa
Quando um homem fala com outro o faz para que possa ser entendido e o fim
da fala implica que estes sons como marcas devem tornar conhecidas suas
ideias ao ouvinte Essas palavras entatildeo satildeo as marcas das ideias de quem fala
ningueacutem pode aplicaacute-las como marcas imediatamente a nenhuma outra coisa
164 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
exceto agraves ideias que ele mesmo possui jaacute que isto as tornaria sinais de suas
proacuteprias concepccedilotildees e ao contraacuterio aplicaacute-las a outras ideias faria com que elas
fossem e natildeo fossem ao mesmo tempo sinais de suas ideias e deste modo natildeo
teriam de nenhum modo qualquer significado (LOCKE 1983 p 222)
Assim no uso puacuteblico o desacordo eacute detectaacutevel uma vez que um dos
falantes mostre publicamente o que eacute que ele tem como exemplar de
ldquovermelhordquo do mesmo modo o outro e assim aleacutem de detectar o desacordo
superaacute-lo isso mantendo a moldura mentalista Cores a princiacutepio satildeo
elementos ou aspectos fiacutesicos de objetos fiacutesicosmateriais uma vez que se
tem a vantagem de poder ldquomostrarrdquo exteriormente um exemplar fiacutesico
similar ou idecircntico com a cor para superar a ambiguumlidade Transpor esta
problemaacutetica para o exemplo da dor torna a situaccedilatildeo bem mais problemaacutetica
e complexa Dor eacute uma sensaccedilatildeo sendo privada ningueacutem que natildeo tenha a
experiecircncia da sensaccedilatildeo de dor saberaacute o que significa o signo qualquer que
o designa Se o usuaacuterio e falante do signo dor usa-o para significar X num
momento e noutro para significar Y natildeo haveraacute desacordo nem
possibilidade de verificaccedilatildeo Na verdade seraacute tomado pelo usuaacuterio da
linguagem privada como significando a mesma coisa A mesma situaccedilatildeo
pode ser pensada em uso comum Suponha que algueacutem se queixa de uma
dor sendo privada a sensaccedilatildeo pode variar de pessoa para pessoa se for
diferente de pessoa para pessoa a duacutevida eacute sem sentido pois eacute radicalmente
insuperaacutevel a privacidade o que afeta o uso puacuteblico da palavra ldquodorrdquo como
palavra significativa Tal situaccedilatildeo aponta para a ideia de engrenagem solta
no uso do termo torna-se irrelevante se este algueacutem tem dor ou natildeo para a
significaccedilatildeo do termo em uso privado e para a comunicaccedilatildeo em uso puacuteblico
ldquo[] a roda que se pode mover sem que mais nada se mova natildeo pertence a
maacutequinardquo (WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 271)
A este respeito Wittgenstein (1997 p 427 ndash traduccedilatildeo nossa) diz nas
notas para conferecircncia de filosofia3 ldquoNatildeo eacute um ato oculto nomear um
objeto que possa dar significado a uma palavrardquo
3 Este texto que ficou com o tiacutetulo Conferecircncia Filosoacutefica (MS 166) eacute um conjunto de notas segundo Von Wright de em 1935 ou 1936 denotando uma conferecircncia natildeo realizada pelo filoacutesofo que segundo Anthony Kenny deveria ser realizada em 1941 supostamente para Academia Britacircnica Essas notas dizem respeito agraves reflexotildees de Wittgenstein
Marcus Joseacute Alves de Souza | 165
O que significa essa reflexatildeo para o argumento a favor da linguagem
privada Natildeo eacute um reforccedilo agrave privacidade como uma esfera inexpugnaacutevel
mas para mostrar que eacute irrelevante o objeto referecircncia da sensaccedilatildeo numa
moldura mentalista que na verdade supostamente funciona como
elemento fundamental para a significaccedilatildeo Nisso mesmo sem entrar no
meacuterito de que as sensaccedilotildees satildeo privadas (P1) sendo inacessiacuteveis aos outros
(P2) elas natildeo jogam papel algum para a significaccedilatildeo o que tira a
plausibilidade de P3 Entretanto no uso comum natildeo eacute possiacutevel supor que
estejamos num permanente engano ou mal entendido do significado dos
termos de sensaccedilatildeo evidecircncia que ataca a premissa 2 (P2)
Ausecircncia de Criteacuterio
No sect 258 Wittgenstein (1999) cria uma hipoteacutetica situaccedilatildeo de algueacutem
que quer escrever em um diaacuterio sobre a repeticcedilatildeo de uma sensaccedilatildeo Diz
ele ldquoPara tanto associo-a com o signo lsquoSrsquo e escrevo este signo num
calendaacuterio todos os dias em que tenho a sensaccedilatildeordquo A ideia eacute que faccedilo isso
por uma espeacutecie de ostensatildeo privada concentro-me na sensaccedilatildeo como
um apontar interior e a nomeio A pergunta que surge eacute ldquopara que tal
ritualrdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 100 sect 258) Se ele serve para
estabelecer o significado de ldquoSrdquo deve-se dizer que toda vez que a sensaccedilatildeo
surgir e nomeaacute-la isso se deu porque me recordo da ligaccedilatildeo pois gravei
em mim a associaccedilatildeo de ldquoSrdquo e a sensaccedilatildeo Escreve-se ldquoSrdquo para expressar
minha certeza interior dessa associaccedilatildeo Esta seria uma possiacutevel
justificativa para o ldquoritualrdquo mas ela eacute claramente insuficiente Pensemos
que significa tal situaccedilatildeo Um dos aspectos que mostra a insuficiecircncia eacute o
fato de que pode existir uma falha na instanciaccedilatildeo por erro de memoacuteria
por exemplo Ou seja marco no diaacuterio ldquoSrdquo no dia X quando tenho a
sensaccedilatildeo S no mesmo dia X tenho a mesma sensaccedilatildeo e por familiaridade
interior tenha a certeza de que a sensaccedilatildeo foi a mesma e marco ldquoSrdquo no
sobre a linguagem privada sua implausibilidade Mesmo pouco sistemaacutetico o escrito eacute um grande auxiacutelio para a compreensatildeo e da evoluccedilatildeo do tema no pensamento do filoacutesofo
166 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
calendaacuterio Passados 15 dias tenho a sensaccedilatildeo mas natildeo estou tatildeo certo
fico titubeante tenho duacutevidas de mim para mim se eacute a mesma sensaccedilatildeo
minha memoacuteria natildeo me daacute a certeza que precisaria mas depois de um
pouco mais de introspecccedilatildeo e esforccedilo de lembranccedila a certeza vem e anoto
ldquoSrdquo no calendaacuterio No dia seguinte tenho a sensaccedilatildeo desta vez ela me
pareceu niacutetida e familiar e escrevo sem titubear ldquoSrdquo
A pergunta que surge eacute como se pode sustentar a correccedilatildeo deste uso
denotativo interno Algueacutem mais apegado ao quadro criado atribuiria agrave
sinceridade ou agrave honestidade do ldquousuaacuteriordquo Mas novamente como aferir
tal sinceridade ou honestidade desta associaccedilatildeo Em tese apenas o usuaacuterio
da definiccedilatildeo extensional seria o avaliador de tal sinceridade ou
honestidade Seria algo como ldquoserei sincero com minha honesta
associaccedilatildeordquo ldquoserei sincero comigo mesmo e por isso garanto que natildeo erro
(intencionalmente) ao associar repetidas sensaccedilotildees ao signo lsquoSrsquordquo Mas ser
vocecirc o avalizador de sua sinceridade serum sincero e honesto avalizador
de sua sinceridade e honestidade eacute expressatildeo de um sem sentido de falta
de engrenagem significativa desta situaccedilatildeo E segundo Wittgenstein (1997
p 427-438) nas notas para conferecircncia filosoacutefica se o objeto interno
muda e nossa memoacuteria nos engana o que eacute possiacutevel e usamos a expressatildeo
privada de boa-feacute para significar o objeto usamos a mesma expressatildeo a
cada vez para significar algo distinto Falar de sinceridade honestidade e
boa feacute neste contexto eacute sem sentido exatamente porque boa-feacute
honestidade e sinceridade satildeo conceitos puacuteblicos natildeo faz sentido a natildeo
ser figuradamente e em uso puacuteblico dizer que se eacute honesto consigo
mesmo natildeo existe honestidade ou sinceridade privada Isso marca o
aspecto da falta de criteacuterio de correccedilatildeo desta situaccedilatildeo Aleacutem disso se pode
pensar voltando ao exemplo que se houvesse uma falha na memoacuteria que
criasse a incerteza o usuaacuterio natildeo deveria escrever ldquoSrdquo no dia em que ficou
com duacutevida isso eacute expressatildeo de que seria possiacutevel evitar o erro ou o
engano desde que o usuaacuterio fosse diligente epistemologicamente no
reconhecimento da sensaccedilatildeo e na sua posterior nomeaccedilatildeo Mas a questatildeo
natildeo eacute de capacidade memoriacutestica de reconhecimento A memoacuteria eacute uma
Marcus Joseacute Alves de Souza | 167
habilidade construiacuteda numa linguagem puacuteblica natildeo um ldquobauacuterdquo privado de
vivecircncias acumuladas Neste caso se o ldquousuaacuteriordquo competente ou natildeo em
termos de memoacuteria associar a sensaccedilatildeo ao signo ldquoSrdquo e disser que associou
corretamente seraacute correto Se ele associar incorretamente e disser que
associou corretamente seraacute correto tambeacutem Ou mesmo numa hipoacutetese
de desonestidade se ele natildeo tiver sensaccedilatildeo alguma mas se disser que ldquoSrdquo
significou tal sensaccedilatildeo assim seraacute tido como correto Isso fica claro em
trechos dos sectsect 258 e 259 ldquoCorreto eacute aquilo que sempre me parecer
correto E isto significa apenas que natildeo se pode falar de corretordquo ou ldquoA
balanccedila na qual se pesa as impressotildees natildeo eacute a impressatildeo da balanccedilardquo
(WITTGENSTEIN 1999 p 101 sectsect 258 e 259)
Tal situaccedilatildeo aponta para o fato de que criteacuterio privado de correccedilatildeo
natildeo eacute criteacuterio eacute impressatildeo de criteacuterio Parece haver criteacuterio mas satildeo
impressotildees de criteacuterio natildeo se descrimina nem corrige nada
O interessante eacute que todo o ldquoritualrdquo descrito anteriormente se faz a
semelhanccedila de procedimentos regrados publicamente transpostos par
uma esfera privada numa clara hipostasia de significado
Esta reflexatildeo ataca diretamente a premissas 3 (P3) e 4 (P4) do
argumento em favor da linguagem privada Do mesmo modo que a
inscriccedilatildeo ldquoSrdquo natildeo denota a sensaccedilatildeo necessariamente eacute possiacutevel como
decorrecircncia atacar a premissa 1 (P1) uma vez que se for o caso nem o
usuaacuterioportador da sensaccedilatildeo ldquosaberdquo se a tem isso pela situaccedilatildeo criada
pelo diaacuterio
TransiccedilatildeoDescritibilidade
No modelo cartesiano seria possiacutevel algo como o que Wittgenstein
aventa no sect 257 da crianccedila gecircnio que descobre por si mesma o nome de
uma sensaccedilatildeo ldquolsquoComo seria se os homens natildeo manifestassem suas dores
(natildeo gemessem natildeo fizessem caretas etc) Entatildeo natildeo se poderia ensinar
a uma crianccedila o uso das palavras lsquodor de dentersquo ndash Ora imaginemos que
uma crianccedila seja um gecircnio e descubra por si proacutepria um nome para a
168 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
sensaccedilatildeordquo (WITTGENSTEIN 1999 p 101) Seria uma situaccedilatildeo em que se
aprende o que eacute dor sentindo-a De novo seria algo como ao me
machucar concentro-me na sensaccedilatildeo e imprimo em mim o que eacute ldquodorrdquo
com um signo qualquer Como vimos pela argumentaccedilatildeo anterior falta
criteacuterios para identificar corretamente as minhas proacuteprias dores por
exemplo Mas deixemos isso de lado por enquanto pois no sect 265 haacute um
interessante desdobramento Admitindo a princiacutepio ser possiacutevel
identificar minhas proacuteprias dores corretamente entatildeo rigorosamente eu
natildeo poderia ser capaz de entender proferimentos como ldquoX tem dorrdquo
Podemos supor que descrevo dores a partir da minha proacutepria dor por
introspecccedilatildeo (ostensatildeo interior) mas se eacute assim isso natildeo me permite
ensinar aos outros como descrever a sensaccedilatildeo para uma pessoa particular
a rigor nem a mesma pois isso natildeo foi feito privadamente (Hume jaacute
assinalava que o ldquoeurdquo natildeo eacute objeto de introspecccedilatildeo) Assim quando sinto
dor natildeo eacute meu ego sente dor nem uma parte especial de mim como meu
ceacuterebro Isso eacute claramente uma falaacutecia (falaacutecia do homuacutenculo4) Mas o
ponto aqui eacute o da transcriccedilatildeo de ldquohaacute doresrdquo de ldquoeu tenho doresrdquo uma vez
que satildeo identificadas como sendo a mesma descriccedilatildeo pois natildeo posso sair
de mim dado a privacidade radical das sensaccedilotildees Do mesmo modo ldquoele
tem dorrdquo natildeo significa que eu designei ldquodorrdquo como algo que acontece num
lugar que natildeo seja o da minha privacidade ou seja o corpo ou a mente de
outra pessoa Se o modelo cartesiano estaacute certo ldquodorrdquo eacute um evento
privado captado introspectivamente enquanto ldquodorrdquo no corpo ou na
mente de outrem natildeo eacute algo introspectivamente captaacutevel por mim Assim
falar de dor a partir de mim como ldquodorrdquo de outra pessoa eacute no miacutenimo
uma significaccedilatildeo indevida Natildeo haacute garantia alguma de identidade entre os
significados (WITTGENSTEIN 1999 p 107 sect 292) Sendo assim natildeo
posso descrever dores que sinto em mim como dores que outro sente Em
sect302 Wittgenstein diz ldquoSe precisamos representar-nos a dor dos outros
segundo modelo de nossa proacutepria dor entatildeo isso natildeo eacute coisa faacutecil pois
4 KENNY J P The homunculus fallacy Cf KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein Oxford Blackwell 1984 p 124-136
Marcus Joseacute Alves de Souza | 169
devo representar-me dores que natildeo sinto segundo dores que sintordquo
(WITTGENSTEIN 1999 p 108)
O objetivo deste ponto eacute destacar agraves avessas que o fundamento
privado de constituiccedilatildeo da linguagem eacute implausiacutevel Ele cria uma seacuterie de
dificuldades para o argumento por analogia para conhecimento de outras
mentes numa perspectiva puacuteblica mostra que pela ausecircncia de criteacuterios
para constituiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel estabelecer qualquer descriccedilatildeo sobre algo
que ocorra na mente de outro tal linguagem aleacutem de ser privada deve
ser autocontida o que se mostra sem sentido pois mesmo as
descriccedilotildeesnomeaccedilotildees privadas perdem toda funccedilatildeo como descriccedilatildeo ou
nomeaccedilatildeo Nomear natildeo eacute um ato privado e oculto para que o termo tenha
significado Segundo Wittgenstein nas notas para conferecircncia filosoacutefica
nomear estaacute dentro de uma teacutecnica de uso nomear natildeo eacute espeacutecie de
batismo maacutegico privado ldquonatildeo serve para nada dizer que temos um objeto
privado ante a mente e damos um nomerdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 129
sect 428) Soacute existe nome segundo ele quando haacute uma teacutecnica para usaacute-lo e
esta teacutecnica natildeo pode ser privada Isso atesta agraves avessas que para que as
descriccedilotildeesnomeaccedilotildees sejam significativas devem ser puacuteblicas O que
ataca especialmente a premissa 2 do argumento (P2) as sensaccedilotildees natildeo satildeo
autocontidas indescritiacuteveis e inacessiacuteveis a outrem logo nem sempre terei
duacutevidas sobre se o outro tem ou natildeo determinada sensaccedilatildeo pois para que
a nomeaccedilatildeodescriccedilatildeo qualquer seja significativa ela deve ser puacuteblica o
que aponta para a noccedilatildeo de que se algum termo ou descriccedilatildeo de sensaccedilatildeo
eacute significativo ele se construiu publicamente logo as sensaccedilotildees natildeo satildeo
inacessiacuteveis e natildeo vivemos numa permanente duacutevida sobre se o outro tem
ou natildeo uma sensaccedilatildeo qualquer como dor
Argumento da Linguagem Privada e Filosofia da Mente em
Wittgenstein
Argumento da linguagem privada eacute o esforccedilo de levar ao extremo das
contradiccedilotildees uma concepccedilatildeo privada e representacional de mente que
170 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ganha forccedila ou eacute caudataacuteria de uma concepccedilatildeo referencialista de
significado (objeto ndash representaccedilatildeo ndash signo) Os argumentos apontam para
a perspectiva de fazer uma terapia de tal entendimento de apontar
deficiecircncias conceituais e de buscar suprimi-las com outro registro de
significado e mente
Este novo registro se encontra na concepccedilatildeo de linguagem como uso
como conjunto de accedilotildees puacuteblicas e regradas Nisso emergem conceitos natildeo
referencialistas de linguagem como jogos padrotildees regras criteacuterios
aprendizado e treinamento Tal conjunto de elementos numa avaliaccedilatildeo
panoracircmica dos usos de um termo e seus aparentados faz com que surja
a ldquogramaacuteticardquo de um conceito que abre espaccedilo para o entendimento da
filosofia da mente de Wittgenstein
A proposta de filosofia da mente do filoacutesofo se associa agrave gama de
conceitos surgidos do uso especialmente do uso de verbos intencionais
crer querer conhecer lembrar memorizar imaginar pensar etc cada
um com sua gramaacutetica Sendo assim mente natildeo eacute uma instacircncia
metafiacutesica privada e pneumaacutetica A configuraccedilatildeo dos elementos
conceituais extraiacutedo dos usos dos conceitos mentais traz uma explicaccedilatildeo
de uma seacuterie de fenocircmenos mentais a partir de
Nisso emergem conceitos de explicaccedilatildeo de uma seacuterie de fenocircmenos
mentais como
a) paracircmetros conceituais de definiccedilatildeo de conceitos mentais articulaccedilotildees e
exclusotildees pragmaacuteticas de uso que traccedilam o limite da gramaacutetica dos conceitos
mentais
b) assimetria pronominais de primeira e terceira pessoa como elementos
pragmaacuteticos que explicam a diferenccedila entre o interno e o externo como jogos
de linguagem entre auto e heacutetero descriccedilotildees ou expressotildees caracteriacutesticas de
exteriorizaccedilotildees (primeira pessoa) e afirmaccedilotildees sobre dimensotildees mentais de
outrem (terceira pessoa) diluindo o problema das outras mentes no formato
mentalista Assim interno e externo natildeo satildeo instacircncias metafiacutesicas o externo
natildeo eacute fachada do interno satildeo conceitos que tem um papel fundamental na nossa
imagem de pessoa como um conceito puacuteblico
c) comportamentos caracteriacutesticos associados pragmaticamente como conceitos
mentais
Marcus Joseacute Alves de Souza | 171
Outros aspectos da investigaccedilatildeo de Wittgenstein poderiam ser
levantados e aprofundados mas estes trecircs sumaacuterios elementos apontam
para onde se desenvolve a reflexatildeo do filoacutesofo A proposta aqui foi apenas
apresentar a discussatildeo sobre a plausibilidade da linguagem privada e
apontar elementos da filosofia da mente de Wittgenstein Do mesmo
modo compreender que o argumento contra a linguagem privada eacute de
fundamental importacircncia para o entendimento da filosofia da mente de
Wittgenstein
Referecircncias
HACKER P M S Privative language argument In DANCY J SOSA E STEUP M (eds)
A companion to epistemology 2 ed Oxford Wiley-Blackwell 2010 p 616-621
KENNY J P The homunculus fallacy In KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein
Oxford Blackwell 1984 pp 124-136
LOCKE J Ensaio acerca do entendimento humano Trad Anoar Aiex Satildeo Paulo Nova
Cultural 1983
NIELSEN K S The evolution of the private language argument Hampshire UK
Ashgate Publishing Company 2007
SCHROEDER S Private language and private experience In GLOCK H-J Wittgenstein
a critical reader Oxford Backwell Publishers 2001 p 174-198
WITTGENSTEIN L Ocasiones filosoacuteficas 1912-1951 Trad Angel Garcia Rodrigues
Madrid Ediciones Caacutetedra 1997
______ Investigaccedilotildees filosoacuteficas Trad Joseacute Carlos Bruni Satildeo Paulo Nova Cultural
1999
10
O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico
Ricardo S Rabenschlag 1
No capiacutetulo que publiquei nesta mesma seacuterie de livros que registram
parte da produccedilatildeo acadecircmica do grupo de pesquisa Linguagem e
Cogniccedilatildeo afirmei que seria inuacutetil tentar extrair uma concepccedilatildeo coerente
de ciecircncia a partir da anaacutelise das principais obras publicadas pelos Novos
Ateus Embora minha convicccedilatildeo a este respeito permaneccedila inalterada natildeo
creio ser inuacutetil a tentativa de identificar os principais equiacutevocos
epistemoloacutegicos que este e outros grupos de autodeclarados pensadores
criacuteticos cometem em sua cruzada contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo
Em sua acepccedilatildeo vulgar ter uma atitude criacutetica significa suspender o
juiacutezo acerca de uma ideia a menos que tenhamos argumentos logicamente
vaacutelidos e bem fundados seja para afirmaacute-la seja para negaacute-la
Compreendido dessa forma o pensamento ou a atitude criacutetica se opotildeem
de um lado ao raciociacutenio falacioso e de outro agrave atitude dogmaacutetica Por
que devemos preferir raciociacutenios vaacutelidos agrave raciociacutenios falaciosos eacute algo que
dispensa maiores explicaccedilotildees Com efeito o proacuteprio conceito de falaacutecia jaacute
conteacutem um elemento pejorativo e o mesmo se daacute em relaccedilatildeo agrave atitude
dogmaacutetica compreendida natildeo apenas como indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave
busca de razotildees para se afirmar ou negar certas ideias mas sobretudo
como recusa em fazecirc-lo mesmo quando a afirmaccedilatildeo ou a negaccedilatildeo destas
ideais entra em flagrante contradiccedilatildeo com aquilo que acreditamos com
base em argumentos vaacutelidos e bem fundados
1 Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Ricardo S Rabenschlag | 173
Mas se eacute assim o que poderia haver de errado com o Pensamento
Criacutetico Como jaacute disse natildeo creio que haja nada de errado com a ideia de que
devemos sempre que possiacutevel suspender nosso juiacutezo antes que tenhamos
boas razotildees quer para negar quer para afirmar algo A ressalva eacute importante
porque no acircmbito praacutetico nem sempre podemos nos dar ao luxo de
suspender nosso juiacutezo sobretudo quando as consequecircncias desta indecisatildeo
satildeo moralmente graves O problema com o Pensamento Criacutetico natildeo diz
respeito a esta atitude criacutetica moderada e sim a um conjunto mais ou menos
bem definido de crenccedilas largamente difundidas por autores que se
identificam como pensadores criacuteticos entre eles os principais
representantes do novo ateiacutesmo2 Neste breve capiacutetulo examinarei uma das
maacuteximas mais populares entre os autoproclamados pensadores criacuteticos3
Qualquer um que jaacute tenha passado dos cinquenta anos e que tenha
amor pela ciecircncia se lembra com carinho das noites em que assistiu pela
primeira vez e ao longo de vaacuterias semanas aos treze capiacutetulos da seacuterie
Cosmos apresentada por Carl Sagan Natildeo foi o primeiro programa do tipo
e nem o melhor segundo muitos criacuteticos4 mas sob um aspecto ele foi
uacutenico pois nenhum outro programa de divulgaccedilatildeo cientiacutefica alcanccedilou uma
audiecircncia tatildeo vasta Seja pela beliacutessima trilha sonora pelos efeitos
especiais inovadores ou pelo carisma do seu apresentador a seacuterie Cosmos
foi um marco na divulgaccedilatildeo cientiacutefica audiovisual
Uma das caracteriacutesticas principais da seacuterie Cosmos posteriormente
publicada em forma de livro com o mesmo tiacutetulo e que teve enorme
sucesso de vendas em todo o mundo eacute que ela natildeo visava apenas
2 Estou me referindo aqui aos Quatro Cavaleiros do Natildeo-Apocalipse Richard Dawkins Christopher Hitchens Daniel Dennett e Sam Harris
3 Esta eacute apenas uma pequena parte de um projeto mais amplo cujos resultados pretendo publicar num livro com o mesmo tiacutetulo do presente capiacutetulo
4 Muitos incluindo o autor deste capiacutetulo consideram a seacuterie A Escalada do Homem apresentada por Jacob Bronowski como sendo superior sobretudo em razatildeo do maior escopo profundidade e interdisciplinaridade
174 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
transmitir a moderna visatildeo cientiacutefica do mundo ela buscava tambeacutem
promover o espiacuterito cientiacutefico moderno que tornara possiacutevel aos cientistas
modernos descobrirem tudo aquilo que Carl Sagan nos apresentava de
maneira tatildeo cativante Em outras palavras uma parte substancial do
programa tinha como foco a proacutepria ciecircncia sua histoacuteria seus meacutetodos e
sobretudo a atitude criacutetica que segundo Carl Sagan estaacute na raiz dessa
inovadora e bem-sucedida maneira de buscar respostas para questotildees
fundamentais como a origem da vida a origem do homem e do pequeno
planeta que ele habita e ateacute mesmo a origem do proacuteprio Universo
Na tentativa de explicar para o grande puacuteblico os traccedilos essenciais da
atitude criacutetica que caracterizaria o pensamento cientiacutefico Carl Sagan fez
uso5 do seguinte aformismo que rapidamente foi adotado pelos
autoproclamados pensadores criacuteticos como um princiacutepio metodoloacutegico
essencial a toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica6
Princiacutepio de Sagan alegaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias
extraordinaacuterias7
Embora muitos educadores e divulgadores da ciecircncia entre eles
vaacuterios cientistas e alguns filoacutesofos interpretem o aforismo tornado ceacutelebre
por Carl Sagan como expressando um princiacutepio metodoloacutegico essencial a
toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica vejamos o que a
Epistemologia da Ciecircncia tem a dizer sobre essa suposta peacuterola do
pensamento criacutetico Nunca eacute demais lembrar que a Epistemologia da
Ciecircncia natildeo eacute uma ciecircncia que investiga a proacutepria ciecircncia como satildeo a
Histoacuteria da Ciecircncia e a Sociologia da Ciecircncia e sim uma disciplina filosoacutefica
que estuda a natureza a origem e os limites do conhecimento cientiacutefico
5 O aforismo eacute provavelmente uma adaptaccedilatildeo de uma frase praticamente idecircntica publicada num artigo de 1978 de autoria do socioacutelogo italiano Marcello Truzzi Com efeito em seu artigo ldquoOn the Extraordinary An Attempt at Clarification ele afirma que an extraordinary claim requires extraordinary proof
6 Uma busca raacutepida no Google Scholar revela que o aforismo na versatildeo tornada ceacutelebre por Sagan eacute usado em mais de 1000 publicaccedilotildees acadecircmicas
7 O aformismo orignal em inglecircs ldquoExtraordinary claims requery extraordinary evidencerdquo pode ser traduzido tambeacutem como ldquoAfirmaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias extraordinaacuteriasrdquo
Ricardo S Rabenschlag | 175
Antes de tudo eacute importante deixar claro que embora Carl Sagan
tenha empregado o aforismo para descartar explicaccedilotildees pseudocientiacuteficas
em momento algum ele afirmou que se tratava de um princiacutepio
metodoloacutegico e nem se deu ao trabalho de explicar seu sentido preciso e
a menos que se faccedila isso o tatildeo celebrado aforismo aparenta ser uma
apenas uma consequecircncia ilegiacutetima do fato psicoloacutegico de que em geral eacute
mais difiacutecil convencer algueacutem da verdade de uma crenccedila que contraria
suas expectativas do que da verdade de uma crenccedila que natildeo se contraria
suas expectativas Poderiacuteamos expressar essa compreensatildeo vulgar e
psicologista do Princiacutecio de Sagan do seguinte modo
Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas
requerem evidecircncias mais robustas
A consequecircncia eacute obviamente ilegiacutetima jaacute que da proposiccedilatildeo que
descreve o fato psicoloacutegico de que tendemos a rejeitar aquilo que contraria
nossas expectativas e a aceitar aquilo a que estamos acostumados natildeo se
segue o princiacutepio metodoloacutegico de que devemos ser mais exigentes em
relaccedilatildeo agraves evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que
contrariam nossas expectativas e menos exigentes em relaccedilatildeo agraves
evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que natildeo contrariam
nossas expectativas Mais importante que isso esta interpretaccedilatildeo
independentemente da sua origem natildeo eacute aceitaacutevel uma vez que se de fato
estamos naturalmente precavidos em relaccedilatildeo agraves alegaccedilotildees que
consideramos extraordinaacuterias nesse sentido psicoloacutegico do termo
ldquoextraordinaacuteriordquo o mais correto do ponto de vista metodoloacutegico seria
requerermos evidecircncias mais robustas justamente em relaccedilatildeo agraves
alegaccedilotildees que natildeo consideramos extraodinaacuterias
Outra possiacutevel leitura psicologista do Princiacutepio de Sagan resultaria de
uma interpretaccedilatildeo em que ambas as ocorrecircncias do termo
ldquoextraordinaacuteriasrdquo teriam a mesma acepccedilatildeo psicoloacutegica caso em que ele
assumiria a seguinte forma
176 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas
requerem evidecircncias igualmente contraacuterias as nossas expectativas
Em primeiro lugar cumpre observar que se o caraacuteter surpreendente
de uma evidecircncia for definido pelos seus efeitos isto eacute pelo caraacuteter
surpreendente daquilo que ela evidencia o aforismo natildeo passa de um
truiacutesmo pois nesse caso qualquer evidecircncia em favor de uma alegaccedilatildeo
que contrariasse nossas expectativas seria por definiccedilatildeo uma evidecircncia
contraacuteria as nossas expectativas Mais importante que isso por natildeo se
tratar de uma trivialidade evidecircncias cientiacuteficas possuem um caraacuteter
peculiar que deriva do fato de que as explicaccedilotildees cientiacuteficas operam por
meio de teorias Em razatildeo dessa dependecircncia muacutetua que existe entre as
teorias cientiacuteficas e as evidecircncias cientiacuteficas uma evidecircncia cientiacutefica
nunca deve ser considerada de modo independente Daiacute que mesmo os
eventos mais corriqueiros e ateacute mesmo banais aos olhos do cientista isto
eacute quando examinados a partir de um refencial teoacuterico particular possam
adquirir um significado surpreendente Lembro ainda hoje do espanto que
senti quando li pela primeira vez sobre o Paradoxo da Noite Escura8 Este
famoso paradoxo trata das implicaccedilotildees cosmoloacutegicas da escuridatildeo
noturna Ao menos para a maioria de noacutes eacute difiacutecil encontrar algo mais
banal do que a escuridatildeo noturna9 e no entanto Johannes Kepler
considerou justamente a escuridatildeo da noite como sendo uma evidecircncia da
finitude espacial do Universo
Em linhas gerais o raciociacutenio de Kepler foi o seguinte suponha que
as estrelas estejam distribuiacutedas regularmente e que o Universo seja
espacialmente infinito Para um observador em qualquer ponto deste
espaccedilo infinito haacute uma esfera com centro nele cujo volume aumenta com
o quadrado do seu raio Portanto agrave medida que nos dintanciamos deste
observador hipoteacutetico o nuacutemero de estrelas que intercepta o seu raio de
visatildeo cresce com o quadrado da distacircncia Como resultado natildeo importa
8 Tambeacutem conhecido como Paradoxo de Olbers
9 Os Esquimoacutes sabem muito bem que nem toda noite eacute escura
Ricardo S Rabenschlag | 177
para onde ele olhe haveraacute sempre uma estrela interceptando o seu raio de
visatildeo Portanto se nosso Universo fosse espacialmente infinto e estivesse
repleto de estrelas regularmente distribuiacutedas como defendia Giordano
Bruno o ceacuteu noturno deveria ser tatildeo brilhante quanto a superfiacutecie de uma
estrela meacutedia Como isso natildeo ocorre a conclusatildeo do argumento eacute falsa o
que implica que ao menos uma das premissas do argumento eacute igualmente
falsa ou seja ou o Universo eacute espacialmente infinito ou as estrelas natildeo
estatildeo regularmente distribuiacutedas ou ambos Como a distribuiccedilatildeo das
estrelas se mostrava regular Kepler inferiu que o Universo deveria ser
espacialmente finito mostrando que algo tatildeo coriqueiro como a escuridatildeo
da noite pode ser legitimamente tomado como evidecircncia de uma alegaccedilatildeo
absolutamente extraodinaacuteria10
Este eacute apenas um entre muitos exemplos em que eventos ou fatos
nada extraordinaacuterios serviram de evidecircncia para afirmaccedilotildees
extraordinaacuterias o que mostra claramente a inadequaccedilatildeo desta segunda
interpretaccedilatildeo psicoloacutegica do Princiacutepio de Sagan Outro que me traz boas
recordaccedilotildees eacute o do chuvisco que aparecia nos antigos televisores de tubo
quando as emissoras de TV encerravam a sua programaccedilatildeo diaacuteria e que
hoje sabemos ser causado pela Radiaccedilatildeo Coacutesmica de Fundo que teve
origem no Big Bang Em outras palavras uma evidecircncia de que o Universo
teve iniacutecio haacute bilhotildees de anos numa ldquogrande explosatildeordquo estava agrave vista de
todos sem que ningueacutem suspeitasse
Em resumo interpretado psicologicamente o tatildeo celebrado Princiacutepio
de Sagan ou eacute trivial ou deriva de uma concepccedilatildeo profundamente
equivocada acerca da natureza do conhecimento cientiacutefico moderno Em
ambos os casos o Princiacutepio de Sagan natildeo deve ser considerado vaacutelido e
seu uso como guia para a investigaccedilatildeo cientiacutefica tem consequecircncias
desastrosas para ciecircncia
10 A soluccedilatildeo atualmente aceita para o paradoxo eacute diferente daquela proposta por Kepler Atualmente o paradoxo eacute resolvido com base em duas descobertas a) que o Universo tem uma idade finita e b) a luz tem uma velocidade finita a luz das estrelas mais distantes ainda natildeo teve tempo de chegar ateacute noacutes Portanto o Universo que enxergamos eacute limitado no espaccedilo por ser finito no tempo A escuridatildeo da noite eacute uma prova de que o Universo teve um iniacutecio
178 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Mas natildeo haveria alguma interpretaccedilatildeo ao mesmo tempo natildeo trivial e
natildeo psicologista do Princiacutepio de Sagan No intuito de nos livrarmos de
uma leitura pscicologista da formulaccedilatildeo tornada ceacutelebre por Carl Sagan
poderiacuteamos reformular o Princiacutepio de Sagan como expressando a ideia de
que deve haver uma proporcionalidade entre a forccedila das nossas alegaccedilotildees
e a forccedila das evidecircncias que apresentamos em favor delas Uma maneira
de expressar isso poderia ser a seguinte
Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees extraordinariamente fortes requerem
evidecircncias extraordinariamente fortes
Com base nessa reinterpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan poder-se-ia
alegar por exemplo que acreditar na existecircncia de discos voadores com
base apenas no fato de que algueacutem afirma ter visto um disco voador seria
uma violaccedilatildeo do princiacutepio jaacute que a forccedila da alegaccedilatildeo medida pelo impacto
que ela tem sobre o conhecimento cientiacutefico exigiria evidecircncias mais
robustas como por exemplo a exibiccedilatildeo dos destroccedilos do disco voador que
a pessoa alega ter visto e natildeo o simples relato de uma testemunha
afirmando ter visto um disco metaacutelico voando em baixa altitude No
primeiro caso tudo o que temos eacute o relato do avistamento de um OVNI
(Objeto Voador Natildeo Indentificado) no segundo temos uma evidecircncia
material a saber o proacuteprio objeto avistado o que nos permite uma
avaliccedilatildeo direta e possiacutevel identificaccedilatildeo do objeto que iraacute ou natildeo confirmar
a afirmaccedilatildeo de que o objeto avistado era uma nave alieniacutegena O mais
provaacutevel eacute que a pilha de destroccedilos por mais extraordinaacuteria que pareccedila
aos olhos de um leigo seja imediatamente reconhecida por um especialista
como sendo os restos de um balatildeo meteoroloacutegico ou algum outro aparato
tecnoloacutegico humano como de fato aconteceu no famoso incidente ocorrido
em Roswell Novo Meacutexico em 1947
Mas seraacute que esta reformulaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan tem o mesmo
sentido que os autoproclamados pensadores criacuteticos conferem a sua
Ricardo S Rabenschlag | 179
formulaccedilatildeo original E ainda que a aceitemos como uma traduccedilatildeo razoaacutevel
do Princiacutepio de Sagan o sentido da expressatildeo ldquoextraordinariamete fortesrdquo
que aparece nas expressotildees ldquoalegaccedilotildees extraordinariamente fortesrdquo e
ldquoevidecircncias extraordinariamente fortesrdquo eacute o mesmo em ambos os casos E
ainda que se diga que elas tecircm o mesmo sentido eacute mesmo verdadeiro que
toda alegaccedilatildeo que tem grande impacto em nossa atual visatildeo cientiacutefica do
mundo requer evidecircncias igualmente extraordinaacuterias Natildeo poderia haver
evidecircncias absolutamente conformes agrave visatildeo cientiacutefica do mundo e que natildeo
obstante isso seriam uma soacutelida evidecircncia para alegaccedilotildees extraodinaacuterias
como a finitude espacial do Universo A forccedila de uma evidecircncia eacute medida
pelas suas consequecircncias ou haacute um criteacuterio intriacutenseco como sugere a
comparaccedilatildeo entre evidecircncias testemunhais e materiais Alegaccedilotildees
conformes a nossa visatildeo de mundo podem ser aceitas com base apenas em
testemunhos ao passo que as que contrariam o que acreditamos saber
requerem evidecircncias materiais Nesse uacuteltimo caso que admitimos ser o
mais promissor qual a relevacircncia da forccedila de nossas alegaccedilotildees no que diz
respeito ao tipo de evidecircncia que devemos exigir para aceitaacute-la
Uma vez mais nos vemos em meio a uma dupla confusatildeo De um lado
natildeo temos clareza sobre o significado do enunciado do princiacutepio de outro
natildeo temos uma concepccedilatildeo clara sobre e natureza do conhecimneto
cientiacutefico Visando sanar estes problemas poderiacuteamos interpretar a ideia de
forccedila de uma alegaccedilatildeo ou de uma evidecircncia como uma referecircncia agravequilo que
poderiacuteamos chamar de estatuto epistecircmico de uma proposiccedilatildeo definido
como o grau de confiabilidade de uma proposiccedilatildeo Assim compreendido o
Princiacutepio de Sagan seria um corolaacuterio da ideia de que o estatuto epistecircmico
das premissas de um argumento deve ser igual ao estatuto epistecircmico da
sua conclusatildeo e poderia ser enunciado do seguinte modo
Interpretaccedilatildeo espistecircmica alegaccedilotildees com alto grau de confiabilidade
requerem evidecircncias com alto grau de confiabilidade
Reneacute Descartes certamente concordaria com essa interpretaccedilatildeo do
Princiacutepio de Sagan afinal toda sua filosofia estaacute baseada na ideia de que
180 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
somente evidecircncias indubitaacuteveis podem servir de base para afirmaccedilotildees
indubitaacuteveis11 Natildeo foi outra a razatildeo que o levou numa das passagens mais
memoraacuteveis da histoacuteria da filosofia12 a apresentar o Cogito como a uacutenica
saiacuteda para o que ele chamou de duacutevida hiperboacutelica e tomaacute-lo como o uacutenico
fundamento aceitaacutevel para a filosofia Ainda que Descartes esteja longe de
ser um iacutecone dos ldquopensadores criacuteticosrdquo um projeto fundacionista anaacutelogo
ao cartesiano estaacute na raiz do Positivismo Loacutegico uma das fontes de
inspiraccedilatildeo da grande maioria dos autoproclamados pensadores criacuteticos
Rudolf Carnap o maior expoente desta corrente neopositivista buscou
ancorar todo o conhecimento humano no que ele chamou de enunciados
protocolares descritos por ele como sendo registros em primeira pessoa
de dados sensiacuteveis elementares (sense data) que estariam na base de toda
a experiecircncia humana
O problema com essa interpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan eacute que
embora a nova formulaccedilatildeo do princiacutepio seja mais promissora ela
obviamnete natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo plausiacutevel do Princiacutepio de Sagan jaacute
que o grau de confiabilidade de alegaccedilotildees extraordinaacuterias natildeo eacute alto e sim
extremamente baixo daiacute que a maioria de noacutes esteja naturalmente
precavido contra elas
Uma terceira interpretaccedilatildeo epistecircmica do Princiacutepio de Sagan resulta
de uma leitura indutivista humeana da ideia de estatuto epistecircmico de uma
proposiccedilatildeo A ciecircncia segundo David Hume eacute um empreendimento
essencialmente indutivo e provisoacuterio e sua grandeza reside precisamente
no fato de que a ciecircncia natildeo busca verdades absolutas Do fato de que todo
conhecimento eacute provisoacuterio e por conseguinte dubitaacutevel natildeo se segue
contudo que nossas crenccedilas tenham todas elas o mesmo grau de
confiabilidade Obviamente uma afirmaccedilatildeo que jaacute tenha sido refutada natildeo
eacute nem um pouco confiaacutevel Mas o que dizer das que ainda natildeo foram
refutadas Segundo David Hume o grau de confiabilidade de uma crenccedila
11 No caso do coacutegito a proacutepria afirmaccedilatildeo ou mais precisamente o pensamento que ela expressa eacute evidecircncia da sua veracidade
12 Iniacutecio da Segunda Meditaccedilatildeo das Meditaccedilotildees Metafiacutesicas de Reneacute Descartes
Ricardo S Rabenschlag | 181
eacute proporcional ao nuacutemero de vezes em que ela foi experimentalmente
confirmada Seguindo essa linha de raciociacutenio poder-se-ia interpretar o
Princiacutepio de Sagan como a recomendaccedilatildeo de que afirmaccedilotildees que
contrariem crenccedilas que tenham sobrevivido a inuacutemeras e variadas
tentativas de refutaccedilatildeo e que satildeo nesse sentido extraordinaacuterias devam
ser igualmente submetidas a um longo e variado processo de testes
acumulando assim uma quantidade igualmente extraordinaacuteria de
evidecircncias em seu favor antes de serem consideradas mais confiaacuteveis que
agraves antigas crenccedilas que elas pretendem substituir
Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees que contrariam crenccedilas
corroboradas por uma extraordinaacuteria quantidade de evidecircncias requerem um
nuacutemero igualmente extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis
A longa disputa entre os sistemas ptolomaico e copernicano que
marca o iniacutecio da ciecircncia moderna eacute um bom exemplo de como devemos
ser cautelosos em relaccedilatildeo a afirmaccedilotildees extraordinaacuterias como por
exemplo a afirmaccedilatildeo de que a Terra natildeo estaacute parada no centro do
Universo e sim girando em uma grande velocidade em torno do Sol Tenho
certeza de que a maioria dos Novos Ateus endossaria aliviado esta leitura
indutivista do Princiacutepio de Saganrdquo e natildeo ficaria de modo algum surpreso
se Richard Dawkins acrescentasse de forma desdenhosa a observaccedilatildeo de
que era exatamente isso que ele estava querendo dizer o tempo todo
embora nunca o tivesse feito por achar oacutebvio demais Infelizmente as
coisas natildeo satildeo tatildeo simples quanto parecem a um leigo em Espistemologia
da Ciecircncia como Richard Dawkins Em primeiro lugar mesmo nos casos
mais promissores como o da disputa entre geocentrismo e
heliocentrismo a interpretaccedilatildeo mencionada acima apresenta seacuterios
problemas jaacute que o que pocircs fim a disputa em favor do heliocentrismo natildeo
foi um nuacutemero extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis e sim a criaccedilatildeo da
primeira teoria fiacutesica moderna capaz de explicar de maneira unificada
fenocircmenos corriqueiros como o movimento dos corpos terrestres e o
movimento dos corpos celestes
182 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Uma vez mais o problema aqui eacute o de como evitar a confusatildeo entre
o loacutegico e o psicoloacutegico Natildeo resta duacutevida de que a repeticcedilatildeo de uma mesma
ocorrecircncia aumente nossa confianccedila em relaccedilatildeo ao enunciado universal
que a descreve a questatildeo contudo eacute saber se ela aumenta o nosso
conhecimento e natildeo as nossas expectativas Eacute provaacutevel que um iacutempeto
indutivista esteja na base de parte importante do apoio ao Princiacutepio de
Sagan embora natildeo devamos esquecer que boa parte dos seus apoiadores
em especial os autoproclamados pensadores criacuteticos tem imensa adoraccedilatildeo
pelo racionalismo popperiano e que Karl Popper considerava ilegiacutetima
qualquer tentativa de justificar indutivamente uma crenccedila De qualquer
modo tanto o fundacionismo como o indutivismo satildeo extremamente
problemaacuteticos razatildeo pela qual foram haacute muito tempo descartados e natildeo
haacute hoje muitos especialistas que defendam quer a ideia de um fundamento
inabalaacutevel para as ciecircncias quer a ideia de uma loacutegica indutiva
Pode-se contra-argumentar dizendo que natildeo haacute verdades ou
conhecimento em sentido absoluto que natildeo haacute um mundo ou uma realidade
independente do sujeito que tudo eacute relativo provisoacuterio e incerto e que
portanto uma loacutegica indutiva eacute tatildeo boa quanto uma dedutiva Mas
obviamente que se adotarmos esta estrateacutegia de defesa o problema assume
uma feiccedilatildeo ainda mais sombria pois a menos que ser possa conciliar esta
concepccedilatildeo relativista com a objetividade cientiacutefica natildeo haacute como evitar que o
ceticismo moderado que caracteriza a atitude cientiacutefica se transforme num
ceticismo radical e portanto numa nova e poderosa forma de irracionalismo
Se o Princiacutepio de Sagan eacute assim tatildeo inadequado por que ele eacute
considerado por muitos como uma das regras de ouro do pensamento
criacutetico Como dissemos anteriormente o enunciado do princiacutepio eacute vago
deliberadamente vago a ponto de comportar interpretaccedilotildees muito diferentes
e ateacute mesmo antagocircnicas o que certamente contribui para o seu sucesso Haacute
contudo uma outra razatildeo que julgamos ser ainda mais importante a saber
Ricardo S Rabenschlag | 183
que ele natildeo eacute uma ferramenta cientiacutefica e sim ideoloacutegica Ele natildeo eacute utilizado
por cientistas em suas investigaccedilotildees e sim por ativistas que podem ou natildeo
ser cientistas em sua luta contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo
O combate agraves pseudociecircncias eacute um combate justo e necessaacuterio e a
atitude criacutetica tem um papel fundamental nesse processo natildeo temos
duacutevida quanto a isso Nossa criacutetica natildeo busca desencorajar o combate agraves
pseudociecircncias ela busca apenas mostrar por um lado que a ciecircncia natildeo
estaacute inume ao irriacionalismo e por outro que o irracionalismo na ciecircncia
se manifesta sob a forma de pseudofilosofias e natildeo de pseudociecircncias
Evidentemente esta natildeo eacute uma tarefa faacutecil e este pequeno capiacutetulo natildeo
esgota de forma alguma o assunto Ainda assim espero que esta breve
criacutetica do tatildeo aclamado Princiacutepio de Sagan tenha despertado a atenccedilatildeo dos
leitores para a importacircncia de uma criacutetica do Pensamento Criacutetico13
Referecircncias
CARNAP R The Logical Structure of the World Open Court New York 2003
DAWKINS R The God Delusion Transworld Pub London 2016
DENNETT D Breaking the Spell Penguim London 2007
DESCARTES R Meacuteditations Meacutetaphysiques Nabu Press Paris 2014
HARRIS S The End of Faith WW Norton London 2005
HITCHENS C God Is Not Great Atlantic Books London 2008
HUME D On Miracles Open Court London 1985
POPPER K Conjectures and Refutations Routledge New York 2002
SAGAN C Cosmos Ballantine Books New York 2013
13 Talvez seja o caso de cunharmos a expressatildeo ldquoNovo Pensamento Criacuteticordquo a exemplo do que se fez em relaccedilatildeo aos Novos Ateus seja para reforccedilar o viacutenculo entre as duas correntes seja para diferenciar este Novo Pensamento Criacutetico da Filosofia Criacutetica de Kant No presente texto optamos por usar a expressatildeo empregada na literatura existente
11
A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo
Sagid Salles 1
Introduccedilatildeo
Haacute pelo menos duas coisas que tornam o fenocircmeno da vagueza
interessante Primeiro a vagueza estaacute espalhada por toda a linguagem
natural Uma parte significativa das expressotildees de nossa linguagem satildeo
vagas e podemos encontrar a vagueza em expressotildees de diferentes
categorias loacutegicas como termos singulares predicados e quantificadores
Por razotildees de simplicidade contudo ao longo deste artigo considero
apenas o caso dos predicados vagos Segundo o fenocircmeno da vagueza estaacute
por traacutes de um difiacutecil paradoxo conhecido como Paradoxo Sorites
Atualmente haacute muitas tentativas de explicar esse fenocircmeno e resolver o
Sorites sendo uma delas a Teoria Trivalente da Vagueza Essa teoria eacute
interessante natildeo apenas porque fornece uma explicaccedilatildeo elegante da
vagueza acompanhada de uma soluccedilatildeo engenhosa para o paradoxo em
questatildeo mas tambeacutem porque serve de base para a compreensatildeo de outras
teorias claacutessicas da vagueza Tanto o Gradualismo como o
Supervalorativismo por exemplo incorporam parte significativa de suas
ideias centrais A despeito disso existem alguns seacuterios obstaacuteculos para a
Teoria Trivalente Acredito que o principal deles eacute que ela falha em
satisfazer pelo menos um dos trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria
1 Sagid Salles eacute graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto Mestre e Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da UFRJ com sanduiacuteche realizado em University of Miami Atualmente eacute professor substituto de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (E-mail sagidsallesgmailcom)
Sagid Salles | 185
ideal da vagueza o criteacuterio da precisatildeo Meu objetivo eacute apresentar essa
teoria e mostrar como essa dificuldade surge para ela
O artigo seraacute dividido em quatro seccedilotildees Na primeira apresento o
problema da vagueza ressaltando os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma
teoria ideal o criteacuterio do Sorites o criteacuterio da coerecircncia e o criteacuterio da
precisatildeo Na segunda e terceira apresento respectivamente os aspectos
centrais da Teoria Trivalente e uma das soluccedilotildees da mesma para o Sorites
Por fim defendo que apesar de satisfazer os dois primeiros criteacuterios de
adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente falha com respeito ao criteacuterio da precisatildeo
Vagueza Sorites e os Trecircs Criteacuterios de Adequaccedilatildeo
A palavra ldquovaguezardquo eacute usada cotidianamente em diferentes sentidos
mas o interesse filosoacutefico pela vagueza eacute direcionado a um fenocircmeno
especiacutefico O que mais chama a atenccedilatildeo sobre esse fenocircmeno eacute que ele estaacute
por traacutes do que eacute conhecido como Paradoxo Sorites Esse paradoxo foi
descoberto por Eubulides de Mileto ainda no seacuteculo IV ac mas eacute
argumentaacutevel que somente recentemente (talvez nos uacuteltimos 60 ou 70
anos) ele venha recebendo a atenccedilatildeo que merece Aliaacutes atualmente existe
uma grande variedade de versotildees diferentes do paradoxo (HYDE 2011)
uma delas a versatildeo quantificada seraacute apresentada a seguir
Seja ldquoCrdquo o predicado ldquocarecardquo ldquoardquo um nome arbitraacuterio de pessoas e
deixe os nuacutemeros na direita inferior indicarem o nuacutemero de cabelos que a
tem na cabeccedila Nesse contexto a versatildeo quantificada do Sorites para
ldquocarecardquo pode ser formulada como segue
(SC)
(1) Ca0
(2) foralln (CanrarrCan+1)
_______________
(3) Ca10000
186 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
(SC) parte da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa
com 0 fios de cabelo na cabeccedila eacute careca para a conclusatildeo claramente falsa
de que uma pessoa com 10000 fios de cabelo na cabeccedila tambeacutem eacute careca
A conclusatildeo (3) se segue de (1) e (2) por repetidas aplicaccedilotildees de
Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens
Agora repare que podemos facilmente formular o Sorites na direccedilatildeo
inversa partindo da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa
com 10000 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca para a conclusatildeo
claramente falsa de que uma pessoa com 0 fios tambeacutem natildeo eacute careca
(notSC)
(1) notCa10000
(2)foralln (notCan+1rarrnotCan)
______________
(3) notCa0
A conclusatildeo de (notSC) tambeacutem eacute obtida por repetidas aplicaccedilotildees de
Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens Enquanto argumentos como (SC)
nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute careca argumentos como
(notSC) nos permite mostrar que cada indiviacuteduo natildeo eacute careca Se tomadas
em conjunto os argumentos nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute
careca e natildeo eacute careca ao mesmo tempo Resultado o predicado ldquocarecardquo eacute
incoerente Se isso jaacute nos parece absurdo a coisa fica muito pior quando
lembramos que o mesmo paradoxo pode ser formulado para muitos
outros predicados ldquoaltordquo ldquobaixordquo ldquoricordquo ldquopobrerdquo ldquovivordquo ldquomortordquo
ldquoraacutepidordquo ldquolentordquo ldquomonterdquo etc Em uacuteltima instacircncia aceitar a conclusatildeo
do Sorites implicaria em aceitar que cada um desses predicados eacute
incoerente
A premissa (1) de cada argumento acima eacute claramente verdadeira
enquanto a conclusatildeo se segue de (1) e (2) por regras de inferecircncia que
Sagid Salles | 187
natildeo gostariacuteamos de rejeitar Isso torna (2) a premissa quantificada na
principal suspeita Nesse contexto algueacutem poderia pensar que a soluccedilatildeo
do paradoxo reside na simples negaccedilatildeo da premissa (2) Infelizmente essa
estrateacutegia eacute mais difiacutecil do que parece Suponhamos por exemplo que a
premissa quantificada de (SC) eacute falsa Se esse eacute o caso entatildeo eacute verdade que
notforalln (CanrarrCan+1) Isso eacute logicamente equivalente a Ǝn (Can˄notCan+1) que
diz que haacute um nuacutemero natural n tal que a com n fios de cabelo na cabeccedila
eacute careca e a com n+1 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca O problema eacute
que esse resultado eacute difiacutecil de engolir Para qualquer valor que se atribua a
n a suposiccedilatildeo de que uma pessoa com n fios de cabelo eacute careca e uma
pessoa com n+1 natildeo eacute careca pareceraacute altamente contraintuitiva
O ponto fica mais claro se pensarmos em termos de sequecircncias
Imagine uma sequecircncia como segue
lta0 a1 a2 a5000 a5001 a9998 a9999 a10000gt
Intuitivamente o predicado ldquocarecardquo se aplica a a0 a1 a2 etc e natildeo se
aplica a a10000 a9999 a9998 etc Entretanto natildeo haacute um uacuteltimo caso na
sequecircncia ao qual ldquocarecardquo se aplica seguido por um primeiro caso ao qual
o predicado natildeo se aplica nenhuma linha divisoacuteria eacute traccedilada Se
simplesmente negarmos a premissa quantificada aceitando que Ǝn
(Can˄notCan+1) teremos de assumir que o predicado ldquocarecardquo estabelece
uma linha divisoacuteria desse tipo2 Isso implicaria que ldquocarecardquo eacute um
predicado preciso e portanto natildeo vago O mesmo vale para todos os
predicados vagos Na verdade ser vago e ser preciso satildeo propriedades
incompatiacuteveis de modo que nenhuma expressatildeo linguiacutestica pode ser vaga
e precisa ao mesmo tempo
2 Iago Bozza chamou minha atenccedilatildeo para o fato de que aceitar que Ǝn (CanʌnotCan+1) natildeo implica que haja um par de itens na sequecircncia que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo careca e o primeiro natildeo careca Considere uma analogia com caso dos nuacutemeros naturais Todos podemos aceitar que existe um nuacutemero n tal que n eacute iacutempar e n+1 natildeo eacute iacutempar Disso natildeo se segue que haacute um par de itens adjacentes na sequecircncia dos nuacutemeros naturais que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo iacutempar e o primeiro natildeo iacutempar da mesma Quando falamos que tal divisatildeo entre os carecas e os natildeo carecas se segue de Ǝn (CanʌnotCan+1) estamos adicionalmente assumindo que certas restriccedilotildees oacutebvias para a aplicaccedilatildeo do predicado ldquocarecardquo estatildeo em jogo Sobre tais restriccedilotildees veja-se GraffFara (2000 p 57)
188 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Por fim repare que essa breve apresentaccedilatildeo do Paradoxo Sorites nos
sugere trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria ideal da vagueza Satildeo
eles
a) O criteacuterio do Sorites resolver o Paradoxo Sorites
b) O criteacuterio da coerecircncia natildeo implicar que predicados vagos satildeo incoerentes
c) O criteacuterio da precisatildeo natildeo implicar que predicados vagos satildeo precisos
Ao alegar que (a)-(c) satildeo trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria
ideal da vagueza quero dizer que a falha em satisfazer algum deles deve
ser interpretado como um defeito para qualquer teoria da vagueza Noacutes
queremos uma teoria da vagueza que explique os predicados vagos de
forma a resolver o Sorites mas sem implicar que eles satildeo incoerentes ou
precisos (Uma defesa desses criteacuterios pode ser encontrada em Salles
2016) Eacute dentro desse pano de fundo que a Teoria Trivalente seraacute avaliada
Teoria Trivalente da Vagueza
Por ldquoTeoria Trivalente da Vaguezardquo entendo uma famiacutelia de teorias
que explicam a vagueza em termos de um terceiro valor de verdade ou
uma lacuna entre os dois valores claacutessicos verdadeiro e falso Apesar de
requererem uma loacutegica trivalente nem toda teoria da vagueza que faz uso
dessa loacutegica eacute uma instacircncia da Teoria Trivalente da Vagueza O traccedilo
distintivo dessas teorias eacute colocar o terceiro valorlacuna no centro da
explicaccedilatildeo das expressotildees vagas
A motivaccedilatildeo de base para essa teoria eacute a intuiccedilatildeo dos casos de
fronteira os predicados vagos admitem casos de fronteira casos a respeito
dos quais sua aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara A existecircncia desses casos serve como
um indiacutecio a favor da Teoria Trivalente Considere a frase (1)
Sagid Salles | 189
1 Joatildeo eacute careca
Se Joatildeo tem 0 fios de cabelo em sua cabeccedila entatildeo (1) expressa uma
proposiccedilatildeo verdadeira se Joatildeo tem todo o couro cabeludo coberto por
cabelo entatildeo (1) expressa uma proposiccedilatildeo falsa Mas o que dizer do caso
em que ele tem 85 do couro cabeludo coberto por cabelo (se quiser
pense em uma porcentagem que ache mais favoraacutevel ao exemplo)
Intuitivamente seria incorreto dizer que (1) eacute verdadeira nesse caso assim
como seria incorreto dizer que eacute falsa Uma explicaccedilatildeo para isso eacute que de
fato natildeo eacute verdadeira e de fato natildeo eacute falsa (1) eacute nem verdadeira nem falsa
ou como prefere Tye (1994) indefinida
Haacute duas interpretaccedilotildees de indefinido Pode-se interpretaacute-lo como um
terceiro valor de verdade ou como uma lacuna entre o verdadeiro e o falso
A vantagem de interpretaacute-lo como um terceiro valor eacute que fica mais faacutecil
explicar como (1) pode expressar uma proposiccedilatildeo Afinal proposiccedilotildees satildeo
tradicionalmente concebidas como os portadores dos valores de verdade
Por outro lado ficamos com o difiacutecil problema metafiacutesico de explicar o que
eacute esse terceiro valor o indefinido A vantagem da concepccedilatildeo da lacuna eacute
que natildeo carrega esse problema metafiacutesico pois natildeo aceita um terceiro
valor de verdade A desvantagem eacute que natildeo eacute claro como (1) nesse caso
poderia expressar uma proposiccedilatildeo Tanto quanto for possiacutevel manter-me-
ei neutro quanto ao ponto Para simplificar vou falar em uma frase sendo
indefinida e o leitor pode interpretar isso como significando que expressa
uma proposiccedilatildeo com o valor indefinido ou que falha em expressar uma
proposiccedilatildeo
A pergunta mais importante eacute como o apelo a frases indefinidas nos
leva a uma teoria dos predicados vagos A resposta se revela ao olharmos
para as expressotildees que constituem a frase Tradicionalmente entende-se
que uma frase como (1) eacute verdadeira se o objeto referido por ldquoJoatildeordquo
pertence ao conjunto de coisas selecionado pelo predicado ldquoeacute careca e
falsa de outro modo Nessa imagem o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de um
predicado pode ser dividido em duas partes (i) as coisas agraves quais o
190 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
predicado se aplica a sua extensatildeo positiva (ii) as coisas agraves quais o
predicado natildeo se aplica a sua extensatildeo negativa Cada elemento do
domiacutenio pertenceraacute a um ou a outro Se Joatildeo for um elemento da extensatildeo
positiva de ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute verdadeira se for um elemento da
extensatildeo negativa entatildeo eacute falsa natildeo haacute outra opccedilatildeo De acordo com a
Teoria Trivalente os predicados vagos natildeo se encaixam nessa imagem
O problema eacute que os predicados vagos natildeo dividem o seu domiacutenio em
duas partes Eacute verdade que eles tecircm uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo
negativa Mas fosse essa toda a histoacuteria cada frase como (1) seria
verdadeira ou falsa natildeo havendo espaccedilo para o nem verdadeiro nem falso
ou indefinido Para aleacutem da extensatildeo positiva e a extensatildeo negativa de um
predicado vago existe tambeacutem o que eacute chamado de ldquopenumbrardquo A
penumbra eacute formada pelos casos fronteira do predicado aqueles com
relaccedilatildeo aos quais a aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara Se Joatildeo estaacute na penumbra de
ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute indefinida ou nem verdadeira nem falsa
Pode haver divergecircncia sobre se a explicaccedilatildeo para o fato de que os
predicados vagos admitem penumbra eacute linguiacutestica ou metafiacutesica Tye
assume uma concepccedilatildeo metafiacutesica De acordo com ele satildeo os proacuteprios
conjuntos que satildeo vagos e os predicados satildeo vagos apenas porque os
conjuntos satildeo Nesse sentido o conjunto dos carecas eacute tal que para
algumas pessoas eacute indefinido se elas satildeo ou natildeo elementos do conjunto
(TYE 1994 p 195) Tye gosta de expressar isso dizendo que natildeo haacute uma
questatildeo de fato sobre se essas pessoas satildeo ou natildeo elementos do conjunto
dos carecas Predicados vagos satildeo vagos apenas porque satildeo associados a
conjuntos vagos Haacute tambeacutem aqueles que preferem uma explicaccedilatildeo
linguiacutestica para a penumbra Concepccedilotildees linguiacutesticas geralmente se datildeo
em termos das condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo do predicado Pode-se sustentar que
um predicado admite penumbra devido a alguma caracteriacutestica nas suas
condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo De acordo com Soames (1999 p 163) ndash que no
entanto natildeo defende a Teoria Trivalente da Vagueza ndash os predicados que
admitem penumbra tecircm condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida e
condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida Essas condiccedilotildees satildeo mutuamente
Sagid Salles | 191
exclusivas mas natildeo conjuntamente exaustivas Como as condiccedilotildees satildeo
mutuamente exclusivas se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-
sucedida de ldquocarecardquo entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-
sucedida e se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida
entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida Como natildeo
satildeo conjuntamente exaustivas haacute casos que nem satisfazem as condiccedilotildees
de aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem satisfazem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo
mal-sucedida os casos indefinidos Para criacuteticas agrave proacutepria ideia de um
terceiro valorlacuna veja-se Glanzberg (2009) Para os nossos
propoacutesitos contudo natildeo precisamos ir aleacutem do que jaacute fomos
Em resumo os predicados vagos natildeo cortam seu domiacutenio de
aplicaccedilatildeo apenas em uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo negativa Eles
tambeacutem admitem uma penumbra formada pelos casos fronteira do
predicado Eacute isso que explica o suposto fato de algumas frases contendo
predicados vagos serem nem verdadeiras nem falsas Quando a estaacute na
penumbra de ldquoFrdquo ldquoFardquo eacute indefinida A Teoria Trivalente assume que a
propriedade caracteriacutestica dos predicados vagos eacute encaixar-se na descriccedilatildeo
acima
Teoria Trivalente e a Soluccedilatildeo do Sorites
O modo como a Teoria Trivalente da Vagueza resolve o Paradoxo
Sorites depende dos detalhes de cada versatildeo Mais especificamente
depende do tratamento dado aos conectivosquantificadores e da
concepccedilatildeo de validade adotada A introduccedilatildeo de um terceiro valor ndash ou de
uma lacuna entre os dois valores claacutessicos ndash implica na necessidade de
reformular algumas definiccedilotildees Pode-se adotar uma concepccedilatildeo de validade
que nos permita rejeitar a validade do argumento Sorites mas a soluccedilatildeo
mais simples eacute manter a validade como preservaccedilatildeo de verdade e rejeitar
alguma premissa (KEEFE 2000 p104 e 107) Isto pode ser feito olhando
apenas para os conectivos e quantificadores Existem diferentes
interpretaccedilotildees dos conectivos Primeiro podem ser interpretados
192 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
verofuncionalmente (TYE 1994) ou natildeo verofuncionalmente (RICHARD
2009) Segundo mesmo que adotemos uma das duas haveraacute divergecircncia
sobre qual seraacute a interpretaccedilatildeo correta de cada um Natildeo vou entrar em
qualquer discussatildeo deste tipo aqui No que segue assumo a interpretaccedilatildeo
verofuncional de Tye e apresento a sua soluccedilatildeo do paradoxo
Tye (1994 p 194) adota uma das interpretaccedilotildees propostas por Kleene
(1952 p 332-340) dos conectivos
Natildeo eacute difiacutecil ver a motivaccedilatildeo por traacutes de cada tabela escolhida
Quando as frases componentes da frase mais complexa possuem apenas
valores claacutessicos os conectivos funcionam precisamente como funcionam
na leitura claacutessica ndash esse eacute o chamado ldquorequisito de normalidaderdquo (KEEFE
2000 p 86 MACHINA 1976 p 55) Assim as diferenccedilas relevantes
ocorrem apenas quando uma das frases componentes eacute indefinida
A negaccedilatildeo de uma frase indefinida A eacute ela mesma indefinida Por um
lado se notA fosse verdadeira entatildeo A seria falsa e consequentemente natildeo
seria indefinida Por outro lado se notA fosse falsa entatildeo A seria verdadeira
e portanto natildeo seria indefinida Para que uma disjunccedilatildeo seja verdadeira
A B notA AvB A˄B ArarrB
V V F V V V
V I F V I I
V F F V F F
I V I V I V
I I I I I I
I F I I F I
F V V V F V
F I V I F V
F F V F F V
Sagid Salles | 193
basta que uma disjunta seja verdadeira e para que seja falsa basta que
todas as disjuntas sejam falsas Nos outros casos a disjunccedilatildeo eacute indefinida
Uma conjunccedilatildeo eacute verdadeira se todas conjuntas satildeo verdadeiras falsa se
pelo menos uma conjunta eacute falsa e indefinida nos outros casos A
condicional eacute como se espera um caso problemaacutetico A uacutenica motivaccedilatildeo
notada por Tye eacute que ArarrB deve ser equivalente a notAvB Por fim AharrB
pode ser definido como (ArarrB) ˄ (BrarrA)
O quantificador existencial eacute definido como segue ƎxFx eacute verdadeiro
se tem uma instacircncia verdadeira falsa se todas as suas instacircncias satildeo
falsas e indefinida nos outros casos A intuiccedilatildeo por traacutes da definiccedilatildeo eacute que
uma afirmaccedilatildeo existencial seraacute indefinida quando nenhuma instacircncia for
verdadeira e pelo menos algumas forem indefinitas o mesmo que
ocorreria com a disjunccedilatildeo de todas as instacircncias Fa1vFa2vFa3v Fan O
quantificador universal eacute definido como segue forallxFx eacute verdadeira se todas
as suas instacircncias satildeo verdadeiras falsa se alguma instacircncia eacute falsa e
indefinida nos outros casos A ideia aqui eacute que uma afirmaccedilatildeo universal eacute
indefinida apenas quando nenhuma instacircncia eacute falsa e algumas satildeo
indefinidas o mesmo que ocorreria com a conjunccedilatildeo de todas as instacircncias
Fa1˄Fa2˄Fa3˄Fan
Essa leitura dos conectivos nos leva a alguns resultados
contraintuitivos quanto ao valor de verdade de certas frases Por exemplo
intuitivamente toda frase da forma A˄notA eacute falsa e toda frase da forma
AvnotA eacute verdadeira mas na leitura de Tye ambas as intuiccedilotildees estatildeo
erradas Quando A eacute indefinido tanto A˄notA quanto AvnotA seratildeo
indefinidos Tudo que Tye (1994 p 194) consegue reter de nossas
intuiccedilotildees eacute que nenhuma frase da primeira forma seraacute verdadeira (trata-
se de uma quase-contradiccedilatildeo) e nenhuma da segunda forma seraacute falsa
(trata-se de uma quase-tautologia) Agora imagine que Joatildeo eacute mais alto do
que Marcos mas ambos estatildeo na penumbra de ldquoaltordquo Nossa intuiccedilatildeo eacute que
a condicional ldquoSe Marcos eacute alto entatildeo Joatildeo eacute altordquo eacute verdadeira Na leitura
de Tye dos conectivos contudo a condicional seraacute indefinida Exemplos
do tipo podem ser multiplicados (KEEFE 2000 p 96-97 SANTOS 2015
194 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
p 5-6) Por fim problemas similares aparecem para diferentes
interpretaccedilotildees verofuncionais dos conectivos (WILLIAMSON 1994 cap
4)
Em todo caso o que nos interessa aqui eacute como Tye resolve o Paradoxo
Sorites A sua soluccedilatildeo consiste em rejeitar a premissa quantificada sem
com isso aceitar a sua negaccedilatildeo Na versatildeo para ldquocarecardquo a premissa
quantificada era foralln (CanrarrCan+1) Nenhuma instacircncia dessa premissa seraacute
falsa de modo que ela proacutepria natildeo seraacute falsa Por outro lado algumas
instacircncias seratildeo indefinidas dado que teratildeo antecedente e consequente
indefinidos Lembre-se de acordo com a Teoria Trivalente o predicado
ldquocarecardquo admite uma penumbra um conjunto de casos aos quais a sua
aplicaccedilatildeo eacute indefinida Eacute plausiacutevel supor que para algum n tanto Can
quanto Can+1 seratildeo indefinidas e nesse caso a condicional CanrarrCan+1 seraacute
tambeacutem indefinida Ora uma afirmaccedilatildeo universal com nenhuma instacircncia
falsa e algumas indefinidas eacute ela mesma indefinida Logo a premissa
quantificada eacute indefinida Assim Tye consegue rejeitar a premissa
quantificada sem precisar assumir que ela seja falsa e portanto sem
precisar aceitar a sua negaccedilatildeo
Teoria Trivalente e o Criteacuterio da Precisatildeo
Vimos que uma teoria ideal da vagueza satisfaria trecircs criteacuterios
resolver o Paradoxo Sorites natildeo implicar que os predicados vagos satildeo
incoerentes e natildeo implicar que eles satildeo precisos Na seccedilatildeo anterior vimos
que a Teoria Trivalente fornece uma resposta ao Sorites Aleacutem disso estaacute
claro que ela natildeo implica que os predicados vagos satildeo incoerentes Seu
principal problema eacute com o criteacuterio da precisatildeo
Na concepccedilatildeo tradicional o domiacutenio de um predicado eacute dividido em
uma extensatildeo positiva e uma negativa e todo objeto do domiacutenio estaacute ou
em uma ou na outra Supondo que o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo seja
o domiacutenio das pessoas cada pessoa ou estaacute na extensatildeo positiva ou estaacute
na extensatildeo negativa de ldquocarecardquo Isso implica que uma sequecircncia para
Sagid Salles | 195
ldquocarecardquo seria dividida de modo a haver um nuacutemero n tal que uma pessoa
com n fios eacute careca e uma pessoa com n+1 natildeo eacute O resultado pode ser
representado como segue
Extensatildeo Positiva Extensatildeo negativa
|a0 a1 a2 a3 an | an+1 an+2hellip an+m|
Verdadeiro Falso
Fica evidente que na concepccedilatildeo acima ldquocarecardquo eacute um predicado
preciso Existe um uacuteltimo caso ao qual ldquocarecardquo se aplica e um primeiro
caso ao qual natildeo se aplica A Teoria Trivalente evita isto por meio da
postulaccedilatildeo de uma penumbra entre a extensatildeo positiva e a negativa O
resultado pode ser representado como segue
Ext Positiva Penumbra Ext negativa
|a0 a1 an | an+1an+m | an+m+1 an+m+k|
Verdadeiro Indefinido Falso
Esta imagem no entanto natildeo evita o problema da anterior Eacute
verdade que a Teoria Trivalente eacute capaz de separar os casos nos quais a
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo gera uma verdade dos casos nos quais ela gera uma
falsidade Existe um uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo na sequecircncia an e
existe um primeiro caso negativo an+m+1 Entre eles contudo haacute um
conjunto de casos nos quais a aplicaccedilatildeo gera o valorlacuna indefinido
Chamemos-lhes de ldquocasos indefinidosrdquo Nada disso evita a consequecircncia
de que predicados vagos satildeo precisos Na imagem acima o predicado
ldquocarecardquo continua cortando a sequecircncia de forma ciruacutergica A uacutenica
diferenccedila relevante eacute que ao inveacutes de haver apenas uma fronteira ndash a
fronteira entre os casos positivos e negativos ndash agora haacute duas fronteiras a
fronteira positivoindefinido e a fronteira indefinidonegativo O item an eacute
o uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo seu vizinho imediato an+1 eacute o primeiro
caso indefinido Portanto haacute uma fronteira precisa entre os casos positivos
e os casos indefinidos de ldquocarecardquo O item an+m eacute o uacuteltimo caso indefinido
e seu vizinho imediato an+m+1 eacute o primeiro negativo Portanto haacute tambeacutem
uma fronteira precisa entre os casos indefinidos e os negativos de ldquocarecardquo
196 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Comeccedilamos com uma fronteira e terminamos com duas Ao inveacutes de
ldquocarecardquo cortar o seu domiacutenio cirurgicamente em um ponto corta em dois
A Teoria Trivalente natildeo satisfaz o criteacuterio da precisatildeo
O resultado acima eacute que a Teoria Trivalente implica que os
predicados vagos satildeo de fato precisos Assumindo a intuiccedilatildeo de que ser
preciso e ser vago satildeo propriedades incompatiacuteveis o resultado eacute que as
expressotildees aparentemente vagas natildeo satildeo realmente vagas Isso ainda nos
deixaria com o que chamei de ldquoproblema fundacional da precisatildeordquo
(SALLES 2016 p 163) Se os predicados vagos satildeo precisos entatildeo como a
sua extensatildeo eacute determinada Essa pergunta eacute ainda mais difiacutecil de ser
respondida pela Teoria Trivalente do que pela concepccedilatildeo tradicional
Afinal agora temos de explicar como cada uma das duas fronteiras de
ldquocarecardquo por exemplo eacute determinada Nossos usos desse predicado seriam
refinados o bastante para estabelecer um corte entre os casos
positivoindefinidos e outro entre os indefinidonegativos de ldquocarecardquo
No que segue considero duas respostas disponiacuteveis ao defensor da
Teoria Trivalente A primeira sustenta que o erro do argumento acima eacute
supor que todos os objetos do domiacutenio de aplicaccedilatildeo do predicado ou estatildeo
na extensatildeo positiva ou estatildeo na negativa ou estatildeo na penumbra Natildeo se
trata aqui de aumentar ainda mais o nuacutemero de fronteiras Pelo
contraacuterio o ponto eacute questionar que soacute existam aquelas trecircs opccedilotildees sem
no entanto afirmar que existam mais Essa eacute a estrateacutegia de Tye (1994 p
195) para quem devemos assumir o seguinte
bull Os predicados vagos admitem casos positivos indefinidos e negativos e natildeo
existe uma questatildeo de fato acerca de se esses satildeo ou natildeo os uacutenicos casos
A tese acima natildeo afirma que existem mais do que as trecircs opccedilotildees
consideradas Mas ela impede que suponhamos que existam somente as
trecircs Uma vez que o argumento contra a Teoria Trivalente depende dessa
suposiccedilatildeo ele falha
O argumento de Tye a favor dessa tese eacute como segue Considere a
pergunta existem apenas trecircs opccedilotildees Suponha que sim Nesse caso
Sagid Salles | 197
como vimos o predicado ldquocarecardquo eacute preciso Suponha que natildeo Nesse caso
existe ainda uma quarta opccedilatildeo Pode-se entatildeo perguntar satildeo essas quatro
opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo caiacutemos no mesmo problema de antes e
predicados vagos seratildeo de fato precisos Se natildeo entatildeo precisaremos de
uma quinta opccedilatildeo Satildeo as cinco opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo predicados
vagos satildeo precisos Se natildeo entatildeo precisamos de uma sexta opccedilatildeo e assim
por diante Por um lado natildeo eacute verdade que existam apenas trecircs opccedilotildees
pois isso implica que predicados vagos satildeo precisos Por outro natildeo eacute falso
que existam apenas trecircs opccedilotildees pois isso implica em esquisitices
metafiacutesicas (o proacuteprio quarto valor) ou regresso ao infinito Conclusatildeo
natildeo haacute uma questatildeo de fato sobre se existe ou natildeo uma quarta opccedilatildeo Isso
pode ser expresso dizendo-se que eacute em si mesmo indefinido se ou natildeo
existem apenas trecircs opccedilotildees
Keefe (2000 p 121) apresenta uma objeccedilatildeo que me parece decisiva
contra o argumento acima Podemos explicitar o argumento de Tye como
segue
α Natildeo eacute verdadeiro que existem apenas trecircs opccedilotildees
β Natildeo eacute falso que existem apenas trecircs opccedilotildees
γ Logo eacute indefinido se existem apenas trecircs opccedilotildees
Como (γ) se segue de (α) e (β) Suponha por exemplo que existe
uma quarta opccedilatildeo indefinido Nesse caso o maacuteximo que poderiacuteamos
concluir a partir de (α) e (β) eacute que eacute indefinido ou indefinido que existem
apenas trecircs opccedilotildees De fato para que a inferecircncia de (γ) no argumento
acima seja permitida eacute preciso que haja apenas trecircs opccedilotildees verdadeiro
falso e indefinido Para mostrar que eacute indefinido que existem apenas trecircs
opccedilotildees Tye assume justamente que existem apenas trecircs opccedilotildees No fim
das contas Tye assume aquilo que pretende rejeitar
Mark Richard (2009 p 476) sustenta que o erro do argumento contra
a Teoria Trivalente estaacute em assumir que existe um uacuteltimo caso positivo de
ldquocarecardquo e um primeiro caso indefinido A sua resposta passa pelas noccedilotildees
de penumbra e indefinido Primeiro ele adota uma concepccedilatildeo linguiacutestica do
198 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que eacute para um predicado possuir uma penumbra Seguindo Soames um
predicado possui uma penumbra quando haacute objetos que nem satisfazem as
condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo
mal-sucedida3 Se Joatildeo estaacute na penumbra de ldquocarecardquo entatildeo as condiccedilotildees de
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo nada dizem sobre se ele deve ser incluiacutedo na extensatildeo
positiva ou na extensatildeo negativa desse predicado Como as condiccedilotildees de
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo natildeo determinam em qual lado estaacute Joatildeo eacute indefinido
se (1) eacute verdadeira ou falsa Por outras palavras (1) eacute indefinida (Richard
prefere indeterminada) Segundo indefinido natildeo eacute entendido como um
terceiro valor de verdade Nessa concepccedilatildeo soacute existem dois valores de
verdade mas pode estar indefinido qual deles uma frase tem
Agora o argumento procede como segue Uma vez que an+1estaacute na
penumbra de ldquocarecardquo natildeo estaacute definido se ele eacute careca ou natildeo Mas se natildeo
estaacute definido se an+1 eacute careca ou natildeo entatildeo natildeo podemos assumir que aneacute
o uacuteltimo caso de ldquocarecardquo na sequecircncia Por outro lado tambeacutem natildeo
podemos assumir que an natildeo seja o uacuteltimo item careca da sequecircncia Pois
soacute poderiacuteamos assumir isso se estivesse definido que o proacuteximo item an+1
eacute careca Mas isso tambeacutem estaacute indefinido Portanto natildeo haacute um caso que
possamos justificadamente apontar como sendo o uacuteltimo caso positivo de
ldquocarecardquo Um argumento similar nos permitiria mostrar que tambeacutem natildeo
haacute um que possamos apontar como sendo o primeiro caso negativo de
ldquocarecardquo Tatildeo logo entendemos corretamente no que consiste ser
indefinido se um item eacute ou natildeo careca percebemos que ldquocarecardquo natildeo
estabelece fronteiras e portanto natildeo eacute preciso
Natildeo acredito esse argumento evite a violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo
Mesmo aceitando tudo que foi dito continua sendo o caso de ldquocarecardquo
3 Haacute diferenccedilas entre Soames e Richard no que diz respeito ao mecanismo que faz com que um predicado acabe por ter uma penumbra De acordo com Soames isso ocorre porque o predicado (i) tem condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) essas condiccedilotildees satildeo mutuamente exclusivas mas (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas Richard (2009 p 465-467) pensa que essa definiccedilatildeo natildeo eacute boa o bastante para justificar uma lacuna entre os dois valores claacutessicos de verdade propondo uma pequena modificaccedilatildeo De acordo com ele um predicado ldquoFrdquo tem uma penumbra quando (i) tem um conjunto C de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) tem um conjunto Crsquo de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) C e Crsquo satildeo mutuamente exclusivas e (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas
Sagid Salles | 199
cortar o seu domiacutenio de forma precisa em trecircs partes Retorne agrave imagem
acima da divisatildeo tripartida do domiacutenio de ldquocarecardquo O item an eacute o uacuteltimo
para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo se aplica enquanto an+1 eacute o primeiro
para o qual estaacute indefinido Haacute uma fronteira precisa entre os casos
definidos e os indefinidos de ldquocarecardquo Do mesmo modo an+m eacute o ultimo
caso para o qual estaacute indefinido se ldquocarecardquo se aplica ou natildeo e an+m+1 eacute o
primeiro caso para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo natildeo se aplica Haacute uma
fronteira precisa entre os casos indefinidos e os definidos de ldquonatildeo-carecardquo
Novamente temos duas fronteiras precisas onde deveria haver nenhuma
O proacuteprio Richard reconhece essa objeccedilatildeo e apela a uma soluccedilatildeo
epistecircmica para a mesma (2009 p 476-477) Apesar dos predicados vagos
possuiacuterem fronteiras no sentido acima frequentemente natildeo eacute possiacutevel
para noacutes sabermos onde ela se situa Nesse caso natildeo eacute claro se natildeo seria
mais plausiacutevel rejeitar de uma vez por todas a Teoria Trivalente e aceitar
a Teoria Epistecircmica em seu lugar Seja como for essa soluccedilatildeo aceita a
violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo
Conclusatildeo
A principal conclusatildeo deste texto eacute que embora a Teoria Trivalente
satisfaccedila os criteacuterios do Sorites e da coerecircncia tem claros problemas em
satisfazer o criteacuterio da precisatildeo Em todo caso estou convencido de que
satisfazer a todos os trecircs criteacuterios eacute algo dificiacutelimo e que as outras teorias
tradicionais da vagueza (Gradualismo Supervalorativismo Incoerentismo
Epistemicismo etc) tambeacutem falham em satisfazer pelo menos algum deles
Se isso estiver correto fica em aberto a possibilidade de a Teoria Trivalente
ainda ser a nossa melhor opccedilatildeo Afinal nem sempre a melhor opccedilatildeo de que
dispomos eacute a opccedilatildeo ideal Por outro lado se houver uma teoria que satisfaccedila
conjuntamente a todos os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente
estaraacute em desvantagem quanto a mesma Eu de fato penso que exista tal
teoria mas essa eacute uma histoacuteria para outro momento
200 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Referecircncias
BURNNYEAT M F Gods and heaps In SCHOFIELD M NUSSBAUM M C Language
and logos Cambridge University Press 1982 p 315-338
GLANZBERG M Against truth-value gaps In BEALL J Liars and leaps Oxford
University Press 2003 p 151-194
GRAFF D Shifting sands an interest-relative theory of vagueness Philosophical Topics
v 28 n1 p 45-81 2000
HYDE D The sorites paradox In RONZITTI G Vagueness a guide Springer Science amp
Business Media 2011 p 1-17
KEEFE R Theories of vagueness Cambridge University Press 2000
KLEENE S C Introduction to metamathematics American Elsevier Publishing
Company 1952
MACHINA K F Truth belief and vagueness Journal of Philosophical Logic v 5 p 47-
78 1976
RICHARD M Indeterminacy and truth value gaps In DIETZ R MORUZZI S Cuts and
clouds Oxford University Press 2009
SALLES S O problema da vagueza Fundamento n 12 p 139-174 2016
SANTOS R Vagueza In BRANQUINHO J SANTOS R (Eds) Compecircndio em linha de
problemas de filosofia analiacutetica Lisboa 2015 p 1-18
SOAMES S Vagueness partiality and the sorites paradox In Understanding truth
Oxford University Press 1999 p 203-227
TYE M Sorites paradoxes and the semantics of vagueness Philosophical Perspectives
v8 (Logic and Language) p 189-206 1994
WILLIAMSON T Vagueness Routledge 1994
12
O Leibniz de Deleuze
Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido1
William de Siqueira Piauiacute 2
Introduccedilatildeo
O que gostariacuteamos ao menos de comeccedilar a fazer em nosso mini-curso
eacute semelhante ao que fez Derrida em ldquoCogito e Histoacuteria da Loucurardquo
(Escritura e diferenccedila de 1967) com o trabalho exegeacutetico realizado por
Foucault quando este havia tentado localizar nas Meditaccedilotildees de Descartes
uma recusa ou exclusatildeo criticaacutevel da loucura tratava-se de mostrar que
um especialista em modernidade naquele momento jaacute autor de As
palavras e as coisas (de 1966) podia natildeo ter compreendido corretamente
o texto cartesiano acusaccedilatildeo grave e que por isso exigia natildeo soacute um novo
trabalho exegeacutetico do texto em questatildeo mas tambeacutem a explicitaccedilatildeo dos
pontos mais importantes e o centro da argumentaccedilatildeo da hipoacutetese
interpretativa a ser criticada3 Assim em termos comparativos o que
pretendemos mostrar eacute quais seriam os pontos principais e mesmo o
1 Texto-aula do minicurso que de iniacutecio tinha o nome O Leibniz de Deleuze problemas de exegese ministrado no IV Encontro Linguagem e Cogniccedilatildeo realizado junto agrave 8ordf Bienal Internacional do Livro de Alagoas em outubro de 2017 texto que com algumas alteraccedilotildees serviu de base para a palestra Deleuze e a noccedilatildeo leibniziana de sujeito apresentada no III Congresso Ibero-americano Leibniz realizado na Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Curitiba em novembro de 2017 palestra que foi um desenvolvimento das hipoacuteteses interpretativas que levantamos no V Encontro do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporacircneo realizado em junho de 2017 na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
2 Professor do Departamento de Filosofia (DFL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) E-mail piauiuspgmailcom
3 E nos parece que Derrida faz o mesmo com Jean-Pierre Vernant em Khora cf por exemplo 1995 p 7
202 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
centro do trabalho exegeacutetico de Deleuze com relaccedilatildeo a Leibniz mostrar
que mesmo um ldquoespecialistardquo do seu quilate pode natildeo ter compreendido
bem a filosofia leibniziana ao fazer uma apropriaccedilatildeo elogiosa poreacutem
equivocada principalmente dos seus conceitos de mocircnada individual ou
substacircncia particular Deus mundo corpo e principalmente ao defender a
necessidade de certo deslocamento que corroboraria a hipoacutetese que
Leibniz teria ido muito longe naquilo que o francecircs compreendia como
gecircnese estaacutetica ontoloacutegica etapa fundamental de sua Loacutegica do sentido
obra que seraacute nosso principal ponto de partida Do nosso ponto de vista eacute
o que estaacute em jogo principalmente no seguinte trecho de sua 16ordf seacuterie
Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada
mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente
compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia dos
predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo expresso
natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas mocircnadas como
a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos verdade entretanto
que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas [ou seja Deus criou natildeo
exatamente Adatildeo-pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou] e [tambeacutem eacute
verdade] que o expresso natildeo se confunde com sua expressatildeo mas insiste ou
subsiste [] Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na
filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na mocircnada
expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo expresso e
esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo
as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma
loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e
da verdade Leibniz foi muito longe nesta primeira etapa da gecircnese [de um
certo campo transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades
entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentais o indiviacuteduo
constituiacutedo como centro de envolvimento como envolvendo singularidades
em um mundo e sobre seu corpo (DELEUZE 2003 p 114-5 grifo nosso)
Do nosso ponto de vista natildeo eacute necessaacuterio afirmar o deslocamento
defendido por Deleuze que corroboraria a obrigatoriedade do
encadeamento de I a III e natildeo do seu contraacuterio Em nossa opiniatildeo a
apropriaccedilatildeo equivocada da filosofia leibniziana fica mais evidente
William de Siqueira Piauiacute | 203
especialmente em parte do trabalho exegeacutetico que Deleuze faz do Discurso
de metafiacutesica em associaccedilatildeo com a Correspondecircncia de Leibniz e de
Arnauld dos sect408 sect409 e sect414 da Teodiceia na menccedilatildeo natildeo explicitada
de parte do sect47 da quinta carta da Correspondecircncia Leibniz Clarke ndash
que faz a base da noccedilatildeo de coexistecircncia ndash e inclusive no alcance que supocircs
do texto ldquoSobre o meacutetodo da universalidaderdquo ndash o que seraacute mantido em A
dobra ndash ao mencionar um suposto uso geral que Leibniz faria da noccedilatildeo de
ldquosigno ambiacuteguordquo e principalmente para defender que por conta de seu
antigeneralismo o alematildeo forneceria as bases para pensarmos um ldquocampo
transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades
entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentaisrdquo Para noacutes
Deleuze teria criado dado o uso que supocircs dos atributos verbais uma
ficccedilatildeo falsa a la Lorenzo Valha que se sobrepotildee ao que de fato eacute afirmado
no final da Teodiceia ndash talvez por ter decidido parar em seu sect408 ou pela
excessiva importacircncia que conferiu a uma parte de seu sect414 Tudo
apontando para uma aproximaccedilatildeo excessiva entre Leibniz e Newton
inclusive a partir de certa caracterizaccedilatildeo de um mundo expresso feito de
relaccedilotildees diferenciais e de singularidades adjacentes que acabariam por
conduzir a uma dinacircmica sem causa proacutexima
Quanto aos motivos que nos levam a rever a leitura de Deleuze jaacute haacute
tantos anos publicada e criticada temos que dizer que eles satildeo de caraacuteter
regional recentemente em 2015 vimos publicado no Brasil a traduccedilatildeo do
livro de Alain Badiou A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX que
conteacutem um capiacutetulo de tiacutetulo ldquoGilles Deleuze Sobre A dobra Leibniz e o
barrocordquo e a publicaccedilatildeo em 2016 do excelente artigo de Gonzalo
Montenegro ldquoDeleuze em diaacutelogo com Freacutemont tentativas de ler Leibnizrdquo
tais textos deixam claro que ainda haacute muito que problematizar quanto agraves
interpretaccedilotildees de Deleuze mesmo quanto agrave sua afirmaccedilatildeo que
permanecemos leibnizianos e eacute com esse trabalho que gostariacuteamos de
contribuir voltando especialmente ao texto que serviu de base para A
dobra Mesmo natildeo desconsiderando o ldquobrilhantismordquo ou a ldquogenialidaderdquo
da interpretaccedilatildeo do francecircs ndash o que tenta nos mostrar Badiou ndash para que
204 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
o leitor natildeo se engane quanto ao nosso ponto de vista de fundo fazendo
outros caminhos estamos mais de acordo com grande parte das objeccedilotildees
que Freacutemont fez agrave leitura deleuziana especialmente se tomarmos a Loacutegica
do sentido como ponto de partida inclusive consideramos a pertinecircncia
daquelas objeccedilotildees como o motivo mais forte para a obra A dobra ter
demorado vinte anos para ser confeccionada Para noacutes em termos de
comentaacuterio de obra a leitura de Fremoacutent eacute muito mais bem fundamentada
e corresponde mais apropriadamente com o que o texto leibniziano
permitiria concluir principalmente se natildeo aceitarmos o deslocamento
exigido em a Loacutegica do sentido ou se recusamos a inversatildeo do caminho
argumentativo da Monadologia bases da argumentaccedilatildeo defendida em A
dobra de qualquer modo natildeo nos parece que Gonzalo deixa claro com que
interpretaccedilatildeo estaria mais de acordo Eacute por aiacute portanto que caminharaacute
nossa tentativa de problematizar o trabalho interpretativo feito na Loacutegica
do sentido e que em grande medida prepara todo o trabalho realizado em
A dobra Por fim e em termos da leitura de Badiou mesmo que estejamos
de acordo com a opiniatildeo que A dobra eacute ldquoum livro rarordquo ldquoadmiraacutevelrdquo e que
ldquopropotildee-nos uma visatildeo e um pensamento do nosso mundordquo pretendemos
ainda uma vez voltar agraves querelas genealoacutegicas agrave agrimensura dos textos
especialmente daquele que lanccedila as bases da argumentaccedilatildeo defendida em
A dobra quem sabe tal empreitada nos permita recolocar a pergunta o
que vemos como ou pensamos ser o nosso mundo
I Parte ndash Entre Literatura Psicanaacutelise Linguiacutestica e Loacutegica Deleuze
de Loacutegica do Sentido e a Filosofia Contemporacircnea
Como nos diz Pierre Franccedilois Marietti (HUISMAN 2001 p 255) em
geral se costuma distinguir trecircs periacuteodos da filosofia do francecircs Gilles
Deleuze (1925-1995) O primeiro entre 1953 ou 52 e 1968 que
compreenderia a produccedilatildeo de vaacuterios trabalhos sobre filoacutesofos e literatos
o periacuteodo das monografias tais como sobre Hume em Hume sua vida e
sua obra de 1952 e em Empirismo e subjetividade de 1953 sobre
William de Siqueira Piauiacute | 205
Nietzsche em Nietzsche e a filosofia de 1962 ou simplesmente Nietzsche
de 1965 sobre Proust em Proust e os signos de 1964 sobre Bergson em
Bergsonismo de 1966 sobre Espinosa em Espinosa ou o problema da
expressatildeo de 1968 ano que marcaria o final deste periacuteodo O segundo
periacuteodo 1968-1972 teria iniacutecio com as produccedilotildees mais autocircnomas e
propriamente filosoacuteficas de Deleuze tais como os volumosos Diferenccedila e
repeticcedilatildeo de 1968 e Loacutegica do sentido de 1969 Mas eacute preciso dizer que
aquele primeiro tipo de produccedilatildeo caracteriacutestico do primeiro periacuteodo natildeo
seraacute abandonado e seratildeo produzidas dentre outras mais duas obras sobre
Espinosa (em 1970 e 1981) a obra Foucault de 1986 e a famosa A dobra
Leibniz e o Barroco de 1988 (publicado quase 20 anos depois de a Loacutegica
do sentido e que foi o resultado de aulas dadas nos anos 80 86 e 87)
Tambeacutem nesse periacuteodo se intensificaratildeo seus estudos sobre psicanaacutelise e
literatura isto eacute a produccedilatildeo das obras escritas em parceria com o
psicanalista Feacutelix Guattari (1930-1992) tais como O anti-Eacutedipo e mesmo
Kafka por uma literatura menor ambas de 1972 o primeiro estudo
marca o iniacutecio do que se costuma chamar de a grande ruptura que
certamente faz o pano de fundo de obras como O que eacute filosofia jaacute de
1991 e Criacutetica e Cliacutenica de 1997 este uacuteltimo publicado jaacute dois anos depois
da morte de Deleuze
Dito isso e como jaacute o indicamos a obra principal sobre a qual
falaremos neste minicurso seraacute a Loacutegica do sentido praticamente o tema
da nossa III Semana de Filosofia da Linguagem4 obra que foi publicada
em 1969 e que faria parte daquele segundo periacuteodo obra que segundo
Marietti mais que Diferenccedila e repeticcedilatildeo ldquoextrapola em muito os cacircnones
universitaacuterios vigentes na eacutepoca com seu interesse pelas meninasrdquo pelos
poetas ldquoe pelos esquizofrecircnicosrdquo ndash certamente uma referecircncia agrave 13ordf seacuterie
do livro ndash ldquocomrdquo completa ele uma ldquoreflexatildeo profunda sobre a linguagem
e a literaturardquo (HUISMAN 2001 p 255) e acrescentariacuteamos uma reflexatildeo
sobre o estruturalismo e ainda mais especifica sobre a loacutegica a qual
4 Evento ocorrido no DFL-UFS em marccedilo de 2017 e que teve por tema ldquoGilles Deleuze Loacutegica e Sentidordquo onde tambeacutem ministramos um minicurso sobre a Loacutegica do sentido
206 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
acompanharaacute Deleuze certamente ateacute o final de sua vida como o
comprova o capiacutetulo II (Prospectos e Conceitos) da parte II (Filosofia
Ciecircncia Loacutegica e Arte) do livro escrito em parceria com Guattari O que eacute
filosofia
O que extrapola os cacircnones universitaacuterios vigentes certamente natildeo
se associa somente a certas figuras que despertam o interesse de Deleuze
mas o proacuteprio assunto e a forma como ele seraacute exposto ou como nos diz
o proacuteprio tratar-se-aacute da ldquoconstituiccedilatildeo paradoxal da teoria do sentidordquo
teoria que seraacute apresentada em 34 seacuteries (espeacutecie de capiacutetulos) que
receberatildeo mais 2 apecircndices subdivididos em 5 tiacutetulos seacuteries em que
veremos a elaboraccedilatildeo de uma espeacutecie de histoacuteria ldquouma lsquohistoacuteria
embrulhadarsquordquo por fim a obra seraacute apresentada como um ldquoensaio de
romance loacutegico e psicanaliacuteticordquo Falar de loacutegica a partir do gecircnero
romance misturando tal tema com psicanaacutelise e ensaiando compor uma
histoacuteria embrulhada obra em que em muitos de seus capiacutetulos tratam do
tema ldquoparadoxordquo certamente tambeacutem significava extrapolar os cacircnones
universitaacuterios vigentes basta pensarmos em obras sobre loacutegica ou
linguagem como as de Frege (a Conceitografia por exemplo) Russell
(Principia mathematica) Carnap (Da construccedilatildeo loacutegica do mundo)
Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) Husserl (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e mesmo a de Heidegger (Princiacutepios metafiacutesicos da loacutegica) ou
Merleau-Ponty (A prosa do mundo) ou ainda a de Foucault (As palavras
e as coisas uma arqueologia das ciecircncias humanas) e de Derrida
(Gramatologia) para imaginarmos quatildeo grande era aquela extrapolaccedilatildeo
Toda essa extrapolaccedilatildeo ou abandono daquele rigor claacutessico rigor
ainda presente segundo Marietti em Diferenccedila e repeticcedilatildeo jaacute garantiria
um lugar de destaque agrave obra Loacutegica do sentido junto agrave filosofia
contemporacircnea ou dos modernos como quer Badiou o que seraacute
intensificado pela valorizaccedilatildeo de um tipo de filosofia que jaacute tinha aceitado
a ponto de se misturar com elas seja a intromissatildeo da literatura seja a da
psicanaacutelise seja a da linguiacutestica Quanto agrave uacuteltima eacute faacutecil perceber a
importacircncia natildeo costumeiramente afirmada em livros de loacutegica que
William de Siqueira Piauiacute | 207
assumiratildeo as consideraccedilotildees de um Benveniste (de Problemas de
linguiacutestica geral por exemplo) de Jakobson (de dentre outros ldquoO signo
zerordquo) e mesmo que indiretamente de Sausurre (de Curso de linguiacutestica
geral) para a elaboraccedilatildeo das ldquotrecircs relaccedilotildees distintas da proposiccedilatildeo
(designaccedilatildeo ou indicaccedilatildeo manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo) tema da 3ordf seacuterie
Mais do que isto a contribuiccedilatildeo geral da linguiacutestica e estruturalismo seratildeo
enunciadas na 12ordf seacuterie do seguinte modo
Os autores que se costuma atualmente chamar de estruturalistas [tais como
Benveniste e Jakobson] natildeo tecircm talvez outro ponto em comum ndash poreacutem
essencial ndash aleacutem do seguinte o sentido natildeo como aparecircncia mas como efeito
de superfiacutecie e de posiccedilatildeo produzido pela circulaccedilatildeo da casa vazia nas seacuteries
da estrutura [le sens non pas du tout comme apparence mais comme effet de
surface et de position produit par la circulation de la case vide dans les seacuteries
de la structure] ([] significante flutuante valor zero cantonada ou causa
ausente etc) O estruturalismo conscientemente ou natildeo celebra novos
achados de inspiraccedilatildeo estoica ou carrolliana [] (DELEUZE 2003 p 73-4
grifo nosso)
Ora natildeo eacute o elogio de tipo semelhante que veremos em muitos outros
filoacutesofos contemporacircneos Ao menos podemos dizer que eacute o caso
inclusive dito de modo muito semelhante de Derrida em Escritura e
diferenccedila especialmente no capiacutetulo ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo E a noccedilatildeo do
sentido como superfiacutecie certamente marca uma das viradas mais
conscientemente assumidas e feita jaacute no iniacutecio de a Loacutegica do sentido ou
seja na atualidade ou a partir daqueles achados o ldquoProfundo deixou de
ser um elogiordquo (Idem p 16) Eacute preciso pois se aproximar da filosofia da
literatura ou da arte da psicologia ou psicanaacutelise das teorias da linguagem
ou dos estruturalismos que natildeo simulam mais a profundidade e vivem dos
incorporais ou da superfiacutecie Jaacute antecipamos que a obra buscaraacute
justamente tornar mais explicito e de modo talvez mais consciente o que
a literatura produzida por Carroll e a filosofia produzida pelos Estoicos
podem nos inspirar mas voltemos ao que diziacuteamos
208 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Haacute outros dois tipos de produccedilatildeo que jaacute haviam aceitado se
embrulhar na investigaccedilatildeo do sentido associada agrave superfiacutecie Deleuze natildeo
procura em Nietzsche ldquoum profeta da reviravolta nem da superaccedilatildeordquo nem
em Freud ldquoum explorador da profundidade humanardquo pois
Se haacute um autor para o qual a morte de Deus a queda em altura do ideal
asceacutetico natildeo tem nenhuma importacircncia enquanto eacute compensada pelas falsas
profundidades do humano maacute consciecircncia e ressentimento eacute sem duacutevida
Nietzsche [] Natildeo procuramos em Freud um explorador da profundidade
humana e do sentido originaacuterio mas o prodigioso descobridor da maquinaria
do inconsciente[ e vale lembrar que o paradoxo eacute a potecircncia do inconsciente]5
por meio do qual o sentido eacute produzido sempre produzido em funccedilatildeo do natildeo-
senso [] O que haacute de burocraacutetico nestas maacutequinas fantasmas que satildeo os
povos e os poemas [] Basta que nos dissipemos um pouco que saibamos
estar na superfiacutecie que estendamos nossa pele como um tambor para que a
ldquogrande poliacuteticardquo comece [] Fazer circular a casa vazia e fazer falar as
singularidades pre-individuais e natildeo pessoais [faire parler las singulariteacutes preacute-
individuelles non personnelle] [que natildeo satildeo nem da ordem do geral nem da
ordem do individual nem pessoais nem universais] em suma produzir o
sentido eacute a tarefe de hoje (Idem p 75-6)
Nenhuma novidade quanto agrave menccedilatildeo a Nietzsche e Freud geste que
tambeacutem lembraraacute Derrida em ldquoLa diffeacuterancerdquo6 trata-se de autores
fundamentais para pensar filosofia contemporacircnea ao menos a produzida
no continente Mantermo-nos na superfiacutecie naquele algo que insiste em
subsistir deixar de elogiar o profundo compreender ao menos em termos
gerais o que pretendiam os estruturalistas bem como Nietzsche e Freud
fazer comeccedilar a grande poliacutetica (incluiriacuteamos tambeacutem aiacute a justiccedila) e natildeo
apenas relembrar ou comentar mas produzir o sentido satildeo portanto as
tarefas da filosofia contemporacircnea defendida por Deleuze em Loacutegica do
sentido Mas assim como ao seu modo os Estoicos natildeo realizaram tal
tarefa eacute preciso estar atento ao fato que para Deleuze tambeacutem Nietzsche
teria se desviado dela ou como ele mesmo nos dizia
5 Cf op cit p 82
6 Cf Margens da filosofia 1991 p 49
William de Siqueira Piauiacute | 209
Nietzsche esteve primeiramente entre estes [Boehme Schelling etc] disciacutepulo
de Schopenhauer no Nascimento da trageacutedia quando ele faz falar Dioniacutesio
sem fundo opondo-o agrave individuaccedilatildeo divina de Apolo e natildeo menos agrave pessoa
humana de Soacutecrates [] Assim a descoberta de Nietzsche estaacute alhures[ em
outro lugar em outra parte] quando tendo se livrado de Schopenhauer e de
Wagner explora um mundo de singularidades impessoais e preacute-
individuais [un monde de singulariteacutes impersonnelles et preacute-individuelles]
mundo que chama agora de dionisiacuteaco ou da vontade de potecircncia energia livre
e natildeo ligada [] Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que
trata o sentido enfim natildeo como predicado [ou] como propriedade mas
como acontecimento [traite le sens enfin non pas comme preacutedicat comme
proprieacuteteacute mais comme eacuteveacutenement] [] Na sua descoberta Nietzsche entreviu
como em um sonho o meio de pisar a [superfiacutecie da] terra de roccedilaacute-la de
danccedilar e de trazer de volta agrave superfiacutecie o que restava dos monstros do fundo e
das figuras do ceacuteu Mas eacute verdade que ele foi tomado por uma ocupaccedilatildeo mais
profunda mais perigosa tambeacutem na sua descoberta ele viu um novo meio de
explorar o fundo [] correndo o risco de ser tragado por essa profundidade
(Idem p 110 grifo nosso)
Em sua avaliaccedilatildeo da filosofia nietzscheana embalado pela renovaccedilatildeo
da filosofia que ela sugeria Deleuze menciona uma espeacutecie de condiccedilatildeo da
tarefa fundamental de sua teoria do sentido ou seja aquele ldquoestranho
discursordquo deve nos conduzir a tratar ldquoo sentido enfim natildeo como
predicadordquo ou ldquocomo propriedade mas como acontecimentordquo para entatildeo
explorarmos ldquoum mundo de singularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo
inspiraccedilatildeo expliacutecita do Nietzsche de Nascimento da trageacutedia mas claro
tambeacutem que a noccedilatildeo freudiana de inconsciente e limite dado seu elemento
paradoxal limite do horizonte de saber (e talvez a grande poliacutetica e a
justiccedila tivessem justamente que assumir tal pressuposto) inclusive recusa
da profundidade das filosofias da intencionalidade satildeo fundamentais aqui
E vale repetir fonte inclusive da estranheza de seu discurso e que parece
ser a principal responsaacutevel pela distacircncia que separa ldquocontinentaisrdquo e
ldquoanaliacuteticosrdquo Nietzsche teria sonhado com o outro aspecto fundamental das
filosofias contemporacircneas que se embaralham com o problema do
significado e sentido o sentido natildeo deve ser tratado como predicado como
210 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
propriedade mas como acontecimento como eacuteveacutenement conceito
fundamental das filosofias e teorias da linguagem contemporacircneas
especialmente as continentais Tambeacutem eacute por causa deste aspecto que se
exigiraacute toda uma nova maneira de pensar a loacutegica do sentido que por isso
mesmo deveraacute ultrapassar aquelas trecircs relaccedilotildees distintas na proposiccedilatildeo
e seraacute especialmente associada agrave primeira a da designaccedilatildeo que Deleuze
formularaacute o problema mais geral de tal loacutegica
[] de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro agrave do sentido se fosse
para encontrar entre o sentido e o natildeo-senso [le sens et non-sens] uma relaccedilatildeo
anaacuteloga agrave do verdadeiro e do falso () A loacutegica dos sentidos vecirc-se
necessariamente determinada a colocar entre sentido e o natildeo-senso um tipo
original de relaccedilatildeo intriacutenseca um modo de co-presenccedila [] (Idem p 71)
Muitos foram os autores que esbarraram neste problema ou seja o
de determinar um novo e original tipo de relaccedilatildeo que permitisse
diferenciar de uma vez por todas os problemas de significaccedilatildeo ou
relacionados diretamente ao verdadeiro e falso dos de sentido e que ao
menos em termo de designaccedilatildeo adotaram ao menos a postura de aceitar
sua complexidade e dificuldade nem perto da radicalidade de um Deleuze
evidentemente foi esse o caso de Bertrand Russell em Significaccedilatildeo e
verdade7 em que afrontou dentre outras a noccedilatildeo de Carnap de sentido-
significado seja como for a descoberta da necessidade de um novo e
original tipo de relaccedilatildeo mais proacutepria ao sentido uma outra dimensatildeo ou
relaccedilatildeo jaacute havia sido descoberta haacute muito tempo ou como lembrava
Deleuze
O sentido eacute a quarta dimensatildeo da proposiccedilatildeo [aleacutem de designaccedilatildeo
manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo] Os estoicos a descobriram com o acontecimento
o sentido eacute o expresso da proposiccedilatildeo este incorporal na superfiacutecie das coisas
entidade complexa irredutiacutevel [que natildeo pode ser simplificada separada do
natildeo-senso] acontecimento puro (eacuteveacutenement pur) que insiste ou subsiste na
proposiccedilatildeo (Idem p 20)
7 Cf tambeacutem DELEUZE 2003 [Loacutegica do sentido] p 18-9
William de Siqueira Piauiacute | 211
E tal descoberta se repetiu na histoacuteria no medievo pelos
nominalistas da escola de Ockham Gregoacuterio de Rimini (1300-1358) e
Nicolas de Autrecourt (1299-1369) e depois pela loacutegica dos objetos
inexistentes de Alexius Meinong (1853-1920) que foi duramente atacada
pelo mesmo Russell E tal dimensatildeo teria sido chamada pelo fenomenoacutelogo
Edmund Husserl (1859-1938) de ldquoexpressatildeordquo quanto a quem e ao que
Deleuze afirmava ldquoHusserl natildeo menos que Meinong reencontra as fontes
vivas de uma inspiraccedilatildeo estoicardquo (Idem p 21) Ateacute certo ponto afinado com
aquela boa nova aquela inspiraccedilatildeo contudo semelhantemente a
Nietzsche Husserl tambeacutem teria sido tragado pelas profundezas neste
caso natildeo soacute por natildeo ter compreendido os atributos como verbos-
acontecimentos e sim como predicados-conceitos (Idem p 100) mas por
ter pecado em sua interpretaccedilatildeo contra uma filosofia propriamente da
expressatildeo supostamente defensora das ldquosingularidades nocircmades
impessoais e preacute-individuaisrdquo (Idem p 113) daiacute que em pleno acordo com
aquela tarefa de uma loacutegica do sentido Deleuze afirmasse
[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida
em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e
sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de
Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como
veremos uma mudanccedila muito importante [] A ideia de singularidades
logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-
individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste
domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)
Como era de se esperar dado a menccedilatildeo ao conceito de mocircnada para
fazer avanccedilar a determinaccedilatildeo daquele domiacutenio e constituir uma nova
noccedilatildeo de tal campo Deleuze trataraacute em seguida na 16ordf seacuterie (a da gecircnese
estaacutetica ontoloacutegica) da Loacutegica do sentido da filosofia de Leibniz Com o
que dissemos ateacute aqui fica evidenciado o quatildeo central seraacute a reavaliaccedilatildeo
da filosofia leibniziana especialmente de seu conceito de mocircnada
individual tendo vista que seraacute justamente ele que permitiraacute a base da
212 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
hipoacutetese ou seja a estruturaccedilatildeo da ldquoideia de singularidades logo de anti-
generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-individuaisrdquo daquelas
ldquosingularidades nocircmades impessoais e preacute-individuaisrdquo isto eacute daquilo
que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do sentido de qualquer
modo a conclusatildeo de tal seacuterie seraacute
Na obra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduo a mocircnada que descobre
o sentido e jaacute presente o natildeo-senso remontando agrave superfiacutecie a partir de um
mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que se envolve nela e lhe impotildee a
dura lei das misturas [jaacute] Silvia e Bruno seriam antes como as pessoas lsquovagasrsquo
que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo
comum a vaacuterios mundos mundo dos homens e mundo das fadas (Idem p
121)
O que novamente atesta o papel central que o conceito leibiziano de
mocircnada desempenha para toda a Loacutegica do sentido inclusive pela
apropriaccedilatildeo que ela faz da obra de Carroll ou seja o conteuacutedo da 16ordf seacuterie
deveraacute servir para voltar a compreender parte daquela boa nova agora
associada mais propriamente agraves obras Aventuras de Alice no paiacutes das
maravilhes Atraveacutes do espelho e o que Alice viu laacute e As aventuras de
Silvia e Bruno de Lewis Carroll que junto com a teoria dos incorporais
dos Estoicos satildeo os grandes temas de a Loacutegica do sentido Assim o que
trataremos a seguir eacute da reconstituiccedilatildeo deleuzeana do conceito de mocircnada
individual
II Parte ndash Interpretaccedilatildeo Deleuziana da Filosofia Leibniziana uma
Ficccedilatildeo Falsa
Como noacutes indicamos eacute jaacute a partir de 1968 que o filoacutesofo francecircs Gilles
Deleuze demonstra seu apreccedilo pela filosofia leibniziana como fica
evidente em alguns momentos da obra Diferenccedila e repeticcedilatildeo mas na
obra que escreve um ano depois Loacutegica do sentido tal seraacute sua
importacircncia que ela se tornaraacute o tema principal de toda uma seacuterie a 16ordf
seacuterie justamente um dos momentos mais cruciais de seu romance ou
William de Siqueira Piauiacute | 213
histoacuteria embrulhada momento em que veremos Deleuze caracterizar as
Alices e Silvia e Bruno de Carroll a partir do suposto8 conceito leibniziano
de pessoa vaga e do de mocircnada individual conceitos que ofereceriam as
bases para pensar aquilo que ele chamou de gecircnese estaacutetica ontoloacutegica de
um certo campo transcendental Satildeo certamente as consideraccedilotildees feitas
aqui que forneceratildeo a direccedilatildeo principal das leituras que Deleuze faraacute de
Leibniz nos trecircs cursos que deu na deacutecada de oitenta (1980 86 e 87) aulas
que receberatildeo o tiacutetulo de Exasperaccedilatildeo da filosofia e que com algumas
poucas mudanccedilas substanciais teratildeo como resultado a obra A dobra
Leibniz e o barroco publicada em 1988 Assim o que pretendemos eacute
problematizar a compreensatildeo dos conceitos leibnizianos que serviriam
para caracterizar os personagens de Carroll tentando apontar alguns dos
problemas da leitura de Deleuze especialmente se levarmos em conta
dentre outros textos a carta que Leibniz escreve a Molanus em 1679 bem
antes do Discurso de metafiacutesica este nosso principal ponto de partida e
o que faz a base do capitulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou diversidaderdquo
dos Novos ensaios (II XXVII) posterior ao Discurso e anterior tanto agrave
Teodiceia quanto agrave Monadologia Com isso esperamos lanccedilar luz sobre
a noccedilatildeo de fato leibniziana de sujeito ou indiviacuteduo e as bases do
deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo deleuziana Vejamos entatildeo como a
filosofia de Leibniz aparece na obra de 1969
Como jaacute o dissemos em Loacutegica do sentido tudo parece comeccedilar
com a criacutetica a Husserl em sua 14ordf seacuterie Deleuze considera que
[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida
em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e
sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de
Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como
veremos uma mudanccedila muito importante9 [] A ideia de singularidades
8 Dizemos ldquosupostordquo tendo em vista que em nossa opiniatildeo Deleuze forccedila demais a oposiccedilatildeo entre o que Leibniz afirmou na correspondecircncia que travou com Arnauld especialmente a nota agrave carta de 13 de maio de 1686 e teria querido dizer nos paraacutegrafos finais da Teodiceia especialmente o sect414 Cf DELEUZE 2003 p 118 [nota 4]
9 A expressatildeo ldquoHaacute contudo como veremos uma mudanccedila muito importanterdquo parece apontar para uma interpretaccedilatildeo diferente da de Husserl e que seraacute parte do motivo de retornar agrave filosofia leibniziana nas seacuteries seguintes diferenccedila
214 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-
individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste
domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)
Segundo Deleuze Husserl teria construiacutedo um campo transcendental
sem atentar para as condiccedilotildees impostas por Sartre em seu famoso artigo de
1937 intitulado ldquoA transcendecircncia do Egordquo e natildeo teria vislumbrado a ideia
de ldquosingularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo que jaacute estariam
suficientemente desenvolvidas na filosofia de Leibniz10 em uma palavra
Husserl teria se mantido kantiano demais11 talvez inclusive por natildeo ter
compreendido uma suposta precedecircncia do mundo com relaccedilatildeo agrave mocircnada
expressiva e a arbitrariedade da aplicaccedilatildeo irrestrita do princiacutepio de inclusatildeo
do predicado no sujeito dito de outra forma por Husserl natildeo ter visto em
Leibniz uma loacutegica do acontecimento ou topologia de superfiacutecie que
permitiria a ldquodeterminaccedilatildeo daquele domiacutenio e de sua potecircncia geneacuteticardquo e
ainda de outra forma por natildeo ter visto nos textos de Leibniz os elementos
para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese segundo a qual as ldquosingularidadesrdquo ou ldquoanti-
generalidadesrdquo devem ser consideradas ldquoimpessoais e preacute-individuaisrdquo
Como era de se esperar dada a associaccedilatildeo ao conceito de mocircnada Deleuze
trataraacute na 16ordf seacuterie (ldquoDa gecircnese estaacutetica ontoloacutegicardquo) da Loacutegica do sentido
da filosofia de Leibniz e como esta permitiria compreender a constituiccedilatildeo de
tal campo e tal ideia e que se tornaraacute a base de sua argumentaccedilatildeo em A
dobra ndash o que fica evidente especialmente em seu capiacutetulo 5 trata-se aqui
de levar adiante aquilo que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do
sentido ou do acontecimento12
Entatildeo nos voltando para a conclusatildeo da 16ordf seacuterie e parte da sua
hipoacutetese geral A primeira pergunta que devemos fazer eacute Qual eacute o
que causou muita estranheza a muitos interpretes de Leibniz Gonzalo deixa claro em seu artigo jaacute mencionado os termos em que se deu a polecircmica entre Fremont e Deleuze
10 Certamente o que permitiraacute a Deleuze terminar A dobra dizendo que permanecemos leibnizianos (DELEUZE 1991 p 208) posicionamento filosoacutefico com o qual esse sim Alain Badiou se potildee em desacordo ao defender a ldquooutra escolha ontoloacutegicardquo (BADIOU 2015 p 39-44)
11 DELEUZE 2003 p 101
12 Idem todo o final da 14ordf seacuterie
William de Siqueira Piauiacute | 215
imperativo do uso das obras de Carroll que marcaria as nuacutepcias da
linguagem e do inconsciente A resposta eacute a contestaccedilatildeo da identidade
pessoal (Idem p 3) Pressuposto que permitia a circulaccedilatildeo da ldquocasa vaziardquo
e o falar das ldquosingularidades pre-individuais e natildeo pessoaisrdquo ldquoque natildeo satildeo
nem da ordem do geral nem da ordem do individual nem pessoais nem
universaisrdquo ldquoem sumardquo o que possibilitaria a produccedilatildeo do sentido Se
deixar arrastar pelos verbos de puro devir natildeo deixar que a noccedilatildeo de
atributo verbal seja confundida e assimilada pela de predicado da loacutegica
formal (claacutessica-aristoteacutelica) dai que evidente e novamente se queremos
tomaacute-lo como ponto de partida tenha de ser arbitraacuterio na filosofia de
Leibniz a inerecircncia do predicado no sujeito (Idem p 115) o que deve levar
agravequeles conceitos de pessoa ou indiviacuteduo que permitiriam comparar Alice
com uma mocircnada e Silvia e Bruno com pessoas vagas Mas seraacute mesmo
arbitraacuterio
Assim e para o que nos interessa em Loacutegica do sentido os pontos
principais e o centro da interpretaccedilatildeo de Deleuze da filosofia leibniziana
estariam na seguinte afirmaccedilatildeo
Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada
mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente
compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia
dos predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo
expresso natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas
mocircnadas como a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos
verdade entretanto que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas (Dieu
creacutee le monde plutocirct que les monades)13 e [tambeacutem eacute verdade] que o expresso
13 Outra traduccedilatildeo possiacutevel dessa afirmaccedilatildeo e que afasta o problema da anterioridade temporal seria ldquoDeus cria o mundo e natildeo (plutocirct que) as mocircnadasrdquo A expressatildeo francesa plutocirct nos arrastaria inclusive para o que parece ser o contraacuterio da anterior ldquoDeus cria o mundo sobretudo (plutocirct) as mocircnadasrdquo Nossa interpretaccedilatildeo vai se basear na afirmaccedilatildeo e nota correspondente o que tambeacutem consideramos ser uma intensificaccedilatildeo feitas em A dobra Leibniz e o barroco ldquoEstas natildeo satildeo as generalidades mas acontecimentos gotas de acontecimento Nem por isso deixam [os acontecimentos as gotas de acontecimento] de ser preacute-individuais uma vez que o mundo eacute virtualmente primeiro em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que o expressam (Deus criou natildeo Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou) O indiviacuteduo nesse sentido eacute atualizaccedilatildeo de singularidades preacute-individuais [Elles nrsquoen sont pas moins preacute-individuelles dans la mesure ougrave le monde est virtuellement premier par rapport aux individus qui lrsquoexpriment (Dieu a creacuteeacute non pas Adam peacutecheur mais le monde ougrave Adam a peacutecheacute) Lrsquoindividu en ce sens est lrsquoactualisation de singulariteacutes preacute-individuelles et nrsquoimplique aucune speacutecification preacutealable Il faut mecircme dire le contraire et constater que la speacutecification suppose elle-mecircme lrsquoindividuation]rdquo (DELEUZE 1991 p 101) Podemos mesmo falar em
216 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
natildeo se confunde com sua expressatildeo mas [partindo de um ponto de vista
estoico] insiste ou subsiste () Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos
predicados na filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na
mocircnada expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo
expresso e esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras
singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que
pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a]
uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdade Leibniz foi muito longe nesta
primeira etapa da gecircnese [ontoloacutegica de um certo campo transcendental
impessoal e preacute-individual ou das singularidades entendidas como
verdadeiros acontecimentos transcendentais14] o indiviacuteduo constituiacutedo
como centro de envolvimento como envolvendo singularidades em um
mundo e sobre seu corpo (Idem p 114-5 grifo nosso)15
Como jaacute indicamos ao falar da associaccedilatildeo de Husserl com os achados
estoicos para aleacutem da noccedilatildeo de sujeito indiviacuteduo ou pessoa o outro tema
cariacutessimo agrave Loacutegica do sentido e que tambeacutem deve ter contribuiacutedo para a
escolha da filosofia leibniziana eacute o de ldquoexpressatildeordquo tema que leva agrave
pergunta Como as mocircnadas expressariam o mundo e qual a ordem de
precedecircncia ou preferecircncia seja com relaccedilatildeo a Deus ao mundo ou aos
corpos De qualquer modo com relaccedilatildeo agrave polecircmica entre ambos natildeo eacute
preciso muito para compreender a insistecircncia de Fremoacutent na reconstruccedilatildeo
anterioridade virtual do mundo em Leibniz Seria isso suficiente para aceitarmos o deslocamento proposto por Deleuze desde a Loacutegica do sentido
14 Cf a p 105 da mesma obra
15 ldquoSrsquoeffectuer crsquoest aussi ecirctre exprimeacute Leibniz soutient une thegravese ceacutelegravebre chaque monade individuelle exprime le monde Mais cette thegravese nrsquoest pas suffisamment comprise tant qursquoon lrsquointerpregravete comme signifiant lrsquoinheacuterence des predicats dans la monade expressive Car il est bien vrai que le monde exprimeacute nrsquoexiste pas hors des monades qui
lrsquoexpriment donc existe dans les monades comme la seacuterie des preacutedicats qui leur sont inheacuterents Il nrsquoest pas moins vrai cependant que Dieu creacutee le monde plutocirct que les monades et que lrsquoexprimeacute ne se confond pas avec son expression mais insiste ou subsiste [nota 1] [] Il est arbitraire de privileacutegier lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la philosophie de Leibniz Car lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la monade expressive suppose drsquoabord la compossibiliteacute du monde exprimeacute et celle-ci agrave son tour suppose la distribution de pures singulariteacutes drsquoapregraves des regravegles de convergence et de divergence qui appartiennent encore agrave une logique du sens et de lrsquoeacuteveacutenement non pas agrave une logique de la preacutedicacion et de la veacuteriteacute Leibniz a eacuteteacute tregraves loin dans cette premiegravere eacutetape de la genegravese lrsquoindividu constitueacute comme centre drsquoenveloppement comme enveloppant des singulariteacutes dans un monde et sur son corps et Adammiddotnon peacutecheur deacutecoule de lrsquoincompossibiliteacute des mondes ougrave Adam pegraveche et ne pegraveche pas Dans chaque monde les monades individuelles expriment toutes les singulariteacutes de ce monde - une infiniteacute - comme dans un murmure ou un eacutevanouissement mais chacune nrsquoenveloppe ou nrsquoexprime laquoclairementraquo qursquoun certain nombre de singulariteacutes celles au voisinage desquelles elle se constitue et qui se combinent avec son corpsrdquo (DELEUZE 1969 p 134-5) Ao que segue o comentaacuterio da nota 1 ldquoTema constante das cartas de Leibniz a Arnauld Deus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou (Theme constant des lettres de Leibniz agrave Arnauld Dieu a creacuteeacute non pas exactament Adam-pecheur mais le monde ouacute Adam peacutecheacute)rdquo
William de Siqueira Piauiacute | 217
dos conceitos leibnizianos de Deus e de indiviacuteduo fica evidente com a
citaccedilatildeo feita acima que esses deveriam fazer a base da argumentaccedilatildeo do
proacuteprio Deleuze que muitas vezes prefere recorrer aos textos esparsos e
de difiacutecil interpretaccedilatildeo em que Leibniz fala de compossibilidade ou
incompossibilidade da universalidade ou generalidade e singularidade ou
especificaccedilatildeo das regras de convergecircncia ou divergecircncia e mesmo do
caacutelculo diferencial e integral mas natildeo tanto aos em que o alematildeo fala
propriamente dos conceitos de substacircncia particular ou mocircnada
individual Todavia natildeo eacute nossa intenccedilatildeo remontar tal embate Assim eacute
nossa pretensatildeo problematizar ainda uma vez a partir dos textos onde
Leibniz de fato trata deles inclusive os associando os assuntos ldquoinerecircncia
do predicado no sujeitordquo ldquoDeusrdquo ldquomocircnada individualrdquo ou ldquosubstacircncia
particularrdquo e ldquoacontecimentordquo tentando remontar o que do nosso ponto
de vista parece ser um dos principais problemas da leitura deleuziana
certa cadeia argumentativa e associaccedilatildeo inevitaacutevel de temas presentes nos
textos leibnizianos
Dito isso em primeiro lugar mesmo que acreditemos que a leitura
que faz Russell da filosofia de Leibniz eacute purista demais com relaccedilatildeo agrave sua
vinculaccedilatildeo agrave loacutegica aristoteacutelica se eacute arbitraacuterio a inerecircncia do predicado no
sujeito com relaccedilatildeo agrave mocircnada individual expressiva ndash que devemos fazer
preceder da noccedilatildeo de uma substacircncia individual16 ndash Deleuze deveria ter se
explicado melhor quanto agrave afirmaccedilatildeo feita no sect8 do Discurso de
metafiacutesica que trata justamente do conceito de Deus e de ldquoem que
consiste uma substacircncia individualrdquo a saber
Ora eacute bem constante que toda predicaccedilatildeo tem algum fundamento verdadeiro
na natureza da coisa e quando uma proposiccedilatildeo natildeo eacute idecircntica isto eacute quando
o predicado natildeo estaacute compreendido expressamente no sujeito eacute preciso que
esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filoacutesofos in-esse
16 Com relaccedilatildeo ao modo como compreendemos a associaccedilatildeo do conceito de mocircnada humana com o de substacircncia individual indicamos nossos artigos ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo e ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e Infinito em Leibnizrdquo seja como for eacute no sentido do conceito de substacircncia individual ou noccedilatildeo de indiviacuteduo singular ou noccedilatildeo individual completa ou mesmo de pessoa possiacutevel que Deleuze entende o conceito de mocircnada individual ou humana
218 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
dizendo estar o predicado no sujeito Eacute preciso pois o termo do sujeito
conter sempre o do predicado de tal forma que quem entender
perfeitamente a noccedilatildeo do sujeito julgue tambeacutem que o predicado lhe
pertencerdquo (LEIBNIZ 1983 p 124 grifo nosso)
Afirmaccedilatildeo que fundamentaraacute as seguintes consequecircncias
Isto posto podemos dizer que a natureza de uma substacircncia individual ou
de um ser complexo consiste em ter uma noccedilatildeo tatildeo perfeita que seja
suficiente para deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se
atribui estaacute noccedilatildeo [] [Daiacute que] Deus vendo a noccedilatildeo individual ou
ecceidade de Alexandre nela vecirc ao mesmo tempo o fundamento e a razatildeo
de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar []
(Idem grifo nosso)
Apesar do deslocamento quanto agrave noccedilatildeo de criaccedilatildeo antes ou depois
de preferecircncia ou natildeo com relaccedilatildeo ao mundo ateacute aqui nada aponta para
uma restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse a natildeo ser a menccedilatildeo ao virtual
(virtuellement) ou seja nada aponta para a restriccedilatildeo do princiacutepio de
inerecircncia do predicado no sujeito especialmente quando se trata de pensar
a natureza de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo individual
completa ou perfeita noccedilatildeo individual ou ecceidade bem como nada
parece apontar para algo que permitisse concluir que ldquoDeus criou natildeo
exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo talvez no
sentido que a qualidade o adjetivo ldquopecadorrdquo o predicado natildeo seria
previa e propriamente ldquoinerenterdquo ao sujeito Adatildeo Restaria pois
compreender o que seria essa visatildeo sem precedecircncia ou preferecircncias e ldquoao
mesmo tempordquo da noccedilatildeo individual ou ecceidade O que quer dizer este
ldquoao mesmo tempordquo esta simultaneidade e como compreender este
fundamento e razatildeo de todos os predicados que verdadeiramente se
podem afirmar de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo
individual completa ou perfeita de um ser complexo (talvez o misteacuterio
mencionado em A dobra) Mas natildeo resta duacutevida que a verdade entra em
jogo aqui jaacute que se trata tambeacutem do fundamento de ldquotoda predicaccedilatildeordquo
por isso mesmo podemos colocar o problema no mesmo registro da
William de Siqueira Piauiacute | 219
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld17 quando o alematildeo afirma jaacute
na carta de 14 de julho de 1686 que semper enim notio praedicati inest
subjecto in propositione vera18 Nesse sentido a questatildeo seria perguntar se
o conhecimento que Deus tem de uma substacircncia individual noccedilatildeo
individual completa ou perfeita um noccedilatildeo individual ou ecceidade eacute certo
ndash infaliacutevel ndash a ponto de dizermos que as proposiccedilotildees formadas com relaccedilatildeo
a elas tecircm de ser ditas verdadeiras ou falsas mas claro que para Leibniz o
conhecimento de Deus eacute infaliacutevel e mesmo que em termos de predicaccedilatildeo
tiveacutessemos que levar a anaacutelise de tais noccedilotildees ao infinito temos de lembrar
que aquele conhecimento tambeacutem compreende o infinito Restaria ainda
perguntar se tal conhecimento se prenderia a uma caracteriacutestica
semelhante a um atributo verbal no sentido deleuzeano ou a um predicado
no sentido claacutessico De qualquer modo no sect31 do Discurso de metafiacutesica
que trata justamente da ldquorazatildeo que fez Deus chamar agrave existecircncia tal pessoa
possiacutevelrdquo tal substacircncia individual noccedilatildeo individual completa ou perfeita
noccedilatildeo individual ou ecceidade possiacuteveis e dos acontecimentos relacionados
a tais pessoas possiacuteveis ao menos parte da questatildeo eacute resolvida com a
seguinte consequecircncia geral
[] creio mais exato e seguro dizer segundo nossos princiacutepios e como jaacute notei
ser forccediloso haver entre os entes possiacuteveis a pessoa de Pedro ou Joatildeo cuja
noccedilatildeo ou ideia conteacutem toda esta seacuterie de graccedilas ordinaacuterias e todo o resto
destes acontecimentos (eacuteveacutenements) com suas circunstacircncias e que entre
uma infinidade de outras pessoas igualmente possiacuteveis agradou a Deus
escolhecirc-la para existir atualmente (actuellement) (Idem p 147 grifo nosso)19
17 Insistindo pois naquele lugar onde esse tema teria sido tatildeo debatido cf DELEUZE 2003 [nota 1] p 114
18 ldquoDe fato [ou manifestamente] na proposiccedilatildeo verdadeira sempre a noccedilatildeo do predicado lsquoinerersquo ao sujeitordquo
19 De pleno acordo com o que Leibniz defende na nota agrave carta de Arnauld com relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma noccedilatildeo vaga de sujeito ldquo[primeira resposta] que minha suposiccedilatildeo natildeo eacute simplesmente que Deus tenha querido criar um Adatildeo cuja noccedilatildeo seja vaga e incompleta mas que Deus quis criar um tal Adatildeo suficientemente determinado para um indiviacuteduo Esta noccedilatildeo individual completa encerra [ou envolve] em minha opiniatildeo relaccedilotildees com toda a serie das coisas o qual deve parecer tanto mais razoaacutevel quanto que o Sr Arnauld me concede aqui o enlace que haacute entre as resoluccedilotildees de Deus a saber que Deus ao resolver-se a criar determinado Adatildeo tem em conta todas as resoluccedilotildees que toma sobre toda a seria do universo agrave maneira de uma pessoa prudente que ao tomar uma resoluccedilatildeo com respeito a um propoacutesito tem em vista em sua totalidade dito propoacutesito jaacute que pode decidir-se melhor quando se resolve sobre todas as partes (que ma supposition nrsquoest paacutes simplement que Dieu a voulu creacuteer un Adam dont la notion soit vague et incomplegravete mais que Dieu a voulu creacuteer un tal Adam assez deacutetermineacute agrave un individu Et cette notion individuelle complete selon moi enveloppe decircs rapport agrave toute la suite des choses ce qui doit paraicirctre
220 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Fica evidente inclusive que mesmo quanto aos acontecimentos
(eacuteveacutenements) todos jaacute com suas circunstacircncias devem ser considerados
incluiacutedos nas ideias das pessoas possiacuteveis ou nas noccedilotildees completas das
pessoas possiacuteveis ou seja nas noccedilotildees das substacircncias individuais ou
particulares noccedilotildees individuais ou ecceidades possiacuteveis Em que sentido
portanto interpretar a afirmaccedilatildeo ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo
pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo Talvez ou no sentido que haacute
uma ruptura no desenvolvimento da filosofia de Leibniz entre o conceito
de substacircncia individual e mocircnada como querem muitos comentadores
ou concedendo que em Leibniz haveria a afirmaccedilatildeo do conceito de pessoa
vaga o que natildeo vemos como corroborar tendo em vista o que eacute afirmado
na nota agrave carta que mencionamos em nota mais acima mas poderia ser
um problema com relaccedilatildeo agrave hipoacutetese interpretativa que o sect414 da
Teodiceia exige uma ldquounidade objetividade muito especialrdquo para ser
compreendido e neste caso voltariacuteamos a uma saiacuteda semelhante agrave
daqueles comentadores Mas se nos mantemos na eacutepoca do Discurso
certamente podemos dizer que aquela consequecircncia seraacute seguida da
explicaccedilatildeo que parte dos princiacutepios fundamentais que guiam a
argumentaccedilatildeo de Leibniz satildeo 1) o da perfeiccedilatildeo ou completude das
operaccedilotildees de Deus e 2) o da noccedilatildeo individual completa ou perfeita (uma
noccedilatildeo natildeo vaga e natildeo incompleta) que encerra in-esse todos os
acontecimentos com todas as suas circunstacircncias Ateacute este momento o do
Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld
portanto nada parece apontar para o acontecimento ou gota de
acontecimento no sentido deleuziano mesmo que o revolucionaacuterio artigo
drsquoautant plus raisonnable que M Arnauld mrsquoaccorde ici la liaison qursquoil y a entre les reacutesolutions de Dieu savoir que Dieu prenant la reacutesolutions de creacuteer un tel Adam a eacutegard agrave toutes lecircs reacutesolutions qursquoil prend touchand toute la suiacutete de lrsquouniverse agrave peu pregraves comme une persone sage qui prend une reacutesolutions agrave lrsquoegard drsquoune partie de son dessein lrsquoa tout entier em vue et se reacutesoudra drsquoautant mieux si elle pourra se reacutesoudre drsquoautant mieux si elle pourrra se resoudre sur toutes lecircs parties agrave la fois)rdquo (LEIBNIZ 1900 p 182) Cf tambeacutem DELEUZE 2003 p 118 [e tambeacutem a nota 4] Vale lembrar que a questatildeo da escolha entre uma infinidade de pessoas possiacuteveis leva o problema do conhecimento do infinito natildeo mais para uma anaacutelise infinita de uma noccedilatildeo e sim para a de uma infinidade de noccedilotildees uma multidatildeo ou conjunto infinitos nesse sentido agrave de compossibilidade e incompossibilidade quanto ao que pensamos sobre a ligaccedilatildeo desse detalhe com o labirinto da liberdade gostariacuteamos de indicar novamente nosso artigo ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibnizrdquo
William de Siqueira Piauiacute | 221
sobre ldquoUm novo meacutetodo para os maacuteximos e miacutenimos assim como para as
tangentes que natildeo para ante quantidades fracionaacuterias ou irracionais e eacute
um gecircnero singular de caacutelculo para estes problemasrdquo jaacute esteja pronto
comprovadamente desde 1684 Na verdade cremos que a melhor
estrateacutegia para pensar uma topologia da superfiacutecie em Leibniz a partir de
1684 seria reconstituir sua noccedilatildeo de funccedilatildeo e se voltar para a sua
dinacircmica20 mas se distanciando de sua noccedilatildeo de mocircnada humana e
afirmando inclusive diferenccedilas importantes entre o conceito de substacircncia
individual do Discurso e o de mocircnada na Monadologia
De qualquer modo e em sentido contraacuterio agora a noccedilatildeo de pessoa
defendida no Discurso parece ser um desenvolvimento da de pessoa
espiritual que Leibniz defendia jaacute na carta a Molanus de 167921 justamente
contra a moral Estoica ndash o que deveria ter chamado a atenccedilatildeo do jovem
Deleuze ndash e a de Descartes e natildeo eacute diferente da utilizada na
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld portanto ambas as seacuteries de
cartas estariam em pleno acordo com o Discurso Mais que isso do nosso
ponto de vista trava-se desde a carta a Molanus daquilo que permitiraacute
compreender a peculiaridade e novidade do fatum christianum do iniacutecio
da Teodiceia novamente contra o fatum stoiumlcum vale lembrar Aleacutem
disso a noccedilatildeo individual completa ou perfeita eacute reafirmada nos Novos
ensaios justamente no capiacutetulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou
diversidaderdquo ndash capiacutetulo curiosamente natildeo analisado por Deleuze seja em
Loacutegica do sentido seja em A dobra ndash onde jaacute aparece o conceito de
mocircnada que a partir dali assimilaraacute grande parte das caracteriacutesticas do
conceito de noccedilatildeo individual completa ou perfeita capiacutetulo que deveria ter
sido interpretado por Deleuze ou ao menos mencionado dado que tanto
em A dobra e mais ainda em Loacutegica do sentido se tratava do problema
da identidade pessoal Assim ateacute por conta da boa nova que representaria
a obra carrolliana quanto agrave dissoluccedilatildeo da identidade pessoal nos parece
20 Quanto ao que pensamos sobre o conceito leibniziano de funccedilatildeo associado ao de continuidade e histoacuteria gostariacuteamos de indicar nosso artigo ldquoLeibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologiardquo
21 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartesrdquo
222 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que teria faltado um agrupamento mais cuidadoso dos textos a partir do
tema geral da noccedilatildeo individual completa ou perfeita De qualquer modo
ateacute esse momento o do Discurso ou em torno dos Novos ensaios e com
relaccedilatildeo seja ao conceito de mocircnada humana individual seja o de noccedilatildeo
individual completa natildeo vemos a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos alcanccedilados com o
artigo de 1684 ou que nos obrigue a leitura do texto ldquoSobre o meacutetodo da
universalidaderdquo de conforme Couturat o mais tardar 167422 o que parece
deixar sem fundamento o deslocamento exigido por Deleuze ao menos em
a Loacutegica do sentido A partir de quais textos que tratem propriamente do
problema do sujeito indiviacuteduo e mocircnada humana com as associaccedilotildees que
mencionamos acima fundamentariacuteamos aquela exigecircncia de recusarmos
o princiacutepio inesse e a de estarmos obrigados a apelar para as regras de
divergecircncia e convergecircncia ou para outro tipo de singularidade
Arriscariacuteamos dizer que por conta do todo da obra apenas os sect6 que
menciona a noccedilatildeo de funccedilatildeo e sect17 a sect22 que trabalham o conceito de
forccedila e causalidade final do Discurso poderiam fornecer algum
fundamento para tal deslocamento mas todo o resto da obra seria prova
suficiente que a adoccedilatildeo de tais regras em nada invalida o princiacutepio inesse
principalmente se as questotildees tiverem a ver com a tentativa de pensar a
noccedilatildeo completa de indiviacuteduo ou aquele conceito de mocircnada humana
defendido nos Novos ensaios e mesmo os conceitos de acontecimento e
suas circunstacircncias ou o conteuacutedo do intelecto divino23
Dito assim voltando ainda uma vez ao Discurso de metafiacutesica o
sect14 que trata das perspectivas do universo que Deus decide criar e que
corresponderiam ao que acontece agraves substacircncias individuais ndash talvez
daquilo que sem nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de Leibniz permitiria falar
da aplicaccedilatildeo das regras de convergecircncia e divergecircncia ou ao novo meacutetodo
para os maacuteximos e miacutenimos ndash natildeo deixa duacutevidas quanto agrave noccedilatildeo de
22 Anterior agrave carta a Molanus portanto
23 Vale lembrar o tiacutetulo que recebeu o sect6 do Discurso ldquoDeus nada faz fora de ordem e nem eacute possiacutevel forjar acontecimentos (eacuteveacutenements) que natildeo sejam regularesrdquo Neste caso os outros paraacutegrafos que mencionamos encaminham a pergunta que talvez impediria aquele deslocamento Com relaccedilatildeo ao conteuacutedo do intelecto divino o que faz o fundamento ou substacircncia da continuidade da mudanccedila Problema que no nosso entender eacute o principal que aparece jaacute desde o iniacutecio da Monadologia cf sect8 e que exige a noccedilatildeo de mocircnada individual fechada
William de Siqueira Piauiacute | 223
acontecimento e emprego irrestrito do princiacutepio da inclusatildeo do predicado
no sujeito com relaccedilatildeo agraves ideias de pessoas ou noccedilotildees completas ali
Leibniz afirmava
De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poder-se-aacute dizer
que nunca uma substacircncia particular atua (agit) sobre uma outra substacircncia
particular e tampouco padece se os eventos24 de cada um satildeo considerados
apenas como consequecircncia de sua simples ideia ou noccedilatildeo completa pois
esta ideia [ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular] encerra jaacute
todos os predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime
(exprime) todo o universo Com efeito nada pode acontecer-nos (arriver)
aleacutem de pensamentos e percepccedilotildees e todos os nossos futuros pensamentos e
percepccedilotildees natildeo passam de consequecircncias embora contingentes
(contingentes) dos nossos pensamentos e percepccedilotildees anteriores de tal modo
que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora
me acontece ou aparece nessa percepccedilatildeo poderia ver tudo quanto me
aconteceraacute e apareceraacute sempre o que natildeo falharia e aconteceria da mesma
maneira embora tudo quanto existisse fora de mim fosse destruiacutedo desde que
restasse Deus e eu (LEIBNIZ 1983 p 129-30)
A ideia ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular encerra jaacute
todos os predicados ou acontecimentos e exprime todo o universo E
exprime jaacute enquanto ideia ou noccedilatildeo completa todo o universo Claro que
um grande problema eacute compreender aquela contingecircncia mas natildeo no
esqueccedilamos da intensificaccedilatildeo que vem a seguir ldquodesde que restasse
apenas eu e Deusrdquo Apesar da necessidade de problematizar quatildeo longe
vai a impossibilidade de distinccedilatildeo completa dos nossos pensamentos e
percepccedilotildees certamente associada agrave necessidade de uma anaacutelise infinita
para a compreensatildeo total ou perfeita de uma noccedilatildeo individual o que pode
apontar para aquela contingecircncia em nenhum momento da Carta a
Molanus do Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz
e de Anauld vimos Leibniz afirmar a precedecircncia ou preferecircncia do
mundo e mesmo dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de pessoas
24 Aqui podemos ter um problema de traduccedilatildeo de fato soacute mais agrave frente surgiraacute no original francecircs a palavra lsquoeventorsquo ou lsquoacontecimentorsquo ou seja eacuteveacutenement
224 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
especialmente no sentido que haveria singularidades que precederiam as
individualidades o que justificaria a necessidade de recorrermos agraves suas
noccedilotildees de compossibilidade e incompossibilidade ou agraves regras de
convergecircncia e de divergecircncia Parece-nos que a afirmaccedilatildeo ldquoesta ideiardquo ou
noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular ldquoencerra jaacute todos os
predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime
(exprime) todo o universordquo vai justamente no sentido contraacuterio ao
pretendido por Deleuze De qualquer modo o problema da significaccedilatildeo do
conceito de expressatildeo seu campo semacircntico parece nos obrigar a passar
para a regiatildeo dos possiacuteveis e vai mais no sentido das noccedilotildees completas
para o universo do que o contraacuterio Assim eacute preciso atentar para o fato
que ao menos aqui ldquopredicadordquo ldquoacontecimentordquo e ldquoexpressatildeordquo satildeo
colocados no mesmo registro daquelas ideias e nada aponta para uma
restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse ou para a anterioridade ou preferecircncia do
mundo com relaccedilatildeo agraves ideias ou noccedilotildees completas de substacircncias
particulares ou mocircnadas individuais De qualquer modo e essa eacute nossa
opiniatildeo os paraacutegrafos finais da Teodiceia e a uacuteltima carta que Leibniz
escreveu a Samuel Clarke parecem ser decisivos Primeiro
Vocecirc vecirc [afirma a deusa Palas Atena] que meu pai [Juacutepiter] natildeo fez Sextus
mau ele [Sextus] o foi [mau] desde toda a eternidade ele o foi sempre
livremente [meu pai] soacute fez lhe consentir a existecircncia que sua sabedoria
natildeo podia recusar ao mundo em que ele estaacute compreendido ele o fez
passar da regiatildeo dos possiacuteveis para a dos seres atuais (LEIBNIZ 2013
[Teodiceia] sect416 p 415 grifo nosso)
Aqui eacute afirmada a necessidade de uma determinada pessoa possiacutevel
dever estar compreendida em um determinado mundo possiacutevel25 que
Deus ou na histoacuteria que termina a Teodiceia Juacutepiter faz ou consente vir
agrave existecircncia suposto ser o melhor dos mundos possiacuteveis ldquopassar da regiatildeo
dos possiacuteveis para a dos seres atuaisrdquo e certamente podiacuteamos pensar tal
25 A partir da perfeiccedilatildeo das operaccedilotildees do intelecto divino Leibniz natildeo soacute natildeo defende que haacute pessoas possiacuteveis vagas mas tambeacutem natildeo haacute propriamente falando mundos possiacuteveis vagos
William de Siqueira Piauiacute | 225
necessidade nos valendo da noccedilatildeo de compossibilidade e
incompossibilidade mas natildeo nos adiantemos Eacute preciso voltar ao que diz
o texto e lembrar que Juacutepiter apenas consentiu a existecircncia a Sextus
existecircncia que eacute precedida portanto de uma noccedilatildeo completa individual
que faz parte do conteuacutedo do intelecto divino e que se relaciona com as
perfeiccedilotildees de suas operaccedilotildees daiacute sua eternidade perfeiccedilatildeo ou completude
(em oposiccedilatildeo a vago) e precedecircncia com relaccedilatildeo agrave existecircncia isto eacute agrave
posterior atualizaccedilatildeo Em que sentido portanto interpretar a afirmaccedilatildeo
ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo
pecourdquo Contra parte da interpretaccedilatildeo de Deleuze pois Apolo-Juacutepiter natildeo
criou Sextus mau ou fez a inclusatildeo de tal predicado ou atributo verbal a
partir de uma seacuterie universo ou mundo determinado de singularidades
adjacentes preacute-individuais natildeo eacute nesse sentido que o mundo precede ou
tem preferecircncia com relaccedilatildeo a Sextus De todo modo e no mesmo sentido
das trecircs obras que mencionamos mais acima nem o Deus cristatildeo criou
Adatildeo pecador nem Juacutepiter criou o Sextus violador (de Lucreacutecia)26 eles o
foram de modo completo e perfeito desde sempre e seus acontecimentos
com todas as circunstacircncia estavam registrados no livro dos destinos ou
das verdades eternas no palaacutecio dos destinos ou na regiatildeo dos possiacuteveis
no mesmo ldquolugarrdquo em que Leibniz diz muitas vezes deveriacuteamos ldquobuscarrdquo
os mundos possiacuteveis as seacuteries que corresponderiam aos universos etc
Deus ou Juacutepiter os teriam visto como ideias ou noccedilotildees completas e sem
precedecircncia de tempo ou preferecircncia moral ao mesmo tempo e antes do
decreto da criaccedilatildeo Justamente o que permite dizer do diabo que ldquoporque
estava escrito no livro das verdades eternas que conteacutem tambeacutem os
possiacuteveis antes de todo o decreto de Deus que essa criatura [o diabo] se
dirigiria livremente para o mal se ela fosse criadardquo (Idem p 329)27
26 A partir disso perguntariacuteamos O Deus leibniziano a partir de sua ciecircncia de simples inteligecircncia natildeo vecirc desde sempre na ideia da natureza das criaturas livres Adatildeo e Sextus que elas satildeo pecadoras e violadoras (ou preguiccedilosa) Se sim natildeo fica claro de fato o que faz a base da necessidade daquele deslocamento e termos de supor uma noccedilatildeo leibniziana de acontecimento a partir de singularidades adjacentes
27 Eis o motivo porque Derrida achou necessaacuterio criticar em ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo (Escritura e diferenccedila) de 1967 as noccedilotildees leibnizianas de livro e histoacuteria criticar a noccedilatildeo de repeticcedilatildeo associada aos destinos depositados no palaacutecio dos destinos (Teodiceia sect414) ou no livro dos destinos (Teodiceia sect275) Certamente o que faria eco agrave recusa por parte de Badiou quanto agrave inclusatildeo de Mallarmeacute em A dobra E talvez aqui possamos pensar que tendo em vista que
226 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Somente assim Jupiacuteter natildeo se torna o culpado do destino de Sextus e natildeo
nos perdemos nessa regiatildeo do labirinto da liberdade Seja como for a
partir de seu conhecimento infinito e infaliacutevel Deus criou fez vir agrave
existecircncia exatamente Adatildeo pecador e de um soacute golpe o mundo em que
ele pecaraacute
Natildeo vemos outra maneira de interpretar o final da Teodiceia a natildeo
ser que queiramos e contra o que estabelece a filosofia leibniziana nos
perder no labirinto da liberdade e necessidade Daiacute que natildeo vemos como
corroborar aquela divisatildeo em seleccedilotildees28 que faz a base da hipoacutetese
interpretativa formulada no segundo momento da nota 4 da 16ordf seacuterie de
Loacutegica do sentido e que nos obrigaria aceitar aquele deslocamento e
ordem de dependecircncia Seraacute mesmo que precisamos pensar ldquouma unidade
objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo
de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo
infinitordquo base daquela necessidade de deslocamento e ordem de
dependecircncia que nos levaria para muito longe do que afirmava a nota agrave
carta a Arnauld de 13 de maio de 1686 que jaacute mencionamos em nota para
compreender os paraacutegrafos finais da Teodiceia
Deleuze natildeo menciona Derrida em a Loacutegica do sentido publicada um ano apoacutes Escritura e diferenccedila ou em A dobra a menccedilatildeo a Husserl e a inclusatildeo de Mallarmeacute podem ser indicadoras de sua oposiccedilatildeo agravequela interpretaccedilatildeo De qualquer modo tanto Derrida quanto Badiou recusam ou recusariam a opiniatildeo que permanecemos leibnizianos especialmente se queremos fazer Mallarmeacute estar de acordo conosco Se o leitor quiser entender melhor o que estamos tentando dizer aqui teraacute de cruzar nossos artigos ldquoLeibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agrave teoria tradicional da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegadardquo e ldquoDerrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeordquo e se perguntar se Leibniz natildeo tem de ser colocado naquele momento preacute Mallarmeacute e Goumldel em que se acreditava na completude sistecircmica da linguagem
28 Nos referimos agrave seguinte afirmaccedilatildeo ldquo[I momento] Distinguimos pois trecircs seleccedilotildees (seacutelections) conforme ao tema
leibniziano uma que define um mundo por convergecircncia uma outra que define neste mundo indiviacuteduos completos uma outra enfim que define elementos incompletos ou entes ambiacuteguos comuns a vaacuterios mundos e aos indiviacuteduos correspondentes [II momento] Sobre esta terceira seleccedilatildeo ou sobre Adatildeo lsquovagorsquo constituiacutedo por um pequeno nuacutemero de predicados (ser o primeiro homem etc) que devem ser completados diferentemente em diferentes mundos cf Leibniz lsquoObservaccedilotildees sobre a carta de M Arnauldrsquo [que citamos na nota 15] [] Eacute verdade que neste texto Adatildeo vago natildeo tecircm existecircncia por si mesmo vale somente com relaccedilatildeo ao nosso entendimento finito seus predicados natildeo satildeo mais que generalidades Mas ao contraacuterio no texto ceacutelebre da Teodiceia (sectsect414-416) os diferentes Sextus nos mundos diversos tecircm uma unidade objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo infinito Muito cedo Leibniz havia elaborado uma teoria dos lsquosignos ambiacuteguosrsquo em relaccedilatildeo com os pontos singulares tomando por exemplo as seccedilotildees cocircnicas [les diffeacuterents Sextus dans les mondes diverses ont une uniteacute objective tregraves speacuteciale qui repose sur 1a nature ambigueuml de la notion de singulariteacute et sur la cateacutegorie de problegraveme du point de vue drsquoun calcul infini Tregraves tocirct Leibniz avait eacutelaboreacute une theacuteorie des lsquosignes ambigusrsquo en rapport avec les points singuliers prenant pour exemple les sections coniques] cf lsquoDo meacutetodo da universalidadersquo (Opuacutesculos Couturat [p 97-144])rdquo (DELEUZE 2003 p 118 grifo nosso)
William de Siqueira Piauiacute | 227
Dito isso nos parece que o que faltou a Deleuze foi buscar
compreender melhor as noccedilotildees de ideia e representaccedilatildeo associadas agrave de
noccedilatildeo completa de um individuo singular tanto no Discurso e
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld quanto nos paraacutegrafos finais
da Teodiceia e como o uso indistinto que ele proacuteprio faz do filosofema o
comprova pouco importa os detalhes do desenvolvimento do conceito de
mocircnada humana individual Mas isso se pareceria muito com a criacutetica que
fez Derrida a Foucault e que jaacute mencionamos no iniacutecio Eacute como se Deleuze
tivesse ficado parado na parte da ficccedilatildeo em que Lorenzo Valla fala de um
querer ainda indeterminado uma singularidade preacute-individual apenas
que permitiria bifurcaccedilatildeo e soacute posterior inclusatildeo base de sua gecircnese
estaacutetica ontoloacutegica como um pecar ainda indeterminado um verbo-
atributo que permitiria falar em inclusatildeo do que ainda natildeo estava
totalmente ldquodeterminadordquo natildeo exatamente determinado o em bifurcaccedilatildeo
base daquela ldquounidade objetiva muito especialrdquo a partir de um mundo de
singularidades adjacentes um mundo regido por uma espeacutecie de siacutentese
disjuntiva que permitiria falar em ldquonatureza ambiacutegua da noccedilatildeo de
singularidaderdquo e em ldquocategoria do ponto de vista de um caacutelculo infinitordquo e
permitiria pensar indiviacuteduos possiacuteveis lsquovagosrsquo constituiacutedos ldquopor um
pequeno nuacutemero de predicados que devem ser completados
diferentemente em diferentes mundosrdquo mas tivesse se esquecido que
trata-se para Leibniz de uma ficccedilatildeo falsa que teria desconsiderado o
segundo aspecto do tipo de conhecimento que Apolo-Juacutepiter-Palas-Atena
teria ou seja soacute teria considerado algo semelhante agrave ciecircncia divina de
visatildeo (que vecirc as existecircncias o mundo ou os corpos) e esquecido a ciecircncia
da simples inteligecircncia (que vecirc todos os possiacuteveis sem precedecircncia ou
preferecircncia) neste caso justamente contra ao que advertia o proacuteprio
Leibniz a saber a ciecircncia da simples inteligecircncia eacute ldquoonde eacute preciso
procurar a fonte de todas as coisasrdquo (Idem p 416 [sect417]) tanto dos
mundos ou seacuteries universo quanto dos indiviacuteduos possiacuteveis
Segundo de qualquer modo pouco antes de morrer Leibniz afirmava
para Samuel Clarke
228 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
[sect6] Mas nem essa presciecircncia nem essa preordenaccedilatildeo atentam contra a
liberdade De fato Deus levado pela suprema razatildeo [que pode ser comparada
agrave suprema perfeiccedilatildeo do sect31 do Discurso de metafiacutesica] a fazer a escolha
entre muitas sequecircncias [ou seacuteries] de coisas ou mundos possiacuteveis daquele
em que as criaturas livres tomassem tais e tais resoluccedilotildees ainda que natildeo sem
seu concurso tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez
por todas (tout eacuteveacutenement certain et determine une fois pour toutes) [] esse
simples decreto da escolha natildeo muda mas apenas atualiza as suas naturezas
[as das criaturas livres] vistas por ele em suas ideias (LEIBNIZ 1983 [Quinta
carta] p 194)29
Tanto Arnauld quanto o teoacutelogo Clarke teriam se incomodado com o
mesmo Novamente tendo em vista que a criaccedilatildeo do mundo eacute uma
atualizaccedilatildeo das naturezas das criaturas livres que foram vistas por Deus
em suas ideias e que eacute a partir do conhecimento preacutevio presciecircncia ou
ciecircncia da simples inteligecircncia de ldquotodasrdquo as resoluccedilotildees que elas tomaratildeo
que podemos falar em pontos de vistas de um mundo que as compreende
e que seraacute atualizado junto com elas tendo em vista tudo isso natildeo haacute
motivo para falar em precedecircncia de mundo que resulte em singularidades
preacute-individuais ou que Deus cria ou vecirc primeiro o mundo onde Adatildeo eacute
pecador que levaria a crer que Deus natildeo vecirc ou cria um Adatildeo exatamente
pecador Ou seja nada aponta para uma ldquounidade objetiva muito especialrdquo
que nos obrigaria a diferenciar a noccedilatildeo de individuo possiacutevel com relaccedilatildeo
ao Adatildeo da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld ou do Discurso
da com relaccedilatildeo aos Sextus dos paraacutegrafos finais da Teodiceia Se levarmos
a seacuterio as obras que mencionamos ateacute aqui e principalmente a histoacuteria
contada ao final da Teodiceia mesmo os mundos possiacuteveis tecircm como
conteuacutedo as noccedilotildees completas ou perfeitas de pessoas possiacuteveis e natildeo haacute
por que falar em anterioridade ou preferecircncia do mundo com relaccedilatildeo ao
seu conteuacutedo
29 Mais ny cette prescience ny cette preordination ne derogent point agrave la liberteacute Car Dieu porte par la supremo raison agrave choisir plusieurs suites des choses ou mondes possibiles celuy ougrave les creatures libres prendroient telles ou telles resolutions quoyque non sans son concours a rendu par lagrave tout evenement certain et determine une fois pour toutes sans deroger por lagrave a liberte de ces creatures ce simple decret du choix ne changeant point mais actualisant seulement leur natures libres quirsquoil y voyoit dans ses ideacutees
William de Siqueira Piauiacute | 229
Agora fica claro que ateacute o final da sua vida Leibniz defendeu natildeo soacute
uma noccedilatildeo de pessoa espiritual (previamente conhecida) daiacute de mocircnada
humana individual que de modo nenhum se assemelha agrave noccedilatildeo de uma
pessoa vaga mas tambeacutem de acontecimento (previamente conhecido e
ordenado) que de modo nenhum se assemelha agrave ideia de caos ou que
lembre siacutenteses disjuntivas portanto ambas nada tecircm a ver com as boas
novas que Deleuze viu seja nas trecircs obras de Carroll seja na filosofia dos
Estoicos Na verdade se obedecemos seja agrave ordem de argumentaccedilatildeo do
Discurso seja agrave da Monadologia quem ilumina a noccedilatildeo de
acontecimento mudanccedila ou movimento eacute a de substacircncia individual ou
mocircnada e natildeo o contraacuterio aleacutem disso o que permite compreender o
conhecimento preacutevio que o deus leibniziano teria do mundo a ser
efetivado daiacute criado depende do que ele considerava ser a ciecircncia de
simples inteligecircncia e natildeo de visatildeo
Do nosso ponto de vista o que dissemos ateacute aqui jaacute nos impediria de
aceitar a natildeo ser com muitas ressalvas e natildeo vemos qualquer vantagem
nisso o deslocamento exigido por Deleuze seja na 16ordf seacuterie de Loacutegica do
sentido seja no capiacutetulo ldquoIndividuaccedilatildeo e especificaccedilatildeordquo de A dobra ou
seja inclusive por que natildeo vimos motivo para aceitar a defesa daquela
ldquounidade objetiva muito especialrdquo nos uacuteltimos paraacutegrafos da Teodiceia os
textos que mencionamos parecem fornecer prova suficiente que natildeo eacute
necessaacuterio nos encaminhar para as noccedilotildees de compossibilidade ou
incompossibilidade e regra de convergecircncia ou divergecircncia se queremos
compreender adequadamente o que Leibniz entendia por pessoa ou
indiviacuteduo possiacutevel associado a acontecimento e que seria muito diferente
do que o tinha visto Husserl Ao inveacutes de comeccedilarmos por aceitar tal
deslocamento preferimos nos perguntar Mas quais entatildeo seriam as
principais fontes do deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo de Deleuze ou
da peculiaridade daquela unidade objetiva Nossa hipoacutetese eacute que a Loacutegica
do sentido e mesmo A dobra Leibniz e o barroco estariam associados agrave
excessiva importacircncia que ele deu agrave seguinte parte do sect414 da Teodiceia
230 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
E quando as condiccedilotildees natildeo estiverem determinadas o bastante haveraacute tanto
quanto se quiser de tais mundos diferentes entre si que responderatildeo
diferentemente agrave mesma questatildeo de tantas maneiras quanto eacute possiacutevel Vocecirc
aprendeu geometria quando era ainda jovem como todos os gregos bastante
elevados Vocecirc sabe entatildeo que quando as condiccedilotildees de um assunto que se
pergunta natildeo o determinam o bastante e que haacute uma infinidade deles e ao
menos esse lugar que frequentemente eacute uma linha seraacute determinado Desse
modo vocecirc pode afigurar uma sequecircncia regrada de mundos que conteratildeo
todos ou somente o caso de que se trata e nisso variaratildeo as circunstacircncias e
as consequecircncias Mas se vocecirc coloca um caso que natildeo difere do mundo
atual exceto numa uacutenica coisa definida e na sua sequecircncia um certo
mundo determinado lhe corresponderaacute esses mundos estatildeo aqui [no
palaacutecio dos destinos] quero dizer em ideias (LEIBNIZ 2103 p 413 grifo
nosso)
Novamente os mundos enquanto ideias estatildeo naquele ambiente
regido pela ciecircncia de simples inteligecircncia Mas talvez tenhamos aqui o
uacutenico caso em que uma variedade de mundos eacute posta antes dos indiviacuteduos
possiacuteveis ou da determinaccedilatildeo completa dos acontecimentos com suas
circunstacircncias e permitiria falar em uma unidade objetiva especial
entretanto eacute preciso lembrar que trata-se de uma suposiccedilatildeo em que ldquoas
condiccedilotildees natildeo estejam determinadasrdquo exatamente com o mesmo sentido
de suposiccedilatildeo da menccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pessoa vaga da nota agrave carta de Arnauld
ndash que jaacute mencionamos tantas vezes de qualquer modo tal suposiccedilatildeo deve
ser compreendida com a ajuda de noccedilotildees tiradas de uma geometria que jaacute
era conhecida dos gregos30 e no miacutenimo natildeo justifica simplesmente o
apelo ou passagem para uma topologia de superfiacutecie ou para a defesa da
tese que em Leibniz podemos encontrar a defesa da noccedilatildeo completa ou
perfeita de uma substacircncia particular a partir da de singularidade
subjacente ou de uma unidade objetiva especial Todavia e em primeiro
lugar tambeacutem eacute preciso lembrar o que vem logo em seguida e que
grifamos no texto acima justamente o que permite a consequecircncia e
30 Vejam que aqui o proacuteprio Leibniz natildeo faz qualquer referecircncia agraves novidades que havia descoberto em matemaacutetica seja com relaccedilatildeo ao infinito agraves singularidades ou aos signos ambiacuteguos o que ele faz ou daacute a entender em outros momentos da Teodiceia ele prefere tendo em vista a eacutepoca em que viveria o personagem Teodoro se referir ao que jaacute era conhecido a partir da geometria dos gregos
William de Siqueira Piauiacute | 231
comparaccedilatildeo que viratildeo a seguir ou seja neste palaacutecio dos destinos Palas
Atena diz que mostraraacute a Teodoro ldquoonde (ougrave) ele [Sextus] se encontraraacuterdquo
ao que se seguira a advertecircncia ldquonatildeo completamente o mesmo Sextus que
vocecirc viu isto natildeo pode ser pois ele leva sempre consigo aquilo que ele
seraacute mas outros Sextus semelhantesrdquo mas tambeacutem totalmente
determinados ldquoque teratildeo o que vocecirc jaacute conhece do verdadeiro Sextusrdquo
Tudo segue no sentido de que haacute presciecircncia das ldquosequecircncias [ou seacuteries]
de coisas ou mundos possiacuteveisrdquo nos quais tais ou tais ldquocriaturas livres
tomassem tais e tais resoluccedilotildeesrdquo Claro que aquele ldquoonderdquo se refere a um
lugar que deve ser pensado no plano das ideias e aqui sim poderiacuteamos
utilizar a topologia leibniziana (Caracteriacutestica Geomeacutetrica ou Analysis
situs) ou a doutrina do espaccedilo e tempo relacionais para compreender o
que seria a noccedilatildeo individual completa e perfeita de um tal Sextus Seja
como for jaacute podemos dizer que tal ou tais Sextus nada tecircm a ver com o
Fang de ldquoO jardim de caminhos que se birfurcamrdquo31 de Borges daiacute de Silvia
e Bruno ou das Alices de Carroll ou seja apesar de estar de acordo que
Leibniz eacute um antigeneralista quando se trata das noccedilotildees completas ou
perfeitas isso natildeo traz a consequecircncia que por isso ele teria de defender a
constituiccedilatildeo de indiviacuteduos a partir de singularidades adjacentes A natildeo
necessidade da consequecircncia pode ser pensada natildeo soacute a partir do que de
fato lemos no sect414 da Teodiceia mas ainda mais explicitamente nos dois
momentos do sect9 do Discurso eacute verdade que ali Leibniz se mostra um
antigeneralista e nesse sentido um antitomista mas tambeacutem eacute verdade
que manteacutem a noccedilatildeo tomista das inteligecircncias separadas para a
compreensatildeo adequada do que ele havia defendido no sect8 da mesma obra
a saber quod ibi omne individuum sit specie infima Concordamos que
para pensar a noccedilatildeo leibniziana de espeacutecie a partir dessa antigeneralidade
eacute preciso opor a noccedilatildeo matemaacutetica de espeacutecie agrave noccedilatildeo fiacutesica de espeacutecie
mas novamente isso natildeo eacute razatildeo suficiente para recusar o que ele mesmo
afirma no sect9 e que faz o fundo de grande parte da oposiccedilatildeo dele ao
nominalismo de um Locke nos Novos ensaios E quanto ao que Leibniz
31 Cf BORGES 2005 [Ficciones] p 80
232 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
diz da existecircncia das espeacutecies no sentido matemaacutetico prefeririacuteamos
interpretaacute-la a partir do embate que ele teve com Newton quanto agrave
realidade e materialidade dos objetos matemaacuteticos que pode ser
depreendida do que eacute afirmado em Sobre o peso ndash a gravitaccedilatildeo ndash e
equiliacutebrio dos fluidos (De gravitatione et aequipondio fluidorum)32
Cremos que para o alematildeo as figuras matemaacuteticas natildeo precisam existir
para que falemos em verdade ou em movimentos em acordo com elas a
verdade de tais objetos eacute de outra ordem satildeo verdades eternas que
tambeacutem mas diferentemente das noccedilotildees de indiviacuteduos fazem o conteuacutedo
do intelecto divino Mas isso natildeo eacute o fundamental aqui
De qualquer forma parece-nos que foi justamente a excessiva
importacircncia que Deleuze conferiu a aquela parte tendo sido separada de
seu final consequecircncia e comparaccedilatildeo que conduziu Deleuze ao final do
texto ldquoSobre o meacutetodo universalrdquo33 o que seraacute mantido e de certa forma
intensificado em A dobra o que mais uma vez seraacute chamado para
fundamentar a exigecircncia de parte daquele deslocamento isto eacute o
pensamento generalista de Leibniz conduziria diretamente agrave exigecircncia do
uso geral das regras de convergecircncia e divergecircncia ndash e mesmo a um caacutelculo
do infinito ou agrave noccedilatildeo de signo ambiacuteguo ndash para as singularidades
adjacentes e o consequente delas para as noccedilotildees de compossibilidade e
incompossibilidade34
Do nosso ponto de vista talvez associada a essa importacircncia
exagerada e por que natildeo interpretaccedilatildeo equivocada outro problema talvez
ainda mais grave de exegese parece ter tido origem no lugar de parada que
Deleuze fez ou permite que faccedilamos no iniacutecio do sect47 da Quinta carta a
Clarke texto que de fato soacute pode ser interpretado a partir de parte da
32 Para um comeccedilo de conversa indicariacuteamos o nosso artigo ldquoQuerela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo agrave filosofia modernardquo
33 Cf LEIBNIZ 1903 [Opuscules et fragments ineacutedits de Leibniz] p 145
34 Vale relembrar a ordem de dependecircncia das suposiccedilotildees ldquoEacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na filosofia de Leibniz Pois (III) a inerecircncia de predicados na mocircnada expressiva supotildee primeiro (II) a compossibilidade do mundo expresso e esta por sua vez supotildee (I) a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdaderdquo (DELEUZE 2003 p 115)
William de Siqueira Piauiacute | 233
topologia leibniziana e da doutrina do espaccedilo e tempo relacionais quer
dizer ele teria parado justamente no modo como os homens
semelhantemente a Newton pensam a noccedilatildeo de movimento (daiacute mudanccedila
referente aos corpos por consequecircncia acontecimento) situaccedilatildeo e
possiacutevel teria parado e pensado a noccedilatildeo de indiviacuteduo apenas a partir de
uma topologia posicional que desconsidera justamente a necessidade de os
acidentes natildeo passearem fora das mocircnadas Neste caso Deleuze teria
esquecido de separar e mesmo teria invertido a importacircncia as duas
partes do texto ou seja a que comeccedila com ldquoEis como os homens chegam
a formar a noccedilatildeo de espaccedilordquo e a que comeccedila com ldquoE eacute bom considerar aqui
a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa
o lugarrdquo que continua com ldquodois sujeitos diferentesrdquo ldquonatildeo poderiam ter
precisamenterdquo de modo completamente determinado ldquoa mesma situaccedilatildeo
individual natildeo podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em
dois sujeitos nem passar de sujeito para sujeitordquo Onde pois colocar o
Fang de Borges se natildeo queremos ir contra a doutrina leibniziana do espaccedilo
e tempo relacionais ou fazer esquecer a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo
de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugar ou que um mesmo acidente
individual natildeo pode encontrar-se em dois sujeitos Trata-se de retomada
explicita do sect7 da Monadologia que deve ser compreendida a partir de
uma noccedilatildeo de mocircnada fechada e natildeo vemos outro jeito do princiacutepio do
predicado inerente ao sujeito ou de predicados acontecimento (sentido
claacutessico) dados de uma vez por todas e natildeo atributos verbais que se
associem a uma espeacutecie de siacutentese disjuntiva ou exijam uma unidade
objetiva muito especial
Uma interpretaccedilatildeo atenta agrave inversatildeo necessaacuteria teria permitido a
Deleuze compreender o motivo da afirmaccedilatildeo de Leibniz no sect61 da
Monadologia segundo a qual os corpos les composeacutes apenas simbolizam
(symbolisent) no sentido que apenas ldquoconcordam comrdquo e que remeteria
ao convencionalismo no sentido que sozinhos careceriam de fundamento
defendido no sect1 do De interpretatione de Aristoacuteteles os fenocircmenos bem
234 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
fundados apenas simbolizam os simples35 e natildeo o contraacuterio o que mais
uma vez parece colocar Deleuze em dificuldades se se pretende afirmar a
precedecircncia do mundo ou dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees completas de
indiviacuteduos ou agrave necessidade de recorrer agraves singularidades adjacentes
E aqui do nosso ponto de vista chegamos ao ponto central do
deslocamento exigido por Deleuze desde a Loacutegica do sentido ele toma
seu pleno sentido somente se invertermos o plano argumentativo da
Monadologia ou seja se recusamos o caminho sinteacutetico do simples para
o composto dito de outro modo se pensarmos o conceito de mocircnada a
partir de uma matemaacutetica uma topologia que utilizariacuteamos para dar
conta das mudanccedilas que ocorreriam no plano dos corpos mas sem
individuaccedilatildeo preacutevia isto eacute a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos corpos viria em
primeiro lugar e comporia a seacuterie universo mas isso eacute inverter a ordem
de importacircncia entre a metafiacutesica e dinacircmica ndash ir contra o que diz o sect18
do Discurso ndash e eacute preciso estar muito atento para natildeo defender sem o
saber uma distinccedilatildeo que funciona muito bem no plano dos corpos mas
que eacute solo nuacutemero com relaccedilatildeo ao que de fato resolve o problema da
mudanccedila dito de outro modo tal inversatildeo desconsideraria justamente o
fundamento da ldquorelaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo
A proacutepria ordem dos capiacutetulos de A dobra evidenciaria tal inversatildeo as
consideraccedilotildees sobre as redobras na mateacuteria vecircm antes das sobre as dobras
nas almas e seu capiacutetulo 5 estaacute repleto de consideraccedilotildees que tomam o
corpo ou o mundo antes daquilo que faz o fundamento ldquoda relaccedilatildeo de
situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo
35 ldquoEt les composeacutes symbolisent en cela avec le simplesrdquo (LEIBNIZ 2004 p 235) Mais natildeo eacute o exato contraacuterio que defendiam os estoicos nesse sentido invertendo o valor da ldquoexpressatildeordquo do expresso do lekton Seria estranho que algueacutem que defendeu muitas vezes tanto o fato que os estoicos foram os criadores da filosofia da linguagem quanto que sua diferenciaccedilatildeo e dependecircncia entre lekton e corpo eram baacutesicas para a loacutegica do sentido e do acontecimento defendesse o contraacuterio mas aqui mantemos a suposiccedilatildeo de uma mudanccedila de ponto de vista que parece ter ocorrido por volta da elaboraccedilatildeo de Mil platocircs e que ficaria mais evidente nos capiacutetulos de tiacutetulo ldquoPostulados da linguiacutesticardquo e ldquoSobre alguns regimes de signosrdquo ou seja a partir de 1980 o conceito de palavra de ordem (le mot drsquoordre) o registro do lekton passa a assumir o mesmo valor causal que os corpos mais forccedila ainda para o plano da expressatildeo Marca inconteste da ldquogenialidaderdquo do francecircs teriacuteamos permanecido ainda mais leibnizianos ndash um Leibniz deleuzeano natildeo nos esqueccedilamos ndash a partir da deacutecada de 80 portanto talvez o principal motivo que levou Deleuze a voltar aos textos de Leibniz e intensificar os pontos principais da 16ordf seacuterie de a Loacutegica do sentido
William de Siqueira Piauiacute | 235
Do nosso ponto de vista tal inversatildeo que consideramos ser o
fundamento real da exigecircncia daquele deslocamento eacute o problema mais
grave da interpretaccedilatildeo que Deleuze faz da filosofia leibniziana ela teria
desconsiderado a resposta que Leibniz teria dado a um outro problema
levantado por Newton em De gravitatione et aequipondio fluidorum
mas que se associava agrave caracterizaccedilatildeo cartesiana do movimento e que fica
explicito no uso da expressatildeo affectiones locorum ou the properties of
places por parte do inglecircs Problema que para Leibniz tem de ser
resolvido para que possamos falar em mudanccedila ou movimento real Isso
nos permite formular um questionamento para a interpretaccedilatildeo geral
empreendida por Deleuze seja em A dobra seja em Loacutegica do sentido
Como diferenciar a noccedilatildeo newtoniana de individuaccedilatildeo (solo numero) da
leibniziana se nos mantemos apenas nas affectiones locorum36 Vale
lembrar que a filosofia natural de Newton e sua matemaacutetica tambeacutem
permitem singularidades adjacentes Com as agravantes Como o
equacionou Leibniz natildeo eacute justamente por seu fechamento que o conceito
de mocircnada resolve o problema cartesiano do movimento Dito de outro
modo Como o conceito de mocircnada baseado em singularidades adjacentes
tatildeo semelhante ao de vizinhanccedila imediata resolveria o problema da causa
proacutexima do movimento Assim cremos que a leitura de Deleuze aproxima
perigosamente Leibniz de Newton sem ter respondido suficientemente agrave
pergunta geral Por que a preferecircncia pelo alematildeo se em termos de
descoberta e grande parte do tipo de uso que ambos fizeram do caacutelculo
diferencial e integral de uma geometria de posiccedilatildeo e mesmo das regras de
convergecircncia e divergecircncia nada impediria de ver tambeacutem na filosofia do
inglecircs uma topologia de superfiacutecies37 E terminariacuteamos com as
provocaccedilotildees oacutebvias Permanecemos leibnizianos ou newtonianos
36 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect47 da uacuteltima carta a Clarkerdquo ou ldquoLeibniz y el papel de la imaginacioacuten en la geacutenesis de la nocioacuten de espacio newtonianordquo
37 Referimo-nos ao que eacute defendido entre outros no excelente livro De Newton y los newtonianos entre Descartes e Berkeley de Laura Benitez Grobet e Joseacute A Robles Garciacutea cf Bibliografia De qualquer modo o que estamos tentando dizer aqui agravaria ainda mais tais questionamentos desde que a hipoacutetese defendida por Benitez Grobet e Robles Garciacutea eacute a de que Newton precisava de um outro modelo de predicaccedilatildeo que natildeo a aristoteacutelica e por que natildeo da recusa do princiacutepio in-esse para levar a cabo sua filosofia natural e nesse sentido vale lembrar as muitas vezes em que Leibniz pergunta a Clarke que papel em termos de predicaccedilatildeo aristoteacutelica em termos de sujeito predicado
236 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Conclusatildeo
Do nosso ponto de vista em primeiro lugar a tese ceacutelebre de Leibniz
segundo a qual cada mocircnada individual exprime o mundo pode e deve ser
compreendida a partir do princiacutepio de inerecircncia do predicado no sujeito
obviamente um grande desafio para o inteacuterprete em segundo lugar natildeo
eacute verdade que para Leibniz Deus criou o mundo antes das ou de
preferecircncia agraves mocircnadas ao menos natildeo no sentido que haveria de fato
inclusatildeo posterior de algum acidente (enquanto predicado um adjetivo)
natildeo jaacute preacute-vista nas noccedilotildees completas de indiviacuteduos ou pessoas ou mesmo
na seacuterie possiacutevel de um mundo em terceiro lugar se aquela precedecircncia
ou preferecircncia for pensada em termos de compossibilidade e
incompossibilidade ndash que oferecesse alguma alternativa para o princiacutepio
de contradiccedilatildeo ndash eacute preciso lembrar que o entendimento divino eacute fora da
ordem do tempo e mais uma vez natildeo podemos falar em precedecircncia ou
preferecircncia de partes de suas operaccedilotildees e por fim natildeo vemos como as
regras de convergecircncia e divergecircncia nos ajudariam ou seria necessaacuterio
recorrer a elas para corroborar a interpretaccedilatildeo de Deleuze se aquela
precedecircncia ou preferecircncia natildeo se viu confirmada Assim natildeo vemos
motivos para aceitar a necessidade do deslocamento que Deleuze pretende
impor desde a Loacutegica do sentido Vale lembrar que nossa oposiccedilatildeo nada
tem a ver com o uso do caacutelculo diferencial e integral e as regras de
convergecircncia e divergecircncia para pensar o conceito de mocircnada ldquofechadardquo
e mesmo de uma topologia de superfiacutecie jaacute mostramos em outro lugar38 o
como a matemaacutetica criada por Leibniz pode ajudar a pensar um conceito
de mocircnada humana individual fechada e de seacuterie universo fechado em
e acidente desempenharia o tempo e espaccedilo absolutos de Newton Sendo que o sect47 da quinta resposta que deu a Clarke deve ser considerado justamente natildeo soacute como uma tentativa de se manter fiel aacute metafiacutesica que fundamenta a loacutegica aristoteacutelica e o inicio da Monadologia mas tambeacutem sem perder de vista seja os princiacutepios de sua topologia (Caracteriacutestica Geometrica ou Analysis situs) seja de sua doutrina do espaccedilo e tempo relacionais
38 Cf nossos artigos ldquoMatemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e Integral e o processo psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeordquo e ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo
William de Siqueira Piauiacute | 237
pleno acordo com sua metafiacutesica e sua dinacircmica em uma palavra em
pleno acordo com a histoacuteria contada ao final da Teodiceia
Por fim se na ldquoobra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduordquo
ldquoque descobre o sentido e jaacute pressente o natildeo-senso remontando agrave
superfiacutecie a partir de um mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que
se envolve nela e lhe impotildee a dura lei das misturasrdquo ela nada tem a ver
com o conceito leibniziano de mocircnada humana individual ou substacircncia
particular e se novamente na ldquoobra de Carrollrdquo ldquoSilvia e Bruno seriam
antes como as pessoas lsquovagasrsquo que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila
ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo comum a vaacuterios mundos mundo dos
homens e mundo das fadasrdquo a proacutepria referecircncia agrave noccedilatildeo lsquopessoa vagarsquo
deveria ser prova suficiente que natildeo podem ser melhor compreendidas a
partir das noccedilotildees leibnizianas de mocircnada humana individual ou
substacircncia particular Mas natildeo eacute justamente porque queremos estar com
Carroll ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de sujeito ou contestaccedilatildeo da
identidade pessoal ndash e Mallarmeacute ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de
livro ou texto ndash que natildeo somos leibnizianos e nem mesmo newtonianos
E aqui deixamos algo mais que a simples discordacircncia entre os ldquofiloacutesofosrdquo
Badiou e Deleuze
Referecircncias39
BADIOU Alain A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX Trad Antonio Teixeira e
Gilson Iannini Belo Horizonte MG Autecircntica 2015
BENITEZ GROBET Laura e GARCIacuteA Joseacute A Robles De Newton y loacutes newtonianos entre
Descartes e Berkeley Argentina Universidad Nacional de Quilmes 2006
BORGES Jorge Luis O jardim de caminhos que se bifurcam In _____ Ficccedilotildees Trad
Carlos Nejar Satildeo Paulo Ed Globo 1989
39 Tendo em vista que se tratava inicialmente de um minicurso cremos ser justificativa suficiente para oferecermos uma Bibliografia ao inveacutes de apenas referecircncias bibliograacuteficas
238 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ El jardiacuten de senderos que se bifurcan In _____ Ficiones Buenos Aires Emeceacute
Editores 2005
CARROLL Lewis (Charles Lutwidge Dodgson) As aventuras de Alice no paiacutes das
maravilhas e Atraveacutes do espelho e o que Alice encontrou laacute Trad Sebastiatildeo
Uchoa Leite Satildeo Paulo Ed Summus 1980
_____ Algumas aventuras de Siacutelvia e Bruno Trad Seacutergio Medeiros Satildeo Paulo
Iluminuras 1997
_____ Complete Works Nova York Vintage Books 1976
_____ Diaries Londres Cassell 1953
_____ The selected letters Londres Macmillan 1989
DELEUZE Gilles A dobra Leibniz e o barroco Trad Luiz B L Orlandi Campinas SP
Papirus 1991
_____ Loacutegica do sentido Trad Luiz Roberto Salinas Fortes Satildeo Paulo Ed Perspectiva
2003
_____ Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro
Graal 2006
_____ Exasperacioacuten de la filosofiacutea el Leibniz de Deleuze Trad equipe editorial Cactus
Buenos Aires Ed Cactus 2006
_____ Conversaccedilotildees Trad Peter Paacutel Pelbart Rio de Janeiro Ed 34 2013
DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia Trad Luiz
B L Orlandi Rio de Janeiro Ed 34 2011
DERRIDA Jacques ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo In _____ A escritura e a diferenccedila Trad
Maria Beatriz Marques Nizza da Silva et al Satildeo Paulo Ed Perspectiva 2014
HUISMAN Denis Dicionaacuterio de filoacutesofos Trad Claudia Berlinder et al Satildeo Paulo Martins
Fontes 2001
William de Siqueira Piauiacute | 239
HUSSERL Edmund Meditaccedilotildees cartesiana introduccedilatildeo agrave fenomenologia Trad Frank de
Oliveira Satildeo Paulo Ed Madras 2001
LEIBNIZ G W Opuscule et fragments ineacutedits de Leibniz Organizado por Louis
Couturat Paris Alcan 1903
_____ Correspondance Leibniz-Clarke (Org Andreacute Robinet) Paris Presses
Universitaires de France (PUF) 1957
_____ The Leibniz-Clarke correspondence with extracts from Newtonrsquos ldquoPrincipiardquo and
ldquoOpticsrdquo Org H G Alexander Manchester Manchester University Press 1956
_____ Die philosophischen Schriften (GP IV Letter to Molanus (p 297-303) On God
and Soul (1679) e GP V Nouveaux essais Hildesheim Olms 1960
_____ Mathematische Schriften (GM) Hildesheim Olms 1962
_____ Anaacutelisis infinitesimal Trad Teresa Martin Santos Madri Tecnos 1987
_____ Sobre a anaacutelise da situaccedilatildeo Trad Homero Santiago Cadernos de filosofiacutea alematilde
n 5 p 64-75 1999
_____ La caracteacuteristica geacuteomeacutetrique Trad Marc Parmentier Paris J Vrin 1995
_____ Discurso de metafiacutesica Monadologia Correspondecircncia com Clarke Trad
Marilena de Souza Chauiacute e Carlos Lopes de Mattos Satildeo Paulo Ed Abril Cultural
1983
_____ Discurso de metafiacutesica e outros textos Trad Marilena Chauiacute e Alexandre da Cruz
Bonilha Satildeo Paulo Ed Martins Fontes 2004
_____ Discours de metaphysique suivi de Monadologia et autres textes Estabelecido
apresentado e com notas de Michel Fichant Paris Gallimard 2004
_____ La monadologiacutea Trad Virginia Naughton Buenos Aires Quadrata 2005
_____ Novos ensaios Trad Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Abril Cultural 1984
_____ Nouveaux essais Paris Flamarion 1990
240 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ Correspondencia con Arnauld Trad Vicente P Quintero Buenos Aires Ed
Losada 2004
_____ Correspondance de Leibniz et drsquoArnauld In _____ Œuvres philosophiques de
Leibniz aos cuidados de Paul Janet) Paris Alcan 1900
_____ Observaccedilotildees quanto ao livro sobre a origem do mal publicado haacute pouco na
Inglaterra (sectsect 18-22) [Leibniz e a metafiacutesica das diferenccedilas qualitativas dos
possiacuteveis] Theoria revista eletrocircnica de filosofia v 4 n 11 p 151-60 2012
_____ Ensaios de Teodiceia Trad William de Siqueira Piauiacute e Juliana Cecci Silva Satildeo
Paulo Ed Estaccedilatildeo Liberdade 2013
_____ Essais de theacuteodiceacutee Paris Flamarion 1969
_____ Escritos Filosoacuteficos Org Ezequiel Olaso Buenos Aires Ed Charcas 1982
PIAUIacute William de Siqueira Leibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da
criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartes Prometeus ano 10 n 22 p 49-64 2017
_____ Derrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeo
Prometeus ano 10 n 24 p 178-93 2017
_____ Leibniz y el papel de la imaginacioacuten em la geacutenesis de la nocioacuten de espacio
newtoniano Imaginacioacuten y conocimiento de Descartes a Freud NASR Zuraya
Monroy e RODRIacuteGUEZ-SALAZAR Luis Mauriacutecio Meacutexico Ed Corinter e Ed Gedisa
p 33-49 2016
_____ Leibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologia Prometeus ano 9 n 19 p 100-26
2016
_____ Querela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo aacute filosofia
moderna Kalagatos v 11 n 21 p 523-49 2014
_____ Leibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect 47 da uacuteltima carta a Clarke
Prometeus ano 6 n 11 p 9-34 2013
_____ Noccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibniz Cadernos de
histoacuteria e filosofia da ciecircncia v 21 n 1 p 257-87 2011
William de Siqueira Piauiacute | 241
_____ Matemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e integral e o processo
psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeo Theoria ndash Revista eletrocircnica de Filosofia Pouso
Alegre v 5 p 1-16 2010
_____ Leibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeo Aacutegora filosoacutefica
Pernambuco Universidade Catoacutelica ano 6 n 1 p 117-36 2006
PIAUIacute William de Siqueira e CECCI SILVA Juliana Leibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agraves
teorias tradicionais da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegada O
Mutum revista de literatura e pensamento (Dossiecirc Literatura escrever o pensar)
Org por Piero Eyben Brasiacutelia UnB n 1 v 1 p 183-203 2013
SARTRE Jean-Paul A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica
Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Cadernos
espinosanos n 22 2010 p 183-228
_____ A transcendecircncia do ego esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica Trad Joatildeo
Batista Kreuch Petroacutepolis RJ Ed Vozes 2013
Sobre os Organizadores
Natural de Brasiacutelia Marcus Joseacute Alves de
Souza eacute Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal da Paraiacuteba
Professor do Instituto de Ciecircncias
Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes e do
Mestrado em Filosofia da Universidade
Federal de Alagoas Liacuteder do Grupo de
Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo
Potiguar de Mossoroacute Maxwell Morais de
Lima Filho eacute Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal do Cearaacute e
Professor do Instituto de Ciecircncias
Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes da
Universidade Federal de Alagoas desde
2011
A Editora Fi eacute especializada na editoraccedilatildeo publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de pesquisa
acadecircmicacientiacutefica das humanidades sob acesso aberto produzida em parceria das mais diversas instituiccedilotildees de ensino superior no Brasil Conheccedila
nosso cataacutelogo e siga as paacuteginas oficiais nas principais redes sociais para acompanhar novos lanccedilamentos e eventos
wwweditorafiorg
contatoeditorafiorg
Escritos de Filosofia III
Linguagem e Cogniccedilatildeo
Organizadores
Marcus Joseacute Alves de Souza
Maxwell Morais de Lima Filho
Diagramaccedilatildeo Marcelo A S Alves
Capa Carole Kuumlmmecke - httpswwwbehancenetCaroleKummecke
Arte de Capa Pedro Lucena
Revisatildeo ortograacutefica Marcus Viniacutecius Matias
Revisatildeo das regras da ABNT Iuri Rocio Franco Rizzi
O padratildeo ortograacutefico e o sistema de citaccedilotildees e referecircncias bibliograacuteficas satildeo prerrogativas de
cada autor Da mesma forma o conteuacutedo de cada capiacutetulo eacute de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor
Todos os livros publicados pela Editora Fi
estatildeo sob os direitos da Creative Commons 40
httpscreativecommonsorglicensesby40deedpt_BR
httpwwwabecbrasilorgbr
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs)
Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo [recurso eletrocircnico] Marcus Joseacute Alves de Souza Maxwell Morais de Lima
Filho (Orgs) -- Porto Alegre RS Editora Fi 2019
242 p
ISBN - 978-85-5696-748-0
Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg
1 Filosofia 2 Cogniccedilatildeo 3 Linguagem 4 Loacutegica 5 Mente I Tiacutetulo
CDD 100
Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico
1 Filosofia 100
Para Bia Jorginho
Tissi Camu e o Ecossistecircmico Rudaacute
Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Marcus Joseacute Alves de Souza
1 14
Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica
Manfredo Arauacutejo de Oliveira
2 40
Encheiriacutedion Capiacutetulo I Traduccedilotildees e Comentaacuterios
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio
3 53
A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva da Filosofia Analiacutetica da Mente
Taacuterik de Athayde Prata
4 69
A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico A Criacutetica de John Searle agraves Principais
Correntes da Filosofia da Mente
Maxwell Morais de Lima Filho
5 98
Da Natureza Humana As Perspectivas Epistemoloacutegicas de Piaget Chomsky e
Foucault
Argus Romero Abreu de Morais
6 116
Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche A Leitura de Guumlnter Abel
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa
7 133
Habermas e o Problema do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira
8 146
Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes para se Pensar a Natureza de Sistemas
Formais Uma Abordagem Wittgensteiniana
Marcos Silva
9 158
Revisitando o Argumento da Linguagem Privada
Marcus Joseacute Alves de Souza
10 172
O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico
Ricardo S Rabenschlag
11 184
A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo
Sagid Salles
12 201
O Leibniz de Deleuze Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido
William de Siqueira Piauiacute
Sobre os Organizadores 242
Apresentaccedilatildeo
Marcus Joseacute Alves de Souza
O empreendimento filosoacutefico eacute uma atividade coletiva especialmente
por seu caraacuteter corretivo estabelecido em debate puacuteblico Eacute claro que haacute
momentos de reflexatildeo solitaacuteria mas mesmo estes satildeo momentos de
organizaccedilatildeo discursiva que visam agrave correccedilatildeo em debate e o debate com
os autores eacute fundamental para o desenvolvimento do empreendimento
filosoacutefico Ao apresentar este novo volume da seacuterie Escritos de Filosofia
Linguagem e Cogniccedilatildeo gostariacuteamos de enfatizar estes dois aspectos
sugeridos no iniacutecio o aspecto coletivo e o corretivo deste trabalho Na
dimensatildeo coletiva este eacute mais um fruto da atividade do Grupo de Pesquisa
Linguagem e Cogniccedilatildeo da Universidade Federal de Alagoas Ele resulta da
continuidade de um trabalho que desde 2014 reuacutene profissionais de
Filosofia de variadas instituiccedilotildees para apresentarem e debaterem suas
pesquisas Num Estado com pouca tradiccedilatildeo em realizaccedilatildeo deste tipo de
atividade a reuniatildeo coletiva para divulgaccedilatildeo de pesquisas eacute uma conquista
que deve ser ressaltada pois fortaleceu o Grupo de Pesquisa e originou
uma linha do receacutem-criado Mestrado Acadecircmico de Filosofia da UFAL
(2018) Mas filoacutesofos se reuacutenem especialmente para apresentar ideias e
debatecirc-las numa perspectiva de autocorreccedilatildeo entre pares Isso vem se
dando nas atividades do Grupo inclusive nos Encontros seis ateacute agora
mas sobretudo atraveacutes desta seacuterie de publicaccedilotildees Aqui o aspecto
corretivo ganha relevo A perspectiva eacute incrementar ainda mais uma
tradiccedilatildeo de publicaccedilotildees que mantenha o debate de ideias vivo
contribuindo para o avanccedilo das discussotildees filosoacuteficas daqueles que
tomarem contato com cada publicaccedilatildeo da seacuterie Escritos de Filosofia
Linguagem e Cogniccedilatildeo Possibilitando assim a acareaccedilatildeo criacutetica dos vaacuterios
12 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
escritos e animando o avanccedilo do conhecimento filosoacutefico num acircmbito da
Filosofia que reuacutene temas relacionados agraves aacutereas de Loacutegica da Filosofia da
Linguagem da Filosofia da Mente e da Epistemologia
Os textos aqui apresentados satildeo resultado do IV Encontro Linguagem
e Cogniccedilatildeo realizado em novembro de 2017 que reuniu mais uma vez
profissionais de vaacuterias instituiccedilotildees (UFAL UFAM UFPI UFS UFC UFPE
UFSJ PUC-Rio UnB dentre outras) no intuito de avanccedilarmos a pesquisa
filosoacutefica nos contextos alagoano e nordestino Como nas outras ediccedilotildees
as temaacuteticas de investigaccedilatildeo estatildeo relacionadas agrave loacutegica agrave linguagem agrave
consciecircncia e ao conhecimento
Eacute importante afirmarmos que para aleacutem de uma possiacutevel
organicidade temaacutetica dos textos este livro eacute resultado tambeacutem de
confluecircncias de amizades construiacutedas pelo interesse filosoacutefico Nisso
nossos Encontros tecircm se mostrado frutiacuteferos ao mostrar a forccedila da
tradiccedilatildeo de associar a ldquoamizade ao saberrdquo
Esta eacute a terceira coletacircnea da seacuterie Escritos de Filosofia Linguagem e
Cogniccedilatildeo mostrando continuidade e esforccedilo em darmos publicidade ao
trabalho de pesquisa realizado Reforccedilando e aprofundando laccedilos teoacutericos
de investigaccedilatildeo este volume eacute composto de 12 capiacutetulos escritos por 14
pesquisadores de 8 instituiccedilotildees (UFAM UFPI UFC UECE UFPE UFAL
UFS e UFSJ) O leitor teraacute oportunidade de refletir e avaliar criticamente
sobre uma diversidade de temas filosoacuteficos Neste ponto eacute interessante
destacar que os temas abarcados vatildeo aleacutem daquilo que ficou conhecido
como ldquoFilosofia Analiacuteticardquo haja vista a salutar heterogeneidade de autores
e abordagens jaacute presente nos outros volumes
O leitor poderaacute pensar a trajetoacuteria histoacuterico-filosoacutefica da conhecida
ldquoreviravolta linguiacutesticardquo e avaliar se efetivamente saiacutemos de um marco
reflexivo da subjetividade para o da linguagem em Filosofia Ler um
trabalho cuidadoso de traduccedilatildeo comentada de um capiacutetulo do Encheiriacutedion
de Epicteto Tomar contato com uma reflexatildeo sobre o conceito de
consciecircncia em Sartre numa perspectiva analiacutetica Compreender a criacutetica
de John Searle agraves principais correntes da Filosofia da Mente Revisitar o
Marcus Joseacute | 13
tema da natureza humana a partir de trecircs autores natildeo-analiacuteticos Piaget
Foucault e Chomsky Rediscutir os temas da consciecircncia da linguagem e
da natureza em Nietzsche a partir da avaliaccedilatildeo de Guumlnter Abel
Aprofundar no conhecimento da temaacutetica da objetividade dentro do
pensamento de Habermas Refletir sobre o conceito de jogo em sistemas
loacutegicos formais Retomar a discussatildeo do argumento da linguagem privada
de Wittgenstein Avaliar aspectos filosoacuteficos do pensamento dos ldquonovos
ateusrdquo Aproximar-se da problemaacutetica da vagueza numa avaliaccedilatildeo criacutetica
da teoria trivalente da vagueza e as dificuldades loacutegico-filosoacuteficas do
estabelecimento da precisatildeo conceitual Analisar de modo criacutetico a
interpretaccedilatildeo que Deleuze faz de Leibniz Enfim o leitor teraacute oportunidade
de pensar temas autores e abordagens variadas neste volume Esperamos
que seja de proveito para conhecimento inicial ou mesmo de
aprofundamento para o leitor experiente em Filosofia e que todos tenham
uma leitura filosoficamente estimulante
Agradecemos aos participantes que gentilmente forneceram os textos
para a composiccedilatildeo deste trabalho coletivo Agradecemos agrave agecircncia de
fomento agrave pesquisa de Alagoas FAPEAL (Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa
do Estado de Alagoas) pelo apoio financeiro ao evento que deu origem a
este volume Ao apoio do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e
Artes (ICHCA) e do Curso de Filosofia da UFAL A todos que contribuem
com as atividades o Grupo de Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo da UFAL Agrave
Editora Fi pela parceria nesta publicaccedilatildeo
Maceioacute setembro de 2019
1
Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta
de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica
Manfredo Arauacutejo de Oliveira 1
A filosofia se encontra hoje diante de um desafio que tem a ver com
a proacutepria forma de sua configuraccedilatildeo enquanto teoria ou seja o desafio da
articulaccedilatildeo de um novo paradigma teoacuterico O ponto de partida desta
situaccedilatildeo foi certamente a reviravolta linguiacutestica ou seja a substituiccedilatildeo no
pensamento de Frege da anaacutelise de sensaccedilotildees representaccedilotildees e juiacutezos pela
anaacutelise das expressotildees linguiacutesticas Quine (1981 p 23) ao fazer um
balanccedilo dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do seacuteculo
XX afirmou que o evento decisivo e irreversiacutevel da filosofia depois de
Hume foi a reviravolta linguiacutestica Que significa isto para a filosofia Hoje
haacute pensadores que defendem que ela apenas significou uma radicalizaccedilatildeo
da reviravolta transcendental da filosofia moderna Faremos uma breve
apresentaccedilatildeo da proposta da fenomenologia transcendental no
pensamento de Husserl que levantou a pretensatildeo de articular o paradigma
transcendental da forma mais rigorosa possiacutevel para poder depois mostrar
que a reviravolta linguiacutestica natildeo necessariamente se deve entender como
uma radicalizaccedilatildeo deste paradigma mas articula antes um quadro teoacuterico
propriamente poacutes-transcendental
1 Graduado pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) Doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilian de Munique (LMU) e Professor Emeacuterito da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 15
A Filosofia Transcendental Preacute-Linguiacutestica O Mundo se nos Daacute em
Intuiccedilotildees Puras A Fenomenologia Husserliana
Para Husserl a filosofia exige uma mudanccedila radical de postura o que
revela o caraacuteter ingecircnuo da atitude da postura natural Essa transformaccedilatildeo
radical de postura nos vai mostrar que todos os entes soacute nos podem ser
dados na esfera da subjetividade transcendental atraveacutes de muacuteltiplos
modos de manifestaccedilatildeo que satildeo em princiacutepio variaacuteveis e ilimitados Neste
sentido fenomenologia natildeo eacute simples descriccedilatildeo do que aparece sem que
possa haver uma decisatildeo sobre o que o ente eacute em sua essecircncia e seu ser
mas ela eacute precisamente o esclarecimento dos entes em sua essecircncia em
seu sentido e em seu ser Nesta perspectiva se deve dizer que a questatildeo
central da fenomenologia natildeo eacute o ser mas o sentido embora natildeo seja claro
como Husserl interpreta o sentido De qualquer modo ele sempre tematiza
o sentido e natildeo o ser mesmo (PUNTEL 2011 p 305)
Isto se faz atraveacutes do retorno agraves vivecircncias intencionais nas quais os
sentidos vecircm agrave doaccedilatildeo Dessa forma o tema especiacutefico da fenomenologia
eacute a correlatividade entre as ldquoformas de doaccedilatildeordquo dos objetos e os momentos
intencionais das vivecircncias (dos atos intencionais) em suas inuacutemeras
modificaccedilotildees (TUGENDHAT 1967 p 172)2 Numa palavra fenomenologia
eacute anaacutelise da correlaccedilatildeo entre objeto intencional e ato intencional ou seja
trata-se de determinar a partir da intenccedilatildeo o sentido do ldquointendidordquo
Portanto o que temos eacute sempre um objeto num modo determinado de nos
dar-se natildeo haacute objeto sem a mediaccedilatildeo de seu modo de dar-se Fenocircmeno
eacute entatildeo aqui um correlato intencional da consciecircncia (FINK 1976 p 83)
e a subjetividade eacute o princiacutepio da originariedade (FINK 1976 p 91)
Ser eacute entatildeo ser para a consciecircncia esta eacute a tese baacutesica da filosofia
transcendental e natildeo se pode entender o projeto husserliano de filosofia
sem vinculaacute-lo agrave tradiccedilatildeo do pensamento transcendental de Kant e
sobretudo de Fichte3 no giro reflexivo da filosofia na expressatildeo de
2 A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl cf PORTA (2003 p 85-106)
3 Essa eacute a tese baacutesica de Siemek Cf SIEMEK (2001 p 190 e ss) Cf OLIVEIRA (1973 p 139-220)
16 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Tugendhat (1976 p 16 e ss) aceita e radicalizada por Husserl Isto significa
dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos enquanto
idecircntico atraveacutes das diferentes formas de consciecircncia se formam atraveacutes
de nossas accedilotildees sinteacuteticas no como de sua doaccedilatildeo isto eacute nos diferentes
tipos de objetualidade (HABERMAS 1984 p 37) Para a postura
fenomenoloacutegica todos os entes abstratos ou concretos reais ou ideais tecircm
seus modos de doaccedilatildeo (HUSSERL 1963 p 169) Numa palavra tudo se
revela na consciecircncia como objeto constituiacutedo por atos constituintes e
portanto a subjetividade emerge como a fonte uacuteltima de toda doaccedilatildeo de
sentido
Husserl rejeita este meacutetodo regressivo natildeo no sentido da pergunta
pelas condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento objetivo mas no sentido
de que esta pergunta no pensamento de Kant natildeo realiza um retorno agrave
intuiccedilatildeo e neste sentido eacute em uacuteltima anaacutelise uma construccedilatildeo atraveacutes de
deduccedilatildeo Com isto todo o procedimento se radica em suposiccedilotildees natildeo
intuiacutedas o que tem como consequecircncia que desta forma natildeo eacute possiacutevel
atingir a autodoaccedilatildeo da subjetividade em seu ser em si ela eacute apenas
ldquoconstruiacutedardquo num pensamento vazio
O grande ausente no pensamento de Kant eacute precisamente a intuiccedilatildeo
que Husserl denomina o ldquoPrinciacutepio dos Princiacutepiosrdquo entendida como a
fonte originaacuteria a evidecircncia fundante de todo conhecimento (HUSSERL
1950 p 25 e STROumlKER 1987 p 1-34) Desta forma a tese central da
fenomenologia eacute que soacute o retorno aos atos intencionais pode produzir
aquela autodoaccedilatildeo em evidecircncia intuitiva que constitui o cerne da
fenomenologia Assim as coisas mesmas natildeo satildeo objetos no sentido de
uma ldquoposiccedilatildeo transcendente de serrdquo mas o que eacute intuiacutedo na satisfaccedilatildeo de
atos intencionais (GADAMER 1987 p 118)
Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a respeito
da forma suprema do dar-se da realidade a noacutes pode iniciar-se com a
criacutetica articulada por E Tugendhat (1976 p 85-87) conhecido eacute para
Husserl precisamente o que nos eacute imediatamente dado Para Tugendhat
justamente nisto se mostra o caraacuteter unilateral da concepccedilatildeo husserliana
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 17
de conhecimento a funccedilatildeo do conceito para o que eacute sensivelmente preacute-
dado perde importacircncia frente ao papel da intuiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que eacute
significado de tal modo que ascensatildeo no conhecimento significa
exclusivamente maior proximidade da coisa e natildeo igualmente aumento
em diferenciaccedilatildeo e distinccedilatildeo
Este preacute-conceito da fenomenologia ou seja de que a simples
presenccedila garante por si mesma o cumprimento uacuteltimo de uma intenccedilatildeo
significante tem para Tugendhat enormes consequecircncias na concepccedilatildeo
husserliana da filosofia Em primeiro lugar isto eacute decisivo para o modelo
de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepccedilatildeo da
consciecircncia pura como o campo absoluto precisamente porque o campo
do que se daacute adequadamente Em segundo lugar para a consequecircncia
metoacutedica de que a anaacutelise fenomenoloacutegica se restringe ao que eacute
simplesmente dado intuitivamente na intuiccedilatildeo originaacuteria (HUSSERL
1950 p 52) A natildeo consideraccedilatildeo da questatildeo da determinaccedilatildeo tem como
resultado que o determinado eacute aceito ingenuamente e natildeo eacute considerado
expressamente mas por outro lado ele eacute o ponto de chegada de um
processo de determinaccedilatildeo que se faz atraveacutes de sua relaccedilatildeo agrave forma de seu
dar-se Isto conduz sempre a uma absolutizaccedilatildeo da experiecircncia em
questatildeo
De fato aqui se situa a questatildeo fundamental de confronto com o
pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto
fenomenologia transcendental mesmo na sua formulaccedilatildeo uacuteltima de
filosofia do mundo vivido como o originariamente dado Trata-se para ele
de atingir a dimensatildeo mais originaacuteria do pensamento enquanto tal e esta
eacute para ele a intuiccedilatildeo que se daacute originariamente e que constitui a fonte de
justificaccedilatildeo de todo conhecimento Isso leva segundo E Fink (1976 p 85)
a uma postura ldquointencionalistardquo na concepccedilatildeo do ser e da verdade
enquanto posiccedilatildeo especiacutefica da fenomenologia enquanto filosofia Na
realidade aqui natildeo se articula propriamente uma justificaccedilatildeo mas se
defende a tese de que se trata em uacuteltima instacircncia de um ver de um
mostrar-se a dimensatildeo originaacuteria se mostra daacute-se
18 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Como diz Habermas (1984 p 47-59) em Husserl a intuiccedilatildeo sensiacutevel
serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuiccedilatildeo possiacutevel pois
aqui aparece em niacutevel elementar o que constitui a intuiccedilatildeo a autodoaccedilatildeo
de um objeto Sua suposiccedilatildeo fundamental eacute que temos na experiecircncia
sensiacutevel acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente Para E
Fink (1976 p 84) em Husserl a percepccedilatildeo intuitiva constitui de fato o
modo originaacuterio de autodoaccedilatildeo Sua tese eacute que em Husserl isto natildeo
significa um intuicionismo inimigo do pensamento mas defesa do
ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo e do caraacuteter secundaacuterio do pensamento Habermas
aponta para a dificuldade de defesa desta tese do ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo a
partir inclusive de consideraccedilotildees do proacuteprio Husserl (1964) em sua obra
ldquoErfahrung und Urteilrdquo A razatildeo fundamental eacute que em cada intuiccedilatildeo
originaacuteria jaacute estatildeo presentes determinaccedilotildees categoriais o que para ele
significa que o modelo de uma filosofia da consciecircncia tem que ser
substituiacutedo pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na
linguagem
Que significa isto para a filosofia Em primeiro lugar que depois da
reviravolta linguiacutestica natildeo podemos mais analisar nossa capacidade de
conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir uma
vez que noacutes enquanto sujeitos cognoscentes jaacute sempre nos encontramos
no horizonte de nossas praacuteticas no mundo vivido Linguagem e realidade
estatildeo mutuamente imbricadas de tal modo que toda experiecircncia humana
eacute linguisticamente impregnada Com isto supera-se definitivamente o
ldquomito do dadordquo uma vez que mesmo a experiecircncia sensiacutevel jaacute eacute mediada
linguisticamente de tal modo que ela perde a autoridade epistecircmica
daquela instacircncia que nos daria imediatamente a realidade pura Para
Habermas (1984 p 20) foi meacuterito de W Sellars (2003 p 23 ss) em sua
criacutetica ao empirismo do Ciacuterculo de Viena de ter explicitado esta
consequecircncia da reviravolta linguiacutestica
Isto tem como consequecircncia a eliminaccedilatildeo do primado da
intencionalidade e de sua substituiccedilatildeo pelo primado de uma compreensatildeo
linguiacutestica Neste caso a urgecircncia de uma fundamentaccedilatildeo que eacute central na
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 19
filosofia natildeo pode satisfazer-se atraveacutes de uma consideraccedilatildeo
fenomenoloacutegica da histoacuteria da originaccedilatildeo do mundo vivido mas atraveacutes
da acareaccedilatildeo das pretensotildees de validade que levantamos em nossas
praacuteticas simboacutelicas ordinaacuterias Natildeo intuiccedilatildeo mas argumentos eacute o que pode
justificar a aceitaccedilatildeo ou natildeo das pretensotildees de validade e por conseguinte
eacute neste niacutevel que se situa uma teoria filosoacutefica
Em direccedilatildeo semelhante Apel rearticula a filosofia transcendental
claacutessica a partir do diaacutelogo com as filosofias que saiacuteram da reviravolta
linguiacutestica a filosofia analiacutetica e a filosofia hermenecircutica Para ele essa
reviravolta provocou uma transformaccedilatildeo daquilo que constitui a questatildeo
central desta tradiccedilatildeo de pensamento filosoacutefico ou seja a pergunta pelas
condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido Foi nesse contexto que
Tugendhat (1976 p 16) 4 interpretou a reviravolta linguiacutestica como
radicalizaccedilatildeo do movimento do pensamento que constitui o cerne da
filosofia transcendental que ele denomina de ldquoreviravolta reflexivardquo cujo
cerne consiste em dizer que a filosofia natildeo tem como tarefa o
conhecimento direto dos objetos do mundo mas sua especificidade eacute uma
reflexatildeo sobre como os objetos do mundo enquanto tais nos podem ser
dados
Eacute neste sentido estrito que K-O Apel afirma ser a filosofia da
linguagem a nova ldquofilosofia primeirardquo ou seja natildeo uma filosofia primeira
enquanto pergunta pelo ente enquanto tal ou pela estrutura da
consciecircncia transcendental enquanto fundamento do conhecimento
vaacutelido mas uma filosofia primeira agrave altura da consciecircncia criacutetica alcanccedilada
em nossos dias o que neste contexto significa a consciecircncia da
inevitabilidade da mediaccedilatildeo linguiacutestica de nosso acesso ao mundo
Neste sentido eacute que natildeo haacute como diz J McDowell (2005 p 64)
qualquer experiecircncia originaacuteria que esteja fora da esfera conceitual natildeo
haacute uma fronteira exterior para aleacutem da esfera conceitual como ele diz
comentando Wittgenstein
4 ldquoSie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstaumlnde sondern in der gleichzeitigen Reflexion darauf wie uns diese Gegenstaumlnde gegeben sein koumlnnenwie sie uns zugaumlnglich werdenrdquo
20 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
natildeo existe lacuna ontoloacutegica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer
ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de
coisa que pode ocorrer Quando algueacutem pensa de modo verdadeiro aquilo em
que ele pensa eacute aquilo que ocorre Como o mundo eacute tudo que ocorre (como ele
proacuteprio escrevera) natildeo haacute lacuna entre o pensamento enquanto tal e o
mundo
Natildeo haacute portanto nenhuma lacuna entre o pensamento enquanto tal
e o mundo mas um jogo reciacuteproco entre conceitos e intuiccedilotildees entre
receptividade e espontaneidade (McDOWELL 2005 p 40) o que poreacutem
natildeo nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um
controle racional sobre nosso pensamento Isso natildeo significa contudo que
o mundo seja completamente no espaccedilo de um sistema de conceitos
Precisamos de um trabalho longo e paciente o que implica uma obrigaccedilatildeo
permanente de reflexatildeo O importante aqui eacute afirmaccedilatildeo de que a realidade
natildeo estaacute fora da esfera conceitual e a rejeiccedilatildeo do ldquomito do dadordquo significa
precisamente que natildeo existe uma presenccedila pura originaacuteria fora da esfera
conceitual Eacute isto que McDowell chama de ldquoo caraacuteter indelimitado do
conceitualrdquo
A Posiccedilatildeo da Filosofia-Sistemaacutetico-Estrutural de L B Puntel
A questatildeo do papel exercido pela linguagem na filosofia constitui
certamente para L B Puntel uma questatildeo central partindo-se de uma nova
forma de articular a filosofia e suas questotildees que eacute resultado do que se
convencionou denominar de ldquogiro ou reviravolta linguiacutesticardquo da filosofia
(OLIVEIRA 2015) Natildeo se trata aqui de um novo objeto ou um novo campo
de investigaccedilatildeo para uma teoria filosoacutefica mas da filosofia mesma em sua
configuraccedilatildeo teoacuterica Isto significa dizer que a tematizaccedilatildeo da linguagem
natildeo constitui uma disciplina filosoacutefica nova mas sua consideraccedilatildeo faz
parte da tematizaccedilatildeo dos pressupostos irrenunciaacuteveis da articulaccedilatildeo da
filosofia enquanto uma forma de atividade teoacuterica na vida humana jaacute que
o que estaacute em jogo aqui eacute a instacircncia imprescindiacutevel de articulaccedilatildeo de uma
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 21
teoria filosoacutefica sem ela nada eacute dado a uma teoria filosoacutefica o que seria
dizer que a teoria seria inviaacutevel
A tese baacutesica da reviravolta linguiacutestica eacute de que natildeo eacute mais possiacutevel
pensar a filosofia sem a mediaccedilatildeo da linguagem e isto tem consequecircncias
fundamentais em sua articulaccedilatildeo o que se configura como tese da
centralidade da linguagem na filosofia Na proposta da filosofia
sistemaacutetico-estrutural de Puntel (OLIVEIRA 2014 p 190 ss) esta eacute
elucidada no contexto de uma ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo da revoluccedilatildeo
transcendental que caracteriza o pensamento moderno e desemboca
numa filosofia poacutes-transcendental Que significa propriamente isto
Uma filosofia sistemaacutetico-estrutural na proposta de Puntel (2008 p
97 ss) radica-se na concepccedilatildeo fundamental de que filosofia eacute uma
atividade humana que se distingue de outras atividades em razatildeo de seu
objetivo baacutesico isto eacute a elaboraccedilatildeo e a apresentaccedilatildeo de teorias Teoria eacute a
forma de discurso metoacutedico e rigorosamente ordenado que se compotildee de
sentenccedilas puramente declarativas Nesta posiccedilatildeo em oposiccedilatildeo a vaacuterias
propostas hoje existentes a filosofia eacute concebida como um
empreendimento estritamente teoacuterico Esta ldquoatividaderdquo e seu ldquoprodutordquo
tecircm a ver com o ldquomundordquo compreendido como a totalidade ilimitada dos
ldquoobjetosrdquo ou ldquocamposrdquo ou ldquoacircmbitosrdquo a totalidade do que eacute dado na
linguagem
A uniatildeo desses trecircs fatores baacutesicos nos autoriza a falar da ldquodimensatildeo
expositivardquo como sendo o especiacutefico da atividade filosoacutefica Por esta razatildeo
seu primeiro trabalho consiste precisamente no esclarecimento da
dimensatildeo da teoricidade e da explicitaccedilatildeo do conceito de uma teoria
filosoacutefica pela apresentaccedilatildeo de seus componentes irrenunciaacuteveis Numa
palavra sendo a filosofia uma atividade que se efetiva na esfera da
linguagem tendo assim a linguagem como seu pressuposto primeiro
exige-se para o cumprimento de sua tarefa a tematizaccedilatildeo de seus
pressupostos linguiacutesticos o que eacute uma decorrecircncia da reflexividade que
caracteriza a atividade teoacuterica neste niacutevel de sua efetivaccedilatildeo Isto implica
22 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
dizer que uma filosofia deve comeccedilar pela consideraccedilatildeo de sua mediaccedilatildeo
linguiacutestica
Num sentido programaacutetico Puntel elabora uma quase-definiccedilatildeo de
filosofia que serviraacute de fio condutor para toda a exposiccedilatildeo ldquoa filosofia
sistemaacutetico-estrutural eacute a teoria das estruturas universais (mais gerais) do
universo do discurso [universe of discourse] ilimitadordquo (PUNTEL 2008
p 33) ldquoUniverso do discursordquo pode ser explicitado por conceitos mais
determinados do ponto de vista do conteuacutedo como ldquomundordquo ldquouniversordquo
ldquorealidaderdquo e em uacuteltima instacircncia ldquoserrdquo A dimensatildeo do universo do
discurso eacute o dado abrangente dado eacute compreendido aqui como o
ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila portanto algo linguisticamente articulado
precisamente aquilo que eacute dado para ser compreendido ou explicado pela
filosofia seu objeto sua temaacutetica especiacutefica tudo o que eacute candidato a um
tratamento teoacuterico-filosoacutefico
A pretensatildeo proacutepria de qualquer teoria eacute assim compreender um
dado um setor do mundo ou o mundo enquanto tal no caso de uma teoria
filosoacutefica Desta forma eacute tarefa do filoacutesofo sistemaacutetico-estrutural tentar
integrar numa teoria compreensiva todos estes dados que num primeiro
momento emergem justamente como candidatos agrave compreensatildeo como
candidatos agrave teoria Daiacute porque a formaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica
consiste em trabalhar a interconexatildeo entre a dimensatildeo dos dados e a
dimensatildeo das estruturas isto eacute os componentes irrecusaacuteveis da
linguagem enquanto os pressupostos irrenunciaacuteveis para a compreensatildeo
de qualquer dado de tal forma que as estruturas afinal se revelam como
estruturas dos dados e os dados enquanto incluiacutedos na dimensatildeo das
estruturas
Uma pergunta se revela aqui como fundamental Que eacute entatildeo
compreender Que implica o compreender Esta eacute uma questatildeo que
subjaz a todo empreendimento teoacuterico uma vez que compreender um
determinado X constitui a tarefa especiacutefica de qualquer empreendimento
teoacuterico ldquosendo que ldquocompreenderrdquo neste caso eacute um conceito geral para
ldquoentenderrdquo ldquoexplicarrdquo ldquoarticularrdquo (PUNTEL 2008 p 205) O X por sua
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 23
vez designa a coisa a temaacutetica o objeto do compreender o dado em
questatildeo
Neste contexto um procedimento teoacuterico se revela muito produtivo
as diferentes posiccedilotildees filosoacuteficas (PUNTEL 2008 p 206) podem ser
consideradas a partir de como elas pensam a relaccedilatildeo entre o compreender
e a coisa a ser compreendida A pergunta baacutesica aqui eacute entatildeo se o
compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao
contraacuterio De acordo com a primeira posiccedilatildeo (PUNTEL 1990 p 266 ss)
noacutes natildeo criamos produzimos ou constituiacutemos o mundo efetivo mas antes
o encontramos o mundo efetivo nos eacute preacute-dado Isto significa dizer que
apreendemos a realidade sem conceito sem linguagem5 sem teorias o
que segundo esta posiccedilatildeo se mostra em muitas experiecircncias Assim nesta
perspectiva uma coisa eacute a apreensatildeo da realidade outra a sua
compreensatildeo de tal forma que a verdadeira tarefa de uma atividade teoacuterica
consiste em descobrir o mundo em si mesmo aprendecirc-lo descrevecirc-lo e
explicaacute-lo O mundo portanto situa-se fora do conceitual isto constitui o
cerne do que se denomina de ldquorealismordquo
A posiccedilatildeo contraposta (normalmente denominada pelos realistas de
idealista hoje se fala mais de antirrealismo) procura desvelar a
ingenuidade desta primeira posiccedilatildeo ressaltando a mediaccedilatildeo irrecusaacutevel de
um sistema conceitual em toda atividade teoacuterica assim que admitir uma
realidade inteiramente desprovida de esquemas conceituais se mostra
impossiacutevel Realidade mundo universo soacute tecircm sentido no interior de um
esquema conceitual por noacutes articulado Distinguimos os objetos
justamente atraveacutes da introduccedilatildeo deste ou daquele esquema conceitual Jaacute
sempre estamos em relaccedilatildeo com o mundo pela atividade conceitual de tal
modo que fora desta relaccedilatildeo o mundo eacute simplesmente ininteligiacutevel Desta
forma falar de independecircncia do mundo natildeo significa afirmar que ele se
coloque para aleacutem da esfera conceitual
5 Haacute filoacutesofos que distinguem entre significado linguiacutestico e conteuacutedos mentais Cf Miller (2010 p 208) ldquoFiloacutesofos chamam estados mentais tais como crenccedilas desejos vontades intenccedilotildees esperanccedilas e assim por diante de atitudes proposicionais Podemos dizer que enquanto sentenccedilas possuem significado linguiacutestico atitudes proposicionais possuem conteuacutedo mentalrdquo Cf a respeito Branquinho (2006 p 72-78)
24 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Neste contexto McDowell (2005 p 65) estabelece uma distinccedilatildeo
fundamental
Pensamento pode significar o ato de pensar mas pode significar tambeacutem o
conteuacutedo que eacute pensado ndash aquilo que algueacutem pensa6 Ora se quisermos dar o
devido reconhecimento agrave independecircncia da realidade precisamos de uma
coerccedilatildeo exterior ao pensamento e ao juiacutezo entendidos enquanto exerciacutecios de
espontaneidade Esta coerccedilatildeo natildeo precisa vir de um lugar exterior aos
conteuacutedos pensaacuteveis7
Foram aqui apresentadas duas posiccedilotildees extremas que habitualmente
natildeo se articulam desta forma uma vez que as diferentes propostas
filosoacuteficas satildeo normalmente formas mistas portadoras de elementos de
ambas as posturas o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant
fundamentalmente marcado pela dicotomia radical entre sujeito e objeto
Putnam empenhou-se em caracterizar com rigor a primeira posiccedilatildeo
Ele defende a partir de 1976 a posiccedilatildeo denominada por ele mesmo de
ldquorealismo internordquo que levanta a pretensatildeo de articular uma posiccedilatildeo
intermediaacuteria entre o que ele chama de ldquorealismo metafiacutesicordquo8 da tradiccedilatildeo
e o ldquorelativismordquo muito difundido em nossos dias A primeira o realismo
metafiacutesico (PUTNAM 1996 p 205) eacute o que Moore e Russell teriam
retomado depois de ter sido recusado pelo idealismo moderno de Kant e
Hegel Putnam (1993 p 213) atribui ao proacuteprio Kant a distinccedilatildeo entre
estes dois tipos de realismo
Outros autores falam simplesmente de ldquorealismordquo ou como eacute caso de
Puntel (PUNTEL 1990 p 269) de ldquorealismo transcendenterdquo Para ele
pode-se distinguir aqui duas variantes a) O realismo transcendente
absoluto que afirma existir um uacutenico sistema conceitual correto
considerando os demais como algo puramente subjetivo 2) O realismo
6 Na perspectiva da filosofia sistemaacutetico-estrutural pensamento proposiccedilatildeo e estado-de-coisas satildeo expressotildees sinocircnimas e constituem o ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila Cf Puntel (2008 p 214-216)
7 McDowell (2005 p 73) tambeacutem afirma o seguinte ldquoO objeto de uma experiecircncia [] eacute entendido como parte do mundo pensaacutevel tomado como um todordquo
8A respeito das raiacutezes teoacutericas do realismo metafiacutesico no pensamento de Putnam cf Engel (1994 p 363-364)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 25
transcendente moderado que admite uma pluralidade de sistemas
conceituais e os interpreta como tambeacutem as teorias como diferentes
aproximaccedilotildees ao uacutenico mundo efetivo
Em nossos dias o realismo metafiacutesico para Putnam constitui a tese
especiacutefica dos materialistas9 Sua tese baacutesica eacute que a fiacutesica constitui uma
configuraccedilatildeo de uma teoria verdadeira e acabada da estrutura do mundo
Putnam admite ter sido precisamente esta sua primeira posiccedilatildeo teoacuterica jaacute
que tambeacutem ele defendeu a tese de que as ciecircncias descrevem e explicam
uma realidade inteiramente independente de noacutes Constituiu um
argumento decisivo para ele neste momento o fato de que a transformaccedilatildeo
de significaccedilatildeo dos termos teoacutericos natildeo demanda que se deixe de falar de
uma uacutenica e mesma realidade o que seria impossiacutevel se ela natildeo se situasse
para aleacutem de nossas teorias
O realismo metafiacutesico se fundamenta entatildeo na crenccedila de que haacute
apenas uma teoria verdadeira capaz de expor exaustivamente a estrutura
do mundo como ele eacute em si mesmo independente de noacutes de nossas
concepccedilotildees a seu respeito Numa palavra o realista metafiacutesico afirma que
podemos falar de coisas e pensar nelas como elas satildeo em si mesmas em
sua constituiccedilatildeo intriacutenseca independentemente de nosso espiacuterito de nossa
linguagem de nossas teorias A razatildeo disto eacute a relaccedilatildeo de correspondecircncia
entre as expressotildees de nossa linguagem e certos tipos de entidades
independentes Nesta perspectiva o mundo eacute entendido enquanto a
totalidade invariaacutevel de objetos independentes de nosso espiacuterito de nossa
linguagem de nossas teorias (PUTNAM 1993 p 156) Hoje se defende a
tese de que estas entidades tecircm nos objetos materiais seu paradigma e de
que a correspondecircncia em tela eacute uma relaccedilatildeo causal
Numa palavra o mundo efetivo nos eacute preacute-dado enquanto plenamente
estruturado em si mesmo (ldquoa ready-made worldrdquo expressatildeo sugerida por
N Goodman) e o objetivo fundamental de toda e qualquer atividade
9 Cf Putnam (1996 p 208) ldquoMetaphysics or the enterprise of describing the ldquofurniture of the worldrdquo the ldquothings in themselvesrdquo apart from our conceptual imposition has been rejected by many analytic philosophers (though not as I remarked by Russell) and by all the leading brands of continental philosophy Today apart from relics it is virtually only materialists (or ldquophysicalistsrdquo as they like to call themselves) who continue the traditional enterpriserdquo
26 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
teoacuterica consiste em apresentar o mundo como ele eacute em si mesmo da
maneira mais fiel possiacutevel Putnam denomina esta posiccedilatildeo de
ldquoexternaliacutesticardquo jaacute que sua postura pressupotildee que noacutes podemos dispor do
ldquoponto de vista de Deusrdquo (ldquoGodacutes-Eye Viewrdquo) que teria condiccedilotildees de
alcanccedilar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo
que fosse possiacutevel comparar linguagem e mundo e decidir se haacute
correspondecircncia entre os dois
Neste caso tornar-se-ia possiacutevel distinguir claramente entre o que
realmente eacute o caso e o que se julga ser o caso (PUTNAM 1990 p 102) Esta
eacute a razatildeo pela qual uma teoria correspondencial da verdade eacute um elemento
essencial desta posiccedilatildeo uma teoria que segundo ele foi contestada por
Kant (PUTNAM 1990 p 92-93) Putnam (1990 p 85) chama a teoria da
correspondecircncia de ldquoteoria da semelhanccedila de relaccedilatildeordquo precisamente por
ela sustentar que a relaccedilatildeo vigente entre nossas representaccedilotildees e os
objetos externos eacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila
Satildeo vaacuterias as razotildees que levaram Putnam a abandonar esta posiccedilatildeo
Puntel (2008 p 480) enumera as trecircs mais importantes 1) A
compreensatildeo de que a crenccedila de que poderiacuteamos dispor de uma
perspectiva de Deus eacute uma presunccedilatildeo e uma ilusatildeo 2) O realismo
metafiacutesico produz uma consequecircncia inadmissiacutevel uma vez que o abismo
entre linguagem (teoria) e mundo eacute insuperaacutevel para seres finitos natildeo se
pode afastar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por noacutes
elaborada possa enganar-se em relaccedilatildeo ao mundo e isto eacute certamente
ininteligiacutevel 3) O contato com o uacuteltimo Wittgenstein o levou a considerar
o realismo metafiacutesico uma teoria ingecircnua quanto ao sentido que
simplesmente natildeo se sustenta mais
Na perspectiva pragmaacutetica aberta por Wittgenstein a referecircncia a um
jogo de linguagem eacute essencial o que significa dizer que o significado
linguiacutestico natildeo se esgota na esfera da semacircntica Isto conduz agrave afirmaccedilatildeo
da primazia da dimensatildeo pragmaacutetica na linguagem e consequentemente a
uma articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas de forma inteiramente diferente
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 27
Como diz Zilhatildeo (1993 p 204) para descrever a mudanccedila radical de
perspectiva
[hellip] soacute no interior dos jogos de linguagem correspondentes eacute que
determinadas expressotildees mesmo quando apresentam uma estrutura formal
declarativa adquirem o caraacutecter de ldquopensamentosrdquo e ldquoproposiccedilotildeesrdquo isto eacute a
sua simples aparecircncia formal considerada independentemente do uso que
elas tenham num contexto determinado natildeo nos autoriza a classificaacute-las de
acordo com qualquer categoria
No entanto para Puntel a posiccedilatildeo alternativa articulada por Putnam
o ldquorealismo internordquo que eacute uma versatildeo da posiccedilatildeo antirrealista apesar de
ter um aspecto profundamente correto tem tambeacutem uma dimensatildeo
inaceitaacutevel Certamente a tese de que o mundo (a natureza a realidade o
universo as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta
independecircncia do espiacuterito respectivamente da linguagem enquanto tal se
autodestroacutei em sua enunciaccedilatildeo portanto natildeo eacute inteligiacutevel e por isto
inaceitaacutevel (PUNTEL 1990 p 271-72) Antes de tudo porque
inteligibilidade implica algo conceitual
Na realidade um tal mundo natildeo passa de um constructo
contraditoacuterio por um lado o mundo eacute aceito como algo independente de
qualquer elemento conceitual por outro lado se fala de mundo relaciona-
se com o mundo o que inclui elementos conceituais em muacuteltiplas formas
linguisticamente expressos A Keller defende a tese de que a palavra em
contraposiccedilatildeo a siacutelabas sem sentido caracteriza-se por ser uma sequecircncia
de sons com significado A partir daqui ele justifica a vinculaccedilatildeo entre
ldquoconceito e linguagemrdquo afirmando que jaacute que natildeo existe significado sem
uma sequecircncia de sons pelo menos pensada natildeo existe conceito sem uma
sequecircncia de sons sem palavra nenhum conceito (KELLER 1979 p93)
Esta tese antirrealista eacute para Puntel correta mas insuficiente porque
ele natildeo mostrou em que sentido exatamente a tese de uma realidade
concebida deste modo seria nua O argumento aqui eacute que questotildees a
respeito da dicotomia entre pensamentoatos
constituintesespiacuteritolinguagem e mundonaturezarealidadecoisa
28 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
mesma natildeo podem ser elucidadas sem a referecircncia clara a uma tese
ontoloacutegica central que eacute o pressuposto de qualquer empreendimento
teoacuterico o que possa ser aquela dimensatildeo que habitualmente se denomina
mundorealidadecoisa mesma ela eacute portadora de qualquer forma de uma
estruturaccedilatildeo imanente fundamental ou seja de uma expressabilidade
plena sem a qual a teoria seria privada de sentido
Puntel (2008 p 482) emprega o termo ldquoexpressabilidaderdquo como uma
espeacutecie de foacutermula abreviada de uma seacuterie de termos como
inteligibilidade conceituabilidade compreensibilidade explicabilidade
articulabilidade etc Portanto se o ser enquanto tal eacute expressaacutevel e eacute isto
que todo empreendimento teoacuterico em princiacutepio pressupotildee sob pena de ou
ser autocontraditoacuterio ou natildeo ter sentido entatildeo a esta universalidade
corresponde uma instacircncia de sua expressatildeo igualmente universal uma
instacircncia expressante a linguagem de modo que parafraseando Gadamer
se pode dizer ldquoo ser que pode ser entendido eacute o universo do discursordquo
(PUNTEL 2008 p 526-527) o que implica uma relaccedilatildeo essencial entre o
ser e a linguagem
Em contraposiccedilatildeo ao realismo metafiacutesico a posiccedilatildeo aqui eacute que a
expressabilidade do mundo pressuposta por nossos empreendimentos
teoacutericos natildeo eacute compreensiacutevel sem uma instacircncia que a exprima ou seja a
tese de um ldquomundo nurdquo sem qualquer relaccedilatildeo a algo como linguagem
espiacuterito conceitualidade etc numa palavra a tese de um mundo
enclausurado em si mesmo eacute uma impossibilidade metafiacutesica e por esta
razatildeo ininteligiacutevel
Quando se afirma [] a ldquoindependecircncia absolutardquo do mundo (do universo
etc) isso daacute a impressatildeo de que se estaacute afirmando algo natildeo inteligiacutevel a saber
um ldquomundo natildeo conceitualizadordquo ldquonatildeo estruturadordquo totalmente
incompreendido e incompreensiacutevel situado fora do alcance do compreensiacutevel
do articulaacutevel etc Esta eacute a aporia em que incorre o realista (metafiacutesico)
(PUNTEL 2008 p 498)
Portanto a linguagem diz o mundo ela eacute a instacircncia intransponiacutevel
da expressabilidade do mundo e por isto seu lugar na filosofia eacute
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 29
absolutamente central Partindo das teses da antropologia do iniacutecio do
seacuteculo XX A Keller apresenta esta problemaacutetica afirmando que o ser
humano enquanto ldquoser biologicamente carenterdquo natildeo estaacute contudo preso
por seus instintos a um meio ambiente especiacutefico mas eacute relacionado ao
mundo em seu todo Ele natildeo conhece contudo esta totalidade
simplesmente atraveacutes de um conjunto desordenado de impressotildees mas a
capta atraveacutes de esquemas aprendidos o que se pode denominar a
ldquoestrutura-enquantordquo porque ele sempre capta algo enquanto algo
determinado isto eacute linguisticamente delimitado Daiacute porque para o ser
humano a linguagem eacute tatildeo vitalmente necessaacuteria como o instinto para o
animal (KELLER 1979 p 121 129)
Em segundo lugar para Puntel Putnam como os antirrealistas em
geral sempre afirma que a realidade (o mundo o universo) se refere a
ldquonosso espiacuteritordquo aldquonossa linguagemrdquo Isto significa dizer que a maneira
como o mundo estaacute estruturadodepende da linguagem em que ele se
expressa e essa linguagem para ele eacute sempre ldquonossa linguagemrdquo Desta
forma nem tudo se pode dizer em cada linguagem trata-se aqui de uma
grandeza limitada Nossas visotildees do mundo satildeo sempre diferentemente
relativas agraves nossas diferentes linguagens Eacute por isto afirma Humboldt
(1903a p 14-15) que soacute atraveacutes da linguagem captamos o mundo seus
objetos propriedades e relaccedilotildees e a linguagem eacute sempre um todo uma
estrutura cujas partes devem ser consideradas em seu papel no todo
Realizamos isso no entanto sempre numa linguagem determinada
de uma forma determinada Cada linguagem efetiva uma transformaccedilatildeo
do mundo em linguagem (HUMBOLDT 1903b p 28) articula uma visatildeo
do mundo (Weltansicht) uma concepccedilatildeo peculiar do mundo e de sua
estrutura10 uma ontologia proacutepria Assim se a cultura engendra a
linguagem a linguagem entatildeo eacute frente ao indiviacuteduo uma potecircncia que
determina seu pensamento e sua experiecircncia configurando sua visatildeo do
mundo Desta forma cada linguagem eacute em si mesma uma individualidade
espiritual (HUMBOLDT 1903b p 151) que delimita o caraacuteter nacional de
10 A respeito das questotildees epistemoloacutegicas que marcam essa posiccedilatildeo cf Kutschera (1975 p 332 e ss)
30 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
tal forma que o ser humano natildeo fala como ele fala simplesmente porque
deseja falar assim mas porque tem que falar assim11 Nele a maneira de
falar eacute um constrangimento de sua natureza intelectual (HUMBOLDT
1903b p 127) Na perspectiva da concepccedilatildeo pragmaacutetica contudo nada haacute
aqui de necessaacuterio
[hellip] nada haacute de necessaacuterio no facto de usarmos os nossos sinais do modo como
os usamos isto eacute em vez de uma forma loacutegica que espelha a forma da
realidade a gramaacutetica eacute algo de arbitraacuterio [hellip] Natildeo se pode assim falar de uma
gramaacutetica errada mas tatildeo soacute de uma desadequaccedilatildeo de uma linguagem ou jogo
de linguagem em funccedilatildeo de determinadas necessidades praacuteticas [hellip] na
linguagem tal como no xadrez se seguirmos outras regras gramaticais
estaremos respectivamente ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de
regras ou a jogar outro jogo (ZILHAtildeO 1993 p 205-206)
Aqui se manifesta uma conexatildeo muacutetua entre pensamento e palavra
(HUMBOLDT 1903a p 27) pensando a partir da consciecircncia Humboldt
defende o caraacuteter inseparaacutevel da consciecircncia e da linguagem humanas
uma vez que a linguagem eacute o oacutergatildeo que estrutura o pensamento Neste
sentido a linguagem natildeo eacute apenas meio de expressatildeo e comunicaccedilatildeo de
conteuacutedos de pensamento portanto de uma verdade jaacute articulada sem ela
mas antes pensamento e linguagem instituem uma unidade indissoluacutevel
(HUMBOLDT 1903b p 22 ss)12
O grande problema aqui e que toca o cerne das filosofias da
subjetividade inclusive as que fizeram a reviravolta linguiacutestica eacute o
seguinte estas afirmaccedilotildees levam a estabelecer a subjetividade como
instacircncia doadora de sentido a tudo A questatildeo se potildee igualmente numa
filosofia pragmaacutetica jaacute que o elemento central da pragmaacutetica (OLIVEIRA
2012 p 87-106) consiste na consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem e
falantes ou da linguagem na perspectiva da maneira como os falantes a
usam o que significa que aqui eacute determinante a accedilatildeo dos falantes Nesse
11 Uma tese que foi desenvolvida por Sapir (1929 p 209) ldquoHuman beings do not live in the objective world alone not alone in the world of social activity as ordinarily understood but are very much at the mercy of the particular language which has become the medium of expression for their societyrdquo
12 Cf Sellars (1973 p 82) ldquoThinking at the distinctly human level [hellip] is essentially verbal activityrdquo
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 31
sentido a passagem da subjetividade para a intersubjetividade proposta
como mudanccedila de paradigma na realidade natildeo resulta na superaccedilatildeo do
caraacuteter determinante da subjetividade na filosofia ou seja da postura em
que a subjetividade eacute a instacircncia teoacuterica que determina tudo
Ora noacutes somos entes puramente contingentes entatildeo
inevitavelmente se levanta a questatildeo ldquoComo poderiam entatildeo os lsquoentes
humanosrsquo (mesmo em sua totalidade como quer que esta seja pensada)
ser tomados como lsquoparacircmetrorsquo para o que eacute o mundordquo (PUNTEL 2008
p 482-483) Como nesta postura natildeo se pode falar de forma coerente do
grande mundo uma soluccedilatildeo razoaacutevel poderia ser reduzir a grande
dimensatildeo do mundo ao nosso mundo entendido como nosso mundo
vivido com a consequecircncia de ter que avaliar como sem sentido ou como
ficccedilatildeo tudo aquilo que natildeo for compatiacutevel com este mundo como por
exemplo muito do que eacute elaborado pelas ciecircncias
A implausibilidade desta posiccedilatildeo aponta para a verdadeira questatildeo
neste contexto como entender a linguagem (espiacuterito) a fim de que se
legitime a afirmaccedilatildeo de que natildeo tem sentido falar de um mundo sem
nenhuma relaccedilatildeo a ela Esta eacute a questatildeo irrefutaacutevel em primeiro lugar
para a articulaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica precisamente enquanto uma
atividade teoacuterica Numa palavra trata-se antes de tudo da determinaccedilatildeo
de um criteacuterio universal de teoricidade e justamente de um criteacuterio
linguiacutestico pois a linguagem eacute o primeiro pressuposto de uma teoria que
se compotildee de sentenccedilas especificamente de sentenccedilas teoacutericas em
segundo lugar para o enfrentamento da questatildeo do lugar central atribuiacutedo
agrave subjetividade pela filosofia moderna A resposta a esta questatildeo implica
uma virada no pensamento moderno que vai justificar falar de uma
despontencializaccedilatildeo da subjetividade
A primeira etapa nesta direccedilatildeo consiste para Puntel na diferenciaccedilatildeo
entre duas formas diferentes de compreensatildeo da linguagem Quando
familiarmente nos referimos a signos linguiacutesticos entatildeo o ser humano
com sua histoacuteria obras e contingecircncias se revela seu autor e nesta
32 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
perspectiva haacute razatildeo para falar de ldquonossardquo linguagem uma vez que sem o
ser humano natildeo se pode falar de siacutembolos linguiacutesticos bem determinados
Eacute justamente nesse sentido que A Keller (1979 p 42) entende a
linguagem como um sistema de formas de proferimentos produzido pelo
ser humano que para expressar-se para entender-se para organizar seus
conhecimentos e comunicaacute-los e para defrontar-se de diferentes formas
com a realidade Numa palavra na medida em que a linguagem se
constitui de siacutembolos linguiacutesticos assim compreendidos ela eacute uma
produccedilatildeo histoacuterico-contingente de sujeitos humanos de tal forma que a
referecircncia a estes sujeitos eacute ineliminaacutevel Nisto tecircm razatildeo os pragmaacuteticos
aqui a accedilatildeo humana eacute simplesmente decisiva ldquoisto eacute o modo particular
atraveacutes do qual intervimos na realidaderdquo (ZILHAtildeO 1993 p 207) embora
se deva afirmar tambeacutem como o faz Kutschera que a linguagem eacute natildeo soacute
uma criaccedilatildeo da comunidade e da cultura humanas mas igualmente sua
condiccedilatildeo de possibilidade Nela com uma quantidade finita de expressotildees
e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma
quantidade infinita de informaccedilotildees que possibilitam a forma determinada
de comunicaccedilatildeo que gera a comunidade e a cultura A linguagem eacute assim
a pressuposiccedilatildeo da qualidade especificamente humana de uma
comunidade (KUTSCHERA 1998 p 105 ss)
No entanto a linguagem entendida no sentido maximal ou seja
como linguagem absolutamente universal natildeo eacute um produto humano
mas jaacute estaacute dada com o mundo entendido como ser em seu todo Ela eacute a
instacircncia da expressabilidade universal enquanto esfera correlata agrave
expressabilidade do ser enquanto tal
ldquoexpressabilidaderdquo eacute uma relaccedilatildeo que soacute eacute explicaacutevel e desse modo
compreensiacutevel se tambeacutem seu reverso for reconhecido X eacute expressaacutevel se e
somente se houver um Y que eacute a instacircncia expressante de X [hellip] a
expressabilidade universal do mundo tem como pressuposto ou [hellip] como
implicaccedilatildeo uma instacircncia expressante universal [hellip] uma linguagem
(PUNTEL 2008 p 501)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 33
Isto significa dizer que o relacionamento com a realidade soacute ocorre
linguisticamente Numa palavra a expressabilidade universal implica uma
instacircncia expressante universal uma linguagem universal que
consequentemente tem que ter um caraacuteter diferente da ldquonossardquo
linguagem Neste sentido ela natildeo eacute um produto humano puramente
contingente mas uma estruturalidade imanente ou seja um momento
estrutural do mundo entendido como ser em seu todo e dessa maneira ela
jaacute estaacute dada com o mundo em sentido do todo da realidade Enquanto tal
ela eacute um sistema semioacutetico objetivo (PUNTEL 1990 p 135)
O ser na medida em que eacute expressaacutevel enquanto tal possui uma
relaccedilatildeo imanente essencial com a linguagem que eacute precisamente a
instacircncia correlata a esta expressabilidade universal uma caracteriacutestica
imanente do ser em si mesmo Neste contexto linguagem eacute entendida
como um sistema semioacutetico abstrato que conteacutem uma quantidade
inumeraacutevel de expressotildees Este eacute para Puntel o ldquolocus originariusrdquo da
compreensatildeo da linguagem ou melhor da linguisticidade Ele denomina
por esta razatildeo a linguagem assim entendida como ldquolinguagem originaacuteriardquo
e eacute ela que ocupa a posiccedilatildeo primordial na filosofia
Assim a linguagem enquanto linguisticidade do ser enquanto tal eacute a
linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso
da expressabilidade universal do ser em seu todo Esta linguagem assim
entendida eacute coextensiva ao ser em seu todo pois o mundo (o universo o
ser) em seu todo eacute expressaacutevel o pressuposto ineliminaacutevel de qualquer
passo teoacuterico Nada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser articulado em
forma de linguagem
Neste sentido a expressabilidade eacute um momento estrutural imanente
do mundoe desse modo coextensional com o mundo como o eacute
consequentemente a linguagem Isso significa dizer que todo conteuacutedo
conceitual eacute articulado no seio da linguagem e eacute precisamente nesse
sentido que a linguagem emerge como meio indispensaacutevel da expressatildeo
ou da exposiccedilatildeo no sentido de que conteuacutedos conceituais natildeo existem sem
sua articulaccedilatildeo linguiacutestica
34 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
[hellip] linguagem constitui meio indispensaacutevel da expressatildeo ou exposiccedilatildeo no
seguinte sentido se compreendidos adequada e rigorosamente os assim
chamados ldquoconteuacutedos conceituaisrdquo natildeo existem sem sua articulaccedilatildeo (ou
articulabilidade) linguiacutestica (PUNTEL 2008 p 226)
Eacute nessa oacutetica que tem sentido a afirmaccedilatildeo de Kutschera articulada na
linguagem da semacircntica e da ontologia composicionais natildeo conhecemos
o mundo primeiro no pensamento e depois exprimimos o conhecido na
linguagem mas captamos a realidade os objetos suas diferenccedilas
propriedades e relaccedilotildees em forma linguiacutestica Pensamento e linguagem se
desenvolvem sempre juntos os pensamentos soacute se exprimem em forma
linguiacutestica A linguagem eacute o ldquomeacutediumrdquo do pensamento (KUTSCHERA
1998 p 111) Uma consequecircncia primeira fundamental aqui eacute que eacute na
articulaccedilatildeo linguiacutestica que eacute possiacutevel apreender o que eacute o conteuacutedo
conceitual como ele eacute estruturado
Quando se entende poreacutem linguagem como siacutembolos linguiacutesticos
entra em jogo o ser humano com sua histoacuteria ou seja aqui a linguagem eacute
produccedilatildeo humana e eacute isto que explica a contingecircncia histoacuterica dessas
linguagens13 Ela entatildeo se revela como a pressuposiccedilatildeo na expressatildeo de
V Kutschera (1998 p 113) de todas as nossas produccedilotildees culturais de
nossa autocompreensatildeo de nossa autoconsciecircncia e de nosso pensamento
Mas quando se leva em consideraccedilatildeo a estruturalidade semacircntico-
ontoloacutegica da linguagem entatildeo ela eacute o resultado da expressabilidade da
proacutepria realidade e ldquofalantes e sujeitos satildeo determinados e entendidos a
partir da linguagem e natildeo a linguagem a partir dos falantes ou sujeitosrdquo
(PUNTEL 2008 p 130)
Entendendo assim a linguagem no sentido maximal ou seja como
um sistema semioacutetico composto de uma quantidade infinita natildeo
enumeraacutevel de expressotildees isto eacute quando a linguagem eacute entendida como
13 Cf Zilhatildeo (1993 p 206) ldquoA analogia adequada que nos permite compreender a ligaccedilatildeo que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo eacute-nos dada pela consideraccedilatildeo das ferramentas que usamos Se soubermos olhar para elas poderemos ficar a saber tudo o que haacute para saber tanto acerca da lsquoformarsquo do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [hellip]rdquo
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 35
o reverso da expressabilidade do mundo entatildeo a fala sobre o mundo (a
realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica
sua reduccedilatildeo ao mundo da nossa linguagem e com isto cai tambeacutem por
terra a dicotomia ldquoem si e para noacutesrdquo Uma primeira consequecircncia desta
tese eacute que natildeo pode haver entidades excluiacutedas da dimensatildeo da linguagem
pois isto implicaria que tais entidades natildeo seriam expressaacuteveis Assim a
quantidade de sentenccedilas deve corresponder pelo menos ao nuacutemero de
entidades ou de fatos do mundo
O caraacuteter unilateral da posiccedilatildeo antirrealista se mostra justamente
nareduccedilatildeo da linguagem a uma criaccedilatildeo humana e consequentemente agrave
ldquonossa linguagemrdquo no desconhecimento total da linguagem maximal ou
absolutamente universal Isto significa dizer que falta aqui uma visatildeo para
o ldquotodordquo do fenocircmeno da linguagem e consequentemente a compreensatildeo
de que ldquonossardquo linguagem eacute apenas um segmento de uma linguagem
muito mais abrangente ou seja de um sistema semioacutetico composto de
uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees que eacute o ldquoinversordquo
da expressabilidade universal do ser em seu todo Nesse sentido a
linguagem possui um poder de expressatildeo muitiacutessimo maior do que a
linguagem entendida como sistema semioacutetico de comunicaccedilatildeo
Na consideraccedilatildeo da linguagem maximal a referecircncia agrave subjetividade
se torna simplesmente supeacuterflua uma tese que Apel (1973 p 240 ss) jaacute vecirc
presente na posiccedilatildeo de Wittgenstein Ele defende a tese de que o Tractatus
de Wittgenstein eacute uma filosofia transcendental sem sujeito uma vez que
Wittgenstein identifica o sujeito com a operaccedilatildeo formal constitutiva da
linguagem Com isto a referecircncia ao sujeito se torna supeacuterflua Em
contraposiccedilatildeo a esta posiccedilatildeo Apel defende a tese do caraacuteter irrecusaacutevel
pelo menos implicitamente de uma autorreferecircncia da linguagem a si
mesma que eacute depois da reviravolta linguiacutestica a nova forma de auto-
reflexividade Com isto se daacute a referecircncia a um sujeito individual como
suporte da forma loacutegica a fim de que ela possa exercer sua funccedilatildeo
transcendental Portanto a referecircncia ao sujeito eacute ineliminaacutevel
36 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Puntel (2008 p 129) denomina a linguagem maximal que de
nenhuma forma eacute tematizada pelas diferentes formas de filosofia
antirrealista como a de Apel de originaacuteria ou antes o ldquolocus originariusrdquo
de compreensatildeo da linguagem ldquono sentido de sistema semioacutetico que se
baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo do
ser)rdquo Neste contexto uma observaccedilatildeo eacute absolutamente fundamental
a linguagem filosoacutefica e cientiacutefica infinita natildeo enumeraacutevel natildeo eacute compreendida
como se fosse uma grandeza ldquomanipulaacutevelrdquo ela eacute antes uma espeacutecie de ideia
reguladora ou emolduradora em qualquer caso uma assunccedilatildeo metafiacutesica cuja
funccedilatildeo principal consiste em desempenhar um importante papel explanatoacuterio
(PUNTEL 2008 p 522)
Uma pergunta que emerge neste contexto inevitavelmente eacute o que eacute
mesmo essa linguagem maximal essa linguagem universal Para Puntel
(2008 p 527) se tem que dizer em primeiro lugar que ela por um lado
natildeo existe em lugar algum mas por outro lado existe em toda parte no
sentido de que ldquonada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser lsquoarticulado em
forma de linguagemrsquordquo Ocorre que o falante escolhe um certo ldquosegmentordquo
desta linguagem para se adequar a seus objetivos poreacutem este segmento
de nenhuma forma se identifica simplesmente com a totalidade da
linguagem o que tambeacutem vale para uma linguagem artificial que conteacutem
uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees direcionadas ao
objetivo da exposiccedilatildeo e natildeo da comunicaccedilatildeo Eacute esta a razatildeo porque se fala
aqui de linguagem maximal e ela natildeo soacute constitui o lugar originaacuterio da
compreensatildeo da linguagem mas soacute a partir daqui se pode compreender
adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da
linguagem na filosofia
Referecircncias
APEL K-O Wittgenstein und Heidegger die frage nach dem sinn von sein und die
sinnlosigkeitsverdacht gegen alle metaphysik In _____ Transformation der
philosophie (vol 1) Frankfurt am Main Suhrkamp 1973
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 37
BRANQUINHO J Atitude proposicional In _____ MURCHO D amp GOMES N G (Orgs)
Enciclopeacutedia de termos loacutegico-filosoacuteficos Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
ENGEL P Quine et les post-quiniens reacutealisme et antireacutealisme In MEYER M (Ed) La
philosophie anglo-saxonne Paris PUF p 348-368 1994
FINK E Naumlhe und distanz phaumlnomenologische vortraumlge und aufsaumltze
FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1976
GADAMER H-G Die phaumlnomenologische bewegung In _____ Gesammelte werke vol
3 Tuumlbingen 1987
HABERMAS J Vorlesungen zu einer sprachtheoretischen grundlegung der soziologie
(197071) In _____ Vorstudien und ergaumlnzungen zur theorie des
kommunikativen handelns Frankfurt am Main Suhrkamp 2 ed 1984
HUMBOLDT W v Gesammelte schriftenVol IV Berlim Academia Real Prussiana das
Ciecircncias (Org) 1903a
_____ Gesammelte schriften Vol VI Berlim Academia Real Prussiana das Ciecircncias
(Org) 1903b
HUSSERL E Ideen zu einer reinen phaumlnomenologie und phaumlnomenologischen
philosophie Haag Martinus Nijhoff 1950 (Husserliana vol III)
_____ Die krisis der europaumlischen wissenschaften und die transzendentale
phaumlnomenologie 2 ed Haag Martinus Nijhoff 1963 (Husserliana vol VI)
_____ Erfahrung und urteil untersuchungen zur genealogie der logik 3 ed Hamburg
Claassen Verlag 1964
KELLER A Sprachphilosophie FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1979
KUTSCHERA F v Sprachphilosophie 2 ed Muumlnchen Wilhelm Fink Verlag 1975
_____ Die teile der philosophie und das ganze der wirklichkeit BerlinNew York W
de Gruyter 1998
McDOWELL J Mente e mundo Aparecida Ideias amp Letras 2005
38 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
MILLER A Filosofia da linguagem Satildeo Paulo Paulus 2010
OLIVEIRA M A de Subjektivitaumlt und vermittlung studien zur entwicklung des
transzendentalen denkens bei I Kant E Husserl und H Wagner Muumlnchen Wilhelm
Fink Verlag 1973
_____ A centralidade da intersubjetividade uma leitura pragmaacutetica da filosofia
transcendental em J Habermas In _____ Antropologia filosoacutefica
contemporacircnea subjetividade e inversatildeo teoacuterica Satildeo Paulo Paulus 2012
_____ A ontologia em debate no pensamento contemporacircneo Satildeo Paulo Paulus 2014
_____ A reviravolta linguiacutestico-pragmaacutetica na filosofia contemporacircnea4 ed Satildeo
Paulo Loyola 2015
PORTA M A G Platonismo e intencionalidad a propoacutesito de Bernard Bolzano (2ordf Parte)
Siacutentese v 30 n 96 p 85-106 2003
PUNTEL L B Grundlagen einer theorie der wahrheit BerlinNew York de Gruyter
1990
_____ Estrutura e ser um quadro referencial teoacuterico para uma filosofia sistemaacutetica Satildeo
Leopoldo Editora Unisinos 2008
_____ Ser e Deus um enfoque sistemaacutetico em confronto com M Heidegger Eacute Leacutevinas e
J-L Marion Satildeo Leopoldo Editora Unisinos 2011
PUTNAM HVernunft wahreit und geschichte Frankfurt am Main Suhrkamp 1990
_____ Auf messers schneide interner realismus und relativismus In Von einem
realistischen standpunkt schriften zu sprache und wirklichkeit Ed e trad por V
C Muumlller Reinbek bei Hamburg Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH 1993
_____ Why there isnacutet a ready-made world In _____ Realism and reason Philosophical
Papers vol 3 Cambridge Cambridge University Press 1996
QUINE W V O The pragmatists` place in empiricism In MULVANEY R J amp ZELTNER
P M (Orgs) Pragmatism its sources and prospects University of South California
Press 1981
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 39
SAPIR E The status of linguistics as a science Language v 5 n 4 p 207-214 1929
SELLARS W Conceptual change In PEARCE G amp MAYNARD P (Orgs) Conceptual
change Dordrecht D Reidel 1973
_____ Empirismo e filosofia da mente Com uma introduccedilatildeo de Richard Rorty e um guia
de estudos de Robert Brandom Petroacutepolis Vozes 2003
SIEMEK M J Husserl e a heranccedila da filosofia transcendental Siacutentese v 28 n 91 p 189-
202 2001
STROumlKER E Phaumlnomenologische studien Frankfurt am Main V Klostermann 1987
TUGENDHAT E Der wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger Berlin de Gruyter
1967
_____ Vorlesungen zur einfuumlhrung in die sprachanalytische Philosophie Frankfurt
am Main Suhrkamp 1976
ZILHAtildeO A Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem estudos sobre
Wittgenstein Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993
2
Encheiriacutedion Capiacutetulo I
Traduccedilotildees e Comentaacuterios
Aldo Dinucci 1
Alfredo Julien 2
Antonio Carlos Tarquiacutenio 3
O Encheiriacutedion termo que em grego significa ldquoadaga punhal arma
portaacutetil ou livro portaacutetil manualrdquo foi composto por Luacutecio Flaacutevio Arriano
de Nicomeacutedia4 tomando por base suas compilaccedilotildees das aulas de Epicteto
Consistindo em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do
Estoicismo tenha sempre ao alcance da matildeo os princiacutepios para enfrentar
as dificuldades da vida e vencecirc-las o Encheiriacutedion tornou ceacutelebre o nome
de Epicteto Seguem breves mas importantes traduccedilotildees e comentaacuterios
sobre o primeiro capiacutetulo do Encheiriacutedion de Epicteto A primeira traduccedilatildeo
comentada foi realizada por Aldo Dinucci e Alfredo Julien pesquisadores
que dedicaram alguns anos agrave traduccedilatildeo da obra culminando com uma
ediccedilatildeo em Coimbra da mesma pelos Classica Digitalia A segunda por
Antonio Carlos Tarquiacutenio filoacutesofo radicado em Satildeo Paulo que tem se
dedicado intensamente nas uacuteltimas deacutecadas ao estudo de Epicteto
publicando em 2017 o livro Uma filosofia do desapego a askesis de
desapropriaccedilatildeo epictetiana agrave luz da katharsis do Feacutedon de Platatildeo resultado
1 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
2 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)
3 Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)
4 Ca 86-160
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 41
de suas pesquisas de doutorado sobre o velho de Nicoacutepolis Imediatamente
abaixo temos o texto em grego estabelecido pela primeira vez por Boter
em 1999
[11] Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ ἡμῖν τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἐφ ἡμῖν μὲν
ὑπόληψις ὁρμή ὄρεξις ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα οὐκ ἐφ
ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα ἡ κτῆσις δόξαι ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα
ἔργα[12]καὶ τὰ μὲν ἐφ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα ἀκώλυτα παραπόδιστα
τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀσθενῆ δοῦλα κωλυτά ἀλλότρια[13] μέμνησο οὖν ὅτι
ἐὰν τὰ φύσει δοῦλα ἐλεύθερα οἰηθῇς καὶ τὰ ἀλλότρια ἴδια ἐμποδισθήσῃ
πενθήσεις ταραχθήσῃ μέμψῃ καὶ θεοὺς καὶ ἀνθρώπους ἐὰν δὲ τὸ σὸν
μόνον οἰηθῇς σὸν εἶναι τὸ δὲ ἀλλότριον ὥσπερ ἐστίν ἀλλότριον οὐδείς σε
ἀναγκάσει οὐδέποτε οὐδείς σε κωλύσει οὐ μέμψῃ οὐδένα οὐκ ἐγκαλέσεις
τινί ἄκων πράξεις οὐδὲ ἕν οὐδείς σε βλάψει ἐχθρὸν οὐχ ἕξεις οὐδὲ γὰρ
βλαβερόν τι πείσῃ [14] τηλικούτων οὖν ἐφιέμενος μέμνησο ὅτι οὐ δεῖ
μετρίως κεκινημένον ἅπτεσθαι αὐτῶν ἀλλὰ τὰ μὲν ἀφιέναι παντελῶς τὰ δ
ὑπερτίθεσθαι πρὸς τὸ παρόν ἐὰν δὲ καὶ ταῦτ ἐθέλῃς καὶ ἄρχειν καὶ
πλουτεῖν τυχὸν μὲν οὐδ αὐτῶν τούτων τεύξῃ διὰ τὸ καὶ τῶν προτέρων
ἐφίεσθαι πάντως γε μὴν ἐκείνων ἀποτεύξη δι ὧν μόνων ἐλευθερία καὶ
εὐδαιμονία περιγίνεται [15] εὐθὺς οὖν πάσῃ φαντασίᾳ τραχείᾳ μελέτα
ἐπιλέγειν ὅτι lsquoφαντασία εἶ καὶ οὐ πάντως τὸ φαινόμενονrsquo ἔπειτα ἐξέταζε
αὐτὴν καὶ δοκίμαζε τοῖς κανόσι τούτοις οἷς ἔχεις πρώτῳ δὲ τούτῳ καὶ
μάλιστα πότερον περὶ τὰ ἐφ ἡμῖν ἐστιν ἢ περὶ τὰ οὐκ ἐφ ἡμῖν κἂν περί τι
τῶν οὐκ ἐφ ἡμῖν ᾖ πρόχειρον ἔστω τὸ διότι lsquoοὐδὲν πρὸς ἐμέrsquo
Encheiriacutedion Capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Aldo Dinucci e
Alfredo Julien)
[11] Das coisas existentes algumas satildeo encargos nossos outras natildeo Satildeo
encargos nossos o juiacutezo o impulso o desejo a repulsa ndash em suma tudo quanto
seja accedilatildeo nossa Natildeo satildeo encargos nossos o corpo as posses a reputaccedilatildeo os
cargos puacuteblicos ndash em suma tudo quanto natildeo seja accedilatildeo nossa [12] Por
natureza as coisas que satildeo encargos nossos satildeo livres5 desobstruiacutedas6 sem
5 Eleutheros livre por oposiccedilatildeo a escravo Para Epicteto quem deseja o que natildeo eacute encargo seu necessariamente torna-se escravo pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso agrave coisa desejada (cf Diatribes I 419)
6 Akolytos adjetivo verbal de privaccedilatildeo da accedilatildeo relacionada ao verbo kolyo que significa ldquoafastar desviarrdquo adquirindo o sentido de ldquoimpedirrdquo Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to kolyon com o significado de ldquoobstaacuteculordquo
42 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
entraves7 As que natildeo satildeo encargos nossos satildeo deacutebeis8 escravas obstruiacutedas9
de outrem10 [13] Lembra entatildeo que se pensares11 livres as coisas escravas por
natureza e tuas as de outrem tu te faraacutes entraves12 tu te afligiraacutes13 tu te
inquietaraacutes14 censuraraacutes tanto os deuses como os homens Mas se pensares
teu unicamente o que eacute teu e o que eacute de outrem como o eacute de outrem ningueacutem
jamais te constrangeraacute15 ningueacutem te faraacute obstaacuteculos natildeo censuraraacutes
ningueacutem nem acusaraacutes quem quer que seja de modo algum agiraacutes
constrangido ningueacutem te causaraacute dano natildeo teraacutes inimigos pois natildeo seraacutes
persuadido em relaccedilatildeo a nada nocivo [14] Entatildeo almejando coisas de
tamanha importacircncia lembra que eacute preciso que natildeo te empenhes de modo
comedido mas que abandones completamente algumas coisas e por ora
deixes outras para depois Mas se quiseres aquelas coisas e tambeacutem ter cargos
e ser rico talvez natildeo obtenhas estas duas uacuteltimas por tambeacutem buscar as
primeiras e absolutamente natildeo atingiraacutes aquelas coisas por meio das
quaisunicamente resultam a liberdade e a felicidade16 [15] Entatildeo pratica dizer
prontamente a toda representaccedilatildeo bruta17 ldquoEacutes representaccedilatildeo e de modo
algum lteacutesgt o que se afigurardquo18 Em seguida examina-a e testa-a com essas
mesmas regras que possuis em primeiro lugar e principalmente se eacute sobre
ldquoimpedimentordquo Assim a-kolytos refere-se a algo para o que natildeo haacute impedimento quanto agrave sua obtenccedilatildeo sendo portanto ldquodesimpedidordquo
7 Aparapodistos optamos traduzir o termo por ldquosem entravesrdquo pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a accedilatildeo relacionada ao verbo podizo que significa ldquosujeitar os peacutes com travasrdquo referindo-se principalmente a armadilhas para animais Cf o substantivo feminino podistra que pode significar tanto ldquoarmadilha que prende pelos peacutesrdquo (Antologia Palatina 6 107) quanto ldquoteia de aranhardquo (Antologia Palatina 9 372)
8 Asthene privado de forccedila no sentido de ldquoforccedila fiacutesica vigorrdquo
9 Kolytos Cf nota acima sobre akolutos
10 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para qualificar o que eacute encargo nosso e o que natildeo eacute o que eacute encargo nosso eacute livre desobstruiacutedo sem entraves o que natildeo eacute encargo nosso eacute deacutebil escravo de outrem
11 Oio ldquopensarrdquo no sentido de ldquopresumirrdquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute ldquopressentir crer estimarrdquo
12 Empodizo significa literalmente ldquometer os peacutes em uma armadilhardquo
13 Pentheo verbo relacionado ao substantivo to penthos que siginifica ldquodor afliccedilatildeordquo
14 Tarasso significa primariamente ldquoremexerrdquo ldquoagitarrdquo no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compotildeem
15 Anankazo ldquoforccedilarrdquo ldquoconstrangerrdquo
16 Felicidade traduz eudaimoniacutea No contexto do paganismo grego daimoniacuteos eacute um adjetivo que qualifica tudo o que proveacutem da divindade ou eacute enviado por um deus Associado ao prefixo ldquoeṷrdquo (ldquobemrdquo no sentido de coisas boas) esse vocaacutebulo tem significaccedilatildeo proacutexima agrave de ldquobem-aventuranccedilardquo na acepccedilatildeo cristatilde
17 Trata-se do adjetivo trachys apresentado por Bailly (2000) com o significado de ldquoruderdquo adquirindo diversos sentidos dependendo do substantivo ao qual esteja ligado ldquoAacutesperordquo ao se tratar de uma pedra ldquopedregosordquo ao se referir a um rio ou a um terreno ldquoroucardquo ao qualificar um tipo voz ldquogrosseiro duro cruel violento e irasciacutevelrdquo ao se referir ao comportamento de algueacutem Simpliacutecio (Comentaacuterio ao Encheiriacutedion de Epicteto V 15) observa que tal representaccedilatildeo eacute chamada tracheiacutea (dura bruta) por ser contraacuteria agrave razatildeo tornando ldquoaacutesperardquo a vida Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por ldquoharshrdquo Gourinat (1998) por ldquopeacuteniblerdquo Garciacutea (1995) por ldquobrutardquo
18 Phainoacutemenon ldquoo que estaacute se manifestando ou se mostrandordquo particiacutepio presente meacutedio do verbo phaaino
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 43
coisas que satildeo encargos nossos ou natildeo E caso esteja entre as coisas que natildeo
sejam encargos nossos tem agrave matildeo que ldquoNada eacute para mimrdquo
A expressatildeo ephi hemin que ora traduzimos por ldquosob nosso encargordquo
ou ldquoencargo nossordquo natildeo possui equivalente direto que possa dar conta de
seu significado Literalmente poderiacuteamos traduzi-la por ldquoalgumas coisas
estatildeo sobre noacutes outras natildeordquo Henrique Murachco traduz expressatildeo
semelhante (to epi emoi) por ldquono que estaacute sobre mimrdquo no sentido ldquode
quanto a mimrdquo ldquono que me concernerdquo (2001 p 573) No caso do
Encheiridion de Epicteto a traduccedilatildeo poderia ser ldquoalgumas coisas nos
concernem outras natildeordquo Bailly (2000) citando a mesma expressatildeo
acentua a ideia de dependecircncia e de poder que ela expressa traduzindo-a
por ldquoautant qursquoil est em mon pouvoirrdquo enfatizando assim a ideia de
controle (cf Xenofonte Ciropeacutedia 54 11) A expressatildeo possui imagem
concreta e clara referindo-se a algo que eacute colocado sobre noacutes sustentado
por noacutes pois nos encontramos embaixo fornecendo seu apoio A opccedilatildeo
por ldquoencargo nossordquo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto
a isso que estaacute sobre noacutes (e do que somos a causa primaacuteria)
A expressatildeo eacute diferentemente vertida por diferentes tradutores
Oldfather a traduz por ldquothings under our controlrdquo (2000) White por
ldquowhat is up to usrdquo (1983) Gourinat por ldquochoses qui deacutependent de nousrdquo
(1998)
Como dissemos epi expressa uma relaccedilatildeo de dependecircncia Satildeo
portanto coisas que dependem de noacutes Como Epicteto diraacute na continuaccedilatildeo
do texto eacute preciso que nos concentremos sobre as coisas que estatildeo sob
nosso controle em trecircs sentidos Em relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo (phantasia)
retirando dela todo juiacutezo (hypolepsis) equivocado a partir da
compreensatildeo de que nada que natildeo depende de noacutes eacute por si mesmo um
bem ou um mal Em relaccedilatildeo ao impulso (horme) uma vez cientes de que
produzimos nosso bem e nosso mal eacute preciso moderar os impulsos e
encontrar o modo de agir segundo a natureza Em relaccedilatildeo ao desejo
(orexis) e agrave repulsa (ekklisis) partindo mais uma vez da compreensatildeo de
que nada externo eacute por si soacute um bem ou um mal eacute preciso que o desejo e
44 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
a repulsa se apliquem natildeo mais agraves coisas que natildeo dependem de noacutes
(sendo-nos necessaacuterio desejaacute-las como satildeo) mas agraves coisas que estatildeo sob
nosso controle
Traduzimos por juiacutezo o vocaacutebulo grego hypolepsis que eacute substantivo
relacionado ao verbo hypolambano que expressa a ideia de sucessatildeo e de
substituiccedilatildeo adquirindo os sentidos de ldquoreacuteplica resposta concepccedilatildeo e
pensamentordquo O vocaacutebulo ldquojuiacutezordquo empregado aqui para traduzir essa
noccedilatildeo deve ser entendido como um parecer ou uma opiniatildeo que orienta
nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta Vale a
pena ressaltar que no contexto deste capiacutetulo o vocaacutebulo estaacute associado
ao verbo oiocedil traduzido aqui por ldquopensarrdquo No capiacutetulo 20 do Encheiriacutedion
apresenta-se uma associaccedilatildeo clara entre hypolepsis e dogma (opiniatildeo) No
capiacutetulo 5 apresenta-se tambeacutem uma associaccedilatildeo entre dogma (opiniatildeo) e
phantasiacutea (representaccedilatildeo) por meio do verbo phainomai (afigurar-se) Eacute
interessante notar que o juiacutezo nesses exemplos envolve a ponderaccedilatildeo ndash
como a consideraccedilatildeo sobre se algo eacute livre ou escravo - mas tambeacutem
sentimentos relacionados agraves nossas recusas medos e desejos Oldfather
(2000) traduz hypolepsis por ldquoconceptionrdquo White (1993) por ldquoopinionrdquo
Gourinat (1998) por ldquojugementrdquo e Garciacutea (1995) por ldquojuiciordquo
A noccedilatildeo de phantasiacutea que ora traduzimos por representaccedilatildeo eacute de
fundamental importacircncia para a compreensatildeo da filosofia estoica por
relacionar-se tanto a questotildees loacutegicas quanto epistemoloacutegicas e eacuteticas
Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasiacutea uma
modificaccedilatildeo da faculdade diretriz eles divergem ao explicar essa mudanccedila
Para Lesses (1998 p 6) Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma
concepccedilatildeo ingecircnua de representaccedilatildeo mental segundo a qual as phantasiacuteai
perceptivas satildeo coacutepias de qualidades que os objetos representados
possuem (cf Dioacutegenes Laeacutercio 7504) Aleacutem disso Annas (1991 p 74-75)
compreende estar implicado nas observaccedilotildees de Crisipo que as phantasiacuteai
satildeo proposicionais ou articulaacuteveis em forma linguiacutestica Ora quanto agraves
alternativas para traduzirmos o termo phantasiacutea parece-nos que
impressatildeo estaacute mais proacuteximo de Cleanto que de Crisipo pois a metaacutefora
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 45
utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questatildeo eacute justamente
agrave da impressatildeo sobre a cera metaacutefora que eacute criticada por Crisipo por seu
caraacuteter imageacutetico A concepccedilatildeo de Crisipo sobre a phantasiacutea ndash adotada
desde entatildeo pelo Estoicismo ndash eacute que ela tem duas facetas uma sensiacutevel
(pois como dissemos trata-se de uma modificaccedilatildeo da faculdade diretriz)
e outra virtual (pois a essa modificaccedilatildeo eacute afixado um juiacutezo que descreve e
avalia aquilo que efetuou a modificaccedilatildeo) Assim sendo parece-nos que a
palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo (que possui de acordo com o Aureacutelio o sentido
filosoacutefico geral de ldquoconteuacutedo concreto apreendido pelos sentidos pela
imaginaccedilatildeo pela memoacuteria ou pelo pensamentordquo) serve para o nosso
propoacutesito e por ela traduziremos phantasiacutea
Traduzimos por lsquoimpulsorsquo o termo grego horme que eacute substantivo
relacionado ao verbo ornumi (ldquolevantar-serdquo) designando o primeiro bote
de um assalto ou ataque adquirindo os sentidos de elatilde e de impulso Entre
as traduccedilotildees consultadas para este trabalho a uacutenica exceccedilatildeo a ldquoimpulsordquo
como vocaacutebulo para traduzir horme eacute a opccedilatildeo de Oldfather (2000) que
emprega ldquochoicerdquo (ldquoescolhardquo) Horme deve ser entendido no contexto do
pensamento epictetiano como o iacutempeto para a accedilatildeo a tendecircncia para agir
desta ou daquela maneira diante de determinada coisa
Traduzimos por lsquodesejorsquo o termo grego orexis que eacute o nome da accedilatildeo
do verbo orego que apresenta o significado de ldquoestender ou tender na
direccedilatildeo de algordquo (por exemplo estender as matildeos para o ceacuteu ou para pedir
algo a algueacutem) de onde ldquodesejordquo ldquoapetiterdquo Eacute uma palavra difiacutecil para ser
transportada ao contexto cultural presente Embora sua traduccedilatildeo por
ldquodesejordquo seja corrente eacute preciso ter cautela com ela pois natildeo se deve
entender orexis no sentido do emaranhado de pulsotildees originadas em niacutevel
inconsciente que caracteriza a visatildeo moderna da subjetividade humana
Orexis descreve a accedilatildeo de tender em direccedilatildeo a algo Uma forma de
apreender da maneira mais precisa possiacutevel seu significado eacute ter em conta
que orexis se opotildee a ekklisis que expressa o movimento contraacuterio o de
afastar-se Para Epicteto desejamos as coisas que consideramos boas (cf
Diatribes I42-3)
46 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
lsquoRepulsarsquo eacute nossa escolha para traduzir eacutekklisis termo grego que
identifica a accedilatildeo de declinar expressando o movimento contraacuterio de klisis
que significa a accedilatildeo de inclinar-se Eacute empregado para descrever o
movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o decliacutenio de
um astro Oldfather (2000) White (1983) e Gourinat (1998) optaram
traduzi-lo por ldquoaversatildeordquo Garciacutea (1998) por ldquorechazordquo No Aureacutelio
ldquoaversatildeordquo apresenta os significados de ldquooacutedio rancor antipatiardquo que natildeo
cabem no presente caso Optamos entatildeo por ldquorepulsardquo para expressar a
ideia de repelir afastar ou evitar algo sem a conotaccedilatildeo de aversatildeo Para
Epicteto repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf Diatribes
I42-3)
Encheiriacutedion capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Antonio Carlos
Tarquiacutenio)
(1-1) Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes19 outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute
propriamente nosso20 julgamento de valor21 impulso para agir desejo
aversatildeo - em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa
alccedilada22 o corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos
- em uma palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem
propriamente (1-2) E as coisas que nos competem satildeo por natureza livres
sem impedimentos sem entraves e as que natildeo satildeo fracas escravas
impedidas de outrem (1-3) Lembra entatildeo que se consideras as coisas
escravas por natureza livres e as coisas alheias proacuteprias seraacutes impedido
estaraacutes triste e perturbado censuraraacutes tanto os deuses como tambeacutem os
homens Mas se consideras ser teu somente o teu e o alheio como eacute alheio
ningueacutem te obrigaraacute nem te impediraacute natildeo censuraraacutes a ningueacutem tampouco
acusaraacutes a algueacutem nenhuma accedilatildeo contra vontade ningueacutem te prejudicaraacute
natildeo teraacutes inimigo uma vez que ningueacutem te convenceraacute de algo danoso23 (1-
4) Lembra-te enfim de que aspirando coisas de tal tamanho24 natildeo eacute preciso
19 Satildeo de nossa alccedilada
20 Eacute de nossa competecircncia
21 Aceito a traduccedilatildeo de Pierre Hadot da palavra hypolepsis
22 Natildeo satildeo de nossa competecircncia natildeo satildeo propriamente nossos
23 Ou seja que tenha sofrido algo de danoso Ningueacutem nos convenceraacute de havermos sido prejudicados
24 Isto eacute tatildeo grandes Elevadas
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 47
se mover moderadamente para alcanccedilaacute-las25 mas umas abandonar
completamente e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois
Mas se queres tambeacutem essas coisas (isto eacute as elevadas e grandes) e mandar e
enriquecer talvez natildeo obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade) por
tambeacutem demandares as primeiras (as elevadas e grandes) erraraacutes o alvo
totalmente pelo menos daquelas (coisas) atraveacutes das quais tatildeo somente
dominarias a liberdade e a felicidade (1-5) Enfim exercita-te rapidamente em
acrescentar a toda fantasia26 que ldquoeacutes impressatildeo e de modo algum o que se
mostra (sendo)rdquo A seguir investiga-a e submeta-a a esses cacircnones os quais
tens e em primeiro lugar esse e sobretudo qual dos dois se a respeito das
coisas sobre noacutes ou a respeito das coisas que natildeo estatildeo sobre noacutes e se for algo
a respeito das que natildeo estatildeo sobre noacutes por isso esteja agrave matildeo ldquonada perante
a mimrdquo
O primeiro capiacutetulo do Enquiriacutedio de Epicteto enfeixa ideias preciosas
que auxiliam o acesso agrave compreensatildeo de sua proposta filosoacutefica Nele
encontramos pontos essenciais de sua doutrina de seu ensinamento Se
no seguimento da obra outros temas surgem e encontram em tempo
oportuno explicaccedilatildeo eacute nos seus cinco itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que
vemos traccedilado o panorama de pensamento do filoacutesofo estoico
Desde o iniacutecio do Enquiriacutedio de Epicteto vecirc-se o estabelecimento de
uma linha divisoacuteria que possui como principal objetivo demarcar a zona
do eu - do verdadeiro eu - distinguindo-a da regiatildeo em que se situam as
coisas em relaccedilatildeo estreita com o corpo Eis a afirmativa de Epicteto a este
respeito
Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute
propriamente nosso julgamento de valor impulso para agir desejo aversatildeo
- em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa alccedilada o
25 Tocaacute-las obtecirc-las
26 Optamos por traduzir phantasiacutea por fantasia em vez de usar os habituais termos ldquorepresentaccedilatildeordquo e ldquoimpressatildeordquo que carreiam consigo interpretaccedilotildees tatildeo incompatiacuteveis entre si que para utilizaacute-los se faria necessaacuteria uma elucidaccedilatildeo criacutetica de cada uma delas De acordo com Sexto Empiacuterico a traduccedilatildeo de phantasiacutea para ldquoimpressatildeordquo (typosis) eacute compatiacutevel com o pensamento de Cleantes conforme a metaacutefora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemocircnico agrave feiccedilatildeo de um sinete sobre a cera Jaacute Crisipo entende a he phantasiacutea ao modo de uma alteraccedilatildeo (heteroiosis) da alma Sexto Empiacuterico M VII 228-230 Doravante citado com a sigla SE
48 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos - em uma
palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem propriamente27
Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais agrave face dessa
tese epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses fama
riquezas inclusive nossos corpos natildeo devam ser situados no campo de
nossas preocupaccedilotildees habituais por natildeo nos pertencerem propriamente
Pois essas satildeo coisas que se no passado jaacute se procuravam hoje muito mais
Em contrapartida o desejar o julgar o agir e o evitar natildeo causam
indignaccedilatildeo como fazeres nossos apesar da descoberta nos uacuteltimos seacuteculos
do inconsciente que parece gerar consequecircncias seriacutessimas em torno das
faculdades aniacutemicas do homem
Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas ldquonatildeo
sobre noacutesrdquo e continuaraacute aparecendo principalmente nas Liccedilotildees de
Epicteto28 toda vez que ele se referir agrave distinccedilatildeo essencial em que figura o
campo de responsabilidade especiacutefica humana Vejamos por exemplo este
trecho das Liccedilotildees
Pois o corpo nos eacute estranho seus membros nos satildeo estranhos nossos teres
nos satildeo estranhos Se por conseguinte tu te prendes a alguma dessas coisas
como a alguma coisa pessoal receberaacutes o castigo que merece aquele que deseja
aquilo que lhe eacute estranho29
Se o corpo e seus amigos natildeo nos pertencem propriamente as obras
da alma satildeo nossas30 natildeo soacute como propriedades inalienaacuteveis mas
sobretudo porque satildeo livres desimpedidas e isentas de qualquer
obstaacuteculo como o Enquiriacutedio de Epicteto inicia separando esferas de
27 E I 1
28 Traduzo Epiktetoi diatribai por Liccedilotildees de Epicteto Seratildeo representadas com a sigla L
29 L IV 1 130-131
30 ldquoE as obras da alma satildeo o impulso para agir o impulso de se afastar o desejar o preparar o intentar o assentirrdquo L IV 11 6 O termo ldquoobras da almardquo demonstra que a real distinccedilatildeo eacute entre a psykhe e o corpo Ora as obras da alma satildeo as obras do hegemocircnico ldquoOs estoicos afirmam que o hegemocircnico eacute a parte mais alta da alma aquela que produz as fantasias os assentimentos as sensaccedilotildees as tendecircncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) 847 Aeacutecio IV 21 1-4 = Pseudo-Plutarque 903A12c-10 Crisipo Oeuvre Philosophique Doravante citado com a sigla Chrys OC
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 49
responsabilidade aquilo por que sou responsaacutevel daquilo pelo que natildeo sou
responsaacutevel nem sempre se consegue perceber a questatildeo de fundo por
traacutes da divisatildeo Entretanto quando Epicteto trata do assunto por outro
acircngulo notamos aquilo que estaacute em jogo na separaccedilatildeo a centralizaccedilatildeo da
vida humana nos valores da alma
Em uma declaraccedilatildeo visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto
se perguntando sobre quem no filoacutesofo do Jardim produziu seus escritos
deixou que sua barba crescesse e tambeacutem quem nele afirmou certa vez
viver seus uacuteltimos dias em estado de felicidade E conclui sua indagaccedilatildeo
com a pergunta A carne (sarks) ou a escolha (prohairesis)31 ou seja
se Epicuro escolheu escrever a prohairesis eacute aquele ato espiritual que o
define mesmo que sua filosofia negue isso Na passagem que segue se
clareia por inteira a noccedilatildeo de que o bem humano eacute por excelecircncia e
essencialmente de ordem espiritual Digo ldquoespiritualrdquo no sentido de
indicar o hegemocircnico em uma das suas funccedilotildees primordiais32 mesmo
sabendo se tratar de um pneuma corpoacutereo uma vez que o proacuteprio Epicteto
compara-o ao corpo utilizando termos antiteacuteticos
A divindade eacute uacutetil mas o bem tambeacutem eacute Entatildeo eacute verossiacutemil onde a essecircncia
da divindade laacute tambeacutem a do bem Entatildeo qual eacute a essecircncia da divindade A
carne Natildeo viria a ser Campo Natildeo viria a ser Fama Natildeo viria a ser A mente
a ciecircncia o pensamento correto Logo procura nessas coisas simplesmente a
essecircncia do bem33
Na introduccedilatildeo ao livro Le Manuel drsquoEacutepicteacutete Pierre Hadot se refere agrave
concentraccedilatildeo do eu qual exerciacutecio espiritual que se poderia derivar
diretamente da separaccedilatildeo sugerida por Epicteto Seria a separaccedilatildeo do eu
do natildeo-eu34 e natildeo discordamos
31 L II 23 21
32 O ato de escolher a prohairesis
33 L II 8 1-3
34 Na medida em que se potildee em operaccedilatildeo a distinccedilatildeo entre as coisas dependentes de noacutes e as coisas independentes de noacutes o eu eacute como que recolocado dentro de seus limites porque natildeo avanccedila mais sobre o que natildeo lhe diz respeito O eu reposicionado deixa para fora de si o natildeo-eu ou seja todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente
50 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Distinguir o que depende de noacutes e o que natildeo depende de noacutes a causalidade
interior e a causalidade exterior eacute finalmente distinguir o eu do natildeo-eu Eacute um
exerciacutecio de concentraccedilatildeo e de delimitaccedilatildeo do eu eu natildeo sou os objetos que
me circundam e que por vezes me satildeo caros esta marmita ou este cavalo ou
esta lacircmpada eu natildeo sou pode-se dizer os atributos gramaticais que o
Destino me impotildee rico ou pobre saudaacutevel ou doente senhor ou escravo
poderoso ou miseraacutevel eu natildeo sou os meus membros eu natildeo sou o meu corpo
nem a emoccedilotildees involuntaacuterias que podem emocionaacute-lo35
O que estaacute no cerne da cisatildeo preceituada por Epicteto eacute a fixaccedilatildeo de
um lugar o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se
voltar a fim de concentrar todos os seus esforccedilos Na verdade a
concentraccedilatildeo do eu demarca dois itineraacuterios bem definidos um em que a
parte dirigente da alma36 eacute assentada a tiacutetulo de oficina e outro em que eacute
definida a principal tarefa do homem ou seja o seu ofiacutecio
Oficina e ofiacutecio juntam-se num mesmo caminho espiritual Enquanto
a primeira diz respeito ao princiacutepio diretor da alma ao hegemocircnico como
lugar de trabalho a segunda se define como o proacuteprio trabalho no cuidado
dele
Referecircncias
ANNAS J Hellenistic philosophy of mind Berkeley University of California Press 1991
BAILLY A Le grand dictionnaire grecfranccedilais Paris Hachette 2000
DINUCCI A O manual de Epicteto aforismos da sabedoria estoica Satildeo Cristoacutevatildeo
EdiUFS 2007
DINUCCI A JULIEN A Epicteto testemunhos e fragmentos Satildeo Cristoacutevatildeo EdiUFS
2008
35 Hadot (2000 p 44-45) Cf L III 24 56 IV 1 129-130
36 Crisipo se refere ao hegemocircnico como o verdadeiro ldquoeurdquo Cf Galeno Sobre as doutrinas de Hipoacutecrates e de Platatildeo II 2 9 1-11 6
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 51
_____ O Encheiridion de Epicteto Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra
2014
DIOacuteGENES LAEacuteRCIO Lives of eminent philosophers vol I IITrad R D Hicks Harvard
Loeb Classical Library 1925
EPICTETO The Encheiridion of Epictetus and its three christian adaptations Trad
G Boter Leiden Brill 1999
_____ Epictetus EncheiridionTrad G Boter Berlim De Gruyter 2007
_____ Manual Trad P O Garciacutea Madrid Editorial Gredos 1995
EPICTETO Enchiridion Trad G Long Nova York Prometheus 1991
_____ Manuel drsquoEacutepictegravete Trad P Hadot Paris LGF 2000
_____ Penseacutees (Manuel) in extenso In Les stoiciumlens textes choisis Org J Brun Paris
PUF 1998 p 118-39
_____ The discourses of Epictetus as reported by Arrian (Books I II III amp IV)
fragments Encheiridion Trad W A Oldfather Cambridge Loeb 2000
_____ The discourses of Epictetus with the Enchiridion and fragments Trad George
Long Londres George Bell amp Sons 1877
_____ Epictetus the handbook the EncheiriacutedionTrad N P White Cambridge
Hacket 1983
LESSES G Content cause and stoic impressions Phronesis XLIII1 1998 p 2-24
MAacuteXIMO PLANUDES Greek anthology vol I IIITrad W R Paton Harvard Loeb
Classical Library 1916-8
MURACHCO Henrique Liacutengua grega visatildeo semacircntica loacutegica orgacircnica e funcional Satildeo
Paulo Discurso EditorialEditora Vozes 2001
SEXTO EMPIacuteRICO Against the professors Trad R G Bury Harvard Loeb 1949
SCHENKL H Epictetus dissertationiones ab Arriani digestae Stutgart Taubner 1965
52 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
SCHWEIGHAUSER Epicteteae philosophiae monumenta 3 vol Leipsig Weidmann
1800
XENOFONTE Cyropaedia vol I II Symposium Apology Trad Walter Miller Harvard
Loeb Classical Library 1914
_____ Memorabilia oeconomicus Symposium ApologyTrad E C Marchant O J
ToddHarvard Loeb Classical Library 1923
3
A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva
da Filosofia Analiacutetica da Mente
Taacuterik de Athayde Prata 1
Alguns Problemas a Respeito da Consciecircncia
Enquanto escrevo estas palavras estou consciente Isso significa que
estou desperto e assim capaz de interagir com meu ambiente imediato
atraveacutes de percepccedilotildees bem como de accedilotildees Sinto a temperatura desta sala
ao mesmo tempo em que vejo as letras surgindo na tela do computador
enquanto sinto a textura das teclas ao deslizar meus dedos sobre elas
Assim entendida minha consciecircncia eacute algo que diz respeito ao
funcionamento de meu organismo e dessa forma pertence a aqueles que
David Chalmers chamou de ldquoproblemas faacuteceisrdquo (easy problems) isto eacute
problemas que se referem a (i) funccedilotildees de modo que se precisa apenas
buscar o (ii) mecanismo que as desempenha (cf CHALMERS 1995 p
202) De acordo com ele ldquoPara uma explanaccedilatildeo do sono e da vigiacutelia seraacute
suficiente uma adequada explanaccedilatildeo neurofisioloacutegica dos processos
responsaacuteveis pelo comportamento contrastante do organismo nesses
estadosrdquo (CHALMERS 1995 p 201) E a diferenccedila entre sono e vigiacutelia eacute
constitutiva da consciecircncia como uma propriedade de um organismo
Mas se eu enquanto organismo posso ser qualificado como
ldquoconscienterdquo natildeo eacute difiacutecil perceber que haacute um uso plenamente legiacutetimo
desse adjetivo em relaccedilatildeo agrave minha vida psicoloacutegica em seus detalhes mais
1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
54 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
especiacuteficos ou seja em relaccedilatildeo a meus estados eventos e processos
mentais entidades psiacutequicas que podem tambeacutem ser conscientes Minhas
percepccedilotildees (da temperatura da sala das letras na tela da textura das
teclas) minhas intenccedilotildees (de digitar certas palavras de escrever um texto
para um evento acadecircmico) assim como meus pensamentos (p ex a
respeito do tema filosoacutefico da consciecircncia) ou minhas eventuais emoccedilotildees
(como a ansiedade de concluir o texto a tempo) tudo isso satildeo fenocircmenos
mentais que podem ou natildeo se tornar conscientes
Entra aqui em cena a distinccedilatildeo proposta por David Rosenthal entre
(a) consciecircncia de criatura (que seria um tema mais permeaacutevel agrave pesquisa
empiacuterica do funcionamento orgacircnico) e (b) consciecircncia de estado (que
seria um tema mais especiacutefico da investigaccedilatildeo filosoacutefica)2 Eacute interessante
notar que Rosenthal eacute um filoacutesofo que assume uma perspectiva anti-
cartesiana no sentido de recusar a ideia defendida pelo filoacutesofo francecircs
da consciecircncia como a essecircncia da mente3 Para ele natildeo haacute grande
dificuldade para se perceber que diversos estados mentais existem
desprovidos de consciecircncia por exemplo quando ldquosabemos sem que nos
seja dito o que outra pessoa estaacute pensando ou sentindo E algumas vezes
sabemos isso mesmo quando a pessoa na verdade natildeo estaacute ciente [aware]
pelo menos a princiacutepio de ter esses sentimentos e pensamentosrdquo
(ROSENTHAL 1986 p 329)
Uma visatildeo como essa segundo a qual os fenocircmenos mentais satildeo em
si mesmos inconscientes tem para Rosenthal a importante vantagem de
2 ldquoDois assuntos satildeo frequentemente confundidos nas discussotildees sobre a consciecircncia Uma questatildeo eacute o que eacute para um estado mental ser consciente Supondo que nem todos os estados mentais satildeo conscientes noacutes queremos saber como os estados conscientes se diferenciam daqueles que natildeo satildeo E ainda que todos os estados mentais fossem conscientes noacutes ainda perguntariacuteamos em que consiste a sua consciecircncia Denominamos essa a questatildeo da consciecircncia de estado Esse seraacute meu principal tema no texto que segue Mas noacutes natildeo descrevemos apenas estados mentais como sendo conscientes ou natildeo noacutes tambeacutem atribuiacutemos consciecircncia a criaturas Assim existe uma segunda questatildeo a questatildeo sobre o que eacute para uma pessoa ou outra criatura ser consciente ou seja como criaturas conscientes se diferenciam daquelas que natildeo satildeo conscientes Denominamos esta a questatildeo da consciecircncia de criaturardquo (ROSENTHAL 1997 p 729)
3 Descartes caracterizou o pensamento para ele a propriedade essencial do mental como ldquotudo quanto estaacute de tal modo em noacutes que somos imediatamente conscientes [consci]rdquo (DESCARTES 1979 p 169 [AT VII p 160 AT IX p 124]) E em conformidade a isso ele entendeu que ldquonenhum pensamento pode existir em noacutes do qual nos natildeo estejamos conscientes [fit conscia] no exato momento em que ele existe em noacutesrdquo (cf AT VII p 246 AT IX p 190) Os nuacutemeros romanos datildeo as referecircncias nos volumes em latim (volume VII) e em francecircs (volume IX) da ediccedilatildeo completa das obras de Descartes feita por Charles Adam e Paul Tannery (AT)
Taacuterik de Athayde Prata | 55
possibilitar uma explanaccedilatildeo informativa da consciecircncia como uma
propriedade de estados mentais pois se a consciecircncia jaacute caracteriza de
saiacuteda todos os fenocircmenos psiacutequicos como pensava Descartes ldquotoda
tentativa de explanar a consciecircncia formulando condiccedilotildees necessaacuterias e
suficientes para um estado mental ser consciente vatildeo fracassar
automaticamente Se a consciecircncia jaacute estaacute embutida na mentalidade toda
explanaccedilatildeo seraacute natildeo informativardquo (ROSENTHAL 1986 p 330) E eu
acrescentaria que essa perspectiva tem a vantagem adicional de ser
compatiacutevel com os incontaacuteveis e no meu entender muito convincentes
indiacutecios de que a maior parte de nossa vida mental ocorre
independentemente da consciecircncia (cf por exemplo SEARLE 1992 p
164 1997 p 236 2004 p 244-45)
Entretanto esse tipo de perspectiva sobre a consciecircncia que a
considera natildeo essencial para o psiacutequico natildeo foi aceita por importantes
filoacutesofos do seacuteculo passado entre os quais se encontra Jean-Paul Sartre
(1905-1980) um dos mais influentes intelectuais do seacuteculo XX que
produziu uma obra de enorme abrangecircncia se estendendo desde a
escritura em diversos gecircneros literaacuterios passando pela filosofia pelos
textos de cunho poliacutetico4 e que na juventude empreendeu
interessantiacutessimas reflexotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia e os
fundamentos da psicologia5 Em sua mais importante obra anterior a O
ser e o nada (1943) o livro O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da
imaginaccedilatildeo (1940) Sartre (1996 p 36) afirma sem reservas que ldquoa
existecircncia de um fenocircmeno psiacutequico e o sentido que ele tem para a
consciecircncia satildeo uma coisa soacuterdquo o que o leva admitir em nota de rodapeacute que
ldquoessas constataccedilotildees nos obrigam a rejeitar inteiramente a existecircncia de um
inconscienterdquo (SARTRE 1996 p 36 nota no 13)
4 Como afirma Annie Cohen-Solal (2007 p 16) a mais conhecida bioacutegrafa de Sartre ele ldquoabordou todos os domiacutenios da escrita (romance novela filosofia teatro cinema biografia autobiografia ensaio criacutetico reportagem jornaliacutestica canccedilatildeo entre outros)rdquo
5 Em uma entrevista concedida jaacute no final de sua vida Sartre declarou que no iniacutecio de sua carreira filosoacutefica ldquoo que eu chamava de lsquofilosofiarsquo era pura e simplesmente psicologiardquo (COHEN-SOLAL 1986 p 90)
56 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Apesar das diversas passagens de sua obra que atacam a ideia de
inconsciente6 existem inteacuterpretes que questionam se Sartre de fato estava
comprometido com a rejeiccedilatildeo a essa ideia (cf GENNARO 2002 p 299-301)
Mas o fato eacute que ela natildeo eacute (pelo menos agrave primeira vista) compatiacutevel com sua
perspectiva pois de acordo com ele quando a consciecircncia (de algo) e uma
autoconsciecircncia impliacutecita natildeo satildeo concebidas como unificadas somos
confrontados com graves problemas No meu entendimento Sartre parte da
constataccedilatildeo de que introduzir uma dualidade na consciecircncia a torna
incompreensiacutevel pois leva a teorias insustentaacuteveis Em termos sumaacuterios a
dualidade nos deixa diante de um dilema
Ou paramos em um termo qualquer da seacuterie conhecido ndash cognoscente
conhecido ndash cognoscente conhecido pelo cognoscente etc e entatildeo a totalidade
do fenocircmeno cai no desconhecido quer dizer esbarramos sempre com uma
reflexatildeo natildeo consciente de si como derradeiro termo ndash ou entatildeo afirmamos a
necessidade de regressatildeo ao infinito (idea ideae ideae etc) o que eacute absurdo
(SARTRE 1943 p 18-19 SARTRE 1997 p 23)
Se haacute uma dualidade entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a
autoconsciecircncia entatildeo ou (I) esta autoconsciecircncia eacute inconsciente ou (II) a
autoconsciecircncia exige (para se tornar consciente) uma outra consciecircncia a
respeito dela que por sua vez exige outra e assim ad infinitum dois
resultados que parecem insatisfatoacuterios ndash pois uma consciecircncia
inconsciente parece uma contradiccedilatildeo em termos7 e um regresso ao
6 Jaacute em A transcendecircncia do ego (1937) seu primeiro texto escrito sob a influecircncia husserliana ele escreveu ldquoSem mesmo se dar conta os teoacutericos do amor-proacuteprio supotildeem que o refletido eacute anterior original e dissimulado no inconsciente Eacute penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipoacutetese Mesmo se o inconsciente existisse o que nos faria acreditar ser ele o depositaacuterio de espontaneidades da forma refletida A definiccedilatildeo do refletido natildeo eacute a do que eacute colocado por uma consciecircnciardquo (SARTRE 1966 p 40-41 SARTRE 2010 p 198-99)
7 Eacute interessante notar que Franz Brentano um dos mais importantes pensadores da virada do seacuteculo XX (JACQUETTE 2004 p 1) autor que sem duacutevida atraveacutes de sua influecircncia sobre Husserl estaacute na raiz de muitas das concepccedilotildees de Sartre natildeo concordava com a visatildeo de que o inconsciente eacute uma noccedilatildeo contraditoacuteria apesar de Brentano ter sido um ferrenho opositor dessa noccedilatildeo Nas palavras de Brentano ldquoAlgumas pessoas iriam apenas balanccedilar a cabeccedila diante dessa questatildeo Supor uma consciecircncia inconsciente parece a elas absurdo Mesmo eminentes psicoacutelogos como por exemplo Locke e John Stuart Mill consideravam essa ideia uma contradiccedilatildeo direta Mas algueacutem que presta atenccedilatildeo agraves determinaccedilotildees feitas a seguir dificilmente iraacute julgar assim Esse algueacutem reconheceraacute que quem levanta a questatildeo sobre a existecircncia de uma consciecircncia inconsciente natildeo estaacute sendo ridiacuteculo como algueacutem que perguntasse se existe um vermelho natildeo vermelho Uma consciecircncia inconsciente eacute tatildeo pouco uma contraditio in adjecto quanto uma visatildeo natildeo vistardquo (BRENTANO 1924 p 143-4 [102-3])
Taacuterik de Athayde Prata | 57
infinito significa que a consciecircncia permanece natildeo explicada (aleacutem do fato
de que a proacutepria ideia de que haacute um regresso infinito parece insustentaacutevel
ndash de modo que a concepccedilatildeo comprometida com um regresso se mostra
absurda) Eacute interessante notar que essas dificuldades ndash (I) e (II) ndash satildeo
aplicaacuteveis ao tipo de teoria proposta por Rosenthal Ao conceber a
consciecircncia de um estado mental como decorrente do monitoramento
deste estado por um outro estado mental a respeito do primeiro
Rosenthal se expotildee ao perigo do regresso ao infinito e eacute para evitar esse
regresso que ele concebe o estado mental de ordem superior como
inconsciente o que evidentemente o leva a recair no primeiro termo do
dilema apontado por Sartre o pensamento que gera a consciecircncia do
estado mental de niacutevel inferior eacute ele proacuteprio inconsciente8
Devido a essas dificuldades Sartre conclui que ldquoConsciecircncia de si natildeo
eacute dualidade Se quisermos evitar regressatildeo ao infinito tem de ser relaccedilatildeo
imediata e natildeo cognitiva de si a sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24)
Exatamente por isso ele opta por colocar o ldquoderdquo da expressatildeo ldquoconsciecircncia
de sirdquo entre parecircnteses de modo a indicar que essa partiacutecula eacute empregada
por imposiccedilatildeo da gramaacutetica (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25) e natildeo
deve ser entendida como sugerindo uma dualidade entre a lsquoconsciecircnciarsquo e
o lsquosirsquo E a ideia da consciecircncia como uma relaccedilatildeo imediata a si mesma
constitui aquele que Kathleen Wider (1997 p 1) considera ser a alegaccedilatildeo
fundamental de Sartre sobre a consciecircncia a saber a alegaccedilatildeo de que
ldquotoda consciecircncia eacute por sua proacutepria natureza autoconsciecircnciardquo No ensaio
sobre A transcendecircncia do ego Sartre defendera que ldquoo tipo de existecircncia
da consciecircncia implica ser consciecircncia de si E ela toma consciecircncia de si
na exata medida em que eacute consciecircncia de um objeto transcendenterdquo
(SARTRE 1966 p 23-4 2010 p 188) Tomando o exemplo de uma
percepccedilatildeo ndash ou seja nos termos dele uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo ndash
Sartre afirma em O ser e o nada que a consciecircncia de si enquanto uma
8 A respeito da teoria de Rosenthal sobre a consciecircncia de estados mentais Uriah Kriegel afirma ldquoO estado de segunda ordem S2 em virtude do qual [o estado de primeira ordem] S1 eacute consciente eacute ele mesmo um estado inconsciente Assim o fato de que S2 representa o eu natildeo implica que por ter S2 o eu eacute consciente de si mesmo pois S2 natildeo eacute uma representaccedilatildeo consciente do eurdquo (KRIEGEL 2002 p 522-23) Cf tambeacutem Kriegel (2005 p 28)
58 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoconsciecircncia espontacircneardquo da percepccedilatildeo ldquoeacute constitutiva de minha
consciecircncia perceptivardquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24) e tomando o
exemplo da accedilatildeo de contar alguns cigarros afirma que ldquoa consciecircncia natildeo
teacutetica de contar eacute condiccedilatildeo mesma de minha atividade aditivardquo (SARTRE
1943 p 19 1997 p 24)
Mas se a assunccedilatildeo de uma dualidade na consciecircncia nos leva a um
dilema entre duas posiccedilotildees insustentaacuteveis a concepccedilatildeo por assim dizer
unitaacuteria da consciecircncia que a entende como uma unidade indissoluacutevel
entre uma (i) consciecircncia de algo e uma (ii) autoconsciecircncia natildeo estaacute livre
de suas proacuteprias dificuldades A concepccedilatildeo sartriana que vecirc essa
autoconsciecircncia como constitutiva ou como condiccedilatildeo de toda consciecircncia
intencional de objetos parece tornar a consciecircncia um fenocircmeno
misterioso inexplicaacutevel pois natildeo conseguimos formar uma noccedilatildeo clara de
qual seja a sua estrutura jaacute que ldquoa consciecircncia de si que caracteriza toda
consciecircncia de algo parece estar de algum modo misturada a esta
consciecircncia de algo de maneira que natildeo eacute nada faacutecil discerni-lasrdquo (PRATA
2017 p 460) e se essas noccedilotildees natildeo podem ser discernidas natildeo eacute possiacutevel
articular uma explicaccedilatildeo do que seja propriamente a consciecircncia
Consciecircncia Posicional e Consciecircncia Natildeo Posicional
Antes de examinar a dificuldade de explicar a consciecircncia tal como
concebida por Sartre eacute importante compreender uma distinccedilatildeo
importante proposta por ele a distinccedilatildeo entre (i) a consciecircncia posicional
ou teacutetica (cf SARTRE 1966 p 28 2010 p 191) por um lado e (ii) a
consciecircncia natildeo posicional (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou natildeo
teacutetica (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) por outro lado A consciecircncia
posicional eacute aquela que potildee um objeto de determinado modo Por exemplo
uma consciecircncia perceptiva potildee seu objeto como existente jaacute que a
percepccedilatildeo se articula enquanto apreensatildeo de algo que existe previamente
a ela ao passo que uma consciecircncia em imagem potildee seu objeto
(imaginado) de diferentes formas (p ex como ausente ou como
Taacuterik de Athayde Prata | 59
inexistente ndash cf SARTRE 1996 p 26) que pressupotildeem que a consciecircncia
eacute a criadora dessa imagem mental E eacute importante notar que o que cada
consciecircncia potildee eacute um objeto que portanto eacute concebido implicitamente
como algo que transcende a consciecircncia existindo para aleacutem de toda
consciecircncia que se possa ter dele9 Jaacute a consciecircncia natildeo posicional natildeo potildee
um objeto pois ela eacute um tipo especial de relaccedilatildeo que natildeo se volta para algo
contra-posto (ob-jectum) agrave consciecircncia mas eacute uma relaccedilatildeo desta
consciecircncia consigo mesma (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)
A respeito dessa distinccedilatildeo a importante inteacuterprete Kathleen Wider
entende que as duas formas de consciecircncia a posicional e a natildeo posicional
podem ser elucidadas em termos do foco da atenccedilatildeo do sujeito consciente
em cada caso enquanto a consciecircncia posicional implica em uma atenccedilatildeo
focada em um objeto (distinto da proacutepria consciecircncia) a consciecircncia natildeo
posicional apreende aquilo em que o sujeito natildeo concentra a sua atenccedilatildeo
Nas palavras de Wider (1997 p 41)
Por um lado qualquer coisa que cai no campo de ciecircncia [awareness] de
algueacutem e para a qual sua atenccedilatildeo estaacute direcionada eacute um objeto que eacute posto
pela consciecircncia Por isso Sartre chama a consciecircncia desse objeto de
consciecircncia teacutetica ou posicional Por outro lado algueacutem tem apenas uma
consciecircncia natildeo teacutetica ou natildeo posicional de qualquer coisa que cai em seu
campo de ciecircncia mas ao qual ele natildeo estaacute presentemente prestando atenccedilatildeo
Se percebo um objeto ou imagino uma paisagem posiciono essa
referecircncia transcendente agrave minha consciecircncia de determinada maneira ndash
como existente no caso da percepccedilatildeo ou como p ex existente em outro
lugar no caso da imaginaccedilatildeo ndash e minha atenccedilatildeo eacute absorvida por essa
referecircncia transcendente Mas ao mesmo tempo em que minha atenccedilatildeo se
absorve na coisa ndash percebida ou imaginada ndash eu apreendo implicitamente
minha proacutepria consciecircncia perceptiva ou imaginativa pois se percebo
apreendo implicitamente ndash na periferia da atenccedilatildeo ndash minha percepccedilatildeo
9 De acordo com Sartre haacute ldquoalgo de excessivo no mundo das lsquocoisasrsquo a cada instante haacute sempre infinitamente mais do queo que podemos ver para esgotar a riqueza de minha percepccedilatildeo atual seria necessaacuterio um tempo infinitordquo (SARTRE 1996 p 22)
60 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
como passiva ao passo que se imagino apreendo implicitamente minha
imaginaccedilatildeo como criadora (cf PRATA 2016 p 81-82) Essa apreensatildeo
impliacutecita pode ser transformada em uma consciecircncia posicional de
consciecircncia ndash uma consciecircncia posicional da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
Mas nesse caso estamos diante de uma reflexatildeo ou seja uma consciecircncia
reflexiva (cf abaixo)
A Opacidade da Consciecircncia na Teoria de Sartre
A avaliaccedilatildeo de que a teoria de Sartre natildeo eacute capaz de fornecer uma
explicaccedilatildeo da consciecircncia parece ser confirmada pela maneira como ele
em diversas passagens se refere ao fenocircmeno da consciecircncia atraveacutes de
metaacuteforas o que de fato sugere que ele natildeo dispunha de conceitos claros
sobre a estrutura da consciecircncia Penso que a necessidade do uso de
metaacuteforas surge de uma estrutura conceitual obscura como encontramos
em determinada passagem de O ser e o nada na qual apoacutes afirmar a
autoconsciecircncia ldquonatildeo teacuteticardquo10 como constitutiva de todo ato mental (como
uma operaccedilatildeo de contar) nega que isso implique um ciacuterculo vicioso mas
se exprime em termos relativamente nebulosos
Contudo natildeo haacute esse ciacuterculo vicioso ou se preferirmos eacute da proacutepria natureza
da consciecircncia existir ldquoem ciacuterculordquo O que se pode exprimir assim toda existecircncia
consciente existe como consciecircncia de existir Compreendemos agora porque a
consciecircncia primeira de consciecircncia natildeo eacute posicional eacute uma soacute com [un avec] a
consciecircncia da qual eacute consciecircncia (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)
A autoconsciecircncia eacute una com a consciecircncia de algo a respeito da qual
ela eacute e justamente essa unidade parece tornar o fenocircmeno opaco a uma
explicaccedilatildeo conceitual E logo em seguida ele se exprime em termos que
tornam essa opacidade ainda mais flagrante Nas palavras de Sartre
10 Conforme discutido acima uma consciecircncia ldquonatildeo-teacuteticardquo (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) equivale a uma consciecircncia ldquonatildeo-posicionalrdquo (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou seja trata-se de uma consciecircncia que natildeo potildee seu objeto como algo distinto de si mesma (cf SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)
Taacuterik de Athayde Prata | 61
Natildeo haacute antes uma consciecircncia que recebesse depois [grifado no original] a
afecccedilatildeo ldquoprazerrdquo tal como se colore a aacutegua ndash do mesmo modo como natildeo haacute
antes um prazer (inconsciente ou psicoloacutegico) que recebesse depois a
qualidade de consciente como um feixe de luz Haacute um ser indivisiacutevel
indissoluacutevel [grifo meu] ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas
qualidades como seres menores mas um ser que eacute existecircncia de ponta a ponta
(SARTRE 1943 p 21 1997 p 26)
Aqui ele rejeita a ideia de que a relaccedilatildeo entre a (i) consciecircncia de algo
e a (ii) autoconsciecircncia seja comparaacutevel agrave relaccedilatildeo entre um sujeito e seu
predicado fazendo dela um ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo cuja
compreensatildeo se torna muito difiacutecil Desse modo natildeo parece restar
alternativa para Sartre aleacutem de recorrer a metaacuteforas para exprimir esse
modo de existecircncia peculiar da consciecircncia como quando ele afirma que a
autoconsciecircncia
Natildeo deve ser considerada uma nova consciecircncia mas o uacutenico modo de
existecircncia possiacutevel para uma consciecircncia de alguma coisa Assim como um
objeto extenso estaacute obrigado a existir segundo as trecircs dimensotildees tambeacutem uma
intenccedilatildeo um prazer uma dor natildeo poderiam existir exceto como consciecircncia
imediata de si mesmos (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25 grifado no original)
Neste trecho o modo de existecircncia da consciecircncia (enquanto
essencialmente marcada por uma autoconsciecircncia) eacute simplesmente
comparado a um fato bruto a saber o de que objetos espaciais
necessariamente existem nas trecircs dimensotildees E jaacute anos antes no ensaio
sobre A transcendecircncia do ego ele se expressara em termos semelhantes
ao dizer que o fato de a consciecircncia irrefletida ser consciecircncia de ser
consciecircncia de um objeto eacute ldquoa lei de sua existecircnciardquo (SARTRE 1966 p 24
2010 p 188-89 grifo meu)
Vejamos agora de modo mais detalhado a maneira como Sartre
concebe a consciecircncia atraveacutes de uma segunda distinccedilatildeo fundamental a
distinccedilatildeo entre (arsquo) consciecircncia irrefletida tida por ele como a forma
fundamental e (brsquo) consciecircncia reflexiva tida por ele como derivada
62 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Consciecircncia Irrefletida e Consciecircncia Reflexiva
Para articular adequadamente a relaccedilatildeo entre a consciecircncia e o eu no
esforccedilo de negar a noccedilatildeo husserliana de um eu transcendental Sartre
desenvolveu uma distinccedilatildeo entre (arsquo) a consciecircncia irrefletida (irreacutefleacutechie)
a forma mais fundamental originaacuteria e (brsquo) a consciecircncia reflexiva
(reacuteflexive) derivada da primeira na qual o fenocircmeno do ldquoeurdquo teria sua
origem (cf SARTRE 1966 p 37 2010 p 196) Na consciecircncia reflexiva
temos duas manifestaccedilotildees de consciecircncia11 a consciecircncia reflexionante
(reacutefleacutechissante) e a consciecircncia refletida (reacutefleacutechie) onde uma se debruccedila
sobre a outra colocando esta uacuteltima como seu objeto Entretanto essa
forma de consciecircncia (cindida entre duas manifestaccedilotildees) natildeo poderia ser
a forma mais fundamental pois a consciecircncia reflexionante que faz da
consciecircncia refletida um objeto jaacute eacute uma consciecircncia (mesmo quando essa
consciecircncia reflexionante natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo ulterior o que eacute
sempre possiacutevel ndash cf SARTRE 1966 p 29 2010 p 191) Portanto deve
haver algo nela (assim como tambeacutem nas manifestaccedilotildees de consciecircncia
voltadas para objetos exteriores) que jaacute a torne consciecircncia
Isso leva Sartre a articular sua concepccedilatildeo a respeito da consciecircncia
irrefletida a consciecircncia que natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo que se investe
completamente no visar um objeto para aleacutem dela proacutepria e eacute nesse
contexto que surge a tese basilar da teoria de Sartre a respeito da
consciecircncia (cf WIDER 1997 p 1) que podemos designar como a tese da
autoreferencialidade da consciecircncia irrefletida que pode ser formulada
nos seguintes termos ldquotoda consciecircncia posicional do objeto eacute ao mesmo
tempo consciecircncia natildeo posicional de sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p
24)12 Eacute exatamente por isso que a consciecircncia irrefletida eacute por si mesma
consciecircncia independentemente da reflexatildeo pois a consciecircncia irrefletida
11 Temos aqui um uso de ldquoconsciecircnciardquo que se refere a cada episoacutedio particular de vivecircncia consciente (cf SARTRE 1996 p 13) isto eacute nesse sentido cada episoacutedio de percepccedilatildeo cada episoacutedio de imagem mental cada episoacutedio de emoccedilatildeo eacute uma consciecircncia Esse uso eacute diferente de um outro aceito por sartre um uso mais globalizante no qual ldquoconsciecircnciardquo se refere agrave ldquomocircnada e o conjunto de suas estruturas psiacutequicasrdquo (SARTRE 1996 p 13)
12 Sartre caracteriza a noccedilatildeo de ldquoposicionalrdquo nos seguintes termos ldquoToda consciecircncia eacute posicional na medida em que se transcende para alcanccedilar um objeto e ela esgota-se nessa posiccedilatildeo [position] mesmardquo (SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)
Taacuterik de Athayde Prata | 63
(na medida em que eacute intencional) eacute uma relaccedilatildeo com um objeto
transcendente a ela que eacute simultaneamente uma relaccedilatildeo a si mesma
Para que se possa construir uma compreensatildeo teoacuterica adequada dessa
autoconsciecircncia preacute-reflexiva tal como concebida por Sartre eacute necessaacuterio no
meu modo de entender um modelo no qual os elementos constituintes dessa
autoconsciecircncia possam ser conceitualmente discernidos ao mesmo tempo
em que a sua unidade por assim dizer orgacircnica se mostre de maneira
inteligiacutevel Seguindo uma indicaccedilatildeo do professor Andreacute Leclerc13 me
proponho a investigar o modelo integrativo da consciecircncia articulado por
Uriah Kriegel para verificar se ele pode servir como um modelo adequado
para se compreender a teoria sartriana da consciecircncia (de) si
O Modelo Integrativo de Kriegel
Kriegel articula o seu modelo integrativo na tentativa de naturalizar
aquilo que ele denomina de ldquocaraacuteter subjetivordquo da experiecircncia consciente
visto por ele como um aspecto constituinte daquilo que ele chama de
ldquocaraacuteter fenomenalrdquo dessa experiecircncia Esse caraacuteter fenomenal pensado por
Kriegel corresponde a aquilo que Thomas Nagel (1974 p 436 2005 p 247)
chamou de subjetividade a saber lsquoo modo como eacute vivenciar um estado
mental x para a criatura que o vivenciarsquo Kriegel propotildee analisar esse caraacuteter
fenomenal em dois aspectos constituintes (a) o modo como eacute vivenciar o
estado mental x ndash que ele denomina caraacuteter qualitativo ndash e (b) o fato desse
modo se doar ao sujeito que vivencia esse estado mental ndash que Kriegel
denomina o caraacuteter subjetivo desse estado Na visatildeo de Kriegel (2005 p 24)
ldquoo caraacuteter qualitativo de uma experiecircncia consciente determina qual
experiecircncia consciente ela eacute mas eacute o caraacuteter subjetivo da experiecircncia que
determina se ela eacute de algum modo [at all] uma experiecircncia conscienterdquo
E eacute importante perceber que esse caraacuteter subjetivo se encontra em
uma relaccedilatildeo essencial com o conceito de ciecircncia [awareness] pois na exata
13 Aproveito para agradecer por essa observaccedilatildeo que o professor fez no debate de uma apresentaccedilatildeo que fiz sobre a teoria de Sartre no IX Encontro Interinstitucional de Filosofia em 2015 no Recife
64 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
medida em que uma experiecircncia se doa ndash ou se manifesta ndash ao sujeito
consciente este sujeito tem que estar ciente [aware] dessa experiecircncia (cf
KRIEGEL 2005 p 25)14 Mas Kriegel enfatiza que o modo como o sujeito
estaacute ciente de suas proacuteprias experiecircncias eacute bastante peculiar pois essa
ciecircncia normalmente natildeo estaacute focada na proacutepria experiecircncia mas sim
nos objetos ou estados de coisas extra-psiacutequicos que satildeo o tema dessa
experiecircncia Sendo assim ele se vecirc levado a introduzir uma distinccedilatildeo entre
(I) estar ciente de algo de modo focado e (II) estar ciente disso de modo
perifeacuterico15 A ideia baacutesica eacute do mesmo modo que em uma percepccedilatildeo
visual estamos cientes de maneira focada do objeto que estaacute no centro do
campo visual e estamos cientes de maneira perifeacuterica dos objetos que se
afastam desse centro no que diz respeito agraves nossas proacuteprias experiecircncias
estamos normalmente16 cientes delas de modo perifeacuterico ao mesmo
tempo em que temos uma ciecircncia focada dos objetos extra-psiacutequicos
dessas experiecircncias Como esclarece Kriegel (2005 p 26)
Minha sugestatildeo eacute que nossa ciecircncia de nossas experiecircncias conscientes eacute
normalmente uma forma de tal ciecircncia perifeacuterica natildeo-perceptiva Experiecircncias
conscientes exibem caraacuteter subjetivo em virtude do fato de que sempre que
temos uma experiecircncia consciente noacutes estamos perifericamente cientes de tecirc-la
Ele entende que o problema do caraacuteter subjetivo ldquoeacute o problema de
compreender como um estado mental pode incluir em si uma ciecircncia de si
proacutepriordquo (KRIEGEL 2005 p 30) E para explicar isso ele propotildee um
modelo teoacuterico baseado na integraccedilatildeo de informaccedilotildees que por essa razatildeo
eu denomino um modelo ldquointegrativordquo Para Kriegel a inclusatildeo de uma
ciecircncia de si mesmo no interior do proacuteprio estado mental consciente pode
14 Em um texto bastante conhecido no debate sobre a consciecircncia David Woodruff Smith (1986 p 149) escreveu ldquoum estado mental eacute consciente se o sujeito desse estado estaacute ciente [aware] de sua ocorrecircnciardquo
15Natildeo eacute difiacutecil perceber que essa maneira como Kriegel procura esclarecer o caraacuteter impliacutecito da ciecircncia que temos de nossas experiecircncias coincide com a maneira como Kathleen Wider (1997 p 41) interpreta a distinccedilatildeo sartriana entre consciecircncia posicional e natildeo posicional discutida na seccedilatildeo 2 acima
16A exceccedilatildeo satildeo os casos de reflexatildeo ndash no dizer de Sartre (1966 p 27-28 2010 p 190-91) ndash ou introspecccedilatildeo ndash no dizer de Rosenthal (1986 p 336-37 1997 p 730) caso que satildeo menos comuns do que os de consciecircncia natildeo reflexiva (cf KRIEGEL 2002 p 518 2003 p 105)
Taacuterik de Athayde Prata | 65
ser explicada atraveacutes da presenccedila de um tipo peculiar de conteuacutedo no
estado consciente conteuacutedo que conecta (a) a ciecircncia de um objeto ndash ou
estado de coisas ndash externo agrave mente com (b) a ciecircncia do proacuteprio estado
mental que se direciona a aquele objeto ndash ou estado de coisas ndash tornando-
se entatildeo necessaacuterio explicar como esse conteuacutedo eacute produzido E eacute aiacute que
entra em cena o modelo integrativo Nas palavras de Kriegel (2005 p 46)
A abordagem que pretendo introduzir sugere que esse tipo de conteuacutedo
representacional pode ser produzido simplesmente atraveacutes da integraccedilatildeo da
informaccedilatildeo carregada por o que eram inicialmente estados mentais separados
Quando os conteuacutedos desses estados mentais separados satildeo apropriadamente
integrados surge um (uacutenico) estado mental que possui exatamente o tipo
correto de conteuacutedo representacional
Apoacutes essa sinteacutetica exposiccedilatildeo do modelo de Kriegel somos obrigados
por motivos de espaccedilo a passar diretamente a uma discussatildeo da teoria de
Sartre
Consideraccedilotildees Finais
Se a visatildeo cartesiana da consciecircncia como a essecircncia da mente sofreu
fortes contestaccedilotildees ao longo do seacuteculo XX vimos que a perspectiva
sartriana ndash influenciada por Descartes ndash da autoconsciecircncia (impliacutecita)
como constitutiva de todo estado intencional parece inviabilizar uma
compreensatildeo teoacuterica adequada da consciecircncia Sartre defende uma
unidade essencial entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a autoconsciecircncia
porque a separaccedilatildeo desses elementos levaria a um dilema entre (I) uma
autoconsciecircncia inconsciente e (II) um regresso ao infinito (cf SARTRE
1943 p 18-19 1997 p 23 cf KRIEGEL 2005 p 28) Entretanto essa
visatildeo unitaacuteria tambeacutem eacute problemaacutetica pois torna a consciecircncia algo
inexplicaacutevel deixando a Sartre apenas a opccedilatildeo de recorrer a metaacuteforas ndash
como a do ldquociacuterculordquo e a das ldquotrecircs dimensotildeesrdquo (cf SARTRE 1943 p 20
1997 p 25) ou ainda a da ldquolei de existecircnciardquo (cf SARTRE 1966 p 24
2010 p 188-89) ndash ou entatildeo recorrer a conceitos obscuros ndash como o de um
66 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo (cf SARTRE 1943 p 21 1997 p 26) ndash para
tentar exprimir o que a consciecircncia eacute
Em outras palavras natildeo resta duacutevida de que o terreno em que esse
debate sobre a consciecircncia eacute travado eacute extremamente movediccedilo pois a
exposiccedilatildeo feita acima mostrou que se a visatildeo da consciecircncia como
essencialmente conectada a uma autoconsciecircncia eacute obscura a visatildeo que
separa a consciecircncia de algo da autoconsciecircncia tambeacutem natildeo funciona
pois recai no dilema acima mencionado ndash entre (I) e (II) Eacute aqui que o
modelo de Kriegel se mostra promissor pois a ideia de uma efetiva
integraccedilatildeo de estados mentais que existiam originalmente separados por
um lado nos fornece a distinccedilatildeo entre conceitos ndash o conceito da (i) ciecircncia
[awareness] do objeto por um lado e o conceito da (ii) ciecircncia do proacuteprio
estado mental por outro lado ndash que possibilita a articulaccedilatildeo de uma
explanaccedilatildeo propriamente dita jaacute que a unidade proposta por Sartre
concebida de uma maneira natildeo predicativa17 como vimos parece
inviabilizar qualquer explanaccedilatildeo conceitual E por outro lado a ideia da
integraccedilatildeo real de estados mentais (originalmente distintos) nos fornece
uma unidade diferente daquela que encontramos nos escritos do filoacutesofo
francecircs pois aleacutem de evitar o regresso ao infinito (como faz a unidade
misteriosa de Sartre) ela permanece permeaacutevel a uma explanaccedilatildeo
conceitual tornando-se assim uma opccedilatildeo mais atraente no cenaacuterio das
elaboraccedilotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia
Referecircncias
ADAM Ch TANNERY P (Orgs) Ouvres de Descartes ndash Meditationes de prima
philosophia Paris Vrin 1996 (Vol VII)
_____ Ouvres de Descartes ndash Meacuteditations et priacutencipes (traduction franccedilaise) Paris Vrin
1996 (Vol IX)
17 ldquoHaacute um ser indivisiacutevel indissoluacutevel ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas qualidades como seres menoresrdquo (SARTRE 1943 p 21 1997 p 26 grifos meus) Temos aqui uma terminologia ontoloacutegica que pressupotildee o discurso sujeito-predicado (cf IMAGUIRE 2007 p 274)
Taacuterik de Athayde Prata | 67
BRENTANO F Psychologie vom empirischen Standpunkt 2a ediccedilatildeo Leipzig Felix
Meiner 1924
_____ Psychology from an empirical standpoint London Routledge amp Kegan Paul 1995
CHALMERS D Facing Up To The Problem of Consciousness Journal of Consciousness
Studies vol 2 no 3 p 200-219 1995
COHEN-SOLAL A Sartre ndash 1905-1980 Porto Alegre Satildeo Paulo LPM Editores 1986
_____ Sartre Porto Alegre LampPM 2007
DESCARTES R Discurso do meacutetodo Meditaccedilotildees Objeccedilotildees e Respostas As Paixotildees
da Alma Cartas 2ordf ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1979
GENNARO R J Jean-Paul Sartre and the HOT Theory of Consciousness Canadian
Journal of Philosophy vol 32 no 3 p 293-330 setember 2002
IMAGUIRE G A substacircncia e suas alternativas feixes e tropos In Imaguire G Almeida
C L S Oliveira M A (Orgs) Metafiacutesica contemporacircnea Petroacutepolis Vozes p
271-289 2007
JACQUETTE D Introduction Brentanorsquos Philosophy In Jacquette D (Org) The
Cambridge companion to Brentano Cambridge Cambridge University Press p
1-19 2004
KRIEGEL U Consciousness permanent self-Awareness and higher order monitoring
Dialogue 41 p 517-40 2002
_____ Consciousness as intransitive self-consciousness two views and an argument
Canadian Journal of Philosophy vol 33 no 1 p 103-32 2003
_____ Naturalizing subjective character Philosophy and Phenomenological Research
vol LXXXI no 1 p 23-57 2005
NAGEL T What is it like to be a bat The Philosophical Review vol 83 no 4 p 435-50 1974
_____ Como eacute ser um morcego Cadernos de Histoacuteria e de Filosofia da Ciecircncia seacuterie
3 vol 15 no 1 p 245-62 2005
68 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
PRATA T A Consciecircncia e auto-relaccedilatildeo na primeira filosofia de Sartre em exame a partir
de um debate contemporacircneo a respeito da consciecircncia Aacutegora Filosoacutefica ano 16 n
2 p 76-92 2016
_____ A concepccedilatildeo sartriana da consciecircncia na perspectiva da filosofia analiacutetica da mente In
Oliveira Eacute A M Costa M R N Benvinda N M (Orgs) Liberdade loacutegica e accedilatildeo
homenagem ao Prof Dr Juan Adolfo Bonaccini Recife Editora UFPE p 455-68 2017
ROSENTHAL D Two concepts of consciousness Philosophical Studies 49 p 329-359 1986
_____ A theory of consciousness In Block N Flanagan O Guumlzeldere G (Orgs) The
nature of consciousness philosophical debates Cambridge (Massachusetts) MIT
Press p 729-753 1997
Sartre J-P Lrsquoecirctre et le neaacutent essai drsquoontologie pheacutenomeacutenologique Paris Gallimard 1943
_____ La transcendece de lrsquoego ndash esquisse drsquoune description pheacutenomeacutenologique Paris
Vrin 1966
_____ O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da imaginaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica
1996
_____ O ser e o nada ensaio de ontologia fenomenoloacutegica Petroacutepolis Vozes 1997
_____ A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica In Cadernos
Espinosanos XXII p 183-228 2010
SEARLE J R The rediscovery of the mind Cambridge Mass London MIT Press 1992
_____ A redescoberta da mente Satildeo Paulo Martins Fontes 1997
_____ Mind a brief introduction Oxford Oxford University Press 2004
SMITH D W The structure of (self-)consciousness Topoi n 5 p 149-56 1986
WIDER K The bodily nature of consciousness Sartre and contemporary philosophy of
mind Ithaca Cornell University Press 1997
4
A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico
A Criacutetica de John Searle agraves Principais Correntes
da Filosofia da Mente
Maxwell Morais de Lima Filho 1
Parece muito doce aquela cana
Descasco-a provo-a chupo-ahellip ilusatildeo treda
Augusto dos Anjos
Para Searle (2006 p 7-9) nem eacute verdade que o problema mente-
corpo seja insoluacutevel nem que seja necessaacuterio um projeto de naturalizaccedilatildeo
para atacaacute-lo pois basta reconhecermos que os fenocircmenos mentais satildeo
caracteriacutesticas de niacutevel superior causadas e realizadas no sistema nervoso
para resolvecirc-lo2
O famoso problema mente-corpo fonte de tanta controveacutersia ao longo dos
dois uacuteltimos milecircnios tem uma soluccedilatildeo simples [] Aqui estaacute ela os
fenocircmenos mentais satildeo causados por processos neurofisioloacutegicos no ceacuterebro
e satildeo eles proacuteprios caracteriacutesticas do ceacuterebro
[]
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) e Professor do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
2 Em Intencionalidade Searle (1995 p 21-2) critica tanto os dualistas quanto os fisicalistas por tentarem resolver um problema que sequer existe ldquoOs dualistas que percebem corretamente o papel causal do mental consideram que precisamente por esta razatildeo devem postular uma categoria ontoloacutegica separada Muitos fisicalistas que percebem corretamente que tudo o que temos no cracircnio eacute um ceacuterebro acham que por esta razatildeo devem negar a eficaacutecia causal dos aspectos mentais do ceacuterebro ou mesmo a existecircncia desses aspectos mentais irredutiacuteveis Acredito que ambas as visotildees estejam equivocadas Ambas tentam resolver o problema mente-corpo quando a abordagem correta eacute perceber que tal problema natildeo existe O lsquoproblema mente-corporsquo natildeo eacute um problema mais real que o do lsquoestocircmago-digestatildeorsquordquo
70 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo eacute
espantosamente difiacutecil talvez completamente insoluacutevel Os materialistas
concordam que se a intencionalidade e a consciecircncia realmente existem e satildeo
irredutiacuteveis a fenocircmenos fiacutesicos entatildeo de fato haveria um difiacutecil problema
mente-corpo mas eles pretendem ldquonaturalizarrdquo a intencionalidade e talvez
tambeacutem a consciecircncia Por ldquonaturalizaccedilatildeordquo de fenocircmenos mentais eles
entendem a sua reduccedilatildeo a fenocircmenos fiacutesicos
Perpassando as incontaacuteveis divergecircncias teoacutericas entre dualistas e
fisicalistas se encontra um liame terminoloacutegico herdado de Descartes que
contrapotildee o fiacutesico ao mental essa distinccedilatildeo substancial do mundo por sua
vez teria sido uacutetil para superar o aparente conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia
no seacuteculo XVII Sendo assim os assuntos concernentes agrave alma e agrave moral
humanas seriam tratados exclusivamente pela Religiatildeo enquanto os
cientistas se debruccedilariam sobre os mais diversos fenocircmenos naturais ndash
fiacutesicos quiacutemicos bioloacutegicos etc Em realidade natildeo houve uma completa
superaccedilatildeo do conflito como o proacuteprio Searle adverte (2010c) haja vista
que Galileu se retratou perante a Igreja e Descartes se mudou para a mais
tolerante Holanda Interessante notarmos que o filoacutesofo britacircnico Gilbert
Ryle tambeacutem menciona os pensadores italiano e francecircs na origem do erro
categorial presente na doutrina do fantasma na maacutequina Poreacutem no que
se refere ao conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia Ryle (1970 p 18-9) o
restringe agrave esfera pessoal de Descartes que aceitou o mecanicismo
galilaico somente na esfera corpoacuterea
[Q]uando Galileu mostrou que os seus meacutetodos de descoberta cientiacutefica eram
capazes de estabelecer uma teoria mecacircnica que abrangeria todos os
ocupantes do espaccedilo Descartes encontrou em si proacuteprio duas razotildees em
conflito Como homem de gecircnio cientiacutefico natildeo tinha outro remeacutedio senatildeo
sancionar as descobertas da mecacircnica ao passo que como homem religioso e
moral natildeo poderia aceitar como Hobbes aceitou os desencorajantes
corolaacuterios dessas descobertas ou seja que a natureza humana difere apenas
em grau de complexidade do mecanismo de um reloacutegio O mental natildeo poderia
ser uma variedade do mecacircnico
Maxwell Morais de Lima Filho | 71
Eacute justamente contra essa visatildeo que o autor drsquoA Redescoberta da
Mente defende que o passo que devemos dar antes mesmo de iniciar a
investigaccedilatildeo eacute abandonar o dualismo conceitual que estaacute presente nas
concepccedilotildees mais diacutespares do espectro da Filosofia da Mente o dualismo
de substacircncia o dualismo de propriedade o materialismo o monismo o
behaviorismo a teoria da identidade o funcionalismo e a inteligecircncia
artificial forte Se largarmos o dualismo conceitual dissolveremos o falso
dilema que nos faz acreditar que ou defendemos uma concepccedilatildeo dualista
ou uma fisicalista como ostenta Searle (2002a p 15) nesta passagem
Os filoacutesofos analiacuteticos juntamente com o restante da tradiccedilatildeo cartesiana
assumiram de modo caracteriacutestico que ldquomentalrdquo implica ldquonatildeo-materialrdquo ou
ldquoimaterialrdquo e que ldquomaterialrdquo ou ldquofiacutesicordquo implica ldquonatildeo mentalrdquo No entanto
quando se reflete sobre o modo como o ceacuterebro opera tem-se a impressatildeo de
que ambos os pressupostos satildeo obviamente falsos
Feitas essas ressalvas exporemos as criacuteticas que Searle tece agraves
principais correntes da Filosofia da Mente comeccedilando pelo dualismo de
substacircncia Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia rastreamos versotildees dessa
concepccedilatildeo sendo defendidas por pensadores desde a Greacutecia Antiga sendo
Platatildeo o mais insigne entre eles Tambeacutem registramos brevemente que o
dualismo de substacircncia se configurou como uma posiccedilatildeo-padratildeo tanto na
Patriacutestica como na Escolaacutestica e foi defendido por eruditos do porte de
Agostinho e de Tomaacutes de Aquino Em que pesem todos esses antecedentes
a versatildeo do dualismo de substacircncia que eacute levada em consideraccedilatildeo pela
maioria dos filoacutesofos da mente eacute aquela consumada na obra de Reneacute
Descartes Em resumo o filoacutesofo francecircs propunha uma cisatildeo entre o
domiacutenio fiacutesico res extensa (substacircncia material ou fiacutesica) e o domiacutenio
mental res cogitans3 (alma mente ou substacircncia mental) Para
fundamentar a dualidade ontoloacutegica o filoacutesofo francecircs parte do princiacutepio
de distinccedilatildeo para afianccedilar a possibilidade de concebermos claramente que
3 Cottingham (1999 p 26) nos adverte para natildeo nos desencaminharmos pelo significado religioso ou espiritual que foi imputado ao termo ldquoalmardquo tendo em conta que Descartes utiliza os vocaacutebulos ldquolrsquoacircme (ldquoalmardquo) e lrsquoesprit (ldquomenterdquo) mais ou menos indiferentemente simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente []rdquo
72 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
a discriminaccedilatildeo e a independecircncia entre corpo e alma decorrem do fato de
eles assim terem sido produzidos por Deus Mas afinal de contas em que
reside a diferenccedila fundamental entre esses dois domiacutenios ontoloacutegicos
Descartes (1996 p 326) responde a esse questionamento afirmando que
a caracteriacutestica crucial dos corpos eacute a extensatildeo e a da alma o pensamento
E embora [] eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente
conjugado todavia jaacute que de um lado tenho uma ideacuteia clara e distinta de mim
mesmo na medida em que sou apenas uma coisa pensante [res cogitans] e
inextensa e que de outro tenho uma ideacuteia distinta do corpo na medida em
que eacute apenas uma coisa extensa [res extensa] e que natildeo pensa eacute certo que este
eu isto eacute minha alma pela qual eu sou o que sou eacute inteira e verdadeiramente
distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele [independecircncia
entre alma e corpo]
Seguindo o raciociacutenio cartesiano ao examinar o meu corpo (ou outro
qualquer como uma mesa por exemplo) constatariacuteamos que ele tem uma
extensatildeo e a partir disso posso falar algo como ldquomeccedilo 174 mrdquo
Conquanto natildeo faria sentido algum aferirmos ao peacute da letra o
comprimento da minha crenccedila na democracia Logo haacute uma diferenciaccedilatildeo
ontoloacutegica entre o meu corpo (coisa fiacutesicasubstacircncia extensa) e a minha
mente (coisa natildeo fiacutesicasubstacircncia pensante) a coisa extensa eacute natildeo
pensante e a coisa pensante eacute natildeo extensa Decorre diretamente dessa
distinccedilatildeo a irredutibilidade e a independecircncia do mental em relaccedilatildeo ao
fiacutesico e entre outras coisas isso significa que natildeo haacute nenhum
impedimento para a persistecircncia de minha alma apoacutes a morte do meu
corpo Para Descartes (2004 p 227)
o corpo humano na medida em que difere dos outros corpos eacute constituiacutedo
por certa configuraccedilatildeo de membros e de outros acidentes desse modo ao
passo que a mente humana natildeo eacute constituiacuteda dessa maneira a partir de
acidentes nenhuns mas eacute pura substacircncia Pois embora todos os seus
acidentes se modifiquem ndash ela entende umas coisas quer outras sente outras
etc ndash nem por isso a proacutepria mente torna-se uma outra Ao passo que o corpo
humano torna-se outro em virtude apenas de que se modifique a figura de
qualquer uma de suas partes Disto se segue que tal corpo morre muito
Maxwell Morais de Lima Filho | 73
facilmente enquanto a mente ou a alma do homem (o que natildeo distingo) eacute
imortal por sua natureza
Jaacute em sua eacutepoca o filoacutesofo francecircs foi criticado por defender a
interaccedilatildeo entre esses dois tipos totalmente diferentes de substacircncia porque
restou inexplicado como algo fiacutesico causaria algo mental e inversamente
como o mental atuaria sobre o fiacutesico Na tentativa de resguardar seu
posicionamento interacionista ele recorreu agrave glacircndula pineal e aos
espiacuteritos animais resguardando agravequela a sede da alma e conferindo a estes
uacuteltimos a funccedilatildeo comunicativa entre as duas substacircncias Todavia
Descartes (1996 p 328-9) nos alerta para natildeo olvidarmos que o contraste
metafiacutesico entre espiacuterito e mateacuteria natildeo impede a sua iacutentima conjunccedilatildeo
como uma totalidade coerente
A natureza me ensina tambeacutem por esses sentimentos de dor fome sede etc
que natildeo somente estou alojado em meu corpo como um piloto em seu navio
mas que aleacutem disso lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo
confundido e misturado que componho com ele um uacutenico todo
Para Cottingham (1989) seria incorreto enquadrar a posiccedilatildeo de
Descartes como um dualismo pois existem atributos humanos que natildeo se
encaixariam nem como modos de extensatildeo nem como modos de
pensamento haja vista que seriam o resultado da uniatildeo de ambos Sendo
assim como os fenocircmenos psicofiacutesicos natildeo se identificariam nem aos
fenocircmenos fiacutesicos (res extensa) nem aos mentais (res cogitans)
estariacuteamos diante de um ldquotrialismo cartesianordquo Para justificar sua linha
de raciociacutenio Cottingham (1989 p 172) menciona uma carta que
Descartes enviou agrave rainha Elizabeth em 1643 na qual o filoacutesofo francecircs
reconhece a existecircncia de ldquotrecircs categorias ou noccedilotildees primitivasrdquo a forma
e o movimento se relacionam agrave extensatildeo a compreensatildeo e a vontade ao
pensamento e as sensaccedilotildees e paixotildees agrave uniatildeo entre o corpo e a alma
Independentemente de qual leitura exegeacutetica prevaleccedila ndash dualismo ou
trialismo ndash o ponto eacute que os expedientes da glacircndula pineal e dos espiacuteritos
animais utilizados por Descartes estatildeo longe de serem satisfatoacuterios Por um
74 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
lado eacute incoerente delimitar a alma na glacircndula pineal porque a res cogitans
eacute uma substacircncia natildeo extensa e portanto sem localizaccedilatildeo espacial por
outro ainda que se considere que os espiacuteritos animais sejam constituiacutedos de
uma substacircncia fiacutesica bastante delicada permanece aberta a questatildeo
original como os espiacuteritos animais que possuem massa e satildeo espacialmente
situados satildeo capazes de interatuar com uma substacircncia imaterial Natildeo
obstante as criacuteticas direcionadas ao dualismo de substacircncia ao longo dos
seacuteculos e o fato de ele ser minoritaacuterio no ambiente acadecircmico atual natildeo
devemos esquecer que essa concepccedilatildeo estaacute intimamente afinada tanto com
o senso comum quanto com o pensamento religioso pois a maioria das
Religiotildees ndash se natildeo todas ndash defende uma separaccedilatildeo entre a alma e o corpo
Para o autor drsquoA Redescoberta da Mente no entanto essa corrente seria
inconciliaacutevel com o arcabouccedilo conceitual proveniente das Ciecircncias da
Natureza segundo o qual as caracteriacutesticas de niacutevel superior se
fundamentam na microestrutura o que nos impede de tratarmos a
consciecircncia como se fosse uma substacircncia distinta ou uma entidade
adicional ao substrato fiacutesico Nesse sentido Searle (2010a p 4-5) assevera
que por ser causada e realizada neurofisiologicamente eacute que a consciecircncia
natildeo passa de uma caracteriacutestica de niacutevel superior do sistema nervoso
O cheiro da flor o som da sinfonia os pensamentos sobre os postulados da
geometria euclidiana ndash tudo eacute causado por processos bioloacutegicos de niacutevel
inferior no ceacuterebro e ateacute onde sabemos os elementos cruciais satildeo os
neurocircnios e as sinapses
[]
Assim eacute possiacutevel resumir da seguinte maneira as duas relaccedilotildees cruciais entre
consciecircncia e ceacuterebro os processos neurocircnicos de niacutevel inferior no ceacuterebro
causam a consciecircncia e a consciecircncia eacute apenas uma caracteriacutestica de niacutevel
superior de um sistema composto de elementos neurocircnicos de niacutevel inferior
Obviamente esse modo de pensar vai de encontro agrave tese central do
dualismo de substacircncia de que a distinccedilatildeo ontoloacutegica4 entre os dois
4 Por motivos distintos o eliminativista Rorty (1994 p 133) tambeacutem critica as categorias cartesianas ldquoEssas assim chamadas categorias ontoloacutegicas [de lsquomentalrsquo e de lsquofiacutesicorsquo] satildeo simplesmente os modos de embalar noccedilotildees deveras heterogecircneas de fontes histoacutericas deveras heterogecircneas que eram convenientes aos propoacutesitos do proacuteprio Descartes
Maxwell Morais de Lima Filho | 75
domiacutenios sustenta que o fiacutesico tem um modo de existecircncia diferente do
mental Portanto ao defender que a consciecircncia eacute uma caracteriacutestica
emergente do sistema nervoso o filoacutesofo estadunidense estaacute propondo
que o acircmbito fiacutesico eacute mais abrangente do que o dualista de substacircncia
poderia supor pois a mentalidade eacute fiacutesica Eacute somente a partir disso que
compreendemos a revisatildeo do adaacutegio cartesiano pretendida por Searle
(2006 p 26) quando afirma que ldquosou um ser pensante portanto sou um
ser fiacutesicordquo Mais do que isso como a consciecircncia emerge da organizaccedilatildeo e
da complexidade fiacutesicas Searle (2010d p 98) tambeacutem discorda do
posicionamento cartesiano de que os animais natildeo humanos satildeo
autocircmatos haja vista que o grau de semelhanccedila5 conosco ndash principalmente
com os primatas ndash leva-nos na direccedilatildeo contraacuteria
Do ponto de vista anatocircmico as semelhanccedilas satildeo grandes demais para que
essa especulaccedilatildeo [da ausecircncia de intencionalidade e de pensamento nos
animais natildeo humanos] pareccedila plausiacutevel ainda que remotamente do ponto de
vista fisioloacutegico como sabemos os mecanismos que produzem a
intencionalidade e o pensamento nos humanos tecircm estreitos paralelos com os
que se verificam em outros animais
Foi com o intuito de fugir das dificuldades que se impotildeem ao
dualismo de substacircncia que alguns filoacutesofos comprometidos com a
irredutibilidade dos fenocircmenos mentais propuseram o dualismo de
propriedade Essa abordagem postula a existecircncia de uma uacutenica
substacircncia a substacircncia fiacutesica (monismo fiacutesico) e de dois tipos de
propriedade mutuamente excludentes as fiacutesicas e as mentais Ao
observarmos uma pessoa qualquer diria o dualista de propriedade
Mas os seus propoacutesitos natildeo satildeo os nossos Os filoacutesofos natildeo devem pensar em seu conglomerado artificial como se fosse uma descoberta de algo preacute-existente ndash uma descoberta que por lsquointuitivarsquo ou lsquoconceitualrsquo ou lsquocategoacutericarsquo estabelece paracircmetros permanentes para a ciecircncia e a filosofiardquo
5 Changeux (1985 p 74) assegura que natildeo haacute diferenccedila significativa entre ldquoas peccedilas e parafusosrdquo que compotildeem por exemplo os ceacuterebros dos ratos e dos homens ldquoTanto ao niacutevel da anatomia macroscoacutepica do coacutertex como da sua arquitectura microscoacutepica natildeo ocorre qualquer brutal reorganizaccedilatildeo lsquoqualitativarsquo que leve do ceacuterebro lsquoanimalrsquo ao ceacuterebro lsquohumanorsquo Deu-se pelo contraacuterio uma evoluccedilatildeo quantitativa e contiacutenua do nuacutemero total de neuroacutenios da diversidade das aacutereas do nuacutemero de possibilidades conexionais entre neuroacutenios e por conseguinte da complexidade das redes de neuroacutenios que constituem a maacutequina cerebralrdquo
76 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
constatamos que o seu corpo ndash cabeccedila pernas braccedilos etc ndash tem um modo
de existecircncia fiacutesico poreacutem se analisarmos o ceacuterebro dela veremos que
aleacutem de possuir propriedades fiacutesicas ndash muitas delas semelhantes agraves que
satildeo encontradas na cabeccedila nas pernas e nos braccedilos ndash tal oacutergatildeo tambeacutem
possui propriedades mentais
Dessa maneira poderiacuteamos afirmar que esse enrugado oacutergatildeo
formado por bilhotildees de ceacutelulas e que pesa um quilo e meio possui
propriedades que se distinguem e natildeo se reduzem a nenhuma dessas
propriedades fiacutesicas Em geral contrapotildeem-se os aspectos subjetivo
qualitativo e privado das propriedades mentais agrave precisatildeo intersubjetiva
com que mensuramos os objetos e propriedades fiacutesicos o acesso direto agrave
dor estaacute restrito ao sujeito que a experiencia mas que ele pese oitenta
quilos eacute um dado objetivo quantitativo e publicamente acessiacutevel a
qualquer um que disponha de uma balanccedila Como explica Pereira (2013)
os filoacutesofos da mente se valem dos termos quale (singular) e qualia6
(plural) para se referir ao caraacuteter subjetivo e qualitativo dos fenocircmenos
mentais que experienciamos quando saboreamos o azedume do
tamarindo vemos a beleza de um flamboyant ouvimos uma bela canccedilatildeo
tocamos na pessoa querida ou cheiramos um bebecirc Abrantes (2005 p
226) nos alerta entretanto que os uacutenicos estados mentais
consensualmente considerados qualia satildeo as sensaccedilotildees Nesse sentido
muitos filoacutesofos negam ndash diferentemente de Searle ndash que haja qualquer
tipo de aspecto qualitativo envolvido na realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo
matemaacutetica como a adiccedilatildeo por exemplo
Para o dualista de propriedade as propriedades mentais satildeo especiais
em dois sentidos em primeiro lugar por conta de sua singularidade
bioloacutegica apesar de os objetos serem constituiacutedos basicamente pelos
6 Por salvaguardar que a consciecircncia eacute qualitativa Searle (2010b p 34) julga como absurda a tentativa daqueles que pretendem apartar o que para ele eacute inseparaacutevel ldquoNatildeo haacute dois problemas separados ndash o problema da consciecircncia e entatildeo um problema subsidiaacuterio o dos qualia O problema da consciecircncia eacute idecircntico ao dos qualia porque os estados conscientes satildeo acima de tudo estados qualitativosrdquo Em outras palavras Searle (2010c p 57-8) considera o termo qualia dispensaacutevel porque todos os fenocircmenos conscientes satildeo qualitativos ldquo[T]al como entendo esses termos qualia eacute somente uma designaccedilatildeo coletiva dos estados conscientes Na medida em que a lsquoconsciecircnciarsquo e os qualia satildeo coextensivos natildeo haacute razatildeo para introduzir um termo especiacuteficordquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 77
mesmos ldquoblocos de construccedilatildeordquo (aacutetomos) somente algumas estruturas
fiacutesicas possuem propriedades mentais a saber ceacuterebros complexos Em
segundo lugar a despeito de dependerem ontologicamente dos sistemas
fiacutesicos que as produzem as propriedades mentais satildeo irredutiacuteveis e
inexplicaacuteveis a partir dos conceitos provenientes das Ciecircncias Naturais
como a Fiacutesica a Quiacutemica e a Biologia
Para mostrar isso o filoacutesofo Frank Jackson (1986 2004) propocircs um
importante experimento de pensamento objetivando sustentar a
irredutibilidade dos qualia Imaginemos que Mary seja uma neurocientista
que sabe tudo acerca dos aspectos fiacutesicos e neurofisioloacutegicos das cores isto
eacute que ela domine o conhecimento sobre as leis oacutepticas das reflectacircncias
de luz bem como da anatomia e da fisiologia das ceacutelulas fotorreceptoras e
do coacutertex visual Natildeo obstante seu profundo conhecimento cientiacutefico ela
vive em um mundo preto e branco e portanto nunca experenciou
visualmente cores que natildeo estas duas Imaginemos ainda que um dia ela
saiu do seu laboratoacuterio alvinegro e percebeu pela primeira vez a cor
vermelha de uma maccedilatilde De acordo com essa linha de pensamento essa
experiecircncia visual traria um novo tipo de conhecimento a Mary a saber a
experiecircncia qualitativa de ver vermelho Ora argumenta Jackson se Mary
possuiacutea todo o conhecimento fiacutesico sobre as cores agrave sua disposiccedilatildeo e
mesmo assim aprende um novo fato cromaacutetico concluiacutemos que a sensaccedilatildeo
de ver vermelho (fato novo) aleacutem de natildeo ser fiacutesica eacute irredutiacutevel
ontologicamente a qualquer tipo de estado ou propriedade material Com
isso Jackson (2004 p 765) quer defender que as propriedades mentais
estatildeo acima e aleacutem da realidade fiacutesica e que se mantecircm intocadas pela
explicaccedilatildeo fiacutesico-bioloacutegica da visatildeo
A conclusatildeo [] eacute que os qualia satildeo deixados de fora da histoacuteria fisicalista E a
forccedila polecircmica do argumento do Conhecimento eacute que eacute tatildeo difiacutecil negar a sua
afirmaccedilatildeo central de que se pode ter toda a informaccedilatildeo fiacutesica sem ter todas as
informaccedilotildees que haacute para ter
78 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Searle (2000) natildeo admite essa diferenciaccedilatildeo e advoga que o mental eacute
fiacutesico por ser bioloacutegico ou seja os fenocircmenos mentais satildeo fenocircmenos
bioloacutegicos tais quais outros processos encontrados no mundo vivo como
a digestatildeo a fotossiacutentese e a mitose Portanto para sermos exitosos na
superaccedilatildeo do dualismo de propriedade devemos rejeitar a terminologia
que exclui a consciecircncia do mundo natural e a trata como se natildeo fosse
bioloacutegica Com o intuito de denunciar o quanto esse sistema de categorias
eacute problemaacutetico ele assevera que o dualista inevitavelmente estaraacute diante
de uma encruzilhada se pressupuser que as propriedades mentais estatildeo
acima e aleacutem das propriedades fiacutesicas Se levarmos em consideraccedilatildeo o
fechamento causal fiacutesico do Universo ndash todo evento fiacutesico possui como
causa suficiente outro evento fiacutesico ndash teriacuteamos como resultado que as
propriedades natildeo fiacutesicas satildeo causalmente ineficazes ou seja o mental
subsistiria como um domiacutenio epifenomecircnico
Nesse cenaacuterio as nossas sensaccedilotildees crenccedilas e desejos seriam
totalmente irrelevantes para o nosso comportamento assim como seria
ilusoacuteria a causaccedilatildeo mental O caminho alternativo eacute igualmente
problemaacutetico porque se comprometeria ndash na contramatildeo do que
pressupotildeem as melhores teorias cientiacuteficas ndash com a tese de que o Universo
natildeo eacute fisicamente fechado Essa conjuntura asseguraria a eficaacutecia causal
do mental em troca de acatarmos a sobreposiccedilatildeo causal de certos eventos
isto eacute comprometer-nos-iacuteamos com a sobredeterminaccedilatildeo causal por
afirmar que um evento fiacutesico F eacute duplamente produzido por um evento
fiacutesico F e por um evento mental M Segundo Searle7 (2014 p 107)
sabemos [] que quando eu levanto meu braccedilo haacute uma histoacuteria a ser contada
no niacutevel de disparos de neurocircnios neurotransmissores e contraccedilotildees
musculares que eacute suficiente para descrever [] o movimento do meu braccedilo
Entatildeo se supusermos que a consciecircncia tambeacutem funciona no movimento do
meu braccedilo entatildeo parece que temos duas histoacuterias causais distintas nenhuma
redutiacutevel agrave outra e para colocar muito brevemente a questatildeo meus
7 Em Lima Filho (2010b) analisamos em detalhes o problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico
Maxwell Morais de Lima Filho | 79
movimentos corporais tecircm muitas causas Noacutes temos [sobredeterminaccedilatildeo]
causal
O autor drsquoA Redescoberta da Mente eacute da opiniatildeo que apesar da
relutacircncia o dualista de propriedade acaba por cair na ldquovelhardquo dualidade
substancial como fica patente no uso de metaacuteforas que insinuam a
separaccedilatildeo entre os fenocircmenos conscientes a consciecircncia se origina do
ceacuterebro mas estaacute acima e aleacutem dos processos cerebrais por ser uma
propriedade emergente Esse modo de pensar nos conduz agrave imagem da
consciecircncia como uma cereja que por estar acima do bolo dele difere
Searle (2014 p 114) enxerga uma inconsistecircncia nessa posiccedilatildeo segundo a
qual a consciecircncia (cereja) eacute uma propriedade que estaacute acima e aleacutem do
ceacuterebro (bolo) afirmando que essa incongruecircncia acaba por minar o
monismo fiacutesico e passa a incidir em alguma versatildeo do dualismo de
substacircncia
A imagem verdadeira se vamos persistir na metaacutefora do bolo eacute que a
consciecircncia eacute o estado em que o bolo (ceacuterebro) estaacute Oficialmente o dualista
de propriedades diz que a consciecircncia eacute uma propriedade do ceacuterebro mas se
vocecirc considerar propriedades incontroversas do ceacuterebro como peso forma
cor solidez etc ningueacutem diz que elas ldquosurgem dordquo [hellip] ou estatildeo ldquoaleacutemrdquo [hellip]
do ceacuterebro e somente num sentido especial algumas delas podem ser descritas
como ldquoemergentesrdquo [hellip] e certamente natildeo como ldquoemergentes dordquo [hellip] ceacuterebro
Uma corrente que se opocircs fortemente ao dualismo foi o behaviorismo
analiacutetico8 Muitos estudiosos consideram como marco da Filosofia da
Mente Contemporacircnea o livro de Gilbert Ryle (1970 p 11) Concept of
Mind publicado originalmente em 1949 que principia resumindo a
posiccedilatildeo a ser combatida o ldquomito de Descartesrdquo ou o ldquodogma do fantasma
na maacutequinardquo
8 Natildeo devemos confundi-lo com a corrente psicoloacutegica associada aos nomes de John Watson Ivan Pavlov e Burrhus Frederic Skinner Como esclarece Blackburn (1997 p 39) em vez de levar em consideraccedilatildeo a introspecccedilatildeo e a subjetividade o behaviorismo psicoloacutegico inicialmente se orientou pela perspectiva metodoloacutegica de mensuraccedilatildeo das causas comportamentais Posteriormente sobretudo com Skinner passou a vigorar o empreendimento de se gerir a accedilatildeo humana por meio de estiacutemulos e reforccedilos
80 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A doutrina oficial que vem principalmente de Descartes eacute qualquer coisa
como isto com as exceccedilotildees duvidosas dos idiotas e das crianccedilas de colo todo
ser humano tem um corpo e um espiacuterito Alguns prefeririam dizer que todo
ser humano eacute simultaneamente corpo e espiacuterito O seu corpo e o seu espiacuterito
estatildeo geralmente reunidos mas depois da morte do corpo o espiacuterito pode
continuar a existir e a funcionar
O intento de Ryle eacute imunizar todos contra o ldquopatoloacutegicordquo legado
cartesiano valendo-se de anaacutelises conceituais com o duplo objetivo de
criticar as operaccedilotildees realizadas pelos defensores da ldquodoutrina oficialrdquo e de
situar o conceito mental no tipo loacutegico adequado Com o intuito de ilustrar
sua argumentaccedilatildeo contra o dualismo ele daacute o seguinte exemplo de erro
categorial Se apoacutes termos apresentado a Reitoria as Unidades
Acadecircmicas as Faculdades o Restaurante Universitaacuterio e os Museus que
compotildeem a nossa instituiccedilatildeo o que responderiacuteamos ao estrangeiro que
persistisse perguntando pela localizaccedilatildeo da Universidade haja vista que
ele afirma ter visto somente os departamentos administrativos as salas de
aula e os aparelhos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica Ora diz Ryle (1970 p 16)
devemos mostrar que o nosso colega se equivoca ao natildeo observar que a
Universidade eacute constituiacuteda pela coordenaccedilatildeo conjunta dos oacutergatildeos
burocraacuteticos espaccedilos didaacuteticos laboratoacuterios etc que ele observou em sua
visita ao campus
O seu erro [do estrangeiro] assenta na suposiccedilatildeo inocente de que era correto
falar da Christ Church da Bodleian Library do Ashmolean Museum e da
Universidade como se a ldquoUniversidaderdquo significasse um membro extra da
classe da qual estas outras unidades satildeo membros Ele estava a situar
erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras instituiccedilotildees
pertencem
Consoante o behaviorista algo semelhante ocorre quando nos
emocionamos ao ler um poema sentimos dor de dente desejamos um
chocolate ou cremos na Biacuteblia tendo em conta que natildeo estariacuteamos nos
referindo a eventos mentais interiores mas tatildeo somente ao nosso
comportamento seja ele real ou potencial Eacute justamente por esse motivo
Maxwell Morais de Lima Filho | 81
que ele pretende preservar a equivalecircncia semacircntica quando traduz a
crenccedila de Tomeacute no Cristianismo nas seguintes descriccedilotildees
comportamentais
(i) Se lhe oferecerem de presente a Biacuteblia ou o Coratildeo ele optaraacute pelo primeiro
(ii) Se lhe perguntarem em qual livro Deus se revela ele responderaacute que eacute na Biacuteblia
(iii) Se lhe questionarem sobre a autoria dos Dez Mandamentos ele afirmaraacute que
foram escritos por Deus
(iv) Se houver oportunidade ele pregaraacute a mensagem biacuteblica
Uma criacutetica inicial a essa proposta teoacuterica se reflete no repuacutedio de
sermos reduzidos agrave pura e simples mecacircnica comportamental
desconsiderando-se para tal fim a totalidade dos fenocircmenos subjetivos e
qualitativos que constituem a rica vida mental que todos noacutes inclusive os
behavioristas experimentamos Em outras palavras haacute uma distinccedilatildeo de
tipo9 entre a crenccedila cristatilde e a observaccedilatildeo comportamental de Tomeacute Para
ser consistente essa anaacutelise deveria levar em consideraccedilatildeo a
indeterminaccedilatildeo e o nuacutemero potencialmente infinito de vias relacionadas agrave
crenccedila religiosa de Tomeacute e natildeo apenas os quatro condicionais listados
anteriormente
Esse tipo de exame tambeacutem padece de circularidade porque o
behaviorista deve lanccedilar matildeo de hipoacuteteses adicionais natildeo explicitadas para
sustentar que a crenccedila no Cristianismo se traduz comportamentalmente
na inclinaccedilatildeo de ser presenteado por uma Biacuteblia Caso Tomeacute possua dez
traduccedilotildees comentadas da Biacuteblia em diferentes liacutenguas seria provaacutevel que
ele preferisse ganhar o Coratildeo de presente ndash na verdade a lista de regalos
passiacuteveis de corroborar a crenccedila de Tomeacute eacute deveras extensa sendo muito
difiacutecil determinaacute-la precisamente A disposiccedilatildeo comportamental de
preferir a Biacuteblia tambeacutem assume sub-repticiamente que Tomeacute sabe e gosta
de ler o que obviamente natildeo eacute necessaacuterio Por fim querer ganhar uma
9 Searle (2010h p 337) realccedila essa dessemelhanccedila entre os fenocircmenos mentais conscientes e a anaacutelise comportamental a partir desse exemplo da dor gaacutestrica ldquoO fato de sentir essa dor eacute completamente diferente ndash aliaacutes um tipo de fato completamente diferente ndash de quaisquer fatos inclusive condicionais que digam respeito a meu comportamento Ter uma dor de estocircmago eacute uma coisa adotar este ou aquele tipo de comportamento adequado a uma dor de estocircmago eacute algo totalmente diferenterdquo
82 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Biacuteblia soacute faz sentido se Tomeacute acreditar que ela natildeo viraacute com paacuteginas em
branco que ela estaacute redigida em liacutengua compreensiacutevel que sua mensagem
natildeo foi corrompida por editores inescrupulosos etc
A tentativa de se explicar a crenccedila de Tomeacute no Cristianismo
(analysandum) atraveacutes de sua conduta de pregaccedilatildeo evangeacutelica (analysans)
eacute malograda porque o comportamento que pretende esclarecer o estado
psicoloacutegico eacute ele proacuteprio intencional10 Ou seja os movimentos corporais
de pegar a Biacuteblia e sair de porta em porta anunciando que Jesus eacute a nossa
salvaccedilatildeo e a soluccedilatildeo para todos os nossos problemas soacute podem ser
denominados accedilotildees se forem causados por intenccedilotildees que satildeo tatildeo mentais
quanto o que se pretende elucidar a crenccedila de Tomeacute Eacute guiado por linha
de raciociacutenio semelhante que Searle (2010h p 339) afirma que o
behaviorista estaria diante de um dilema pois ou ele considera que o
comportamento eacute intencional ou natildeo por um lado permaneceria o
elemento mental se se admitir que o comportamento eacute intencionalmente
causado por outro caso natildeo se defenda isso
temos de interpretar o comportamento como uma seacuterie de movimentos
corporais descritos tatildeo somente como movimentos corporais e nenhuma
anaacutelise dos enunciados sobre crenccedilas desejos e intenccedilotildees em funccedilatildeo de
enunciados sobre movimentos corporais jamais seraacute suficiente porque os
movimentos ainda natildeo satildeo accedilotildees humanas e a noccedilatildeo de um movimento
corporal em si mesmo eacute insuficiente para qualquer anaacutelise dos estados
mentais
Desse modo o filoacutesofo estadunidense reitera que soacute podemos
acreditar em algo ou desejarmos alguma coisa se tivermos uma Rede
(Network) com diversas crenccedilas e desejos Poreacutem como o conteuacutedo
intencional natildeo eacute autointerpretativo Searle (2010g p 249-50) postula que
a Rede necessita de um Pano de Fundo (Background)11 constituiacutedo por
habilidades preacute-intencionais
10 Consoante Leclerc (2015) Roderick Chisholm defendeu na deacutecada de 50 que eacute impossiacutevel transpormos o ciacuterculo das noccedilotildees intencionais haja vista que a intencionalidade eacute indefiniacutevel a partir de termos natildeo intencionais
11 Vimos que a intransponibilidade do ciacuterculo intencional eacute sustentada por Chisholm porque os termos natildeo intencionais satildeo inuacuteteis para definir a intencionalidade Apesar de reconhecer a importacircncia da Rede Searle (1995
Maxwell Morais de Lima Filho | 83
Todos os fenocircmenos intencionais quer sejam crenccedilas desejos esperanccedilas
medos ou outros pressupotildeem capacidades natildeo intencionais de background
para que possam funcionar Com isso quero dizer que os estados intencionais
somente determinam suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo e portanto somente
funcionam como estados intencionais se for pressuposto um conjunto de
capacidades que nos permitem aplicar os estados intencionais A
intencionalidade natildeo eacute por assim dizer autointerpretante ou autoaplicativa
[hellip] [O] ponto importante dessas habilidades de background eacute que elas
mesmas natildeo satildeo representacionais Natildeo consistem num conjunto de regras
crenccedilas ou outros tipos de representaccedilotildees
Nos anos 50 e 60 do seacuteculo XX pouco apoacutes a proposta behaviorista
de Ryle filoacutesofos como Herbert Feigl Ullin Thomas Place John Jamieson
Carswell Smart e David Malet Armstrong defenderam uma teoria da
identidade mente-ceacuterebro segundo a qual os estados mentais nada mais
satildeo do que estados fiacutesicos que ocorrem no sistema nervoso Portanto
estamos diante de um monismo fiacutesico que identifica ontologicamente o
domiacutenio psicoloacutegico ao neurobioloacutegico como ocorre na identificaccedilatildeo entre
a dor e a descarga de fibras C Em artigo publicado originalmente em 1956
Place (2002) defende a hipoacutetese cientiacutefica de que a consciecircncia eacute um
processo cerebral sem se comprometer com a suposiccedilatildeo adicional de que
a linguagem neurobioloacutegica sirva para descrever os sonhos as fantasias e
as sensaccedilotildees Eacute justamente porque a assunccedilatildeo da identidade mente-
ceacuterebro eacute anaacuteloga agravequela das Ciecircncias Naturais ndash que se reflete por sua
vez na ausecircncia de equivalecircncia semacircntica entre as descriccedilotildees dos
fenocircmenos fiacutesicos e mentais ndash que natildeo seria irracional se Royce afirmasse
p 198) recua um passo ao advogar que o Pano de Fundo preacute-intencional eacute a condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer estado intencional ldquoO Background eacute lsquopreacute-intencionalrsquo no sentido de que embora natildeo seja uma forma ou formas de Intencionalidade eacute natildeo obstante uma precondiccedilatildeo ou um conjunto de precondiccedilotildees de Intencionalidaderdquo Portanto se a definiccedilatildeo de intencionalidade empregada por Searle eacute circular natildeo deixa de ser verdade que ela se explica a partir do Pano de Fundo Ressaltamos que os obstaacuteculos impostos por determinadas praacuteticas humanas situadas podem ser transpostos devido ao compartilhamento de um Background profundo Eis dois exemplos do proacuteprio Searle (2006 p 277) ldquoDiferenccedilas de Backgrounds locais tornam difiacutecil a traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra a generalidade do Background profundo torna-a possiacutevel de qualquer modo Se vocecirc lecirc a descriccedilatildeo de um jantar festivo na casa dos Guermantes em Proust provavelmente deve achar alguns aspectos da descriccedilatildeo enigmaacuteticos Isso tem a ver com diferenccedilas de praacuteticas culturais locais Mas existem certas coisas que vocecirc pode dar por certas Por exemplo os participantes natildeo comem enfiando a comida em seus ouvidosrdquo
84 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que sente dor e que as suas fibras C natildeo disparam haja vista que o
enunciado ldquoRoyce estaacute com dorrdquo natildeo eacute sinocircnimo de ldquoas fibras C de Royce
estatildeo disparandordquo do mesmo modo que natildeo seria um absurdo declarar
que a aacutegua deste copo natildeo eacute composta por H2O
Como Searle defende que os fenocircmenos mentais satildeo causados e
realizados no sistema nervoso ele natildeo veria problema algum em localizaacute-
los espaacutecio-temporalmente nos processos cerebrais subjacentes desde que
levemos em conta que uns e outros satildeo ontologicamente distintos ou seja
que aqueles fenocircmenos possuem caracteriacutesticas intriacutensecas que os tornam
irredutiacuteveis a padrotildees sinaacutepticos estes sim descritiacuteveis a partir do
vocabulaacuterio neurocientiacutefico de terceira pessoa Dito isso vemos o porquecirc
de Searle (2010e p 129-30) criticar a identificaccedilatildeo ontoloacutegica do
fisicalismo redutivo
Assim quando o teoacuterico da identidade nos diz que os estados mentais satildeo
somente estados cerebrais haacute um modo de compreender essa tese que eacute
perfeitamente compatiacutevel com nossa pressuposiccedilatildeo de senso comum sobre o
caraacuteter intriacutenseco e irredutiacutevel da consciecircncia e de outras formas de
intencionalidade [hellip] Mas em geral natildeo eacute isso o que os teoacutericos da identidade
querem dizer Um exame cuidadoso dos textos [hellip] revela que em geral os
teoacutericos da identidade [hellip] acabam por negar a existecircncia das caracteriacutesticas
intrinsecamente mentais do mundo
Outra objeccedilatildeo eacute feita agrave contundente asserccedilatildeo de que os estados
mentais compartilhados por duas pessoas implicam que eles satildeo
necessariamente determinados por processos neurofisioloacutegicos de tipo
idecircntico Assim sendo os mesmos estados fiacutesicos devem ocorrer nos
ceacuterebros de Jacoacute e de Luiz para que eles compartilhem a crenccedila de que
Januaacuterio eacute o maior dos sanfoneiros Ora jaacute que somos cercados por
estruturas bioloacutegicas e por artefatos que satildeo multiplamente realizaacuteveis do
ponto de vista fiacutesico por que o mesmo natildeo ocorreria com os estados
mentais Em outras palavras se olhos asas reloacutegios e cadeiras satildeo
compostos e organizados fisicamente de mais de um modo por que algo
semelhante natildeo se daria com a mentalidade Destarte nada impede que a
Maxwell Morais de Lima Filho | 85
mesma crenccedila na grandiosidade musical de Januaacuterio seja realizada por
padrotildees neurocircnicos de tipo X no velho Jacoacute e de tipo Y em seu filho Searle
(2010h p 344) se vale de outros exemplos para corroborar a tese da
realizaccedilatildeo muacuteltipla do mental e para explicitar o que faz com que dois
estados psicoloacutegicos sejam do mesmo tipo
Assim vocecirc e eu podemos ter cada qual a mesma crenccedila de que estaacute nevando
sem que nossas neurofisiologias sejam necessariamente de tipo idecircntico assim
como meu carro e o seu podem ter cada qual um carburador embora o meu
seja de accedilo e o seu de latatildeo Mas entatildeo o que os estados mentais tecircm em
comum capaz de tornaacute-los de tipo idecircntico Creio que a resposta oacutebvia eacute que
eles satildeo de tipo idecircntico por causa de suas caracteriacutesticas mentais comuns
sejam elas caracteriacutesticas de consciecircncia da intencionalidade ou de ambas ou
ainda outras espeacutecies de caracteriacutesticas mentais
Aliaacutes foi motivado por esse tipo de criacutetica ao fisicalismo redutivo que
surgiu nos anos 60 a teoria funcionalista que talvez ainda hoje seja a
concepccedilatildeo de maior prestiacutegio acadecircmico De acordo com uma de suas
vertentes os fenocircmenos mentais podem ser produzidos artificialmente
pelos chips de siliacutecio de computador o que demonstraria a inexistecircncia de
um viacutenculo necessaacuterio entre ceacuterebros complexos e estados mentais Como
natildeo seriam essencialmente bioloacutegicos o aspecto relevante residiria no
papel funcional envolvido nas relaccedilotildees entre os proacuteprios estados mentais
bem como destes com as informaccedilotildees provenientes do ambiente e que
direcionam o comportamento Essa centralidade do papel funcional estaacute
por traacutes do pressuposto metodoloacutegico do teste de Turing (1950) de que se
uma maacutequina manifesta um comportamento linguiacutestico tatildeo complexo
quanto o do ser humano eacute porque nos eacute similar em inteligecircncia e
mentalidade
Com o fito de atacar esse pressuposto behaviorista do funcionalismo
e para asseverar que toda e qualquer maacutequina de Turing eacute incapaz de
compreender os siacutembolos que manipula Searle12 (1980a) propocircs o
12 Apresentamos o ataque de Searle ao funcionalismo computacional em Lima Filho (2010a)
86 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
experimento de pensamento do quarto chinecircs Em linhas gerais podemos
expor o famoso Gedankenexperiment do seguinte modo confinado em um
quarto Searle passa a receber folhas escritas em chinecircs liacutengua da qual ele
natildeo conhece um soacute ideograma e que eacute incapaz de falar quaisquer palavras
tambeacutem o fornecem um manual com regras escritas em inglecircs que lhe
permite relacionar pelo formato os siacutembolos recebidos com outras folhas
redigidas em chinecircs que ele passa por debaixo da porta Esse processo
ocorre repetidamente ndash recebimento do texto em chinecircs consulta ao
manual e devoluccedilatildeo do siacutembolo correspondente ndash e sem que o filoacutesofo se
aperceba disso o falante de chinecircs julga que estaacute entabulando uma
conversaccedilatildeo porque dele recebeu respostas satisfatoacuterias sobre o seu nome
a sua origem e a sua profissatildeo O ponto nevraacutelgico da argumentaccedilatildeo eacute que
a manipulaccedilatildeo simboacutelica natildeo eacute suficiente para a compreensatildeo semacircntica e
que o maacuteximo alcanccedilaacutevel por um programa de computador eacute a simulaccedilatildeo13
ndash mas natildeo a duplicaccedilatildeo ndash de estados mentais Eis como Searle (1998a p
38-9) posteriormente resume o seu argumento
1 Programas satildeo totalmente sintaacuteticos
2 As mentes tecircm uma capacidade semacircntica
3 A sintaxe natildeo eacute a mesma coisa que a semacircntica nem eacute por si soacute suficiente
para garantir um conteuacutedo semacircntico
Consequentemente programas natildeo satildeo mentes
Para golpear o cognitivismo ndash linha para a qual os processos
cognitivos satildeo inconscientes e computacionais ndash Searle propotildee um
argumento assentado na tese de que a computaccedilatildeo eacute relativa ao
observador e eacute exclusivamente sintaacutetica Consoante Moural (2003)
podemos resumi-lo nessas quatro asserccedilotildees
13 Analogamente Searle (2007 p 66) afirma que um programa computacional simulador da digestatildeo eacute incapaz de decompor fiacutesico-quimicamente um pedaccedilo de pizza ldquo[U]m computador realiza um modelo ou uma simulaccedilatildeo de um processo E a simulaccedilatildeo computacional de uma mente eacute como a simulaccedilatildeo computacional da digestatildeo Eu natildeo sei por qual motivo as pessoas cometem um erro tatildeo bobo Veja se fizermos uma simulaccedilatildeo computacional perfeita da digestatildeo ningueacutem poderia pensar lsquovamos comprar uma pizza e pocirc-la no computadorrsquo Eacute um modelo uma fotografia da digestatildeo Nos mostra que a estrutura formal de funcionamento de fato natildeo digere nada Isso eacute o que ocorre com um computador Um modelo computacional do que eacute apaixonar-se ler um romance ou embriagar-se natildeo se apaixona nem lecirc um romance nem se embriaga de fato Somente faz uma representaccedilatildeo dessas coisasrdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 87
(i) Por definiccedilatildeo computaccedilatildeo consiste em uma manipulaccedilatildeo formal de siacutembolos
(ii) No entanto como nem a sintaxe nem os siacutembolos satildeo definidos em termos fiacutesicos
natildeo podemos consideraacute-los intriacutensecos agrave Fiacutesica
(iii) Como o significado da sintaxe e dos siacutembolos soacute podem ser atribuiacutedos perante
um observador segue-se que o mesmo deva se dar com a computaccedilatildeo
(iv) Consequentemente a possibilidade de realizarmos uma interpretaccedilatildeo
computacional do ceacuterebro natildeo nos autoriza a conjecturar que esse oacutergatildeo seja
intrinsecamente um computador
A distinccedilatildeo capital que permeia esse argumento eacute aquela entre as
caracteriacutesticas que independem e as que dependem do observador14 como
o satildeo respectivamente a massa da moleacutecula de aacutegua e a funccedilatildeo
cronomeacutetrica do reloacutegio Com isso Searle (2002b) faz uma discriminaccedilatildeo
entre estados mentais humanos e aqueles atribuiacutedos ao computador o
estado de consciecircncia de Searle eacute intrinsecamente intencional porque
existe independentemente do que pensemos a seu respeito diversamente
dos estados mentais que outorgamos agrave maacutequina e que possuem uma
intencionalidade relativa ao observador15 Portanto o medo expresso por
14 Para Searle (1998a p 42) as Ciecircncias da Natureza se distinguem das Ciecircncias Sociais pelo estudo dessas caracteriacutesticas ldquoAs ciecircncias naturais lidam com essas propriedades da natureza que satildeo intriacutensecas ou independentes do observador no sentido de sua existecircncia natildeo depender do que pensamos sobre ela Exemplos dessas propriedades satildeo a massa a fotossiacutentese a carga eleacutetrica e a mitose As ciecircncias sociais em geral lidam com propriedades que satildeo dependentes do observador ou relativas ao observador no sentido de que sua existecircncia depende de como os seres humanos tratam usam ou ao menos pensam a respeito delas Exemplos tiacutepicos satildeo o dinheiro a propriedade e o casamentordquo
15 Estamos diante de uma intencionalidade intriacutenseca quando adicionamos mentalmente dois e dois e obtemos quatro jaacute quando expressamos esse caacutelculo pela linguagem falada ou escrita referimo-nos agrave intencionalidade derivada por fim temos tambeacutem a intencionalidade ldquocomo serdquo quando falamos que o gramado ou o carro estatildeo
sedentos Como adverte Searle (2010f p 189-90) a sede do gramado ou do automoacutevel natildeo eacute intencional mas tatildeo somente metafoacuterica ldquoa intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo eacute intencionalidade de modo nenhum Quando afirmo que um sistema tem uma intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo lhe atribuo intencionalidade Estou afirmando apenas que o sistema se comporta como se tivesse intencionalidade embora natildeo a tenha de fatordquo Como a intencionalidade intriacutenseca precede a linguagem poderiacuteamos encontraacute-la em bebecircs humanos e em outras espeacutecies animais Eacute nesse sentido que as carecircncias de aacutegua e de alimento causariam os primordiais desejos de beber e de comer como assinala Searle (2000 p 91-2) ldquoAs formas biologicamente mais primitivas de intencionalidade satildeo as formas de desejo que envolvem necessidades fiacutesicas como a fome e a sede Ambas satildeo intencionais porque ambas satildeo formas de desejo A fome eacute um desejo de comer a sede um desejo de beberrdquo Searle (2012 p 24) vai aleacutem e advoga que esses estados mentais preacute-linguiacutesticos satildeo indissociaacuteveis de suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo ldquoEssas formas preacute-linguiacutesticas de intencionalidade jaacute possuem algumas propriedades loacutegicas cruciais Porque percepccedilotildees intenccedilotildees crenccedilas desejos e assim por diante satildeo formas de intencionalidade elas trazem em si especificamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees de sucesso ou fracasso Por exemplo um animal faminto tem o desejo de comer e patologias agrave parte assim ele tem a capacidade de reconhecer quando esse desejo eacute satisfeito e quando natildeo o eacuterdquo No entanto essa alegada intrinsecalidade dos estados mentais eacute posta em duacutevida por Gauker (2012 p 154) ldquoO fato de que os bebecircs os animais natildeo humanos e os hominiacutedeos preacute-linguiacutesticos possuam estados intencionais se isso fosse um fato natildeo mostraria
88 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Hal 9000 quando David Bowman estava desativando seus processos
superiores natildeo passa de uma fobia metafoacuterica Para Searle (1980a) natildeo haacute
qualquer arbitrariedade no criteacuterio que se funda na intencionalidade
intriacutenseca para diferenciar a mentalidade da decisatildeo de Bowman do pavor
figurado de Hal 9000 se assim o fosse estaria subjugado a nosso bel-
prazer encarar os nossos semelhantes como zumbis e a estiagem como
mental
Os argumentos levantados por Searle de que a sintaxe eacute insuficiente
para a semacircntica e de que ela natildeo eacute intriacutenseca agrave Fiacutesica natildeo raras vezes tem
conduzido agrave interpretaccedilatildeo de que ele seja repulsivo ao projeto de um
ceacuterebro e de uma mente artificiais No entanto essa chave de leitura eacute
injusta porque ambos os argumentos do filoacutesofo estadunidense satildeo
voltados para o programa do computador ndash e natildeo para o hardware
Justamente por se apoiar nas Ciecircncias da Natureza Searle natildeo nega que
uma funccedilatildeo possa ser multiplamente realizada como eacute o caso do voo
executaacutevel bioloacutegica ndash insetos aves e morcegos ndash ou tecnologicamente ndash
balotildees aviotildees helicoacutepteros e foguetes Por mais distintas que sejam as asas
da mosca e as do 14-bis elas compartilham poderes causais que permitem
ao animal e ao aviatildeo sobrepujarem a forccedila da gravidade Ora se a
consciecircncia eacute uma caracteriacutestica sistecircmica do ceacuterebro e desejamos
produzi-la artificialmente basta que dupliquemos os poderes causais
desse oacutergatildeo Nas palavras de Searle (2000 p 56)
Quando digo que o ceacuterebro eacute um oacutergatildeo bioloacutegico e a consciecircncia um processo
bioloacutegico eacute claro que natildeo estou dizendo ou sugerindo que seria impossiacutevel
produzir um ceacuterebro artificial a partir de materiais natildeo bioloacutegicos que tambeacutem
pudessem ser causa da consciecircncia e sustentaacute-la [] O ponto que deve ser
enfatizado eacute que tal ceacuterebro artificial teria de reproduzir as verdadeiras causas
dos ceacuterebros humanos e animais para produzir estados de consciecircncia
internos qualitativos e subjetivos A produccedilatildeo de comportamentos similares
por si soacute natildeo seria suficiente
que a intencionalidade dos estados mentais eacute lsquointriacutensecarsquo em qualquer sentido mas mostraria que a capacidade para pensar com as propriedades semacircnticas natildeo depende da posse de uma linguagem ao contraacuterio de minha hipoacuteteserdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 89
Dessa maneira o autor drsquoA Redescoberta da Mente aceita uma versatildeo
bem mais branda da tese de realizaccedilatildeo muacuteltipla em comparaccedilatildeo com a que
eacute acatada pelos funcionalistas pois nem todo material seria capaz de
efetuar a funccedilatildeo em questatildeo Como Searle (1984) diz abertamente o
ceacuterebro eacute uma maacutequina viva e portanto a sua constituiccedilatildeo bioloacutegica eacute
relevante para a produccedilatildeo e para a realizaccedilatildeo da mente ou seja eacute de nosso
conhecimento que os padrotildees sinaacutepticos satildeo efetivos para a emergecircncia de
estados intencionalmente intriacutensecos Contudo diferentemente do que se
daacute com o voo a nossa atual ignoracircncia sobre os detalhes bioquiacutemicos e
fisioloacutegicos nos impede por enquanto de duplicar os estados mentais em
estruturas natildeo bioloacutegicas
Para fechar o nosso itineraacuterio pela Filosofia da Mente apresentamos
a seguir o fisicalismo eliminativista corrente defendida por Paul
Feyerabend Richard Rorty Patricia e Paul Churchland Diferentemente da
abordagem fisicalista de Feigl Place Smart e Armstrong o eliminativista
rejeita a identificaccedilatildeo entre os fenocircmenos neurofisioloacutegicos e os mentais
haja vista que estes uacuteltimos natildeo passam de ilusatildeo Para defender a tese do
irrealismo do mental e a sua necessaacuteria eliminaccedilatildeo teoacuterica o fisicalista
eliminativo lanccedila matildeo da seguinte analogia histoacuterica no tempo das
Inquisiccedilotildees sustentava-se a necessidade de caccedilar e de queimar na fogueira
a mulher que pactuava com Satanaacutes mas atualmente nenhuma pessoa
sensata admitiria a existecircncia de bruxas Essa mudanccedila de perspectiva se
daacute porque o progresso epistecircmico revelou a falsidade do conceito de bruxa
e o eliminou do arcabouccedilo terminoloacutegico da Ciecircncia como aconteceraacute ndash
alega Paul Churchland (2004 p 79) ndash com os termos da Psicologia
Popular
[N]atildeo podemos esperar que uma explicaccedilatildeo realmente adequada de nossa vida
interior feita pela neurociecircncia revele categorias teoacutericas que correspondam
exatamente agraves categorias do arcabouccedilo de senso comum [posiccedilatildeo anti-
reducionista] Dessa forma devemos esperar que o antigo arcabouccedilo seja
simplesmente eliminado e natildeo reduzido por uma neurociecircncia amadurecida
90 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Consoante Teixeira (2008) a Psicologia Popular eacute a teoria que nos
permite explicar o comportamento humano evocando conceitos como
crenccedila desejo e intenccedilatildeo Desse modo o avanccedilo neurocientiacutefico natildeo
acarretaraacute a reduccedilatildeo da Psicologia Popular pois natildeo haacute uma
correspondecircncia um-a-um entre essas duas aacutereas o que demonstraria a
necessidade de suprimir os termos psicoloacutegicos que representam de modo
distorcido os estados neurofisioloacutegicos e as causas do comportamento Por
conseguinte uma Neurociecircncia16 avanccedilada e precisa propiciaraacute
eliminaccedilotildees teoacutericas como a de algueacutem que mencione a ativaccedilatildeo de suas
fibras C em tal regiatildeo do ceacuterebro no lugar de falar que estaacute com dor como
expotildee Churchland (2004 p 82)
Nossas explicaccedilotildees sobre os comportamentos uns dos outros iratildeo recorrer a
coisas como nossos estados neurofarmacoloacutegicos nossa atividade neural em
aacutereas anatocircmicas especiacuteficas e a outros estados que forem relevantes para a
nova teoria Nossa introspecccedilatildeo individual tambeacutem seraacute transformada e
poderaacute ser profundamente aprimorada em razatildeo de um arcabouccedilo conceitual
mais penetrante e preciso com o qual ela teraacute de trabalhar []
Searle (2006) trata com sarcasmo os eliminativistas ao perguntar se
deveria beliscaacute-los para provar que satildeo conscientes e que sentem dor
advogando que o fato de os estados mentais dependerem ontologicamente
dos processos neurobioloacutegicos natildeo os tornam aparentes ou ilusoacuterios Em
outras palavras por mais que conheccedilamos todos os pormenores
bioquiacutemicos e fisioloacutegicos dos processos cerebrais isso natildeo baniraacute ndash nem
ontoloacutegica nem explicativamente ndash o niacutevel dos fenocircmenos psicoloacutegicos
Estes fenocircmenos inexistiriam se houvesse uma distinccedilatildeo entre a aparecircncia
e a realidade17 mas esse natildeo eacute o caso como pontua Searle (2000 p 59)
16 Rorty (1997 p 158) pinta o hipoteacutetico progresso neurocientiacutefico com essas tintas ldquoNoacutes esperamos que a fisiologia possa algum dia traccedilar um caminho a partir da distribuiccedilatildeo de descargas eleacutetricas em meu ceacuterebro ateacute as interfaces [neuromusculares] em minha garganta e por conseguinte nos viabilizar predizer elocuccedilotildees por sobre a base dos estados cerebraisrdquo
17 Em outro texto Searle (1998c p 224) faz a seguinte comparaccedilatildeo ldquoReduccedilotildees eliminatoacuterias exigem uma distinccedilatildeo entre a realidade e a aparecircncia Por exemplo o Sol parece se pocircr mas na realidade eacute a Terra que realiza o movimento de rotaccedilatildeo Mas vocecirc natildeo pode fazer este movimento para a consciecircncia porque no que diz respeito agrave consciecircncia a realidade eacute a aparecircncia Se conscientemente tenho a impressatildeo de ser consciente entatildeo sou conscienterdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 91
Natildeo podemos fazer uma reduccedilatildeo eliminatoacuteria da consciecircncia porque o padratildeo
das reduccedilotildees eliminatoacuterias eacute mostrar que o fenocircmeno reduzido eacute apenas uma
ilusatildeo No entanto no que diz respeito agrave consciecircncia a existecircncia da ldquoilusatildeordquo eacute
a proacutepria realidade Isso quer dizer que se me parece que estou consciente
entatildeo eu estou Natildeo haacute nada na consciecircncia aleacutem de uma sequumlecircncia de
ldquoaparecircnciasrdquo desse tipo A esse respeito a consciecircncia eacute diferente dos poentes
porque eu posso ter a ilusatildeo de que o sol estaacute se pondo por traacutes das montanhas
quando na verdade ele natildeo estaacute fazendo isso
Dessa maneira os processos neurofisioloacutegicos satildeo capazes de explicar
minuciosamente a causa da dor mas isso natildeo significa deixaacute-la de lado
como um conceito preacute-cientiacutefico muito pelo contraacuterio haja vista que a
sensaccedilatildeo dolorosa possui uma ontologia de primeira pessoa no sentido de
ser experienciada por um sujeito e de possuir um modo de existecircncia
qualitativo que a diferencia dos disparos neurocircnicos que a causam Essa
caracteriacutestica real e ineliminaacutevel da mentalidade eacute expressa por Searle
(1998b p 57-8) ao declarar que
a pura sensaccedilatildeo qualitativa de dor eacute uma propriedade do ceacuterebro bem
diferente das descargas neuronais que causam a dor Logo em se tratando de
descargas neuronais vocecirc pode obter uma reduccedilatildeo causal de dor mas natildeo
uma reduccedilatildeo ontoloacutegica Isto eacute vocecirc pode fornecer uma anaacutelise causal
completa da razatildeo de sentirmos dores mas isso natildeo mostra que as dores natildeo
existam realmente
Fazendo um apanhado geral do que apresentamos constatamos que
o filoacutesofo estadunidense critica severamente todas as principais correntes
recusando igualmente o dualismo a reduccedilatildeo ontoloacutegica e a eliminaccedilatildeo da
Psicologia Popular Para ele a criacutetica ao dualismo acabou jogando o bebecirc
junto com a aacutegua suja do banho pois os fenocircmenos mentais conscientes
foram descartados juntamente com a alma imaterial Eacute como se o pavor
pelo conceito de alma justificasse a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer
92 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
subjetividade18 do seio da natureza O polo oposto tambeacutem eacute desalentador
pois a defesa da mentalidade se faz agraves custas de uma consciecircncia natildeo fiacutesica
Searle (2006 p 23-4) pinta com essas tintas o quadro sinoacuteptico da
Filosofia da Mente
Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais que soam
ldquocartesianosrdquo porque parece que se aceitarmos os fatos teremos de aceitar
toda a metafiacutesica cartesiana Qualquer espeacutecie de mentalismo que reconheccedila
os fatos oacutebvios de nossa existecircncia eacute considerada automaticamente suspeita
[hellip] De um modo talvez mais exasperante ainda eles satildeo auxiliados nesse erro
por aqueles filoacutesofos que de bom grado reconhecem a existecircncia da consciecircncia
e assim fazendo supotildeem estar afirmando a existecircncia de algo natildeo fiacutesico
Ao recusar ambas as posiccedilotildees Searle (2006 p 26-7) pretende articular
uma concepccedilatildeo que natildeo apenas leve em consideraccedilatildeo a subjetividade do
mental mas que a fundamente nas Ciecircncias Naturais deixando de lado
quaisquer ldquoaparatos cartesianosrdquo haja vista que o mental eacute fiacutesico
[O] fato de uma caracteriacutestica ser mental natildeo implica que natildeo seja fiacutesica o fato
de uma caracteriacutestica ser fiacutesica natildeo implica que natildeo seja mental Revisitando
Descartes [] poderiacuteamos dizer natildeo somente ldquopenso logo existordquo e ldquosou um ser
pensanterdquo mas tambeacutem sou um ser pensante portanto sou um ser fiacutesicordquo
[]
Minhas proacuteprias concepccedilotildees natildeo se encaixam em nenhum dos roacutetulos
tradicionais mas para muitos filoacutesofos a ideia de que algueacutem possa defender
um ponto de vista que natildeo se encaixe nessas categorias parece incompreensiacutevel
Pior ainda talvez haacute diversos substantivos e verbos que parecem ter significados
claros como se realmente apresentassem objetos e atividades bem definidos ndash
ldquomenterdquo ldquoegordquo e ldquointrospecccedilatildeordquo satildeo exemplos oacutebvios
A concepccedilatildeo positiva de Searle (1980b p 455) ndash por ele denominada
de naturalismo bioloacutegico ndash surgiu pela primeira vez quando rebateu as
criacuteticas feitas a Mentes Ceacuterebros e Programas no artigo Intencionalidade
Intriacutenseca ocasiatildeo na qual comparou os estados mentais agraves propriedades
18 Para mais informaccedilotildees sobre o importante papel da subjetividade no naturalismo bioloacutegico consultar Lima Filho (2017c)
Maxwell Morais de Lima Filho | 93
de um pneu Na ocasiatildeo seu principal alvo era atacar o funcionalismo
computacional ao apontar as limitaccedilotildees intriacutensecas ao programa de
computador ao mesmo tempo em que destacava a relevacircncia do estofo
bioloacutegico para a mentalidade No entanto tambeacutem vislumbramos nesse
texto o seu repuacutedio ao irrealismo do mental propugnado pelos fisicalistas
redutivos e eliminativos e ao caraacuteter natildeo fiacutesico resguardado pelos dualistas
de substacircncia e de propriedade Natildeo consiste nenhuma surpresa que a
estrateacutegia ofensiva de Searle tenha gerado contra-ataques dos mais
variados vieses dualistas e fisicalistas os quais o impulsionaram em parte
a desenvolver cada vez mais a sua posiccedilatildeo ancorada em dois grandes
compromissos teoacutericos a saber a subjetividade e a biologicidade do
mental Os fenocircmenos mentais ndash ontologicamente subjetivos ndash satildeo
bioloacutegicos tanto na acepccedilatildeo evolutiva quanto na funcional De acordo com
esta uacuteltima os processos neurofisioloacutegicos causam e sustentam a
mentalidade a qual surgiu historicamente devido aos processos evolutivos
que atuaram sobre linhagens animais no decorrer das eras geoloacutegicas19
Referecircncias
ABRANTES Paulo Cesar Coelho T Nagel e os limites de um reducionismo fisicalista (uma
introduccedilatildeo ao artigo ldquoWhat is it like to be a batrdquo) Cadernos de Histoacuteria e Filosofia
da Ciecircncia Campinas v 15 n 1 janeirojunho p 223-44 2005
BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Traduccedilatildeo de Desideacuterio Murcho
Pedro Galvatildeo Ana Cristina Domingues Pedro Santos Clara Joana Martins e Antocircnio
Horta Branco Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997
CHANGEUX Jean-Pierre O homem neuronal Traduccedilatildeo de Artur Jorge Pires Monteiro
Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1985
CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia uma introduccedilatildeo contemporacircnea agrave filosofia
da mente Traduccedilatildeo de Maria Clara Cescato Satildeo Paulo Editora UNESP 2004
19 Expomos a concepccedilatildeo naturalista de Darwin e o pano de fundo cientiacutefico do naturalismo bioloacutegico em Lima Filho (2015a 2015b 2017a e 2017b)
94 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
COTTINGHAM John A filosofia de Descartes Traduccedilatildeo de Maria do Rosaacuterio Sousa
Guedes Lisboa Ediccedilotildees 70 1989
_____ Descartes a filosofia da mente de Descartes Traduccedilatildeo de Jesus de Paula Assis Satildeo
Paulo Editora UNESP 1999
DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Traduccedilatildeo de J Ginsburg e Bento Prado Juacutenior Satildeo Paulo
Nova Cultural 1996
_____ Meditaccedilotildees sobre filosofia primeira Traduccedilatildeo de Fausto Castilho Campinas
Editora da Unicamp 2004
GAUKER Christopher Sobre a alegada prioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem
In TSOHATZIDIS Savas (Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila
significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora
UNESP 2012 p 143-63
JACKSON Frank What Mary didnt know The Journal of Philosophy v 83 n 5 p 291-
5 1986
_____ Epiphenomenal qualia In HEIL John (Ed) Philosophy of mind a guide and
anthology Oxford University Press 2004 p 762-71
LECLERC Andreacute Intencionalidade In BRANQUINHO Joatildeo SANTOS Ricardo (Eds)
Compecircndio em linha de problemas de filosofia analiacutetica Lisboa Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa p 1-25 2015 Disponiacutevel em lt
httprepositorioulptbitstream10451200431leclerc_2015_intencionalidadep
dfgt Acesso em 25 jul 2017
LIMA FILHO Maxwell Morais de O experimento de pensamento do quarto chinecircs a criacutetica
de John Searle agrave inteligecircncia artificial forte Argumentos ndash Revista de Filosofia n 3
p 51-8 2010a
_____ O problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico o dilema entre
epifenomenalismo e sobredeterminaccedilatildeo Cadernos UFS Filosofia v 8 p 85-96
agodez 2010b
_____ Teoria atocircmica biologia evolutiva e consciecircncia In SOUZA Marcus Joseacute Alves de
LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs) Escritos de filosofia linguagem e
cogniccedilatildeo Maceioacute EDUFAL 2015a p 31-46
Maxwell Morais de Lima Filho | 95
_____ A criacutetica de Darwin ao argumento teleoloacutegico de Paley In MAIA Antonio Glaudenir
Brasil OLIVEIRA Geovani Paulino (Orgs) Filosofia religiatildeo e secularizaccedilatildeo
Porto Alegre Editora Fi 2015b p 84-108
_____ Pode-se estudar cientificamente a consciecircncia In ARAUacuteJO Arthur et al (Orgs)
Pragmatismo filosofia da mente e filosofia da neurociecircncia Satildeo Paulo
Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia (Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF)
2017a p 379-95 Republicado em SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO
Maxwell Morais de (Orgs) Escritos de filosofia II linguagem e cogniccedilatildeo Maceioacute
EDUFAL 2017b p 67-89
_____ Subjetividade ontoloacutegica no naturalismo bioloacutegico de John Searle In TEMPLE
Giovana C (Org) Subjetividade no pensamento do seacuteculo XX Curitiba Appris
Editora 2017c p 267-85
MOURAL Josef The chinese room argument In SMITH Barry (Ed) John Searle
Cambridge University Press 2003 p 214-60
PEREIRA Roberto Horaacutecio de Saacute Qualia In BRANQUINHO Joatildeo SANTOS Ricardo
(Eds) Compecircndio em linha de problemas de filosofia analiacutetica Lisboa Centro
de Filosofia da Universidade de Lisboa p 1-14 2013 Disponiacutevel em
lthttpcompendioemlinhaletrasulisboaptqualia-roberto-horacio-pereiragt
Acesso em 27 jun 2016
PLACE Ullin Thomas Is conciousness a brain process In CHALMERS David (ed)
Philosophy of mind classical and contemporary readings New YorkOxford
Oxford University Press 2002 p 55-60
RORTY Richard A filosofia e o espelho da natureza Traduccedilatildeo de Antocircnio Tracircnsito Rio
de Janeiro Relume Dumaraacute 1994
_____ Fisicalismo natildeo-redutivo In _____ Objetivismo relativismo e verdade escritos
filosoacuteficos volume 1 Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume
Dumaraacute 1997 p 157-72
RYLE Gilbert Introduccedilatildeo agrave psicologia o conceito de espiacuterito Traduccedilatildeo de M Luiacutesa
Nunes Lisboa Moraes Editores 1970
SEARLE John Minds brains and programs Behavioral and Brain Sciences v 3 n 3 p
417-24 1980a
96 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ Intrinsic intentionality reply to criticisms of Minds brains and programs
Behavioral and Brain Sciences v 3 n 3 p 450-6 1980b
_____ Mente ceacuterebro e ciecircncia Traduccedilatildeo de Artur Moratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1984
_____ Intencionalidade Traduccedilatildeo de Julio Fischer e Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo
Martins Fontes 1995
_____ A consciecircncia como um problema bioloacutegico In _____ O misteacuterio da consciecircncia
e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji
Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra 1998a p 29-45
_____ Francis Crick o problema da integraccedilatildeo e a hipoacutetese dos quarenta hertz In _____
O misteacuterio da consciecircncia e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers
Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra
1998b p 47-62
_____ Como transformar o misteacuterio da consciecircncia no problema da consciecircncia In _____
O misteacuterio da consciecircncia e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers
Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra
1998c p 201-26
_____ Mente linguagem e sociedade filosofia no mundo real Traduccedilatildeo de F Rangel
Rio de Janeiro Rocco 2000
_____ Filosofia contemporacircnea nos Estados Unidos In BUNNIN Nicholas TSUI-JAMES
Eric (Eds) Compecircndio de filosofia Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Ediccedilotildees Loyola 2002a p 1-23
_____ Twenty-one years in the chinese room In PRESTON John BISHOP Mark (Eds)
Views into the chinese room new essays on Searle and artificial intelligence New
York Oxford University Press 2002b p 51-69
_____ A redescoberta da mente Traduccedilatildeo de Eduardo Pereira Ferreira 2 ed Satildeo Paulo
Martins Fontes 2006
_____ Los haacutebitos del pensamiento critico Entrevista a John Searle Traduccioacuten de Edison
Otero Bello Cuadernos de Neuropsicologiacutea Valparaiso v 1 n 1 p 58-71 2007
Maxwell Morais de Lima Filho | 97
_____ O problema da consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de
Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010a p 1-19
_____ Como estudar cientificamente a consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010b p 21-50
_____ A consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira
Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010c p 51-92
_____ As mentes dos animais In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio
Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010d p 93-119
_____ A intencionalidade e seu lugar na natureza In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010e p 121-42
_____ A explicaccedilatildeo da cogniccedilatildeo In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio
Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010f p 171-210
_____ A intencionalidade individual e os fenocircmenos sociais na teoria dos atos de fala In
_____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo
Martins Fontes 2010g p 231-53
_____ A filosofia analiacutetica e os fenocircmenos mentais In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010h p 335-73
_____ O que eacute a linguagem algumas observaccedilotildees preliminares In TSOHATZIDIS Savas
(Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo
de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora UNESP 2012 p 17-51
_____ Por que eu natildeo sou um dualista de propriedades Traduccedilatildeo de Joseacute Renato Freitas
Recircgo amp Juliana de Orione Arraes Fagundes Filosofando Revista de Filosofia da
UESB Vitoacuteria da Conquista n 2 juldez p 104-14 2014
TEIXEIRA Joatildeo de Fernandes A mente segundo Dennett Satildeo Paulo Perspectiva 2008
TURING Alan Computing machinery and intelligence Mind v 59 n 236 p 433-60 1950
5
Da Natureza Humana
As Perspectivas Epistemoloacutegicas
de Piaget Chomsky e Foucault
Argus Romero Abreu de Morais 1
Consideraccedilotildees Iniciais
Em 1971 convidados pelo apresentador holandecircs Fons Elders para
um debate televisivo Noam Chomsky e Michel Foucault aceitaram
esclarecer suas perspectivas a respeito dos conceitos de natureza humana
justiccedila e poder (CHOMSKY 2014) Poucos anos apoacutes em 1975 Jean Piaget
e Noam Chomsky se reuniram com renomados pesquisadores do mundo
na Abadia de Royaumont na Franccedila para discutirem as questotildees
vinculadas agrave aquisiccedilatildeo e agrave aprendizagem da linguagem humana
(PIATELLI-PALMARINI 1983)
A nosso ver aproximar tais debates torna-se interessante por
permitir elucidar os pressupostos epistemoloacutegicos de autores acadecircmicos
tatildeo relevantes do seacuteculo XX e com isso demarcar as linhas de tensatildeo entre
seus campos e as escolhas teoacutericas das suas pesquisas Nesse sentido no
presente trabalho Chomsky funciona como uma espeacutecie de elo virtual
entre Foucault e Piaget os quais natildeo produziram um debate particular
Natildeo obstante entendemos que os apontamentos feitos por estes dois
1 Professor colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Cultura Educaccedilatildeo e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGCELUESB) e poacutes-doutorando no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Teoria Literaacuteria e Criacutetica da Cultura da Universidade Federal de Satildeo Joatildeo del-Rei (PROMELUFSJ) Email argusromeroyahoocombr
Argus Romero Abreu de Morais | 99
uacuteltimos teoacutericos durante a defesa de seus pilares conceituais permitem
contrastaacute-los sendo marcante a distinccedilatildeo entre ambos no que diz respeito
agrave gecircnese do conhecimento humano nos indiviacuteduos por consequecircncia agrave
Histoacuteria das Ciecircncias
Assim pretendemos colocar face a face os vieses da autorregulaccedilatildeo em
Piaget do inatismo da linguagem em Chomsky e de um certo empirismo
histoacuterico em Foucault Evidentemente cada um desses pensadores natildeo soacute
possui uma enorme produccedilatildeo teoacuterica sobre distintos temas acadecircmicos
como tambeacutem apresentou mudanccedilas de perspectiva nas deacutecadas seguintes
Apesar disso entendemos que os fundamentos epistecircmicos das suas aacutereas de
pesquisa natildeo se alteraram significativamente ao longo do tempo garantindo
certa coerecircncia aos seus projetos de estudo
Natildeo eacute nosso intuito portanto em um breve texto dar conta da
amplitude das contribuiccedilotildees desses pensadores seja pela nossa incapacidade
de cumprir com tal propoacutesito seja pelos limites impostos pelo nosso recorte
investigativo o qual prioriza avaliar os argumentos dos trecircs estudiosos em
torno da existecircncia ou natildeo de uma natureza humana Cumpre-nos destacar
que nos vinculamos agrave epistemologia da Anaacutelise do Discurso Francesa (AD) a
qual pressupotildee a determinaccedilatildeo histoacuterica das formaccedilotildees sociais humanas
inclusive a do proacuteprio pensamento Foucault eacute considerado um dos
principais expoentes desse campo de estudos sendo por conseguinte a
partir do seu olhar discursivo que concluiremos o presente escrito tecendo
comentaacuterios criacuteticos aos demais domiacutenios Antes disso apresentaremos a
perspectiva piagetiana em seguida a abordagem chomskyana
A Funccedilatildeo Sensoacuterio-Motora como Fundamento da Formaccedilatildeo da Linguagem2
Eacute verdade que a auto-regulaccedilatildeo eacute em parte inata mas a tiacutetulo mais de
funcionamento do que de estrutura
Jean Piaget
2 Almejando tornar o texto mais fluido colocaremos as citaccedilotildees diretas ndash ipsis litteris ndash que fundamentam os nossos raciociacutenios em notas de rodapeacute Ressaltamos todavia que utilizaremos um nuacutemero expressivo de notas permitindo o acesso do leitor aos argumentos dos proacuteprios debatedoresautores Esperamos com isso possibilitar o esclarecimento e aprofundamento teoacutericos que o tema exige
100 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Segundo Piaget os estudos que definem a aprendizagem humana
pela associaccedilatildeo entre percepccedilotildees dos indiviacuteduos e objetos se mostraram
ineficientes na tentativa de explicar a formaccedilatildeo do conhecimento humano
(criacutetica ao meacutetodo empirista) Para o epistemoacutelogo esse modelo teoacuterico
tem por principal falha natildeo considerar a atividade do sujeito na construccedilatildeo
do proacuteprio conhecimento engendrado por dois processos
interdependentes o processo de assimilaccedilatildeo no qual os indiviacuteduos
assimilariam novos objetos a esquemas previamente conformados nas
suas estruturas cognitivas e no sentido inverso o processo de
acomodaccedilatildeo no qual os antigos esquemas se acomodam de acordo com as
particularidades dos novos objetos produzindo com isso novos esquemas
(PIATELLI-PALMARINI 1983)3
Busca-se assim definir os constructos cognitivos como frutos de
uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o ser e o mundo desconstruindo a
necessidade de um a priori universal inato ndash criacutetica ao Gerativismo ndash em
prol de um pensamento dinacircmicosistecircmico Desse modo a um soacute tempo
Piaget renega o empreendimento empirista segundo o qual o sujeito se
ajusta ao mundo pelas experiecircncias (o sujeito seria uma taacutebula rasa) e
descarta a empreitada gerativista chomskyana na qual a forma do sujeito
eacute preacutevia agrave experiecircncia e agrave forma do mundo (PIATELLI-PALMARINI 1983)4
Consoante Piaget apenas o funcionamento da inteligecircncia humana eacute
hereditaacuterio sendo essa definida como o mecanismo capaz de gerar
3 Ao criticar o Empirismo Behaviorista campo teoacuterico tambeacutem renegado por Chomsky Piaget destaca ldquoNenhum conhecimento se deve somente agraves percepccedilotildees pois estas satildeo sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de accedilotildees O conhecimento procede pois da accedilatildeo e toda a accedilatildeo que se repete ou se generaliza por aplicaccedilatildeo a novos objetos gera por isso mesmo um lsquoesquemarsquo ou seja uma espeacutecie de conceito praacutexico A ligaccedilatildeo fundamental constitutiva de todo o conhecimento natildeo eacute portanto uma simples associaccedilatildeo entre objetos mas a assimilaccedilatildeo dos objetos a esquemas desse indiviacuteduo Esse processo prolonga aliaacutes diversas formas de lsquoassimilaccedilotildeesrsquo bioloacutegicas das quais a assimilaccedilatildeo cognitiva eacute um caso particular enquanto processo funcional de integraccedilatildeo Em contrapartida quando os objetos satildeo assimilados aos esquemas de accedilatildeo haacute a obrigaccedilatildeo de uma acomodaccedilatildeo agraves particularidades desses objetos (cf os lsquoaccommodatsrsquo fenotiacutepicos em biologia) e essa acomodaccedilatildeo resulta de dados exteriores logo da experiecircnciardquo (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor)
4No dizer de Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor) ldquoCinquenta anos de experiecircncias ensinaram-nos que natildeo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observaccedilotildees Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas soacute o funcionamento da inteligecircncia eacute hereditaacuterio e soacute gera estruturas mediante uma organizaccedilatildeo de accedilotildees sucessivas exercidas sobre objetosrdquo
Argus Romero Abreu de Morais | 101
continuamente estruturas conceituais atraveacutes de operaccedilotildees sobre os
objetos A seu ver assim como a Psicanaacutelise de Jung o projeto gerativista
se equivoca ao confundir as estruturas gerais do espiacuterito com a existecircncia
de estruturas inatas base da suposiccedilatildeo da linguagem como faculdade
hereditaacuteria alocada no ceacuterebro humano Segundo aponta eacute possiacutevel a
existecircncia das primeiras sem que haja as segundas
Definida como construtivista a Epistemologia Geneacutetica piagetiana
expotildee aleacutem do argumento da confusatildeo entre universalidade e inatismo
dois motivos principais para negar a hipoacutetese nativista do Gerativismo
primeiro na forma como estaacute posta a Gramaacutetica Universal (GU) supotildee
que a linguagem humana seria resultado de mutaccedilotildees exclusivas agrave espeacutecie
humana sem que consiga contudo dar explicaccedilotildees plausiacuteveis sobre o(s)
porquecirc(s) desse privileacutegio segundo conseguir-se-ia chegar agraves mesmas
conclusotildees de existecircncia de estruturas universais caso se concebesse a
linguagem como produto de um processo de autorregulaccedilatildeo dispensando
com isso os problemas dos universais modulares de Chomsky (PIATELLI-
PALMARINI 1983)
A autorregulaccedilatildeo funciona portanto como o conceito-chave do
Construtivismo na medida em que eacute o mecanismo responsaacutevel tanto pela
construccedilatildeo humana do conhecimento quanto pela organizaccedilatildeo da
realidade natildeo caoacutetica do mundo Ambos tecircm em comum o fato de se
disporem em forma loacutegico-matemaacutetica Ademais diferentemente da
recursividade algoriacutetmica tal como proposta por Chomsky o pensamento
sistecircmico de Piaget sugere que o retorno agraves estruturas cognitivas de base
natildeo ocorre sobre as regras iniciais como se os componentes primeiros
fossem estaacuteveis na relaccedilatildeo entre o ser e o mundo5
5 Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 83) expressa do seguinte modo seu pensamento sistecircmico ldquoA auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio do organismo limita-se em geral e normalmente a conservar um certo estado de equiliacutebrio e em caso de desvio ou de nova formaccedilatildeo a reconduzi-lo ao estado inicial Enquanto que pelo contraacuterio a auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio dos comportamentos impele incessantemente o organismo o sujeito se se trata de comportamento cognitivo para novos avanccedilos O organismo fisioloacutegico natildeo tem razatildeo de espeacutecie alguma para variar [] A conservaccedilatildeo eacute a norma suprema para o equiliacutebrio fisioloacutegico Ao passo que pelo contraacuterio quando se aborda o terreno do comportamento este persegue dois objetivos o primeiro eacute a extensatildeo do meio superar o meio no qual o organismo estaacute atualmente mergulhado por exploraccedilotildees e pesquisas em novos meios e o segundo o reforccedilo dos poderes do organismo sobre o meiordquo
102 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Para Piaget haacute a superaccedilatildeo contiacutenua do modelo antecedente pelos
modelos subsequentes na mente da crianccedila que embora mais complexos
estavam presentes no anterior como possibilidade ndash latente ndash de
existecircncia e que quando concretizados superam o anterior englobando-
o a saber sensoacuterio-motor de 0 a 1824 meses periacuteodo que antecede a
proacutepria linguagem preacute-operatoacuterio de 162 anos a 78 anos periacuteodo
marcado pelo desenvolvimento das representaccedilotildeessiacutembolos o
operatoacuterio-concreto de 78 anos a 1112 anos periacuteodo da construccedilatildeo
loacutegica e por fim operatoacuterio-formal de 1112 anos em diante periacuteodo em
que a crianccedila eacute capaz de raciociacutenios hipoteacutetico-dedutivos (PIATELLI-
PALMARINI 1983)6
Logo todo sistema se torna subsistema de um novo sistema isto eacute uma
subestrutura da nova estrutura organizadora seguindo um movimento em
direccedilatildeo agrave maior complexidade No caso do pensamento humano quanto
mais proacuteximo da organizaccedilatildeo loacutegica do real melhor o sistema recriado pelas
suas estruturas intelectivas Nesse vieacutes supotildee-se que o ceacuterebro humano seja
capaz de reproduzir internamente a mesma complexidade que o mundo
produz de forma dessubjetivada externamente Isto eacute concluiacutedas as etapas
de amadurecimento cognitivo no indiviacuteduo este seria capaz de reproduzir
ainda que inconscientemente o mesmo niacutevel de complexidade das estruturas
do mundo na forma de conhecimento (matemaacutetico por excelecircncia)
(PIATELLI-PALMARINI 1983)7
Destarte conforme o epistemoacutelogo suiacuteccedilo tanto o pensamento
humano como as ideias cientiacuteficas parecem funcionar por meio da
6 No que diz respeitos agraves etapas de maturaccedilatildeo do conhecimento humano Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 40) especifica ldquoEm primeiro lugar um periacuteodo sensoacuterio-motor anterior agrave linguagem vecirc constituir-se uma loacutegica das accedilotildees (relaccedilotildees de ordem concatenaccedilatildeo de esquemas intersecccedilotildees estabelecimentos de correspondecircncia etc) fecunda em descobertas e mesmo invenccedilotildees (objetos permanentes organizaccedilatildeo do espaccedilo causalidade etc) Dos 2 aos 7 anos haacute uma conceptualizaccedilatildeo das accedilotildees logo representaccedilotildees com descoberta de funccedilotildees entre as co-variaccedilotildees de fenocircmenos identidades etc mas ainda sem operaccedilotildees reversiacuteveis nem conservaccedilotildees Estas duas uacuteltimas constituem-se ao niacutevel das operaccedilotildees concretas (7-10 anos) com lsquoagrupamentosrsquo logicamente estruturados mas ainda ligados agrave manipulaccedilatildeo de objetos Finalmente por volta dos 11-12 anos constitui-se uma loacutegica proposicional hipoteacutetico-dedutiva sem combinatoacuterio lsquoconjunto de partesrsquo grupos de quaternidade etcrdquo
7 A respeito da relaccedilatildeo entre conhecimento e realidade Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 81) assevera ldquoRecuso-me terminantemente por minha parte a pensar que as estruturas matemaacutetico-loacutegicas tivessem uma origem aleatoacuteria elas nada tecircm de fortuito natildeo eacute por seleccedilotildees de sobrevivecircncia que puderam constituir-se mas por uma adequaccedilatildeo propriamente dita e detalhada agrave realidaderdquo
Argus Romero Abreu de Morais | 103
acumulaccedilatildeo de saberes No primeiro caso atraveacutes da capacidade loacutegico-
matemaacutetica ndash capacidade racional ndash de interagir com o ambiente os
indiviacuteduos adquirem estruturas de comportamento ou morfoloacutegicas via
fenoacutetipo que ainda desprovidas de hereditariedade passam a modificar o
proacuteprio genoma humano de modo que a mudanccedila nos niacuteveis inferiores
incorre por consequecircncia nos niacuteveis superiores do meio epigeneacutetico Essa
aquisiccedilatildeo de ldquofenocoacutepiasrdquo seria de acordo com Piaget a responsaacutevel por
selecionar as variaccedilotildees ou mutaccedilotildees no proacuteprio genoma passando a serem
hereditaacuterias Isso explicaria no seu dizer o modo pelo qual a proacutepria
linguagem teria evoluiacutedo na espeacutecie humana8
No segundo caso pela forma como a realidade parece se organizar
por leis que em uacuteltima instacircncia seguem a loacutegica matemaacutetica Associada
agrave pureza das formas a praacutetica cientiacutefica seria a principal responsaacutevel por
intermediar a relaccedilatildeo entre o homem e o mundo criando instrumentais
teoacutericos que possam fazer com que aquele compreenda e transforme o seu
habitat Ademais como vimos o processo de desenvolvimento da
linguagem na crianccedila repetiria com alta semelhanccedila a evoluccedilatildeo das
proacuteprias descobertas cientiacuteficas (PIATELLI-PALMARINI 1983)9
Ao sugerir uma oacutetica sistecircmica para a construccedilatildeo do conhecimento
Piaget avanccedila agrave sua maneira na proposta de um sujeito processual
dinacircmico em detrimento da imutabilidade do sujeito cartesiano em
8 O conceito de fenocoacutepia eacute um dos principais vetores do debate Piaget-Chomsky Piaget (apud PIATELLI-
PALMARINI 1983 p 81-2) explica tal categoria da seguinte forma ldquoFenocoacutepia eacute um processo bioloacutegico em que certos comportamentos (eacute sobretudo vaacutelido no domiacutenio dos comportamentos) ou entatildeo uma certa forma ou estrutura morfoloacutegica satildeo primeiramente adquiridos pelo fenoacutetipo mas sem hereditariedade O fenoacutetipo pelo contraacuterio modifica o meio interior e modifica os niacuteveis superiores pelo meio epigeneacutetico e entatildeo as variaccedilotildees ou as mutaccedilotildees que podem produzir-se no genoma seratildeo selecionadas natildeo pelo meio exterior mas por esse meio interior ou epigeneacutetico que vai canalizaacute-las na mesma direccedilatildeo da conduta jaacute adquirida pelo fenoacutetipo por outras palavras haveria uma reconstruccedilatildeo geneacutetica ou gecircnica de uma aquisiccedilatildeo feita pelo fenoacutetipordquo
9 Sobre o tema Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 48) conclui ldquoPara periacuteodos mais vastos da histoacuteria eacute evidente que natildeo se encontra um paralelismo estaacutegio por estaacutegio mas eacute possiacutevel encontrar mecanismos comuns [] Ora deparamo-nos com um processo anaacutelogo [agrave histoacuteria da geometria ocidental] embora em escala reduzida nas crianccedilas as quais comeccedilam naturalmente pelo intrafigural mas descobrem por volta dos 7 anos que para determinar um ponto num plano natildeo basta uma medida sendo precisas duas que estejam dispostas de maneira ortogonal A essa etapa lsquointerfiguralrsquo (necessaacuteria tambeacutem para a construccedilatildeo de horizontais) sucede aquela que podemos denominar lsquotransfiguralrsquo em que as propriedades a descobrir natildeo podem ler-se numa uacutenica figura mas requerem uma deduccedilatildeo e um caacutelculo as curvas mecacircnicas os movimentos relativos etcrdquo
104 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Chomsky10 o qual antecede a experiecircncia Desse modo por um lado sua
perspectiva de geraccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da linguagem a partir dos
significantes sensoacuterio-motores ndash associaccedilatildeo de objetos a esquemas de accedilatildeo
ndash o opotildee ao modo pelo qual Chomsky entende o ldquonuacutecleo fixordquo da
linguagem por outro ao prescindir da opacidade do mundo em relaccedilatildeo agrave
linguagem bem como das rupturas e contradiccedilotildees advindas da histoacuteria
contrasta indiretamente sua teoria com a perspectiva do pensamento
sustentada por Foucault
O Algoritmo eacute o Sujeito
Se qualquer coisa fosse possiacutevel entatildeo nada seria possiacutevel
Noam Chomsky
Para Chomsky (1979) o ceacuterebro humano eacute arquitetado por diferentes
subsistemas inatos em interaccedilatildeo limitada os quais decorrem de distintos
processos evolutivos no Homo sapiens A linguagem seria uma dessas
faculdades isto eacute um subsistema da inteligecircncia humana que permite a
interface com o moacutedulo conceptual-intencional (semacircntico-pragmaacutetico) e
o perceptual-articulatoacuterio (sensoacuterio-motor) Sendo a forma da linguagem
restrita evolutivamente agraves formas representacionais possiacuteveis no ceacuterebro
humano pode-se adquirir apenas o que eacute biologicamente previsto11
Nesse vieacutes o empreendimento gerativista se baseia em pelo menos
trecircs hipoacuteteses importantes para as Ciecircncias Cognitivas em particular no
que toca agrave Linguiacutestica (I) a estrutura representacional do pensamento
humano eacute preacutevia a toda experiecircncia do corpo de modo que a linguagem
10 Sobre esse toacutepico Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 45) destaca ldquoMas o que os inatistas parecem esquecer de maneira surpreendente eacute que existe um mecanismo tatildeo geral quanto a hereditariedade e que num sentido ateacute a comanda eacute a auto-regulaccedilatildeo a qual desempenha um papel em todas as escalas desde o genoma e um papel tanto mais importante quanto mais se avizinha dos niacuteveis superiores e do comportamento A auto-regulaccedilatildeo cujas raiacutezes satildeo evidentemente orgacircnicas eacute assim comum aos processos vitais e mentais e suas accedilotildees tecircm aleacutem disso a grande vantagem de ser diretamente controlaacuteveis portanto eacute nessa direccedilatildeo e natildeo na da simples hereditariedade que conveacutem buscar a explicaccedilatildeo bioloacutegica das construccedilotildees cognitivas tanto mais que pelo jogo das regulaccedilotildees de regulaccedilotildees a auto-regulaccedilatildeo eacute por sua proacutepria natureza eminentemente construtivista (e dialeacutetica)rdquo
11 Para aprofundar essas questotildees sugerimos a leitura de Chomsky (2006 2008) e de Berwick e Chomsky (2017) Utilizaremos algumas passagens dessas obras no presente texto
Argus Romero Abreu de Morais | 105
deve ser explicada com relaccedilatildeo agrave heranccedila bioloacutegica da espeacutecie humana (II)
a linguagem humana eacute constituiacuteda por um conjunto de algoritmos ndash regras
de formaccedilatildeo ndash implementados no nosso ceacuterebro os quais fundariam o
ldquoestado inicial S0 geneticamente determinadordquo12 tambeacutem conhecido como
Gramaacutetica Universal (GU) a qual conteacutem os princiacutepios pelos quais pode-
se adquirir uma dada liacutengua natural ndash condicionada agrave experiecircncia humana
ndash ateacute chegar a um ldquoestado estacionaacuteriordquo (steady state) (III) a Linguiacutestica
deve se formalizar de modo a explicar como um indiviacuteduo eacute capaz de gerar
um nuacutemero infinito de frases em sua liacutengua vernaacutecula a partir de um
conjunto limitado de regras sintaacuteticas (infinitude discreta) em vista disso
a teoria chomskyana eacute chamada de Gramaacutetica Gerativa13
Se tanto Chomsky como Piaget parecem concordar com a existecircncia
de um ldquonuacutecleo fixordquo da linguagem o linguista norte-americano se afasta
do bioacutelogo suiacuteccedilo ao responder as duas principais criacuteticas piagetianas ao
seu modelo teoacuterico quais sejam (a) a inexplicabilidade das mutaccedilotildees na
espeacutecie humana responsaacuteveis por lhe dotar dessas estruturas inatas (b) a
consideraccedilatildeo da inteligecircncia sensoacuterio-motora na formaccedilatildeo da inteligecircncia
simboacutelica seria tatildeo eficiente quanto a hipoacutetese do inatismo na explicaccedilatildeo
da formaccedilatildeo desse ldquonuacutecleo fixordquo
12 Consoante Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoO desenvolvimento dessa pessoa (em um ambiente natural) efetua-se a partir do estado inicial S0 geneticamente determinado passa por uma sequecircncia de estados S1 S2 e atinge finalmente um lsquoestado estacionaacuteriorsquo (steady state) S8 o qual soacute parece entatildeo modificar-se de maneira secundaacuteria (digamos por acreacutescimo de vocabulaacuterio novo) O estado estacionaacuterio eacute alcanccedilado numa idade relativamente fixa aparentemente na puberdade ou um pouco antesrdquo
13 De acordo com Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoEle [investigador independente] abordaraacute ou deveria abordar o estudo das estruturas cognitivas como eacute o caso da linguagem humana de uma forma anaacuteloga agravequela como estudaria um oacutergatildeo do corpo ndash o olho ou o coraccedilatildeo por exemplo ndash a fim de determinar (I) as suas caracteriacutesticas num dado indiviacuteduo (II) suas propriedades gerais invariantes de uma espeacutecie agrave outra abstraccedilatildeo feita de todo o deacuteficit flagrante (III) seu lugar num sistema de estruturas desse tipo (IV) o curso do seu desenvolvimento no indiviacuteduo em questatildeo (V) o fundamento geneticamente determinado desse desenvolvimento (VI) os fatores que deram origem a esse oacutergatildeo no decorrer da evoluccedilatildeordquo No que concerne aos aspectos matemaacuteticos dos estudos da mente humana Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 2014 p 16) complementa ldquoEntendo por isso [teoria matemaacutetica da mente] simplesmente uma teoria abstrata articulada com precisatildeo e formulada com clareza que tenha consequecircncias empiacutericas que nos permita saber se a teoria estaacute certa ou errada ou se estaacute no caminho errado ou certo E que ao mesmo tempo tenha as propriedades da ciecircncia matemaacutetica isto eacute as propriedades do rigor e da precisatildeo e uma estrutura que nos permita deduzir conclusotildees a partir de hipoacuteteses e assim por dianterdquo Por fim Berwick e Chomsky (2017 p 108) esclarecem o que entendem por infinitude discreta ldquoDiscreta porque haacute frases de cinco palavras e frases de seis palavras mas nenhuma frase de cinco palavras e meia infinita porque natildeo haacute [virtualmente] uma frase que seja a frase mais longa da liacutenguardquo
106 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A esse respeito Chomsky responde que apesar de haver brechas na
teoria evolutiva no que concerne ao entendimento da seleccedilatildeo natural em
relaccedilatildeo ao corpo humano natildeo haacute outra compreensatildeo possiacutevel para
considerar a constituiccedilatildeo dos seus oacutergatildeos Nesse sentido considera-se que
a estrutura interna dos distintos oacutergatildeos do organismo bem como seu
desenvolvimento e funcionamento satildeo independentes das experiecircncias
ontogeneacuteticas do ser Isso o impede de concordar com a hipoacutetese das
fenocoacutepias a qual sugere que estruturas adquiridas poderiam ser
absorvidas pelo genoma
Como universalizar no desenvolvimento dos indiviacuteduos algo
adquirido Essa eacute uma questatildeo que de acordo com Chomsky natildeo pode
ser resolvida pelo mecanismo construtivo da autorregulaccedilatildeo o qual natildeo
limitaria o nuacutemero de estados possiacuteveis na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro A
soluccedilatildeo seria considerar que a mente se reduz causalmente ao ceacuterebro
Ademais a derivaccedilatildeo do sistema simboacutelico do estaacutegio sensoacuterio-motor na
crianccedila e a sua estabilizaccedilatildeo via processo de autorregulaccedilatildeo seriam
insuficientes para explicar o caraacuteter especiacutefico desse moacutedulo da
linguagem suas regras limites e relaccedilotildees com os demais aparatos da
inteligecircncia humana14
Chomsky (1977) relembra o curioso fato de tanto ele quanto Foucault
terem conseguido aproximar as suas opiniotildees acerca do tema da ldquonatureza
14 No dizer de Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 51) ldquoSe eacute verdade que ignoramos completamente como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias dotaram a espeacutecie humana da capacidade especiacutefica de aprender uma linguagem humana eacute igualmente verdadeiro que tambeacutem ignoramos como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias conduziram ao desenvolvimento das estruturas particulares do olho dos mamiacuteferos ou do coacutertex cerebral Natildeo concluiacutemos portanto
que essas estruturas em sua natureza fundamental no indiviacuteduo que chegou agrave maturidade satildeo determinadas por interaccedilatildeo com o meio ambiente []rdquo Berwick e Chomsky (2017 p 104 Itaacutelico dos autores) detecircm-se exclusivamente sobre o fato de a linguagem humana ser exclusiva agrave nossa espeacutecie e de sua breve existecircncia ser possiacutevel dentro de uma teoria evolucionista que considere aleacutem dos processos seletivos e adaptativos claacutessicos as mutaccedilotildees e os efeitos estocaacutesticos da Biologia Moderna ldquoDe maneira completamente desconhecida nossos antepassados desenvolveram conceitos humanos Em algum momento no passado muito recente ao que parece algum tempo antes de 80 mil anos atraacutes se pudermos julgar a partir de nossos representantes simboacutelicos indiviacuteduos em um pequeno grupo de hominiacutedeos na Aacutefrica Oriental sofreram uma pequena mudanccedila bioloacutegica que favoreceu o surgimento da operaccedilatildeo Merge ndash uma operaccedilatildeo que toma conceitos humanos como aacutetomos computacionais [leacutexico] e produz expressotildees estruturadas que sistematicamente interpretadas pelo sistema conceitual fornecem uma rica linguagem do pensamento [] A inovaccedilatildeo teve vantagens oacutebvias e se disseminou pelo pequeno grupo Em algum estaacutegio posterior a linguagem do pensamento interna estava ligada ao sistema sensoacuterio-motor []rdquo De acordo com essa abordagem a linguagem emerge como ldquoferramentardquo para o pensamento (foco na internalizaccedilatildeo) e natildeo para a comunicaccedilatildeo (foco na externalizaccedilatildeo) garantindo agravequeles que a possuem as vantagens da abstraccedilatildeo inferecircncia interpretaccedilatildeo organizaccedilatildeo da accedilatildeo e do planejamento em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que natildeo a possuem
Argus Romero Abreu de Morais | 107
humanardquo enquanto que o mesmo natildeo ocorreu com relaccedilatildeo agravequele
relacionado ao ldquoaspecto poliacutetico do saberrdquo A seu ver isso pode ser
explicado pela seguinte metaacutefora ldquoQuanto ao conceito de natureza
humana pareceu-me que cavaacutevamos a mesma montanha a partir de
direccedilotildees opostasrdquo (CHOMSKY 1977 p 78-9)
Embora seja difiacutecil supor um consenso entre o pesquisador norte-
americano defensor do inatismo da linguagem e o filoacutesofo francecircs um
dos principais nomes da empreitada filosoacutefica do ldquodescentramento do
sujeitordquo o primeiro supotildee que no fim das contas isso eacute possiacutevel pelo fato
de eles se deterem sobre as mesmas questotildees embora partindo de pontos
diferentes Para Chomsky (1977) a pesquisa cientiacutefica eacute devedora de dois
aspectos 1) as propriedades constituintes do espiacuterito e 2) as condiccedilotildees
sociais e intelectuais que possibilitam a emergecircncia e a consolidaccedilatildeo dos
saberes em um dado periacuteodo histoacuterico Natildeo se trataria de excluir um ou
outro pois ambos estatildeo relacionados Ele se deteria sobre o primeiro
abordando os processos de aquisiccedilatildeo e de desenvolvimento da linguagem
nos indiviacuteduos enquanto Foucault priorizaria a anaacutelise das condiccedilotildees
histoacutericas que possibilitam a conformaccedilatildeo social do conhecimento em
meio agraves relaccedilotildees de saber-poder (CHOMSKY 1977)15
15 Apesar de essa argumentaccedilatildeo parecer dirimir as distinccedilotildees epistemoloacutegicas dos autores via complementaridade o vieacutes chomskyano prioriza sempre os argumentos relacionados agraves estruturas cerebrais humanas em detrimento do vieacutes sociocultural foucaultiano inclusive quando tratam dos paracircmetros de cientificidade na produccedilatildeo do conhecimento humano como nos deixa entrever o seguinte raciociacutenio ldquoOra quando por felicidade acontece de algum aspecto da realidade conter a propriedade de uma das estruturas existentes em nossa mente entatildeo temos um
exemplo do conhecimento Isso quer dizer que afortunadamente a estrutura da nossa mente e a estrutura de algum aspecto da realidade coincidem o bastante para que possamos desenvolver um conhecimento inteligiacutevel Eacute exatamente essa limitaccedilatildeo inicial que existe em nossa mente quanto a certo tipo de conhecimento possiacutevel que proporciona a enorme riqueza e criatividade do conhecimento cientiacuteficordquo (CHOMSKY 2014 p 34) A ldquocoincidecircncia suficienterdquo entre as propriedades da mente e as propriedades do mundo parece curiosamente aproximar Chomsky de Piaget ou pelo menos do que o linguista norte-americano denomina de ldquodoutrinas do referencialismordquo abrindo a nosso ver uma possiacutevel contradiccedilatildeo teoacuterica com as seguintes passagens ldquoOs siacutembolos da linguagem humana e do pensamento satildeo muito diferentes [em relaccedilatildeo ao dos chimpanzeacutes] Seu uso natildeo estaacute automaticamente condicionado por estados emocionais e eles natildeo dependem de objetos independentes da mente ou eventos no mundo externo Para a linguagem e o pensamento ao que parece natildeo haacute uma relaccedilatildeo de referecircncia no sentido de Frege Peirce Tarski Quine e da filosofia contemporacircnea da linguagem e da menterdquo (BERWICK CHOMSKY 2017 p 102 Itaacutelico dos autores) Pouco depois Berwick e Chomsky (2017 p 103 Itaacutelicos dos autores) redefinem a referecircncia como um ldquoideal normativordquo para a ciecircncia ldquoPara a ciecircncia o conceito de referecircncia no sentido teacutecnico eacute um ideal normativo esperamos que os conceitos inventados de foacuteton ou de sintagma verbal se refiram a alguma coisa real dono mundo E eacute claro que o conceito de referecircncia eacute muito bom para o contexto para o qual foi inventado na loacutegica moderna para os sistemas formais em que a relaccedilatildeo de referecircncia eacute estipuladardquo Resta-nos perguntar qual o paracircmetro para
108 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Se Chomsky recorre a Descartes para estabelecer parte dos
fundamentos filosoacuteficos do Gerativismo notadamente no que concerne
ao entendimento da relaccedilatildeo entre sujeito cognoscente e objeto
cognosciacutevel16 pauta-se no corte copeacuternico-galileano da fundaccedilatildeo da ciecircncia
moderna para definir o modelo hipoteacutetico-dedutivo na pesquisa
linguiacutestica17 Logo o problema do conhecimento no sujeito eacute tambeacutem o
problema do que pode ser conhecido no mundo almejando compreender
tanto como as estruturas cognitivas humanas permitem o desvendamento
das estruturas da realidade vivenciada como a melhor forma de organizar
as primeiras no intuito de desenvolver programas investigativos
sistemaacuteticos Esse problema epistemoloacutegico eacute transversal a Piaget
Chomsky e Foucault em suas empreitadas teoacutericas de modo que eacute nesse
ponto em que suas distintas teorias sobre a formaccedilatildeo do ser tocam no
entendimento da Histoacuteria das Ciecircncias englobando a constituiccedilatildeo dos
campos disciplinares a validade das proposiccedilotildees cientiacuteficas e a
transformaccedilatildeo dos seus pressupostos ao longo do tempo
distinguir quais conceitos coincidem com a realidade e quais natildeo Quais os limites do imaginaacuterio humano em relaccedilatildeo ao simboacutelico e ao real
16 Nesse ponto Chomsky (2008 p 28) por vezes se ancora em Descartes Kant e Leibniz aproximando suas contribuiccedilotildees filosoacuteficas daquelas de Franccedilois Jacob e Jacques Monod ndash tambeacutem presentes no debate Piaget-Chomsky ndash para o entendimento da neurofisiologia da linguagem ldquoAcho que Monod estaacute certo ao comentar que lsquoessas descobertas [sobre um sistema analiacutetico primitivo em animais natildeo-humanos] apoiam num sentido novo as teses de Descartes e Kant contrariamente ao empirismo radical que tem dominado a ciecircncia por dois seacuteculos e que lanccedila suspeitas sobre qualquer hipoacutetese que postule a natureza inata das formas de conhecimentorsquo Ateacute onde sabemos os animais aprendem de acordo com um programa determinado geneticamente Natildeo haacute razatildeo para duvidar que isto seja verdade tambeacutem no que se refere lsquoagraves categorias fundamentais do conhecimento humanorsquo []rdquo Sobre o papel da experiecircncia na aprendizagem lembra ldquoQue a experiecircncia seja um requisito para colocar em funcionamento estruturas inatas ou para ativar um sistema de ideias inatas eacute algo admitido de modo bastante expliacutecito por Descartes
Leibniz e outros como parte de teorias que dificilmente podem ser consideradas lsquoempiristasrsquo []rdquo (CHOMSKY 2008 p 32-3) Em outra passagem afirma ldquoA ideia eacute lsquoinato agrave mentersquo no sentido em que Descartes argumentou que lsquoa ideia de um triacircngulo verdadeirorsquo eacute inatardquo (CHOMSKY 2008 p 48)
17 Sobre a importacircncia do corte copeacuternico-galileano para o estabelecimento do meacutetodo cientiacutefico moderno e consequentemente para a formaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Chomsky (2006 p 121) ressalta ldquoO que foi notaacutevel com respeito a Galileu e considerado muito ofensivo na eacutepoca foi que ele rejeitou muitos dados Ele estava disposto a dizer lsquoVejam se os dados refutam a teoria os dados provavelmente estatildeo erradosrsquo E os dados que descartou natildeo eram insignificantes Por exemplo ele defendia a tese de Copeacuternico mas natildeo era capaz de explicar porque os corpos natildeo se desprendiam da Terra se a Terra estaacute girando por que tudo natildeo estaacute solto no espaccedilordquo Em seguida complementa ldquoBem tudo isso eacute parte do que vocecirc poderia chamar de lsquoestilo galileanorsquo dedicaccedilatildeo agrave busca do entendimento natildeo apenas do registro O registro dos fenocircmenos em si eacute insignificante [] [] O reconhecimento de que esse eacute o caminho que a ciecircncia deve seguir se quisermos buscar o entendimento [] eacute um passo bastante grande e que tem muitas partes como a estrateacutegia galileana de descartar fenocircmenos recalcitrantes quando isso implicar um aumento de compreensatildeo a maior preocupaccedilatildeo poacutes-newtoniana com a inteligibilidade das teorias do que com o mundo e assim por dianterdquo (CHOMSKY 2006 p 125-6)
Argus Romero Abreu de Morais | 109
Para Foucault (CHOMSKY 2014) o problema da perspectiva
argumentativa de Chomsky (1977) estaria em natildeo reconhecer o fato de que
os lados da montanha natildeo podem ser separados de forma estanque pondo
o indiviacuteduo-sujeito de um lado e a constituiccedilatildeo histoacuterica do saber de
outro Isso ocasionaria um vieacutes metafiacutesico na explicaccedilatildeo da subjetividade
humana a qual poderia transformar sem ser transformada De certo
modo de tatildeo racionalista o vieacutes chomskyano entraria no campo do
idealismo rompendo com o vieacutes materialista da anaacutelise teoacuterica Tomando
por base esse raciociacutenio perguntamo-nos os domiacutenios histoacutericos do saber
possibilitam a constituiccedilatildeo e a emergecircncia das propriedades constituintes
do espiacuterito em um dado indiviacuteduo Passaremos a essa questatildeo na seccedilatildeo
seguinte
Pensamento e Discurso
E se o intelecto fosse uma estrutura complexa muacuteltipla e natildeo individual natildeo
lsquosujeita ao sujeitorsquo que produzisse resultados autecircnticos
Michel Foucault
O projeto filosoacutefico foucaultiano se interessa pelo entendimento
daquilo que ele chama de saber discursivo de modo a estabelecer uma
perspectiva da Histoacuteria das Ciecircncias ou das Ideias que natildeo se atenha agrave
criatividade centrada no indiviacuteduo no sujeito falante e no cientista assim
como na continuidade cumulativa do conhecimento Destarte o que se
estabelece como verdadeiro em cada periacuteodo histoacuterico depende da
maneira como uma dada sociedade organiza a validade ndash inclusive a
cientificidade ndash de determinados dizeres e por consequecircncia exclui a de
outros criando mecanismos sociais de controle do que se pode ou deve
dizer sobre um dado objeto
Para Foucault a liacutengua como sistema de signos criado socialmente
conforme definida por Saussure (2006) natildeo se reduz ao discurso
possuindo uma ordem simboacutelica proacutepria com sua loacutegica e suas regras
Consoante o linguista suiacuteccedilo a liacutengua seria uma forma sendo equivocado
110 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
consideraacute-la como uma substacircncia visto que como fato social ela
funciona tambeacutem como instituiccedilatildeo estabelecendo normas classificaccedilotildees e
nomenclaturas Ela seria aleacutem disso o principal sistema organizador da
linguagem humana sendo o signo a junccedilatildeo de um conceito (significado) a
uma imagem acuacutestica (significante) ambos psiacutequicos e em relaccedilatildeo
negativa com o mundo em si O valor de um dado signo se daacute por oposiccedilatildeo
aos demais maneira pela qual estabelece suas relaccedilotildees no sistema
linguiacutestico
Segundo Foucault (2008) a liacutengua natildeo se materializa no vaacutecuo pois
para que possa produzir sentido eacute recortada pela funccedilatildeo discursiva um
modo histoacuterico de organizaacute-la em zonas do conhecimento atribuindo-lhe
conceitos isto eacute objetos Liacutengua e discurso se atravessam pela funccedilatildeo
enunciativa18 constituindo os limites da cogniccedilatildeo humana Tratar-se-ia
portanto natildeo do pensamento do sujeito mas do pensaacutevel no sujeito natildeo
do dizer do falante mas do diziacutevel pelo falante os quais necessitam de preacute-
formaccedilotildees do saber histoacuterico para que possam constituir os estados
mentais e as possibilidades de fala nos indiviacuteduos19 Natildeo haacute assim
anterioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem sob pena de o
18 Nesta seccedilatildeo em alguns momentos remeteremos aos raciociacutenios de Foucault (2008) como forma de aprofundar sua perspectiva e instrumentais teoacutericos os quais natildeo satildeo trabalhados precisamente em Chomsky (2014) Sobre a singularidade do enunciado em relaccedilatildeo agraves demais categorias de estudos da linguagem Foucault (2008 p 103 Itaacutelicos nossos) esclarece ldquoUm enunciado natildeo tem diante de si (e numa espeacutecie de conversa) um correlato - ou uma ausecircncia de correlato assim como uma proposiccedilatildeo tem um referente (ou natildeo) ou como um nome proacuteprio designa um indiviacuteduo (ou ningueacutem) Estaacute antes ligado a um lsquoreferencialrsquo que natildeo eacute constituiacutedo de lsquocoisasrsquo de lsquofatosrsquo de lsquorealidadesrsquo ou de lsquoseresrsquo mas de leis de possibilidade de regras de existecircncia para os objetos que aiacute se encontram nomeados designados ou descritos para as relaccedilotildees que aiacute se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condiccedilatildeo o campo de emergecircncia a instacircncia de diferenciaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou dos
objetos dos estados de coisas e das relaccedilotildees que satildeo postas em jogo pelo proacuteprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitaccedilatildeo do que daacute agrave frase seu sentido agrave proposiccedilatildeo seu valor de verdaderdquo
19 Sobre o assunto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 23 Itaacutelicos nossos) destaca ldquoQuando estudamos a histoacuteria do conhecimento percebemos que existem duas linhas gerais de anaacutelise de acordo com uma delas deve-se demonstrar como sob que condiccedilotildees e por que razotildees o intelecto se modifica no que diz respeito a suas regras formadoras sem passar por um lsquoinventorrsquo que descobre a verdade e de acordo com a outra deve-se demonstrar como o funcionamento das regras de um intelecto pode produzir num indiviacuteduo conhecimento novo e ineacutedito Aqui meu objetivo junta-se com meacutetodos imperfeitos e de uma forma bem inferior ao projeto do sr Chomsky ao explicar o fato de que algumas poucas regras ou elementos precisos totalidades desconhecidas que nunca foram nem produzidas podem ser elucidadas pelos indiviacuteduos Para resolver este problema o sr Chomsky tem de reintroduzir o dilema do sujeito no campo da anaacutelise gramatical Para resolver um problema anaacutelogo no campo da histoacuteria com o qual me encontro envolvido eacute preciso fazer o oposto de certo modo introduzir o ponto de vista do intelecto de suas regras de seus sistemas de suas transformaccedilotildees de totalidades no jogo do conhecimento individual Tanto em um como no outro caso o problema da criatividade natildeo pode ser resolvido da mesma maneira ou melhor natildeo pode ser formulado nos mesmos termos dada a condiccedilatildeo das disciplinas em cujo interior ele eacute colocadordquo
Argus Romero Abreu de Morais | 111
primeiro funcionar como uma instacircncia imaterial pura sem
temporalidade nem espacialidade
Sendo a linguagem uma produccedilatildeo social anterior ndash externalizada ndash
aos indiviacuteduos (seres orgacircnicos) deve-se considerar que as formas
simboacutelicas satildeo as responsaacuteveis pela instituiccedilatildeo do sujeito (aquele que
concretiza o enunciado) natildeo sendo os primeiros a dizerem o que dizem
natildeo satildeo tambeacutem o locus da gecircnese semacircntica Engajar-se numa situaccedilatildeo
de produccedilatildeo de sentidos eacute necessariamente posicionar-se ndash ou ser
posicionado ndash de acordo com as regras enunciativas vivenciadas e
institucionalizadas em sociedade Os enunciados representam as regras
historicizadas da forma de pensar e natildeo o revelar da intencionalidade e
do conhecimento em si por vezes tidos como a priori universais em
relaccedilatildeo agravequelas20 Logo como emergecircncia das organizaccedilotildees histoacutericas do
pensamento em distintas praacuteticas sociais o sujeito irrompe fragmentado
visto que sua internalidade decorre das descontinuidades dos saberes que
lhe atravessam natildeo sendo possiacutevel encontrar sua essecircncia nem na
interioridade do espiacuterito (FOUCAULT 2008) O sujeito torna-se portanto
uma instacircncia simboacutelica fugidia e clivada uma forma natildeo uma substacircncia
Agora pode-se compreender com mais clareza o motivo pelo qual
Foucault (CHOMSKY 2014) sustenta que a competecircncia natildeo eacute inata assim
como as regras do pensamento humano natildeo satildeo matemaacuteticas As
regularidades se devem aos sistemas enunciativos e estes satildeo submetidos
agraves contradiccedilotildees histoacutericas decorrentes das diversas formas de organizaccedilatildeo
dos homens em sociedade A proacutepria verdade sobre um objeto portanto
20 No que concerne agrave criatividade na linguagem conceito central na abordagem chomskyana Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 27 Itaacutelicos nossos) afirma ldquoO que de fato existe satildeo criaccedilotildees possiacuteveis inovaccedilotildees possiacuteveis Em termos de linguagem ou de conhecimento soacute se pode criar algo novo aplicando determinado nuacutemero de regras que definiratildeo a aceitabilidade ou a gramaticalidade dessas afirmaccedilotildees ou que definiratildeo no caso do conhecimento o caraacuteter cientiacutefico das afirmaccedilotildeesrdquo Em seguida acrescenta ldquoTambeacutem natildeo vejo problema em dizer que essas regras devem permitir que compreendamos aquilo que eacute falado ou pensado por esses indiviacuteduos Mas dizer que essas regulamentaccedilotildees estatildeo conectadas como precondiccedilatildeo da existecircncia agrave mente humana ou [agrave] sua natureza eacute algo difiacutecil de aceitar para mim Parece-me que antes de chegar a esse ponto ndash e seja como for estou me referindo apenas ao conhecimento ndash devemos reinseri-las no acircmbito de outras praacuteticas humanas como a economia a tecnologia a poliacutetica a sociologia que podem servir-lhes como condiccedilotildees de formaccedilatildeo de modelos de lugar de surgimento etc Gostaria de saber por que natildeo se pode descobrir o sistema de regularidade de limitaccedilatildeo ndash que torna a ciecircncia possiacutevel ndash em outro lugar mesmo fora da mente humana nos sistemas sociais nas relaccedilotildees de produccedilatildeo na luta de classes etcrdquo (FOUCAULT apud CHOMSKY 2014 p 36)
112 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
estaria submetida agrave temporalidade da histoacuteria e natildeo a uma descoberta
apesar da histoacuteria Assim em uacuteltima instacircncia a verdade estaria
condicionada agrave historicidade das ideias visto que a veracidade de um dado
referente decorre dos regimes de verdade os quais satildeo criados e
reproduzidos pelos grupos e instituiccedilotildees sociais bem como pelas relaccedilotildees
de forccedila instituiacutedas entre eles em cada sociedade (FOUCAULT 2008)
Para o filoacutesofo a proacutepria noccedilatildeo de ldquonatureza humanardquo natildeo se
configuraria como um conceito cientiacutefico funcionando mais como uma
espeacutecie de ldquoindicador epistemoloacutegicordquo que organiza distintas incursotildees
cientiacuteficas ao longo do seacuteculo XX21 Nesse sentido podemos entender que em
uma abordagem discursiva da relaccedilatildeo pensamentolinguagemmundo a
proacutepria forma deve ceder espaccedilo ao funcionamento22 Isso significa que
Foucault almeja desconstruir a psicologia interna dos sujeitos nos seguintes
termos constituiccedilatildeo social da linguagem (externalismo em oposiccedilatildeo ao
internalismoinatismo) rarr regras de enunciaccedilatildeo histoacutericas rarr
discursividades rarr pensamento rarr fala rarr condiccedilotildees de enunciaccedilatildeo rarr
sujeito do discurso (subjetividade imanente agrave linguagem em oposiccedilatildeo agrave
subjetividade transcendente) rarr praacutetica discursiva (FOUCAULT 2008)
A singularidade de uma produccedilatildeo discursiva decorre do fato de a
liacutengua(gem) por consequecircncia o proacuteprio pensamento soacute se materializar
em uma dada praacutetica constrangida por possibilidades que natildeo satildeo da sua
proacutepria ordem23 A infinidade de possibilidades para a realizaccedilatildeo de um
21 Ao comentar sobre a ldquonatureza humanardquo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 8 Itaacutelicos nossos) pondera ldquoNatildeo foi estudando a natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutaccedilatildeo consonantal que Freud descobriu
os princiacutepios da anaacutelise dos sonhos ou que os antropoacutelogos culturais descobriram as estruturas dos mitos Tenho a impressatildeo de que na histoacuteria do conhecimento a ideia de natureza humana desempenhou principalmente o papel de um indicador epistemoloacutegico [semelhante ao ideal normativo de Berwick e Chomsky (2017)] para designar certos tipos de discurso relacionados ou contraacuterios agrave teologia agrave biologia ou agrave histoacuteria Para mim seria difiacutecil ver nisso um conceito cientiacuteficordquo
22 Sobre esse aspecto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 36) pontua ldquoTalvez a diferenccedila entre o sr Chomsky e eu seja que quando fala de ciecircncia ele provavelmente estaacute pensando na organizaccedilatildeo formal do conhecimento enquanto eu estou falando do conhecimento em si ou seja eu penso no conteuacutedo de diversos conhecimentos que se encontram dispersos numa sociedade especiacutefica que permeiam a sociedade e que se afirmam como o fundamento da educaccedilatildeo das teorias das praacuteticas etcrdquo
23 Segundo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 21 Itaacutelicos nossos) ldquoO que me preocupa eacute a substituiccedilatildeo das transformaccedilotildees do intelecto pela histoacuteria das descobertas do conhecimento Desse modo eu tenho ao menos aparentemente uma atitude completamente diferente da do sr Chomsky a propoacutesito da criatividade porque para mim a questatildeo eacute eliminar o dilema do sujeito cognoscente enquanto para ele a questatildeo eacute permitir que o dilema do sujeito falante reapareccedila Poreacutem se ele o fez reaparecer se ele o descreveu eacute porque tem condiccedilotildees de fazecirc-lo Jaacute faz
Argus Romero Abreu de Morais | 113
enunciado natildeo representa a sua aleatoriedade pois esse gozaria de uma
caracteriacutestica semelhante agrave linguagem em Chomsky tendendo agrave raridade
das suas regras A diferenccedila entre o algoritmo no Gerativismo e a funccedilatildeo
enunciativa na perspectiva discursiva de Foucault eacute que esta uacuteltima se
constitui externamente ao espiacuterito sendo adquirida pelas experiecircncias em
sociedade Essa espeacutecie de empirismo histoacuterico natildeo se associa ao
comportamentalismo skinneriano dado que natildeo se funda na
transparecircncia da relaccedilatildeo entre o sistema perceptual e o mundo e na
consequente abstraccedilatildeo das relaccedilotildees dos objetos pela induccedilatildeo direta A
linguagem eacute opaca ndash indeterminada ndash em sua estrutura fundamental
sendo o sujeito sua consequecircncia
Eacute nesse ponto que Chomsky pode ter visto semelhanccedila entre a sua
abordagem e a de Foucault de modo que o filoacutesofo francecircs natildeo abandona
necessariamente as capacidades da inteligecircncia humana apenas se opotildee agrave
reduccedilatildeo dos conceitos a sistemas loacutegicos a priori no espiacuterito Ambos
parecem concordar que a linguagem funda um limite do possiacutevel no ser
considerando-a como instacircncia que aponta recursivamente para si mesma
e que demarca os estados finitos do dizer e de suas propriedades de
encadeamento diferentemente do sujeito tendencialmente onipotente
piagetiano e de seu ajuste em relaccedilatildeo agraves estruturas loacutegicas do mundo
Por fim podemos concluir que Chomsky e Foucault satildeo
antirreferencialistas na medida em que negam a relaccedilatildeo direta entre
palavra e objeto24 Opotildeem-se contudo na associaccedilatildeo ao estruturalismo
saussureano para o qual a liacutengua eacute uma entidade coletiva fundada em uma
espeacutecie de contrato social e natildeo um objeto bioloacutegico internalizado como
pretende o Gerativismo Em semelhanccedila com Piaget para Foucault
(2008) o sujeito natildeo eacute uma preacute-formaccedilatildeo do espiacuterito pois se constitui na
relaccedilatildeo dinacircmica entre estruturas simboacutelicas natildeo-inatas e experiecircncias em
sociedade embora segundo o estudioso francecircs a gecircnese deva ceder
muito tempo que os linguistas tecircm analisado a linguagem como um sistema que possui valor coletivo [dentre os quais Saussure] O intelecto como uma soma coletiva de regras que possibilitam que tais conhecimentos sejam produzidosem determinado periacuteodo mal foi estudado ateacute agorardquo
24 Ver aparente paradoxo em Chomsky na nota 15
114 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
espaccedilo agrave singularidade os universais semacircnticos agraves contingecircncias o
indiviacuteduo agrave subjetividade e a loacutegica matemaacutetica agrave dinacircmica histoacuterica Em
siacutentese Foucault sustenta que tanto o pensamento humano quanto os
sistemas de pensamento se organizam pela descontinuidade das ideias
frutos da emergecircncia de possiacuteveis histoacutericos e de horizontes de validade
dos conhecimentos25
Consideraccedilotildees Finais
Cada praacutetica teoacuterica constroacutei os seus limites e as suas potencialidades
dentro de um domiacutenio mais vasto dos saberes Tais diaacutelogos natildeo satildeo
desinteressados pois propotildeem construir ou desconstruir pontes do
conhecimento autorizar ou desautorizar o olhar do outro definir enfim
a si e ao outro enquanto campo do saber No que concerne a este trabalho
retomamos os debates entre Piaget Chomsky e Foucault para demonstrar
que a AD natildeo estaacute alheia aos aspectos cognitivos dos sujeitos apenas os
incorpora a uma perspectiva de historicidade radical da linguagem Pode-
25 No dizer de Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 32 Itaacutelicos do autor) ldquoExiste haacute muito tempo a ideia de que as ciecircncias e o conhecimento seguiam certa linha de lsquoprogressorsquo obedecendo ao princiacutepio de lsquocrescimentorsquo e ao princiacutepio de convergecircncia de todos os tipos de saber [] Cada nova versatildeo torna o conhecimento completamente diferente em suas funccedilotildees em sua organizaccedilatildeo em suas relaccedilotildees internas O que se tem aiacute eacute um princiacutepio de divergecircncia muito mais do que de crescimento Eu diria antes que existem muitas maneiras diferentes de tornar possiacuteveis simultaneamente alguns tipos de conhecimento Portanto existe sempre de certo ponto de vista um excesso de informaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos possiacuteveis sistemas em determinado periacuteodo o que faz com que eles sejam conhecidos dentro de seus limites mesmo em sua deficiecircncia o que significa que natildeo se consegue perceber sua criatividade E de outro ponto de vista o do historiador existe um excesso uma proliferaccedilatildeo de sistemas para uma pequena quantidade de informaccedilatildeo daiacute a ideia amplamente difundida de que o que determina o movimento na histoacuteria da
ciecircncia eacute a descoberta de novos fatosrdquo Eacute notoacuteria a proximidade entre a perspectiva foucaultiana de saber descontinuidade e acontecimento discursivo na Histoacuteria das Ciecircncias e aquela de paradigma descontinuidade e revoluccedilatildeo cientiacutefica desenvolvida por Kuhn (1998 [1962] p 20-1) como podemos notar a seguir ldquoPreocupado com o desenvolvimento cientiacutefico o historiador parece entatildeo ter duas tarefas principais De um lado deve determinar quando e por quem cada fato teoria ou lei cientiacutefica contemporacircnea foi descoberta ou inventada De outro lado deve explicar os amontoados de erros mitos e supersticcedilotildees que inibiram a acumulaccedilatildeo mais raacutepida dos elementos constituintes do moderno texto cientiacutefico [] Contudo nos uacuteltimos anos alguns historiadores estatildeo encontrando mais e mais dificuldades para preencher as funccedilotildees que lhe satildeo prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulaccedilatildeo [] Talvez a ciecircncia natildeo se desenvolva pela acumulaccedilatildeo de descobertas e invenccedilotildees individuaisrdquo No capiacutetulo ldquoAs revoluccedilotildees como concepccedilotildees de mundordquo o fiacutesico acrescenta ldquoGuiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direccedilotildees E o que eacute ainda mais importante durante as revoluccedilotildees os cientistas veem coisas novas e diferentes quando empregando instrumentos familiares olham para os mesmos pontos jaacute examinados anteriormente Eacute como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares satildeo vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidosrdquo (KUHN 1998 p 145-6)
Argus Romero Abreu de Morais | 115
se com isso demonstrar os limites das abordagens logicizantes da relaccedilatildeo
pensamentolinguagemmundo aspecto transversal ao Construtivismo e
ao Gerativismo No sentido contraacuterio entendemos que a AD deve testar
seus fundamentos teoacutericos a partir da problemaacutetica da aquisiccedilatildeo da
linguagem a qual continuaremos a explorar em trabalhos futuros tendo
por foco avaliar os fundamentos epistemoloacutegicos de uma aquisiccedilatildeo do
discurso
Referecircncias
BERWICK R CHOMSKY N Por que apenas noacutes Linguagem e evoluccedilatildeo Satildeo Paulo
Editora Unesp 2017 [2016]
CHOMSKY N Diaacutelogos com Mitsuo Ronat Satildeo Paulo Cultrix 1977
_____ Sobre o minimalismo In CHOMSKY N Sobre natureza e linguagem Satildeo Paulo
Martins Fontes 2006 [1999] p 113-200
_____ Problemas do conhecimento e da liberdade Rio de janeiro Record 2008 [1971]
_____ Natureza humana justiccedila vs poder o debate entre Chomsky e Foucault Satildeo
Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 [1974]
FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2008
[1969]
KUHN T A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1998
[1962]
PIATELLI-PALMARINI M (Org) Teorias da linguagem teorias da aprendizagem o
debate entre Jean Piaget amp Noam Chomsky Satildeo Paulo Cultrix Editora da
Universidade de Satildeo Paulo 1983 [1979]
SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Satildeo Paulo Cultrix 2006 [1916]
6
Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche
A Leitura de Guumlnter Abel
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa 1
O presente texto esboccedila uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento de
Nietzsche e a filosofia da mente no que diz respeito ao tratamento de
algumas questotildees centrais aiacute presentes ndash em particular o problema da
consciecircncia no debate entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo
entre processos fiacutesicos e mentais Para a compreensatildeo de tais questotildees o
pensamento nietzscheano ndash aqui mediado pela interpretaccedilatildeo de Guumlnter
Abel ndash mostra sua relevacircncia e atualidade no sentido de uma superaccedilatildeo
daquela dicotomia
Em ldquoConsciecircncia ndash linguagem ndash natureza a filosofia da mente em
Nietzscherdquo (ABEL 2005 p 1-41)2 Abel parte da anaacutelise de alguns aspectos
da investigaccedilatildeo atual em filosofia da mente para a partir de uma exegese
do corpus nietzscheano3 apontar para sua pertinecircncia e relevacircncia dentro
desse contexto As reflexotildees de Nietzsche acerca dos acircmbitos e das relaccedilotildees
entre consciecircncia natureza e linguagem ndash a limitaccedilatildeo do consciente pelo
natildeo consciente a formaccedilatildeo de conceitos e da memoacuteria a ideia de natureza
como conjunto complexo de forccedilas por exemplo ndash mostram a importacircncia
que essa triacuteade tem para o seu pensamento
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE)
2 Esse texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001) Berlim De Gruyter
3 Em particular trechos da Gaia ciecircncia e Aleacutem de bem e mal bem como fragmentos poacutestumos de 1884 a 1887 contidos em KSA nos vols X XI XII e XIII da ediccedilatildeo criacutetica de G Colli e M Montinari (1999a 1999b 1999c 1999d)
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 117
O foco da anaacutelise de Abel recai sobre o debate ndash renovado na
atualidade apoacutes a chamada ldquoreviravolta linguiacutesticardquo iniciada por
Wittgenstein e a ldquoredescoberta da consciecircnciardquo (ABEL 2005 p 199) pela
filosofia analiacutetica ndash entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo
entre processos fiacutesicos e mentais em particular os processos consciente-
mentais Segundo Abel de uma maneira geral duas posturas antagocircnicas
podem daqui emergir de um lado a tese do materialismo fisicalismo
monista a defender que estados e processos mentais satildeo tatildeo somente
fenocircmenos da mateacuteria de outro a tese do mentalismo dualista que
defende a irredutibilidade daqueles a estes Ambas as posturas no entanto
por suas proacuteprias limitaccedilotildees natildeo poderiam ser superadas uma pela outra
Precisamente pela ldquoarmaccedilatildeo conceitual que implica ou tem como
consequecircncia essa natildeo resoluccedilatildeordquo (ABEL 2005 p 206) ter-se-ia entatildeo um
impasse E soacute uma modificaccedilatildeo na arquitetura mesma dessa armaccedilatildeo
conceitual tornaria possiacutevel um encaminhamento do problema de modo a
indicar as condiccedilotildees sob as quais ele natildeo poderia mais ocorrer
Os elementos de interpretaccedilatildeo apropriados a essa modificaccedilatildeo
poderiam ser encontrados segundo Abel no pensamento nietzscheano A
tese que defende e que aqui procuraremos expor eacute a de que as criacuteticas
realizadas por Nietzsche agrave questatildeo da consciecircncia expondo seus limites
apontam para uma reinterpretaccedilatildeo do fenocircmeno que natildeo se deixa reduzir
a um mero fisicalismo naturalista nem tampouco se deixa levar por uma
hipoacutestase do conceito-modelo ldquoConsciecircnciardquo A triacuteade acima citada seria
nesse sentido natildeo soacute de fundamental importacircncia para a compreensatildeo do
pensamento nietzscheano como por outro lado seu pensamento a esse
respeito ndash ao acentuar o papel da praacutexis interpretativa e das funccedilotildees
simboacutelicas linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas na constituiccedilatildeo da consciecircncia e
da autoconsciecircncia ndash mostra sua relevacircncia no sentido de uma superaccedilatildeo
daquela dicotomia Tais elementos foram reconstruiacutedos pelo autor em seis
seccedilotildees que seratildeo apresentadas a seguir princiacutepio do continuum modelo
do processo organizaccedilatildeo funcional consciecircncia e linguagem
fenomenalismo da experiecircncia interna e consciecircncia e corporeidade
118 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
O Princiacutepio do Continuum
Abel parte da compreensatildeo de que a superaccedilatildeo das dicotomias entre
mentalismo e materialismofisicalismo soacute pode ocorrer a partir de um
modo de ver natildeo dualista E Nietzsche segundo Abel defende tal
concepccedilatildeo a partir do que chama de princiacutepio do continuum o mundo
para Nietzsche constitui-se como um espectro de continuidade que vai do
inorgacircnico passando pelo orgacircnico ateacute as atividades cognitivas e aos
projetos e consecuccedilatildeo das accedilotildees O que significa que por um lado o
homem seria entendido como corporificaccedilatildeo de todas as atividades
ldquointeligentesrdquo que jaacute se encontram no orgacircnico e com as quais o ser
humano seria retraduzido na natureza por outro o ldquocaraacuteter espiritualrdquo
das atividades vivas poderia ser encontrado nas formas de manifestaccedilatildeo
orgacircnica e ateacute para aleacutem destas
Natildeo se trata aqui de uma superaccedilatildeo redutora ou derivativa do modelo
dualista na relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o consciente No modelo do
continuum a consciecircncia desponta como um fenocircmeno gradual que surge
a partir de ldquodiferenciaccedilotildees filogeneacuteticas e ontogeneacuteticas no acircmbito do
orgacircnicordquo (ABEL 2005 p 209) e cujos elementos jaacute se encontram
presentes em animais enquanto o tornar-se consciente e a autoconsciecircncia
somente no homem seriam encontrados Dois pressupostos do princiacutepio
nietzscheanos satildeo aqui delineados em primeiro lugar formas de vida preacute-
conscientes e orgacircnicas devem ser vistas como ldquoprocessos dinacircmicosrdquo jaacute
inteligentes e basilares para a formaccedilatildeo da consciecircncia por outro ldquoestados
mentais conscientesrdquo devem ser distintos dos ldquoinconscientesrdquo sendo este
acircmbito mais amplo e a partir do qual aquele pode ser explicado Em todo
caso por peticcedilatildeo de princiacutepio ldquoa consciecircncia mesma natildeo estaacute em condiccedilatildeo
de indicar uma lsquocausa objetivarsquo para sua proacutepria origemrdquo (ABEL 2005 p
209)
O que seria entatildeo o ldquoeurdquo da consciecircncia ou o lsquoSi mesmorsquo [Selbst] do
corpo humano Dois aspectos devem ser aqui observados por um lado
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 119
como o modelo do continuum abre-se a possibilidade de que esse ldquoeurdquo
ldquoinfluencie num certo sentido os processos orgacircnicosrdquo (ABEL 2005 p
208) ou seja que determinados pensamentos possam ser ldquoincorporadosrdquo
organicamente por outro o sujeito da consciecircncia ndash ou o que Abel chama
de ldquoeu consciente e lsquoindexicalrsquordquo ndash surge como uma delimitaccedilatildeo dentro da
ldquocorrente contiacutenua de acontecimentosrdquo e natildeo mais como uma coisa
individual que precede a consciecircncia de algo O Eu aparece assim como a
ponta de um processo da qual por isso mesmo prescinde o todo restante
Daiacute a formulaccedilatildeo de Nietzsche ldquoPara que em geral consciecircncia se ela eacute
no geral supeacuterfluardquo e agrave qual ele mesmo responde ldquouma rede de ligaccedilatildeo
entre homem e homemrdquo que teve de ldquodesenvolver-se somente enquanto
talrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354)
Modelo do Processo
Enquanto continuum que vai do orgacircnico ao consciente o mundo de
Nietzsche eacute um conjunto de ldquoefeitos cambiantes dinacircmicos altamente
complexos de variadas organizaccedilotildees de forccedilas vivas e inteligentesrdquo (ABEL
2005 p 215) ndash luta e arregimentaccedilatildeo de impulsos cujo pathos se mostra a
ele como vontade de poder [der Wille zur Macht] Os elementos da
natureza nesse sentido natildeo podem mais ser tomados coisas ndash corpos
materiais ocupando posiccedilotildees no espaccedilo-tempo mas ldquoeventosrdquo ou ldquoobjetos-
processordquo (ABEL 2005 p 216)4 Tal concepccedilatildeo certamente traz
consequecircncias natildeo somente para o status do conceito de ldquocoisardquo mas
tambeacutem para a ideia de ldquosujeitordquo A questatildeo que Abel aqui se coloca eacute os
processos devem ainda pressupor um sujeito ou eacute possiacutevel partir de
processos sem sujeito
A ideia de um sujeito da consciecircncia que a represente e organize seus
conteuacutedos parece implicada no momento mesmo em que a consciecircncia
4 Abel salienta aqui a proximidade da concepccedilatildeo nietzscheana com a fiacutesica contemporacircnea (objetos como uma identidade de eventos) e com as pesquisas em filosofia da linguagem (em particular as ideias de Reichenbach e Davidson)
120 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
enquanto consciecircncia-de-algo transitiva designada por meio da
intencionalidade manifesta-se Ocorre que tambeacutem o ldquoeurdquo o sujeito da
consciecircncia soacute se manifesta em virtude do surgimento desta uacuteltima5
Como afirma Nietzsche em Aleacutem do bem e do mal a ideia de um ldquosujeito
lsquoeursquordquo como condiccedilatildeo do predicado ldquopensordquo seria uma ldquofalsificaccedilatildeo dos
fatosrdquo (NIETZSCHE 2005 sect17) Ora com isso dois postulados expostos
na seccedilatildeo anterior comeccedilam a ser esclarecidos
(a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciecircncia jaacute depende de
uma amaacutelgama de processos sem sujeito e (b) que o estado e fenocircmeno da
consciecircncia repousa genealogicamente jaacute sobre estados mentais [eventos
processos] natildeo conscientes (ABEL 2005 p 218)
Haveria nesse sentido uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a ideia de um
ldquosujeito da consciecircnciardquo e a figura de ldquoprocessos sem sujeitordquo A pergunta
ldquoquem pensardquo deve ser respondida com ldquoalgo pensardquo no sentido de que
esse ldquoalgordquo jaacute natildeo eacute um ldquoeurdquo objeto e representaccedilatildeo mas um processo e
uma interpretaccedilatildeo ndash ou citando Nietzsche ldquouma interpretaccedilatildeo do processo
que natildeo pertence ao processo mesmordquo (NIETZSCHE 2005 sect17) ndash
designada com a palavra indexical ldquoeurdquo funccedilatildeo desse processo Da mesma
forma no plano linguiacutestico as sentenccedilas de processo natildeo seriam mais
vinculadas a um sujeito gramatical (ABEL 2005 p 221)6 A ideia de sujeito
enquanto ldquoindiviacuteduo-coisardquo dissolve-se nesse sentido pelo ldquoretorno do
sujeito da consciecircncia em si mesmo como sua consequecircncia internardquo
(ABEL 2005 p 220) Em seu lugar surgem o indiviacuteduo-evento e o eu-
interpretaccedilatildeo
A suspeita de uma contaminaccedilatildeo categorial [] de que somente indiviacuteduos-
coisa fornecem o modelo de referecircncia parece banida atraveacutes da passagem ao
esquema do evento e uma teoria natildeo dualista natildeo estaacute mais aprisionada ao
5 Veremos adiante (na seccedilatildeo ldquoFenomenalismo da experiecircncia internardquo) que o eu-consciecircncia a perspectiva da primeira pessoa surge no momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a consciecircncia
6 O autor faz aqui atraveacutes de Lichtenberg um paralelo entre a concepccedilatildeo nietzscheana (com o exemplo das expressotildees impessoais) e a criacutetica ao eu-portador feita por Wittgenstein (o do Tractatus assim como o das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas na comparaccedilatildeo entre olho e o campo visual)
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 121
leito de Procrusto do sujeito da consciecircncia Somente um modelo de referecircncia
baseado em indiviacuteduos-evento abre essa possibilidade (ABEL 2005 p 222)
A partir daqui abre-se o caminho para se pensar eventos mentais
conscientes e natildeo conscientes em uma ldquoco-pertenccedila natildeo dualistardquo com
processos orgacircnicos e corporais
Organizaccedilatildeo Funcional
A ideia de processo implicaria tambeacutem uma passagem do modelo de
organismo ao de organizaccedilatildeo Com efeito o orgacircnico em Nietzsche eacute
entendido como uma ldquoestrutura de organizaccedilatildeordquo na qual a consciecircncia o
pensamento consciente e outros processos mentais resultam como
ldquopropriedades e consequecircncias emergentes da co-relaccedilatildeo muacuteltipla e
altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem
a organizaccedilatildeo e garantem sua funcionalidaderdquo Aqui natildeo se trata
propriamente de uma relaccedilatildeo entre parte e todo ndash entre particular e
universal mas de uma combinaccedilatildeo de ldquomuacuteltiplas organizaccedilotildees de forccedilas
das partesrdquo cujos efeitos fazem surgir aqueles estados mentais e emergir
a ldquoespiritualidade viva e inteligenterdquo jaacute presente no orgacircnico (ABEL 2005
p 223)
Tambeacutem aqui haveria uma proximidade com a concepccedilatildeo
atualmente defendida e aceita nas pesquisas sobre o ceacuterebro ndash em
particular ao modelo dos ldquomultiple draftsrdquo desenvolvido por Dennett
(1991 cap 5 apud ABEL 2005 p 224) ndash de que estados mentais
conscientes e natildeo conscientes satildeo resultados da organizaccedilatildeo e da
complexa dinacircmica de configuraccedilotildees de neurocircnios ndash o que vale ser aqui
salientado dado que tal modelo vai de encontro agrave concepccedilatildeo cartesiana
centralista da consciecircncia na qual o ceacuterebro teria um centro ndash um ldquoolho
internordquo para as experiecircncias conscientes Por outro lado a proacutepria ideia
de um ldquofluxo da consciecircnciardquo natildeo pode ser vista como uma sequecircncia
unificada mas ao contraacuterio processos de conformaccedilotildees dinacircmicas e
muacuteltiplas combinaccedilotildees das partes do sistema envolvidas
122 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Na concepccedilatildeo nietzscheana diz Abel esse aspecto eacute enfatizado no
sentido da dependecircncia do ldquoperfil funcionalrdquo do orgacircnico em relaccedilatildeo agraves
combinaccedilotildees de suas partes A ldquoorganizaccedilatildeo processualrdquo pode ser
entendida como configuraccedilotildees de forccedilas que preponderam e dominam ndash
ldquoregentesrdquo mas que satildeo ao mesmo tempo ldquodependentes das forccedilas
particulares funcionaisrdquo ndash e forccedilas ldquoregidasrdquo As partes ndash eventos e
processos por sua vez jaacute natildeo podem ser representadas como elementos
atomiacutesticos mas como ldquoconsecuccedilatildeo efetivo-relacional do acontecerrdquo
(ABEL 2005 p 227) Para Nietzsche esse eacute um evento fundamental de
tudo o que eacute efetivo e vivo E eacute nesse sentido que para ele a vida pode ser
definida como ldquolsquouma forma duradoura do processo de afirmaccedilatildeo da forccedila
onde os lutadores crescem de modo desigual entre sirsquordquo (COLLI
MONTINARI 1999b KSA-XI 36 [22])
A centralidade que o aspecto da organizaccedilatildeo funcional ocupa na
concepccedilatildeo nietzscheana permite caracterizaacute-la segundo Abel como um
funcionalismo entendido no sentido de que estados e processos mentais ndash
em particular estados e processos natildeo conscientes exercem papeacuteis
funcionais e referem-se agrave organizaccedilatildeo funcional de um sistema podendo
ser descritos por uma terminologia funcionalista No entanto natildeo seria
possiacutevel aqui uma associaccedilatildeo ao funcionalismo defendido por Putnam
(1975 apud ABEL 2005 p 228) com base em um modelo computacional
de descriccedilatildeo do funcionamento e individuaccedilatildeo de estados mentais Isso
porque entraria na concepccedilatildeo nietzscheana um ldquoelemento de liberdade e
criatividaderdquo que permite ao eu da consciecircncia dispor dos conteuacutedos e
subsumi-los a um ldquotratamento imaginativo ou planejado do agirrdquo
Um uacuteltimo aspecto quanto agrave organizaccedilatildeo funcional em Nietzsche e
na filosofia da mente diz respeito a uma possiacutevel interpretaccedilatildeo
teleoloacutegico-normativa dos papeacuteis funcionais exercidos pelos processos
mentais Na concepccedilatildeo nietzscheana os processos de organizaccedilatildeo de
forccedilas satildeo eventos de autorregulaccedilatildeo e otimizaccedilatildeo das relaccedilotildees de forccedilas
atuando tanto na organizaccedilatildeo como nas partes nela envolvidas Essas
muacuteltiplas combinaccedilotildees soacute posteriormente apareceriam agrave consciecircncia como
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 123
em conformidade a um fim Natildeo haveria nesse sentido nenhuma
teleologia na coisa mesma mas apenas em como ela aparece agrave consciecircncia
ldquoA organizaccedilatildeo e a dinacircmica dos processos complexos de forccedilas se
realizam () de modo ateleoloacutegicordquo (ABEL 2005 p 231) Seria preciso
distinguir entre duas espeacutecies de finalidade seja a ideia de fim entendida
como um motivo ndash uma ldquoteleologia do atuar exoacutegenordquo ou no como uma
consequecircncia ndash uma ldquofuncionalidade e regularidade endoacutegenardquo Nesse
sentido soacute como expressatildeo de um ldquoolhar que observa posteriormenterdquo
uma conformidade a fins seria possiacutevel
Consciecircncia e Linguagem
Os modelos e organizaccedilotildees acima natildeo estariam bem esclarecidos sem
a compreensatildeo de que por detraacutes das representaccedilotildees sobre as quais a
consciecircncia se efetiva estatildeo os signos linguiacutesticos e funccedilotildees gramaticais
que por sua vez exercem-se no contexto de uma praacutexis interpretativa Em
outras palavras na base do fenocircmeno da consciecircncia aparece o
fundamento linguiacutestico-gramatical e interpretativo de todo pensar Para
Nietzsche soacute podemos pensar ldquode forma linguiacutesticardquo (COLLI
MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22]) O ldquopensar racionalrdquo eacute nesse sentido
um ldquointerpretar segundo um esquema que natildeo podemos dispensarrdquo
(COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22])
Para Abel o que assume significaccedilatildeo fundamental nos dias de hoje eacute
que se por um lado a consciecircncia apresenta a linguagem ndash enquanto uso
dos signos (linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticos) por outro na base mesma de
seu surgimento consecuccedilatildeo e desenvolvimento ela revela tambeacutem com a
linguagem o seu caraacuteter puacuteblico e social A consciecircncia (e suas
especificidades) nesse sentido eacute tematizada agora ldquona interseccedilatildeo dos
desenvolvimentos no acircmbito do natural-orgacircnico [] com os processos
nas esferas do social do histoacuterico e do culturalrdquo (ABEL 2005 p 233)
Jaacute em seus primeiros escritos postumamente publicados Nietzsche
aponta para o cerne comunicativo constitutivo da consciecircncia Na forma
124 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
como apresentado em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral o
homem natildeo apreende coisas objetos mas sensaccedilotildees ndash marcas de
excitaccedilotildees externas que satildeo por meio de transposiccedilatildeo metafoacutericas ndash do
objeto em imagem e da imagem em conceito ndash simplificadas
antropomorfizadas e restituiacutedas pela linguagem na forma de signos Por
uma ldquotransposiccedilatildeo artiacutesticardquo entatildeo a linguagem opera uma identificaccedilatildeo
do natildeo idecircntico da qual surge o conceito Mais ainda eacute nessa identificaccedilatildeo
que se constitui o objeto e tambeacutemo sujeito criador como esfera a ele
oposta com o qual natildeo pode ter senatildeo uma ldquorelaccedilatildeo esteacuteticardquo que eacute a sua
proacutepria criaccedilatildeoconstituiccedilatildeo
Tal processo nesse sentido soacute se justifica do ponto de vista de uma
praacutexis social ou seja por uma necessidade de comunicaccedilatildeo e de
ldquoestabilizaccedilatildeo de sistemas sociaisrdquo (ABEL 2005 p 235) A proacutepria
ldquoverdaderdquo nada mais eacute que uma metaacutefora cristalizada e aceita socialmente
isto eacute pelo rebanho Nietzsche ressalta as condiccedilotildees fisioloacutegicas e
histoacutericas do ldquoinstinto (ou impulso) de verdaderdquo que marca nossa
civilizaccedilatildeo e cujo cerne ilusoacuterio e metafoacuterico revela antes uma crenccedila na
verdade como valor incondicional ldquoas verdades satildeo ilusotildees cuja origem
estaacute esquecidardquo (NIETZSCHE 2007 1 30)
Essa compreensatildeo eacute retomada posteriormente em A gaia ciecircncia
Para Nietzsche na constituiccedilatildeo mesma da consciecircncia aparece uma
ldquonecessidade de comunicaccedilatildeordquo que pressupotildee por sua vez uma
ldquocapacidade [entendida como forccedila e arte] de comunicaccedilatildeordquo
[] posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas
sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeo () Consciecircncia eacute na realidade
apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas () o pensar que se torna
consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos ndash pois
apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de
comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia
(NIETZSCHE 2004 sect 354)
O pensar conceitual e a experiecircncia consciente efetivam-se nesse
sentido enquanto ldquosignos de comunicaccedilatildeordquo ou ldquoformaccedilotildees e abreviaccedilotildees
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 125
de signos sobre signosrdquo Segundo Abel a constituiccedilatildeo de um sistema
conceitual ndash pelo qual o eu da consciecircncia se efetiva ndash ocorre no momento
em que ela proacutepria eacute capaz de diferenciar conceitualmente algo de algo e
com essa delimitaccedilatildeo constituir objetos e a si proacutepria como objeto
O caraacuteter interpretativo da consciecircncia no entanto natildeo se restringe
a um aspecto de suas funccedilotildees simboacutelicas mas eacute sua proacutepria condicionante
no sentido de que os processos orgacircnicos mesmos jaacute pressupotildeem um
ldquointerpretar contiacutenuordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 2 [148])
sendo por ele caracterizados A consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo soacute procede
de modo interpretativo em sua consecuccedilatildeo mas tambeacutem jaacute repousa em
processos de interpretaccedilatildeo natildeo conscientesrdquo (ABEL 2005 p 237) sendo
jaacute um resultado dessas relaccedilotildees Daqui se tem como consequecircncia que ela
natildeo pode ser nem causa sui nem finis sui no sentido de que permanece
sem acesso a seu proacuteprio fundamento A tarefa de uma filosofia da mente
nesse sentido consistiria principalmente em destacar o caraacuteter simboacutelico
e principalmente interpretativo subjacente a estados processos e
fenocircmenos da consciecircncia
Sempre haveria no entanto o perigo de a consciecircncia de modo auto-
causal e auto-teleoloacutegico hipostasiar-se a si proacutepria e mascarar o caraacuteter
problemaacutetico de as representaccedilotildees que surgem na consciecircncia estarem agrave
disposiccedilatildeo e poder do eu-consciecircncia como se esta as antecedesse e
pudesse com elas relacionar-se de outro modo Uma suposta
autocertificaccedilatildeo da autoconsciecircncia compensaria a incerteza quanto ao
objeto e ao sujeito que ela representa Eacute a tendecircncia proacutepria agrave consciecircncia
de querer ir aleacutem natildeo soacute do fenomenalismo da experiecircncia exterior como
tambeacutem da interior (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 15 [90]) Esse
ponto seraacute abordado na proacutexima seccedilatildeo
Fenomenalismo da Experiecircncia Interna
Vimos que pela articulaccedilatildeo linguiacutestica a consciecircncia opera uma
simplificaccedilatildeo esquematizaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo (ABEL 2005 p 237) de
126 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
tudo o que ateacute ela chega do mundo exterior Da mesma forma na
experiecircncia interna natildeo deparamos com fatos como sendo algo primaacuterio
mas eles proacuteprios ldquotecircm de ser o resultado de interpretaccedilotildeesrdquo Sensaccedilotildees de
prazer e dor por exemplo bem como aquilo que costumamos chamar de
ldquosentido internordquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 14 [152]) satildeo
para Nietzsche segundo Abel ldquofenocircmenos tardios derivados
interpretados intelectualmente de processos de forccedilas que estatildeo ao fundordquo
(ABEL 2005 p 238-239)
Duas perspectivas aqui se abrem para a caracterizaccedilatildeo
dessefenomenalismo da percepccedilatildeointerior em primeiro lugar a ordem e
cronologia de causa e efeito eacute continuamente invertida de forma que por
meio da memoacuteria das experiecircncias internas passadas a causa eacute imaginada
ndash em adequaccedilatildeo agrave causa real ndash depois de o efeito jaacute ter sucedido Em
segundo lugar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem (conforme exposta
acima) conduz tambeacutem a uma relaccedilatildeo entre fenomenalismo e
perspectivismo de forma que as experiecircncias internas ndash que satildeo uacutenicas e
individuais satildeo pela linguagem traduzidas para a consciecircncia como
estados internos conhecidos delimitados e tangiacuteveis ao indiviacuteduo7
Natildeo podemos assim transgredir o mundo fenomenal Mas isso natildeo
quer dizer que aquilo a que natildeo temos acesso seja o mundo ldquoverdadeirordquo
e sim tatildeo somente o ldquoinformulaacutevel mundo sem forma do caos de
sensaccedilotildeesrdquo ldquouma outra espeacutecie de mundo fenomenal para noacutes
incognosciacutevelrdquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 9 [106]) Haveria
aqui segundo Abel uma forte criacutetica ao princiacutepio mesmo da racionalidade
moderna a autoconsciecircncia cartesiana ndash ou mais precisamente agrave ldquoideia de
uma autocertificaccedilatildeo fundamentalista numa experiecircncia pura preacute-
linguiacutestica preacute-conceitual e independente da interpretaccedilatildeordquo ABEL 2005
p 241) Na base desse fundamentalismo epistemoloacutegico ldquoo ponto de
partida errado ndash como se houvesse lsquofatos da consciecircnciarsquo ndash e nenhum
fenomenalismo na observaccedilatildeo de si mesmordquo Erro que resultaria em seis
7 Processo esse que como vimos natildeo subsiste independentemente de uma praacutexis social
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 127
pressuposiccedilotildees nenhuma delas para Nietzsche (COLLI MONTINARI
1999d KSA XIII 15 [90]) plena de sentido
(1) transparecircncia completa da consciecircncia (2) manutenccedilatildeo da ideia do dado
ao menos para o acircmbito da experiecircncia interna da consciecircncia (3) a
experiecircncia humana eacute independente da linguagem da descriccedilatildeo e por fim ateacute
mesmo da interpretaccedilatildeo (4) o fenomenalismo eacute restrito somente ao mundo
exterior () (5) haacute um ponto de observaccedilatildeo fixo (6) a consciecircncia tem acesso
imediato a seus proacuteprios estados de experiecircncia interna de si (ABEL 2005 p
238-239)
Com ofenomenalismo e perspectivismo da experiecircncia interna entra
em cena o eu-consciecircncia ndash a perspectiva da primeira pessoa que surge no
momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a
consciecircncia Tambeacutem com ele o ldquocaraacuteter subjetivo qualitativo e
fenomenal da vivecircncia conscienterdquo (ABEL 2005 p 241) Tais aspectos satildeo
segundo Abel discutidos na atual filosofia da mente a partir de duas teses
(1) que os aspectos subjetivos qualitativos e fenomenais satildeo fundamentais
para a experiecircncia interna (2) [que] esses aspectos subjetivos qualitativos e
fenomenais ligados agrave perspectiva da vivecircncia na primeira pessoa natildeo podem
ser reduzidos agrave conformidade a leis fiacutesicas [que satildeo] explicadas da perspectiva
neutra da [] intersubjetividade [Esta] no entanto eacute precisamente aquilo
que natildeo somente eacute dado na vivecircncia factual subjetiva qualitativa e fenomenal
mas tambeacutem sistematicamente excluiacuteda (ABEL 2005 p 242)
Consciecircncia e Corporeidade
Apesar de natildeo poder representar ou sequer distanciar-se da rede natildeo
consciente de seus condicionamentos a consciecircncia ndash enquanto eu-
consciecircncia tem no entanto a ldquopossibilidade de abrir-se retroagindo a si
mesma em contraposiccedilatildeo ao complexo de suas condiccedilotildeesrdquo (ABEL 2005
p 244) Transiccedilatildeo essa que segundo Abel pode ser vista como a passagem
de uma consciecircncia autoteleoloacutegica e autocausal para um eu-consciecircncia
que sem perder a autoconsciecircncia eacute o proacuteprio si-mesmo do corpo ndash aquilo
que Nietzsche chama de grande razatildeo Isso implicaria a transiccedilatildeo de uma
128 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoontologia moralrdquo (COLLI MONTINARI 1999b KSA XI 7 [4]) a uma
ldquofilosofia do corpordquo que comeccedila quando a pequena razatildeo se volta sobre si
por sua proacutepria autoconservaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo a seus
condicionamentos O que natildeo deve ser confundido como uma reduccedilatildeo a
um naturalismo ou biologismo ndash nem tampouco de uma ldquoneurofilosofiardquo
como em Churchland (1998) Natildeo se trata na filosofia do corpo de
Nietzsche de organismos corpos e neurocircnios mas do corpo-organizaccedilatildeo
Natildeo haacute aqui um ldquoalgordquo a ser estudado mas uma ldquocombinaccedilatildeo dinacircmica e
altamente complexa de [] inteligecircncias em processordquo (ABEL 2005 p
244) A passagem do eu-consciecircncia ao si-mesmo (o ldquodominador do eurdquo)
eacute nesse sentido a passagem de uma ldquosubjetividade produtorardquo para a
ldquoindividualidade no sentido da organizaccedilatildeo do corpo [Leib] () que cada
um eacute enquanto ser que interpretardquo ABEL 2005 p 246-7) Isto natildeo implica
um retorno da individualidade ao sujeito racional universal mas a
subsunccedilatildeo em uma ldquoindividualidade-corpordquo
Dois aspectos satildeo salientados aqui por Abel em primeiro lugar a
ldquocorporeidade preacute-cognitiva preacute-linguiacutestica e preacute-racional em seus
estados esteacuteticos pode ser vista como o lugar de surgimento dos signos
simbolizadores linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticosrdquo (ABEL 2005 p 247) em
cuja invenccedilatildeo estatildeo envolvidos estados corporais Na abertura do eu-
consciecircncia agrave rede de seus condicionantes revela-se ldquoo caraacuteter dos signos e
da interpretaccedilatildeo em sua posiccedilatildeo fundamentalrdquo (ABEL 2005 p 248) Por
outro lado o modo de consideraccedilatildeo do ldquofio-condutor do corpordquo apresenta-
se como um ldquofenocircmeno mais ricordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII
40 [15]) no sentido de que se situa no interior mesmo da posiccedilatildeo criticista
A posiccedilatildeo da consciecircncia bem como da criacutetica da linguagem eacute nesse
sentido aprofundada Trata-se nas palavras de Nietzsche ldquodo corpo em
todo o desenvolvimento do espiacuterito ele eacute a histoacuteria que se torna sensiacutevel
de que um corpo superior se formardquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X
24 [16]) Em que o mental por outro lado eacute a ldquolinguagem simboacutelica do
corpordquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X 7 [126])
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 129
Criacutetica da Consciecircncia e Criacutetica da Linguagem
Dois aspectos devem ser salientados quanto a este toacutepico por um
lado a importacircncia da consciecircncia e da linguagem nas relaccedilotildees humanas
ndash com o mundo com o outro e consigo ndash e por outro o reconhecimento
de seus limites ndash em uacuteltima instacircncia do limite-corpo que subjaz a ambas
linguagem e consciecircncia
No caso da linguagem os limites parecem ser bastante sutis no
sentido de que ela proacutepria enquanto ldquogramaacuteticardquo atua como preacute-
formadora do pensamento consciente e nesse sentido ldquoo que pode ser
pensado e dito em geral tem de estar jaacute na gramaacutetica de uma linguagemrdquo
(ABEL 2005 p 249) Como afirma Nietzsche em Crepuacutesculo dos iacutedolos
ldquoA lsquorazatildeorsquo na linguagem oh que velha e enganadora senhora Receio que
natildeo nos livremos de Deus porque ainda acreditamos na gramaacuteticardquo
(NIETZSCHE 2006 III sect5) Tais limites que a tornam suscetiacutevel a uma
petrificaccedilatildeo estatildeo precisamente pelo caraacuteter de universalidade das
sentenccedilas e palavras Principalmente quando estas se tornam conceitos
frutos da ldquoidentificaccedilatildeo do natildeo idecircnticordquo (NIETZSCHE 2007 1) e jaacute
distantes de sua ldquovivecircncia original uacutenica e totalmente individualizadardquo Haacute
aqui o risco de se fazer mitologia com o ldquomundo dos signosrdquo e de tornaacute-lo
o ldquoem si das coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 sect21)
Uma superaccedilatildeo no pensamento dos ldquoerrosrdquo da razatildeo petrificados na
linguagem ndash ou em uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo (NIETZSCHE 2006
III sect5) ndash seria no entanto impossiacutevel porque noacutes ldquonecessitamos do errordquo
O problema crucial aqui como aponta Abel eacute que o indiviacuteduo uma
sensaccedilatildeo ou o proacuteprio inefaacutevel jaacute pressupotildeem a linguagem quando satildeo
expressos comunicados Como entatildeo conciliar o caraacuteter individual de uma
sensaccedilatildeo com a pretensatildeo agrave universalidade e o caraacuteter comunicativo e
social da linguagem que a expressa
No acircmbito da consciecircncia por sua vez por intermeacutedio e constituiccedilatildeo
da linguagem tudo perde a individualidade e eacute traduzido para o acircmbito do
universal O que impede um acesso agrave profundidade e deixa agravequela apenas
130 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
um ldquomundo de superfiacutecies e signosrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354) A
consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo pertence propriamente agrave existecircncia
individual do homemrdquo A relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem mostra-se
uma relaccedilatildeo de constituiccedilatildeo universalizaccedilatildeo simplificaccedilatildeo e
superficializaccedilatildeo Os limites se datildeo em que nessa relaccedilatildeo com a iminecircncia
de uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo a consciecircncia corre de vaacuterias formas o
risco de hipostasiar-se a si mesma
Em primeiro lugar na medida em que ela pretende identificar-se com a ampla
situaccedilatildeo total de um homem Entatildeo conforme ela considera seu eu isto eacute o
sujeito como substacircncia ela assumiria como sujeito uma posiccedilatildeo aprioriacutestica
face aos conteuacutedos da consciecircncia Por fim na medida em que o eu isto eacute o
sujeito da consciecircncia vecirc suas determinaccedilotildees das representaccedilotildees da consciecircncia
dos objetos da experiecircncia como determinaccedilotildees ontoloacutegicas Aleacutem disso haacute o
risco de hipoacutestase no sentido de que [] a consciecircncia e a mente tendem a
entenderem a si mesmas de modo autoteleoloacutegico e autocausal como finis sui e
causa sui e que elas jaacute natildeo podem abrir-se desse modo agrave rede abarcante das
condiccedilotildees de sua proacutepria existecircncia (ABEL 2005 p 252)
A criacutetica de Nietzsche em suma natildeo se refere propriamente agrave
consciecircncia ndash erro necessaacuterio ndash nem tampouco tem caraacuteter reducionista
Antes dirige-se ao modelo cartesiano hipostasiado de reflexatildeo da
consciecircncia e da autoconsciecircncia em seus seis erros ou pressuposiccedilotildees
Filosofia Simboacutelica e Interpretativa da Mente
Pode-se formular a advertecircncia articulada na criacutetica da consciecircncia e da
linguagem do seguinte modo natildeo se confunda a circunstacircncia de que noacutes
temos a ver na consciecircncia assim como na autoconsciecircncia com signos e
interpretaccedilotildees com a concepccedilatildeo de que noacutes nos deparariacuteamos com as ldquocoisas
mesmasrdquo ou com as coisas-em-si-mesmas Assumir essa uacuteltima significa
recair no sofisma naturalista da consciecircncia (ABEL 2005 p 253-4)
Do que foi exposto quanto aspectos acima atenccedilatildeo especial deve ser
dada ao caraacuteter simboacutelico e interpretativo ndash semioacutetico ndash dos estados e
processos da consciecircncia da autoconsciecircncia e dos outros processos
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 131
mentais conscientes e natildeo conscientes Consciecircncia eacute consciecircncia de signos
cujos elementos (sintaacuteticos semacircnticos e pragmaacuteticos) natildeo os precedem
mas satildeo eles mesmos constituiacutedos em sua ldquoorientaccedilatildeo a algo ou a outras
pessoasrdquo ndash orientaccedilatildeo que tem o caraacuteter de uma ldquointerpretaccedilatildeo
construcionalrdquo (ABEL 2005 p 253-4) As funccedilotildees da interpretaccedilatildeo
constituem assim o fundamento dos signos Todos os estados processos
e fenocircmenos mentais bem como a comunicaccedilatildeo desses conteuacutedos
realizam-se em e como signos e interpretaccedilotildees O ponto chave nessa
concepccedilatildeo pragmaacutetica simboacutelica e interpretativa diz Abel eacute que ldquonoacutes
temos consciecircncia mente e pensamento natildeo por meio mas por forccedila dos
processos de signos e interpretaccedilotildeesrdquo (ABEL 2005 p 256) A
interpretaccedilatildeo nesse sentido ldquoeacute condiccedilatildeo e natildeo opccedilatildeo para o emprego
bem-logrado dos signosrdquo (ABEL 2005 p 257)
Para o autor a construccedilatildeo nos dias de hoje de uma teoria da
consciecircncia que parta dessa tese ou seja para aleacutem da dicotomia
materialismofisicalismo e mentalismo deve levar em consideraccedilatildeo cinco
aspectos (1) uma postura contra o fisicalismo das funccedilotildees simboacutelicas dos
signos e interpretaccedilotildees (2) a introduccedilatildeo de sistemas e signos e
interpretaccedilotildees natildeo linguiacutesticos e natildeo proposicionais revelando a
insuficiecircncia dos siacutembolos linguiacutesticos e proposicionais como uacutenico meio
de representaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo mentais (3) a consideraccedilatildeo aleacutem de
Nietzsche do pragmatismo de Peirce da teoria geral do siacutembolo de
Goodman e a teoria das formas simboacutelicas de Cassirer (4) a ideia de uma
relaccedilatildeo ou uma ligaccedilatildeo interna entre signos interpretaccedilotildees e
possibilidade de accedilatildeo (5) a consideraccedilatildeo dos valores avaliaccedilotildees e normas
(sentido e dever) no emprego dos signos e nas accedilotildees
Assim o fundamental na concepccedilatildeo de uma filosofia da mente a
partir do pensamento de Nietzsche deve estar na ideia de que os processos
de interpretaccedilatildeo estatildeo implicados desde o iniacutecio tatildeo logo se trate de
submeter o que estaacute na consciecircncia a uma delimitaccedilatildeo ordenaccedilatildeo
classificaccedilatildeo coerecircncia ou comunicaccedilatildeo O orgacircnico mesmo jaacute eacute para
Nietzsche uma interpretaccedilatildeo contiacutenua
132 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Referecircncias
ABEL Guumlnter ldquoConsciecircncia-Linguagem-Natureza ndash A filosofia da mente em Nietzscherdquo In
MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo
Discurso Editorial 2005
_____ ldquoVerdade e interpretaccedilatildeordquo In MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad
Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo Discurso Editorial 2005a
CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia Trad Maria C Cescato Satildeo Paulo UNESP 1998
COLLI G MONTINARI M (orgs) Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe
(KSA v X) Berlim Munique Nova York Walter de Gruyter 1999a
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XI) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999b
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XII) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999c
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XIII) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999d
NIETZSCHE Friedrich W Genealogia da moral (GM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo
Paulo Companhia das Letras 1998
_____ A gaia ciecircncia (FWGC) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das
Letras 2004
_____ Aleacutem de bem e mal (GBBM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia
de Bolso 2005
_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos (GDCI) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo
Companhia das Letras 2006
_____ Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WLVM) In Sobre verdade e
mentira Trad e Org Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2007
7
Habermas e o Problema do Mundo Objetivo
em Verdade e Justificaccedilatildeo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira 1
Introduccedilatildeo
O objetivo deste artigo eacute investigar a questatildeo do mundo objetivo a
partir da recente distinccedilatildeo que Habermas realiza entre verdade e
justificaccedilatildeo na obra de mesmo tiacutetulo Eacute preciso entatildeo entendermos o
lugar que o mundo objetivo passa a ter no pensamento habermasiano
sobretudo a partir da diferenccedila entre verdade e justificaccedilatildeo algo outrora
inexistente
Verdade e justificaccedilatildeo de 1999 reuacutene trabalhos escritos entre 1996 e
1998 que retomam o fio de uma reflexatildeo interrompida em Conhecimento
e Interesse (1987) Apesar de a pragmaacutetica da linguagem que Habermas
desenvolveu nos anos 1970 ter feito uso de conceitos como verdade
referecircncia validade objetividade realidade e racionalidade estes natildeo
foram abordados agrave luz da filosofia teoacuterica como em Verdade e justificaccedilatildeo
Habermas (2012) nos tempos da Teoria do agir comunicativo obra
de 1971 definia o sentido de verdade a partir da situaccedilatildeo ideal de fala
atraveacutes dos pressupostos idealizantes de 1) publicidade e total inclusatildeo de
todos os envolvidos 2) distribuiccedilatildeo equitativa dos direitos de
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) com Doutorado Sanduiacuteche pela Ludwig-Maximilian-Universitaumlt (LMU) em Munique Alemanha Poacutes-doutorando pela Universidade Federal do Piauiacute (UFPI) e Bolsista Capes Email julianocordeiro81gmailcom
134 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
comunicaccedilatildeo 3) caraacuteter natildeo violento de uma situaccedilatildeo que admite apenas
a forccedila natildeo coerciva do melhor argumento e 4) a probidade dos
proferimentos de todos os participantes Nesse sentido a verdade
relacionava-se diretamente com o consenso construiacutedo pelos sujeitos
atraveacutes da situaccedilatildeo ideal de fala
Entretanto Habermas em Verdade e justificaccedilatildeo partindo das
criacuteticas que recebeu por igualar o conceito de verdade agrave justificaccedilatildeo ao
longo de seu projeto teoacuterico afirma hoje em dia que a verdade natildeo pode
mais ser assimilada simplesmente agrave situaccedilatildeo ideal de fala agrave justificaccedilatildeo
pragmaacutetica dos sujeitos ldquoDe laacute para caacute percebi que essa assimilaccedilatildeo natildeo
pode dar certo Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade que
natildeo eacute errado mas eacute pelo menos incompletordquo (HABERMAS 2004 p 60)
A verdade agora tem a ver com o mundo objetivo que temos
inevitavelmente de pressupor nos atos de fala e nas nossas accedilotildees A
justificaccedilatildeo por sua vez seria um criteacuterio pragmaacutetico relacionado
unicamente aos sujeitos falantes natildeo podendo ser assimilado agrave verdade
como Habermas conceituava antes A verdade por assim dizer relaciona-
se com um pressuposto formal que os sujeitos precisam admitir sob pena
de natildeo falar nem agir no mundo
Poreacutem mesmo com a distinccedilatildeo habermasiana entre os conceitos de
verdade e justificaccedilatildeo continua natildeo estando em questatildeo a representaccedilatildeo
correta da realidade ou a estrutura ontoloacutegica do mundo Eacute impossiacutevel
determinar a significaccedilatildeo das palavras sem uma consideraccedilatildeo do contexto
social em que satildeo usadas porque eacute o uso que decide a significaccedilatildeo das
expressotildees linguiacutesticas caracteriacutestica central do pragmatismo No
Segundo Wittgenstein e tambeacutem em Habermas a ecircnfase eacute dada
sobretudo agrave pragmaacutetica
Como entatildeo entender o novo lugar que o mundo objetivo passou a
ter no pensamento habermasiano haja vista que ele continua a ser criacutetico
da noccedilatildeo representacionista de verdade Como conciliar a tese da
pressuposiccedilatildeo irrecusaacutevel de um mundo objetivo independente de nossas
descriccedilotildees e idecircntico para todos os observadores com a tese baacutesica da
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 135
reviravolta linguiacutestica de que natildeo temos acesso diretamente isto eacute natildeo
linguisticamente mediado a uma realidade ldquonuardquo Eacute o que veremos a
seguir
A Necessaacuteria Diferenccedila entre Verdade e Justificaccedilatildeo
Inicialmente Habermas conceituava a verdade como sinocircnimo de
justificaccedilatildeo Ou seja a verdade era aquilo que os sujeitos estabeleciam
consensualmente nas deliberaccedilotildees Wellmer (apud ALVARENGA 1999)
por exemplo numa criacutetica a Habermas destaca que racionalidade e
verdade natildeo necessariamente coincidem Para ele natildeo podemos afirmar
que havendo consenso racional exista verdade de imediato Nada impede
que no futuro seja considerado falso um consenso atual o que natildeo
implica que agimos irracionalmente A verdade eacute sempre algo maior do
que a racionalidade dos consensos situados Todo consenso encontra-se
sob reserva podendo no futuro ser posto em questatildeo mediante razotildees
Wellmer argumenta referindo-se agrave primeira concepccedilatildeo de verdade
de Habermas que um conceito de verdade como consenso eacute insuficiente
por natildeo abranger o aspecto da correspondecircncia da verdade Seria preciso
esse complemento na teoria discursiva de Habermas Mesmo que se
cumpram as condiccedilotildees ideais de fala tal fato natildeo significa que as razotildees
alegadas no processo deliberativo tenham sido boas Um consenso falso
pode ser racional no sentido de que foi alcanccedilado sob condiccedilotildees formais
de uma situaccedilatildeo ideal
Habermas a partir de tais criacuteticas reformulou sua concepccedilatildeo de
verdade distinguindo verdade de justificaccedilatildeo Ele assume que o consenso
natildeo pode ser considerado como um criteacuterio mas deve ser visto como um
mecanismo de certificaccedilatildeo da verdade Ele relaciona o conceito discursivo
mantido de aceitabilidade racional com um conceito de verdade
pragmaacutetico natildeo epistecircmico sem assimilar a verdade agrave assertibilidade
ideal ou seja agrave justificaccedilatildeo
136 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Inicialmente Habermas (2012) na Teoria do agir comunicativo
apresentou uma teoria consensual da verdade o consenso era o criteacuterio de
verdade O que eacute verdadeiro seria aquilo advindo de um consenso racional
e universal como consequecircncia de um diaacutelogo numa situaccedilatildeo ideal de fala
Entretanto como demonstra Puntel (2013) Habermas viu as dificuldades
dessa concepccedilatildeo uma vez que haacute uma incapacidade de explicar por que
mesmo as asserccedilotildees mais exaustivamente justificadas podem ser falsas
Habermas trabalha atualmente com uma concepccedilatildeo de verdade orientada
realisticamente denominada de realismo epistemoloacutegico pragmaacutetico
Os principais passos de Habermas na apresentaccedilatildeo e explicaccedilatildeo de
sua nova concepccedilatildeo pragmaacutetico-realista da verdade segundo Puntel
(2013) satildeo os seguintes 1) o ponto de partida satildeo pretensotildees de verdade
feitas no mundo da vida 2) a verdade eacute conceitualmente (natildeo
epistemologicamente) desconectada da justificaccedilatildeo a verdade eacute
transcendente agrave justificaccedilatildeo 3) a verdade implica uma referecircncia a um
mundo objetivo independente 4) a verdade articula a conexatildeo entre a
sentenccedilaproposiccedilatildeo qualificada como verdadeira e o mundo
Habermas (2004) explica que argumentos que nos convencem da
verdade de ldquoprdquo podem se revelar falsos em outra situaccedilatildeo epistecircmica Ou
seja por mais que ldquoprdquo seja bem justificado ele pode ainda revelar-se falso
A argumentaccedilatildeo permanece reforccedila ele como o uacutenico meio disponiacutevel
para se certificar da verdade de modo que natildeo haacute outra maneira de
examinar as pretensotildees de validade tornadas problemaacuteticas Entretanto a
justificaccedilatildeo natildeo pode ser validada ainda como verdade Habermas entatildeo
pretende salvar a dimensatildeo do mundo objetivo em sua teoria
relacionando-a com a verdade
Ele estabelece um conceito de verdade em que as pretensotildees de
validade transcendam toda justificaccedilatildeo ldquo() depois da
destranscendentalizaccedilatildeo do sujeito cognoscente continua a existir uma
lacuna entre o que eacute verdadeiro e o que conta como justificado ou
racionalmente aceitaacutevel para noacutesrdquo (HABERMAS 2002 p 44) Habermas
pretende assegurar a diferenccedila entre verdade e aceitabilidade racional
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 137
Contudo tal diferenccedila coloca os sujeitos numa situaccedilatildeo paradoxal De um
lado sem acesso direto agraves condiccedilotildees de verdade eles soacute podem resgatar as
pretensotildees de validade por meio de boas razotildees de outro as melhores
razotildees satildeo tambeacutem faliacuteveis Portanto Habermas defende que o abismo
entre aceitabilidade racional e verdade natildeo pode ser transposto uma vez
que todo acordo alcanccedilado pela justificaccedilatildeo eacute tambeacutem faliacutevel
Habermas (2004) destaca que verdade e falibilidade satildeo dois lados de
uma mesma moeda Ele entende que falta agrave justificaccedilatildeo no sentido por
exemplo de Richard Rorty uma referecircncia aos objetos Nesse sentido as
pretensotildees de validade devem transcender o contexto natildeo se satisfazendo
apenas com a justificaccedilatildeo alcanccedilada O verdadeiro para Habermas deve
ser defendido em todos os contextos possiacuteveis
Segundo ele uma concepccedilatildeo que faccedila justiccedila agrave intuiccedilatildeo realista de um
mundo que existe independentemente de noacutes mesmo sem a
representaccedilatildeo de uma correspondecircncia entre proposiccedilotildees e fatos favorece
o projeto de explicar os aspectos nos quais a verdade e a justificaccedilatildeo ao
mesmo tempo assemelham-se e distinguem-se Em suma a verdade eacute um
conceito que transcende toda justificaccedilatildeo natildeo podendo ser identificada
com o conceito de assertibilidade idealmente justificada
De acordo com Habermas a conexatildeo interna entre verdade e
justificaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo epistemoloacutegica pois natildeo estaacute em jogo a
representaccedilatildeo correta da realidade mas uma praacutexis que natildeo pode vir
abaixo O entendimento muacutetuo natildeo pode funcionar sem que os envolvidos
se refiram a um uacutenico mundo objetivo dentro de um espaccedilo puacuteblico
intersubjetivamente partilhado O conceito discursivo de verdade natildeo eacute
exatamente falso mas insuficiente ele natildeo explica o que nos autoriza a ter
por verdadeiro um enunciado suposto como idealmente justificado Dessa
forma asserccedilotildees bem justificadas podem se revelar falsas porque a
verdade deve transcender qualquer contexto de justificaccedilatildeo
Puntel (2013) destaca uma criacutetica a Habermas apontando-nos uma
dimensatildeo natildeo aprofundada por este Puntel com razatildeo critica Habermas
agrave medida que este rejeita a teoria tradicional da verdade sem oferecer uma
138 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
explanaccedilatildeo miacutenima do que ele chama de conexatildeo ou entrelaccedilamento de
verdade e mundo Sua concepccedilatildeo realista pragmaacutetica permaneceria vaga
Se Habermas acertou por um lado em separar verdade de
justificaccedilatildeo ele simultaneamente tambeacutem criou um novo problema em
sua filosofia O que realmente Habermas chama de mundo objetivo O que
de fato significa verdade em Habermas visto que esta se relaciona com um
mundo objetivo que apenas podemos pressupor mas natildeo tematizar tal
qual uma praacutexis que natildeo pode vir abaixo Que dimensatildeo eacute essa que
transcende a justificaccedilatildeo
O Estatuto do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo de um Novo
Acerto a um Novo Problema
Segundo Cliacutestenes Franccedila (2015) Habermas em Verdade e
justificaccedilatildeo substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da
justificaccedilatildeo deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuiacutena
Uma teoria da verdade e uma teoria da justificaccedilatildeo satildeo empreendimentos
teoacutericos distintos A primeira teoria da verdade de Habermas dos tempos
do Agir comunicativo era uma teoria antirrealista pois como vimos antes
a verdade era algo sinocircnimo de justificaccedilatildeo Ela natildeo dependia da
ocorrecircncia no mundo de um estado de coisas tendo a ver com a
legitimaccedilatildeo das pretensotildees de validade dos falantes
Jaacute em Verdade e justificaccedilatildeo a verdade natildeo se circunscreve agrave esfera
do discurso ela sempre o ultrapassa Portanto o maacuteximo que podemos
afirmar sobre a aceitabilidade racional de uma asserccedilatildeo eacute que muito
provavelmente ela eacute verdadeira mas natildeo podemos garantir que isso ocorra
de fato Criteacuterios de autorizaccedilatildeo entretanto satildeo formulados por teorias da
justificaccedilatildeo e natildeo por teorias da verdade Franccedila (2015) levanta a hipoacutetese
de que em Verdade e justificaccedilatildeo Habermas apresenta uma teoria da
justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade Habermas natildeo pode mais
dizer em que a verdade consiste mas apenas indicar o que nossas intuiccedilotildees
pragmaacuteticas realistas nos afirmam que ela seja
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 139
Para Franccedila (2015) agrave luz de Kirkham uma teoria da verdade seria
uma teoria metafiacutesica que buscaria fixar uma definiccedilatildeo do que seja a
verdade Uma teoria metafiacutesica da verdade contudo natildeo procuraria
oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos
encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro Jaacute uma teoria da
justificaccedilatildeo busca indicar as evidecircncias e garantias que algo deve possuir
para ser considerado como provavelmente verdadeiro Criteacuterios de
autorizaccedilatildeo satildeo formulados por teorias da justificaccedilatildeo e natildeo por teorias
da verdade
Habermas apresentaria em Verdade e justificaccedilatildeo uma teoria da
justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade A incorporaccedilatildeo de aspectos
realistas ao conceito da verdade na pragmaacutetica formal de Habermas
resultou no abandono de se oferecer uma definiccedilatildeo positiva do que eacute a
verdade de fato Como pensar a partir disso o problema do mundo
objetivo
Habermas chega ao mundo objetivo somente atraveacutes de anaacutelises das
accedilotildees e discursos que os falantes e agentes realizam no processo
comunicativo Mas isso natildeo transcende a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo
Segundo Puntel (2013) Habermas sempre privilegia a dimensatildeo
pragmaacutetica em relaccedilatildeo agrave semacircntica embora defenda que satildeo duas
dimensotildees co-originaacuterias
Ele supotildee que o ldquoproacuteprio mundordquo eacute o ldquoproacuteprio mundordquo apenas se
permanecer completamente intocado pela linguagem Habermas separa
fatos de objetos Ele natildeo menciona a perspectiva de que ao identificarmos
os objetos como elementos do ldquoproacuteprio mundordquo noacutes jaacute estamos falando
acerca desses objetos pertencentes ao ldquoproacuteprio mundordquo Aqui haacute como
pano de fundo a claacutessica criacutetica de Hegel a Kant
Se os fatos acerca dos objetos natildeo tecircm um status ontoloacutegico entatildeo somos
confrontados com uma declaraccedilatildeo incorreta Com efeito para que tenha um
significado inteligiacutevel lsquoser acerca de um objetorsquo deve ser entendido como
lsquoalcanccedilarrsquo ou lsquoatingirrsquo ou lsquoconcernirrsquo o proacuteprio objeto eacute algo sem sentido
declarar um fato acerca de um objeto e entatildeo defender que este fato nada tem
a ver com o objeto Se o fato expresso nada tem a ver com o objeto o objeto
140 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
permaneceria em um esplecircndido isolamento desconhecido inarticulado O
processo de aprendizagem que torna possiacutevel a expressatildeo de fatos acerca dos
objetos natildeo teria qualquer sentido (PUNTEL 2013 p 206)
Habermas (2004) por sua vez defende uma concepccedilatildeo nominalista
do mundo o mundo eacute a totalidade de objetos dos quais podemos
estabelecer fatos Segundo Habermas os fatos satildeo o que noacutes declaramos
acerca dos objetos Ele enfatiza que o nominalismo eacute menos suspeito do
que outras posiccedilotildees ontoloacutegicas especialmente as posiccedilotildees que atribuem
um status ontoloacutegico aos fatos De acordo com Puntel (2013) o argumento
de Habermas eacute incoerente visto que se os fatos tecircm uma relaccedilatildeo essencial
com a linguagem o mesmo deve ser dito dos objetos Se os fatos estatildeo
entrelaccedilados com a linguagem porque podem ser expressos o mesmo
ocorre com os objetos haja vista que podem ser referidos a algo
Habermas poreacutem defende que apenas os fatos satildeo tocados pela
linguagem natildeo os objetos
Podemos dizer que haacute um abismo que separa a dimensatildeo pragmaacutetica
da semacircntica em Habermas embora ele sempre argumente que satildeo duas
perspectivas inseparaacuteveis Esse eacute um aspecto a ser criticado no
pensamento de Habermas agrave medida que ele natildeo concilia de fato a
pragmaacutetica e a semacircntica Segundo Manfredo Oliveira (2010) do
pressuposto metodoloacutegico fundamental da razatildeo comunicativa Habermas
deriva uma consequecircncia temaacutetica draacutestica isto eacute a restriccedilatildeo do tema da
filosofia agrave dimensatildeo pragmaacutetica Dessa forma como tambeacutem aponta
Puntel (2013) a abordagem pragmaacutetica habermasiana considera que as
estruturas e praacuteticas da comunicaccedilatildeo satildeo a base uacutenica uacuteltima e decisiva
do pensar filosoacutefico privilegiando a linguagem natural em sua
integralidade
Habermas (2004) em Verdade e justificaccedilatildeo distingue entre as
funccedilotildees expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da
linguagem natural afirmando que elas se pressupotildeem mutuamente
aceitando a tese de Michael Dummett Poreacutem Habermas privilegia
claramente a dimensatildeo pragmaacutetica colocando a semacircntica em segundo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 141
plano O resultado eacute que o problema do mundo objetivo em Habermas
natildeo eacute explorado suficientemente em sua teoria aparecendo apenas como
pressuposiccedilatildeo formal
Natildeo haacute uma clareza acerca da relaccedilatildeo entre verdade e mundo
objetivo apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade
Nesse sentido podemos dizer que haacute um deacuteficit ontoloacutegico em Habermas
pois a ontologia aparece sempre agrave sombra em sua teoria mas nunca como
algo tematizado e sim pressuposto formalmente Ou seja haacute uma
postulaccedilatildeo da dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo propriamente da ontologia que
eacute a teoria dessa dimensatildeo A semacircntica eacute reduzida agrave pragmaacutetica (ou pelo
menos articulada em funccedilatildeo da pragmaacutetica e a ela submetida) referecircncia
central de toda a filosofia de Habermas
Como vimos antes Habermas diz que a justificaccedilatildeo natildeo pode ser mais
um criteacuterio de verdade mas ela continua sendo um mecanismo de
certificaccedilatildeo da verdade De acordo com Puntel poreacutem quando uma
sentenccedila eacute qualificada como verdadeira supotildee-se a correspondecircncia com
algo no mundo levantando-se a questatildeo de como deve ser concebido esse
algo
Se assim eacute ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulaccedilatildeo ou
conexatildeo eacute exprimiacutevel e portanto natildeo somente pode mas deve ser explicitada
ndash caso contraacuterio falar dela seria vazio e autocontraditoacuterio Mas isto eacute algo que
Habermas poderia ou deveria aceitar De fato ele natildeo apresenta qualquer
explicaccedilatildeo relevante da dimensatildeo da conexatildeo ou entrelaccedilamento e isto deve
ser considerado como resultado de sua posiccedilatildeo poacutes-metafiacutesica (PUNTEL
2013 p 198)
Segue-se daiacute que a articulaccedilatildeo teoacuterica da dimensatildeo pressuposta ndash do
entrelaccedilamentoconexatildeo de verdade e mundo ndash natildeo pode ser realizada
pelo discurso pragmaacutetico ou dentro de seu quadro referencial teoacuterico
pragmaacutetico Isso torna claro que a afirmaccedilatildeo de Habermas a respeito de
uma verdade incondicional eacute extremamente restrita Em suma eacute uma
afirmaccedilatildeo dentro do acircmbito da pragmaacutetica que torna Habermas incapaz
de articular uma verdade genuinamente incondicional
142 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Ele fala da importacircncia de se reconhecer a dimensatildeo da validade
incondicionada mas natildeo avanccedila para aleacutem de tal afirmaccedilatildeo Se haacute a
necessidade de separar verdade de justificaccedilatildeo ele teria que aprofundar e
tematizar o que estaacute chamando de verdadee mundo objetivo Ou seja que
algo eacute esse que se encontra para aleacutem da justificaccedilatildeo e que ao mesmo
tempo pode pocircr abaixo as justificaccedilotildees no mesmo instante em que soacute
temos acesso ao mundo objetivo pelas proacuteprias justificaccedilotildees
A mesma criacutetica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradiccedilatildeo
transcendental oriunda de Kant Este afirma que a representaccedilatildeo das
coisas como nos satildeo dadas deve regular-se como fenocircmenos e natildeo como
coisas em si Em Kant natildeo eacute possiacutevel no conhecimento a priori
acrescentar aos objetos nada a natildeo ser o que o sujeito pensante toma de si
mesmo Todavia Kant exemplifica que se natildeo eacute possiacutevel conhecermos os
objetos como coisas em si mesmas podemos contudo pensaacute-los
Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa natildeo tanto
com objetos mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida
em que ele deva ser possiacutevel a priori Um sistema de tais conceitos denominar-
se-ia filosofia transcendental (KANT 1974 p 33)
Habermas segue a mesma perspectiva de Kant postulando a
intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito
transcendental Poreacutem a orientaccedilatildeo continua a mesma quando Habermas
afirma que podemos conhecer apenas os fatos natildeo os objetos do mundo
O mundo em Habermas natildeo nos impotildee sua linguagem ele natildeo fala e soacute
responde em sentido figurado
Habermas elabora uma teoria filosoacutefica centrada na dimensatildeo
comunicativa (pragmaacutetica) Seria a partir dela que outras dimensotildees
poderiam ser compreendidas Percebemos que a dimensatildeo expositiva
(semacircntica) eacute posta em segundo plano Em Habermas o modo como as
coisas do mundo satildeo apreendidas e denominadas se orienta no contato
comunicativo entre pessoas O mundo objetivo para ele soacute eacute conhecido
com base na relaccedilatildeo com o quadro referencial da comunicaccedilatildeo Ele eacute
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 143
apenas considerado de tal modo que a interaccedilatildeo entre pessoas se faccedila
possiacutevel Contudo Habermas natildeo se interroga pela condiccedilatildeo de
inteligibilidade da proacutepria pragmaacutetica sendo sua consideraccedilatildeo do mundo
objetivo algo vago
Conclusatildeo
Habermas como vimos distingue verdade de justificaccedilatildeo
entendendo verdade tal qual demonstra Puntel de alguma maneira no
sentido da teoria da correspondecircncia relacionada ao mundo objetivo Uma
pergunta contudo permanece sem resposta em Habermas o que significa
compreender algo Eacute preciso destacar contra ele que haacute um deacuteficit acerca
de uma consideraccedilatildeo da linguagem em sua dimensatildeo estruturalno que diz
respeito agrave dimensatildeo ontoloacutegica
Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificaccedilatildeo
haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo
mundo para todos) ele ao mesmo tempo natildeo consegue esclarecer como
ocorre a relaccedilatildeo da co-originaridade entre exposiccedilatildeo e comunicaccedilatildeo natildeo
aprofundando o estatuto que o mundo objetivo possui em sua filosofia
teoacuterica Habermas natildeo avanccedila de forma mais profunda acerca de questotildees
ontoloacutegicas exigidas por sua nova posiccedilatildeo realista-pragmaacutetica
Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questotildees filosoacuteficas que
tradicionalmente seriam chamadas de metafiacutesicas como a tematizaccedilatildeo do
mundo objetivo A virada radicalmente epistecircmica de toda a filosofia
moderna como no esquema transcendental deslocou o sujeito para o
centro de toda a empresa teoacuterica e desse modo tambeacutem da filosofia Fala-
se como sabemos no acircmbito da modernidade de uma filosofia do sujeito
No caso de Habermas e de seu kantismo pragmaacutetico revirado
linguisticamente podemos falar de uma filosofia centralizada na
intersubjetividade e na pragmaacutetica mas que manteacutem ainda a dicotomia
entre sujeitos e mundo
144 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Em Verdade e justificaccedilatildeo os sujeitos supotildeem em comum um
mundo objetivo como totalidade dos objetos que podem ser tratados e
apreciados Eacute justamente o conceito de fracasso performativo que nos
conduz em Habermas a uma pressuposiccedilatildeo formal de nossas accedilotildees
linguiacutesticas e de nossas intervenccedilotildees no mundo objetivo entendido como
sistema de possiacuteveis referecircncias e possiacuteveis manipulaccedilotildees
Trata-se em Habermas de um postulado que inevitavelmente temos
de fazer caso contraacuterio a fala e a intervenccedilatildeo no mundo se tornariam
impossiacuteveis Os participantes do discurso assumem a mesma
pressuposiccedilatildeo formal de um mundo independente de noacutes de nossas
descriccedilotildees de nossos esquemas conceituais
Nesse sentido em Habermas a referecircncia ao mundo natildeo eacute
apresentada como constituindo uma caracteriacutestica componente da
semacircntica da linguagem mas como um pressuposto acrescentado para
que possamos explicar nossas falas e nossas intervenccedilotildees Habermas fala
de semacircntica apenas como dimensatildeo da linguagem (Darstellung der
Welt) mas nunca a analisa Como ressalta Puntel (2013) as tentativas de
Habermas de abordar questotildees filosoacuteficas centrais sem deixar de ser fiel
ao pensamento poacutes-metafiacutesico conduziram-no a problemas
fundamentais obscuridades incoerecircncias ausecircncias de esclarecimentos e
soluccedilotildees
Referecircncias
ALVARENGA N Verdade contingecircncia e falibilismo a teoria discursiva da verdade de J
Habermas agrave luz das criacuteticas de A Wellmer Siacutentese Belo Horizonte v 26 n 86 p
347-373 1999
FRANCcedilA C A problemaacutetica incorporaccedilatildeo do realismo na pragmaacutetica-formal de Juumlrgen
Habermas In CARVALHO M (Org) Teoria criacutetica Coleccedilatildeo XI Encontro ANPOF
2015 p 159-173
HABERMAS J Conhecimento e interesse Rio de Janeiro Guanabara 1987
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 145
_____ Agir comunicativo e razatildeo destranscendentalizada Rio de Janeiro Tempo
Brasileiro 2002
_____ Verdade e justificaccedilatildeo ensaios filosoacuteficos Satildeo Paulo Loyola 2004
_____ Teoria do agir comunicativo 1 racionalidade da accedilatildeo e racionalidade social Satildeo
Paulo Martins Fontes 2012
KANT I Criacutetica da razatildeo pura Satildeo Paulo Abril Cultural 1974
OLIVEIRA M A Eacute a filosofia uma pragmaacutetica Revista Tempo Brasileiro Juumlrgen
Habermas ndash 80 anos Laranjeiras n 181-182 p 103-126 2010
PUNTEL L O pensamento poacutes-metafiacutesico de Habermas uma criacutetica Siacutentese Revista de
Filosofia Belo Horizonte v 40 n 127 p 173-223 2013
8
Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes
para se Pensar a Natureza de Sistemas Formais
Uma Abordagem Wittgensteiniana
Marcos Silva 1
I want to say an education quite different from ours
might also be the foundation for quite different concepts
(Wittgenstein Zettel 387)
Em 1930 segundo algumas conversas documentadas em
Wittgenstein (1984a)2 estava discutindo com alguns membros influentes
do Ciacuterculo de Viena aspectos importantes de sua filosofia Essas
discussotildees pretendiam esclarecer novidades e dificuldades advindas da
revisatildeo e aprofundamento de toacutepicos de seu Tractatus (1984b) Neste
contexto histoacuterico fica claro pela dinacircmica das conversas que Waismann
conduziu as discussotildees para a filosofia da matemaacutetica uma vez que
Wittgenstein estava preparando-o para um painel a tomar lugar em
Koumlnigsberg naquele mesmo ano O painel trataria justamente de
diferentes perspectivas a respeito dos desafios filosoacuteficos concernentes agrave
crise dos fundamentos na matemaacutetica Nesta discussatildeo em Koumlnisberg Von
Neumann representaria o formalismo Carnap o logicismo e Heyting a
escola intuitionista Jaacute Waismann o quarto membro ilustre da mesa de
1 Professor Adjunto do curso de Filosofia da UFAL e bolsista de produtividade do CNPq (2018-2021) Agradeccedilo aos comentaacuterios valiosos de Luiz Henrique da Silva Santos a este trabalho
2 Estas discussotildees foram documentadas por Waismann e organizadas para publicaccedilatildeo por McGuinness em Wittgenstein und Wiener Kreis doravante WWK
Marcos Silva | 147
discussotildees sobre o estado da arte da filosofia da matemaacutetica seria
responsaacutevel por representar a filosofia de Wittgenstein
A literatura secundaacuteria sobre estes toacutepicos de discussatildeo acerca da
natureza da matemaacutetica no WWK de maneira frequente e acertada a meu
ver aborda os comentaacuterios de Wittgenstein como sendo muito criacuteticos em
relaccedilatildeo ao programa de Hilbert A criacutetica tinha como alvo a meta do
programa que consistia na procura por uma prova absoluta para a
consistecircncia da matemaacutetica (Hacker 1986 Engelmann 2013) Segundo
Wittgenstein provocativamente afirma a tentativa de se fornecer uma prova
absoluta da consistecircncia da aritmeacutetica seria anaacuteloga agrave procura por uma
ldquodoenccedila escondidardquo em um corpo funcional (WITTGENSTEIN 1984a p
120) Contudo acredito que o ponto faltante nesta literatura seja a observaccedilatildeo
de que nesta altura Wittgenstein natildeo foi de forma alguma criacutetico de uma
tese central da tradiccedilatildeo formalista Essa tese diz respeito agrave arbitrariedade da
sintaxe Assim como as regras de um jogo as regras da sintaxe de sistemas
formais seriam para formalistas arbitraacuterias ou seja natildeo residiriam na
essecircncia da linguagem da mente ou do mundo Com efeito Wittgenstein
teria afirmado contundentemente nas discussotildees com os membros do
Ciacuterculo de Viena que ldquoa verdade no formalismo eacute que toda sintaxe pode ser
concebida como se fosse um sistema de regras de um jogo (hellip) Eu gostaria
de afirmar que natildeo somente os axiomas da matemaacutetica mas toda a sintaxe eacute
arbitraacuteriardquo (WITTGENSTEIN 1984a p103 minha traduccedilatildeo)
Minha hipoacutetese de trabalho para se entender esta formulaccedilatildeo forte
de Wittgenstein eacute a de que ela ilustra a sua reaccedilatildeo agrave visatildeo de Frege esta
muito criacutetica ao formalismo Esta reaccedilatildeo me parece ser baseada em uma
ainda incipiente aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de jogos para se entender de maneira
geral a natureza das regras da sintaxe e particularmente a proacutepria noccedilatildeo
de sistemas formais Em junho de 1930 Wittgenstein e Waismann estavam
lendo Grundgetsetze II de Frege em Viena como a entrada ldquoo que dizer
em Koumlnigsbergrdquo do WWK nos mostra No Grundgesetze II Frege (1903
sect106-119) defendeu inter alia contra teses formalistas que identificam a
natureza de sistemas formais com jogos que 1) nuacutemeros da aritmeacutetica natildeo
148 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
podem ser reduzidos a meros sinais ou marcas fiacutesicas porque por
exemplo lsquo0rsquo natildeo tem a propriedade de resultar no sinal lsquo1rsquo quando
adicionado ao sinal lsquo1rsquo ou seja sinais fiacutesicos eles mesmos em uma folha
de papel por exemplo natildeo possuem propriedades matemaacuteticas 2) que
uma contradiccedilatildeo um conceito propriamente loacutegico pode somente ocorrer
nas regras do jogo de xadrez e natildeo nas configuraccedilotildees baacutesicas isto eacute em
nenhum arranjo fiacutesico atual de peccedilas (do xadrez) e 3) que eacute impossiacutevel
inferir regras de um sistema formal pela mera inspeccedilatildeo de posiccedilotildees de
alguns sinais assim como seria impossiacutevel inferir as regras de um jogo de
tabuleiro dado a partir da mera disposiccedilatildeo de suas peccedilas
Nesta altura nas discussotildees com Waismann Wittgenstein parece
concordar com todas essas criacuteticas de Frege ao formalismo contudo vale
notar que Wittgenstein (1984a p 105) acusou indiretamente Frege de ter
cometido uma espeacutecie de falaacutecia do falso dilema se loacutegica e matemaacutetica
natildeo satildeo uma questatildeo de mera inspeccedilatildeo de sinais fiacutesicos ou da disposiccedilatildeo
de marcas materiais em um folha de papel por exemplo o significado de
seus sinais natildeo precisam ser fundados em seu Bedeutung ou seja em sua
referecircncia a entidades abstratas como Frege argumentou Wittgenstein
critica o seguinte raciociacutenio Se o significado de sinais em um sistema
formal natildeo pode ser dado pela mera configuraccedilatildeo de suas marcas fiacutesicas
entatildeo o seu significado deveria ser dado pela sua referecircncia a
determinados objetos especiais Wittgenstein parece ter defendido que ou
bem Bedeutung ou bem meramente sinais fiacutesicos natildeo satildeo todas as
alternativas neste horizonte De fato noacutes precisamos de sinais isto eacute de
algumas marcas fiacutesicas organizadas para a elaboraccedilatildeo de sistemas formais
variados mas noacutes precisamos ainda de regras para manipular estes sinais
Como consequecircncia uma compreensatildeo adequada da metaacutefora de jogos
dos formalistas deveria redundar na assimilaccedilatildeo da ideia que noacutes natildeo
precisamos nos engajar com algum Bedeutung transcendente ao jogo ele
mesmo para garantirmos que os sinais de um sistema formal tenham
significado Em outras palavras sinais seriam sim necessaacuterios mas natildeo
suficientes para a constituiccedilatildeo de um sistema formal mas nem por isso
Marcos Silva | 149
deveriacuteamos postular uma referecircncia a coisas fora do sistema ele mesmo
para dotaacute-lo de significado caso compreendamos a natureza das regras
que organizam o sistema e governam a manipulaccedilatildeo dos seus sinais
Eacute importante notar que Wittgenstein depois desta criacutetica
imediatamente comeccedila a usar o vocabulaacuterio que Frege introduziu ao criticar
formalistas a saber sistemas formais como jogos mas natildeo a posiccedilatildeo de
Frege de que a loacutegica deveria representar leis de uma realidade abstrata
Parece que Frege assumiu o vocabulaacuterio formalista como o de regras e
jogos para mostrar em uacuteltima instacircncia seu absurdo ou ao menos sua
implausibilidade para se entender a aritmeacutetica e a loacutegica Acredito que
Wittgenstein assumiu o vocabulaacuterio formalista de Frege mas condenou seu
falso dilema a saber ou bem somente sinais ou bem a necessidade de um
Bedeutung ao mostrar que formalistas fazem um bom ponto ao defenderem
que toda a sintaxe eacute arbitraacuteria como as regras de jogos Wittgenstein
assumiu o vocabulaacuterio formalista de jogos para mostrar que quaisquer
regras sintaacuteticas poderiam ser outras as regras de sistemas formais natildeo
precisam estar ancoradas na realidade mesmo que rejeitemos que natildeo
devem ser redutiacuteveis a meros sinais ou marcas fiacutesicas Nestas discussotildees
documentadas em WWK Wittgenstein natildeo parecia estar preocupado com
nenhuma lei loacutegica da realidade ou do pensamento mas sim com as regras
para manipular sinais que satildeo estipuladas quando noacutes estipulamos um
sistema loacutegico Ao se entender sistemas como jogos deveriacuteamos entendecirc-los
como independentes de uma realizaccedilatildeo material especiacutefica uma vez que o
fato de o rei num jogo de xadrez ser de plaacutestico madeira ou ateacute mesmo uma
bola de papel eacute irrelevante para a constituiccedilatildeo do proacuteprio sistema Os
sistemas formais como jogos deveriam ser compostos de marcas fiacutesicas sim
mas que possam exercer funccedilotildees variadas no sistema sempre determinadas
pelas regras de manipulaccedilatildeo do jogo
Neste periacuteodo histoacuterico no comeccedilo da deacutecada de 1930 a discussatildeo de
Wittgenstein estaacute ainda circunscrita agrave natureza de sistemas formais e natildeo
eacute desenvolvida para um entendimento geral da linguagem ou das
atividades humanas como um todo Wittgenstein eacute um pensador radical
150 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Eacute razoaacutevel defender que o desenvolvimento de sua filosofia madura possa
ser visto como o desenvolvimento proacuteprio das consequecircncias radicais
desta metaacutefora de jogos natildeo somente para entender matemaacutetica e loacutegica
mas para se entender a linguagem a intencionalidade e a normatividade
peculiares de atividades de seres humanos
No que se segue eu gostaria de responder a pergunta acerca do
porquecirc e de como a noccedilatildeo de jogos desenvolvida por Wittgenstein em 1930
(e nāo de jogos de linguagem porque ele natildeo tinha ainda este conceito
nesta eacutepoca) poderia ainda ser relevante para a filosofia da loacutegica Esta
questatildeo fica ainda mais premente ao considerarmos os problemas
contemporacircneos associados agrave emergecircncia de tantos sistemas natildeo-claacutessicos
legiacutetimos e seu desafio agrave natureza da racionalidade
Eu natildeo pretendo apresentar aqui um quadro nem original e nem
exaustivo de caracteriacutesticas filosoficamente importantes de sistemas
formais ao serem vinculadas a natureza de jogos Mas em vez disso eu
espero defender algumas intuiccedilotildees de Wittgenstein no comeccedilo da deacutecada
de 1930 sobre jogos e regras antes mesmo de suas noccedilotildees maduras (e
elusivas) de jogos de linguagem e semelhanccedila de famiacutelia Minhas
preocupaccedilotildees natildeo redundam em avanccedilar e defender todas as ideias
associadas agrave loacutegica como jogos mas restringir minhas ambiccedilotildees a
promover esta visatildeo filosoacutefica como cogente
Eacute importante evidenciar que os primeiros sistemas de ldquodeduccedilatildeo
naturalrdquo como introduzidos por Jaskowski (1934) e Gentzen (1934-35)
foram desenvolvidos na deacutecada de 1930 Nestes sistemas axiomas
foacutermulas bem formadas e pretensamente evidentes de onde se partem as
derivaccedilotildees satildeo substituiacutedos por conjuntos de inferecircncias que definem o
significado do vocabulaacuterio loacutegico de maneira que natildeo faz sentido dizer que
um sistema loacutegico descreve alguma coisa na realidade Embora as
conexotildees entre diferentes abordagens da loacutegica na deacutecada de 1930 e o
embate contemporacircneo entre teoria da prova e teoria de modelos sejam
histoacuterica e conceitualmente importantes seu exame natildeo estaacute no escopo
deste trabalho
Marcos Silva | 151
Com efeito muito mais poderia ser dito a respeito de jogos e seu uso
em abordagens anti-realistas na loacutegica e na epistemologia A teoria de
jogos foi oficialmente apresentada em 1944 mas foi antecipada por Borel
na deacutecada de 1920 Aleacutem disso a analogia com jogo de xadrez foi
frequentemente usada por exemplo por Weyl (1944) para criticar o
formalismo de Hilbert Vale tambeacutem notar que depois da segunda guerra
mundial o loacutegico Paul Lorenzen (1961) desenvolveu uma influente loacutegica
baseada em jogos dialoacutegicos materiais Estes jogos natildeo foram
influenciados por Wittgenstein mas por outras sugestotildees filosoacuteficas de
natureza construtivista Estes exemplos mostram a seminalidade filosoacutefica
e teacutecnica em se aplicar a metaacutefora do jogo agrave loacutegica independentemente de
uma abordagem wittgensteiniana Um projeto de pesquisa mais
abrangente a respeito disto parece ser bem-vindo
No que se segue eu natildeo estou interessado diretamente na exegese da
filosofia de Wittgenstein3 portanto natildeo vou me concentrar em seu
desenvolvimento filosoacutefico Eu proponho em vez disso oferecer uma
abordagem filosoacutefica mais geral sobre a loacutegica que tambeacutem poderia ser uacutetil
para se entender a natureza do vocabulaacuterio loacutegico
De fato a seguir eu seleciono e brevemente discuto algumas
caracteriacutesticas filosoficamente atraentes a respeito de se pensar loacutegica em
termos de regras em jogos isto eacute em tomar loacutegica como um conjunto de
praacuteticas governadas por regras engajadas por agentes racionais A
motivaccedilatildeo principal aqui eacute a respeito de como esta abordagem poderia ser
filosoficamente seminal para se entender loacutegica e racionalidade em um
ambiente de uma grande pluralidade de jogos Em outras palavras eu vou
mostrar como ao aceitarmos a ideia de sistemas loacutegicos como jogos
poderiacuteamos nos prover de ferramentas filosoacuteficas e loacutegicas para se avanccedilar
discussotildees contemporacircneas em filosofia da loacutegica
Um primeiro ponto relevante em se desenvolver a metaacutefora formalista
a respeito de sistemas formais como jogos eacute o anti-representacionismo
3 Estes problemas conceituais e histoacutericos satildeo tatildeo importantes quanto controversos por um nuacutemero grande razotildees Ver Engelmann (2013) para uma apresentaccedilatildeo mais detalhada Algum anacronismo seraacute cometido no presente trabalho
152 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Regras de um jogo natildeo precisam descrever a experiecircncia e nem a realidade
Regras natildeo podem ser falsificadas e nem verificadas pela experiecircncia uma
vez que natildeo satildeo proposiccedilotildees empiacutericas e natildeo descrevem nada
(WITTGENSTEIN 1984b 61222) De fato noacutes testamos nossa experiecircncia
do mundo usando regras como criteacuterio mas a regra ela mesma natildeo pode
ser testada pela experiecircncia como uma proposiccedilatildeo descrevendo-a pode ser
testada Uma distinccedilatildeo deve ser feita aqui por um lado noacutes testamos uma
proposiccedilatildeo a partir da experiecircncia porque a proposiccedilatildeo descreve o que
ocorre falsa ou verdadeiramente por outro lado proposiccedilotildees empiacutericas satildeo
diferentes de regras na medida em que noacutes testamos ou avaliamos a
qualidade de nossas descriccedilotildees usando algumas regras como criteacuterios Os
criteacuterios eles mesmo natildeo satildeo nem verdadeiros nem falsos Criteacuterios podem
contudo ser tomados como adequados ou inadequados para um
determinado contexto ou uso mas eles natildeo podem ser falsificados a partir
da comparaccedilatildeo com a realidade O motivo da recusa ou rejeiccedilatildeo de criteacuterios
para avaliar a qualidade de nossas praacuteticas discursivas satildeo quase sempre
pragmaacuteticas ou seja baseados na sua legitimidade ou adequaccedilatildeo conceitual
em contextos variados de accedilatildeo e natildeo metafiacutesicos
Outro ponto relevante envolvido na abordagem da loacutegica a partir da
noccedilatildeo de jogos eacute a ecircnfase na generalidade ao inveacutes da universalidade do
conhecimento Regras satildeo gerais isto eacute noacutes podemos compreender um
sistema complexo com um nuacutemero pequeno de regras simples e gerais e
estas natildeo satildeo e natildeo precisam ser universais ou seja ser vaacutelidas para o
domiacutenio de todas as coisas Regras satildeo aplicadas a muitos casos por pessoas
diferentes em contextos diferentes e em muitos periacuteodos diferentes Neste
sentido uma regra natildeo eacute conectada com uma situaccedilatildeo particular mas sim
com uma multiplicidade de situaccedilotildees possiacuteveis Noacutes podemos muito bem
entender um sistema complexo em um momento pela compreensatildeo das
regras que governam seu comportamento De fato a partir do entendimento
comum da noccedilatildeo de regras noacutes podemos pensaacute-las como uma foacutermula geral
que pode determinar um nuacutemero infinito de aplicaccedilotildees
Marcos Silva | 153
Ademais como em uma perspectiva funcionalista para o
entendimento do comportamento de sistemas complexos podemos
associar o desenvolvimento da metaacutefora formalista de jogos com uma
reaccedilatildeo criacutetica ao essencialismo uma vez que natildeo precisamos entender a
essecircncia do mundo para entender o funcionamento de sistemas loacutegicos
Por outro lado esta metaacutefora tambeacutem redunda em uma criacutetica ao
fisicalismo uma vez que a base material eacute irrelevante para o entendimento
da constituiccedilatildeo do significado a partir das regras de um dado sistema O
que Wittgenstein defende eacute um desenvolvimento importante da analogia
formalista de sistemas formais com jogos a saber assim como a base
material de um jogo de tabuleiro natildeo define o significado de suas peccedilas os
sinais na folha de papel por exemplo natildeo determinam o significado destas
marcas Satildeo contudo as regras que fixam o significado tanto das peccedilas do
jogo quanto dos sinais em um sistema formal
Vale notar tambeacutem que um jogo ou uma atividade regrada natildeo
precisa nem ter uma justificaccedilatildeo e nem ter uma fundamentaccedilatildeo Hacker
(1986) apresenta esta caracteriacutestica de jogos como a autonomia ou
arbitrariedade da sintaxe Isto significa que noacutes natildeo precisamos pensar ou
entender a essecircncia da linguagem ou do mundo para aprender como jogar
um jogo Jogos sāo auto-contidos o que eacute dito ou feito em um jogo natildeo
precisa ter nenhuma relaccedilatildeo com o que eacute feito num outro jogo Aqui noacutes
podemos ter uma interessante liberaccedilatildeo de restriccedilotildees metafiacutesicas
relacionadas agrave exigecircncia de referecircncia ao mundo para que estruturas
linguiacutesticas tenham significado uma vez que jogos natildeo precisam ser
pensados em relaccedilatildeo a alguma coisa isto eacute eles natildeo precisam ser
comportar de acordo com um fato determinado no mundo
Em se jogando jogos noacutes temos um claro aspecto de Handlung
dentro de sua dinacircmica loacutegica Ou seja para entendermos o que eacute um jogo
noacutes somos obrigados a pensarmos em termos de alguma accedilatildeo passos
(ldquomovesrdquo) operaccedilotildees ou em uma palavra praacuteticas em atividades regradas
(geregelte Handlung) Existe um niacutevel performativo mandataacuterio em jogos
Regras satildeo instruccedilotildees para atividades (jogos) ou para a construccedilatildeo de algo
154 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
por exemplo A ecircnfase filosoacutefica deve estar no procedimento pelo qual ou
a teacutecnica a partir da qual alguma performance eacute desempenhada e natildeo no
conhecimento proposicional a partir do qual o mundo eacute conhecido
verdadeiramente Natildeo eacute acidental que regras com frequecircncia funcionem
como normas para a accedilatildeo uma vez que expressam o que eacute considerado
adequado ou inadequado correto ou incorreto aceitaacutevel ou inaceitaacutevel
legiacutetimo ou ilegiacutetimo Um operador loacutegico neste contexto pode ser
tomado apenas como um procedimento tomado como legiacutetimo pelo qual
manipulamos sinais ou como uma seacuterie de manipulaccedilotildees permitidas que
contribui com o significado para proposiccedilotildees complexas
Nesta visatildeo que enfatiza o elemento humano em sistemas formais
como atividades regradas de seres humanos uma via de compatibilidade
com o pluralismo loacutegico a tese contemporacircnea que defende a
possibilidade de vaacuterios sistemas loacutegicos conflitantes serem legiacutetimos
conjuntamente pode ser pavimentada Ao se manter que sistemas loacutegicos
satildeo jogos noacutes podemos falar de maneira muito natural a respeito de vaacuterios
caacutelculos sem que precisemos nos comprometer com a verdade ou a
falsidade de alguns deles Com efeito caacutelculos natildeo podem ser falsos no
mesmo sentido que uma proposiccedilatildeo empiacuterica pode ser falsa Mesmo a
loacutegica proposicional entendida classicamente natildeo pode ser verdadeira ou
falsa Como eacute defendido aqui um jogo natildeo pode ser nem falso nem
verdadeiro uma vez que natildeo precisa descrever nada
Aleacutem disso vale notar que natildeo haacute nem um jogo sem regra ou seja
num certo sentido natildeo haacute um jogo anaacuterquico nenhuma regra sem jogo
ou uma regra sem o sistema em que ela deva estar situada Em outras
palavras regras satildeo mortas sem um sistema e um sistema sem regras natildeo
eacute realmente um sistema Aqui noacutes temos uma motivaccedilatildeo para introduzir
o que podemos chamar de holismo loacutegico para cada passo (ldquomoverdquo) ou
operaccedilatildeo em uma atividade governada eles devem estar inseridos em um
sistema Analogamente em sistemas formais operaccedilotildees ganham
significado em relaccedilatildeo a muitas outras Como resultado desta visatildeo
Marcos Silva | 155
mudar uma regra formal significa mudar o jogo uma vez que natildeo haacute
mudanccedila local que natildeo impactaria globalmente no sistema formal inteiro
O desenvolvimento da visatildeo formalista inspirada por Wittgenstein
tambeacutem permite as propriedades muito seminais de sistemas formais
como flexibilidade e plasticidade a partir da noccedilatildeo de jogos Em principio
noacutes podemos rejeitaraceitar ou mudar qualquer regraprinciacutepio em um
sistema loacutegico (claro evitando trivializaccedilāo com notado por Da Costa
1958) Em outras palavras operar em um sistema loacutegico eacute um Handlung
com signos governado por regras que satildeo convencionais no sentido que
poderiam ser outras
Consequentemente noacutes podemos rejeitar a visatildeo tiacutepica a respeito da
normatividade oferecida pelo realista monista Se noacutes temos apenas uma
uacutenica loacutegica verdadeira natildeo importando aqui qual e se a loacutegica determinar
as condiccedilotildees de inteligibilidade de nossas praacuteticas e os limites de nossa
racionalidade entatildeo eacute faacutecil transformar a discussatildeo loacutegica em uma discussatildeo
normativa qualquer desvio da supostaloacutegica verdadeira (como qualquer
outra loacutegica com outros princiacutepios) deveria ser tomado como contrassensual
Desvios sob o ponto de vista de um monista satildeo instacircncias de mau raciociacutenio
ou mesmo ilustraccedilotildees de nenhum raciociacutenio ou seja de que nenhum
raciociacutenio foi de fato feito Se noacutes levarmos a noccedilatildeo de jogos devidamente a
seacuterio a resposta para a normatividade da loacutegica fica encapsulada em normas
de accedilatildeo ou em instruccedilotildees para praacuteticas associadas com uma finalidade
particular Eacute evidente que noacutes poderiacuteamos ter outras normas como de fato
outras comunidades tecircm Com efeito existem outras comunidades que
obedecem outras regras uma comunidade de matemaacuteticos de orientaccedilatildeo
intuicionista por exemplo (LOumlF 1996 2013)
Como um uacuteltimo ponto para a relevacircncia filosoacutefica de se pensar
sistemas formais como jogos vale se destacar que regras satildeo puacuteblicas e
natildeo fundamentadas em representaccedilotildees privadas mentais ou em quaisquer
leis da mente Regras devem ser aprendidas em um ambiente social e a
partir de interaccedilotildees sociais Aqui a noccedilatildeo de educaccedilatildeo ou de iniciaccedilatildeo em
uma praacutetica naturalmente ganha importacircncia dentro do escopo da
156 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
discussatildeo em filosofia da loacutegica e da matemaacutetica Esta visatildeo encoraja
consequentemente uma virada antropoloacutegica na abordagem de sistemas
formais uma vez que enfatiza o niacutevel institucional e social na performance
de um jogo A questatildeo natural eacute Quem joga o jogo Quem aplica os
sistemas autocircnomos ao mundo Responder a esta questatildeo propondo um
sujeito metafiacutesico imaterial fora do mundo ou mesmo um
transcendental impondo estruturas a priori as suas representaccedilotildees
parece ser altamente inadequado Uma resposta natural deveria ser que
indiviacuteduos materiais com uma histoacuteria natural e social jogam os jogos ou
performam atividades regradas em uma comunidade de outros
indiviacuteduos Com efeito regras devem ser sempre associadas com uma
forma de vida Um indiviacuteduo radicalmente isolado natildeo pode jogar um jogo
ou seguir uma regra se noacutes aceitarmos as consequecircncias do famoso
argumento contra a linguagem privada de Wittgenstein em suas
Investigaccedilotildees filosoacuteficas Um jogo jogado objetivamente deve poder ser
ensinado para outros indiviacuteduos a partir dos criteacuterios puacuteblicos pelos quais
se corrigem passos inadequados ou ilegiacutetimos em atividades regradas
Com estas observaccedilotildees neste curto ensaio pretendi mostrar como a
noccedilatildeo de jogos pode ainda ser relevante filosoficamente para se entender a
natureza de sistemas formais a partir de uma abordagem wittgensteiniana
usando principalmente os textos compilados como WWK
Referecircncias
BOREL Eacute La theacuteorie du jeu et les eacutequations inteacutegrates agrave noyau symeacutetrique Comptes
Rendus Hebdomadaires des Seacuteances de lrsquoAcademie des Sciences 173 1304ndash1308
1921English Translation (Savage LJ) The theory of play and integral equations
with skew symmetric kernels Econometrica 21 97ndash100 (1953)
DA COSTA N C A Nota sobre o conceito de contradiccedilatildeo Anais da Sociedade Paranaense
de Matemaacutetica1 6ndash8 1958
ENGELMANN MauroWittgensteinrsquos philosophical development phenomenology
grammar method and the antropological view Hampshire Palgrave Macmillan2013
Marcos Silva | 157
FREGE G Grundgesezte der arithmetic Band II Verlag Hermann Pohle Jena 1903
GENTZEN G 1934ndash1935 Untersuchungen uumlber das logische schliessen
(Investigations into logical inference) PhD thesis Universitaumlt
GoumlttingenPublished in Gentzen 1969 68ndash131
_____ The collected papers of Gerhard Gentzen ed M Szabo Amsterdam North-
Holland 1969
HACKER PM S Insight and illusion 2 ed Oxford 1986
JASKOWSKI S On the rules of suppositions in formal logic Studia Logica 15-32 1934
LOumlF Martin On the meanings of the logical constants and the justifications of the logical
laws Nordic Journal of Philosophical Logic Vol 1 No 1 p 11ndash60 Scandinavian
University Press 1996
_____ Verificationism then and now In M van der Schaar (ed) Judgement and the
epistemic foundation of logic 3 Logic epistemology and the unity of science 31 p
03-14 Springer Science amp Business Media Dordrecht 2013
LORENZEN Paul Ein dialogisches konstruktivitaumltskriterium In Infinitistic methods 1961
Infinitistic methods (Proceedings of the Symposium on Foundations of Mathematics
Warsaw 2ndash9 September 1959) Oxford Pergamon Press p 193ndash2001961
WEYL Hermann David Hilbert and his mathematical work Bull Am Math Soc 50 612ndash
654 1944
WITTGENSTEIN L Some remarks on logical form Proceedings of the Aristotelian Society
Supplementary Volumes Vol 9 Knowledge experience and realism p 162-171
Published by Blackwell Publishing on behalf of The Aristotelian Society 1929
_____ Wittgenstein und der Wiener kreis (1929-1932) Translated into English by
Joachim Schulte and Brian McGuinnessWerkausgabe Band 3 Frankfurt am Main
Suhrkamp 1984a
_____ Tractatus logico-philosophicus Tagebuumlcher 1914-16 philosophische
untersuchungen Werkausgabe Band 1 Frankfurt am Main Suhrkamp 1984b
9
Revisitando o Argumento da Linguagem Privada
Marcus Joseacute Alves de Souza 1
Introduccedilatildeo
Falar de ldquolinguagem privadardquo aponta para um conceito intuitivamente
ou aparentemente contraditoacuterio como pode existir uma linguagem privada
uma vez que a linguagem de um ponto de vista simplista pressupotildee
comunicaccedilatildeo interaccedilatildeo entre falantes Linguagem privada parece um
oxiacutemoro patente Entretanto do ponto de vista teoacuterico a depender de qual
moldura teoacuterica do significado se adere ldquolinguagem privadardquo natildeo eacute algo tatildeo
contraditoacuterio assim Deste modo ao se falar de ldquoargumento da linguagem
privadardquo natildeo se estaacute pensando num argumento que demonstre a
plausibilidade da linguagem privada Na acepccedilatildeo corrente dos estudos sobre
o pensamento de Wittgenstein objeto desta reflexatildeo ldquoargumento da
linguagem privadardquo eacute o argumento mais especificamente os argumentos
que tecircm a linguagem privada como objeto a rigor argumentos contra a
linguagem privada Segundo Hacker (2010 p 616) o que a expressatildeo indica
natildeo satildeo argumentos claros que o filoacutesofo apresenta na verdade satildeo
argumentos de tortuosa interpretaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo presentes nos
paraacutegrafos de 243 a 315 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas
A proposta deste artigo eacute modesta Primeiro apresentar um possiacutevel
modo de estruturaccedilatildeo do argumento que tornaria plausiacutevel uma
linguagem privada argumento se de enquadra no acircmbito de uma
1 Professor de Filosofia da UFAL Liacuteder do Grupo Linguagem e Cogniccedilatildeo-UFAL
Marcus Joseacute Alves de Souza | 159
compreensatildeo mental de caraacuteter privatista A seguir indicar trecircs pontos de
ataques contra o argumento extraiacutedos dos paraacutegrafos das Investigaccedilotildees
Filosoacuteficas tentando mostrar falhas nas premissas do argumento
formalizado da plausibilidade da linguagem privada Feito isso encerra-
se o artigo anunciando brevemente alguns elementos desdobrados da
proposta do filoacutesofo para pensar o mental dentro do quadro da
compreensatildeo de linguagem do filoacutesofo
Argumento a Favor da Linguagem Privada
Natildeo eacute claro que Wittgenstein tenha em mente um alvo apenas de ataque
nos trechos indicados como referecircncia do que ficou conhecido como
ldquoargumento da linguagem privadardquo2 todavia eacute possiacutevel determinar que o
filoacutesofo busca atacar certa imagem de privacidade que podemos chamar de
moderna e o modelo de teoria do significado subjacente a tal privacidade
modelo mentalista de significado Nesta imagem existe o mundo da proacutepria
mente e o mundo exterior agrave mente dos objetos materiais e da mente das
outras pessoas O mundo da proacutepria mente eacute privado inicialmente
encapsulado em si e acessiacutevel privadamente de modo direto ao sujeito mental
e de modo indireto por outros sujeitos mentais (outras mentes)
Numa acepccedilatildeo cartesiana a mente eacute uma substacircncia imaterial ligada
ao corpo do portador da mente mas o corpo poderia existir por si proacuteprio
Na mente cartesiana se desenrola os pensamentos sentimentos
sensaccedilotildees Estes satildeo fundamentalmente privados Tal compreensatildeo cria
um problema efetivo quanto ao conhecimento de outras mentes
Tal imagem tambeacutem sobrevive numa acepccedilatildeo empirista mesmo que
o candidato a mente seja algo empiricamente observaacutevel o ceacuterebro Parece
existir uma dificuldade em transpor das operaccedilotildees neuroloacutegicas toda a
gama de manifestaccedilotildees comportamentais e toda a gama de capacidades
2 Eacute possiacutevel perceber que o ataque eacute claro para uma imagem cartesiana de mente bem como o modelo linguagem x designaccedilatildeo no ldquoargumento da linguagem privadardquo mas eacute possiacutevel perceber pelo itineraacuterio reflexivo do filoacutesofo que mesmo uma compreensatildeo empiacuterica mentalista da linguagem ou mesmo o ataque pode se conectar com problemas detectados naquilo que foi o projeto de linguagem fenomenoloacutegica Cf Nielsen 2008 Parte I
160 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
intelectuais disposiccedilotildees etc da nossa espeacutecie e de outras semelhantes o
que faz com que se estabeleccedila uma independecircncia de esferas mental e
fiacutesica (manifestaccedilotildees comportamentais x operaccedilotildees neuronais) que
alimenta a mesma imagem de mente
A compreensatildeo que a mente eacute algo privado e que a linguagem eacute
expressatildeo externa do que estaacute interno eacute a concepccedilatildeo em termos gerais
comum tanto do idealismoracionalismo quanto do
fisicalismoempirismo Isso cria um problema para o conhecimento de
outras mentes sendo que o encaminhamento da soluccedilatildeo se estabeleccedila por
analogia entre minha mente que tenho acesso direto e a mente dos
outros que numa hipoacutetese otimista tenho acesso indireto
Assim um dos alvos talvez o principal dos trechos das Investigaccedilotildees
Filosoacuteficas seja a compreensatildeo privada da mente e associada a esta a
teoria do significado que decorre desta privacidade que daacute condiccedilotildees para
se pensar uma linguagem privada No sect 243 Wittgenstein (1999) daacute as
bases para esta linguagem Natildeo se trata de uma linguagem
circunstancialmente privada algo como monoacutelogos criptografados mas
uma linguagem radicalmente privada A indicaccedilatildeo do filoacutesofo eacute uma
linguagem que diga respeito agraves proacuteprias ocorrecircncias mentais vivecircncias
interiores que seriam nesta moldura radicalmente privadas
Mas seria tambeacutem pensaacutevel uma linguagem na qual algueacutem pudesse para seu
uso proacuteprio anotar ou exprimir suas vivecircncias interiores ndash seus sentimentos
seus estados de espiacuterito ndash Natildeo podemos fazer isso em nossa linguagem
costumeira ndash acho que natildeo As palavras dessa linguagem devem referir-se
agravequilo que apenas o falante pode saber agraves suas sensaccedilotildees imediatas privadas
Um outro pois natildeo pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN
1999 p 98 sect 243)
Assim aquilo sobre de que a linguagem se compotildee signos regras
referecircncia enfim todos seus elementos seriam privados apenas o criador-
usuaacuterio definiria o significado e apenas ele saberia o significado dos signos
De modo esquemaacutetico o argumento a favor da possibilidade de uma
linguagem privada poderia ser feito assim
Marcus Joseacute Alves de Souza | 161
- ldquoSensaccedilotildees satildeo privadas da mente da pessoa que as temrdquo (premissa 1 = P1)
- ldquoAs sensaccedilotildees satildeo inacessiacuteveis a outras pessoas uma vez que os outros natildeo tecircm
certeza se algueacutem tem ou natildeo uma sensaccedilatildeo particularrdquo (premissa 2 = P2)
- ldquoAlgueacutem pode dar um nome a uma sensaccedilatildeo particular na privacidade de sua mente
e usar este nome e o acerto deste nome nunca seria acessado por ningueacutem a
natildeo ser o usuaacuterio privadordquo (premissa 3 = P3)
- ldquoO significado de um termo nesta linguagem nada mais eacute que a referecircncia de uma
ocorrecircncia mental (sensaccedilatildeo) e seu modo de expressatildeo (signo) sobre uma
sensaccedilatildeo presente ou passada eacute a simples indicaccedilatildeo privada (ostensatildeo) desta
ocorrecircncia mentalrdquo (premissa 4 = P4)
rarr ldquoA linguagem privada eacute possiacutevel seria a linguagem de nossas ocorrecircncias
mentaisrdquo (Conclusatildeo)
Fazendo uma avaliaccedilatildeo inicial dessas premissas se pode estabelecer
sobretudo dentro de uma moldura privatista da mente e uma concepccedilatildeo
mentalista do significado que existe uma certa plausibilidade do argumento
A premissa 1 (P1) parece ser verdadeira as ocorrecircncias mentais as
sensaccedilotildees satildeo privadas ldquoningueacutem sente a minha dorrdquo por exemplo eacute uma
afirmaccedilatildeo claramente verdadeira o que aponta para a verdade da
premissa 1
A premissa 3 (P3) parece ser verdadeira tambeacutem parece ser
plausiacutevel admitir sua verdade Sendo privadas e sendo algo as sensaccedilotildees
podem ser nomeadas como qualquer objeto exterior na linguagem puacuteblica
(mesmo que passe por um processo mental de representaccedilatildeo) Como
apenas o criador e usuaacuterio conhece o termo soacute ele conhece sua associaccedilatildeo
referencial com o objeto e soacute ele conhece o objeto logo eacute possiacutevel admitir
que soacute ele sabe se acertou ou natildeo no uso deste termo
A premissa 4 (P4) tambeacutem pode ser plausiacutevel uma vez que pode se
admitir que o ato de ostensatildeo eacute fundamental para a instanciaccedilatildeo do
significado de um termo eacute possiacutevel admitir que semanticamente o
significado de um termo eacute sua substituiccedilatildeo por ostensatildeo no plano da
linguagem e como os elementos satildeo privados tal mecanismo pode ser
executado privadamente
162 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A premissa 2 (P2) parece ser a problemaacutetica pois parece existir uma
seacuterie de situaccedilotildees que claramente sabemos que uma pessoa tem dor por
exemplo o que aponta para uma implausibilidade da premissa Claro que
existem situaccedilotildees de simulaccedilatildeo de sensaccedilotildees mas seraacute possiacutevel duvidar que
ao enfiar um prego debaixo da unha de uma pessoa ela natildeo tenha dor Os
mais aferrados agrave moldura privatista da mente podem pensar que no maacuteximo
o que posso fazer eacute dado agraves reaccedilotildees da pessoa (comportamento) supor que
ela estaacute tendo dor pois natildeo sinto a dor dela logo natildeo tenho condiccedilotildees de
dizer com certeza que ela tem ou natildeo dor Assim mesmo que se possa pensar
que haacute uma inconfundiacutevel expressatildeo comportamental de dor natildeo existe clara
e confiaacutevel regularidade entre causa e efeito no caso das sensaccedilotildees Por mais
regular que seja a relaccedilatildeo entre enfiar um prego debaixo de uma unha de
algueacutem e este algueacutem gritar chorar se contorcer parece possiacutevel pensar
contra-exemplos desta regularidade algueacutem que fique impassiacutevel por
exemplo Assim parece natildeo existir uma correlaccedilatildeo perfeita entre tiacutepica causa
do comportamento de dor a dor e o comportamento de dor o que torna mais
plausiacutevel a premissa 2
Esta avaliaccedilatildeo preliminar tem como objetivo reforccedilar as bases da
plausibilidade da admissatildeo da linguagem privada P1 aponta para o
aspecto da natureza privada das ocorrecircncias mentais P2 para a dimensatildeo
epistemoloacutegica das ocorrecircncias mentais P3 e P4 para o mecanismo
semacircntico da proposta de linguagem privada
O exemplo recorrente de Wittgenstein eacute o da dor em algumas
ocasiotildees trabalha tambeacutem com o exemplo das cores Natildeo se pretende fugir
desses exemplos pois dado a sua vivacidade e forccedila retoacuterica servem
melhor para esclarecer a questatildeo e desdobrar para outros exemplos
Pontos de Ataque ao Argumento
A seguir tentaremos indicar a partir das reflexotildees de Wittgenstein o
ataque a este argumento na verdade indicando a inadmissibilidade do
argumento proposto para embasar a possibilidade da linguagem privada
Marcus Joseacute Alves de Souza | 163
A Engrenagem Solta
Este ponto de ataque pode ser detectado na sequecircncia dos paraacutegrafos
271 272 279 e 293 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas
Eacute uma das metaacuteforas recorrentes de Wittgenstein para explicar a
linguagem a das engrenagens Assim aponta para o fato do significado ser
uma articulaccedilatildeo de uma seacuterie de elementos
Para a formulaccedilatildeo deste ataque os paraacutegrafos apontam para a
ambiguumlidade possiacutevel na denotaccedilatildeo do significado de palavras de cores
Nos paraacutegrafos eacute possiacutevel perceber a alegaccedilatildeo de que cada pessoa processa
seu exemplar de cor na sua mente e que existe a possibilidade de confusatildeo
na denotaccedilatildeo das cores Eacute possiacutevel que eu e parte da humanidade tenham
uma sensaccedilatildeo de vermelho e outra parte tenha outra sensaccedilatildeo cromaacutetica
(WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 272)
Um empirista como Locke admite a mesma situaccedilatildeo mas
sabiamente ele aponta (como Wittgenstein) que eacute uma situaccedilatildeo
inverificaacutevel Ou seja se vocecirc tem um exemplar privado na memoacuteria que
vocecirc chama de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute verde e eu tenho um
exemplar privado que eu chamo de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute azul e
um terceiro chama seu exemplar privado de ldquovermelhordquo e ele na realidade
eacute vermelho Dado a privacidade efetiva natildeo posso verificar os exemplares
privados dos trecircs A questatildeo mais problemaacutetica entra pela porta dos fundos
pela linguagem Para Locke ndash e aqui eacute a oportunidade de expor uma teoria
mentalista standart do significado - os nomes satildeo marcas sensiacuteveis de ideias
armazenadas na memoacuteria assim as palavras estatildeo em associaccedilatildeo com ideias
da mente Se uma palavra natildeo ldquoexecutardquo a mesma ideia armazenada na
mente de duas pessoas ou mais pessoas ela natildeo seraacute significativa
Quando um homem fala com outro o faz para que possa ser entendido e o fim
da fala implica que estes sons como marcas devem tornar conhecidas suas
ideias ao ouvinte Essas palavras entatildeo satildeo as marcas das ideias de quem fala
ningueacutem pode aplicaacute-las como marcas imediatamente a nenhuma outra coisa
164 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
exceto agraves ideias que ele mesmo possui jaacute que isto as tornaria sinais de suas
proacuteprias concepccedilotildees e ao contraacuterio aplicaacute-las a outras ideias faria com que elas
fossem e natildeo fossem ao mesmo tempo sinais de suas ideias e deste modo natildeo
teriam de nenhum modo qualquer significado (LOCKE 1983 p 222)
Assim no uso puacuteblico o desacordo eacute detectaacutevel uma vez que um dos
falantes mostre publicamente o que eacute que ele tem como exemplar de
ldquovermelhordquo do mesmo modo o outro e assim aleacutem de detectar o desacordo
superaacute-lo isso mantendo a moldura mentalista Cores a princiacutepio satildeo
elementos ou aspectos fiacutesicos de objetos fiacutesicosmateriais uma vez que se
tem a vantagem de poder ldquomostrarrdquo exteriormente um exemplar fiacutesico
similar ou idecircntico com a cor para superar a ambiguumlidade Transpor esta
problemaacutetica para o exemplo da dor torna a situaccedilatildeo bem mais problemaacutetica
e complexa Dor eacute uma sensaccedilatildeo sendo privada ningueacutem que natildeo tenha a
experiecircncia da sensaccedilatildeo de dor saberaacute o que significa o signo qualquer que
o designa Se o usuaacuterio e falante do signo dor usa-o para significar X num
momento e noutro para significar Y natildeo haveraacute desacordo nem
possibilidade de verificaccedilatildeo Na verdade seraacute tomado pelo usuaacuterio da
linguagem privada como significando a mesma coisa A mesma situaccedilatildeo
pode ser pensada em uso comum Suponha que algueacutem se queixa de uma
dor sendo privada a sensaccedilatildeo pode variar de pessoa para pessoa se for
diferente de pessoa para pessoa a duacutevida eacute sem sentido pois eacute radicalmente
insuperaacutevel a privacidade o que afeta o uso puacuteblico da palavra ldquodorrdquo como
palavra significativa Tal situaccedilatildeo aponta para a ideia de engrenagem solta
no uso do termo torna-se irrelevante se este algueacutem tem dor ou natildeo para a
significaccedilatildeo do termo em uso privado e para a comunicaccedilatildeo em uso puacuteblico
ldquo[] a roda que se pode mover sem que mais nada se mova natildeo pertence a
maacutequinardquo (WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 271)
A este respeito Wittgenstein (1997 p 427 ndash traduccedilatildeo nossa) diz nas
notas para conferecircncia de filosofia3 ldquoNatildeo eacute um ato oculto nomear um
objeto que possa dar significado a uma palavrardquo
3 Este texto que ficou com o tiacutetulo Conferecircncia Filosoacutefica (MS 166) eacute um conjunto de notas segundo Von Wright de em 1935 ou 1936 denotando uma conferecircncia natildeo realizada pelo filoacutesofo que segundo Anthony Kenny deveria ser realizada em 1941 supostamente para Academia Britacircnica Essas notas dizem respeito agraves reflexotildees de Wittgenstein
Marcus Joseacute Alves de Souza | 165
O que significa essa reflexatildeo para o argumento a favor da linguagem
privada Natildeo eacute um reforccedilo agrave privacidade como uma esfera inexpugnaacutevel
mas para mostrar que eacute irrelevante o objeto referecircncia da sensaccedilatildeo numa
moldura mentalista que na verdade supostamente funciona como
elemento fundamental para a significaccedilatildeo Nisso mesmo sem entrar no
meacuterito de que as sensaccedilotildees satildeo privadas (P1) sendo inacessiacuteveis aos outros
(P2) elas natildeo jogam papel algum para a significaccedilatildeo o que tira a
plausibilidade de P3 Entretanto no uso comum natildeo eacute possiacutevel supor que
estejamos num permanente engano ou mal entendido do significado dos
termos de sensaccedilatildeo evidecircncia que ataca a premissa 2 (P2)
Ausecircncia de Criteacuterio
No sect 258 Wittgenstein (1999) cria uma hipoteacutetica situaccedilatildeo de algueacutem
que quer escrever em um diaacuterio sobre a repeticcedilatildeo de uma sensaccedilatildeo Diz
ele ldquoPara tanto associo-a com o signo lsquoSrsquo e escrevo este signo num
calendaacuterio todos os dias em que tenho a sensaccedilatildeordquo A ideia eacute que faccedilo isso
por uma espeacutecie de ostensatildeo privada concentro-me na sensaccedilatildeo como
um apontar interior e a nomeio A pergunta que surge eacute ldquopara que tal
ritualrdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 100 sect 258) Se ele serve para
estabelecer o significado de ldquoSrdquo deve-se dizer que toda vez que a sensaccedilatildeo
surgir e nomeaacute-la isso se deu porque me recordo da ligaccedilatildeo pois gravei
em mim a associaccedilatildeo de ldquoSrdquo e a sensaccedilatildeo Escreve-se ldquoSrdquo para expressar
minha certeza interior dessa associaccedilatildeo Esta seria uma possiacutevel
justificativa para o ldquoritualrdquo mas ela eacute claramente insuficiente Pensemos
que significa tal situaccedilatildeo Um dos aspectos que mostra a insuficiecircncia eacute o
fato de que pode existir uma falha na instanciaccedilatildeo por erro de memoacuteria
por exemplo Ou seja marco no diaacuterio ldquoSrdquo no dia X quando tenho a
sensaccedilatildeo S no mesmo dia X tenho a mesma sensaccedilatildeo e por familiaridade
interior tenha a certeza de que a sensaccedilatildeo foi a mesma e marco ldquoSrdquo no
sobre a linguagem privada sua implausibilidade Mesmo pouco sistemaacutetico o escrito eacute um grande auxiacutelio para a compreensatildeo e da evoluccedilatildeo do tema no pensamento do filoacutesofo
166 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
calendaacuterio Passados 15 dias tenho a sensaccedilatildeo mas natildeo estou tatildeo certo
fico titubeante tenho duacutevidas de mim para mim se eacute a mesma sensaccedilatildeo
minha memoacuteria natildeo me daacute a certeza que precisaria mas depois de um
pouco mais de introspecccedilatildeo e esforccedilo de lembranccedila a certeza vem e anoto
ldquoSrdquo no calendaacuterio No dia seguinte tenho a sensaccedilatildeo desta vez ela me
pareceu niacutetida e familiar e escrevo sem titubear ldquoSrdquo
A pergunta que surge eacute como se pode sustentar a correccedilatildeo deste uso
denotativo interno Algueacutem mais apegado ao quadro criado atribuiria agrave
sinceridade ou agrave honestidade do ldquousuaacuteriordquo Mas novamente como aferir
tal sinceridade ou honestidade desta associaccedilatildeo Em tese apenas o usuaacuterio
da definiccedilatildeo extensional seria o avaliador de tal sinceridade ou
honestidade Seria algo como ldquoserei sincero com minha honesta
associaccedilatildeordquo ldquoserei sincero comigo mesmo e por isso garanto que natildeo erro
(intencionalmente) ao associar repetidas sensaccedilotildees ao signo lsquoSrsquordquo Mas ser
vocecirc o avalizador de sua sinceridade serum sincero e honesto avalizador
de sua sinceridade e honestidade eacute expressatildeo de um sem sentido de falta
de engrenagem significativa desta situaccedilatildeo E segundo Wittgenstein (1997
p 427-438) nas notas para conferecircncia filosoacutefica se o objeto interno
muda e nossa memoacuteria nos engana o que eacute possiacutevel e usamos a expressatildeo
privada de boa-feacute para significar o objeto usamos a mesma expressatildeo a
cada vez para significar algo distinto Falar de sinceridade honestidade e
boa feacute neste contexto eacute sem sentido exatamente porque boa-feacute
honestidade e sinceridade satildeo conceitos puacuteblicos natildeo faz sentido a natildeo
ser figuradamente e em uso puacuteblico dizer que se eacute honesto consigo
mesmo natildeo existe honestidade ou sinceridade privada Isso marca o
aspecto da falta de criteacuterio de correccedilatildeo desta situaccedilatildeo Aleacutem disso se pode
pensar voltando ao exemplo que se houvesse uma falha na memoacuteria que
criasse a incerteza o usuaacuterio natildeo deveria escrever ldquoSrdquo no dia em que ficou
com duacutevida isso eacute expressatildeo de que seria possiacutevel evitar o erro ou o
engano desde que o usuaacuterio fosse diligente epistemologicamente no
reconhecimento da sensaccedilatildeo e na sua posterior nomeaccedilatildeo Mas a questatildeo
natildeo eacute de capacidade memoriacutestica de reconhecimento A memoacuteria eacute uma
Marcus Joseacute Alves de Souza | 167
habilidade construiacuteda numa linguagem puacuteblica natildeo um ldquobauacuterdquo privado de
vivecircncias acumuladas Neste caso se o ldquousuaacuteriordquo competente ou natildeo em
termos de memoacuteria associar a sensaccedilatildeo ao signo ldquoSrdquo e disser que associou
corretamente seraacute correto Se ele associar incorretamente e disser que
associou corretamente seraacute correto tambeacutem Ou mesmo numa hipoacutetese
de desonestidade se ele natildeo tiver sensaccedilatildeo alguma mas se disser que ldquoSrdquo
significou tal sensaccedilatildeo assim seraacute tido como correto Isso fica claro em
trechos dos sectsect 258 e 259 ldquoCorreto eacute aquilo que sempre me parecer
correto E isto significa apenas que natildeo se pode falar de corretordquo ou ldquoA
balanccedila na qual se pesa as impressotildees natildeo eacute a impressatildeo da balanccedilardquo
(WITTGENSTEIN 1999 p 101 sectsect 258 e 259)
Tal situaccedilatildeo aponta para o fato de que criteacuterio privado de correccedilatildeo
natildeo eacute criteacuterio eacute impressatildeo de criteacuterio Parece haver criteacuterio mas satildeo
impressotildees de criteacuterio natildeo se descrimina nem corrige nada
O interessante eacute que todo o ldquoritualrdquo descrito anteriormente se faz a
semelhanccedila de procedimentos regrados publicamente transpostos par
uma esfera privada numa clara hipostasia de significado
Esta reflexatildeo ataca diretamente a premissas 3 (P3) e 4 (P4) do
argumento em favor da linguagem privada Do mesmo modo que a
inscriccedilatildeo ldquoSrdquo natildeo denota a sensaccedilatildeo necessariamente eacute possiacutevel como
decorrecircncia atacar a premissa 1 (P1) uma vez que se for o caso nem o
usuaacuterioportador da sensaccedilatildeo ldquosaberdquo se a tem isso pela situaccedilatildeo criada
pelo diaacuterio
TransiccedilatildeoDescritibilidade
No modelo cartesiano seria possiacutevel algo como o que Wittgenstein
aventa no sect 257 da crianccedila gecircnio que descobre por si mesma o nome de
uma sensaccedilatildeo ldquolsquoComo seria se os homens natildeo manifestassem suas dores
(natildeo gemessem natildeo fizessem caretas etc) Entatildeo natildeo se poderia ensinar
a uma crianccedila o uso das palavras lsquodor de dentersquo ndash Ora imaginemos que
uma crianccedila seja um gecircnio e descubra por si proacutepria um nome para a
168 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
sensaccedilatildeordquo (WITTGENSTEIN 1999 p 101) Seria uma situaccedilatildeo em que se
aprende o que eacute dor sentindo-a De novo seria algo como ao me
machucar concentro-me na sensaccedilatildeo e imprimo em mim o que eacute ldquodorrdquo
com um signo qualquer Como vimos pela argumentaccedilatildeo anterior falta
criteacuterios para identificar corretamente as minhas proacuteprias dores por
exemplo Mas deixemos isso de lado por enquanto pois no sect 265 haacute um
interessante desdobramento Admitindo a princiacutepio ser possiacutevel
identificar minhas proacuteprias dores corretamente entatildeo rigorosamente eu
natildeo poderia ser capaz de entender proferimentos como ldquoX tem dorrdquo
Podemos supor que descrevo dores a partir da minha proacutepria dor por
introspecccedilatildeo (ostensatildeo interior) mas se eacute assim isso natildeo me permite
ensinar aos outros como descrever a sensaccedilatildeo para uma pessoa particular
a rigor nem a mesma pois isso natildeo foi feito privadamente (Hume jaacute
assinalava que o ldquoeurdquo natildeo eacute objeto de introspecccedilatildeo) Assim quando sinto
dor natildeo eacute meu ego sente dor nem uma parte especial de mim como meu
ceacuterebro Isso eacute claramente uma falaacutecia (falaacutecia do homuacutenculo4) Mas o
ponto aqui eacute o da transcriccedilatildeo de ldquohaacute doresrdquo de ldquoeu tenho doresrdquo uma vez
que satildeo identificadas como sendo a mesma descriccedilatildeo pois natildeo posso sair
de mim dado a privacidade radical das sensaccedilotildees Do mesmo modo ldquoele
tem dorrdquo natildeo significa que eu designei ldquodorrdquo como algo que acontece num
lugar que natildeo seja o da minha privacidade ou seja o corpo ou a mente de
outra pessoa Se o modelo cartesiano estaacute certo ldquodorrdquo eacute um evento
privado captado introspectivamente enquanto ldquodorrdquo no corpo ou na
mente de outrem natildeo eacute algo introspectivamente captaacutevel por mim Assim
falar de dor a partir de mim como ldquodorrdquo de outra pessoa eacute no miacutenimo
uma significaccedilatildeo indevida Natildeo haacute garantia alguma de identidade entre os
significados (WITTGENSTEIN 1999 p 107 sect 292) Sendo assim natildeo
posso descrever dores que sinto em mim como dores que outro sente Em
sect302 Wittgenstein diz ldquoSe precisamos representar-nos a dor dos outros
segundo modelo de nossa proacutepria dor entatildeo isso natildeo eacute coisa faacutecil pois
4 KENNY J P The homunculus fallacy Cf KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein Oxford Blackwell 1984 p 124-136
Marcus Joseacute Alves de Souza | 169
devo representar-me dores que natildeo sinto segundo dores que sintordquo
(WITTGENSTEIN 1999 p 108)
O objetivo deste ponto eacute destacar agraves avessas que o fundamento
privado de constituiccedilatildeo da linguagem eacute implausiacutevel Ele cria uma seacuterie de
dificuldades para o argumento por analogia para conhecimento de outras
mentes numa perspectiva puacuteblica mostra que pela ausecircncia de criteacuterios
para constituiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel estabelecer qualquer descriccedilatildeo sobre algo
que ocorra na mente de outro tal linguagem aleacutem de ser privada deve
ser autocontida o que se mostra sem sentido pois mesmo as
descriccedilotildeesnomeaccedilotildees privadas perdem toda funccedilatildeo como descriccedilatildeo ou
nomeaccedilatildeo Nomear natildeo eacute um ato privado e oculto para que o termo tenha
significado Segundo Wittgenstein nas notas para conferecircncia filosoacutefica
nomear estaacute dentro de uma teacutecnica de uso nomear natildeo eacute espeacutecie de
batismo maacutegico privado ldquonatildeo serve para nada dizer que temos um objeto
privado ante a mente e damos um nomerdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 129
sect 428) Soacute existe nome segundo ele quando haacute uma teacutecnica para usaacute-lo e
esta teacutecnica natildeo pode ser privada Isso atesta agraves avessas que para que as
descriccedilotildeesnomeaccedilotildees sejam significativas devem ser puacuteblicas O que
ataca especialmente a premissa 2 do argumento (P2) as sensaccedilotildees natildeo satildeo
autocontidas indescritiacuteveis e inacessiacuteveis a outrem logo nem sempre terei
duacutevidas sobre se o outro tem ou natildeo determinada sensaccedilatildeo pois para que
a nomeaccedilatildeodescriccedilatildeo qualquer seja significativa ela deve ser puacuteblica o
que aponta para a noccedilatildeo de que se algum termo ou descriccedilatildeo de sensaccedilatildeo
eacute significativo ele se construiu publicamente logo as sensaccedilotildees natildeo satildeo
inacessiacuteveis e natildeo vivemos numa permanente duacutevida sobre se o outro tem
ou natildeo uma sensaccedilatildeo qualquer como dor
Argumento da Linguagem Privada e Filosofia da Mente em
Wittgenstein
Argumento da linguagem privada eacute o esforccedilo de levar ao extremo das
contradiccedilotildees uma concepccedilatildeo privada e representacional de mente que
170 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ganha forccedila ou eacute caudataacuteria de uma concepccedilatildeo referencialista de
significado (objeto ndash representaccedilatildeo ndash signo) Os argumentos apontam para
a perspectiva de fazer uma terapia de tal entendimento de apontar
deficiecircncias conceituais e de buscar suprimi-las com outro registro de
significado e mente
Este novo registro se encontra na concepccedilatildeo de linguagem como uso
como conjunto de accedilotildees puacuteblicas e regradas Nisso emergem conceitos natildeo
referencialistas de linguagem como jogos padrotildees regras criteacuterios
aprendizado e treinamento Tal conjunto de elementos numa avaliaccedilatildeo
panoracircmica dos usos de um termo e seus aparentados faz com que surja
a ldquogramaacuteticardquo de um conceito que abre espaccedilo para o entendimento da
filosofia da mente de Wittgenstein
A proposta de filosofia da mente do filoacutesofo se associa agrave gama de
conceitos surgidos do uso especialmente do uso de verbos intencionais
crer querer conhecer lembrar memorizar imaginar pensar etc cada
um com sua gramaacutetica Sendo assim mente natildeo eacute uma instacircncia
metafiacutesica privada e pneumaacutetica A configuraccedilatildeo dos elementos
conceituais extraiacutedo dos usos dos conceitos mentais traz uma explicaccedilatildeo
de uma seacuterie de fenocircmenos mentais a partir de
Nisso emergem conceitos de explicaccedilatildeo de uma seacuterie de fenocircmenos
mentais como
a) paracircmetros conceituais de definiccedilatildeo de conceitos mentais articulaccedilotildees e
exclusotildees pragmaacuteticas de uso que traccedilam o limite da gramaacutetica dos conceitos
mentais
b) assimetria pronominais de primeira e terceira pessoa como elementos
pragmaacuteticos que explicam a diferenccedila entre o interno e o externo como jogos
de linguagem entre auto e heacutetero descriccedilotildees ou expressotildees caracteriacutesticas de
exteriorizaccedilotildees (primeira pessoa) e afirmaccedilotildees sobre dimensotildees mentais de
outrem (terceira pessoa) diluindo o problema das outras mentes no formato
mentalista Assim interno e externo natildeo satildeo instacircncias metafiacutesicas o externo
natildeo eacute fachada do interno satildeo conceitos que tem um papel fundamental na nossa
imagem de pessoa como um conceito puacuteblico
c) comportamentos caracteriacutesticos associados pragmaticamente como conceitos
mentais
Marcus Joseacute Alves de Souza | 171
Outros aspectos da investigaccedilatildeo de Wittgenstein poderiam ser
levantados e aprofundados mas estes trecircs sumaacuterios elementos apontam
para onde se desenvolve a reflexatildeo do filoacutesofo A proposta aqui foi apenas
apresentar a discussatildeo sobre a plausibilidade da linguagem privada e
apontar elementos da filosofia da mente de Wittgenstein Do mesmo
modo compreender que o argumento contra a linguagem privada eacute de
fundamental importacircncia para o entendimento da filosofia da mente de
Wittgenstein
Referecircncias
HACKER P M S Privative language argument In DANCY J SOSA E STEUP M (eds)
A companion to epistemology 2 ed Oxford Wiley-Blackwell 2010 p 616-621
KENNY J P The homunculus fallacy In KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein
Oxford Blackwell 1984 pp 124-136
LOCKE J Ensaio acerca do entendimento humano Trad Anoar Aiex Satildeo Paulo Nova
Cultural 1983
NIELSEN K S The evolution of the private language argument Hampshire UK
Ashgate Publishing Company 2007
SCHROEDER S Private language and private experience In GLOCK H-J Wittgenstein
a critical reader Oxford Backwell Publishers 2001 p 174-198
WITTGENSTEIN L Ocasiones filosoacuteficas 1912-1951 Trad Angel Garcia Rodrigues
Madrid Ediciones Caacutetedra 1997
______ Investigaccedilotildees filosoacuteficas Trad Joseacute Carlos Bruni Satildeo Paulo Nova Cultural
1999
10
O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico
Ricardo S Rabenschlag 1
No capiacutetulo que publiquei nesta mesma seacuterie de livros que registram
parte da produccedilatildeo acadecircmica do grupo de pesquisa Linguagem e
Cogniccedilatildeo afirmei que seria inuacutetil tentar extrair uma concepccedilatildeo coerente
de ciecircncia a partir da anaacutelise das principais obras publicadas pelos Novos
Ateus Embora minha convicccedilatildeo a este respeito permaneccedila inalterada natildeo
creio ser inuacutetil a tentativa de identificar os principais equiacutevocos
epistemoloacutegicos que este e outros grupos de autodeclarados pensadores
criacuteticos cometem em sua cruzada contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo
Em sua acepccedilatildeo vulgar ter uma atitude criacutetica significa suspender o
juiacutezo acerca de uma ideia a menos que tenhamos argumentos logicamente
vaacutelidos e bem fundados seja para afirmaacute-la seja para negaacute-la
Compreendido dessa forma o pensamento ou a atitude criacutetica se opotildeem
de um lado ao raciociacutenio falacioso e de outro agrave atitude dogmaacutetica Por
que devemos preferir raciociacutenios vaacutelidos agrave raciociacutenios falaciosos eacute algo que
dispensa maiores explicaccedilotildees Com efeito o proacuteprio conceito de falaacutecia jaacute
conteacutem um elemento pejorativo e o mesmo se daacute em relaccedilatildeo agrave atitude
dogmaacutetica compreendida natildeo apenas como indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave
busca de razotildees para se afirmar ou negar certas ideias mas sobretudo
como recusa em fazecirc-lo mesmo quando a afirmaccedilatildeo ou a negaccedilatildeo destas
ideais entra em flagrante contradiccedilatildeo com aquilo que acreditamos com
base em argumentos vaacutelidos e bem fundados
1 Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Ricardo S Rabenschlag | 173
Mas se eacute assim o que poderia haver de errado com o Pensamento
Criacutetico Como jaacute disse natildeo creio que haja nada de errado com a ideia de que
devemos sempre que possiacutevel suspender nosso juiacutezo antes que tenhamos
boas razotildees quer para negar quer para afirmar algo A ressalva eacute importante
porque no acircmbito praacutetico nem sempre podemos nos dar ao luxo de
suspender nosso juiacutezo sobretudo quando as consequecircncias desta indecisatildeo
satildeo moralmente graves O problema com o Pensamento Criacutetico natildeo diz
respeito a esta atitude criacutetica moderada e sim a um conjunto mais ou menos
bem definido de crenccedilas largamente difundidas por autores que se
identificam como pensadores criacuteticos entre eles os principais
representantes do novo ateiacutesmo2 Neste breve capiacutetulo examinarei uma das
maacuteximas mais populares entre os autoproclamados pensadores criacuteticos3
Qualquer um que jaacute tenha passado dos cinquenta anos e que tenha
amor pela ciecircncia se lembra com carinho das noites em que assistiu pela
primeira vez e ao longo de vaacuterias semanas aos treze capiacutetulos da seacuterie
Cosmos apresentada por Carl Sagan Natildeo foi o primeiro programa do tipo
e nem o melhor segundo muitos criacuteticos4 mas sob um aspecto ele foi
uacutenico pois nenhum outro programa de divulgaccedilatildeo cientiacutefica alcanccedilou uma
audiecircncia tatildeo vasta Seja pela beliacutessima trilha sonora pelos efeitos
especiais inovadores ou pelo carisma do seu apresentador a seacuterie Cosmos
foi um marco na divulgaccedilatildeo cientiacutefica audiovisual
Uma das caracteriacutesticas principais da seacuterie Cosmos posteriormente
publicada em forma de livro com o mesmo tiacutetulo e que teve enorme
sucesso de vendas em todo o mundo eacute que ela natildeo visava apenas
2 Estou me referindo aqui aos Quatro Cavaleiros do Natildeo-Apocalipse Richard Dawkins Christopher Hitchens Daniel Dennett e Sam Harris
3 Esta eacute apenas uma pequena parte de um projeto mais amplo cujos resultados pretendo publicar num livro com o mesmo tiacutetulo do presente capiacutetulo
4 Muitos incluindo o autor deste capiacutetulo consideram a seacuterie A Escalada do Homem apresentada por Jacob Bronowski como sendo superior sobretudo em razatildeo do maior escopo profundidade e interdisciplinaridade
174 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
transmitir a moderna visatildeo cientiacutefica do mundo ela buscava tambeacutem
promover o espiacuterito cientiacutefico moderno que tornara possiacutevel aos cientistas
modernos descobrirem tudo aquilo que Carl Sagan nos apresentava de
maneira tatildeo cativante Em outras palavras uma parte substancial do
programa tinha como foco a proacutepria ciecircncia sua histoacuteria seus meacutetodos e
sobretudo a atitude criacutetica que segundo Carl Sagan estaacute na raiz dessa
inovadora e bem-sucedida maneira de buscar respostas para questotildees
fundamentais como a origem da vida a origem do homem e do pequeno
planeta que ele habita e ateacute mesmo a origem do proacuteprio Universo
Na tentativa de explicar para o grande puacuteblico os traccedilos essenciais da
atitude criacutetica que caracterizaria o pensamento cientiacutefico Carl Sagan fez
uso5 do seguinte aformismo que rapidamente foi adotado pelos
autoproclamados pensadores criacuteticos como um princiacutepio metodoloacutegico
essencial a toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica6
Princiacutepio de Sagan alegaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias
extraordinaacuterias7
Embora muitos educadores e divulgadores da ciecircncia entre eles
vaacuterios cientistas e alguns filoacutesofos interpretem o aforismo tornado ceacutelebre
por Carl Sagan como expressando um princiacutepio metodoloacutegico essencial a
toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica vejamos o que a
Epistemologia da Ciecircncia tem a dizer sobre essa suposta peacuterola do
pensamento criacutetico Nunca eacute demais lembrar que a Epistemologia da
Ciecircncia natildeo eacute uma ciecircncia que investiga a proacutepria ciecircncia como satildeo a
Histoacuteria da Ciecircncia e a Sociologia da Ciecircncia e sim uma disciplina filosoacutefica
que estuda a natureza a origem e os limites do conhecimento cientiacutefico
5 O aforismo eacute provavelmente uma adaptaccedilatildeo de uma frase praticamente idecircntica publicada num artigo de 1978 de autoria do socioacutelogo italiano Marcello Truzzi Com efeito em seu artigo ldquoOn the Extraordinary An Attempt at Clarification ele afirma que an extraordinary claim requires extraordinary proof
6 Uma busca raacutepida no Google Scholar revela que o aforismo na versatildeo tornada ceacutelebre por Sagan eacute usado em mais de 1000 publicaccedilotildees acadecircmicas
7 O aformismo orignal em inglecircs ldquoExtraordinary claims requery extraordinary evidencerdquo pode ser traduzido tambeacutem como ldquoAfirmaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias extraordinaacuteriasrdquo
Ricardo S Rabenschlag | 175
Antes de tudo eacute importante deixar claro que embora Carl Sagan
tenha empregado o aforismo para descartar explicaccedilotildees pseudocientiacuteficas
em momento algum ele afirmou que se tratava de um princiacutepio
metodoloacutegico e nem se deu ao trabalho de explicar seu sentido preciso e
a menos que se faccedila isso o tatildeo celebrado aforismo aparenta ser uma
apenas uma consequecircncia ilegiacutetima do fato psicoloacutegico de que em geral eacute
mais difiacutecil convencer algueacutem da verdade de uma crenccedila que contraria
suas expectativas do que da verdade de uma crenccedila que natildeo se contraria
suas expectativas Poderiacuteamos expressar essa compreensatildeo vulgar e
psicologista do Princiacutecio de Sagan do seguinte modo
Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas
requerem evidecircncias mais robustas
A consequecircncia eacute obviamente ilegiacutetima jaacute que da proposiccedilatildeo que
descreve o fato psicoloacutegico de que tendemos a rejeitar aquilo que contraria
nossas expectativas e a aceitar aquilo a que estamos acostumados natildeo se
segue o princiacutepio metodoloacutegico de que devemos ser mais exigentes em
relaccedilatildeo agraves evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que
contrariam nossas expectativas e menos exigentes em relaccedilatildeo agraves
evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que natildeo contrariam
nossas expectativas Mais importante que isso esta interpretaccedilatildeo
independentemente da sua origem natildeo eacute aceitaacutevel uma vez que se de fato
estamos naturalmente precavidos em relaccedilatildeo agraves alegaccedilotildees que
consideramos extraordinaacuterias nesse sentido psicoloacutegico do termo
ldquoextraordinaacuteriordquo o mais correto do ponto de vista metodoloacutegico seria
requerermos evidecircncias mais robustas justamente em relaccedilatildeo agraves
alegaccedilotildees que natildeo consideramos extraodinaacuterias
Outra possiacutevel leitura psicologista do Princiacutepio de Sagan resultaria de
uma interpretaccedilatildeo em que ambas as ocorrecircncias do termo
ldquoextraordinaacuteriasrdquo teriam a mesma acepccedilatildeo psicoloacutegica caso em que ele
assumiria a seguinte forma
176 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas
requerem evidecircncias igualmente contraacuterias as nossas expectativas
Em primeiro lugar cumpre observar que se o caraacuteter surpreendente
de uma evidecircncia for definido pelos seus efeitos isto eacute pelo caraacuteter
surpreendente daquilo que ela evidencia o aforismo natildeo passa de um
truiacutesmo pois nesse caso qualquer evidecircncia em favor de uma alegaccedilatildeo
que contrariasse nossas expectativas seria por definiccedilatildeo uma evidecircncia
contraacuteria as nossas expectativas Mais importante que isso por natildeo se
tratar de uma trivialidade evidecircncias cientiacuteficas possuem um caraacuteter
peculiar que deriva do fato de que as explicaccedilotildees cientiacuteficas operam por
meio de teorias Em razatildeo dessa dependecircncia muacutetua que existe entre as
teorias cientiacuteficas e as evidecircncias cientiacuteficas uma evidecircncia cientiacutefica
nunca deve ser considerada de modo independente Daiacute que mesmo os
eventos mais corriqueiros e ateacute mesmo banais aos olhos do cientista isto
eacute quando examinados a partir de um refencial teoacuterico particular possam
adquirir um significado surpreendente Lembro ainda hoje do espanto que
senti quando li pela primeira vez sobre o Paradoxo da Noite Escura8 Este
famoso paradoxo trata das implicaccedilotildees cosmoloacutegicas da escuridatildeo
noturna Ao menos para a maioria de noacutes eacute difiacutecil encontrar algo mais
banal do que a escuridatildeo noturna9 e no entanto Johannes Kepler
considerou justamente a escuridatildeo da noite como sendo uma evidecircncia da
finitude espacial do Universo
Em linhas gerais o raciociacutenio de Kepler foi o seguinte suponha que
as estrelas estejam distribuiacutedas regularmente e que o Universo seja
espacialmente infinito Para um observador em qualquer ponto deste
espaccedilo infinito haacute uma esfera com centro nele cujo volume aumenta com
o quadrado do seu raio Portanto agrave medida que nos dintanciamos deste
observador hipoteacutetico o nuacutemero de estrelas que intercepta o seu raio de
visatildeo cresce com o quadrado da distacircncia Como resultado natildeo importa
8 Tambeacutem conhecido como Paradoxo de Olbers
9 Os Esquimoacutes sabem muito bem que nem toda noite eacute escura
Ricardo S Rabenschlag | 177
para onde ele olhe haveraacute sempre uma estrela interceptando o seu raio de
visatildeo Portanto se nosso Universo fosse espacialmente infinto e estivesse
repleto de estrelas regularmente distribuiacutedas como defendia Giordano
Bruno o ceacuteu noturno deveria ser tatildeo brilhante quanto a superfiacutecie de uma
estrela meacutedia Como isso natildeo ocorre a conclusatildeo do argumento eacute falsa o
que implica que ao menos uma das premissas do argumento eacute igualmente
falsa ou seja ou o Universo eacute espacialmente infinito ou as estrelas natildeo
estatildeo regularmente distribuiacutedas ou ambos Como a distribuiccedilatildeo das
estrelas se mostrava regular Kepler inferiu que o Universo deveria ser
espacialmente finito mostrando que algo tatildeo coriqueiro como a escuridatildeo
da noite pode ser legitimamente tomado como evidecircncia de uma alegaccedilatildeo
absolutamente extraodinaacuteria10
Este eacute apenas um entre muitos exemplos em que eventos ou fatos
nada extraordinaacuterios serviram de evidecircncia para afirmaccedilotildees
extraordinaacuterias o que mostra claramente a inadequaccedilatildeo desta segunda
interpretaccedilatildeo psicoloacutegica do Princiacutepio de Sagan Outro que me traz boas
recordaccedilotildees eacute o do chuvisco que aparecia nos antigos televisores de tubo
quando as emissoras de TV encerravam a sua programaccedilatildeo diaacuteria e que
hoje sabemos ser causado pela Radiaccedilatildeo Coacutesmica de Fundo que teve
origem no Big Bang Em outras palavras uma evidecircncia de que o Universo
teve iniacutecio haacute bilhotildees de anos numa ldquogrande explosatildeordquo estava agrave vista de
todos sem que ningueacutem suspeitasse
Em resumo interpretado psicologicamente o tatildeo celebrado Princiacutepio
de Sagan ou eacute trivial ou deriva de uma concepccedilatildeo profundamente
equivocada acerca da natureza do conhecimento cientiacutefico moderno Em
ambos os casos o Princiacutepio de Sagan natildeo deve ser considerado vaacutelido e
seu uso como guia para a investigaccedilatildeo cientiacutefica tem consequecircncias
desastrosas para ciecircncia
10 A soluccedilatildeo atualmente aceita para o paradoxo eacute diferente daquela proposta por Kepler Atualmente o paradoxo eacute resolvido com base em duas descobertas a) que o Universo tem uma idade finita e b) a luz tem uma velocidade finita a luz das estrelas mais distantes ainda natildeo teve tempo de chegar ateacute noacutes Portanto o Universo que enxergamos eacute limitado no espaccedilo por ser finito no tempo A escuridatildeo da noite eacute uma prova de que o Universo teve um iniacutecio
178 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Mas natildeo haveria alguma interpretaccedilatildeo ao mesmo tempo natildeo trivial e
natildeo psicologista do Princiacutepio de Sagan No intuito de nos livrarmos de
uma leitura pscicologista da formulaccedilatildeo tornada ceacutelebre por Carl Sagan
poderiacuteamos reformular o Princiacutepio de Sagan como expressando a ideia de
que deve haver uma proporcionalidade entre a forccedila das nossas alegaccedilotildees
e a forccedila das evidecircncias que apresentamos em favor delas Uma maneira
de expressar isso poderia ser a seguinte
Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees extraordinariamente fortes requerem
evidecircncias extraordinariamente fortes
Com base nessa reinterpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan poder-se-ia
alegar por exemplo que acreditar na existecircncia de discos voadores com
base apenas no fato de que algueacutem afirma ter visto um disco voador seria
uma violaccedilatildeo do princiacutepio jaacute que a forccedila da alegaccedilatildeo medida pelo impacto
que ela tem sobre o conhecimento cientiacutefico exigiria evidecircncias mais
robustas como por exemplo a exibiccedilatildeo dos destroccedilos do disco voador que
a pessoa alega ter visto e natildeo o simples relato de uma testemunha
afirmando ter visto um disco metaacutelico voando em baixa altitude No
primeiro caso tudo o que temos eacute o relato do avistamento de um OVNI
(Objeto Voador Natildeo Indentificado) no segundo temos uma evidecircncia
material a saber o proacuteprio objeto avistado o que nos permite uma
avaliccedilatildeo direta e possiacutevel identificaccedilatildeo do objeto que iraacute ou natildeo confirmar
a afirmaccedilatildeo de que o objeto avistado era uma nave alieniacutegena O mais
provaacutevel eacute que a pilha de destroccedilos por mais extraordinaacuteria que pareccedila
aos olhos de um leigo seja imediatamente reconhecida por um especialista
como sendo os restos de um balatildeo meteoroloacutegico ou algum outro aparato
tecnoloacutegico humano como de fato aconteceu no famoso incidente ocorrido
em Roswell Novo Meacutexico em 1947
Mas seraacute que esta reformulaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan tem o mesmo
sentido que os autoproclamados pensadores criacuteticos conferem a sua
Ricardo S Rabenschlag | 179
formulaccedilatildeo original E ainda que a aceitemos como uma traduccedilatildeo razoaacutevel
do Princiacutepio de Sagan o sentido da expressatildeo ldquoextraordinariamete fortesrdquo
que aparece nas expressotildees ldquoalegaccedilotildees extraordinariamente fortesrdquo e
ldquoevidecircncias extraordinariamente fortesrdquo eacute o mesmo em ambos os casos E
ainda que se diga que elas tecircm o mesmo sentido eacute mesmo verdadeiro que
toda alegaccedilatildeo que tem grande impacto em nossa atual visatildeo cientiacutefica do
mundo requer evidecircncias igualmente extraordinaacuterias Natildeo poderia haver
evidecircncias absolutamente conformes agrave visatildeo cientiacutefica do mundo e que natildeo
obstante isso seriam uma soacutelida evidecircncia para alegaccedilotildees extraodinaacuterias
como a finitude espacial do Universo A forccedila de uma evidecircncia eacute medida
pelas suas consequecircncias ou haacute um criteacuterio intriacutenseco como sugere a
comparaccedilatildeo entre evidecircncias testemunhais e materiais Alegaccedilotildees
conformes a nossa visatildeo de mundo podem ser aceitas com base apenas em
testemunhos ao passo que as que contrariam o que acreditamos saber
requerem evidecircncias materiais Nesse uacuteltimo caso que admitimos ser o
mais promissor qual a relevacircncia da forccedila de nossas alegaccedilotildees no que diz
respeito ao tipo de evidecircncia que devemos exigir para aceitaacute-la
Uma vez mais nos vemos em meio a uma dupla confusatildeo De um lado
natildeo temos clareza sobre o significado do enunciado do princiacutepio de outro
natildeo temos uma concepccedilatildeo clara sobre e natureza do conhecimneto
cientiacutefico Visando sanar estes problemas poderiacuteamos interpretar a ideia de
forccedila de uma alegaccedilatildeo ou de uma evidecircncia como uma referecircncia agravequilo que
poderiacuteamos chamar de estatuto epistecircmico de uma proposiccedilatildeo definido
como o grau de confiabilidade de uma proposiccedilatildeo Assim compreendido o
Princiacutepio de Sagan seria um corolaacuterio da ideia de que o estatuto epistecircmico
das premissas de um argumento deve ser igual ao estatuto epistecircmico da
sua conclusatildeo e poderia ser enunciado do seguinte modo
Interpretaccedilatildeo espistecircmica alegaccedilotildees com alto grau de confiabilidade
requerem evidecircncias com alto grau de confiabilidade
Reneacute Descartes certamente concordaria com essa interpretaccedilatildeo do
Princiacutepio de Sagan afinal toda sua filosofia estaacute baseada na ideia de que
180 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
somente evidecircncias indubitaacuteveis podem servir de base para afirmaccedilotildees
indubitaacuteveis11 Natildeo foi outra a razatildeo que o levou numa das passagens mais
memoraacuteveis da histoacuteria da filosofia12 a apresentar o Cogito como a uacutenica
saiacuteda para o que ele chamou de duacutevida hiperboacutelica e tomaacute-lo como o uacutenico
fundamento aceitaacutevel para a filosofia Ainda que Descartes esteja longe de
ser um iacutecone dos ldquopensadores criacuteticosrdquo um projeto fundacionista anaacutelogo
ao cartesiano estaacute na raiz do Positivismo Loacutegico uma das fontes de
inspiraccedilatildeo da grande maioria dos autoproclamados pensadores criacuteticos
Rudolf Carnap o maior expoente desta corrente neopositivista buscou
ancorar todo o conhecimento humano no que ele chamou de enunciados
protocolares descritos por ele como sendo registros em primeira pessoa
de dados sensiacuteveis elementares (sense data) que estariam na base de toda
a experiecircncia humana
O problema com essa interpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan eacute que
embora a nova formulaccedilatildeo do princiacutepio seja mais promissora ela
obviamnete natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo plausiacutevel do Princiacutepio de Sagan jaacute
que o grau de confiabilidade de alegaccedilotildees extraordinaacuterias natildeo eacute alto e sim
extremamente baixo daiacute que a maioria de noacutes esteja naturalmente
precavido contra elas
Uma terceira interpretaccedilatildeo epistecircmica do Princiacutepio de Sagan resulta
de uma leitura indutivista humeana da ideia de estatuto epistecircmico de uma
proposiccedilatildeo A ciecircncia segundo David Hume eacute um empreendimento
essencialmente indutivo e provisoacuterio e sua grandeza reside precisamente
no fato de que a ciecircncia natildeo busca verdades absolutas Do fato de que todo
conhecimento eacute provisoacuterio e por conseguinte dubitaacutevel natildeo se segue
contudo que nossas crenccedilas tenham todas elas o mesmo grau de
confiabilidade Obviamente uma afirmaccedilatildeo que jaacute tenha sido refutada natildeo
eacute nem um pouco confiaacutevel Mas o que dizer das que ainda natildeo foram
refutadas Segundo David Hume o grau de confiabilidade de uma crenccedila
11 No caso do coacutegito a proacutepria afirmaccedilatildeo ou mais precisamente o pensamento que ela expressa eacute evidecircncia da sua veracidade
12 Iniacutecio da Segunda Meditaccedilatildeo das Meditaccedilotildees Metafiacutesicas de Reneacute Descartes
Ricardo S Rabenschlag | 181
eacute proporcional ao nuacutemero de vezes em que ela foi experimentalmente
confirmada Seguindo essa linha de raciociacutenio poder-se-ia interpretar o
Princiacutepio de Sagan como a recomendaccedilatildeo de que afirmaccedilotildees que
contrariem crenccedilas que tenham sobrevivido a inuacutemeras e variadas
tentativas de refutaccedilatildeo e que satildeo nesse sentido extraordinaacuterias devam
ser igualmente submetidas a um longo e variado processo de testes
acumulando assim uma quantidade igualmente extraordinaacuteria de
evidecircncias em seu favor antes de serem consideradas mais confiaacuteveis que
agraves antigas crenccedilas que elas pretendem substituir
Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees que contrariam crenccedilas
corroboradas por uma extraordinaacuteria quantidade de evidecircncias requerem um
nuacutemero igualmente extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis
A longa disputa entre os sistemas ptolomaico e copernicano que
marca o iniacutecio da ciecircncia moderna eacute um bom exemplo de como devemos
ser cautelosos em relaccedilatildeo a afirmaccedilotildees extraordinaacuterias como por
exemplo a afirmaccedilatildeo de que a Terra natildeo estaacute parada no centro do
Universo e sim girando em uma grande velocidade em torno do Sol Tenho
certeza de que a maioria dos Novos Ateus endossaria aliviado esta leitura
indutivista do Princiacutepio de Saganrdquo e natildeo ficaria de modo algum surpreso
se Richard Dawkins acrescentasse de forma desdenhosa a observaccedilatildeo de
que era exatamente isso que ele estava querendo dizer o tempo todo
embora nunca o tivesse feito por achar oacutebvio demais Infelizmente as
coisas natildeo satildeo tatildeo simples quanto parecem a um leigo em Espistemologia
da Ciecircncia como Richard Dawkins Em primeiro lugar mesmo nos casos
mais promissores como o da disputa entre geocentrismo e
heliocentrismo a interpretaccedilatildeo mencionada acima apresenta seacuterios
problemas jaacute que o que pocircs fim a disputa em favor do heliocentrismo natildeo
foi um nuacutemero extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis e sim a criaccedilatildeo da
primeira teoria fiacutesica moderna capaz de explicar de maneira unificada
fenocircmenos corriqueiros como o movimento dos corpos terrestres e o
movimento dos corpos celestes
182 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Uma vez mais o problema aqui eacute o de como evitar a confusatildeo entre
o loacutegico e o psicoloacutegico Natildeo resta duacutevida de que a repeticcedilatildeo de uma mesma
ocorrecircncia aumente nossa confianccedila em relaccedilatildeo ao enunciado universal
que a descreve a questatildeo contudo eacute saber se ela aumenta o nosso
conhecimento e natildeo as nossas expectativas Eacute provaacutevel que um iacutempeto
indutivista esteja na base de parte importante do apoio ao Princiacutepio de
Sagan embora natildeo devamos esquecer que boa parte dos seus apoiadores
em especial os autoproclamados pensadores criacuteticos tem imensa adoraccedilatildeo
pelo racionalismo popperiano e que Karl Popper considerava ilegiacutetima
qualquer tentativa de justificar indutivamente uma crenccedila De qualquer
modo tanto o fundacionismo como o indutivismo satildeo extremamente
problemaacuteticos razatildeo pela qual foram haacute muito tempo descartados e natildeo
haacute hoje muitos especialistas que defendam quer a ideia de um fundamento
inabalaacutevel para as ciecircncias quer a ideia de uma loacutegica indutiva
Pode-se contra-argumentar dizendo que natildeo haacute verdades ou
conhecimento em sentido absoluto que natildeo haacute um mundo ou uma realidade
independente do sujeito que tudo eacute relativo provisoacuterio e incerto e que
portanto uma loacutegica indutiva eacute tatildeo boa quanto uma dedutiva Mas
obviamente que se adotarmos esta estrateacutegia de defesa o problema assume
uma feiccedilatildeo ainda mais sombria pois a menos que ser possa conciliar esta
concepccedilatildeo relativista com a objetividade cientiacutefica natildeo haacute como evitar que o
ceticismo moderado que caracteriza a atitude cientiacutefica se transforme num
ceticismo radical e portanto numa nova e poderosa forma de irracionalismo
Se o Princiacutepio de Sagan eacute assim tatildeo inadequado por que ele eacute
considerado por muitos como uma das regras de ouro do pensamento
criacutetico Como dissemos anteriormente o enunciado do princiacutepio eacute vago
deliberadamente vago a ponto de comportar interpretaccedilotildees muito diferentes
e ateacute mesmo antagocircnicas o que certamente contribui para o seu sucesso Haacute
contudo uma outra razatildeo que julgamos ser ainda mais importante a saber
Ricardo S Rabenschlag | 183
que ele natildeo eacute uma ferramenta cientiacutefica e sim ideoloacutegica Ele natildeo eacute utilizado
por cientistas em suas investigaccedilotildees e sim por ativistas que podem ou natildeo
ser cientistas em sua luta contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo
O combate agraves pseudociecircncias eacute um combate justo e necessaacuterio e a
atitude criacutetica tem um papel fundamental nesse processo natildeo temos
duacutevida quanto a isso Nossa criacutetica natildeo busca desencorajar o combate agraves
pseudociecircncias ela busca apenas mostrar por um lado que a ciecircncia natildeo
estaacute inume ao irriacionalismo e por outro que o irracionalismo na ciecircncia
se manifesta sob a forma de pseudofilosofias e natildeo de pseudociecircncias
Evidentemente esta natildeo eacute uma tarefa faacutecil e este pequeno capiacutetulo natildeo
esgota de forma alguma o assunto Ainda assim espero que esta breve
criacutetica do tatildeo aclamado Princiacutepio de Sagan tenha despertado a atenccedilatildeo dos
leitores para a importacircncia de uma criacutetica do Pensamento Criacutetico13
Referecircncias
CARNAP R The Logical Structure of the World Open Court New York 2003
DAWKINS R The God Delusion Transworld Pub London 2016
DENNETT D Breaking the Spell Penguim London 2007
DESCARTES R Meacuteditations Meacutetaphysiques Nabu Press Paris 2014
HARRIS S The End of Faith WW Norton London 2005
HITCHENS C God Is Not Great Atlantic Books London 2008
HUME D On Miracles Open Court London 1985
POPPER K Conjectures and Refutations Routledge New York 2002
SAGAN C Cosmos Ballantine Books New York 2013
13 Talvez seja o caso de cunharmos a expressatildeo ldquoNovo Pensamento Criacuteticordquo a exemplo do que se fez em relaccedilatildeo aos Novos Ateus seja para reforccedilar o viacutenculo entre as duas correntes seja para diferenciar este Novo Pensamento Criacutetico da Filosofia Criacutetica de Kant No presente texto optamos por usar a expressatildeo empregada na literatura existente
11
A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo
Sagid Salles 1
Introduccedilatildeo
Haacute pelo menos duas coisas que tornam o fenocircmeno da vagueza
interessante Primeiro a vagueza estaacute espalhada por toda a linguagem
natural Uma parte significativa das expressotildees de nossa linguagem satildeo
vagas e podemos encontrar a vagueza em expressotildees de diferentes
categorias loacutegicas como termos singulares predicados e quantificadores
Por razotildees de simplicidade contudo ao longo deste artigo considero
apenas o caso dos predicados vagos Segundo o fenocircmeno da vagueza estaacute
por traacutes de um difiacutecil paradoxo conhecido como Paradoxo Sorites
Atualmente haacute muitas tentativas de explicar esse fenocircmeno e resolver o
Sorites sendo uma delas a Teoria Trivalente da Vagueza Essa teoria eacute
interessante natildeo apenas porque fornece uma explicaccedilatildeo elegante da
vagueza acompanhada de uma soluccedilatildeo engenhosa para o paradoxo em
questatildeo mas tambeacutem porque serve de base para a compreensatildeo de outras
teorias claacutessicas da vagueza Tanto o Gradualismo como o
Supervalorativismo por exemplo incorporam parte significativa de suas
ideias centrais A despeito disso existem alguns seacuterios obstaacuteculos para a
Teoria Trivalente Acredito que o principal deles eacute que ela falha em
satisfazer pelo menos um dos trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria
1 Sagid Salles eacute graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto Mestre e Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da UFRJ com sanduiacuteche realizado em University of Miami Atualmente eacute professor substituto de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (E-mail sagidsallesgmailcom)
Sagid Salles | 185
ideal da vagueza o criteacuterio da precisatildeo Meu objetivo eacute apresentar essa
teoria e mostrar como essa dificuldade surge para ela
O artigo seraacute dividido em quatro seccedilotildees Na primeira apresento o
problema da vagueza ressaltando os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma
teoria ideal o criteacuterio do Sorites o criteacuterio da coerecircncia e o criteacuterio da
precisatildeo Na segunda e terceira apresento respectivamente os aspectos
centrais da Teoria Trivalente e uma das soluccedilotildees da mesma para o Sorites
Por fim defendo que apesar de satisfazer os dois primeiros criteacuterios de
adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente falha com respeito ao criteacuterio da precisatildeo
Vagueza Sorites e os Trecircs Criteacuterios de Adequaccedilatildeo
A palavra ldquovaguezardquo eacute usada cotidianamente em diferentes sentidos
mas o interesse filosoacutefico pela vagueza eacute direcionado a um fenocircmeno
especiacutefico O que mais chama a atenccedilatildeo sobre esse fenocircmeno eacute que ele estaacute
por traacutes do que eacute conhecido como Paradoxo Sorites Esse paradoxo foi
descoberto por Eubulides de Mileto ainda no seacuteculo IV ac mas eacute
argumentaacutevel que somente recentemente (talvez nos uacuteltimos 60 ou 70
anos) ele venha recebendo a atenccedilatildeo que merece Aliaacutes atualmente existe
uma grande variedade de versotildees diferentes do paradoxo (HYDE 2011)
uma delas a versatildeo quantificada seraacute apresentada a seguir
Seja ldquoCrdquo o predicado ldquocarecardquo ldquoardquo um nome arbitraacuterio de pessoas e
deixe os nuacutemeros na direita inferior indicarem o nuacutemero de cabelos que a
tem na cabeccedila Nesse contexto a versatildeo quantificada do Sorites para
ldquocarecardquo pode ser formulada como segue
(SC)
(1) Ca0
(2) foralln (CanrarrCan+1)
_______________
(3) Ca10000
186 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
(SC) parte da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa
com 0 fios de cabelo na cabeccedila eacute careca para a conclusatildeo claramente falsa
de que uma pessoa com 10000 fios de cabelo na cabeccedila tambeacutem eacute careca
A conclusatildeo (3) se segue de (1) e (2) por repetidas aplicaccedilotildees de
Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens
Agora repare que podemos facilmente formular o Sorites na direccedilatildeo
inversa partindo da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa
com 10000 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca para a conclusatildeo
claramente falsa de que uma pessoa com 0 fios tambeacutem natildeo eacute careca
(notSC)
(1) notCa10000
(2)foralln (notCan+1rarrnotCan)
______________
(3) notCa0
A conclusatildeo de (notSC) tambeacutem eacute obtida por repetidas aplicaccedilotildees de
Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens Enquanto argumentos como (SC)
nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute careca argumentos como
(notSC) nos permite mostrar que cada indiviacuteduo natildeo eacute careca Se tomadas
em conjunto os argumentos nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute
careca e natildeo eacute careca ao mesmo tempo Resultado o predicado ldquocarecardquo eacute
incoerente Se isso jaacute nos parece absurdo a coisa fica muito pior quando
lembramos que o mesmo paradoxo pode ser formulado para muitos
outros predicados ldquoaltordquo ldquobaixordquo ldquoricordquo ldquopobrerdquo ldquovivordquo ldquomortordquo
ldquoraacutepidordquo ldquolentordquo ldquomonterdquo etc Em uacuteltima instacircncia aceitar a conclusatildeo
do Sorites implicaria em aceitar que cada um desses predicados eacute
incoerente
A premissa (1) de cada argumento acima eacute claramente verdadeira
enquanto a conclusatildeo se segue de (1) e (2) por regras de inferecircncia que
Sagid Salles | 187
natildeo gostariacuteamos de rejeitar Isso torna (2) a premissa quantificada na
principal suspeita Nesse contexto algueacutem poderia pensar que a soluccedilatildeo
do paradoxo reside na simples negaccedilatildeo da premissa (2) Infelizmente essa
estrateacutegia eacute mais difiacutecil do que parece Suponhamos por exemplo que a
premissa quantificada de (SC) eacute falsa Se esse eacute o caso entatildeo eacute verdade que
notforalln (CanrarrCan+1) Isso eacute logicamente equivalente a Ǝn (Can˄notCan+1) que
diz que haacute um nuacutemero natural n tal que a com n fios de cabelo na cabeccedila
eacute careca e a com n+1 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca O problema eacute
que esse resultado eacute difiacutecil de engolir Para qualquer valor que se atribua a
n a suposiccedilatildeo de que uma pessoa com n fios de cabelo eacute careca e uma
pessoa com n+1 natildeo eacute careca pareceraacute altamente contraintuitiva
O ponto fica mais claro se pensarmos em termos de sequecircncias
Imagine uma sequecircncia como segue
lta0 a1 a2 a5000 a5001 a9998 a9999 a10000gt
Intuitivamente o predicado ldquocarecardquo se aplica a a0 a1 a2 etc e natildeo se
aplica a a10000 a9999 a9998 etc Entretanto natildeo haacute um uacuteltimo caso na
sequecircncia ao qual ldquocarecardquo se aplica seguido por um primeiro caso ao qual
o predicado natildeo se aplica nenhuma linha divisoacuteria eacute traccedilada Se
simplesmente negarmos a premissa quantificada aceitando que Ǝn
(Can˄notCan+1) teremos de assumir que o predicado ldquocarecardquo estabelece
uma linha divisoacuteria desse tipo2 Isso implicaria que ldquocarecardquo eacute um
predicado preciso e portanto natildeo vago O mesmo vale para todos os
predicados vagos Na verdade ser vago e ser preciso satildeo propriedades
incompatiacuteveis de modo que nenhuma expressatildeo linguiacutestica pode ser vaga
e precisa ao mesmo tempo
2 Iago Bozza chamou minha atenccedilatildeo para o fato de que aceitar que Ǝn (CanʌnotCan+1) natildeo implica que haja um par de itens na sequecircncia que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo careca e o primeiro natildeo careca Considere uma analogia com caso dos nuacutemeros naturais Todos podemos aceitar que existe um nuacutemero n tal que n eacute iacutempar e n+1 natildeo eacute iacutempar Disso natildeo se segue que haacute um par de itens adjacentes na sequecircncia dos nuacutemeros naturais que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo iacutempar e o primeiro natildeo iacutempar da mesma Quando falamos que tal divisatildeo entre os carecas e os natildeo carecas se segue de Ǝn (CanʌnotCan+1) estamos adicionalmente assumindo que certas restriccedilotildees oacutebvias para a aplicaccedilatildeo do predicado ldquocarecardquo estatildeo em jogo Sobre tais restriccedilotildees veja-se GraffFara (2000 p 57)
188 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Por fim repare que essa breve apresentaccedilatildeo do Paradoxo Sorites nos
sugere trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria ideal da vagueza Satildeo
eles
a) O criteacuterio do Sorites resolver o Paradoxo Sorites
b) O criteacuterio da coerecircncia natildeo implicar que predicados vagos satildeo incoerentes
c) O criteacuterio da precisatildeo natildeo implicar que predicados vagos satildeo precisos
Ao alegar que (a)-(c) satildeo trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria
ideal da vagueza quero dizer que a falha em satisfazer algum deles deve
ser interpretado como um defeito para qualquer teoria da vagueza Noacutes
queremos uma teoria da vagueza que explique os predicados vagos de
forma a resolver o Sorites mas sem implicar que eles satildeo incoerentes ou
precisos (Uma defesa desses criteacuterios pode ser encontrada em Salles
2016) Eacute dentro desse pano de fundo que a Teoria Trivalente seraacute avaliada
Teoria Trivalente da Vagueza
Por ldquoTeoria Trivalente da Vaguezardquo entendo uma famiacutelia de teorias
que explicam a vagueza em termos de um terceiro valor de verdade ou
uma lacuna entre os dois valores claacutessicos verdadeiro e falso Apesar de
requererem uma loacutegica trivalente nem toda teoria da vagueza que faz uso
dessa loacutegica eacute uma instacircncia da Teoria Trivalente da Vagueza O traccedilo
distintivo dessas teorias eacute colocar o terceiro valorlacuna no centro da
explicaccedilatildeo das expressotildees vagas
A motivaccedilatildeo de base para essa teoria eacute a intuiccedilatildeo dos casos de
fronteira os predicados vagos admitem casos de fronteira casos a respeito
dos quais sua aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara A existecircncia desses casos serve como
um indiacutecio a favor da Teoria Trivalente Considere a frase (1)
Sagid Salles | 189
1 Joatildeo eacute careca
Se Joatildeo tem 0 fios de cabelo em sua cabeccedila entatildeo (1) expressa uma
proposiccedilatildeo verdadeira se Joatildeo tem todo o couro cabeludo coberto por
cabelo entatildeo (1) expressa uma proposiccedilatildeo falsa Mas o que dizer do caso
em que ele tem 85 do couro cabeludo coberto por cabelo (se quiser
pense em uma porcentagem que ache mais favoraacutevel ao exemplo)
Intuitivamente seria incorreto dizer que (1) eacute verdadeira nesse caso assim
como seria incorreto dizer que eacute falsa Uma explicaccedilatildeo para isso eacute que de
fato natildeo eacute verdadeira e de fato natildeo eacute falsa (1) eacute nem verdadeira nem falsa
ou como prefere Tye (1994) indefinida
Haacute duas interpretaccedilotildees de indefinido Pode-se interpretaacute-lo como um
terceiro valor de verdade ou como uma lacuna entre o verdadeiro e o falso
A vantagem de interpretaacute-lo como um terceiro valor eacute que fica mais faacutecil
explicar como (1) pode expressar uma proposiccedilatildeo Afinal proposiccedilotildees satildeo
tradicionalmente concebidas como os portadores dos valores de verdade
Por outro lado ficamos com o difiacutecil problema metafiacutesico de explicar o que
eacute esse terceiro valor o indefinido A vantagem da concepccedilatildeo da lacuna eacute
que natildeo carrega esse problema metafiacutesico pois natildeo aceita um terceiro
valor de verdade A desvantagem eacute que natildeo eacute claro como (1) nesse caso
poderia expressar uma proposiccedilatildeo Tanto quanto for possiacutevel manter-me-
ei neutro quanto ao ponto Para simplificar vou falar em uma frase sendo
indefinida e o leitor pode interpretar isso como significando que expressa
uma proposiccedilatildeo com o valor indefinido ou que falha em expressar uma
proposiccedilatildeo
A pergunta mais importante eacute como o apelo a frases indefinidas nos
leva a uma teoria dos predicados vagos A resposta se revela ao olharmos
para as expressotildees que constituem a frase Tradicionalmente entende-se
que uma frase como (1) eacute verdadeira se o objeto referido por ldquoJoatildeordquo
pertence ao conjunto de coisas selecionado pelo predicado ldquoeacute careca e
falsa de outro modo Nessa imagem o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de um
predicado pode ser dividido em duas partes (i) as coisas agraves quais o
190 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
predicado se aplica a sua extensatildeo positiva (ii) as coisas agraves quais o
predicado natildeo se aplica a sua extensatildeo negativa Cada elemento do
domiacutenio pertenceraacute a um ou a outro Se Joatildeo for um elemento da extensatildeo
positiva de ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute verdadeira se for um elemento da
extensatildeo negativa entatildeo eacute falsa natildeo haacute outra opccedilatildeo De acordo com a
Teoria Trivalente os predicados vagos natildeo se encaixam nessa imagem
O problema eacute que os predicados vagos natildeo dividem o seu domiacutenio em
duas partes Eacute verdade que eles tecircm uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo
negativa Mas fosse essa toda a histoacuteria cada frase como (1) seria
verdadeira ou falsa natildeo havendo espaccedilo para o nem verdadeiro nem falso
ou indefinido Para aleacutem da extensatildeo positiva e a extensatildeo negativa de um
predicado vago existe tambeacutem o que eacute chamado de ldquopenumbrardquo A
penumbra eacute formada pelos casos fronteira do predicado aqueles com
relaccedilatildeo aos quais a aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara Se Joatildeo estaacute na penumbra de
ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute indefinida ou nem verdadeira nem falsa
Pode haver divergecircncia sobre se a explicaccedilatildeo para o fato de que os
predicados vagos admitem penumbra eacute linguiacutestica ou metafiacutesica Tye
assume uma concepccedilatildeo metafiacutesica De acordo com ele satildeo os proacuteprios
conjuntos que satildeo vagos e os predicados satildeo vagos apenas porque os
conjuntos satildeo Nesse sentido o conjunto dos carecas eacute tal que para
algumas pessoas eacute indefinido se elas satildeo ou natildeo elementos do conjunto
(TYE 1994 p 195) Tye gosta de expressar isso dizendo que natildeo haacute uma
questatildeo de fato sobre se essas pessoas satildeo ou natildeo elementos do conjunto
dos carecas Predicados vagos satildeo vagos apenas porque satildeo associados a
conjuntos vagos Haacute tambeacutem aqueles que preferem uma explicaccedilatildeo
linguiacutestica para a penumbra Concepccedilotildees linguiacutesticas geralmente se datildeo
em termos das condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo do predicado Pode-se sustentar que
um predicado admite penumbra devido a alguma caracteriacutestica nas suas
condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo De acordo com Soames (1999 p 163) ndash que no
entanto natildeo defende a Teoria Trivalente da Vagueza ndash os predicados que
admitem penumbra tecircm condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida e
condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida Essas condiccedilotildees satildeo mutuamente
Sagid Salles | 191
exclusivas mas natildeo conjuntamente exaustivas Como as condiccedilotildees satildeo
mutuamente exclusivas se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-
sucedida de ldquocarecardquo entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-
sucedida e se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida
entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida Como natildeo
satildeo conjuntamente exaustivas haacute casos que nem satisfazem as condiccedilotildees
de aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem satisfazem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo
mal-sucedida os casos indefinidos Para criacuteticas agrave proacutepria ideia de um
terceiro valorlacuna veja-se Glanzberg (2009) Para os nossos
propoacutesitos contudo natildeo precisamos ir aleacutem do que jaacute fomos
Em resumo os predicados vagos natildeo cortam seu domiacutenio de
aplicaccedilatildeo apenas em uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo negativa Eles
tambeacutem admitem uma penumbra formada pelos casos fronteira do
predicado Eacute isso que explica o suposto fato de algumas frases contendo
predicados vagos serem nem verdadeiras nem falsas Quando a estaacute na
penumbra de ldquoFrdquo ldquoFardquo eacute indefinida A Teoria Trivalente assume que a
propriedade caracteriacutestica dos predicados vagos eacute encaixar-se na descriccedilatildeo
acima
Teoria Trivalente e a Soluccedilatildeo do Sorites
O modo como a Teoria Trivalente da Vagueza resolve o Paradoxo
Sorites depende dos detalhes de cada versatildeo Mais especificamente
depende do tratamento dado aos conectivosquantificadores e da
concepccedilatildeo de validade adotada A introduccedilatildeo de um terceiro valor ndash ou de
uma lacuna entre os dois valores claacutessicos ndash implica na necessidade de
reformular algumas definiccedilotildees Pode-se adotar uma concepccedilatildeo de validade
que nos permita rejeitar a validade do argumento Sorites mas a soluccedilatildeo
mais simples eacute manter a validade como preservaccedilatildeo de verdade e rejeitar
alguma premissa (KEEFE 2000 p104 e 107) Isto pode ser feito olhando
apenas para os conectivos e quantificadores Existem diferentes
interpretaccedilotildees dos conectivos Primeiro podem ser interpretados
192 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
verofuncionalmente (TYE 1994) ou natildeo verofuncionalmente (RICHARD
2009) Segundo mesmo que adotemos uma das duas haveraacute divergecircncia
sobre qual seraacute a interpretaccedilatildeo correta de cada um Natildeo vou entrar em
qualquer discussatildeo deste tipo aqui No que segue assumo a interpretaccedilatildeo
verofuncional de Tye e apresento a sua soluccedilatildeo do paradoxo
Tye (1994 p 194) adota uma das interpretaccedilotildees propostas por Kleene
(1952 p 332-340) dos conectivos
Natildeo eacute difiacutecil ver a motivaccedilatildeo por traacutes de cada tabela escolhida
Quando as frases componentes da frase mais complexa possuem apenas
valores claacutessicos os conectivos funcionam precisamente como funcionam
na leitura claacutessica ndash esse eacute o chamado ldquorequisito de normalidaderdquo (KEEFE
2000 p 86 MACHINA 1976 p 55) Assim as diferenccedilas relevantes
ocorrem apenas quando uma das frases componentes eacute indefinida
A negaccedilatildeo de uma frase indefinida A eacute ela mesma indefinida Por um
lado se notA fosse verdadeira entatildeo A seria falsa e consequentemente natildeo
seria indefinida Por outro lado se notA fosse falsa entatildeo A seria verdadeira
e portanto natildeo seria indefinida Para que uma disjunccedilatildeo seja verdadeira
A B notA AvB A˄B ArarrB
V V F V V V
V I F V I I
V F F V F F
I V I V I V
I I I I I I
I F I I F I
F V V V F V
F I V I F V
F F V F F V
Sagid Salles | 193
basta que uma disjunta seja verdadeira e para que seja falsa basta que
todas as disjuntas sejam falsas Nos outros casos a disjunccedilatildeo eacute indefinida
Uma conjunccedilatildeo eacute verdadeira se todas conjuntas satildeo verdadeiras falsa se
pelo menos uma conjunta eacute falsa e indefinida nos outros casos A
condicional eacute como se espera um caso problemaacutetico A uacutenica motivaccedilatildeo
notada por Tye eacute que ArarrB deve ser equivalente a notAvB Por fim AharrB
pode ser definido como (ArarrB) ˄ (BrarrA)
O quantificador existencial eacute definido como segue ƎxFx eacute verdadeiro
se tem uma instacircncia verdadeira falsa se todas as suas instacircncias satildeo
falsas e indefinida nos outros casos A intuiccedilatildeo por traacutes da definiccedilatildeo eacute que
uma afirmaccedilatildeo existencial seraacute indefinida quando nenhuma instacircncia for
verdadeira e pelo menos algumas forem indefinitas o mesmo que
ocorreria com a disjunccedilatildeo de todas as instacircncias Fa1vFa2vFa3v Fan O
quantificador universal eacute definido como segue forallxFx eacute verdadeira se todas
as suas instacircncias satildeo verdadeiras falsa se alguma instacircncia eacute falsa e
indefinida nos outros casos A ideia aqui eacute que uma afirmaccedilatildeo universal eacute
indefinida apenas quando nenhuma instacircncia eacute falsa e algumas satildeo
indefinidas o mesmo que ocorreria com a conjunccedilatildeo de todas as instacircncias
Fa1˄Fa2˄Fa3˄Fan
Essa leitura dos conectivos nos leva a alguns resultados
contraintuitivos quanto ao valor de verdade de certas frases Por exemplo
intuitivamente toda frase da forma A˄notA eacute falsa e toda frase da forma
AvnotA eacute verdadeira mas na leitura de Tye ambas as intuiccedilotildees estatildeo
erradas Quando A eacute indefinido tanto A˄notA quanto AvnotA seratildeo
indefinidos Tudo que Tye (1994 p 194) consegue reter de nossas
intuiccedilotildees eacute que nenhuma frase da primeira forma seraacute verdadeira (trata-
se de uma quase-contradiccedilatildeo) e nenhuma da segunda forma seraacute falsa
(trata-se de uma quase-tautologia) Agora imagine que Joatildeo eacute mais alto do
que Marcos mas ambos estatildeo na penumbra de ldquoaltordquo Nossa intuiccedilatildeo eacute que
a condicional ldquoSe Marcos eacute alto entatildeo Joatildeo eacute altordquo eacute verdadeira Na leitura
de Tye dos conectivos contudo a condicional seraacute indefinida Exemplos
do tipo podem ser multiplicados (KEEFE 2000 p 96-97 SANTOS 2015
194 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
p 5-6) Por fim problemas similares aparecem para diferentes
interpretaccedilotildees verofuncionais dos conectivos (WILLIAMSON 1994 cap
4)
Em todo caso o que nos interessa aqui eacute como Tye resolve o Paradoxo
Sorites A sua soluccedilatildeo consiste em rejeitar a premissa quantificada sem
com isso aceitar a sua negaccedilatildeo Na versatildeo para ldquocarecardquo a premissa
quantificada era foralln (CanrarrCan+1) Nenhuma instacircncia dessa premissa seraacute
falsa de modo que ela proacutepria natildeo seraacute falsa Por outro lado algumas
instacircncias seratildeo indefinidas dado que teratildeo antecedente e consequente
indefinidos Lembre-se de acordo com a Teoria Trivalente o predicado
ldquocarecardquo admite uma penumbra um conjunto de casos aos quais a sua
aplicaccedilatildeo eacute indefinida Eacute plausiacutevel supor que para algum n tanto Can
quanto Can+1 seratildeo indefinidas e nesse caso a condicional CanrarrCan+1 seraacute
tambeacutem indefinida Ora uma afirmaccedilatildeo universal com nenhuma instacircncia
falsa e algumas indefinidas eacute ela mesma indefinida Logo a premissa
quantificada eacute indefinida Assim Tye consegue rejeitar a premissa
quantificada sem precisar assumir que ela seja falsa e portanto sem
precisar aceitar a sua negaccedilatildeo
Teoria Trivalente e o Criteacuterio da Precisatildeo
Vimos que uma teoria ideal da vagueza satisfaria trecircs criteacuterios
resolver o Paradoxo Sorites natildeo implicar que os predicados vagos satildeo
incoerentes e natildeo implicar que eles satildeo precisos Na seccedilatildeo anterior vimos
que a Teoria Trivalente fornece uma resposta ao Sorites Aleacutem disso estaacute
claro que ela natildeo implica que os predicados vagos satildeo incoerentes Seu
principal problema eacute com o criteacuterio da precisatildeo
Na concepccedilatildeo tradicional o domiacutenio de um predicado eacute dividido em
uma extensatildeo positiva e uma negativa e todo objeto do domiacutenio estaacute ou
em uma ou na outra Supondo que o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo seja
o domiacutenio das pessoas cada pessoa ou estaacute na extensatildeo positiva ou estaacute
na extensatildeo negativa de ldquocarecardquo Isso implica que uma sequecircncia para
Sagid Salles | 195
ldquocarecardquo seria dividida de modo a haver um nuacutemero n tal que uma pessoa
com n fios eacute careca e uma pessoa com n+1 natildeo eacute O resultado pode ser
representado como segue
Extensatildeo Positiva Extensatildeo negativa
|a0 a1 a2 a3 an | an+1 an+2hellip an+m|
Verdadeiro Falso
Fica evidente que na concepccedilatildeo acima ldquocarecardquo eacute um predicado
preciso Existe um uacuteltimo caso ao qual ldquocarecardquo se aplica e um primeiro
caso ao qual natildeo se aplica A Teoria Trivalente evita isto por meio da
postulaccedilatildeo de uma penumbra entre a extensatildeo positiva e a negativa O
resultado pode ser representado como segue
Ext Positiva Penumbra Ext negativa
|a0 a1 an | an+1an+m | an+m+1 an+m+k|
Verdadeiro Indefinido Falso
Esta imagem no entanto natildeo evita o problema da anterior Eacute
verdade que a Teoria Trivalente eacute capaz de separar os casos nos quais a
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo gera uma verdade dos casos nos quais ela gera uma
falsidade Existe um uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo na sequecircncia an e
existe um primeiro caso negativo an+m+1 Entre eles contudo haacute um
conjunto de casos nos quais a aplicaccedilatildeo gera o valorlacuna indefinido
Chamemos-lhes de ldquocasos indefinidosrdquo Nada disso evita a consequecircncia
de que predicados vagos satildeo precisos Na imagem acima o predicado
ldquocarecardquo continua cortando a sequecircncia de forma ciruacutergica A uacutenica
diferenccedila relevante eacute que ao inveacutes de haver apenas uma fronteira ndash a
fronteira entre os casos positivos e negativos ndash agora haacute duas fronteiras a
fronteira positivoindefinido e a fronteira indefinidonegativo O item an eacute
o uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo seu vizinho imediato an+1 eacute o primeiro
caso indefinido Portanto haacute uma fronteira precisa entre os casos positivos
e os casos indefinidos de ldquocarecardquo O item an+m eacute o uacuteltimo caso indefinido
e seu vizinho imediato an+m+1 eacute o primeiro negativo Portanto haacute tambeacutem
uma fronteira precisa entre os casos indefinidos e os negativos de ldquocarecardquo
196 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Comeccedilamos com uma fronteira e terminamos com duas Ao inveacutes de
ldquocarecardquo cortar o seu domiacutenio cirurgicamente em um ponto corta em dois
A Teoria Trivalente natildeo satisfaz o criteacuterio da precisatildeo
O resultado acima eacute que a Teoria Trivalente implica que os
predicados vagos satildeo de fato precisos Assumindo a intuiccedilatildeo de que ser
preciso e ser vago satildeo propriedades incompatiacuteveis o resultado eacute que as
expressotildees aparentemente vagas natildeo satildeo realmente vagas Isso ainda nos
deixaria com o que chamei de ldquoproblema fundacional da precisatildeordquo
(SALLES 2016 p 163) Se os predicados vagos satildeo precisos entatildeo como a
sua extensatildeo eacute determinada Essa pergunta eacute ainda mais difiacutecil de ser
respondida pela Teoria Trivalente do que pela concepccedilatildeo tradicional
Afinal agora temos de explicar como cada uma das duas fronteiras de
ldquocarecardquo por exemplo eacute determinada Nossos usos desse predicado seriam
refinados o bastante para estabelecer um corte entre os casos
positivoindefinidos e outro entre os indefinidonegativos de ldquocarecardquo
No que segue considero duas respostas disponiacuteveis ao defensor da
Teoria Trivalente A primeira sustenta que o erro do argumento acima eacute
supor que todos os objetos do domiacutenio de aplicaccedilatildeo do predicado ou estatildeo
na extensatildeo positiva ou estatildeo na negativa ou estatildeo na penumbra Natildeo se
trata aqui de aumentar ainda mais o nuacutemero de fronteiras Pelo
contraacuterio o ponto eacute questionar que soacute existam aquelas trecircs opccedilotildees sem
no entanto afirmar que existam mais Essa eacute a estrateacutegia de Tye (1994 p
195) para quem devemos assumir o seguinte
bull Os predicados vagos admitem casos positivos indefinidos e negativos e natildeo
existe uma questatildeo de fato acerca de se esses satildeo ou natildeo os uacutenicos casos
A tese acima natildeo afirma que existem mais do que as trecircs opccedilotildees
consideradas Mas ela impede que suponhamos que existam somente as
trecircs Uma vez que o argumento contra a Teoria Trivalente depende dessa
suposiccedilatildeo ele falha
O argumento de Tye a favor dessa tese eacute como segue Considere a
pergunta existem apenas trecircs opccedilotildees Suponha que sim Nesse caso
Sagid Salles | 197
como vimos o predicado ldquocarecardquo eacute preciso Suponha que natildeo Nesse caso
existe ainda uma quarta opccedilatildeo Pode-se entatildeo perguntar satildeo essas quatro
opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo caiacutemos no mesmo problema de antes e
predicados vagos seratildeo de fato precisos Se natildeo entatildeo precisaremos de
uma quinta opccedilatildeo Satildeo as cinco opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo predicados
vagos satildeo precisos Se natildeo entatildeo precisamos de uma sexta opccedilatildeo e assim
por diante Por um lado natildeo eacute verdade que existam apenas trecircs opccedilotildees
pois isso implica que predicados vagos satildeo precisos Por outro natildeo eacute falso
que existam apenas trecircs opccedilotildees pois isso implica em esquisitices
metafiacutesicas (o proacuteprio quarto valor) ou regresso ao infinito Conclusatildeo
natildeo haacute uma questatildeo de fato sobre se existe ou natildeo uma quarta opccedilatildeo Isso
pode ser expresso dizendo-se que eacute em si mesmo indefinido se ou natildeo
existem apenas trecircs opccedilotildees
Keefe (2000 p 121) apresenta uma objeccedilatildeo que me parece decisiva
contra o argumento acima Podemos explicitar o argumento de Tye como
segue
α Natildeo eacute verdadeiro que existem apenas trecircs opccedilotildees
β Natildeo eacute falso que existem apenas trecircs opccedilotildees
γ Logo eacute indefinido se existem apenas trecircs opccedilotildees
Como (γ) se segue de (α) e (β) Suponha por exemplo que existe
uma quarta opccedilatildeo indefinido Nesse caso o maacuteximo que poderiacuteamos
concluir a partir de (α) e (β) eacute que eacute indefinido ou indefinido que existem
apenas trecircs opccedilotildees De fato para que a inferecircncia de (γ) no argumento
acima seja permitida eacute preciso que haja apenas trecircs opccedilotildees verdadeiro
falso e indefinido Para mostrar que eacute indefinido que existem apenas trecircs
opccedilotildees Tye assume justamente que existem apenas trecircs opccedilotildees No fim
das contas Tye assume aquilo que pretende rejeitar
Mark Richard (2009 p 476) sustenta que o erro do argumento contra
a Teoria Trivalente estaacute em assumir que existe um uacuteltimo caso positivo de
ldquocarecardquo e um primeiro caso indefinido A sua resposta passa pelas noccedilotildees
de penumbra e indefinido Primeiro ele adota uma concepccedilatildeo linguiacutestica do
198 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que eacute para um predicado possuir uma penumbra Seguindo Soames um
predicado possui uma penumbra quando haacute objetos que nem satisfazem as
condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo
mal-sucedida3 Se Joatildeo estaacute na penumbra de ldquocarecardquo entatildeo as condiccedilotildees de
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo nada dizem sobre se ele deve ser incluiacutedo na extensatildeo
positiva ou na extensatildeo negativa desse predicado Como as condiccedilotildees de
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo natildeo determinam em qual lado estaacute Joatildeo eacute indefinido
se (1) eacute verdadeira ou falsa Por outras palavras (1) eacute indefinida (Richard
prefere indeterminada) Segundo indefinido natildeo eacute entendido como um
terceiro valor de verdade Nessa concepccedilatildeo soacute existem dois valores de
verdade mas pode estar indefinido qual deles uma frase tem
Agora o argumento procede como segue Uma vez que an+1estaacute na
penumbra de ldquocarecardquo natildeo estaacute definido se ele eacute careca ou natildeo Mas se natildeo
estaacute definido se an+1 eacute careca ou natildeo entatildeo natildeo podemos assumir que aneacute
o uacuteltimo caso de ldquocarecardquo na sequecircncia Por outro lado tambeacutem natildeo
podemos assumir que an natildeo seja o uacuteltimo item careca da sequecircncia Pois
soacute poderiacuteamos assumir isso se estivesse definido que o proacuteximo item an+1
eacute careca Mas isso tambeacutem estaacute indefinido Portanto natildeo haacute um caso que
possamos justificadamente apontar como sendo o uacuteltimo caso positivo de
ldquocarecardquo Um argumento similar nos permitiria mostrar que tambeacutem natildeo
haacute um que possamos apontar como sendo o primeiro caso negativo de
ldquocarecardquo Tatildeo logo entendemos corretamente no que consiste ser
indefinido se um item eacute ou natildeo careca percebemos que ldquocarecardquo natildeo
estabelece fronteiras e portanto natildeo eacute preciso
Natildeo acredito esse argumento evite a violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo
Mesmo aceitando tudo que foi dito continua sendo o caso de ldquocarecardquo
3 Haacute diferenccedilas entre Soames e Richard no que diz respeito ao mecanismo que faz com que um predicado acabe por ter uma penumbra De acordo com Soames isso ocorre porque o predicado (i) tem condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) essas condiccedilotildees satildeo mutuamente exclusivas mas (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas Richard (2009 p 465-467) pensa que essa definiccedilatildeo natildeo eacute boa o bastante para justificar uma lacuna entre os dois valores claacutessicos de verdade propondo uma pequena modificaccedilatildeo De acordo com ele um predicado ldquoFrdquo tem uma penumbra quando (i) tem um conjunto C de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) tem um conjunto Crsquo de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) C e Crsquo satildeo mutuamente exclusivas e (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas
Sagid Salles | 199
cortar o seu domiacutenio de forma precisa em trecircs partes Retorne agrave imagem
acima da divisatildeo tripartida do domiacutenio de ldquocarecardquo O item an eacute o uacuteltimo
para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo se aplica enquanto an+1 eacute o primeiro
para o qual estaacute indefinido Haacute uma fronteira precisa entre os casos
definidos e os indefinidos de ldquocarecardquo Do mesmo modo an+m eacute o ultimo
caso para o qual estaacute indefinido se ldquocarecardquo se aplica ou natildeo e an+m+1 eacute o
primeiro caso para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo natildeo se aplica Haacute uma
fronteira precisa entre os casos indefinidos e os definidos de ldquonatildeo-carecardquo
Novamente temos duas fronteiras precisas onde deveria haver nenhuma
O proacuteprio Richard reconhece essa objeccedilatildeo e apela a uma soluccedilatildeo
epistecircmica para a mesma (2009 p 476-477) Apesar dos predicados vagos
possuiacuterem fronteiras no sentido acima frequentemente natildeo eacute possiacutevel
para noacutes sabermos onde ela se situa Nesse caso natildeo eacute claro se natildeo seria
mais plausiacutevel rejeitar de uma vez por todas a Teoria Trivalente e aceitar
a Teoria Epistecircmica em seu lugar Seja como for essa soluccedilatildeo aceita a
violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo
Conclusatildeo
A principal conclusatildeo deste texto eacute que embora a Teoria Trivalente
satisfaccedila os criteacuterios do Sorites e da coerecircncia tem claros problemas em
satisfazer o criteacuterio da precisatildeo Em todo caso estou convencido de que
satisfazer a todos os trecircs criteacuterios eacute algo dificiacutelimo e que as outras teorias
tradicionais da vagueza (Gradualismo Supervalorativismo Incoerentismo
Epistemicismo etc) tambeacutem falham em satisfazer pelo menos algum deles
Se isso estiver correto fica em aberto a possibilidade de a Teoria Trivalente
ainda ser a nossa melhor opccedilatildeo Afinal nem sempre a melhor opccedilatildeo de que
dispomos eacute a opccedilatildeo ideal Por outro lado se houver uma teoria que satisfaccedila
conjuntamente a todos os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente
estaraacute em desvantagem quanto a mesma Eu de fato penso que exista tal
teoria mas essa eacute uma histoacuteria para outro momento
200 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Referecircncias
BURNNYEAT M F Gods and heaps In SCHOFIELD M NUSSBAUM M C Language
and logos Cambridge University Press 1982 p 315-338
GLANZBERG M Against truth-value gaps In BEALL J Liars and leaps Oxford
University Press 2003 p 151-194
GRAFF D Shifting sands an interest-relative theory of vagueness Philosophical Topics
v 28 n1 p 45-81 2000
HYDE D The sorites paradox In RONZITTI G Vagueness a guide Springer Science amp
Business Media 2011 p 1-17
KEEFE R Theories of vagueness Cambridge University Press 2000
KLEENE S C Introduction to metamathematics American Elsevier Publishing
Company 1952
MACHINA K F Truth belief and vagueness Journal of Philosophical Logic v 5 p 47-
78 1976
RICHARD M Indeterminacy and truth value gaps In DIETZ R MORUZZI S Cuts and
clouds Oxford University Press 2009
SALLES S O problema da vagueza Fundamento n 12 p 139-174 2016
SANTOS R Vagueza In BRANQUINHO J SANTOS R (Eds) Compecircndio em linha de
problemas de filosofia analiacutetica Lisboa 2015 p 1-18
SOAMES S Vagueness partiality and the sorites paradox In Understanding truth
Oxford University Press 1999 p 203-227
TYE M Sorites paradoxes and the semantics of vagueness Philosophical Perspectives
v8 (Logic and Language) p 189-206 1994
WILLIAMSON T Vagueness Routledge 1994
12
O Leibniz de Deleuze
Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido1
William de Siqueira Piauiacute 2
Introduccedilatildeo
O que gostariacuteamos ao menos de comeccedilar a fazer em nosso mini-curso
eacute semelhante ao que fez Derrida em ldquoCogito e Histoacuteria da Loucurardquo
(Escritura e diferenccedila de 1967) com o trabalho exegeacutetico realizado por
Foucault quando este havia tentado localizar nas Meditaccedilotildees de Descartes
uma recusa ou exclusatildeo criticaacutevel da loucura tratava-se de mostrar que
um especialista em modernidade naquele momento jaacute autor de As
palavras e as coisas (de 1966) podia natildeo ter compreendido corretamente
o texto cartesiano acusaccedilatildeo grave e que por isso exigia natildeo soacute um novo
trabalho exegeacutetico do texto em questatildeo mas tambeacutem a explicitaccedilatildeo dos
pontos mais importantes e o centro da argumentaccedilatildeo da hipoacutetese
interpretativa a ser criticada3 Assim em termos comparativos o que
pretendemos mostrar eacute quais seriam os pontos principais e mesmo o
1 Texto-aula do minicurso que de iniacutecio tinha o nome O Leibniz de Deleuze problemas de exegese ministrado no IV Encontro Linguagem e Cogniccedilatildeo realizado junto agrave 8ordf Bienal Internacional do Livro de Alagoas em outubro de 2017 texto que com algumas alteraccedilotildees serviu de base para a palestra Deleuze e a noccedilatildeo leibniziana de sujeito apresentada no III Congresso Ibero-americano Leibniz realizado na Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Curitiba em novembro de 2017 palestra que foi um desenvolvimento das hipoacuteteses interpretativas que levantamos no V Encontro do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporacircneo realizado em junho de 2017 na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
2 Professor do Departamento de Filosofia (DFL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) E-mail piauiuspgmailcom
3 E nos parece que Derrida faz o mesmo com Jean-Pierre Vernant em Khora cf por exemplo 1995 p 7
202 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
centro do trabalho exegeacutetico de Deleuze com relaccedilatildeo a Leibniz mostrar
que mesmo um ldquoespecialistardquo do seu quilate pode natildeo ter compreendido
bem a filosofia leibniziana ao fazer uma apropriaccedilatildeo elogiosa poreacutem
equivocada principalmente dos seus conceitos de mocircnada individual ou
substacircncia particular Deus mundo corpo e principalmente ao defender a
necessidade de certo deslocamento que corroboraria a hipoacutetese que
Leibniz teria ido muito longe naquilo que o francecircs compreendia como
gecircnese estaacutetica ontoloacutegica etapa fundamental de sua Loacutegica do sentido
obra que seraacute nosso principal ponto de partida Do nosso ponto de vista eacute
o que estaacute em jogo principalmente no seguinte trecho de sua 16ordf seacuterie
Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada
mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente
compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia dos
predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo expresso
natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas mocircnadas como
a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos verdade entretanto
que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas [ou seja Deus criou natildeo
exatamente Adatildeo-pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou] e [tambeacutem eacute
verdade] que o expresso natildeo se confunde com sua expressatildeo mas insiste ou
subsiste [] Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na
filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na mocircnada
expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo expresso e
esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo
as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma
loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e
da verdade Leibniz foi muito longe nesta primeira etapa da gecircnese [de um
certo campo transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades
entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentais o indiviacuteduo
constituiacutedo como centro de envolvimento como envolvendo singularidades
em um mundo e sobre seu corpo (DELEUZE 2003 p 114-5 grifo nosso)
Do nosso ponto de vista natildeo eacute necessaacuterio afirmar o deslocamento
defendido por Deleuze que corroboraria a obrigatoriedade do
encadeamento de I a III e natildeo do seu contraacuterio Em nossa opiniatildeo a
apropriaccedilatildeo equivocada da filosofia leibniziana fica mais evidente
William de Siqueira Piauiacute | 203
especialmente em parte do trabalho exegeacutetico que Deleuze faz do Discurso
de metafiacutesica em associaccedilatildeo com a Correspondecircncia de Leibniz e de
Arnauld dos sect408 sect409 e sect414 da Teodiceia na menccedilatildeo natildeo explicitada
de parte do sect47 da quinta carta da Correspondecircncia Leibniz Clarke ndash
que faz a base da noccedilatildeo de coexistecircncia ndash e inclusive no alcance que supocircs
do texto ldquoSobre o meacutetodo da universalidaderdquo ndash o que seraacute mantido em A
dobra ndash ao mencionar um suposto uso geral que Leibniz faria da noccedilatildeo de
ldquosigno ambiacuteguordquo e principalmente para defender que por conta de seu
antigeneralismo o alematildeo forneceria as bases para pensarmos um ldquocampo
transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades
entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentaisrdquo Para noacutes
Deleuze teria criado dado o uso que supocircs dos atributos verbais uma
ficccedilatildeo falsa a la Lorenzo Valha que se sobrepotildee ao que de fato eacute afirmado
no final da Teodiceia ndash talvez por ter decidido parar em seu sect408 ou pela
excessiva importacircncia que conferiu a uma parte de seu sect414 Tudo
apontando para uma aproximaccedilatildeo excessiva entre Leibniz e Newton
inclusive a partir de certa caracterizaccedilatildeo de um mundo expresso feito de
relaccedilotildees diferenciais e de singularidades adjacentes que acabariam por
conduzir a uma dinacircmica sem causa proacutexima
Quanto aos motivos que nos levam a rever a leitura de Deleuze jaacute haacute
tantos anos publicada e criticada temos que dizer que eles satildeo de caraacuteter
regional recentemente em 2015 vimos publicado no Brasil a traduccedilatildeo do
livro de Alain Badiou A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX que
conteacutem um capiacutetulo de tiacutetulo ldquoGilles Deleuze Sobre A dobra Leibniz e o
barrocordquo e a publicaccedilatildeo em 2016 do excelente artigo de Gonzalo
Montenegro ldquoDeleuze em diaacutelogo com Freacutemont tentativas de ler Leibnizrdquo
tais textos deixam claro que ainda haacute muito que problematizar quanto agraves
interpretaccedilotildees de Deleuze mesmo quanto agrave sua afirmaccedilatildeo que
permanecemos leibnizianos e eacute com esse trabalho que gostariacuteamos de
contribuir voltando especialmente ao texto que serviu de base para A
dobra Mesmo natildeo desconsiderando o ldquobrilhantismordquo ou a ldquogenialidaderdquo
da interpretaccedilatildeo do francecircs ndash o que tenta nos mostrar Badiou ndash para que
204 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
o leitor natildeo se engane quanto ao nosso ponto de vista de fundo fazendo
outros caminhos estamos mais de acordo com grande parte das objeccedilotildees
que Freacutemont fez agrave leitura deleuziana especialmente se tomarmos a Loacutegica
do sentido como ponto de partida inclusive consideramos a pertinecircncia
daquelas objeccedilotildees como o motivo mais forte para a obra A dobra ter
demorado vinte anos para ser confeccionada Para noacutes em termos de
comentaacuterio de obra a leitura de Fremoacutent eacute muito mais bem fundamentada
e corresponde mais apropriadamente com o que o texto leibniziano
permitiria concluir principalmente se natildeo aceitarmos o deslocamento
exigido em a Loacutegica do sentido ou se recusamos a inversatildeo do caminho
argumentativo da Monadologia bases da argumentaccedilatildeo defendida em A
dobra de qualquer modo natildeo nos parece que Gonzalo deixa claro com que
interpretaccedilatildeo estaria mais de acordo Eacute por aiacute portanto que caminharaacute
nossa tentativa de problematizar o trabalho interpretativo feito na Loacutegica
do sentido e que em grande medida prepara todo o trabalho realizado em
A dobra Por fim e em termos da leitura de Badiou mesmo que estejamos
de acordo com a opiniatildeo que A dobra eacute ldquoum livro rarordquo ldquoadmiraacutevelrdquo e que
ldquopropotildee-nos uma visatildeo e um pensamento do nosso mundordquo pretendemos
ainda uma vez voltar agraves querelas genealoacutegicas agrave agrimensura dos textos
especialmente daquele que lanccedila as bases da argumentaccedilatildeo defendida em
A dobra quem sabe tal empreitada nos permita recolocar a pergunta o
que vemos como ou pensamos ser o nosso mundo
I Parte ndash Entre Literatura Psicanaacutelise Linguiacutestica e Loacutegica Deleuze
de Loacutegica do Sentido e a Filosofia Contemporacircnea
Como nos diz Pierre Franccedilois Marietti (HUISMAN 2001 p 255) em
geral se costuma distinguir trecircs periacuteodos da filosofia do francecircs Gilles
Deleuze (1925-1995) O primeiro entre 1953 ou 52 e 1968 que
compreenderia a produccedilatildeo de vaacuterios trabalhos sobre filoacutesofos e literatos
o periacuteodo das monografias tais como sobre Hume em Hume sua vida e
sua obra de 1952 e em Empirismo e subjetividade de 1953 sobre
William de Siqueira Piauiacute | 205
Nietzsche em Nietzsche e a filosofia de 1962 ou simplesmente Nietzsche
de 1965 sobre Proust em Proust e os signos de 1964 sobre Bergson em
Bergsonismo de 1966 sobre Espinosa em Espinosa ou o problema da
expressatildeo de 1968 ano que marcaria o final deste periacuteodo O segundo
periacuteodo 1968-1972 teria iniacutecio com as produccedilotildees mais autocircnomas e
propriamente filosoacuteficas de Deleuze tais como os volumosos Diferenccedila e
repeticcedilatildeo de 1968 e Loacutegica do sentido de 1969 Mas eacute preciso dizer que
aquele primeiro tipo de produccedilatildeo caracteriacutestico do primeiro periacuteodo natildeo
seraacute abandonado e seratildeo produzidas dentre outras mais duas obras sobre
Espinosa (em 1970 e 1981) a obra Foucault de 1986 e a famosa A dobra
Leibniz e o Barroco de 1988 (publicado quase 20 anos depois de a Loacutegica
do sentido e que foi o resultado de aulas dadas nos anos 80 86 e 87)
Tambeacutem nesse periacuteodo se intensificaratildeo seus estudos sobre psicanaacutelise e
literatura isto eacute a produccedilatildeo das obras escritas em parceria com o
psicanalista Feacutelix Guattari (1930-1992) tais como O anti-Eacutedipo e mesmo
Kafka por uma literatura menor ambas de 1972 o primeiro estudo
marca o iniacutecio do que se costuma chamar de a grande ruptura que
certamente faz o pano de fundo de obras como O que eacute filosofia jaacute de
1991 e Criacutetica e Cliacutenica de 1997 este uacuteltimo publicado jaacute dois anos depois
da morte de Deleuze
Dito isso e como jaacute o indicamos a obra principal sobre a qual
falaremos neste minicurso seraacute a Loacutegica do sentido praticamente o tema
da nossa III Semana de Filosofia da Linguagem4 obra que foi publicada
em 1969 e que faria parte daquele segundo periacuteodo obra que segundo
Marietti mais que Diferenccedila e repeticcedilatildeo ldquoextrapola em muito os cacircnones
universitaacuterios vigentes na eacutepoca com seu interesse pelas meninasrdquo pelos
poetas ldquoe pelos esquizofrecircnicosrdquo ndash certamente uma referecircncia agrave 13ordf seacuterie
do livro ndash ldquocomrdquo completa ele uma ldquoreflexatildeo profunda sobre a linguagem
e a literaturardquo (HUISMAN 2001 p 255) e acrescentariacuteamos uma reflexatildeo
sobre o estruturalismo e ainda mais especifica sobre a loacutegica a qual
4 Evento ocorrido no DFL-UFS em marccedilo de 2017 e que teve por tema ldquoGilles Deleuze Loacutegica e Sentidordquo onde tambeacutem ministramos um minicurso sobre a Loacutegica do sentido
206 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
acompanharaacute Deleuze certamente ateacute o final de sua vida como o
comprova o capiacutetulo II (Prospectos e Conceitos) da parte II (Filosofia
Ciecircncia Loacutegica e Arte) do livro escrito em parceria com Guattari O que eacute
filosofia
O que extrapola os cacircnones universitaacuterios vigentes certamente natildeo
se associa somente a certas figuras que despertam o interesse de Deleuze
mas o proacuteprio assunto e a forma como ele seraacute exposto ou como nos diz
o proacuteprio tratar-se-aacute da ldquoconstituiccedilatildeo paradoxal da teoria do sentidordquo
teoria que seraacute apresentada em 34 seacuteries (espeacutecie de capiacutetulos) que
receberatildeo mais 2 apecircndices subdivididos em 5 tiacutetulos seacuteries em que
veremos a elaboraccedilatildeo de uma espeacutecie de histoacuteria ldquouma lsquohistoacuteria
embrulhadarsquordquo por fim a obra seraacute apresentada como um ldquoensaio de
romance loacutegico e psicanaliacuteticordquo Falar de loacutegica a partir do gecircnero
romance misturando tal tema com psicanaacutelise e ensaiando compor uma
histoacuteria embrulhada obra em que em muitos de seus capiacutetulos tratam do
tema ldquoparadoxordquo certamente tambeacutem significava extrapolar os cacircnones
universitaacuterios vigentes basta pensarmos em obras sobre loacutegica ou
linguagem como as de Frege (a Conceitografia por exemplo) Russell
(Principia mathematica) Carnap (Da construccedilatildeo loacutegica do mundo)
Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) Husserl (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e mesmo a de Heidegger (Princiacutepios metafiacutesicos da loacutegica) ou
Merleau-Ponty (A prosa do mundo) ou ainda a de Foucault (As palavras
e as coisas uma arqueologia das ciecircncias humanas) e de Derrida
(Gramatologia) para imaginarmos quatildeo grande era aquela extrapolaccedilatildeo
Toda essa extrapolaccedilatildeo ou abandono daquele rigor claacutessico rigor
ainda presente segundo Marietti em Diferenccedila e repeticcedilatildeo jaacute garantiria
um lugar de destaque agrave obra Loacutegica do sentido junto agrave filosofia
contemporacircnea ou dos modernos como quer Badiou o que seraacute
intensificado pela valorizaccedilatildeo de um tipo de filosofia que jaacute tinha aceitado
a ponto de se misturar com elas seja a intromissatildeo da literatura seja a da
psicanaacutelise seja a da linguiacutestica Quanto agrave uacuteltima eacute faacutecil perceber a
importacircncia natildeo costumeiramente afirmada em livros de loacutegica que
William de Siqueira Piauiacute | 207
assumiratildeo as consideraccedilotildees de um Benveniste (de Problemas de
linguiacutestica geral por exemplo) de Jakobson (de dentre outros ldquoO signo
zerordquo) e mesmo que indiretamente de Sausurre (de Curso de linguiacutestica
geral) para a elaboraccedilatildeo das ldquotrecircs relaccedilotildees distintas da proposiccedilatildeo
(designaccedilatildeo ou indicaccedilatildeo manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo) tema da 3ordf seacuterie
Mais do que isto a contribuiccedilatildeo geral da linguiacutestica e estruturalismo seratildeo
enunciadas na 12ordf seacuterie do seguinte modo
Os autores que se costuma atualmente chamar de estruturalistas [tais como
Benveniste e Jakobson] natildeo tecircm talvez outro ponto em comum ndash poreacutem
essencial ndash aleacutem do seguinte o sentido natildeo como aparecircncia mas como efeito
de superfiacutecie e de posiccedilatildeo produzido pela circulaccedilatildeo da casa vazia nas seacuteries
da estrutura [le sens non pas du tout comme apparence mais comme effet de
surface et de position produit par la circulation de la case vide dans les seacuteries
de la structure] ([] significante flutuante valor zero cantonada ou causa
ausente etc) O estruturalismo conscientemente ou natildeo celebra novos
achados de inspiraccedilatildeo estoica ou carrolliana [] (DELEUZE 2003 p 73-4
grifo nosso)
Ora natildeo eacute o elogio de tipo semelhante que veremos em muitos outros
filoacutesofos contemporacircneos Ao menos podemos dizer que eacute o caso
inclusive dito de modo muito semelhante de Derrida em Escritura e
diferenccedila especialmente no capiacutetulo ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo E a noccedilatildeo do
sentido como superfiacutecie certamente marca uma das viradas mais
conscientemente assumidas e feita jaacute no iniacutecio de a Loacutegica do sentido ou
seja na atualidade ou a partir daqueles achados o ldquoProfundo deixou de
ser um elogiordquo (Idem p 16) Eacute preciso pois se aproximar da filosofia da
literatura ou da arte da psicologia ou psicanaacutelise das teorias da linguagem
ou dos estruturalismos que natildeo simulam mais a profundidade e vivem dos
incorporais ou da superfiacutecie Jaacute antecipamos que a obra buscaraacute
justamente tornar mais explicito e de modo talvez mais consciente o que
a literatura produzida por Carroll e a filosofia produzida pelos Estoicos
podem nos inspirar mas voltemos ao que diziacuteamos
208 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Haacute outros dois tipos de produccedilatildeo que jaacute haviam aceitado se
embrulhar na investigaccedilatildeo do sentido associada agrave superfiacutecie Deleuze natildeo
procura em Nietzsche ldquoum profeta da reviravolta nem da superaccedilatildeordquo nem
em Freud ldquoum explorador da profundidade humanardquo pois
Se haacute um autor para o qual a morte de Deus a queda em altura do ideal
asceacutetico natildeo tem nenhuma importacircncia enquanto eacute compensada pelas falsas
profundidades do humano maacute consciecircncia e ressentimento eacute sem duacutevida
Nietzsche [] Natildeo procuramos em Freud um explorador da profundidade
humana e do sentido originaacuterio mas o prodigioso descobridor da maquinaria
do inconsciente[ e vale lembrar que o paradoxo eacute a potecircncia do inconsciente]5
por meio do qual o sentido eacute produzido sempre produzido em funccedilatildeo do natildeo-
senso [] O que haacute de burocraacutetico nestas maacutequinas fantasmas que satildeo os
povos e os poemas [] Basta que nos dissipemos um pouco que saibamos
estar na superfiacutecie que estendamos nossa pele como um tambor para que a
ldquogrande poliacuteticardquo comece [] Fazer circular a casa vazia e fazer falar as
singularidades pre-individuais e natildeo pessoais [faire parler las singulariteacutes preacute-
individuelles non personnelle] [que natildeo satildeo nem da ordem do geral nem da
ordem do individual nem pessoais nem universais] em suma produzir o
sentido eacute a tarefe de hoje (Idem p 75-6)
Nenhuma novidade quanto agrave menccedilatildeo a Nietzsche e Freud geste que
tambeacutem lembraraacute Derrida em ldquoLa diffeacuterancerdquo6 trata-se de autores
fundamentais para pensar filosofia contemporacircnea ao menos a produzida
no continente Mantermo-nos na superfiacutecie naquele algo que insiste em
subsistir deixar de elogiar o profundo compreender ao menos em termos
gerais o que pretendiam os estruturalistas bem como Nietzsche e Freud
fazer comeccedilar a grande poliacutetica (incluiriacuteamos tambeacutem aiacute a justiccedila) e natildeo
apenas relembrar ou comentar mas produzir o sentido satildeo portanto as
tarefas da filosofia contemporacircnea defendida por Deleuze em Loacutegica do
sentido Mas assim como ao seu modo os Estoicos natildeo realizaram tal
tarefa eacute preciso estar atento ao fato que para Deleuze tambeacutem Nietzsche
teria se desviado dela ou como ele mesmo nos dizia
5 Cf op cit p 82
6 Cf Margens da filosofia 1991 p 49
William de Siqueira Piauiacute | 209
Nietzsche esteve primeiramente entre estes [Boehme Schelling etc] disciacutepulo
de Schopenhauer no Nascimento da trageacutedia quando ele faz falar Dioniacutesio
sem fundo opondo-o agrave individuaccedilatildeo divina de Apolo e natildeo menos agrave pessoa
humana de Soacutecrates [] Assim a descoberta de Nietzsche estaacute alhures[ em
outro lugar em outra parte] quando tendo se livrado de Schopenhauer e de
Wagner explora um mundo de singularidades impessoais e preacute-
individuais [un monde de singulariteacutes impersonnelles et preacute-individuelles]
mundo que chama agora de dionisiacuteaco ou da vontade de potecircncia energia livre
e natildeo ligada [] Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que
trata o sentido enfim natildeo como predicado [ou] como propriedade mas
como acontecimento [traite le sens enfin non pas comme preacutedicat comme
proprieacuteteacute mais comme eacuteveacutenement] [] Na sua descoberta Nietzsche entreviu
como em um sonho o meio de pisar a [superfiacutecie da] terra de roccedilaacute-la de
danccedilar e de trazer de volta agrave superfiacutecie o que restava dos monstros do fundo e
das figuras do ceacuteu Mas eacute verdade que ele foi tomado por uma ocupaccedilatildeo mais
profunda mais perigosa tambeacutem na sua descoberta ele viu um novo meio de
explorar o fundo [] correndo o risco de ser tragado por essa profundidade
(Idem p 110 grifo nosso)
Em sua avaliaccedilatildeo da filosofia nietzscheana embalado pela renovaccedilatildeo
da filosofia que ela sugeria Deleuze menciona uma espeacutecie de condiccedilatildeo da
tarefa fundamental de sua teoria do sentido ou seja aquele ldquoestranho
discursordquo deve nos conduzir a tratar ldquoo sentido enfim natildeo como
predicadordquo ou ldquocomo propriedade mas como acontecimentordquo para entatildeo
explorarmos ldquoum mundo de singularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo
inspiraccedilatildeo expliacutecita do Nietzsche de Nascimento da trageacutedia mas claro
tambeacutem que a noccedilatildeo freudiana de inconsciente e limite dado seu elemento
paradoxal limite do horizonte de saber (e talvez a grande poliacutetica e a
justiccedila tivessem justamente que assumir tal pressuposto) inclusive recusa
da profundidade das filosofias da intencionalidade satildeo fundamentais aqui
E vale repetir fonte inclusive da estranheza de seu discurso e que parece
ser a principal responsaacutevel pela distacircncia que separa ldquocontinentaisrdquo e
ldquoanaliacuteticosrdquo Nietzsche teria sonhado com o outro aspecto fundamental das
filosofias contemporacircneas que se embaralham com o problema do
significado e sentido o sentido natildeo deve ser tratado como predicado como
210 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
propriedade mas como acontecimento como eacuteveacutenement conceito
fundamental das filosofias e teorias da linguagem contemporacircneas
especialmente as continentais Tambeacutem eacute por causa deste aspecto que se
exigiraacute toda uma nova maneira de pensar a loacutegica do sentido que por isso
mesmo deveraacute ultrapassar aquelas trecircs relaccedilotildees distintas na proposiccedilatildeo
e seraacute especialmente associada agrave primeira a da designaccedilatildeo que Deleuze
formularaacute o problema mais geral de tal loacutegica
[] de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro agrave do sentido se fosse
para encontrar entre o sentido e o natildeo-senso [le sens et non-sens] uma relaccedilatildeo
anaacuteloga agrave do verdadeiro e do falso () A loacutegica dos sentidos vecirc-se
necessariamente determinada a colocar entre sentido e o natildeo-senso um tipo
original de relaccedilatildeo intriacutenseca um modo de co-presenccedila [] (Idem p 71)
Muitos foram os autores que esbarraram neste problema ou seja o
de determinar um novo e original tipo de relaccedilatildeo que permitisse
diferenciar de uma vez por todas os problemas de significaccedilatildeo ou
relacionados diretamente ao verdadeiro e falso dos de sentido e que ao
menos em termo de designaccedilatildeo adotaram ao menos a postura de aceitar
sua complexidade e dificuldade nem perto da radicalidade de um Deleuze
evidentemente foi esse o caso de Bertrand Russell em Significaccedilatildeo e
verdade7 em que afrontou dentre outras a noccedilatildeo de Carnap de sentido-
significado seja como for a descoberta da necessidade de um novo e
original tipo de relaccedilatildeo mais proacutepria ao sentido uma outra dimensatildeo ou
relaccedilatildeo jaacute havia sido descoberta haacute muito tempo ou como lembrava
Deleuze
O sentido eacute a quarta dimensatildeo da proposiccedilatildeo [aleacutem de designaccedilatildeo
manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo] Os estoicos a descobriram com o acontecimento
o sentido eacute o expresso da proposiccedilatildeo este incorporal na superfiacutecie das coisas
entidade complexa irredutiacutevel [que natildeo pode ser simplificada separada do
natildeo-senso] acontecimento puro (eacuteveacutenement pur) que insiste ou subsiste na
proposiccedilatildeo (Idem p 20)
7 Cf tambeacutem DELEUZE 2003 [Loacutegica do sentido] p 18-9
William de Siqueira Piauiacute | 211
E tal descoberta se repetiu na histoacuteria no medievo pelos
nominalistas da escola de Ockham Gregoacuterio de Rimini (1300-1358) e
Nicolas de Autrecourt (1299-1369) e depois pela loacutegica dos objetos
inexistentes de Alexius Meinong (1853-1920) que foi duramente atacada
pelo mesmo Russell E tal dimensatildeo teria sido chamada pelo fenomenoacutelogo
Edmund Husserl (1859-1938) de ldquoexpressatildeordquo quanto a quem e ao que
Deleuze afirmava ldquoHusserl natildeo menos que Meinong reencontra as fontes
vivas de uma inspiraccedilatildeo estoicardquo (Idem p 21) Ateacute certo ponto afinado com
aquela boa nova aquela inspiraccedilatildeo contudo semelhantemente a
Nietzsche Husserl tambeacutem teria sido tragado pelas profundezas neste
caso natildeo soacute por natildeo ter compreendido os atributos como verbos-
acontecimentos e sim como predicados-conceitos (Idem p 100) mas por
ter pecado em sua interpretaccedilatildeo contra uma filosofia propriamente da
expressatildeo supostamente defensora das ldquosingularidades nocircmades
impessoais e preacute-individuaisrdquo (Idem p 113) daiacute que em pleno acordo com
aquela tarefa de uma loacutegica do sentido Deleuze afirmasse
[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida
em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e
sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de
Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como
veremos uma mudanccedila muito importante [] A ideia de singularidades
logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-
individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste
domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)
Como era de se esperar dado a menccedilatildeo ao conceito de mocircnada para
fazer avanccedilar a determinaccedilatildeo daquele domiacutenio e constituir uma nova
noccedilatildeo de tal campo Deleuze trataraacute em seguida na 16ordf seacuterie (a da gecircnese
estaacutetica ontoloacutegica) da Loacutegica do sentido da filosofia de Leibniz Com o
que dissemos ateacute aqui fica evidenciado o quatildeo central seraacute a reavaliaccedilatildeo
da filosofia leibniziana especialmente de seu conceito de mocircnada
individual tendo vista que seraacute justamente ele que permitiraacute a base da
212 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
hipoacutetese ou seja a estruturaccedilatildeo da ldquoideia de singularidades logo de anti-
generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-individuaisrdquo daquelas
ldquosingularidades nocircmades impessoais e preacute-individuaisrdquo isto eacute daquilo
que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do sentido de qualquer
modo a conclusatildeo de tal seacuterie seraacute
Na obra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduo a mocircnada que descobre
o sentido e jaacute presente o natildeo-senso remontando agrave superfiacutecie a partir de um
mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que se envolve nela e lhe impotildee a
dura lei das misturas [jaacute] Silvia e Bruno seriam antes como as pessoas lsquovagasrsquo
que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo
comum a vaacuterios mundos mundo dos homens e mundo das fadas (Idem p
121)
O que novamente atesta o papel central que o conceito leibiziano de
mocircnada desempenha para toda a Loacutegica do sentido inclusive pela
apropriaccedilatildeo que ela faz da obra de Carroll ou seja o conteuacutedo da 16ordf seacuterie
deveraacute servir para voltar a compreender parte daquela boa nova agora
associada mais propriamente agraves obras Aventuras de Alice no paiacutes das
maravilhes Atraveacutes do espelho e o que Alice viu laacute e As aventuras de
Silvia e Bruno de Lewis Carroll que junto com a teoria dos incorporais
dos Estoicos satildeo os grandes temas de a Loacutegica do sentido Assim o que
trataremos a seguir eacute da reconstituiccedilatildeo deleuzeana do conceito de mocircnada
individual
II Parte ndash Interpretaccedilatildeo Deleuziana da Filosofia Leibniziana uma
Ficccedilatildeo Falsa
Como noacutes indicamos eacute jaacute a partir de 1968 que o filoacutesofo francecircs Gilles
Deleuze demonstra seu apreccedilo pela filosofia leibniziana como fica
evidente em alguns momentos da obra Diferenccedila e repeticcedilatildeo mas na
obra que escreve um ano depois Loacutegica do sentido tal seraacute sua
importacircncia que ela se tornaraacute o tema principal de toda uma seacuterie a 16ordf
seacuterie justamente um dos momentos mais cruciais de seu romance ou
William de Siqueira Piauiacute | 213
histoacuteria embrulhada momento em que veremos Deleuze caracterizar as
Alices e Silvia e Bruno de Carroll a partir do suposto8 conceito leibniziano
de pessoa vaga e do de mocircnada individual conceitos que ofereceriam as
bases para pensar aquilo que ele chamou de gecircnese estaacutetica ontoloacutegica de
um certo campo transcendental Satildeo certamente as consideraccedilotildees feitas
aqui que forneceratildeo a direccedilatildeo principal das leituras que Deleuze faraacute de
Leibniz nos trecircs cursos que deu na deacutecada de oitenta (1980 86 e 87) aulas
que receberatildeo o tiacutetulo de Exasperaccedilatildeo da filosofia e que com algumas
poucas mudanccedilas substanciais teratildeo como resultado a obra A dobra
Leibniz e o barroco publicada em 1988 Assim o que pretendemos eacute
problematizar a compreensatildeo dos conceitos leibnizianos que serviriam
para caracterizar os personagens de Carroll tentando apontar alguns dos
problemas da leitura de Deleuze especialmente se levarmos em conta
dentre outros textos a carta que Leibniz escreve a Molanus em 1679 bem
antes do Discurso de metafiacutesica este nosso principal ponto de partida e
o que faz a base do capitulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou diversidaderdquo
dos Novos ensaios (II XXVII) posterior ao Discurso e anterior tanto agrave
Teodiceia quanto agrave Monadologia Com isso esperamos lanccedilar luz sobre
a noccedilatildeo de fato leibniziana de sujeito ou indiviacuteduo e as bases do
deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo deleuziana Vejamos entatildeo como a
filosofia de Leibniz aparece na obra de 1969
Como jaacute o dissemos em Loacutegica do sentido tudo parece comeccedilar
com a criacutetica a Husserl em sua 14ordf seacuterie Deleuze considera que
[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida
em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e
sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de
Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como
veremos uma mudanccedila muito importante9 [] A ideia de singularidades
8 Dizemos ldquosupostordquo tendo em vista que em nossa opiniatildeo Deleuze forccedila demais a oposiccedilatildeo entre o que Leibniz afirmou na correspondecircncia que travou com Arnauld especialmente a nota agrave carta de 13 de maio de 1686 e teria querido dizer nos paraacutegrafos finais da Teodiceia especialmente o sect414 Cf DELEUZE 2003 p 118 [nota 4]
9 A expressatildeo ldquoHaacute contudo como veremos uma mudanccedila muito importanterdquo parece apontar para uma interpretaccedilatildeo diferente da de Husserl e que seraacute parte do motivo de retornar agrave filosofia leibniziana nas seacuteries seguintes diferenccedila
214 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-
individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste
domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)
Segundo Deleuze Husserl teria construiacutedo um campo transcendental
sem atentar para as condiccedilotildees impostas por Sartre em seu famoso artigo de
1937 intitulado ldquoA transcendecircncia do Egordquo e natildeo teria vislumbrado a ideia
de ldquosingularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo que jaacute estariam
suficientemente desenvolvidas na filosofia de Leibniz10 em uma palavra
Husserl teria se mantido kantiano demais11 talvez inclusive por natildeo ter
compreendido uma suposta precedecircncia do mundo com relaccedilatildeo agrave mocircnada
expressiva e a arbitrariedade da aplicaccedilatildeo irrestrita do princiacutepio de inclusatildeo
do predicado no sujeito dito de outra forma por Husserl natildeo ter visto em
Leibniz uma loacutegica do acontecimento ou topologia de superfiacutecie que
permitiria a ldquodeterminaccedilatildeo daquele domiacutenio e de sua potecircncia geneacuteticardquo e
ainda de outra forma por natildeo ter visto nos textos de Leibniz os elementos
para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese segundo a qual as ldquosingularidadesrdquo ou ldquoanti-
generalidadesrdquo devem ser consideradas ldquoimpessoais e preacute-individuaisrdquo
Como era de se esperar dada a associaccedilatildeo ao conceito de mocircnada Deleuze
trataraacute na 16ordf seacuterie (ldquoDa gecircnese estaacutetica ontoloacutegicardquo) da Loacutegica do sentido
da filosofia de Leibniz e como esta permitiria compreender a constituiccedilatildeo de
tal campo e tal ideia e que se tornaraacute a base de sua argumentaccedilatildeo em A
dobra ndash o que fica evidente especialmente em seu capiacutetulo 5 trata-se aqui
de levar adiante aquilo que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do
sentido ou do acontecimento12
Entatildeo nos voltando para a conclusatildeo da 16ordf seacuterie e parte da sua
hipoacutetese geral A primeira pergunta que devemos fazer eacute Qual eacute o
que causou muita estranheza a muitos interpretes de Leibniz Gonzalo deixa claro em seu artigo jaacute mencionado os termos em que se deu a polecircmica entre Fremont e Deleuze
10 Certamente o que permitiraacute a Deleuze terminar A dobra dizendo que permanecemos leibnizianos (DELEUZE 1991 p 208) posicionamento filosoacutefico com o qual esse sim Alain Badiou se potildee em desacordo ao defender a ldquooutra escolha ontoloacutegicardquo (BADIOU 2015 p 39-44)
11 DELEUZE 2003 p 101
12 Idem todo o final da 14ordf seacuterie
William de Siqueira Piauiacute | 215
imperativo do uso das obras de Carroll que marcaria as nuacutepcias da
linguagem e do inconsciente A resposta eacute a contestaccedilatildeo da identidade
pessoal (Idem p 3) Pressuposto que permitia a circulaccedilatildeo da ldquocasa vaziardquo
e o falar das ldquosingularidades pre-individuais e natildeo pessoaisrdquo ldquoque natildeo satildeo
nem da ordem do geral nem da ordem do individual nem pessoais nem
universaisrdquo ldquoem sumardquo o que possibilitaria a produccedilatildeo do sentido Se
deixar arrastar pelos verbos de puro devir natildeo deixar que a noccedilatildeo de
atributo verbal seja confundida e assimilada pela de predicado da loacutegica
formal (claacutessica-aristoteacutelica) dai que evidente e novamente se queremos
tomaacute-lo como ponto de partida tenha de ser arbitraacuterio na filosofia de
Leibniz a inerecircncia do predicado no sujeito (Idem p 115) o que deve levar
agravequeles conceitos de pessoa ou indiviacuteduo que permitiriam comparar Alice
com uma mocircnada e Silvia e Bruno com pessoas vagas Mas seraacute mesmo
arbitraacuterio
Assim e para o que nos interessa em Loacutegica do sentido os pontos
principais e o centro da interpretaccedilatildeo de Deleuze da filosofia leibniziana
estariam na seguinte afirmaccedilatildeo
Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada
mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente
compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia
dos predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo
expresso natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas
mocircnadas como a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos
verdade entretanto que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas (Dieu
creacutee le monde plutocirct que les monades)13 e [tambeacutem eacute verdade] que o expresso
13 Outra traduccedilatildeo possiacutevel dessa afirmaccedilatildeo e que afasta o problema da anterioridade temporal seria ldquoDeus cria o mundo e natildeo (plutocirct que) as mocircnadasrdquo A expressatildeo francesa plutocirct nos arrastaria inclusive para o que parece ser o contraacuterio da anterior ldquoDeus cria o mundo sobretudo (plutocirct) as mocircnadasrdquo Nossa interpretaccedilatildeo vai se basear na afirmaccedilatildeo e nota correspondente o que tambeacutem consideramos ser uma intensificaccedilatildeo feitas em A dobra Leibniz e o barroco ldquoEstas natildeo satildeo as generalidades mas acontecimentos gotas de acontecimento Nem por isso deixam [os acontecimentos as gotas de acontecimento] de ser preacute-individuais uma vez que o mundo eacute virtualmente primeiro em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que o expressam (Deus criou natildeo Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou) O indiviacuteduo nesse sentido eacute atualizaccedilatildeo de singularidades preacute-individuais [Elles nrsquoen sont pas moins preacute-individuelles dans la mesure ougrave le monde est virtuellement premier par rapport aux individus qui lrsquoexpriment (Dieu a creacuteeacute non pas Adam peacutecheur mais le monde ougrave Adam a peacutecheacute) Lrsquoindividu en ce sens est lrsquoactualisation de singulariteacutes preacute-individuelles et nrsquoimplique aucune speacutecification preacutealable Il faut mecircme dire le contraire et constater que la speacutecification suppose elle-mecircme lrsquoindividuation]rdquo (DELEUZE 1991 p 101) Podemos mesmo falar em
216 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
natildeo se confunde com sua expressatildeo mas [partindo de um ponto de vista
estoico] insiste ou subsiste () Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos
predicados na filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na
mocircnada expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo
expresso e esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras
singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que
pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a]
uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdade Leibniz foi muito longe nesta
primeira etapa da gecircnese [ontoloacutegica de um certo campo transcendental
impessoal e preacute-individual ou das singularidades entendidas como
verdadeiros acontecimentos transcendentais14] o indiviacuteduo constituiacutedo
como centro de envolvimento como envolvendo singularidades em um
mundo e sobre seu corpo (Idem p 114-5 grifo nosso)15
Como jaacute indicamos ao falar da associaccedilatildeo de Husserl com os achados
estoicos para aleacutem da noccedilatildeo de sujeito indiviacuteduo ou pessoa o outro tema
cariacutessimo agrave Loacutegica do sentido e que tambeacutem deve ter contribuiacutedo para a
escolha da filosofia leibniziana eacute o de ldquoexpressatildeordquo tema que leva agrave
pergunta Como as mocircnadas expressariam o mundo e qual a ordem de
precedecircncia ou preferecircncia seja com relaccedilatildeo a Deus ao mundo ou aos
corpos De qualquer modo com relaccedilatildeo agrave polecircmica entre ambos natildeo eacute
preciso muito para compreender a insistecircncia de Fremoacutent na reconstruccedilatildeo
anterioridade virtual do mundo em Leibniz Seria isso suficiente para aceitarmos o deslocamento proposto por Deleuze desde a Loacutegica do sentido
14 Cf a p 105 da mesma obra
15 ldquoSrsquoeffectuer crsquoest aussi ecirctre exprimeacute Leibniz soutient une thegravese ceacutelegravebre chaque monade individuelle exprime le monde Mais cette thegravese nrsquoest pas suffisamment comprise tant qursquoon lrsquointerpregravete comme signifiant lrsquoinheacuterence des predicats dans la monade expressive Car il est bien vrai que le monde exprimeacute nrsquoexiste pas hors des monades qui
lrsquoexpriment donc existe dans les monades comme la seacuterie des preacutedicats qui leur sont inheacuterents Il nrsquoest pas moins vrai cependant que Dieu creacutee le monde plutocirct que les monades et que lrsquoexprimeacute ne se confond pas avec son expression mais insiste ou subsiste [nota 1] [] Il est arbitraire de privileacutegier lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la philosophie de Leibniz Car lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la monade expressive suppose drsquoabord la compossibiliteacute du monde exprimeacute et celle-ci agrave son tour suppose la distribution de pures singulariteacutes drsquoapregraves des regravegles de convergence et de divergence qui appartiennent encore agrave une logique du sens et de lrsquoeacuteveacutenement non pas agrave une logique de la preacutedicacion et de la veacuteriteacute Leibniz a eacuteteacute tregraves loin dans cette premiegravere eacutetape de la genegravese lrsquoindividu constitueacute comme centre drsquoenveloppement comme enveloppant des singulariteacutes dans un monde et sur son corps et Adammiddotnon peacutecheur deacutecoule de lrsquoincompossibiliteacute des mondes ougrave Adam pegraveche et ne pegraveche pas Dans chaque monde les monades individuelles expriment toutes les singulariteacutes de ce monde - une infiniteacute - comme dans un murmure ou un eacutevanouissement mais chacune nrsquoenveloppe ou nrsquoexprime laquoclairementraquo qursquoun certain nombre de singulariteacutes celles au voisinage desquelles elle se constitue et qui se combinent avec son corpsrdquo (DELEUZE 1969 p 134-5) Ao que segue o comentaacuterio da nota 1 ldquoTema constante das cartas de Leibniz a Arnauld Deus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou (Theme constant des lettres de Leibniz agrave Arnauld Dieu a creacuteeacute non pas exactament Adam-pecheur mais le monde ouacute Adam peacutecheacute)rdquo
William de Siqueira Piauiacute | 217
dos conceitos leibnizianos de Deus e de indiviacuteduo fica evidente com a
citaccedilatildeo feita acima que esses deveriam fazer a base da argumentaccedilatildeo do
proacuteprio Deleuze que muitas vezes prefere recorrer aos textos esparsos e
de difiacutecil interpretaccedilatildeo em que Leibniz fala de compossibilidade ou
incompossibilidade da universalidade ou generalidade e singularidade ou
especificaccedilatildeo das regras de convergecircncia ou divergecircncia e mesmo do
caacutelculo diferencial e integral mas natildeo tanto aos em que o alematildeo fala
propriamente dos conceitos de substacircncia particular ou mocircnada
individual Todavia natildeo eacute nossa intenccedilatildeo remontar tal embate Assim eacute
nossa pretensatildeo problematizar ainda uma vez a partir dos textos onde
Leibniz de fato trata deles inclusive os associando os assuntos ldquoinerecircncia
do predicado no sujeitordquo ldquoDeusrdquo ldquomocircnada individualrdquo ou ldquosubstacircncia
particularrdquo e ldquoacontecimentordquo tentando remontar o que do nosso ponto
de vista parece ser um dos principais problemas da leitura deleuziana
certa cadeia argumentativa e associaccedilatildeo inevitaacutevel de temas presentes nos
textos leibnizianos
Dito isso em primeiro lugar mesmo que acreditemos que a leitura
que faz Russell da filosofia de Leibniz eacute purista demais com relaccedilatildeo agrave sua
vinculaccedilatildeo agrave loacutegica aristoteacutelica se eacute arbitraacuterio a inerecircncia do predicado no
sujeito com relaccedilatildeo agrave mocircnada individual expressiva ndash que devemos fazer
preceder da noccedilatildeo de uma substacircncia individual16 ndash Deleuze deveria ter se
explicado melhor quanto agrave afirmaccedilatildeo feita no sect8 do Discurso de
metafiacutesica que trata justamente do conceito de Deus e de ldquoem que
consiste uma substacircncia individualrdquo a saber
Ora eacute bem constante que toda predicaccedilatildeo tem algum fundamento verdadeiro
na natureza da coisa e quando uma proposiccedilatildeo natildeo eacute idecircntica isto eacute quando
o predicado natildeo estaacute compreendido expressamente no sujeito eacute preciso que
esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filoacutesofos in-esse
16 Com relaccedilatildeo ao modo como compreendemos a associaccedilatildeo do conceito de mocircnada humana com o de substacircncia individual indicamos nossos artigos ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo e ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e Infinito em Leibnizrdquo seja como for eacute no sentido do conceito de substacircncia individual ou noccedilatildeo de indiviacuteduo singular ou noccedilatildeo individual completa ou mesmo de pessoa possiacutevel que Deleuze entende o conceito de mocircnada individual ou humana
218 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
dizendo estar o predicado no sujeito Eacute preciso pois o termo do sujeito
conter sempre o do predicado de tal forma que quem entender
perfeitamente a noccedilatildeo do sujeito julgue tambeacutem que o predicado lhe
pertencerdquo (LEIBNIZ 1983 p 124 grifo nosso)
Afirmaccedilatildeo que fundamentaraacute as seguintes consequecircncias
Isto posto podemos dizer que a natureza de uma substacircncia individual ou
de um ser complexo consiste em ter uma noccedilatildeo tatildeo perfeita que seja
suficiente para deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se
atribui estaacute noccedilatildeo [] [Daiacute que] Deus vendo a noccedilatildeo individual ou
ecceidade de Alexandre nela vecirc ao mesmo tempo o fundamento e a razatildeo
de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar []
(Idem grifo nosso)
Apesar do deslocamento quanto agrave noccedilatildeo de criaccedilatildeo antes ou depois
de preferecircncia ou natildeo com relaccedilatildeo ao mundo ateacute aqui nada aponta para
uma restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse a natildeo ser a menccedilatildeo ao virtual
(virtuellement) ou seja nada aponta para a restriccedilatildeo do princiacutepio de
inerecircncia do predicado no sujeito especialmente quando se trata de pensar
a natureza de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo individual
completa ou perfeita noccedilatildeo individual ou ecceidade bem como nada
parece apontar para algo que permitisse concluir que ldquoDeus criou natildeo
exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo talvez no
sentido que a qualidade o adjetivo ldquopecadorrdquo o predicado natildeo seria
previa e propriamente ldquoinerenterdquo ao sujeito Adatildeo Restaria pois
compreender o que seria essa visatildeo sem precedecircncia ou preferecircncias e ldquoao
mesmo tempordquo da noccedilatildeo individual ou ecceidade O que quer dizer este
ldquoao mesmo tempordquo esta simultaneidade e como compreender este
fundamento e razatildeo de todos os predicados que verdadeiramente se
podem afirmar de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo
individual completa ou perfeita de um ser complexo (talvez o misteacuterio
mencionado em A dobra) Mas natildeo resta duacutevida que a verdade entra em
jogo aqui jaacute que se trata tambeacutem do fundamento de ldquotoda predicaccedilatildeordquo
por isso mesmo podemos colocar o problema no mesmo registro da
William de Siqueira Piauiacute | 219
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld17 quando o alematildeo afirma jaacute
na carta de 14 de julho de 1686 que semper enim notio praedicati inest
subjecto in propositione vera18 Nesse sentido a questatildeo seria perguntar se
o conhecimento que Deus tem de uma substacircncia individual noccedilatildeo
individual completa ou perfeita um noccedilatildeo individual ou ecceidade eacute certo
ndash infaliacutevel ndash a ponto de dizermos que as proposiccedilotildees formadas com relaccedilatildeo
a elas tecircm de ser ditas verdadeiras ou falsas mas claro que para Leibniz o
conhecimento de Deus eacute infaliacutevel e mesmo que em termos de predicaccedilatildeo
tiveacutessemos que levar a anaacutelise de tais noccedilotildees ao infinito temos de lembrar
que aquele conhecimento tambeacutem compreende o infinito Restaria ainda
perguntar se tal conhecimento se prenderia a uma caracteriacutestica
semelhante a um atributo verbal no sentido deleuzeano ou a um predicado
no sentido claacutessico De qualquer modo no sect31 do Discurso de metafiacutesica
que trata justamente da ldquorazatildeo que fez Deus chamar agrave existecircncia tal pessoa
possiacutevelrdquo tal substacircncia individual noccedilatildeo individual completa ou perfeita
noccedilatildeo individual ou ecceidade possiacuteveis e dos acontecimentos relacionados
a tais pessoas possiacuteveis ao menos parte da questatildeo eacute resolvida com a
seguinte consequecircncia geral
[] creio mais exato e seguro dizer segundo nossos princiacutepios e como jaacute notei
ser forccediloso haver entre os entes possiacuteveis a pessoa de Pedro ou Joatildeo cuja
noccedilatildeo ou ideia conteacutem toda esta seacuterie de graccedilas ordinaacuterias e todo o resto
destes acontecimentos (eacuteveacutenements) com suas circunstacircncias e que entre
uma infinidade de outras pessoas igualmente possiacuteveis agradou a Deus
escolhecirc-la para existir atualmente (actuellement) (Idem p 147 grifo nosso)19
17 Insistindo pois naquele lugar onde esse tema teria sido tatildeo debatido cf DELEUZE 2003 [nota 1] p 114
18 ldquoDe fato [ou manifestamente] na proposiccedilatildeo verdadeira sempre a noccedilatildeo do predicado lsquoinerersquo ao sujeitordquo
19 De pleno acordo com o que Leibniz defende na nota agrave carta de Arnauld com relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma noccedilatildeo vaga de sujeito ldquo[primeira resposta] que minha suposiccedilatildeo natildeo eacute simplesmente que Deus tenha querido criar um Adatildeo cuja noccedilatildeo seja vaga e incompleta mas que Deus quis criar um tal Adatildeo suficientemente determinado para um indiviacuteduo Esta noccedilatildeo individual completa encerra [ou envolve] em minha opiniatildeo relaccedilotildees com toda a serie das coisas o qual deve parecer tanto mais razoaacutevel quanto que o Sr Arnauld me concede aqui o enlace que haacute entre as resoluccedilotildees de Deus a saber que Deus ao resolver-se a criar determinado Adatildeo tem em conta todas as resoluccedilotildees que toma sobre toda a seria do universo agrave maneira de uma pessoa prudente que ao tomar uma resoluccedilatildeo com respeito a um propoacutesito tem em vista em sua totalidade dito propoacutesito jaacute que pode decidir-se melhor quando se resolve sobre todas as partes (que ma supposition nrsquoest paacutes simplement que Dieu a voulu creacuteer un Adam dont la notion soit vague et incomplegravete mais que Dieu a voulu creacuteer un tal Adam assez deacutetermineacute agrave un individu Et cette notion individuelle complete selon moi enveloppe decircs rapport agrave toute la suite des choses ce qui doit paraicirctre
220 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Fica evidente inclusive que mesmo quanto aos acontecimentos
(eacuteveacutenements) todos jaacute com suas circunstacircncias devem ser considerados
incluiacutedos nas ideias das pessoas possiacuteveis ou nas noccedilotildees completas das
pessoas possiacuteveis ou seja nas noccedilotildees das substacircncias individuais ou
particulares noccedilotildees individuais ou ecceidades possiacuteveis Em que sentido
portanto interpretar a afirmaccedilatildeo ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo
pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo Talvez ou no sentido que haacute
uma ruptura no desenvolvimento da filosofia de Leibniz entre o conceito
de substacircncia individual e mocircnada como querem muitos comentadores
ou concedendo que em Leibniz haveria a afirmaccedilatildeo do conceito de pessoa
vaga o que natildeo vemos como corroborar tendo em vista o que eacute afirmado
na nota agrave carta que mencionamos em nota mais acima mas poderia ser
um problema com relaccedilatildeo agrave hipoacutetese interpretativa que o sect414 da
Teodiceia exige uma ldquounidade objetividade muito especialrdquo para ser
compreendido e neste caso voltariacuteamos a uma saiacuteda semelhante agrave
daqueles comentadores Mas se nos mantemos na eacutepoca do Discurso
certamente podemos dizer que aquela consequecircncia seraacute seguida da
explicaccedilatildeo que parte dos princiacutepios fundamentais que guiam a
argumentaccedilatildeo de Leibniz satildeo 1) o da perfeiccedilatildeo ou completude das
operaccedilotildees de Deus e 2) o da noccedilatildeo individual completa ou perfeita (uma
noccedilatildeo natildeo vaga e natildeo incompleta) que encerra in-esse todos os
acontecimentos com todas as suas circunstacircncias Ateacute este momento o do
Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld
portanto nada parece apontar para o acontecimento ou gota de
acontecimento no sentido deleuziano mesmo que o revolucionaacuterio artigo
drsquoautant plus raisonnable que M Arnauld mrsquoaccorde ici la liaison qursquoil y a entre les reacutesolutions de Dieu savoir que Dieu prenant la reacutesolutions de creacuteer un tel Adam a eacutegard agrave toutes lecircs reacutesolutions qursquoil prend touchand toute la suiacutete de lrsquouniverse agrave peu pregraves comme une persone sage qui prend une reacutesolutions agrave lrsquoegard drsquoune partie de son dessein lrsquoa tout entier em vue et se reacutesoudra drsquoautant mieux si elle pourra se reacutesoudre drsquoautant mieux si elle pourrra se resoudre sur toutes lecircs parties agrave la fois)rdquo (LEIBNIZ 1900 p 182) Cf tambeacutem DELEUZE 2003 p 118 [e tambeacutem a nota 4] Vale lembrar que a questatildeo da escolha entre uma infinidade de pessoas possiacuteveis leva o problema do conhecimento do infinito natildeo mais para uma anaacutelise infinita de uma noccedilatildeo e sim para a de uma infinidade de noccedilotildees uma multidatildeo ou conjunto infinitos nesse sentido agrave de compossibilidade e incompossibilidade quanto ao que pensamos sobre a ligaccedilatildeo desse detalhe com o labirinto da liberdade gostariacuteamos de indicar novamente nosso artigo ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibnizrdquo
William de Siqueira Piauiacute | 221
sobre ldquoUm novo meacutetodo para os maacuteximos e miacutenimos assim como para as
tangentes que natildeo para ante quantidades fracionaacuterias ou irracionais e eacute
um gecircnero singular de caacutelculo para estes problemasrdquo jaacute esteja pronto
comprovadamente desde 1684 Na verdade cremos que a melhor
estrateacutegia para pensar uma topologia da superfiacutecie em Leibniz a partir de
1684 seria reconstituir sua noccedilatildeo de funccedilatildeo e se voltar para a sua
dinacircmica20 mas se distanciando de sua noccedilatildeo de mocircnada humana e
afirmando inclusive diferenccedilas importantes entre o conceito de substacircncia
individual do Discurso e o de mocircnada na Monadologia
De qualquer modo e em sentido contraacuterio agora a noccedilatildeo de pessoa
defendida no Discurso parece ser um desenvolvimento da de pessoa
espiritual que Leibniz defendia jaacute na carta a Molanus de 167921 justamente
contra a moral Estoica ndash o que deveria ter chamado a atenccedilatildeo do jovem
Deleuze ndash e a de Descartes e natildeo eacute diferente da utilizada na
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld portanto ambas as seacuteries de
cartas estariam em pleno acordo com o Discurso Mais que isso do nosso
ponto de vista trava-se desde a carta a Molanus daquilo que permitiraacute
compreender a peculiaridade e novidade do fatum christianum do iniacutecio
da Teodiceia novamente contra o fatum stoiumlcum vale lembrar Aleacutem
disso a noccedilatildeo individual completa ou perfeita eacute reafirmada nos Novos
ensaios justamente no capiacutetulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou
diversidaderdquo ndash capiacutetulo curiosamente natildeo analisado por Deleuze seja em
Loacutegica do sentido seja em A dobra ndash onde jaacute aparece o conceito de
mocircnada que a partir dali assimilaraacute grande parte das caracteriacutesticas do
conceito de noccedilatildeo individual completa ou perfeita capiacutetulo que deveria ter
sido interpretado por Deleuze ou ao menos mencionado dado que tanto
em A dobra e mais ainda em Loacutegica do sentido se tratava do problema
da identidade pessoal Assim ateacute por conta da boa nova que representaria
a obra carrolliana quanto agrave dissoluccedilatildeo da identidade pessoal nos parece
20 Quanto ao que pensamos sobre o conceito leibniziano de funccedilatildeo associado ao de continuidade e histoacuteria gostariacuteamos de indicar nosso artigo ldquoLeibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologiardquo
21 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartesrdquo
222 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que teria faltado um agrupamento mais cuidadoso dos textos a partir do
tema geral da noccedilatildeo individual completa ou perfeita De qualquer modo
ateacute esse momento o do Discurso ou em torno dos Novos ensaios e com
relaccedilatildeo seja ao conceito de mocircnada humana individual seja o de noccedilatildeo
individual completa natildeo vemos a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos alcanccedilados com o
artigo de 1684 ou que nos obrigue a leitura do texto ldquoSobre o meacutetodo da
universalidaderdquo de conforme Couturat o mais tardar 167422 o que parece
deixar sem fundamento o deslocamento exigido por Deleuze ao menos em
a Loacutegica do sentido A partir de quais textos que tratem propriamente do
problema do sujeito indiviacuteduo e mocircnada humana com as associaccedilotildees que
mencionamos acima fundamentariacuteamos aquela exigecircncia de recusarmos
o princiacutepio inesse e a de estarmos obrigados a apelar para as regras de
divergecircncia e convergecircncia ou para outro tipo de singularidade
Arriscariacuteamos dizer que por conta do todo da obra apenas os sect6 que
menciona a noccedilatildeo de funccedilatildeo e sect17 a sect22 que trabalham o conceito de
forccedila e causalidade final do Discurso poderiam fornecer algum
fundamento para tal deslocamento mas todo o resto da obra seria prova
suficiente que a adoccedilatildeo de tais regras em nada invalida o princiacutepio inesse
principalmente se as questotildees tiverem a ver com a tentativa de pensar a
noccedilatildeo completa de indiviacuteduo ou aquele conceito de mocircnada humana
defendido nos Novos ensaios e mesmo os conceitos de acontecimento e
suas circunstacircncias ou o conteuacutedo do intelecto divino23
Dito assim voltando ainda uma vez ao Discurso de metafiacutesica o
sect14 que trata das perspectivas do universo que Deus decide criar e que
corresponderiam ao que acontece agraves substacircncias individuais ndash talvez
daquilo que sem nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de Leibniz permitiria falar
da aplicaccedilatildeo das regras de convergecircncia e divergecircncia ou ao novo meacutetodo
para os maacuteximos e miacutenimos ndash natildeo deixa duacutevidas quanto agrave noccedilatildeo de
22 Anterior agrave carta a Molanus portanto
23 Vale lembrar o tiacutetulo que recebeu o sect6 do Discurso ldquoDeus nada faz fora de ordem e nem eacute possiacutevel forjar acontecimentos (eacuteveacutenements) que natildeo sejam regularesrdquo Neste caso os outros paraacutegrafos que mencionamos encaminham a pergunta que talvez impediria aquele deslocamento Com relaccedilatildeo ao conteuacutedo do intelecto divino o que faz o fundamento ou substacircncia da continuidade da mudanccedila Problema que no nosso entender eacute o principal que aparece jaacute desde o iniacutecio da Monadologia cf sect8 e que exige a noccedilatildeo de mocircnada individual fechada
William de Siqueira Piauiacute | 223
acontecimento e emprego irrestrito do princiacutepio da inclusatildeo do predicado
no sujeito com relaccedilatildeo agraves ideias de pessoas ou noccedilotildees completas ali
Leibniz afirmava
De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poder-se-aacute dizer
que nunca uma substacircncia particular atua (agit) sobre uma outra substacircncia
particular e tampouco padece se os eventos24 de cada um satildeo considerados
apenas como consequecircncia de sua simples ideia ou noccedilatildeo completa pois
esta ideia [ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular] encerra jaacute
todos os predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime
(exprime) todo o universo Com efeito nada pode acontecer-nos (arriver)
aleacutem de pensamentos e percepccedilotildees e todos os nossos futuros pensamentos e
percepccedilotildees natildeo passam de consequecircncias embora contingentes
(contingentes) dos nossos pensamentos e percepccedilotildees anteriores de tal modo
que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora
me acontece ou aparece nessa percepccedilatildeo poderia ver tudo quanto me
aconteceraacute e apareceraacute sempre o que natildeo falharia e aconteceria da mesma
maneira embora tudo quanto existisse fora de mim fosse destruiacutedo desde que
restasse Deus e eu (LEIBNIZ 1983 p 129-30)
A ideia ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular encerra jaacute
todos os predicados ou acontecimentos e exprime todo o universo E
exprime jaacute enquanto ideia ou noccedilatildeo completa todo o universo Claro que
um grande problema eacute compreender aquela contingecircncia mas natildeo no
esqueccedilamos da intensificaccedilatildeo que vem a seguir ldquodesde que restasse
apenas eu e Deusrdquo Apesar da necessidade de problematizar quatildeo longe
vai a impossibilidade de distinccedilatildeo completa dos nossos pensamentos e
percepccedilotildees certamente associada agrave necessidade de uma anaacutelise infinita
para a compreensatildeo total ou perfeita de uma noccedilatildeo individual o que pode
apontar para aquela contingecircncia em nenhum momento da Carta a
Molanus do Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz
e de Anauld vimos Leibniz afirmar a precedecircncia ou preferecircncia do
mundo e mesmo dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de pessoas
24 Aqui podemos ter um problema de traduccedilatildeo de fato soacute mais agrave frente surgiraacute no original francecircs a palavra lsquoeventorsquo ou lsquoacontecimentorsquo ou seja eacuteveacutenement
224 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
especialmente no sentido que haveria singularidades que precederiam as
individualidades o que justificaria a necessidade de recorrermos agraves suas
noccedilotildees de compossibilidade e incompossibilidade ou agraves regras de
convergecircncia e de divergecircncia Parece-nos que a afirmaccedilatildeo ldquoesta ideiardquo ou
noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular ldquoencerra jaacute todos os
predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime
(exprime) todo o universordquo vai justamente no sentido contraacuterio ao
pretendido por Deleuze De qualquer modo o problema da significaccedilatildeo do
conceito de expressatildeo seu campo semacircntico parece nos obrigar a passar
para a regiatildeo dos possiacuteveis e vai mais no sentido das noccedilotildees completas
para o universo do que o contraacuterio Assim eacute preciso atentar para o fato
que ao menos aqui ldquopredicadordquo ldquoacontecimentordquo e ldquoexpressatildeordquo satildeo
colocados no mesmo registro daquelas ideias e nada aponta para uma
restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse ou para a anterioridade ou preferecircncia do
mundo com relaccedilatildeo agraves ideias ou noccedilotildees completas de substacircncias
particulares ou mocircnadas individuais De qualquer modo e essa eacute nossa
opiniatildeo os paraacutegrafos finais da Teodiceia e a uacuteltima carta que Leibniz
escreveu a Samuel Clarke parecem ser decisivos Primeiro
Vocecirc vecirc [afirma a deusa Palas Atena] que meu pai [Juacutepiter] natildeo fez Sextus
mau ele [Sextus] o foi [mau] desde toda a eternidade ele o foi sempre
livremente [meu pai] soacute fez lhe consentir a existecircncia que sua sabedoria
natildeo podia recusar ao mundo em que ele estaacute compreendido ele o fez
passar da regiatildeo dos possiacuteveis para a dos seres atuais (LEIBNIZ 2013
[Teodiceia] sect416 p 415 grifo nosso)
Aqui eacute afirmada a necessidade de uma determinada pessoa possiacutevel
dever estar compreendida em um determinado mundo possiacutevel25 que
Deus ou na histoacuteria que termina a Teodiceia Juacutepiter faz ou consente vir
agrave existecircncia suposto ser o melhor dos mundos possiacuteveis ldquopassar da regiatildeo
dos possiacuteveis para a dos seres atuaisrdquo e certamente podiacuteamos pensar tal
25 A partir da perfeiccedilatildeo das operaccedilotildees do intelecto divino Leibniz natildeo soacute natildeo defende que haacute pessoas possiacuteveis vagas mas tambeacutem natildeo haacute propriamente falando mundos possiacuteveis vagos
William de Siqueira Piauiacute | 225
necessidade nos valendo da noccedilatildeo de compossibilidade e
incompossibilidade mas natildeo nos adiantemos Eacute preciso voltar ao que diz
o texto e lembrar que Juacutepiter apenas consentiu a existecircncia a Sextus
existecircncia que eacute precedida portanto de uma noccedilatildeo completa individual
que faz parte do conteuacutedo do intelecto divino e que se relaciona com as
perfeiccedilotildees de suas operaccedilotildees daiacute sua eternidade perfeiccedilatildeo ou completude
(em oposiccedilatildeo a vago) e precedecircncia com relaccedilatildeo agrave existecircncia isto eacute agrave
posterior atualizaccedilatildeo Em que sentido portanto interpretar a afirmaccedilatildeo
ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo
pecourdquo Contra parte da interpretaccedilatildeo de Deleuze pois Apolo-Juacutepiter natildeo
criou Sextus mau ou fez a inclusatildeo de tal predicado ou atributo verbal a
partir de uma seacuterie universo ou mundo determinado de singularidades
adjacentes preacute-individuais natildeo eacute nesse sentido que o mundo precede ou
tem preferecircncia com relaccedilatildeo a Sextus De todo modo e no mesmo sentido
das trecircs obras que mencionamos mais acima nem o Deus cristatildeo criou
Adatildeo pecador nem Juacutepiter criou o Sextus violador (de Lucreacutecia)26 eles o
foram de modo completo e perfeito desde sempre e seus acontecimentos
com todas as circunstacircncia estavam registrados no livro dos destinos ou
das verdades eternas no palaacutecio dos destinos ou na regiatildeo dos possiacuteveis
no mesmo ldquolugarrdquo em que Leibniz diz muitas vezes deveriacuteamos ldquobuscarrdquo
os mundos possiacuteveis as seacuteries que corresponderiam aos universos etc
Deus ou Juacutepiter os teriam visto como ideias ou noccedilotildees completas e sem
precedecircncia de tempo ou preferecircncia moral ao mesmo tempo e antes do
decreto da criaccedilatildeo Justamente o que permite dizer do diabo que ldquoporque
estava escrito no livro das verdades eternas que conteacutem tambeacutem os
possiacuteveis antes de todo o decreto de Deus que essa criatura [o diabo] se
dirigiria livremente para o mal se ela fosse criadardquo (Idem p 329)27
26 A partir disso perguntariacuteamos O Deus leibniziano a partir de sua ciecircncia de simples inteligecircncia natildeo vecirc desde sempre na ideia da natureza das criaturas livres Adatildeo e Sextus que elas satildeo pecadoras e violadoras (ou preguiccedilosa) Se sim natildeo fica claro de fato o que faz a base da necessidade daquele deslocamento e termos de supor uma noccedilatildeo leibniziana de acontecimento a partir de singularidades adjacentes
27 Eis o motivo porque Derrida achou necessaacuterio criticar em ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo (Escritura e diferenccedila) de 1967 as noccedilotildees leibnizianas de livro e histoacuteria criticar a noccedilatildeo de repeticcedilatildeo associada aos destinos depositados no palaacutecio dos destinos (Teodiceia sect414) ou no livro dos destinos (Teodiceia sect275) Certamente o que faria eco agrave recusa por parte de Badiou quanto agrave inclusatildeo de Mallarmeacute em A dobra E talvez aqui possamos pensar que tendo em vista que
226 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Somente assim Jupiacuteter natildeo se torna o culpado do destino de Sextus e natildeo
nos perdemos nessa regiatildeo do labirinto da liberdade Seja como for a
partir de seu conhecimento infinito e infaliacutevel Deus criou fez vir agrave
existecircncia exatamente Adatildeo pecador e de um soacute golpe o mundo em que
ele pecaraacute
Natildeo vemos outra maneira de interpretar o final da Teodiceia a natildeo
ser que queiramos e contra o que estabelece a filosofia leibniziana nos
perder no labirinto da liberdade e necessidade Daiacute que natildeo vemos como
corroborar aquela divisatildeo em seleccedilotildees28 que faz a base da hipoacutetese
interpretativa formulada no segundo momento da nota 4 da 16ordf seacuterie de
Loacutegica do sentido e que nos obrigaria aceitar aquele deslocamento e
ordem de dependecircncia Seraacute mesmo que precisamos pensar ldquouma unidade
objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo
de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo
infinitordquo base daquela necessidade de deslocamento e ordem de
dependecircncia que nos levaria para muito longe do que afirmava a nota agrave
carta a Arnauld de 13 de maio de 1686 que jaacute mencionamos em nota para
compreender os paraacutegrafos finais da Teodiceia
Deleuze natildeo menciona Derrida em a Loacutegica do sentido publicada um ano apoacutes Escritura e diferenccedila ou em A dobra a menccedilatildeo a Husserl e a inclusatildeo de Mallarmeacute podem ser indicadoras de sua oposiccedilatildeo agravequela interpretaccedilatildeo De qualquer modo tanto Derrida quanto Badiou recusam ou recusariam a opiniatildeo que permanecemos leibnizianos especialmente se queremos fazer Mallarmeacute estar de acordo conosco Se o leitor quiser entender melhor o que estamos tentando dizer aqui teraacute de cruzar nossos artigos ldquoLeibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agrave teoria tradicional da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegadardquo e ldquoDerrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeordquo e se perguntar se Leibniz natildeo tem de ser colocado naquele momento preacute Mallarmeacute e Goumldel em que se acreditava na completude sistecircmica da linguagem
28 Nos referimos agrave seguinte afirmaccedilatildeo ldquo[I momento] Distinguimos pois trecircs seleccedilotildees (seacutelections) conforme ao tema
leibniziano uma que define um mundo por convergecircncia uma outra que define neste mundo indiviacuteduos completos uma outra enfim que define elementos incompletos ou entes ambiacuteguos comuns a vaacuterios mundos e aos indiviacuteduos correspondentes [II momento] Sobre esta terceira seleccedilatildeo ou sobre Adatildeo lsquovagorsquo constituiacutedo por um pequeno nuacutemero de predicados (ser o primeiro homem etc) que devem ser completados diferentemente em diferentes mundos cf Leibniz lsquoObservaccedilotildees sobre a carta de M Arnauldrsquo [que citamos na nota 15] [] Eacute verdade que neste texto Adatildeo vago natildeo tecircm existecircncia por si mesmo vale somente com relaccedilatildeo ao nosso entendimento finito seus predicados natildeo satildeo mais que generalidades Mas ao contraacuterio no texto ceacutelebre da Teodiceia (sectsect414-416) os diferentes Sextus nos mundos diversos tecircm uma unidade objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo infinito Muito cedo Leibniz havia elaborado uma teoria dos lsquosignos ambiacuteguosrsquo em relaccedilatildeo com os pontos singulares tomando por exemplo as seccedilotildees cocircnicas [les diffeacuterents Sextus dans les mondes diverses ont une uniteacute objective tregraves speacuteciale qui repose sur 1a nature ambigueuml de la notion de singulariteacute et sur la cateacutegorie de problegraveme du point de vue drsquoun calcul infini Tregraves tocirct Leibniz avait eacutelaboreacute une theacuteorie des lsquosignes ambigusrsquo en rapport avec les points singuliers prenant pour exemple les sections coniques] cf lsquoDo meacutetodo da universalidadersquo (Opuacutesculos Couturat [p 97-144])rdquo (DELEUZE 2003 p 118 grifo nosso)
William de Siqueira Piauiacute | 227
Dito isso nos parece que o que faltou a Deleuze foi buscar
compreender melhor as noccedilotildees de ideia e representaccedilatildeo associadas agrave de
noccedilatildeo completa de um individuo singular tanto no Discurso e
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld quanto nos paraacutegrafos finais
da Teodiceia e como o uso indistinto que ele proacuteprio faz do filosofema o
comprova pouco importa os detalhes do desenvolvimento do conceito de
mocircnada humana individual Mas isso se pareceria muito com a criacutetica que
fez Derrida a Foucault e que jaacute mencionamos no iniacutecio Eacute como se Deleuze
tivesse ficado parado na parte da ficccedilatildeo em que Lorenzo Valla fala de um
querer ainda indeterminado uma singularidade preacute-individual apenas
que permitiria bifurcaccedilatildeo e soacute posterior inclusatildeo base de sua gecircnese
estaacutetica ontoloacutegica como um pecar ainda indeterminado um verbo-
atributo que permitiria falar em inclusatildeo do que ainda natildeo estava
totalmente ldquodeterminadordquo natildeo exatamente determinado o em bifurcaccedilatildeo
base daquela ldquounidade objetiva muito especialrdquo a partir de um mundo de
singularidades adjacentes um mundo regido por uma espeacutecie de siacutentese
disjuntiva que permitiria falar em ldquonatureza ambiacutegua da noccedilatildeo de
singularidaderdquo e em ldquocategoria do ponto de vista de um caacutelculo infinitordquo e
permitiria pensar indiviacuteduos possiacuteveis lsquovagosrsquo constituiacutedos ldquopor um
pequeno nuacutemero de predicados que devem ser completados
diferentemente em diferentes mundosrdquo mas tivesse se esquecido que
trata-se para Leibniz de uma ficccedilatildeo falsa que teria desconsiderado o
segundo aspecto do tipo de conhecimento que Apolo-Juacutepiter-Palas-Atena
teria ou seja soacute teria considerado algo semelhante agrave ciecircncia divina de
visatildeo (que vecirc as existecircncias o mundo ou os corpos) e esquecido a ciecircncia
da simples inteligecircncia (que vecirc todos os possiacuteveis sem precedecircncia ou
preferecircncia) neste caso justamente contra ao que advertia o proacuteprio
Leibniz a saber a ciecircncia da simples inteligecircncia eacute ldquoonde eacute preciso
procurar a fonte de todas as coisasrdquo (Idem p 416 [sect417]) tanto dos
mundos ou seacuteries universo quanto dos indiviacuteduos possiacuteveis
Segundo de qualquer modo pouco antes de morrer Leibniz afirmava
para Samuel Clarke
228 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
[sect6] Mas nem essa presciecircncia nem essa preordenaccedilatildeo atentam contra a
liberdade De fato Deus levado pela suprema razatildeo [que pode ser comparada
agrave suprema perfeiccedilatildeo do sect31 do Discurso de metafiacutesica] a fazer a escolha
entre muitas sequecircncias [ou seacuteries] de coisas ou mundos possiacuteveis daquele
em que as criaturas livres tomassem tais e tais resoluccedilotildees ainda que natildeo sem
seu concurso tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez
por todas (tout eacuteveacutenement certain et determine une fois pour toutes) [] esse
simples decreto da escolha natildeo muda mas apenas atualiza as suas naturezas
[as das criaturas livres] vistas por ele em suas ideias (LEIBNIZ 1983 [Quinta
carta] p 194)29
Tanto Arnauld quanto o teoacutelogo Clarke teriam se incomodado com o
mesmo Novamente tendo em vista que a criaccedilatildeo do mundo eacute uma
atualizaccedilatildeo das naturezas das criaturas livres que foram vistas por Deus
em suas ideias e que eacute a partir do conhecimento preacutevio presciecircncia ou
ciecircncia da simples inteligecircncia de ldquotodasrdquo as resoluccedilotildees que elas tomaratildeo
que podemos falar em pontos de vistas de um mundo que as compreende
e que seraacute atualizado junto com elas tendo em vista tudo isso natildeo haacute
motivo para falar em precedecircncia de mundo que resulte em singularidades
preacute-individuais ou que Deus cria ou vecirc primeiro o mundo onde Adatildeo eacute
pecador que levaria a crer que Deus natildeo vecirc ou cria um Adatildeo exatamente
pecador Ou seja nada aponta para uma ldquounidade objetiva muito especialrdquo
que nos obrigaria a diferenciar a noccedilatildeo de individuo possiacutevel com relaccedilatildeo
ao Adatildeo da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld ou do Discurso
da com relaccedilatildeo aos Sextus dos paraacutegrafos finais da Teodiceia Se levarmos
a seacuterio as obras que mencionamos ateacute aqui e principalmente a histoacuteria
contada ao final da Teodiceia mesmo os mundos possiacuteveis tecircm como
conteuacutedo as noccedilotildees completas ou perfeitas de pessoas possiacuteveis e natildeo haacute
por que falar em anterioridade ou preferecircncia do mundo com relaccedilatildeo ao
seu conteuacutedo
29 Mais ny cette prescience ny cette preordination ne derogent point agrave la liberteacute Car Dieu porte par la supremo raison agrave choisir plusieurs suites des choses ou mondes possibiles celuy ougrave les creatures libres prendroient telles ou telles resolutions quoyque non sans son concours a rendu par lagrave tout evenement certain et determine une fois pour toutes sans deroger por lagrave a liberte de ces creatures ce simple decret du choix ne changeant point mais actualisant seulement leur natures libres quirsquoil y voyoit dans ses ideacutees
William de Siqueira Piauiacute | 229
Agora fica claro que ateacute o final da sua vida Leibniz defendeu natildeo soacute
uma noccedilatildeo de pessoa espiritual (previamente conhecida) daiacute de mocircnada
humana individual que de modo nenhum se assemelha agrave noccedilatildeo de uma
pessoa vaga mas tambeacutem de acontecimento (previamente conhecido e
ordenado) que de modo nenhum se assemelha agrave ideia de caos ou que
lembre siacutenteses disjuntivas portanto ambas nada tecircm a ver com as boas
novas que Deleuze viu seja nas trecircs obras de Carroll seja na filosofia dos
Estoicos Na verdade se obedecemos seja agrave ordem de argumentaccedilatildeo do
Discurso seja agrave da Monadologia quem ilumina a noccedilatildeo de
acontecimento mudanccedila ou movimento eacute a de substacircncia individual ou
mocircnada e natildeo o contraacuterio aleacutem disso o que permite compreender o
conhecimento preacutevio que o deus leibniziano teria do mundo a ser
efetivado daiacute criado depende do que ele considerava ser a ciecircncia de
simples inteligecircncia e natildeo de visatildeo
Do nosso ponto de vista o que dissemos ateacute aqui jaacute nos impediria de
aceitar a natildeo ser com muitas ressalvas e natildeo vemos qualquer vantagem
nisso o deslocamento exigido por Deleuze seja na 16ordf seacuterie de Loacutegica do
sentido seja no capiacutetulo ldquoIndividuaccedilatildeo e especificaccedilatildeordquo de A dobra ou
seja inclusive por que natildeo vimos motivo para aceitar a defesa daquela
ldquounidade objetiva muito especialrdquo nos uacuteltimos paraacutegrafos da Teodiceia os
textos que mencionamos parecem fornecer prova suficiente que natildeo eacute
necessaacuterio nos encaminhar para as noccedilotildees de compossibilidade ou
incompossibilidade e regra de convergecircncia ou divergecircncia se queremos
compreender adequadamente o que Leibniz entendia por pessoa ou
indiviacuteduo possiacutevel associado a acontecimento e que seria muito diferente
do que o tinha visto Husserl Ao inveacutes de comeccedilarmos por aceitar tal
deslocamento preferimos nos perguntar Mas quais entatildeo seriam as
principais fontes do deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo de Deleuze ou
da peculiaridade daquela unidade objetiva Nossa hipoacutetese eacute que a Loacutegica
do sentido e mesmo A dobra Leibniz e o barroco estariam associados agrave
excessiva importacircncia que ele deu agrave seguinte parte do sect414 da Teodiceia
230 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
E quando as condiccedilotildees natildeo estiverem determinadas o bastante haveraacute tanto
quanto se quiser de tais mundos diferentes entre si que responderatildeo
diferentemente agrave mesma questatildeo de tantas maneiras quanto eacute possiacutevel Vocecirc
aprendeu geometria quando era ainda jovem como todos os gregos bastante
elevados Vocecirc sabe entatildeo que quando as condiccedilotildees de um assunto que se
pergunta natildeo o determinam o bastante e que haacute uma infinidade deles e ao
menos esse lugar que frequentemente eacute uma linha seraacute determinado Desse
modo vocecirc pode afigurar uma sequecircncia regrada de mundos que conteratildeo
todos ou somente o caso de que se trata e nisso variaratildeo as circunstacircncias e
as consequecircncias Mas se vocecirc coloca um caso que natildeo difere do mundo
atual exceto numa uacutenica coisa definida e na sua sequecircncia um certo
mundo determinado lhe corresponderaacute esses mundos estatildeo aqui [no
palaacutecio dos destinos] quero dizer em ideias (LEIBNIZ 2103 p 413 grifo
nosso)
Novamente os mundos enquanto ideias estatildeo naquele ambiente
regido pela ciecircncia de simples inteligecircncia Mas talvez tenhamos aqui o
uacutenico caso em que uma variedade de mundos eacute posta antes dos indiviacuteduos
possiacuteveis ou da determinaccedilatildeo completa dos acontecimentos com suas
circunstacircncias e permitiria falar em uma unidade objetiva especial
entretanto eacute preciso lembrar que trata-se de uma suposiccedilatildeo em que ldquoas
condiccedilotildees natildeo estejam determinadasrdquo exatamente com o mesmo sentido
de suposiccedilatildeo da menccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pessoa vaga da nota agrave carta de Arnauld
ndash que jaacute mencionamos tantas vezes de qualquer modo tal suposiccedilatildeo deve
ser compreendida com a ajuda de noccedilotildees tiradas de uma geometria que jaacute
era conhecida dos gregos30 e no miacutenimo natildeo justifica simplesmente o
apelo ou passagem para uma topologia de superfiacutecie ou para a defesa da
tese que em Leibniz podemos encontrar a defesa da noccedilatildeo completa ou
perfeita de uma substacircncia particular a partir da de singularidade
subjacente ou de uma unidade objetiva especial Todavia e em primeiro
lugar tambeacutem eacute preciso lembrar o que vem logo em seguida e que
grifamos no texto acima justamente o que permite a consequecircncia e
30 Vejam que aqui o proacuteprio Leibniz natildeo faz qualquer referecircncia agraves novidades que havia descoberto em matemaacutetica seja com relaccedilatildeo ao infinito agraves singularidades ou aos signos ambiacuteguos o que ele faz ou daacute a entender em outros momentos da Teodiceia ele prefere tendo em vista a eacutepoca em que viveria o personagem Teodoro se referir ao que jaacute era conhecido a partir da geometria dos gregos
William de Siqueira Piauiacute | 231
comparaccedilatildeo que viratildeo a seguir ou seja neste palaacutecio dos destinos Palas
Atena diz que mostraraacute a Teodoro ldquoonde (ougrave) ele [Sextus] se encontraraacuterdquo
ao que se seguira a advertecircncia ldquonatildeo completamente o mesmo Sextus que
vocecirc viu isto natildeo pode ser pois ele leva sempre consigo aquilo que ele
seraacute mas outros Sextus semelhantesrdquo mas tambeacutem totalmente
determinados ldquoque teratildeo o que vocecirc jaacute conhece do verdadeiro Sextusrdquo
Tudo segue no sentido de que haacute presciecircncia das ldquosequecircncias [ou seacuteries]
de coisas ou mundos possiacuteveisrdquo nos quais tais ou tais ldquocriaturas livres
tomassem tais e tais resoluccedilotildeesrdquo Claro que aquele ldquoonderdquo se refere a um
lugar que deve ser pensado no plano das ideias e aqui sim poderiacuteamos
utilizar a topologia leibniziana (Caracteriacutestica Geomeacutetrica ou Analysis
situs) ou a doutrina do espaccedilo e tempo relacionais para compreender o
que seria a noccedilatildeo individual completa e perfeita de um tal Sextus Seja
como for jaacute podemos dizer que tal ou tais Sextus nada tecircm a ver com o
Fang de ldquoO jardim de caminhos que se birfurcamrdquo31 de Borges daiacute de Silvia
e Bruno ou das Alices de Carroll ou seja apesar de estar de acordo que
Leibniz eacute um antigeneralista quando se trata das noccedilotildees completas ou
perfeitas isso natildeo traz a consequecircncia que por isso ele teria de defender a
constituiccedilatildeo de indiviacuteduos a partir de singularidades adjacentes A natildeo
necessidade da consequecircncia pode ser pensada natildeo soacute a partir do que de
fato lemos no sect414 da Teodiceia mas ainda mais explicitamente nos dois
momentos do sect9 do Discurso eacute verdade que ali Leibniz se mostra um
antigeneralista e nesse sentido um antitomista mas tambeacutem eacute verdade
que manteacutem a noccedilatildeo tomista das inteligecircncias separadas para a
compreensatildeo adequada do que ele havia defendido no sect8 da mesma obra
a saber quod ibi omne individuum sit specie infima Concordamos que
para pensar a noccedilatildeo leibniziana de espeacutecie a partir dessa antigeneralidade
eacute preciso opor a noccedilatildeo matemaacutetica de espeacutecie agrave noccedilatildeo fiacutesica de espeacutecie
mas novamente isso natildeo eacute razatildeo suficiente para recusar o que ele mesmo
afirma no sect9 e que faz o fundo de grande parte da oposiccedilatildeo dele ao
nominalismo de um Locke nos Novos ensaios E quanto ao que Leibniz
31 Cf BORGES 2005 [Ficciones] p 80
232 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
diz da existecircncia das espeacutecies no sentido matemaacutetico prefeririacuteamos
interpretaacute-la a partir do embate que ele teve com Newton quanto agrave
realidade e materialidade dos objetos matemaacuteticos que pode ser
depreendida do que eacute afirmado em Sobre o peso ndash a gravitaccedilatildeo ndash e
equiliacutebrio dos fluidos (De gravitatione et aequipondio fluidorum)32
Cremos que para o alematildeo as figuras matemaacuteticas natildeo precisam existir
para que falemos em verdade ou em movimentos em acordo com elas a
verdade de tais objetos eacute de outra ordem satildeo verdades eternas que
tambeacutem mas diferentemente das noccedilotildees de indiviacuteduos fazem o conteuacutedo
do intelecto divino Mas isso natildeo eacute o fundamental aqui
De qualquer forma parece-nos que foi justamente a excessiva
importacircncia que Deleuze conferiu a aquela parte tendo sido separada de
seu final consequecircncia e comparaccedilatildeo que conduziu Deleuze ao final do
texto ldquoSobre o meacutetodo universalrdquo33 o que seraacute mantido e de certa forma
intensificado em A dobra o que mais uma vez seraacute chamado para
fundamentar a exigecircncia de parte daquele deslocamento isto eacute o
pensamento generalista de Leibniz conduziria diretamente agrave exigecircncia do
uso geral das regras de convergecircncia e divergecircncia ndash e mesmo a um caacutelculo
do infinito ou agrave noccedilatildeo de signo ambiacuteguo ndash para as singularidades
adjacentes e o consequente delas para as noccedilotildees de compossibilidade e
incompossibilidade34
Do nosso ponto de vista talvez associada a essa importacircncia
exagerada e por que natildeo interpretaccedilatildeo equivocada outro problema talvez
ainda mais grave de exegese parece ter tido origem no lugar de parada que
Deleuze fez ou permite que faccedilamos no iniacutecio do sect47 da Quinta carta a
Clarke texto que de fato soacute pode ser interpretado a partir de parte da
32 Para um comeccedilo de conversa indicariacuteamos o nosso artigo ldquoQuerela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo agrave filosofia modernardquo
33 Cf LEIBNIZ 1903 [Opuscules et fragments ineacutedits de Leibniz] p 145
34 Vale relembrar a ordem de dependecircncia das suposiccedilotildees ldquoEacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na filosofia de Leibniz Pois (III) a inerecircncia de predicados na mocircnada expressiva supotildee primeiro (II) a compossibilidade do mundo expresso e esta por sua vez supotildee (I) a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdaderdquo (DELEUZE 2003 p 115)
William de Siqueira Piauiacute | 233
topologia leibniziana e da doutrina do espaccedilo e tempo relacionais quer
dizer ele teria parado justamente no modo como os homens
semelhantemente a Newton pensam a noccedilatildeo de movimento (daiacute mudanccedila
referente aos corpos por consequecircncia acontecimento) situaccedilatildeo e
possiacutevel teria parado e pensado a noccedilatildeo de indiviacuteduo apenas a partir de
uma topologia posicional que desconsidera justamente a necessidade de os
acidentes natildeo passearem fora das mocircnadas Neste caso Deleuze teria
esquecido de separar e mesmo teria invertido a importacircncia as duas
partes do texto ou seja a que comeccedila com ldquoEis como os homens chegam
a formar a noccedilatildeo de espaccedilordquo e a que comeccedila com ldquoE eacute bom considerar aqui
a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa
o lugarrdquo que continua com ldquodois sujeitos diferentesrdquo ldquonatildeo poderiam ter
precisamenterdquo de modo completamente determinado ldquoa mesma situaccedilatildeo
individual natildeo podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em
dois sujeitos nem passar de sujeito para sujeitordquo Onde pois colocar o
Fang de Borges se natildeo queremos ir contra a doutrina leibniziana do espaccedilo
e tempo relacionais ou fazer esquecer a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo
de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugar ou que um mesmo acidente
individual natildeo pode encontrar-se em dois sujeitos Trata-se de retomada
explicita do sect7 da Monadologia que deve ser compreendida a partir de
uma noccedilatildeo de mocircnada fechada e natildeo vemos outro jeito do princiacutepio do
predicado inerente ao sujeito ou de predicados acontecimento (sentido
claacutessico) dados de uma vez por todas e natildeo atributos verbais que se
associem a uma espeacutecie de siacutentese disjuntiva ou exijam uma unidade
objetiva muito especial
Uma interpretaccedilatildeo atenta agrave inversatildeo necessaacuteria teria permitido a
Deleuze compreender o motivo da afirmaccedilatildeo de Leibniz no sect61 da
Monadologia segundo a qual os corpos les composeacutes apenas simbolizam
(symbolisent) no sentido que apenas ldquoconcordam comrdquo e que remeteria
ao convencionalismo no sentido que sozinhos careceriam de fundamento
defendido no sect1 do De interpretatione de Aristoacuteteles os fenocircmenos bem
234 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
fundados apenas simbolizam os simples35 e natildeo o contraacuterio o que mais
uma vez parece colocar Deleuze em dificuldades se se pretende afirmar a
precedecircncia do mundo ou dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees completas de
indiviacuteduos ou agrave necessidade de recorrer agraves singularidades adjacentes
E aqui do nosso ponto de vista chegamos ao ponto central do
deslocamento exigido por Deleuze desde a Loacutegica do sentido ele toma
seu pleno sentido somente se invertermos o plano argumentativo da
Monadologia ou seja se recusamos o caminho sinteacutetico do simples para
o composto dito de outro modo se pensarmos o conceito de mocircnada a
partir de uma matemaacutetica uma topologia que utilizariacuteamos para dar
conta das mudanccedilas que ocorreriam no plano dos corpos mas sem
individuaccedilatildeo preacutevia isto eacute a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos corpos viria em
primeiro lugar e comporia a seacuterie universo mas isso eacute inverter a ordem
de importacircncia entre a metafiacutesica e dinacircmica ndash ir contra o que diz o sect18
do Discurso ndash e eacute preciso estar muito atento para natildeo defender sem o
saber uma distinccedilatildeo que funciona muito bem no plano dos corpos mas
que eacute solo nuacutemero com relaccedilatildeo ao que de fato resolve o problema da
mudanccedila dito de outro modo tal inversatildeo desconsideraria justamente o
fundamento da ldquorelaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo
A proacutepria ordem dos capiacutetulos de A dobra evidenciaria tal inversatildeo as
consideraccedilotildees sobre as redobras na mateacuteria vecircm antes das sobre as dobras
nas almas e seu capiacutetulo 5 estaacute repleto de consideraccedilotildees que tomam o
corpo ou o mundo antes daquilo que faz o fundamento ldquoda relaccedilatildeo de
situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo
35 ldquoEt les composeacutes symbolisent en cela avec le simplesrdquo (LEIBNIZ 2004 p 235) Mais natildeo eacute o exato contraacuterio que defendiam os estoicos nesse sentido invertendo o valor da ldquoexpressatildeordquo do expresso do lekton Seria estranho que algueacutem que defendeu muitas vezes tanto o fato que os estoicos foram os criadores da filosofia da linguagem quanto que sua diferenciaccedilatildeo e dependecircncia entre lekton e corpo eram baacutesicas para a loacutegica do sentido e do acontecimento defendesse o contraacuterio mas aqui mantemos a suposiccedilatildeo de uma mudanccedila de ponto de vista que parece ter ocorrido por volta da elaboraccedilatildeo de Mil platocircs e que ficaria mais evidente nos capiacutetulos de tiacutetulo ldquoPostulados da linguiacutesticardquo e ldquoSobre alguns regimes de signosrdquo ou seja a partir de 1980 o conceito de palavra de ordem (le mot drsquoordre) o registro do lekton passa a assumir o mesmo valor causal que os corpos mais forccedila ainda para o plano da expressatildeo Marca inconteste da ldquogenialidaderdquo do francecircs teriacuteamos permanecido ainda mais leibnizianos ndash um Leibniz deleuzeano natildeo nos esqueccedilamos ndash a partir da deacutecada de 80 portanto talvez o principal motivo que levou Deleuze a voltar aos textos de Leibniz e intensificar os pontos principais da 16ordf seacuterie de a Loacutegica do sentido
William de Siqueira Piauiacute | 235
Do nosso ponto de vista tal inversatildeo que consideramos ser o
fundamento real da exigecircncia daquele deslocamento eacute o problema mais
grave da interpretaccedilatildeo que Deleuze faz da filosofia leibniziana ela teria
desconsiderado a resposta que Leibniz teria dado a um outro problema
levantado por Newton em De gravitatione et aequipondio fluidorum
mas que se associava agrave caracterizaccedilatildeo cartesiana do movimento e que fica
explicito no uso da expressatildeo affectiones locorum ou the properties of
places por parte do inglecircs Problema que para Leibniz tem de ser
resolvido para que possamos falar em mudanccedila ou movimento real Isso
nos permite formular um questionamento para a interpretaccedilatildeo geral
empreendida por Deleuze seja em A dobra seja em Loacutegica do sentido
Como diferenciar a noccedilatildeo newtoniana de individuaccedilatildeo (solo numero) da
leibniziana se nos mantemos apenas nas affectiones locorum36 Vale
lembrar que a filosofia natural de Newton e sua matemaacutetica tambeacutem
permitem singularidades adjacentes Com as agravantes Como o
equacionou Leibniz natildeo eacute justamente por seu fechamento que o conceito
de mocircnada resolve o problema cartesiano do movimento Dito de outro
modo Como o conceito de mocircnada baseado em singularidades adjacentes
tatildeo semelhante ao de vizinhanccedila imediata resolveria o problema da causa
proacutexima do movimento Assim cremos que a leitura de Deleuze aproxima
perigosamente Leibniz de Newton sem ter respondido suficientemente agrave
pergunta geral Por que a preferecircncia pelo alematildeo se em termos de
descoberta e grande parte do tipo de uso que ambos fizeram do caacutelculo
diferencial e integral de uma geometria de posiccedilatildeo e mesmo das regras de
convergecircncia e divergecircncia nada impediria de ver tambeacutem na filosofia do
inglecircs uma topologia de superfiacutecies37 E terminariacuteamos com as
provocaccedilotildees oacutebvias Permanecemos leibnizianos ou newtonianos
36 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect47 da uacuteltima carta a Clarkerdquo ou ldquoLeibniz y el papel de la imaginacioacuten en la geacutenesis de la nocioacuten de espacio newtonianordquo
37 Referimo-nos ao que eacute defendido entre outros no excelente livro De Newton y los newtonianos entre Descartes e Berkeley de Laura Benitez Grobet e Joseacute A Robles Garciacutea cf Bibliografia De qualquer modo o que estamos tentando dizer aqui agravaria ainda mais tais questionamentos desde que a hipoacutetese defendida por Benitez Grobet e Robles Garciacutea eacute a de que Newton precisava de um outro modelo de predicaccedilatildeo que natildeo a aristoteacutelica e por que natildeo da recusa do princiacutepio in-esse para levar a cabo sua filosofia natural e nesse sentido vale lembrar as muitas vezes em que Leibniz pergunta a Clarke que papel em termos de predicaccedilatildeo aristoteacutelica em termos de sujeito predicado
236 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Conclusatildeo
Do nosso ponto de vista em primeiro lugar a tese ceacutelebre de Leibniz
segundo a qual cada mocircnada individual exprime o mundo pode e deve ser
compreendida a partir do princiacutepio de inerecircncia do predicado no sujeito
obviamente um grande desafio para o inteacuterprete em segundo lugar natildeo
eacute verdade que para Leibniz Deus criou o mundo antes das ou de
preferecircncia agraves mocircnadas ao menos natildeo no sentido que haveria de fato
inclusatildeo posterior de algum acidente (enquanto predicado um adjetivo)
natildeo jaacute preacute-vista nas noccedilotildees completas de indiviacuteduos ou pessoas ou mesmo
na seacuterie possiacutevel de um mundo em terceiro lugar se aquela precedecircncia
ou preferecircncia for pensada em termos de compossibilidade e
incompossibilidade ndash que oferecesse alguma alternativa para o princiacutepio
de contradiccedilatildeo ndash eacute preciso lembrar que o entendimento divino eacute fora da
ordem do tempo e mais uma vez natildeo podemos falar em precedecircncia ou
preferecircncia de partes de suas operaccedilotildees e por fim natildeo vemos como as
regras de convergecircncia e divergecircncia nos ajudariam ou seria necessaacuterio
recorrer a elas para corroborar a interpretaccedilatildeo de Deleuze se aquela
precedecircncia ou preferecircncia natildeo se viu confirmada Assim natildeo vemos
motivos para aceitar a necessidade do deslocamento que Deleuze pretende
impor desde a Loacutegica do sentido Vale lembrar que nossa oposiccedilatildeo nada
tem a ver com o uso do caacutelculo diferencial e integral e as regras de
convergecircncia e divergecircncia para pensar o conceito de mocircnada ldquofechadardquo
e mesmo de uma topologia de superfiacutecie jaacute mostramos em outro lugar38 o
como a matemaacutetica criada por Leibniz pode ajudar a pensar um conceito
de mocircnada humana individual fechada e de seacuterie universo fechado em
e acidente desempenharia o tempo e espaccedilo absolutos de Newton Sendo que o sect47 da quinta resposta que deu a Clarke deve ser considerado justamente natildeo soacute como uma tentativa de se manter fiel aacute metafiacutesica que fundamenta a loacutegica aristoteacutelica e o inicio da Monadologia mas tambeacutem sem perder de vista seja os princiacutepios de sua topologia (Caracteriacutestica Geometrica ou Analysis situs) seja de sua doutrina do espaccedilo e tempo relacionais
38 Cf nossos artigos ldquoMatemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e Integral e o processo psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeordquo e ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo
William de Siqueira Piauiacute | 237
pleno acordo com sua metafiacutesica e sua dinacircmica em uma palavra em
pleno acordo com a histoacuteria contada ao final da Teodiceia
Por fim se na ldquoobra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduordquo
ldquoque descobre o sentido e jaacute pressente o natildeo-senso remontando agrave
superfiacutecie a partir de um mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que
se envolve nela e lhe impotildee a dura lei das misturasrdquo ela nada tem a ver
com o conceito leibniziano de mocircnada humana individual ou substacircncia
particular e se novamente na ldquoobra de Carrollrdquo ldquoSilvia e Bruno seriam
antes como as pessoas lsquovagasrsquo que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila
ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo comum a vaacuterios mundos mundo dos
homens e mundo das fadasrdquo a proacutepria referecircncia agrave noccedilatildeo lsquopessoa vagarsquo
deveria ser prova suficiente que natildeo podem ser melhor compreendidas a
partir das noccedilotildees leibnizianas de mocircnada humana individual ou
substacircncia particular Mas natildeo eacute justamente porque queremos estar com
Carroll ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de sujeito ou contestaccedilatildeo da
identidade pessoal ndash e Mallarmeacute ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de
livro ou texto ndash que natildeo somos leibnizianos e nem mesmo newtonianos
E aqui deixamos algo mais que a simples discordacircncia entre os ldquofiloacutesofosrdquo
Badiou e Deleuze
Referecircncias39
BADIOU Alain A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX Trad Antonio Teixeira e
Gilson Iannini Belo Horizonte MG Autecircntica 2015
BENITEZ GROBET Laura e GARCIacuteA Joseacute A Robles De Newton y loacutes newtonianos entre
Descartes e Berkeley Argentina Universidad Nacional de Quilmes 2006
BORGES Jorge Luis O jardim de caminhos que se bifurcam In _____ Ficccedilotildees Trad
Carlos Nejar Satildeo Paulo Ed Globo 1989
39 Tendo em vista que se tratava inicialmente de um minicurso cremos ser justificativa suficiente para oferecermos uma Bibliografia ao inveacutes de apenas referecircncias bibliograacuteficas
238 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ El jardiacuten de senderos que se bifurcan In _____ Ficiones Buenos Aires Emeceacute
Editores 2005
CARROLL Lewis (Charles Lutwidge Dodgson) As aventuras de Alice no paiacutes das
maravilhas e Atraveacutes do espelho e o que Alice encontrou laacute Trad Sebastiatildeo
Uchoa Leite Satildeo Paulo Ed Summus 1980
_____ Algumas aventuras de Siacutelvia e Bruno Trad Seacutergio Medeiros Satildeo Paulo
Iluminuras 1997
_____ Complete Works Nova York Vintage Books 1976
_____ Diaries Londres Cassell 1953
_____ The selected letters Londres Macmillan 1989
DELEUZE Gilles A dobra Leibniz e o barroco Trad Luiz B L Orlandi Campinas SP
Papirus 1991
_____ Loacutegica do sentido Trad Luiz Roberto Salinas Fortes Satildeo Paulo Ed Perspectiva
2003
_____ Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro
Graal 2006
_____ Exasperacioacuten de la filosofiacutea el Leibniz de Deleuze Trad equipe editorial Cactus
Buenos Aires Ed Cactus 2006
_____ Conversaccedilotildees Trad Peter Paacutel Pelbart Rio de Janeiro Ed 34 2013
DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia Trad Luiz
B L Orlandi Rio de Janeiro Ed 34 2011
DERRIDA Jacques ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo In _____ A escritura e a diferenccedila Trad
Maria Beatriz Marques Nizza da Silva et al Satildeo Paulo Ed Perspectiva 2014
HUISMAN Denis Dicionaacuterio de filoacutesofos Trad Claudia Berlinder et al Satildeo Paulo Martins
Fontes 2001
William de Siqueira Piauiacute | 239
HUSSERL Edmund Meditaccedilotildees cartesiana introduccedilatildeo agrave fenomenologia Trad Frank de
Oliveira Satildeo Paulo Ed Madras 2001
LEIBNIZ G W Opuscule et fragments ineacutedits de Leibniz Organizado por Louis
Couturat Paris Alcan 1903
_____ Correspondance Leibniz-Clarke (Org Andreacute Robinet) Paris Presses
Universitaires de France (PUF) 1957
_____ The Leibniz-Clarke correspondence with extracts from Newtonrsquos ldquoPrincipiardquo and
ldquoOpticsrdquo Org H G Alexander Manchester Manchester University Press 1956
_____ Die philosophischen Schriften (GP IV Letter to Molanus (p 297-303) On God
and Soul (1679) e GP V Nouveaux essais Hildesheim Olms 1960
_____ Mathematische Schriften (GM) Hildesheim Olms 1962
_____ Anaacutelisis infinitesimal Trad Teresa Martin Santos Madri Tecnos 1987
_____ Sobre a anaacutelise da situaccedilatildeo Trad Homero Santiago Cadernos de filosofiacutea alematilde
n 5 p 64-75 1999
_____ La caracteacuteristica geacuteomeacutetrique Trad Marc Parmentier Paris J Vrin 1995
_____ Discurso de metafiacutesica Monadologia Correspondecircncia com Clarke Trad
Marilena de Souza Chauiacute e Carlos Lopes de Mattos Satildeo Paulo Ed Abril Cultural
1983
_____ Discurso de metafiacutesica e outros textos Trad Marilena Chauiacute e Alexandre da Cruz
Bonilha Satildeo Paulo Ed Martins Fontes 2004
_____ Discours de metaphysique suivi de Monadologia et autres textes Estabelecido
apresentado e com notas de Michel Fichant Paris Gallimard 2004
_____ La monadologiacutea Trad Virginia Naughton Buenos Aires Quadrata 2005
_____ Novos ensaios Trad Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Abril Cultural 1984
_____ Nouveaux essais Paris Flamarion 1990
240 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ Correspondencia con Arnauld Trad Vicente P Quintero Buenos Aires Ed
Losada 2004
_____ Correspondance de Leibniz et drsquoArnauld In _____ Œuvres philosophiques de
Leibniz aos cuidados de Paul Janet) Paris Alcan 1900
_____ Observaccedilotildees quanto ao livro sobre a origem do mal publicado haacute pouco na
Inglaterra (sectsect 18-22) [Leibniz e a metafiacutesica das diferenccedilas qualitativas dos
possiacuteveis] Theoria revista eletrocircnica de filosofia v 4 n 11 p 151-60 2012
_____ Ensaios de Teodiceia Trad William de Siqueira Piauiacute e Juliana Cecci Silva Satildeo
Paulo Ed Estaccedilatildeo Liberdade 2013
_____ Essais de theacuteodiceacutee Paris Flamarion 1969
_____ Escritos Filosoacuteficos Org Ezequiel Olaso Buenos Aires Ed Charcas 1982
PIAUIacute William de Siqueira Leibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da
criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartes Prometeus ano 10 n 22 p 49-64 2017
_____ Derrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeo
Prometeus ano 10 n 24 p 178-93 2017
_____ Leibniz y el papel de la imaginacioacuten em la geacutenesis de la nocioacuten de espacio
newtoniano Imaginacioacuten y conocimiento de Descartes a Freud NASR Zuraya
Monroy e RODRIacuteGUEZ-SALAZAR Luis Mauriacutecio Meacutexico Ed Corinter e Ed Gedisa
p 33-49 2016
_____ Leibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologia Prometeus ano 9 n 19 p 100-26
2016
_____ Querela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo aacute filosofia
moderna Kalagatos v 11 n 21 p 523-49 2014
_____ Leibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect 47 da uacuteltima carta a Clarke
Prometeus ano 6 n 11 p 9-34 2013
_____ Noccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibniz Cadernos de
histoacuteria e filosofia da ciecircncia v 21 n 1 p 257-87 2011
William de Siqueira Piauiacute | 241
_____ Matemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e integral e o processo
psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeo Theoria ndash Revista eletrocircnica de Filosofia Pouso
Alegre v 5 p 1-16 2010
_____ Leibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeo Aacutegora filosoacutefica
Pernambuco Universidade Catoacutelica ano 6 n 1 p 117-36 2006
PIAUIacute William de Siqueira e CECCI SILVA Juliana Leibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agraves
teorias tradicionais da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegada O
Mutum revista de literatura e pensamento (Dossiecirc Literatura escrever o pensar)
Org por Piero Eyben Brasiacutelia UnB n 1 v 1 p 183-203 2013
SARTRE Jean-Paul A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica
Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Cadernos
espinosanos n 22 2010 p 183-228
_____ A transcendecircncia do ego esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica Trad Joatildeo
Batista Kreuch Petroacutepolis RJ Ed Vozes 2013
Sobre os Organizadores
Natural de Brasiacutelia Marcus Joseacute Alves de
Souza eacute Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal da Paraiacuteba
Professor do Instituto de Ciecircncias
Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes e do
Mestrado em Filosofia da Universidade
Federal de Alagoas Liacuteder do Grupo de
Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo
Potiguar de Mossoroacute Maxwell Morais de
Lima Filho eacute Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal do Cearaacute e
Professor do Instituto de Ciecircncias
Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes da
Universidade Federal de Alagoas desde
2011
A Editora Fi eacute especializada na editoraccedilatildeo publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de pesquisa
acadecircmicacientiacutefica das humanidades sob acesso aberto produzida em parceria das mais diversas instituiccedilotildees de ensino superior no Brasil Conheccedila
nosso cataacutelogo e siga as paacuteginas oficiais nas principais redes sociais para acompanhar novos lanccedilamentos e eventos
wwweditorafiorg
contatoeditorafiorg
Diagramaccedilatildeo Marcelo A S Alves
Capa Carole Kuumlmmecke - httpswwwbehancenetCaroleKummecke
Arte de Capa Pedro Lucena
Revisatildeo ortograacutefica Marcus Viniacutecius Matias
Revisatildeo das regras da ABNT Iuri Rocio Franco Rizzi
O padratildeo ortograacutefico e o sistema de citaccedilotildees e referecircncias bibliograacuteficas satildeo prerrogativas de
cada autor Da mesma forma o conteuacutedo de cada capiacutetulo eacute de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor
Todos os livros publicados pela Editora Fi
estatildeo sob os direitos da Creative Commons 40
httpscreativecommonsorglicensesby40deedpt_BR
httpwwwabecbrasilorgbr
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs)
Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo [recurso eletrocircnico] Marcus Joseacute Alves de Souza Maxwell Morais de Lima
Filho (Orgs) -- Porto Alegre RS Editora Fi 2019
242 p
ISBN - 978-85-5696-748-0
Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg
1 Filosofia 2 Cogniccedilatildeo 3 Linguagem 4 Loacutegica 5 Mente I Tiacutetulo
CDD 100
Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico
1 Filosofia 100
Para Bia Jorginho
Tissi Camu e o Ecossistecircmico Rudaacute
Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Marcus Joseacute Alves de Souza
1 14
Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica
Manfredo Arauacutejo de Oliveira
2 40
Encheiriacutedion Capiacutetulo I Traduccedilotildees e Comentaacuterios
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio
3 53
A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva da Filosofia Analiacutetica da Mente
Taacuterik de Athayde Prata
4 69
A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico A Criacutetica de John Searle agraves Principais
Correntes da Filosofia da Mente
Maxwell Morais de Lima Filho
5 98
Da Natureza Humana As Perspectivas Epistemoloacutegicas de Piaget Chomsky e
Foucault
Argus Romero Abreu de Morais
6 116
Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche A Leitura de Guumlnter Abel
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa
7 133
Habermas e o Problema do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira
8 146
Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes para se Pensar a Natureza de Sistemas
Formais Uma Abordagem Wittgensteiniana
Marcos Silva
9 158
Revisitando o Argumento da Linguagem Privada
Marcus Joseacute Alves de Souza
10 172
O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico
Ricardo S Rabenschlag
11 184
A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo
Sagid Salles
12 201
O Leibniz de Deleuze Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido
William de Siqueira Piauiacute
Sobre os Organizadores 242
Apresentaccedilatildeo
Marcus Joseacute Alves de Souza
O empreendimento filosoacutefico eacute uma atividade coletiva especialmente
por seu caraacuteter corretivo estabelecido em debate puacuteblico Eacute claro que haacute
momentos de reflexatildeo solitaacuteria mas mesmo estes satildeo momentos de
organizaccedilatildeo discursiva que visam agrave correccedilatildeo em debate e o debate com
os autores eacute fundamental para o desenvolvimento do empreendimento
filosoacutefico Ao apresentar este novo volume da seacuterie Escritos de Filosofia
Linguagem e Cogniccedilatildeo gostariacuteamos de enfatizar estes dois aspectos
sugeridos no iniacutecio o aspecto coletivo e o corretivo deste trabalho Na
dimensatildeo coletiva este eacute mais um fruto da atividade do Grupo de Pesquisa
Linguagem e Cogniccedilatildeo da Universidade Federal de Alagoas Ele resulta da
continuidade de um trabalho que desde 2014 reuacutene profissionais de
Filosofia de variadas instituiccedilotildees para apresentarem e debaterem suas
pesquisas Num Estado com pouca tradiccedilatildeo em realizaccedilatildeo deste tipo de
atividade a reuniatildeo coletiva para divulgaccedilatildeo de pesquisas eacute uma conquista
que deve ser ressaltada pois fortaleceu o Grupo de Pesquisa e originou
uma linha do receacutem-criado Mestrado Acadecircmico de Filosofia da UFAL
(2018) Mas filoacutesofos se reuacutenem especialmente para apresentar ideias e
debatecirc-las numa perspectiva de autocorreccedilatildeo entre pares Isso vem se
dando nas atividades do Grupo inclusive nos Encontros seis ateacute agora
mas sobretudo atraveacutes desta seacuterie de publicaccedilotildees Aqui o aspecto
corretivo ganha relevo A perspectiva eacute incrementar ainda mais uma
tradiccedilatildeo de publicaccedilotildees que mantenha o debate de ideias vivo
contribuindo para o avanccedilo das discussotildees filosoacuteficas daqueles que
tomarem contato com cada publicaccedilatildeo da seacuterie Escritos de Filosofia
Linguagem e Cogniccedilatildeo Possibilitando assim a acareaccedilatildeo criacutetica dos vaacuterios
12 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
escritos e animando o avanccedilo do conhecimento filosoacutefico num acircmbito da
Filosofia que reuacutene temas relacionados agraves aacutereas de Loacutegica da Filosofia da
Linguagem da Filosofia da Mente e da Epistemologia
Os textos aqui apresentados satildeo resultado do IV Encontro Linguagem
e Cogniccedilatildeo realizado em novembro de 2017 que reuniu mais uma vez
profissionais de vaacuterias instituiccedilotildees (UFAL UFAM UFPI UFS UFC UFPE
UFSJ PUC-Rio UnB dentre outras) no intuito de avanccedilarmos a pesquisa
filosoacutefica nos contextos alagoano e nordestino Como nas outras ediccedilotildees
as temaacuteticas de investigaccedilatildeo estatildeo relacionadas agrave loacutegica agrave linguagem agrave
consciecircncia e ao conhecimento
Eacute importante afirmarmos que para aleacutem de uma possiacutevel
organicidade temaacutetica dos textos este livro eacute resultado tambeacutem de
confluecircncias de amizades construiacutedas pelo interesse filosoacutefico Nisso
nossos Encontros tecircm se mostrado frutiacuteferos ao mostrar a forccedila da
tradiccedilatildeo de associar a ldquoamizade ao saberrdquo
Esta eacute a terceira coletacircnea da seacuterie Escritos de Filosofia Linguagem e
Cogniccedilatildeo mostrando continuidade e esforccedilo em darmos publicidade ao
trabalho de pesquisa realizado Reforccedilando e aprofundando laccedilos teoacutericos
de investigaccedilatildeo este volume eacute composto de 12 capiacutetulos escritos por 14
pesquisadores de 8 instituiccedilotildees (UFAM UFPI UFC UECE UFPE UFAL
UFS e UFSJ) O leitor teraacute oportunidade de refletir e avaliar criticamente
sobre uma diversidade de temas filosoacuteficos Neste ponto eacute interessante
destacar que os temas abarcados vatildeo aleacutem daquilo que ficou conhecido
como ldquoFilosofia Analiacuteticardquo haja vista a salutar heterogeneidade de autores
e abordagens jaacute presente nos outros volumes
O leitor poderaacute pensar a trajetoacuteria histoacuterico-filosoacutefica da conhecida
ldquoreviravolta linguiacutesticardquo e avaliar se efetivamente saiacutemos de um marco
reflexivo da subjetividade para o da linguagem em Filosofia Ler um
trabalho cuidadoso de traduccedilatildeo comentada de um capiacutetulo do Encheiriacutedion
de Epicteto Tomar contato com uma reflexatildeo sobre o conceito de
consciecircncia em Sartre numa perspectiva analiacutetica Compreender a criacutetica
de John Searle agraves principais correntes da Filosofia da Mente Revisitar o
Marcus Joseacute | 13
tema da natureza humana a partir de trecircs autores natildeo-analiacuteticos Piaget
Foucault e Chomsky Rediscutir os temas da consciecircncia da linguagem e
da natureza em Nietzsche a partir da avaliaccedilatildeo de Guumlnter Abel
Aprofundar no conhecimento da temaacutetica da objetividade dentro do
pensamento de Habermas Refletir sobre o conceito de jogo em sistemas
loacutegicos formais Retomar a discussatildeo do argumento da linguagem privada
de Wittgenstein Avaliar aspectos filosoacuteficos do pensamento dos ldquonovos
ateusrdquo Aproximar-se da problemaacutetica da vagueza numa avaliaccedilatildeo criacutetica
da teoria trivalente da vagueza e as dificuldades loacutegico-filosoacuteficas do
estabelecimento da precisatildeo conceitual Analisar de modo criacutetico a
interpretaccedilatildeo que Deleuze faz de Leibniz Enfim o leitor teraacute oportunidade
de pensar temas autores e abordagens variadas neste volume Esperamos
que seja de proveito para conhecimento inicial ou mesmo de
aprofundamento para o leitor experiente em Filosofia e que todos tenham
uma leitura filosoficamente estimulante
Agradecemos aos participantes que gentilmente forneceram os textos
para a composiccedilatildeo deste trabalho coletivo Agradecemos agrave agecircncia de
fomento agrave pesquisa de Alagoas FAPEAL (Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa
do Estado de Alagoas) pelo apoio financeiro ao evento que deu origem a
este volume Ao apoio do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e
Artes (ICHCA) e do Curso de Filosofia da UFAL A todos que contribuem
com as atividades o Grupo de Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo da UFAL Agrave
Editora Fi pela parceria nesta publicaccedilatildeo
Maceioacute setembro de 2019
1
Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta
de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica
Manfredo Arauacutejo de Oliveira 1
A filosofia se encontra hoje diante de um desafio que tem a ver com
a proacutepria forma de sua configuraccedilatildeo enquanto teoria ou seja o desafio da
articulaccedilatildeo de um novo paradigma teoacuterico O ponto de partida desta
situaccedilatildeo foi certamente a reviravolta linguiacutestica ou seja a substituiccedilatildeo no
pensamento de Frege da anaacutelise de sensaccedilotildees representaccedilotildees e juiacutezos pela
anaacutelise das expressotildees linguiacutesticas Quine (1981 p 23) ao fazer um
balanccedilo dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do seacuteculo
XX afirmou que o evento decisivo e irreversiacutevel da filosofia depois de
Hume foi a reviravolta linguiacutestica Que significa isto para a filosofia Hoje
haacute pensadores que defendem que ela apenas significou uma radicalizaccedilatildeo
da reviravolta transcendental da filosofia moderna Faremos uma breve
apresentaccedilatildeo da proposta da fenomenologia transcendental no
pensamento de Husserl que levantou a pretensatildeo de articular o paradigma
transcendental da forma mais rigorosa possiacutevel para poder depois mostrar
que a reviravolta linguiacutestica natildeo necessariamente se deve entender como
uma radicalizaccedilatildeo deste paradigma mas articula antes um quadro teoacuterico
propriamente poacutes-transcendental
1 Graduado pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) Doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilian de Munique (LMU) e Professor Emeacuterito da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 15
A Filosofia Transcendental Preacute-Linguiacutestica O Mundo se nos Daacute em
Intuiccedilotildees Puras A Fenomenologia Husserliana
Para Husserl a filosofia exige uma mudanccedila radical de postura o que
revela o caraacuteter ingecircnuo da atitude da postura natural Essa transformaccedilatildeo
radical de postura nos vai mostrar que todos os entes soacute nos podem ser
dados na esfera da subjetividade transcendental atraveacutes de muacuteltiplos
modos de manifestaccedilatildeo que satildeo em princiacutepio variaacuteveis e ilimitados Neste
sentido fenomenologia natildeo eacute simples descriccedilatildeo do que aparece sem que
possa haver uma decisatildeo sobre o que o ente eacute em sua essecircncia e seu ser
mas ela eacute precisamente o esclarecimento dos entes em sua essecircncia em
seu sentido e em seu ser Nesta perspectiva se deve dizer que a questatildeo
central da fenomenologia natildeo eacute o ser mas o sentido embora natildeo seja claro
como Husserl interpreta o sentido De qualquer modo ele sempre tematiza
o sentido e natildeo o ser mesmo (PUNTEL 2011 p 305)
Isto se faz atraveacutes do retorno agraves vivecircncias intencionais nas quais os
sentidos vecircm agrave doaccedilatildeo Dessa forma o tema especiacutefico da fenomenologia
eacute a correlatividade entre as ldquoformas de doaccedilatildeordquo dos objetos e os momentos
intencionais das vivecircncias (dos atos intencionais) em suas inuacutemeras
modificaccedilotildees (TUGENDHAT 1967 p 172)2 Numa palavra fenomenologia
eacute anaacutelise da correlaccedilatildeo entre objeto intencional e ato intencional ou seja
trata-se de determinar a partir da intenccedilatildeo o sentido do ldquointendidordquo
Portanto o que temos eacute sempre um objeto num modo determinado de nos
dar-se natildeo haacute objeto sem a mediaccedilatildeo de seu modo de dar-se Fenocircmeno
eacute entatildeo aqui um correlato intencional da consciecircncia (FINK 1976 p 83)
e a subjetividade eacute o princiacutepio da originariedade (FINK 1976 p 91)
Ser eacute entatildeo ser para a consciecircncia esta eacute a tese baacutesica da filosofia
transcendental e natildeo se pode entender o projeto husserliano de filosofia
sem vinculaacute-lo agrave tradiccedilatildeo do pensamento transcendental de Kant e
sobretudo de Fichte3 no giro reflexivo da filosofia na expressatildeo de
2 A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl cf PORTA (2003 p 85-106)
3 Essa eacute a tese baacutesica de Siemek Cf SIEMEK (2001 p 190 e ss) Cf OLIVEIRA (1973 p 139-220)
16 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Tugendhat (1976 p 16 e ss) aceita e radicalizada por Husserl Isto significa
dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos enquanto
idecircntico atraveacutes das diferentes formas de consciecircncia se formam atraveacutes
de nossas accedilotildees sinteacuteticas no como de sua doaccedilatildeo isto eacute nos diferentes
tipos de objetualidade (HABERMAS 1984 p 37) Para a postura
fenomenoloacutegica todos os entes abstratos ou concretos reais ou ideais tecircm
seus modos de doaccedilatildeo (HUSSERL 1963 p 169) Numa palavra tudo se
revela na consciecircncia como objeto constituiacutedo por atos constituintes e
portanto a subjetividade emerge como a fonte uacuteltima de toda doaccedilatildeo de
sentido
Husserl rejeita este meacutetodo regressivo natildeo no sentido da pergunta
pelas condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento objetivo mas no sentido
de que esta pergunta no pensamento de Kant natildeo realiza um retorno agrave
intuiccedilatildeo e neste sentido eacute em uacuteltima anaacutelise uma construccedilatildeo atraveacutes de
deduccedilatildeo Com isto todo o procedimento se radica em suposiccedilotildees natildeo
intuiacutedas o que tem como consequecircncia que desta forma natildeo eacute possiacutevel
atingir a autodoaccedilatildeo da subjetividade em seu ser em si ela eacute apenas
ldquoconstruiacutedardquo num pensamento vazio
O grande ausente no pensamento de Kant eacute precisamente a intuiccedilatildeo
que Husserl denomina o ldquoPrinciacutepio dos Princiacutepiosrdquo entendida como a
fonte originaacuteria a evidecircncia fundante de todo conhecimento (HUSSERL
1950 p 25 e STROumlKER 1987 p 1-34) Desta forma a tese central da
fenomenologia eacute que soacute o retorno aos atos intencionais pode produzir
aquela autodoaccedilatildeo em evidecircncia intuitiva que constitui o cerne da
fenomenologia Assim as coisas mesmas natildeo satildeo objetos no sentido de
uma ldquoposiccedilatildeo transcendente de serrdquo mas o que eacute intuiacutedo na satisfaccedilatildeo de
atos intencionais (GADAMER 1987 p 118)
Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a respeito
da forma suprema do dar-se da realidade a noacutes pode iniciar-se com a
criacutetica articulada por E Tugendhat (1976 p 85-87) conhecido eacute para
Husserl precisamente o que nos eacute imediatamente dado Para Tugendhat
justamente nisto se mostra o caraacuteter unilateral da concepccedilatildeo husserliana
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 17
de conhecimento a funccedilatildeo do conceito para o que eacute sensivelmente preacute-
dado perde importacircncia frente ao papel da intuiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que eacute
significado de tal modo que ascensatildeo no conhecimento significa
exclusivamente maior proximidade da coisa e natildeo igualmente aumento
em diferenciaccedilatildeo e distinccedilatildeo
Este preacute-conceito da fenomenologia ou seja de que a simples
presenccedila garante por si mesma o cumprimento uacuteltimo de uma intenccedilatildeo
significante tem para Tugendhat enormes consequecircncias na concepccedilatildeo
husserliana da filosofia Em primeiro lugar isto eacute decisivo para o modelo
de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepccedilatildeo da
consciecircncia pura como o campo absoluto precisamente porque o campo
do que se daacute adequadamente Em segundo lugar para a consequecircncia
metoacutedica de que a anaacutelise fenomenoloacutegica se restringe ao que eacute
simplesmente dado intuitivamente na intuiccedilatildeo originaacuteria (HUSSERL
1950 p 52) A natildeo consideraccedilatildeo da questatildeo da determinaccedilatildeo tem como
resultado que o determinado eacute aceito ingenuamente e natildeo eacute considerado
expressamente mas por outro lado ele eacute o ponto de chegada de um
processo de determinaccedilatildeo que se faz atraveacutes de sua relaccedilatildeo agrave forma de seu
dar-se Isto conduz sempre a uma absolutizaccedilatildeo da experiecircncia em
questatildeo
De fato aqui se situa a questatildeo fundamental de confronto com o
pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto
fenomenologia transcendental mesmo na sua formulaccedilatildeo uacuteltima de
filosofia do mundo vivido como o originariamente dado Trata-se para ele
de atingir a dimensatildeo mais originaacuteria do pensamento enquanto tal e esta
eacute para ele a intuiccedilatildeo que se daacute originariamente e que constitui a fonte de
justificaccedilatildeo de todo conhecimento Isso leva segundo E Fink (1976 p 85)
a uma postura ldquointencionalistardquo na concepccedilatildeo do ser e da verdade
enquanto posiccedilatildeo especiacutefica da fenomenologia enquanto filosofia Na
realidade aqui natildeo se articula propriamente uma justificaccedilatildeo mas se
defende a tese de que se trata em uacuteltima instacircncia de um ver de um
mostrar-se a dimensatildeo originaacuteria se mostra daacute-se
18 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Como diz Habermas (1984 p 47-59) em Husserl a intuiccedilatildeo sensiacutevel
serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuiccedilatildeo possiacutevel pois
aqui aparece em niacutevel elementar o que constitui a intuiccedilatildeo a autodoaccedilatildeo
de um objeto Sua suposiccedilatildeo fundamental eacute que temos na experiecircncia
sensiacutevel acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente Para E
Fink (1976 p 84) em Husserl a percepccedilatildeo intuitiva constitui de fato o
modo originaacuterio de autodoaccedilatildeo Sua tese eacute que em Husserl isto natildeo
significa um intuicionismo inimigo do pensamento mas defesa do
ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo e do caraacuteter secundaacuterio do pensamento Habermas
aponta para a dificuldade de defesa desta tese do ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo a
partir inclusive de consideraccedilotildees do proacuteprio Husserl (1964) em sua obra
ldquoErfahrung und Urteilrdquo A razatildeo fundamental eacute que em cada intuiccedilatildeo
originaacuteria jaacute estatildeo presentes determinaccedilotildees categoriais o que para ele
significa que o modelo de uma filosofia da consciecircncia tem que ser
substituiacutedo pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na
linguagem
Que significa isto para a filosofia Em primeiro lugar que depois da
reviravolta linguiacutestica natildeo podemos mais analisar nossa capacidade de
conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir uma
vez que noacutes enquanto sujeitos cognoscentes jaacute sempre nos encontramos
no horizonte de nossas praacuteticas no mundo vivido Linguagem e realidade
estatildeo mutuamente imbricadas de tal modo que toda experiecircncia humana
eacute linguisticamente impregnada Com isto supera-se definitivamente o
ldquomito do dadordquo uma vez que mesmo a experiecircncia sensiacutevel jaacute eacute mediada
linguisticamente de tal modo que ela perde a autoridade epistecircmica
daquela instacircncia que nos daria imediatamente a realidade pura Para
Habermas (1984 p 20) foi meacuterito de W Sellars (2003 p 23 ss) em sua
criacutetica ao empirismo do Ciacuterculo de Viena de ter explicitado esta
consequecircncia da reviravolta linguiacutestica
Isto tem como consequecircncia a eliminaccedilatildeo do primado da
intencionalidade e de sua substituiccedilatildeo pelo primado de uma compreensatildeo
linguiacutestica Neste caso a urgecircncia de uma fundamentaccedilatildeo que eacute central na
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 19
filosofia natildeo pode satisfazer-se atraveacutes de uma consideraccedilatildeo
fenomenoloacutegica da histoacuteria da originaccedilatildeo do mundo vivido mas atraveacutes
da acareaccedilatildeo das pretensotildees de validade que levantamos em nossas
praacuteticas simboacutelicas ordinaacuterias Natildeo intuiccedilatildeo mas argumentos eacute o que pode
justificar a aceitaccedilatildeo ou natildeo das pretensotildees de validade e por conseguinte
eacute neste niacutevel que se situa uma teoria filosoacutefica
Em direccedilatildeo semelhante Apel rearticula a filosofia transcendental
claacutessica a partir do diaacutelogo com as filosofias que saiacuteram da reviravolta
linguiacutestica a filosofia analiacutetica e a filosofia hermenecircutica Para ele essa
reviravolta provocou uma transformaccedilatildeo daquilo que constitui a questatildeo
central desta tradiccedilatildeo de pensamento filosoacutefico ou seja a pergunta pelas
condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido Foi nesse contexto que
Tugendhat (1976 p 16) 4 interpretou a reviravolta linguiacutestica como
radicalizaccedilatildeo do movimento do pensamento que constitui o cerne da
filosofia transcendental que ele denomina de ldquoreviravolta reflexivardquo cujo
cerne consiste em dizer que a filosofia natildeo tem como tarefa o
conhecimento direto dos objetos do mundo mas sua especificidade eacute uma
reflexatildeo sobre como os objetos do mundo enquanto tais nos podem ser
dados
Eacute neste sentido estrito que K-O Apel afirma ser a filosofia da
linguagem a nova ldquofilosofia primeirardquo ou seja natildeo uma filosofia primeira
enquanto pergunta pelo ente enquanto tal ou pela estrutura da
consciecircncia transcendental enquanto fundamento do conhecimento
vaacutelido mas uma filosofia primeira agrave altura da consciecircncia criacutetica alcanccedilada
em nossos dias o que neste contexto significa a consciecircncia da
inevitabilidade da mediaccedilatildeo linguiacutestica de nosso acesso ao mundo
Neste sentido eacute que natildeo haacute como diz J McDowell (2005 p 64)
qualquer experiecircncia originaacuteria que esteja fora da esfera conceitual natildeo
haacute uma fronteira exterior para aleacutem da esfera conceitual como ele diz
comentando Wittgenstein
4 ldquoSie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstaumlnde sondern in der gleichzeitigen Reflexion darauf wie uns diese Gegenstaumlnde gegeben sein koumlnnenwie sie uns zugaumlnglich werdenrdquo
20 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
natildeo existe lacuna ontoloacutegica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer
ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de
coisa que pode ocorrer Quando algueacutem pensa de modo verdadeiro aquilo em
que ele pensa eacute aquilo que ocorre Como o mundo eacute tudo que ocorre (como ele
proacuteprio escrevera) natildeo haacute lacuna entre o pensamento enquanto tal e o
mundo
Natildeo haacute portanto nenhuma lacuna entre o pensamento enquanto tal
e o mundo mas um jogo reciacuteproco entre conceitos e intuiccedilotildees entre
receptividade e espontaneidade (McDOWELL 2005 p 40) o que poreacutem
natildeo nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um
controle racional sobre nosso pensamento Isso natildeo significa contudo que
o mundo seja completamente no espaccedilo de um sistema de conceitos
Precisamos de um trabalho longo e paciente o que implica uma obrigaccedilatildeo
permanente de reflexatildeo O importante aqui eacute afirmaccedilatildeo de que a realidade
natildeo estaacute fora da esfera conceitual e a rejeiccedilatildeo do ldquomito do dadordquo significa
precisamente que natildeo existe uma presenccedila pura originaacuteria fora da esfera
conceitual Eacute isto que McDowell chama de ldquoo caraacuteter indelimitado do
conceitualrdquo
A Posiccedilatildeo da Filosofia-Sistemaacutetico-Estrutural de L B Puntel
A questatildeo do papel exercido pela linguagem na filosofia constitui
certamente para L B Puntel uma questatildeo central partindo-se de uma nova
forma de articular a filosofia e suas questotildees que eacute resultado do que se
convencionou denominar de ldquogiro ou reviravolta linguiacutesticardquo da filosofia
(OLIVEIRA 2015) Natildeo se trata aqui de um novo objeto ou um novo campo
de investigaccedilatildeo para uma teoria filosoacutefica mas da filosofia mesma em sua
configuraccedilatildeo teoacuterica Isto significa dizer que a tematizaccedilatildeo da linguagem
natildeo constitui uma disciplina filosoacutefica nova mas sua consideraccedilatildeo faz
parte da tematizaccedilatildeo dos pressupostos irrenunciaacuteveis da articulaccedilatildeo da
filosofia enquanto uma forma de atividade teoacuterica na vida humana jaacute que
o que estaacute em jogo aqui eacute a instacircncia imprescindiacutevel de articulaccedilatildeo de uma
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 21
teoria filosoacutefica sem ela nada eacute dado a uma teoria filosoacutefica o que seria
dizer que a teoria seria inviaacutevel
A tese baacutesica da reviravolta linguiacutestica eacute de que natildeo eacute mais possiacutevel
pensar a filosofia sem a mediaccedilatildeo da linguagem e isto tem consequecircncias
fundamentais em sua articulaccedilatildeo o que se configura como tese da
centralidade da linguagem na filosofia Na proposta da filosofia
sistemaacutetico-estrutural de Puntel (OLIVEIRA 2014 p 190 ss) esta eacute
elucidada no contexto de uma ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo da revoluccedilatildeo
transcendental que caracteriza o pensamento moderno e desemboca
numa filosofia poacutes-transcendental Que significa propriamente isto
Uma filosofia sistemaacutetico-estrutural na proposta de Puntel (2008 p
97 ss) radica-se na concepccedilatildeo fundamental de que filosofia eacute uma
atividade humana que se distingue de outras atividades em razatildeo de seu
objetivo baacutesico isto eacute a elaboraccedilatildeo e a apresentaccedilatildeo de teorias Teoria eacute a
forma de discurso metoacutedico e rigorosamente ordenado que se compotildee de
sentenccedilas puramente declarativas Nesta posiccedilatildeo em oposiccedilatildeo a vaacuterias
propostas hoje existentes a filosofia eacute concebida como um
empreendimento estritamente teoacuterico Esta ldquoatividaderdquo e seu ldquoprodutordquo
tecircm a ver com o ldquomundordquo compreendido como a totalidade ilimitada dos
ldquoobjetosrdquo ou ldquocamposrdquo ou ldquoacircmbitosrdquo a totalidade do que eacute dado na
linguagem
A uniatildeo desses trecircs fatores baacutesicos nos autoriza a falar da ldquodimensatildeo
expositivardquo como sendo o especiacutefico da atividade filosoacutefica Por esta razatildeo
seu primeiro trabalho consiste precisamente no esclarecimento da
dimensatildeo da teoricidade e da explicitaccedilatildeo do conceito de uma teoria
filosoacutefica pela apresentaccedilatildeo de seus componentes irrenunciaacuteveis Numa
palavra sendo a filosofia uma atividade que se efetiva na esfera da
linguagem tendo assim a linguagem como seu pressuposto primeiro
exige-se para o cumprimento de sua tarefa a tematizaccedilatildeo de seus
pressupostos linguiacutesticos o que eacute uma decorrecircncia da reflexividade que
caracteriza a atividade teoacuterica neste niacutevel de sua efetivaccedilatildeo Isto implica
22 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
dizer que uma filosofia deve comeccedilar pela consideraccedilatildeo de sua mediaccedilatildeo
linguiacutestica
Num sentido programaacutetico Puntel elabora uma quase-definiccedilatildeo de
filosofia que serviraacute de fio condutor para toda a exposiccedilatildeo ldquoa filosofia
sistemaacutetico-estrutural eacute a teoria das estruturas universais (mais gerais) do
universo do discurso [universe of discourse] ilimitadordquo (PUNTEL 2008
p 33) ldquoUniverso do discursordquo pode ser explicitado por conceitos mais
determinados do ponto de vista do conteuacutedo como ldquomundordquo ldquouniversordquo
ldquorealidaderdquo e em uacuteltima instacircncia ldquoserrdquo A dimensatildeo do universo do
discurso eacute o dado abrangente dado eacute compreendido aqui como o
ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila portanto algo linguisticamente articulado
precisamente aquilo que eacute dado para ser compreendido ou explicado pela
filosofia seu objeto sua temaacutetica especiacutefica tudo o que eacute candidato a um
tratamento teoacuterico-filosoacutefico
A pretensatildeo proacutepria de qualquer teoria eacute assim compreender um
dado um setor do mundo ou o mundo enquanto tal no caso de uma teoria
filosoacutefica Desta forma eacute tarefa do filoacutesofo sistemaacutetico-estrutural tentar
integrar numa teoria compreensiva todos estes dados que num primeiro
momento emergem justamente como candidatos agrave compreensatildeo como
candidatos agrave teoria Daiacute porque a formaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica
consiste em trabalhar a interconexatildeo entre a dimensatildeo dos dados e a
dimensatildeo das estruturas isto eacute os componentes irrecusaacuteveis da
linguagem enquanto os pressupostos irrenunciaacuteveis para a compreensatildeo
de qualquer dado de tal forma que as estruturas afinal se revelam como
estruturas dos dados e os dados enquanto incluiacutedos na dimensatildeo das
estruturas
Uma pergunta se revela aqui como fundamental Que eacute entatildeo
compreender Que implica o compreender Esta eacute uma questatildeo que
subjaz a todo empreendimento teoacuterico uma vez que compreender um
determinado X constitui a tarefa especiacutefica de qualquer empreendimento
teoacuterico ldquosendo que ldquocompreenderrdquo neste caso eacute um conceito geral para
ldquoentenderrdquo ldquoexplicarrdquo ldquoarticularrdquo (PUNTEL 2008 p 205) O X por sua
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 23
vez designa a coisa a temaacutetica o objeto do compreender o dado em
questatildeo
Neste contexto um procedimento teoacuterico se revela muito produtivo
as diferentes posiccedilotildees filosoacuteficas (PUNTEL 2008 p 206) podem ser
consideradas a partir de como elas pensam a relaccedilatildeo entre o compreender
e a coisa a ser compreendida A pergunta baacutesica aqui eacute entatildeo se o
compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao
contraacuterio De acordo com a primeira posiccedilatildeo (PUNTEL 1990 p 266 ss)
noacutes natildeo criamos produzimos ou constituiacutemos o mundo efetivo mas antes
o encontramos o mundo efetivo nos eacute preacute-dado Isto significa dizer que
apreendemos a realidade sem conceito sem linguagem5 sem teorias o
que segundo esta posiccedilatildeo se mostra em muitas experiecircncias Assim nesta
perspectiva uma coisa eacute a apreensatildeo da realidade outra a sua
compreensatildeo de tal forma que a verdadeira tarefa de uma atividade teoacuterica
consiste em descobrir o mundo em si mesmo aprendecirc-lo descrevecirc-lo e
explicaacute-lo O mundo portanto situa-se fora do conceitual isto constitui o
cerne do que se denomina de ldquorealismordquo
A posiccedilatildeo contraposta (normalmente denominada pelos realistas de
idealista hoje se fala mais de antirrealismo) procura desvelar a
ingenuidade desta primeira posiccedilatildeo ressaltando a mediaccedilatildeo irrecusaacutevel de
um sistema conceitual em toda atividade teoacuterica assim que admitir uma
realidade inteiramente desprovida de esquemas conceituais se mostra
impossiacutevel Realidade mundo universo soacute tecircm sentido no interior de um
esquema conceitual por noacutes articulado Distinguimos os objetos
justamente atraveacutes da introduccedilatildeo deste ou daquele esquema conceitual Jaacute
sempre estamos em relaccedilatildeo com o mundo pela atividade conceitual de tal
modo que fora desta relaccedilatildeo o mundo eacute simplesmente ininteligiacutevel Desta
forma falar de independecircncia do mundo natildeo significa afirmar que ele se
coloque para aleacutem da esfera conceitual
5 Haacute filoacutesofos que distinguem entre significado linguiacutestico e conteuacutedos mentais Cf Miller (2010 p 208) ldquoFiloacutesofos chamam estados mentais tais como crenccedilas desejos vontades intenccedilotildees esperanccedilas e assim por diante de atitudes proposicionais Podemos dizer que enquanto sentenccedilas possuem significado linguiacutestico atitudes proposicionais possuem conteuacutedo mentalrdquo Cf a respeito Branquinho (2006 p 72-78)
24 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Neste contexto McDowell (2005 p 65) estabelece uma distinccedilatildeo
fundamental
Pensamento pode significar o ato de pensar mas pode significar tambeacutem o
conteuacutedo que eacute pensado ndash aquilo que algueacutem pensa6 Ora se quisermos dar o
devido reconhecimento agrave independecircncia da realidade precisamos de uma
coerccedilatildeo exterior ao pensamento e ao juiacutezo entendidos enquanto exerciacutecios de
espontaneidade Esta coerccedilatildeo natildeo precisa vir de um lugar exterior aos
conteuacutedos pensaacuteveis7
Foram aqui apresentadas duas posiccedilotildees extremas que habitualmente
natildeo se articulam desta forma uma vez que as diferentes propostas
filosoacuteficas satildeo normalmente formas mistas portadoras de elementos de
ambas as posturas o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant
fundamentalmente marcado pela dicotomia radical entre sujeito e objeto
Putnam empenhou-se em caracterizar com rigor a primeira posiccedilatildeo
Ele defende a partir de 1976 a posiccedilatildeo denominada por ele mesmo de
ldquorealismo internordquo que levanta a pretensatildeo de articular uma posiccedilatildeo
intermediaacuteria entre o que ele chama de ldquorealismo metafiacutesicordquo8 da tradiccedilatildeo
e o ldquorelativismordquo muito difundido em nossos dias A primeira o realismo
metafiacutesico (PUTNAM 1996 p 205) eacute o que Moore e Russell teriam
retomado depois de ter sido recusado pelo idealismo moderno de Kant e
Hegel Putnam (1993 p 213) atribui ao proacuteprio Kant a distinccedilatildeo entre
estes dois tipos de realismo
Outros autores falam simplesmente de ldquorealismordquo ou como eacute caso de
Puntel (PUNTEL 1990 p 269) de ldquorealismo transcendenterdquo Para ele
pode-se distinguir aqui duas variantes a) O realismo transcendente
absoluto que afirma existir um uacutenico sistema conceitual correto
considerando os demais como algo puramente subjetivo 2) O realismo
6 Na perspectiva da filosofia sistemaacutetico-estrutural pensamento proposiccedilatildeo e estado-de-coisas satildeo expressotildees sinocircnimas e constituem o ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila Cf Puntel (2008 p 214-216)
7 McDowell (2005 p 73) tambeacutem afirma o seguinte ldquoO objeto de uma experiecircncia [] eacute entendido como parte do mundo pensaacutevel tomado como um todordquo
8A respeito das raiacutezes teoacutericas do realismo metafiacutesico no pensamento de Putnam cf Engel (1994 p 363-364)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 25
transcendente moderado que admite uma pluralidade de sistemas
conceituais e os interpreta como tambeacutem as teorias como diferentes
aproximaccedilotildees ao uacutenico mundo efetivo
Em nossos dias o realismo metafiacutesico para Putnam constitui a tese
especiacutefica dos materialistas9 Sua tese baacutesica eacute que a fiacutesica constitui uma
configuraccedilatildeo de uma teoria verdadeira e acabada da estrutura do mundo
Putnam admite ter sido precisamente esta sua primeira posiccedilatildeo teoacuterica jaacute
que tambeacutem ele defendeu a tese de que as ciecircncias descrevem e explicam
uma realidade inteiramente independente de noacutes Constituiu um
argumento decisivo para ele neste momento o fato de que a transformaccedilatildeo
de significaccedilatildeo dos termos teoacutericos natildeo demanda que se deixe de falar de
uma uacutenica e mesma realidade o que seria impossiacutevel se ela natildeo se situasse
para aleacutem de nossas teorias
O realismo metafiacutesico se fundamenta entatildeo na crenccedila de que haacute
apenas uma teoria verdadeira capaz de expor exaustivamente a estrutura
do mundo como ele eacute em si mesmo independente de noacutes de nossas
concepccedilotildees a seu respeito Numa palavra o realista metafiacutesico afirma que
podemos falar de coisas e pensar nelas como elas satildeo em si mesmas em
sua constituiccedilatildeo intriacutenseca independentemente de nosso espiacuterito de nossa
linguagem de nossas teorias A razatildeo disto eacute a relaccedilatildeo de correspondecircncia
entre as expressotildees de nossa linguagem e certos tipos de entidades
independentes Nesta perspectiva o mundo eacute entendido enquanto a
totalidade invariaacutevel de objetos independentes de nosso espiacuterito de nossa
linguagem de nossas teorias (PUTNAM 1993 p 156) Hoje se defende a
tese de que estas entidades tecircm nos objetos materiais seu paradigma e de
que a correspondecircncia em tela eacute uma relaccedilatildeo causal
Numa palavra o mundo efetivo nos eacute preacute-dado enquanto plenamente
estruturado em si mesmo (ldquoa ready-made worldrdquo expressatildeo sugerida por
N Goodman) e o objetivo fundamental de toda e qualquer atividade
9 Cf Putnam (1996 p 208) ldquoMetaphysics or the enterprise of describing the ldquofurniture of the worldrdquo the ldquothings in themselvesrdquo apart from our conceptual imposition has been rejected by many analytic philosophers (though not as I remarked by Russell) and by all the leading brands of continental philosophy Today apart from relics it is virtually only materialists (or ldquophysicalistsrdquo as they like to call themselves) who continue the traditional enterpriserdquo
26 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
teoacuterica consiste em apresentar o mundo como ele eacute em si mesmo da
maneira mais fiel possiacutevel Putnam denomina esta posiccedilatildeo de
ldquoexternaliacutesticardquo jaacute que sua postura pressupotildee que noacutes podemos dispor do
ldquoponto de vista de Deusrdquo (ldquoGodacutes-Eye Viewrdquo) que teria condiccedilotildees de
alcanccedilar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo
que fosse possiacutevel comparar linguagem e mundo e decidir se haacute
correspondecircncia entre os dois
Neste caso tornar-se-ia possiacutevel distinguir claramente entre o que
realmente eacute o caso e o que se julga ser o caso (PUTNAM 1990 p 102) Esta
eacute a razatildeo pela qual uma teoria correspondencial da verdade eacute um elemento
essencial desta posiccedilatildeo uma teoria que segundo ele foi contestada por
Kant (PUTNAM 1990 p 92-93) Putnam (1990 p 85) chama a teoria da
correspondecircncia de ldquoteoria da semelhanccedila de relaccedilatildeordquo precisamente por
ela sustentar que a relaccedilatildeo vigente entre nossas representaccedilotildees e os
objetos externos eacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila
Satildeo vaacuterias as razotildees que levaram Putnam a abandonar esta posiccedilatildeo
Puntel (2008 p 480) enumera as trecircs mais importantes 1) A
compreensatildeo de que a crenccedila de que poderiacuteamos dispor de uma
perspectiva de Deus eacute uma presunccedilatildeo e uma ilusatildeo 2) O realismo
metafiacutesico produz uma consequecircncia inadmissiacutevel uma vez que o abismo
entre linguagem (teoria) e mundo eacute insuperaacutevel para seres finitos natildeo se
pode afastar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por noacutes
elaborada possa enganar-se em relaccedilatildeo ao mundo e isto eacute certamente
ininteligiacutevel 3) O contato com o uacuteltimo Wittgenstein o levou a considerar
o realismo metafiacutesico uma teoria ingecircnua quanto ao sentido que
simplesmente natildeo se sustenta mais
Na perspectiva pragmaacutetica aberta por Wittgenstein a referecircncia a um
jogo de linguagem eacute essencial o que significa dizer que o significado
linguiacutestico natildeo se esgota na esfera da semacircntica Isto conduz agrave afirmaccedilatildeo
da primazia da dimensatildeo pragmaacutetica na linguagem e consequentemente a
uma articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas de forma inteiramente diferente
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 27
Como diz Zilhatildeo (1993 p 204) para descrever a mudanccedila radical de
perspectiva
[hellip] soacute no interior dos jogos de linguagem correspondentes eacute que
determinadas expressotildees mesmo quando apresentam uma estrutura formal
declarativa adquirem o caraacutecter de ldquopensamentosrdquo e ldquoproposiccedilotildeesrdquo isto eacute a
sua simples aparecircncia formal considerada independentemente do uso que
elas tenham num contexto determinado natildeo nos autoriza a classificaacute-las de
acordo com qualquer categoria
No entanto para Puntel a posiccedilatildeo alternativa articulada por Putnam
o ldquorealismo internordquo que eacute uma versatildeo da posiccedilatildeo antirrealista apesar de
ter um aspecto profundamente correto tem tambeacutem uma dimensatildeo
inaceitaacutevel Certamente a tese de que o mundo (a natureza a realidade o
universo as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta
independecircncia do espiacuterito respectivamente da linguagem enquanto tal se
autodestroacutei em sua enunciaccedilatildeo portanto natildeo eacute inteligiacutevel e por isto
inaceitaacutevel (PUNTEL 1990 p 271-72) Antes de tudo porque
inteligibilidade implica algo conceitual
Na realidade um tal mundo natildeo passa de um constructo
contraditoacuterio por um lado o mundo eacute aceito como algo independente de
qualquer elemento conceitual por outro lado se fala de mundo relaciona-
se com o mundo o que inclui elementos conceituais em muacuteltiplas formas
linguisticamente expressos A Keller defende a tese de que a palavra em
contraposiccedilatildeo a siacutelabas sem sentido caracteriza-se por ser uma sequecircncia
de sons com significado A partir daqui ele justifica a vinculaccedilatildeo entre
ldquoconceito e linguagemrdquo afirmando que jaacute que natildeo existe significado sem
uma sequecircncia de sons pelo menos pensada natildeo existe conceito sem uma
sequecircncia de sons sem palavra nenhum conceito (KELLER 1979 p93)
Esta tese antirrealista eacute para Puntel correta mas insuficiente porque
ele natildeo mostrou em que sentido exatamente a tese de uma realidade
concebida deste modo seria nua O argumento aqui eacute que questotildees a
respeito da dicotomia entre pensamentoatos
constituintesespiacuteritolinguagem e mundonaturezarealidadecoisa
28 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
mesma natildeo podem ser elucidadas sem a referecircncia clara a uma tese
ontoloacutegica central que eacute o pressuposto de qualquer empreendimento
teoacuterico o que possa ser aquela dimensatildeo que habitualmente se denomina
mundorealidadecoisa mesma ela eacute portadora de qualquer forma de uma
estruturaccedilatildeo imanente fundamental ou seja de uma expressabilidade
plena sem a qual a teoria seria privada de sentido
Puntel (2008 p 482) emprega o termo ldquoexpressabilidaderdquo como uma
espeacutecie de foacutermula abreviada de uma seacuterie de termos como
inteligibilidade conceituabilidade compreensibilidade explicabilidade
articulabilidade etc Portanto se o ser enquanto tal eacute expressaacutevel e eacute isto
que todo empreendimento teoacuterico em princiacutepio pressupotildee sob pena de ou
ser autocontraditoacuterio ou natildeo ter sentido entatildeo a esta universalidade
corresponde uma instacircncia de sua expressatildeo igualmente universal uma
instacircncia expressante a linguagem de modo que parafraseando Gadamer
se pode dizer ldquoo ser que pode ser entendido eacute o universo do discursordquo
(PUNTEL 2008 p 526-527) o que implica uma relaccedilatildeo essencial entre o
ser e a linguagem
Em contraposiccedilatildeo ao realismo metafiacutesico a posiccedilatildeo aqui eacute que a
expressabilidade do mundo pressuposta por nossos empreendimentos
teoacutericos natildeo eacute compreensiacutevel sem uma instacircncia que a exprima ou seja a
tese de um ldquomundo nurdquo sem qualquer relaccedilatildeo a algo como linguagem
espiacuterito conceitualidade etc numa palavra a tese de um mundo
enclausurado em si mesmo eacute uma impossibilidade metafiacutesica e por esta
razatildeo ininteligiacutevel
Quando se afirma [] a ldquoindependecircncia absolutardquo do mundo (do universo
etc) isso daacute a impressatildeo de que se estaacute afirmando algo natildeo inteligiacutevel a saber
um ldquomundo natildeo conceitualizadordquo ldquonatildeo estruturadordquo totalmente
incompreendido e incompreensiacutevel situado fora do alcance do compreensiacutevel
do articulaacutevel etc Esta eacute a aporia em que incorre o realista (metafiacutesico)
(PUNTEL 2008 p 498)
Portanto a linguagem diz o mundo ela eacute a instacircncia intransponiacutevel
da expressabilidade do mundo e por isto seu lugar na filosofia eacute
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 29
absolutamente central Partindo das teses da antropologia do iniacutecio do
seacuteculo XX A Keller apresenta esta problemaacutetica afirmando que o ser
humano enquanto ldquoser biologicamente carenterdquo natildeo estaacute contudo preso
por seus instintos a um meio ambiente especiacutefico mas eacute relacionado ao
mundo em seu todo Ele natildeo conhece contudo esta totalidade
simplesmente atraveacutes de um conjunto desordenado de impressotildees mas a
capta atraveacutes de esquemas aprendidos o que se pode denominar a
ldquoestrutura-enquantordquo porque ele sempre capta algo enquanto algo
determinado isto eacute linguisticamente delimitado Daiacute porque para o ser
humano a linguagem eacute tatildeo vitalmente necessaacuteria como o instinto para o
animal (KELLER 1979 p 121 129)
Em segundo lugar para Puntel Putnam como os antirrealistas em
geral sempre afirma que a realidade (o mundo o universo) se refere a
ldquonosso espiacuteritordquo aldquonossa linguagemrdquo Isto significa dizer que a maneira
como o mundo estaacute estruturadodepende da linguagem em que ele se
expressa e essa linguagem para ele eacute sempre ldquonossa linguagemrdquo Desta
forma nem tudo se pode dizer em cada linguagem trata-se aqui de uma
grandeza limitada Nossas visotildees do mundo satildeo sempre diferentemente
relativas agraves nossas diferentes linguagens Eacute por isto afirma Humboldt
(1903a p 14-15) que soacute atraveacutes da linguagem captamos o mundo seus
objetos propriedades e relaccedilotildees e a linguagem eacute sempre um todo uma
estrutura cujas partes devem ser consideradas em seu papel no todo
Realizamos isso no entanto sempre numa linguagem determinada
de uma forma determinada Cada linguagem efetiva uma transformaccedilatildeo
do mundo em linguagem (HUMBOLDT 1903b p 28) articula uma visatildeo
do mundo (Weltansicht) uma concepccedilatildeo peculiar do mundo e de sua
estrutura10 uma ontologia proacutepria Assim se a cultura engendra a
linguagem a linguagem entatildeo eacute frente ao indiviacuteduo uma potecircncia que
determina seu pensamento e sua experiecircncia configurando sua visatildeo do
mundo Desta forma cada linguagem eacute em si mesma uma individualidade
espiritual (HUMBOLDT 1903b p 151) que delimita o caraacuteter nacional de
10 A respeito das questotildees epistemoloacutegicas que marcam essa posiccedilatildeo cf Kutschera (1975 p 332 e ss)
30 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
tal forma que o ser humano natildeo fala como ele fala simplesmente porque
deseja falar assim mas porque tem que falar assim11 Nele a maneira de
falar eacute um constrangimento de sua natureza intelectual (HUMBOLDT
1903b p 127) Na perspectiva da concepccedilatildeo pragmaacutetica contudo nada haacute
aqui de necessaacuterio
[hellip] nada haacute de necessaacuterio no facto de usarmos os nossos sinais do modo como
os usamos isto eacute em vez de uma forma loacutegica que espelha a forma da
realidade a gramaacutetica eacute algo de arbitraacuterio [hellip] Natildeo se pode assim falar de uma
gramaacutetica errada mas tatildeo soacute de uma desadequaccedilatildeo de uma linguagem ou jogo
de linguagem em funccedilatildeo de determinadas necessidades praacuteticas [hellip] na
linguagem tal como no xadrez se seguirmos outras regras gramaticais
estaremos respectivamente ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de
regras ou a jogar outro jogo (ZILHAtildeO 1993 p 205-206)
Aqui se manifesta uma conexatildeo muacutetua entre pensamento e palavra
(HUMBOLDT 1903a p 27) pensando a partir da consciecircncia Humboldt
defende o caraacuteter inseparaacutevel da consciecircncia e da linguagem humanas
uma vez que a linguagem eacute o oacutergatildeo que estrutura o pensamento Neste
sentido a linguagem natildeo eacute apenas meio de expressatildeo e comunicaccedilatildeo de
conteuacutedos de pensamento portanto de uma verdade jaacute articulada sem ela
mas antes pensamento e linguagem instituem uma unidade indissoluacutevel
(HUMBOLDT 1903b p 22 ss)12
O grande problema aqui e que toca o cerne das filosofias da
subjetividade inclusive as que fizeram a reviravolta linguiacutestica eacute o
seguinte estas afirmaccedilotildees levam a estabelecer a subjetividade como
instacircncia doadora de sentido a tudo A questatildeo se potildee igualmente numa
filosofia pragmaacutetica jaacute que o elemento central da pragmaacutetica (OLIVEIRA
2012 p 87-106) consiste na consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem e
falantes ou da linguagem na perspectiva da maneira como os falantes a
usam o que significa que aqui eacute determinante a accedilatildeo dos falantes Nesse
11 Uma tese que foi desenvolvida por Sapir (1929 p 209) ldquoHuman beings do not live in the objective world alone not alone in the world of social activity as ordinarily understood but are very much at the mercy of the particular language which has become the medium of expression for their societyrdquo
12 Cf Sellars (1973 p 82) ldquoThinking at the distinctly human level [hellip] is essentially verbal activityrdquo
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 31
sentido a passagem da subjetividade para a intersubjetividade proposta
como mudanccedila de paradigma na realidade natildeo resulta na superaccedilatildeo do
caraacuteter determinante da subjetividade na filosofia ou seja da postura em
que a subjetividade eacute a instacircncia teoacuterica que determina tudo
Ora noacutes somos entes puramente contingentes entatildeo
inevitavelmente se levanta a questatildeo ldquoComo poderiam entatildeo os lsquoentes
humanosrsquo (mesmo em sua totalidade como quer que esta seja pensada)
ser tomados como lsquoparacircmetrorsquo para o que eacute o mundordquo (PUNTEL 2008
p 482-483) Como nesta postura natildeo se pode falar de forma coerente do
grande mundo uma soluccedilatildeo razoaacutevel poderia ser reduzir a grande
dimensatildeo do mundo ao nosso mundo entendido como nosso mundo
vivido com a consequecircncia de ter que avaliar como sem sentido ou como
ficccedilatildeo tudo aquilo que natildeo for compatiacutevel com este mundo como por
exemplo muito do que eacute elaborado pelas ciecircncias
A implausibilidade desta posiccedilatildeo aponta para a verdadeira questatildeo
neste contexto como entender a linguagem (espiacuterito) a fim de que se
legitime a afirmaccedilatildeo de que natildeo tem sentido falar de um mundo sem
nenhuma relaccedilatildeo a ela Esta eacute a questatildeo irrefutaacutevel em primeiro lugar
para a articulaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica precisamente enquanto uma
atividade teoacuterica Numa palavra trata-se antes de tudo da determinaccedilatildeo
de um criteacuterio universal de teoricidade e justamente de um criteacuterio
linguiacutestico pois a linguagem eacute o primeiro pressuposto de uma teoria que
se compotildee de sentenccedilas especificamente de sentenccedilas teoacutericas em
segundo lugar para o enfrentamento da questatildeo do lugar central atribuiacutedo
agrave subjetividade pela filosofia moderna A resposta a esta questatildeo implica
uma virada no pensamento moderno que vai justificar falar de uma
despontencializaccedilatildeo da subjetividade
A primeira etapa nesta direccedilatildeo consiste para Puntel na diferenciaccedilatildeo
entre duas formas diferentes de compreensatildeo da linguagem Quando
familiarmente nos referimos a signos linguiacutesticos entatildeo o ser humano
com sua histoacuteria obras e contingecircncias se revela seu autor e nesta
32 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
perspectiva haacute razatildeo para falar de ldquonossardquo linguagem uma vez que sem o
ser humano natildeo se pode falar de siacutembolos linguiacutesticos bem determinados
Eacute justamente nesse sentido que A Keller (1979 p 42) entende a
linguagem como um sistema de formas de proferimentos produzido pelo
ser humano que para expressar-se para entender-se para organizar seus
conhecimentos e comunicaacute-los e para defrontar-se de diferentes formas
com a realidade Numa palavra na medida em que a linguagem se
constitui de siacutembolos linguiacutesticos assim compreendidos ela eacute uma
produccedilatildeo histoacuterico-contingente de sujeitos humanos de tal forma que a
referecircncia a estes sujeitos eacute ineliminaacutevel Nisto tecircm razatildeo os pragmaacuteticos
aqui a accedilatildeo humana eacute simplesmente decisiva ldquoisto eacute o modo particular
atraveacutes do qual intervimos na realidaderdquo (ZILHAtildeO 1993 p 207) embora
se deva afirmar tambeacutem como o faz Kutschera que a linguagem eacute natildeo soacute
uma criaccedilatildeo da comunidade e da cultura humanas mas igualmente sua
condiccedilatildeo de possibilidade Nela com uma quantidade finita de expressotildees
e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma
quantidade infinita de informaccedilotildees que possibilitam a forma determinada
de comunicaccedilatildeo que gera a comunidade e a cultura A linguagem eacute assim
a pressuposiccedilatildeo da qualidade especificamente humana de uma
comunidade (KUTSCHERA 1998 p 105 ss)
No entanto a linguagem entendida no sentido maximal ou seja
como linguagem absolutamente universal natildeo eacute um produto humano
mas jaacute estaacute dada com o mundo entendido como ser em seu todo Ela eacute a
instacircncia da expressabilidade universal enquanto esfera correlata agrave
expressabilidade do ser enquanto tal
ldquoexpressabilidaderdquo eacute uma relaccedilatildeo que soacute eacute explicaacutevel e desse modo
compreensiacutevel se tambeacutem seu reverso for reconhecido X eacute expressaacutevel se e
somente se houver um Y que eacute a instacircncia expressante de X [hellip] a
expressabilidade universal do mundo tem como pressuposto ou [hellip] como
implicaccedilatildeo uma instacircncia expressante universal [hellip] uma linguagem
(PUNTEL 2008 p 501)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 33
Isto significa dizer que o relacionamento com a realidade soacute ocorre
linguisticamente Numa palavra a expressabilidade universal implica uma
instacircncia expressante universal uma linguagem universal que
consequentemente tem que ter um caraacuteter diferente da ldquonossardquo
linguagem Neste sentido ela natildeo eacute um produto humano puramente
contingente mas uma estruturalidade imanente ou seja um momento
estrutural do mundo entendido como ser em seu todo e dessa maneira ela
jaacute estaacute dada com o mundo em sentido do todo da realidade Enquanto tal
ela eacute um sistema semioacutetico objetivo (PUNTEL 1990 p 135)
O ser na medida em que eacute expressaacutevel enquanto tal possui uma
relaccedilatildeo imanente essencial com a linguagem que eacute precisamente a
instacircncia correlata a esta expressabilidade universal uma caracteriacutestica
imanente do ser em si mesmo Neste contexto linguagem eacute entendida
como um sistema semioacutetico abstrato que conteacutem uma quantidade
inumeraacutevel de expressotildees Este eacute para Puntel o ldquolocus originariusrdquo da
compreensatildeo da linguagem ou melhor da linguisticidade Ele denomina
por esta razatildeo a linguagem assim entendida como ldquolinguagem originaacuteriardquo
e eacute ela que ocupa a posiccedilatildeo primordial na filosofia
Assim a linguagem enquanto linguisticidade do ser enquanto tal eacute a
linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso
da expressabilidade universal do ser em seu todo Esta linguagem assim
entendida eacute coextensiva ao ser em seu todo pois o mundo (o universo o
ser) em seu todo eacute expressaacutevel o pressuposto ineliminaacutevel de qualquer
passo teoacuterico Nada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser articulado em
forma de linguagem
Neste sentido a expressabilidade eacute um momento estrutural imanente
do mundoe desse modo coextensional com o mundo como o eacute
consequentemente a linguagem Isso significa dizer que todo conteuacutedo
conceitual eacute articulado no seio da linguagem e eacute precisamente nesse
sentido que a linguagem emerge como meio indispensaacutevel da expressatildeo
ou da exposiccedilatildeo no sentido de que conteuacutedos conceituais natildeo existem sem
sua articulaccedilatildeo linguiacutestica
34 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
[hellip] linguagem constitui meio indispensaacutevel da expressatildeo ou exposiccedilatildeo no
seguinte sentido se compreendidos adequada e rigorosamente os assim
chamados ldquoconteuacutedos conceituaisrdquo natildeo existem sem sua articulaccedilatildeo (ou
articulabilidade) linguiacutestica (PUNTEL 2008 p 226)
Eacute nessa oacutetica que tem sentido a afirmaccedilatildeo de Kutschera articulada na
linguagem da semacircntica e da ontologia composicionais natildeo conhecemos
o mundo primeiro no pensamento e depois exprimimos o conhecido na
linguagem mas captamos a realidade os objetos suas diferenccedilas
propriedades e relaccedilotildees em forma linguiacutestica Pensamento e linguagem se
desenvolvem sempre juntos os pensamentos soacute se exprimem em forma
linguiacutestica A linguagem eacute o ldquomeacutediumrdquo do pensamento (KUTSCHERA
1998 p 111) Uma consequecircncia primeira fundamental aqui eacute que eacute na
articulaccedilatildeo linguiacutestica que eacute possiacutevel apreender o que eacute o conteuacutedo
conceitual como ele eacute estruturado
Quando se entende poreacutem linguagem como siacutembolos linguiacutesticos
entra em jogo o ser humano com sua histoacuteria ou seja aqui a linguagem eacute
produccedilatildeo humana e eacute isto que explica a contingecircncia histoacuterica dessas
linguagens13 Ela entatildeo se revela como a pressuposiccedilatildeo na expressatildeo de
V Kutschera (1998 p 113) de todas as nossas produccedilotildees culturais de
nossa autocompreensatildeo de nossa autoconsciecircncia e de nosso pensamento
Mas quando se leva em consideraccedilatildeo a estruturalidade semacircntico-
ontoloacutegica da linguagem entatildeo ela eacute o resultado da expressabilidade da
proacutepria realidade e ldquofalantes e sujeitos satildeo determinados e entendidos a
partir da linguagem e natildeo a linguagem a partir dos falantes ou sujeitosrdquo
(PUNTEL 2008 p 130)
Entendendo assim a linguagem no sentido maximal ou seja como
um sistema semioacutetico composto de uma quantidade infinita natildeo
enumeraacutevel de expressotildees isto eacute quando a linguagem eacute entendida como
13 Cf Zilhatildeo (1993 p 206) ldquoA analogia adequada que nos permite compreender a ligaccedilatildeo que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo eacute-nos dada pela consideraccedilatildeo das ferramentas que usamos Se soubermos olhar para elas poderemos ficar a saber tudo o que haacute para saber tanto acerca da lsquoformarsquo do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [hellip]rdquo
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 35
o reverso da expressabilidade do mundo entatildeo a fala sobre o mundo (a
realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica
sua reduccedilatildeo ao mundo da nossa linguagem e com isto cai tambeacutem por
terra a dicotomia ldquoem si e para noacutesrdquo Uma primeira consequecircncia desta
tese eacute que natildeo pode haver entidades excluiacutedas da dimensatildeo da linguagem
pois isto implicaria que tais entidades natildeo seriam expressaacuteveis Assim a
quantidade de sentenccedilas deve corresponder pelo menos ao nuacutemero de
entidades ou de fatos do mundo
O caraacuteter unilateral da posiccedilatildeo antirrealista se mostra justamente
nareduccedilatildeo da linguagem a uma criaccedilatildeo humana e consequentemente agrave
ldquonossa linguagemrdquo no desconhecimento total da linguagem maximal ou
absolutamente universal Isto significa dizer que falta aqui uma visatildeo para
o ldquotodordquo do fenocircmeno da linguagem e consequentemente a compreensatildeo
de que ldquonossardquo linguagem eacute apenas um segmento de uma linguagem
muito mais abrangente ou seja de um sistema semioacutetico composto de
uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees que eacute o ldquoinversordquo
da expressabilidade universal do ser em seu todo Nesse sentido a
linguagem possui um poder de expressatildeo muitiacutessimo maior do que a
linguagem entendida como sistema semioacutetico de comunicaccedilatildeo
Na consideraccedilatildeo da linguagem maximal a referecircncia agrave subjetividade
se torna simplesmente supeacuterflua uma tese que Apel (1973 p 240 ss) jaacute vecirc
presente na posiccedilatildeo de Wittgenstein Ele defende a tese de que o Tractatus
de Wittgenstein eacute uma filosofia transcendental sem sujeito uma vez que
Wittgenstein identifica o sujeito com a operaccedilatildeo formal constitutiva da
linguagem Com isto a referecircncia ao sujeito se torna supeacuterflua Em
contraposiccedilatildeo a esta posiccedilatildeo Apel defende a tese do caraacuteter irrecusaacutevel
pelo menos implicitamente de uma autorreferecircncia da linguagem a si
mesma que eacute depois da reviravolta linguiacutestica a nova forma de auto-
reflexividade Com isto se daacute a referecircncia a um sujeito individual como
suporte da forma loacutegica a fim de que ela possa exercer sua funccedilatildeo
transcendental Portanto a referecircncia ao sujeito eacute ineliminaacutevel
36 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Puntel (2008 p 129) denomina a linguagem maximal que de
nenhuma forma eacute tematizada pelas diferentes formas de filosofia
antirrealista como a de Apel de originaacuteria ou antes o ldquolocus originariusrdquo
de compreensatildeo da linguagem ldquono sentido de sistema semioacutetico que se
baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo do
ser)rdquo Neste contexto uma observaccedilatildeo eacute absolutamente fundamental
a linguagem filosoacutefica e cientiacutefica infinita natildeo enumeraacutevel natildeo eacute compreendida
como se fosse uma grandeza ldquomanipulaacutevelrdquo ela eacute antes uma espeacutecie de ideia
reguladora ou emolduradora em qualquer caso uma assunccedilatildeo metafiacutesica cuja
funccedilatildeo principal consiste em desempenhar um importante papel explanatoacuterio
(PUNTEL 2008 p 522)
Uma pergunta que emerge neste contexto inevitavelmente eacute o que eacute
mesmo essa linguagem maximal essa linguagem universal Para Puntel
(2008 p 527) se tem que dizer em primeiro lugar que ela por um lado
natildeo existe em lugar algum mas por outro lado existe em toda parte no
sentido de que ldquonada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser lsquoarticulado em
forma de linguagemrsquordquo Ocorre que o falante escolhe um certo ldquosegmentordquo
desta linguagem para se adequar a seus objetivos poreacutem este segmento
de nenhuma forma se identifica simplesmente com a totalidade da
linguagem o que tambeacutem vale para uma linguagem artificial que conteacutem
uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees direcionadas ao
objetivo da exposiccedilatildeo e natildeo da comunicaccedilatildeo Eacute esta a razatildeo porque se fala
aqui de linguagem maximal e ela natildeo soacute constitui o lugar originaacuterio da
compreensatildeo da linguagem mas soacute a partir daqui se pode compreender
adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da
linguagem na filosofia
Referecircncias
APEL K-O Wittgenstein und Heidegger die frage nach dem sinn von sein und die
sinnlosigkeitsverdacht gegen alle metaphysik In _____ Transformation der
philosophie (vol 1) Frankfurt am Main Suhrkamp 1973
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 37
BRANQUINHO J Atitude proposicional In _____ MURCHO D amp GOMES N G (Orgs)
Enciclopeacutedia de termos loacutegico-filosoacuteficos Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
ENGEL P Quine et les post-quiniens reacutealisme et antireacutealisme In MEYER M (Ed) La
philosophie anglo-saxonne Paris PUF p 348-368 1994
FINK E Naumlhe und distanz phaumlnomenologische vortraumlge und aufsaumltze
FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1976
GADAMER H-G Die phaumlnomenologische bewegung In _____ Gesammelte werke vol
3 Tuumlbingen 1987
HABERMAS J Vorlesungen zu einer sprachtheoretischen grundlegung der soziologie
(197071) In _____ Vorstudien und ergaumlnzungen zur theorie des
kommunikativen handelns Frankfurt am Main Suhrkamp 2 ed 1984
HUMBOLDT W v Gesammelte schriftenVol IV Berlim Academia Real Prussiana das
Ciecircncias (Org) 1903a
_____ Gesammelte schriften Vol VI Berlim Academia Real Prussiana das Ciecircncias
(Org) 1903b
HUSSERL E Ideen zu einer reinen phaumlnomenologie und phaumlnomenologischen
philosophie Haag Martinus Nijhoff 1950 (Husserliana vol III)
_____ Die krisis der europaumlischen wissenschaften und die transzendentale
phaumlnomenologie 2 ed Haag Martinus Nijhoff 1963 (Husserliana vol VI)
_____ Erfahrung und urteil untersuchungen zur genealogie der logik 3 ed Hamburg
Claassen Verlag 1964
KELLER A Sprachphilosophie FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1979
KUTSCHERA F v Sprachphilosophie 2 ed Muumlnchen Wilhelm Fink Verlag 1975
_____ Die teile der philosophie und das ganze der wirklichkeit BerlinNew York W
de Gruyter 1998
McDOWELL J Mente e mundo Aparecida Ideias amp Letras 2005
38 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
MILLER A Filosofia da linguagem Satildeo Paulo Paulus 2010
OLIVEIRA M A de Subjektivitaumlt und vermittlung studien zur entwicklung des
transzendentalen denkens bei I Kant E Husserl und H Wagner Muumlnchen Wilhelm
Fink Verlag 1973
_____ A centralidade da intersubjetividade uma leitura pragmaacutetica da filosofia
transcendental em J Habermas In _____ Antropologia filosoacutefica
contemporacircnea subjetividade e inversatildeo teoacuterica Satildeo Paulo Paulus 2012
_____ A ontologia em debate no pensamento contemporacircneo Satildeo Paulo Paulus 2014
_____ A reviravolta linguiacutestico-pragmaacutetica na filosofia contemporacircnea4 ed Satildeo
Paulo Loyola 2015
PORTA M A G Platonismo e intencionalidad a propoacutesito de Bernard Bolzano (2ordf Parte)
Siacutentese v 30 n 96 p 85-106 2003
PUNTEL L B Grundlagen einer theorie der wahrheit BerlinNew York de Gruyter
1990
_____ Estrutura e ser um quadro referencial teoacuterico para uma filosofia sistemaacutetica Satildeo
Leopoldo Editora Unisinos 2008
_____ Ser e Deus um enfoque sistemaacutetico em confronto com M Heidegger Eacute Leacutevinas e
J-L Marion Satildeo Leopoldo Editora Unisinos 2011
PUTNAM HVernunft wahreit und geschichte Frankfurt am Main Suhrkamp 1990
_____ Auf messers schneide interner realismus und relativismus In Von einem
realistischen standpunkt schriften zu sprache und wirklichkeit Ed e trad por V
C Muumlller Reinbek bei Hamburg Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH 1993
_____ Why there isnacutet a ready-made world In _____ Realism and reason Philosophical
Papers vol 3 Cambridge Cambridge University Press 1996
QUINE W V O The pragmatists` place in empiricism In MULVANEY R J amp ZELTNER
P M (Orgs) Pragmatism its sources and prospects University of South California
Press 1981
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 39
SAPIR E The status of linguistics as a science Language v 5 n 4 p 207-214 1929
SELLARS W Conceptual change In PEARCE G amp MAYNARD P (Orgs) Conceptual
change Dordrecht D Reidel 1973
_____ Empirismo e filosofia da mente Com uma introduccedilatildeo de Richard Rorty e um guia
de estudos de Robert Brandom Petroacutepolis Vozes 2003
SIEMEK M J Husserl e a heranccedila da filosofia transcendental Siacutentese v 28 n 91 p 189-
202 2001
STROumlKER E Phaumlnomenologische studien Frankfurt am Main V Klostermann 1987
TUGENDHAT E Der wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger Berlin de Gruyter
1967
_____ Vorlesungen zur einfuumlhrung in die sprachanalytische Philosophie Frankfurt
am Main Suhrkamp 1976
ZILHAtildeO A Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem estudos sobre
Wittgenstein Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993
2
Encheiriacutedion Capiacutetulo I
Traduccedilotildees e Comentaacuterios
Aldo Dinucci 1
Alfredo Julien 2
Antonio Carlos Tarquiacutenio 3
O Encheiriacutedion termo que em grego significa ldquoadaga punhal arma
portaacutetil ou livro portaacutetil manualrdquo foi composto por Luacutecio Flaacutevio Arriano
de Nicomeacutedia4 tomando por base suas compilaccedilotildees das aulas de Epicteto
Consistindo em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do
Estoicismo tenha sempre ao alcance da matildeo os princiacutepios para enfrentar
as dificuldades da vida e vencecirc-las o Encheiriacutedion tornou ceacutelebre o nome
de Epicteto Seguem breves mas importantes traduccedilotildees e comentaacuterios
sobre o primeiro capiacutetulo do Encheiriacutedion de Epicteto A primeira traduccedilatildeo
comentada foi realizada por Aldo Dinucci e Alfredo Julien pesquisadores
que dedicaram alguns anos agrave traduccedilatildeo da obra culminando com uma
ediccedilatildeo em Coimbra da mesma pelos Classica Digitalia A segunda por
Antonio Carlos Tarquiacutenio filoacutesofo radicado em Satildeo Paulo que tem se
dedicado intensamente nas uacuteltimas deacutecadas ao estudo de Epicteto
publicando em 2017 o livro Uma filosofia do desapego a askesis de
desapropriaccedilatildeo epictetiana agrave luz da katharsis do Feacutedon de Platatildeo resultado
1 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
2 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)
3 Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)
4 Ca 86-160
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 41
de suas pesquisas de doutorado sobre o velho de Nicoacutepolis Imediatamente
abaixo temos o texto em grego estabelecido pela primeira vez por Boter
em 1999
[11] Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ ἡμῖν τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἐφ ἡμῖν μὲν
ὑπόληψις ὁρμή ὄρεξις ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα οὐκ ἐφ
ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα ἡ κτῆσις δόξαι ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα
ἔργα[12]καὶ τὰ μὲν ἐφ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα ἀκώλυτα παραπόδιστα
τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀσθενῆ δοῦλα κωλυτά ἀλλότρια[13] μέμνησο οὖν ὅτι
ἐὰν τὰ φύσει δοῦλα ἐλεύθερα οἰηθῇς καὶ τὰ ἀλλότρια ἴδια ἐμποδισθήσῃ
πενθήσεις ταραχθήσῃ μέμψῃ καὶ θεοὺς καὶ ἀνθρώπους ἐὰν δὲ τὸ σὸν
μόνον οἰηθῇς σὸν εἶναι τὸ δὲ ἀλλότριον ὥσπερ ἐστίν ἀλλότριον οὐδείς σε
ἀναγκάσει οὐδέποτε οὐδείς σε κωλύσει οὐ μέμψῃ οὐδένα οὐκ ἐγκαλέσεις
τινί ἄκων πράξεις οὐδὲ ἕν οὐδείς σε βλάψει ἐχθρὸν οὐχ ἕξεις οὐδὲ γὰρ
βλαβερόν τι πείσῃ [14] τηλικούτων οὖν ἐφιέμενος μέμνησο ὅτι οὐ δεῖ
μετρίως κεκινημένον ἅπτεσθαι αὐτῶν ἀλλὰ τὰ μὲν ἀφιέναι παντελῶς τὰ δ
ὑπερτίθεσθαι πρὸς τὸ παρόν ἐὰν δὲ καὶ ταῦτ ἐθέλῃς καὶ ἄρχειν καὶ
πλουτεῖν τυχὸν μὲν οὐδ αὐτῶν τούτων τεύξῃ διὰ τὸ καὶ τῶν προτέρων
ἐφίεσθαι πάντως γε μὴν ἐκείνων ἀποτεύξη δι ὧν μόνων ἐλευθερία καὶ
εὐδαιμονία περιγίνεται [15] εὐθὺς οὖν πάσῃ φαντασίᾳ τραχείᾳ μελέτα
ἐπιλέγειν ὅτι lsquoφαντασία εἶ καὶ οὐ πάντως τὸ φαινόμενονrsquo ἔπειτα ἐξέταζε
αὐτὴν καὶ δοκίμαζε τοῖς κανόσι τούτοις οἷς ἔχεις πρώτῳ δὲ τούτῳ καὶ
μάλιστα πότερον περὶ τὰ ἐφ ἡμῖν ἐστιν ἢ περὶ τὰ οὐκ ἐφ ἡμῖν κἂν περί τι
τῶν οὐκ ἐφ ἡμῖν ᾖ πρόχειρον ἔστω τὸ διότι lsquoοὐδὲν πρὸς ἐμέrsquo
Encheiriacutedion Capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Aldo Dinucci e
Alfredo Julien)
[11] Das coisas existentes algumas satildeo encargos nossos outras natildeo Satildeo
encargos nossos o juiacutezo o impulso o desejo a repulsa ndash em suma tudo quanto
seja accedilatildeo nossa Natildeo satildeo encargos nossos o corpo as posses a reputaccedilatildeo os
cargos puacuteblicos ndash em suma tudo quanto natildeo seja accedilatildeo nossa [12] Por
natureza as coisas que satildeo encargos nossos satildeo livres5 desobstruiacutedas6 sem
5 Eleutheros livre por oposiccedilatildeo a escravo Para Epicteto quem deseja o que natildeo eacute encargo seu necessariamente torna-se escravo pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso agrave coisa desejada (cf Diatribes I 419)
6 Akolytos adjetivo verbal de privaccedilatildeo da accedilatildeo relacionada ao verbo kolyo que significa ldquoafastar desviarrdquo adquirindo o sentido de ldquoimpedirrdquo Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to kolyon com o significado de ldquoobstaacuteculordquo
42 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
entraves7 As que natildeo satildeo encargos nossos satildeo deacutebeis8 escravas obstruiacutedas9
de outrem10 [13] Lembra entatildeo que se pensares11 livres as coisas escravas por
natureza e tuas as de outrem tu te faraacutes entraves12 tu te afligiraacutes13 tu te
inquietaraacutes14 censuraraacutes tanto os deuses como os homens Mas se pensares
teu unicamente o que eacute teu e o que eacute de outrem como o eacute de outrem ningueacutem
jamais te constrangeraacute15 ningueacutem te faraacute obstaacuteculos natildeo censuraraacutes
ningueacutem nem acusaraacutes quem quer que seja de modo algum agiraacutes
constrangido ningueacutem te causaraacute dano natildeo teraacutes inimigos pois natildeo seraacutes
persuadido em relaccedilatildeo a nada nocivo [14] Entatildeo almejando coisas de
tamanha importacircncia lembra que eacute preciso que natildeo te empenhes de modo
comedido mas que abandones completamente algumas coisas e por ora
deixes outras para depois Mas se quiseres aquelas coisas e tambeacutem ter cargos
e ser rico talvez natildeo obtenhas estas duas uacuteltimas por tambeacutem buscar as
primeiras e absolutamente natildeo atingiraacutes aquelas coisas por meio das
quaisunicamente resultam a liberdade e a felicidade16 [15] Entatildeo pratica dizer
prontamente a toda representaccedilatildeo bruta17 ldquoEacutes representaccedilatildeo e de modo
algum lteacutesgt o que se afigurardquo18 Em seguida examina-a e testa-a com essas
mesmas regras que possuis em primeiro lugar e principalmente se eacute sobre
ldquoimpedimentordquo Assim a-kolytos refere-se a algo para o que natildeo haacute impedimento quanto agrave sua obtenccedilatildeo sendo portanto ldquodesimpedidordquo
7 Aparapodistos optamos traduzir o termo por ldquosem entravesrdquo pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a accedilatildeo relacionada ao verbo podizo que significa ldquosujeitar os peacutes com travasrdquo referindo-se principalmente a armadilhas para animais Cf o substantivo feminino podistra que pode significar tanto ldquoarmadilha que prende pelos peacutesrdquo (Antologia Palatina 6 107) quanto ldquoteia de aranhardquo (Antologia Palatina 9 372)
8 Asthene privado de forccedila no sentido de ldquoforccedila fiacutesica vigorrdquo
9 Kolytos Cf nota acima sobre akolutos
10 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para qualificar o que eacute encargo nosso e o que natildeo eacute o que eacute encargo nosso eacute livre desobstruiacutedo sem entraves o que natildeo eacute encargo nosso eacute deacutebil escravo de outrem
11 Oio ldquopensarrdquo no sentido de ldquopresumirrdquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute ldquopressentir crer estimarrdquo
12 Empodizo significa literalmente ldquometer os peacutes em uma armadilhardquo
13 Pentheo verbo relacionado ao substantivo to penthos que siginifica ldquodor afliccedilatildeordquo
14 Tarasso significa primariamente ldquoremexerrdquo ldquoagitarrdquo no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compotildeem
15 Anankazo ldquoforccedilarrdquo ldquoconstrangerrdquo
16 Felicidade traduz eudaimoniacutea No contexto do paganismo grego daimoniacuteos eacute um adjetivo que qualifica tudo o que proveacutem da divindade ou eacute enviado por um deus Associado ao prefixo ldquoeṷrdquo (ldquobemrdquo no sentido de coisas boas) esse vocaacutebulo tem significaccedilatildeo proacutexima agrave de ldquobem-aventuranccedilardquo na acepccedilatildeo cristatilde
17 Trata-se do adjetivo trachys apresentado por Bailly (2000) com o significado de ldquoruderdquo adquirindo diversos sentidos dependendo do substantivo ao qual esteja ligado ldquoAacutesperordquo ao se tratar de uma pedra ldquopedregosordquo ao se referir a um rio ou a um terreno ldquoroucardquo ao qualificar um tipo voz ldquogrosseiro duro cruel violento e irasciacutevelrdquo ao se referir ao comportamento de algueacutem Simpliacutecio (Comentaacuterio ao Encheiriacutedion de Epicteto V 15) observa que tal representaccedilatildeo eacute chamada tracheiacutea (dura bruta) por ser contraacuteria agrave razatildeo tornando ldquoaacutesperardquo a vida Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por ldquoharshrdquo Gourinat (1998) por ldquopeacuteniblerdquo Garciacutea (1995) por ldquobrutardquo
18 Phainoacutemenon ldquoo que estaacute se manifestando ou se mostrandordquo particiacutepio presente meacutedio do verbo phaaino
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 43
coisas que satildeo encargos nossos ou natildeo E caso esteja entre as coisas que natildeo
sejam encargos nossos tem agrave matildeo que ldquoNada eacute para mimrdquo
A expressatildeo ephi hemin que ora traduzimos por ldquosob nosso encargordquo
ou ldquoencargo nossordquo natildeo possui equivalente direto que possa dar conta de
seu significado Literalmente poderiacuteamos traduzi-la por ldquoalgumas coisas
estatildeo sobre noacutes outras natildeordquo Henrique Murachco traduz expressatildeo
semelhante (to epi emoi) por ldquono que estaacute sobre mimrdquo no sentido ldquode
quanto a mimrdquo ldquono que me concernerdquo (2001 p 573) No caso do
Encheiridion de Epicteto a traduccedilatildeo poderia ser ldquoalgumas coisas nos
concernem outras natildeordquo Bailly (2000) citando a mesma expressatildeo
acentua a ideia de dependecircncia e de poder que ela expressa traduzindo-a
por ldquoautant qursquoil est em mon pouvoirrdquo enfatizando assim a ideia de
controle (cf Xenofonte Ciropeacutedia 54 11) A expressatildeo possui imagem
concreta e clara referindo-se a algo que eacute colocado sobre noacutes sustentado
por noacutes pois nos encontramos embaixo fornecendo seu apoio A opccedilatildeo
por ldquoencargo nossordquo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto
a isso que estaacute sobre noacutes (e do que somos a causa primaacuteria)
A expressatildeo eacute diferentemente vertida por diferentes tradutores
Oldfather a traduz por ldquothings under our controlrdquo (2000) White por
ldquowhat is up to usrdquo (1983) Gourinat por ldquochoses qui deacutependent de nousrdquo
(1998)
Como dissemos epi expressa uma relaccedilatildeo de dependecircncia Satildeo
portanto coisas que dependem de noacutes Como Epicteto diraacute na continuaccedilatildeo
do texto eacute preciso que nos concentremos sobre as coisas que estatildeo sob
nosso controle em trecircs sentidos Em relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo (phantasia)
retirando dela todo juiacutezo (hypolepsis) equivocado a partir da
compreensatildeo de que nada que natildeo depende de noacutes eacute por si mesmo um
bem ou um mal Em relaccedilatildeo ao impulso (horme) uma vez cientes de que
produzimos nosso bem e nosso mal eacute preciso moderar os impulsos e
encontrar o modo de agir segundo a natureza Em relaccedilatildeo ao desejo
(orexis) e agrave repulsa (ekklisis) partindo mais uma vez da compreensatildeo de
que nada externo eacute por si soacute um bem ou um mal eacute preciso que o desejo e
44 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
a repulsa se apliquem natildeo mais agraves coisas que natildeo dependem de noacutes
(sendo-nos necessaacuterio desejaacute-las como satildeo) mas agraves coisas que estatildeo sob
nosso controle
Traduzimos por juiacutezo o vocaacutebulo grego hypolepsis que eacute substantivo
relacionado ao verbo hypolambano que expressa a ideia de sucessatildeo e de
substituiccedilatildeo adquirindo os sentidos de ldquoreacuteplica resposta concepccedilatildeo e
pensamentordquo O vocaacutebulo ldquojuiacutezordquo empregado aqui para traduzir essa
noccedilatildeo deve ser entendido como um parecer ou uma opiniatildeo que orienta
nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta Vale a
pena ressaltar que no contexto deste capiacutetulo o vocaacutebulo estaacute associado
ao verbo oiocedil traduzido aqui por ldquopensarrdquo No capiacutetulo 20 do Encheiriacutedion
apresenta-se uma associaccedilatildeo clara entre hypolepsis e dogma (opiniatildeo) No
capiacutetulo 5 apresenta-se tambeacutem uma associaccedilatildeo entre dogma (opiniatildeo) e
phantasiacutea (representaccedilatildeo) por meio do verbo phainomai (afigurar-se) Eacute
interessante notar que o juiacutezo nesses exemplos envolve a ponderaccedilatildeo ndash
como a consideraccedilatildeo sobre se algo eacute livre ou escravo - mas tambeacutem
sentimentos relacionados agraves nossas recusas medos e desejos Oldfather
(2000) traduz hypolepsis por ldquoconceptionrdquo White (1993) por ldquoopinionrdquo
Gourinat (1998) por ldquojugementrdquo e Garciacutea (1995) por ldquojuiciordquo
A noccedilatildeo de phantasiacutea que ora traduzimos por representaccedilatildeo eacute de
fundamental importacircncia para a compreensatildeo da filosofia estoica por
relacionar-se tanto a questotildees loacutegicas quanto epistemoloacutegicas e eacuteticas
Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasiacutea uma
modificaccedilatildeo da faculdade diretriz eles divergem ao explicar essa mudanccedila
Para Lesses (1998 p 6) Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma
concepccedilatildeo ingecircnua de representaccedilatildeo mental segundo a qual as phantasiacuteai
perceptivas satildeo coacutepias de qualidades que os objetos representados
possuem (cf Dioacutegenes Laeacutercio 7504) Aleacutem disso Annas (1991 p 74-75)
compreende estar implicado nas observaccedilotildees de Crisipo que as phantasiacuteai
satildeo proposicionais ou articulaacuteveis em forma linguiacutestica Ora quanto agraves
alternativas para traduzirmos o termo phantasiacutea parece-nos que
impressatildeo estaacute mais proacuteximo de Cleanto que de Crisipo pois a metaacutefora
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 45
utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questatildeo eacute justamente
agrave da impressatildeo sobre a cera metaacutefora que eacute criticada por Crisipo por seu
caraacuteter imageacutetico A concepccedilatildeo de Crisipo sobre a phantasiacutea ndash adotada
desde entatildeo pelo Estoicismo ndash eacute que ela tem duas facetas uma sensiacutevel
(pois como dissemos trata-se de uma modificaccedilatildeo da faculdade diretriz)
e outra virtual (pois a essa modificaccedilatildeo eacute afixado um juiacutezo que descreve e
avalia aquilo que efetuou a modificaccedilatildeo) Assim sendo parece-nos que a
palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo (que possui de acordo com o Aureacutelio o sentido
filosoacutefico geral de ldquoconteuacutedo concreto apreendido pelos sentidos pela
imaginaccedilatildeo pela memoacuteria ou pelo pensamentordquo) serve para o nosso
propoacutesito e por ela traduziremos phantasiacutea
Traduzimos por lsquoimpulsorsquo o termo grego horme que eacute substantivo
relacionado ao verbo ornumi (ldquolevantar-serdquo) designando o primeiro bote
de um assalto ou ataque adquirindo os sentidos de elatilde e de impulso Entre
as traduccedilotildees consultadas para este trabalho a uacutenica exceccedilatildeo a ldquoimpulsordquo
como vocaacutebulo para traduzir horme eacute a opccedilatildeo de Oldfather (2000) que
emprega ldquochoicerdquo (ldquoescolhardquo) Horme deve ser entendido no contexto do
pensamento epictetiano como o iacutempeto para a accedilatildeo a tendecircncia para agir
desta ou daquela maneira diante de determinada coisa
Traduzimos por lsquodesejorsquo o termo grego orexis que eacute o nome da accedilatildeo
do verbo orego que apresenta o significado de ldquoestender ou tender na
direccedilatildeo de algordquo (por exemplo estender as matildeos para o ceacuteu ou para pedir
algo a algueacutem) de onde ldquodesejordquo ldquoapetiterdquo Eacute uma palavra difiacutecil para ser
transportada ao contexto cultural presente Embora sua traduccedilatildeo por
ldquodesejordquo seja corrente eacute preciso ter cautela com ela pois natildeo se deve
entender orexis no sentido do emaranhado de pulsotildees originadas em niacutevel
inconsciente que caracteriza a visatildeo moderna da subjetividade humana
Orexis descreve a accedilatildeo de tender em direccedilatildeo a algo Uma forma de
apreender da maneira mais precisa possiacutevel seu significado eacute ter em conta
que orexis se opotildee a ekklisis que expressa o movimento contraacuterio o de
afastar-se Para Epicteto desejamos as coisas que consideramos boas (cf
Diatribes I42-3)
46 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
lsquoRepulsarsquo eacute nossa escolha para traduzir eacutekklisis termo grego que
identifica a accedilatildeo de declinar expressando o movimento contraacuterio de klisis
que significa a accedilatildeo de inclinar-se Eacute empregado para descrever o
movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o decliacutenio de
um astro Oldfather (2000) White (1983) e Gourinat (1998) optaram
traduzi-lo por ldquoaversatildeordquo Garciacutea (1998) por ldquorechazordquo No Aureacutelio
ldquoaversatildeordquo apresenta os significados de ldquooacutedio rancor antipatiardquo que natildeo
cabem no presente caso Optamos entatildeo por ldquorepulsardquo para expressar a
ideia de repelir afastar ou evitar algo sem a conotaccedilatildeo de aversatildeo Para
Epicteto repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf Diatribes
I42-3)
Encheiriacutedion capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Antonio Carlos
Tarquiacutenio)
(1-1) Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes19 outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute
propriamente nosso20 julgamento de valor21 impulso para agir desejo
aversatildeo - em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa
alccedilada22 o corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos
- em uma palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem
propriamente (1-2) E as coisas que nos competem satildeo por natureza livres
sem impedimentos sem entraves e as que natildeo satildeo fracas escravas
impedidas de outrem (1-3) Lembra entatildeo que se consideras as coisas
escravas por natureza livres e as coisas alheias proacuteprias seraacutes impedido
estaraacutes triste e perturbado censuraraacutes tanto os deuses como tambeacutem os
homens Mas se consideras ser teu somente o teu e o alheio como eacute alheio
ningueacutem te obrigaraacute nem te impediraacute natildeo censuraraacutes a ningueacutem tampouco
acusaraacutes a algueacutem nenhuma accedilatildeo contra vontade ningueacutem te prejudicaraacute
natildeo teraacutes inimigo uma vez que ningueacutem te convenceraacute de algo danoso23 (1-
4) Lembra-te enfim de que aspirando coisas de tal tamanho24 natildeo eacute preciso
19 Satildeo de nossa alccedilada
20 Eacute de nossa competecircncia
21 Aceito a traduccedilatildeo de Pierre Hadot da palavra hypolepsis
22 Natildeo satildeo de nossa competecircncia natildeo satildeo propriamente nossos
23 Ou seja que tenha sofrido algo de danoso Ningueacutem nos convenceraacute de havermos sido prejudicados
24 Isto eacute tatildeo grandes Elevadas
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 47
se mover moderadamente para alcanccedilaacute-las25 mas umas abandonar
completamente e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois
Mas se queres tambeacutem essas coisas (isto eacute as elevadas e grandes) e mandar e
enriquecer talvez natildeo obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade) por
tambeacutem demandares as primeiras (as elevadas e grandes) erraraacutes o alvo
totalmente pelo menos daquelas (coisas) atraveacutes das quais tatildeo somente
dominarias a liberdade e a felicidade (1-5) Enfim exercita-te rapidamente em
acrescentar a toda fantasia26 que ldquoeacutes impressatildeo e de modo algum o que se
mostra (sendo)rdquo A seguir investiga-a e submeta-a a esses cacircnones os quais
tens e em primeiro lugar esse e sobretudo qual dos dois se a respeito das
coisas sobre noacutes ou a respeito das coisas que natildeo estatildeo sobre noacutes e se for algo
a respeito das que natildeo estatildeo sobre noacutes por isso esteja agrave matildeo ldquonada perante
a mimrdquo
O primeiro capiacutetulo do Enquiriacutedio de Epicteto enfeixa ideias preciosas
que auxiliam o acesso agrave compreensatildeo de sua proposta filosoacutefica Nele
encontramos pontos essenciais de sua doutrina de seu ensinamento Se
no seguimento da obra outros temas surgem e encontram em tempo
oportuno explicaccedilatildeo eacute nos seus cinco itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que
vemos traccedilado o panorama de pensamento do filoacutesofo estoico
Desde o iniacutecio do Enquiriacutedio de Epicteto vecirc-se o estabelecimento de
uma linha divisoacuteria que possui como principal objetivo demarcar a zona
do eu - do verdadeiro eu - distinguindo-a da regiatildeo em que se situam as
coisas em relaccedilatildeo estreita com o corpo Eis a afirmativa de Epicteto a este
respeito
Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute
propriamente nosso julgamento de valor impulso para agir desejo aversatildeo
- em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa alccedilada o
25 Tocaacute-las obtecirc-las
26 Optamos por traduzir phantasiacutea por fantasia em vez de usar os habituais termos ldquorepresentaccedilatildeordquo e ldquoimpressatildeordquo que carreiam consigo interpretaccedilotildees tatildeo incompatiacuteveis entre si que para utilizaacute-los se faria necessaacuteria uma elucidaccedilatildeo criacutetica de cada uma delas De acordo com Sexto Empiacuterico a traduccedilatildeo de phantasiacutea para ldquoimpressatildeordquo (typosis) eacute compatiacutevel com o pensamento de Cleantes conforme a metaacutefora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemocircnico agrave feiccedilatildeo de um sinete sobre a cera Jaacute Crisipo entende a he phantasiacutea ao modo de uma alteraccedilatildeo (heteroiosis) da alma Sexto Empiacuterico M VII 228-230 Doravante citado com a sigla SE
48 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos - em uma
palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem propriamente27
Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais agrave face dessa
tese epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses fama
riquezas inclusive nossos corpos natildeo devam ser situados no campo de
nossas preocupaccedilotildees habituais por natildeo nos pertencerem propriamente
Pois essas satildeo coisas que se no passado jaacute se procuravam hoje muito mais
Em contrapartida o desejar o julgar o agir e o evitar natildeo causam
indignaccedilatildeo como fazeres nossos apesar da descoberta nos uacuteltimos seacuteculos
do inconsciente que parece gerar consequecircncias seriacutessimas em torno das
faculdades aniacutemicas do homem
Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas ldquonatildeo
sobre noacutesrdquo e continuaraacute aparecendo principalmente nas Liccedilotildees de
Epicteto28 toda vez que ele se referir agrave distinccedilatildeo essencial em que figura o
campo de responsabilidade especiacutefica humana Vejamos por exemplo este
trecho das Liccedilotildees
Pois o corpo nos eacute estranho seus membros nos satildeo estranhos nossos teres
nos satildeo estranhos Se por conseguinte tu te prendes a alguma dessas coisas
como a alguma coisa pessoal receberaacutes o castigo que merece aquele que deseja
aquilo que lhe eacute estranho29
Se o corpo e seus amigos natildeo nos pertencem propriamente as obras
da alma satildeo nossas30 natildeo soacute como propriedades inalienaacuteveis mas
sobretudo porque satildeo livres desimpedidas e isentas de qualquer
obstaacuteculo como o Enquiriacutedio de Epicteto inicia separando esferas de
27 E I 1
28 Traduzo Epiktetoi diatribai por Liccedilotildees de Epicteto Seratildeo representadas com a sigla L
29 L IV 1 130-131
30 ldquoE as obras da alma satildeo o impulso para agir o impulso de se afastar o desejar o preparar o intentar o assentirrdquo L IV 11 6 O termo ldquoobras da almardquo demonstra que a real distinccedilatildeo eacute entre a psykhe e o corpo Ora as obras da alma satildeo as obras do hegemocircnico ldquoOs estoicos afirmam que o hegemocircnico eacute a parte mais alta da alma aquela que produz as fantasias os assentimentos as sensaccedilotildees as tendecircncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) 847 Aeacutecio IV 21 1-4 = Pseudo-Plutarque 903A12c-10 Crisipo Oeuvre Philosophique Doravante citado com a sigla Chrys OC
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 49
responsabilidade aquilo por que sou responsaacutevel daquilo pelo que natildeo sou
responsaacutevel nem sempre se consegue perceber a questatildeo de fundo por
traacutes da divisatildeo Entretanto quando Epicteto trata do assunto por outro
acircngulo notamos aquilo que estaacute em jogo na separaccedilatildeo a centralizaccedilatildeo da
vida humana nos valores da alma
Em uma declaraccedilatildeo visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto
se perguntando sobre quem no filoacutesofo do Jardim produziu seus escritos
deixou que sua barba crescesse e tambeacutem quem nele afirmou certa vez
viver seus uacuteltimos dias em estado de felicidade E conclui sua indagaccedilatildeo
com a pergunta A carne (sarks) ou a escolha (prohairesis)31 ou seja
se Epicuro escolheu escrever a prohairesis eacute aquele ato espiritual que o
define mesmo que sua filosofia negue isso Na passagem que segue se
clareia por inteira a noccedilatildeo de que o bem humano eacute por excelecircncia e
essencialmente de ordem espiritual Digo ldquoespiritualrdquo no sentido de
indicar o hegemocircnico em uma das suas funccedilotildees primordiais32 mesmo
sabendo se tratar de um pneuma corpoacutereo uma vez que o proacuteprio Epicteto
compara-o ao corpo utilizando termos antiteacuteticos
A divindade eacute uacutetil mas o bem tambeacutem eacute Entatildeo eacute verossiacutemil onde a essecircncia
da divindade laacute tambeacutem a do bem Entatildeo qual eacute a essecircncia da divindade A
carne Natildeo viria a ser Campo Natildeo viria a ser Fama Natildeo viria a ser A mente
a ciecircncia o pensamento correto Logo procura nessas coisas simplesmente a
essecircncia do bem33
Na introduccedilatildeo ao livro Le Manuel drsquoEacutepicteacutete Pierre Hadot se refere agrave
concentraccedilatildeo do eu qual exerciacutecio espiritual que se poderia derivar
diretamente da separaccedilatildeo sugerida por Epicteto Seria a separaccedilatildeo do eu
do natildeo-eu34 e natildeo discordamos
31 L II 23 21
32 O ato de escolher a prohairesis
33 L II 8 1-3
34 Na medida em que se potildee em operaccedilatildeo a distinccedilatildeo entre as coisas dependentes de noacutes e as coisas independentes de noacutes o eu eacute como que recolocado dentro de seus limites porque natildeo avanccedila mais sobre o que natildeo lhe diz respeito O eu reposicionado deixa para fora de si o natildeo-eu ou seja todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente
50 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Distinguir o que depende de noacutes e o que natildeo depende de noacutes a causalidade
interior e a causalidade exterior eacute finalmente distinguir o eu do natildeo-eu Eacute um
exerciacutecio de concentraccedilatildeo e de delimitaccedilatildeo do eu eu natildeo sou os objetos que
me circundam e que por vezes me satildeo caros esta marmita ou este cavalo ou
esta lacircmpada eu natildeo sou pode-se dizer os atributos gramaticais que o
Destino me impotildee rico ou pobre saudaacutevel ou doente senhor ou escravo
poderoso ou miseraacutevel eu natildeo sou os meus membros eu natildeo sou o meu corpo
nem a emoccedilotildees involuntaacuterias que podem emocionaacute-lo35
O que estaacute no cerne da cisatildeo preceituada por Epicteto eacute a fixaccedilatildeo de
um lugar o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se
voltar a fim de concentrar todos os seus esforccedilos Na verdade a
concentraccedilatildeo do eu demarca dois itineraacuterios bem definidos um em que a
parte dirigente da alma36 eacute assentada a tiacutetulo de oficina e outro em que eacute
definida a principal tarefa do homem ou seja o seu ofiacutecio
Oficina e ofiacutecio juntam-se num mesmo caminho espiritual Enquanto
a primeira diz respeito ao princiacutepio diretor da alma ao hegemocircnico como
lugar de trabalho a segunda se define como o proacuteprio trabalho no cuidado
dele
Referecircncias
ANNAS J Hellenistic philosophy of mind Berkeley University of California Press 1991
BAILLY A Le grand dictionnaire grecfranccedilais Paris Hachette 2000
DINUCCI A O manual de Epicteto aforismos da sabedoria estoica Satildeo Cristoacutevatildeo
EdiUFS 2007
DINUCCI A JULIEN A Epicteto testemunhos e fragmentos Satildeo Cristoacutevatildeo EdiUFS
2008
35 Hadot (2000 p 44-45) Cf L III 24 56 IV 1 129-130
36 Crisipo se refere ao hegemocircnico como o verdadeiro ldquoeurdquo Cf Galeno Sobre as doutrinas de Hipoacutecrates e de Platatildeo II 2 9 1-11 6
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 51
_____ O Encheiridion de Epicteto Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra
2014
DIOacuteGENES LAEacuteRCIO Lives of eminent philosophers vol I IITrad R D Hicks Harvard
Loeb Classical Library 1925
EPICTETO The Encheiridion of Epictetus and its three christian adaptations Trad
G Boter Leiden Brill 1999
_____ Epictetus EncheiridionTrad G Boter Berlim De Gruyter 2007
_____ Manual Trad P O Garciacutea Madrid Editorial Gredos 1995
EPICTETO Enchiridion Trad G Long Nova York Prometheus 1991
_____ Manuel drsquoEacutepictegravete Trad P Hadot Paris LGF 2000
_____ Penseacutees (Manuel) in extenso In Les stoiciumlens textes choisis Org J Brun Paris
PUF 1998 p 118-39
_____ The discourses of Epictetus as reported by Arrian (Books I II III amp IV)
fragments Encheiridion Trad W A Oldfather Cambridge Loeb 2000
_____ The discourses of Epictetus with the Enchiridion and fragments Trad George
Long Londres George Bell amp Sons 1877
_____ Epictetus the handbook the EncheiriacutedionTrad N P White Cambridge
Hacket 1983
LESSES G Content cause and stoic impressions Phronesis XLIII1 1998 p 2-24
MAacuteXIMO PLANUDES Greek anthology vol I IIITrad W R Paton Harvard Loeb
Classical Library 1916-8
MURACHCO Henrique Liacutengua grega visatildeo semacircntica loacutegica orgacircnica e funcional Satildeo
Paulo Discurso EditorialEditora Vozes 2001
SEXTO EMPIacuteRICO Against the professors Trad R G Bury Harvard Loeb 1949
SCHENKL H Epictetus dissertationiones ab Arriani digestae Stutgart Taubner 1965
52 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
SCHWEIGHAUSER Epicteteae philosophiae monumenta 3 vol Leipsig Weidmann
1800
XENOFONTE Cyropaedia vol I II Symposium Apology Trad Walter Miller Harvard
Loeb Classical Library 1914
_____ Memorabilia oeconomicus Symposium ApologyTrad E C Marchant O J
ToddHarvard Loeb Classical Library 1923
3
A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva
da Filosofia Analiacutetica da Mente
Taacuterik de Athayde Prata 1
Alguns Problemas a Respeito da Consciecircncia
Enquanto escrevo estas palavras estou consciente Isso significa que
estou desperto e assim capaz de interagir com meu ambiente imediato
atraveacutes de percepccedilotildees bem como de accedilotildees Sinto a temperatura desta sala
ao mesmo tempo em que vejo as letras surgindo na tela do computador
enquanto sinto a textura das teclas ao deslizar meus dedos sobre elas
Assim entendida minha consciecircncia eacute algo que diz respeito ao
funcionamento de meu organismo e dessa forma pertence a aqueles que
David Chalmers chamou de ldquoproblemas faacuteceisrdquo (easy problems) isto eacute
problemas que se referem a (i) funccedilotildees de modo que se precisa apenas
buscar o (ii) mecanismo que as desempenha (cf CHALMERS 1995 p
202) De acordo com ele ldquoPara uma explanaccedilatildeo do sono e da vigiacutelia seraacute
suficiente uma adequada explanaccedilatildeo neurofisioloacutegica dos processos
responsaacuteveis pelo comportamento contrastante do organismo nesses
estadosrdquo (CHALMERS 1995 p 201) E a diferenccedila entre sono e vigiacutelia eacute
constitutiva da consciecircncia como uma propriedade de um organismo
Mas se eu enquanto organismo posso ser qualificado como
ldquoconscienterdquo natildeo eacute difiacutecil perceber que haacute um uso plenamente legiacutetimo
desse adjetivo em relaccedilatildeo agrave minha vida psicoloacutegica em seus detalhes mais
1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
54 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
especiacuteficos ou seja em relaccedilatildeo a meus estados eventos e processos
mentais entidades psiacutequicas que podem tambeacutem ser conscientes Minhas
percepccedilotildees (da temperatura da sala das letras na tela da textura das
teclas) minhas intenccedilotildees (de digitar certas palavras de escrever um texto
para um evento acadecircmico) assim como meus pensamentos (p ex a
respeito do tema filosoacutefico da consciecircncia) ou minhas eventuais emoccedilotildees
(como a ansiedade de concluir o texto a tempo) tudo isso satildeo fenocircmenos
mentais que podem ou natildeo se tornar conscientes
Entra aqui em cena a distinccedilatildeo proposta por David Rosenthal entre
(a) consciecircncia de criatura (que seria um tema mais permeaacutevel agrave pesquisa
empiacuterica do funcionamento orgacircnico) e (b) consciecircncia de estado (que
seria um tema mais especiacutefico da investigaccedilatildeo filosoacutefica)2 Eacute interessante
notar que Rosenthal eacute um filoacutesofo que assume uma perspectiva anti-
cartesiana no sentido de recusar a ideia defendida pelo filoacutesofo francecircs
da consciecircncia como a essecircncia da mente3 Para ele natildeo haacute grande
dificuldade para se perceber que diversos estados mentais existem
desprovidos de consciecircncia por exemplo quando ldquosabemos sem que nos
seja dito o que outra pessoa estaacute pensando ou sentindo E algumas vezes
sabemos isso mesmo quando a pessoa na verdade natildeo estaacute ciente [aware]
pelo menos a princiacutepio de ter esses sentimentos e pensamentosrdquo
(ROSENTHAL 1986 p 329)
Uma visatildeo como essa segundo a qual os fenocircmenos mentais satildeo em
si mesmos inconscientes tem para Rosenthal a importante vantagem de
2 ldquoDois assuntos satildeo frequentemente confundidos nas discussotildees sobre a consciecircncia Uma questatildeo eacute o que eacute para um estado mental ser consciente Supondo que nem todos os estados mentais satildeo conscientes noacutes queremos saber como os estados conscientes se diferenciam daqueles que natildeo satildeo E ainda que todos os estados mentais fossem conscientes noacutes ainda perguntariacuteamos em que consiste a sua consciecircncia Denominamos essa a questatildeo da consciecircncia de estado Esse seraacute meu principal tema no texto que segue Mas noacutes natildeo descrevemos apenas estados mentais como sendo conscientes ou natildeo noacutes tambeacutem atribuiacutemos consciecircncia a criaturas Assim existe uma segunda questatildeo a questatildeo sobre o que eacute para uma pessoa ou outra criatura ser consciente ou seja como criaturas conscientes se diferenciam daquelas que natildeo satildeo conscientes Denominamos esta a questatildeo da consciecircncia de criaturardquo (ROSENTHAL 1997 p 729)
3 Descartes caracterizou o pensamento para ele a propriedade essencial do mental como ldquotudo quanto estaacute de tal modo em noacutes que somos imediatamente conscientes [consci]rdquo (DESCARTES 1979 p 169 [AT VII p 160 AT IX p 124]) E em conformidade a isso ele entendeu que ldquonenhum pensamento pode existir em noacutes do qual nos natildeo estejamos conscientes [fit conscia] no exato momento em que ele existe em noacutesrdquo (cf AT VII p 246 AT IX p 190) Os nuacutemeros romanos datildeo as referecircncias nos volumes em latim (volume VII) e em francecircs (volume IX) da ediccedilatildeo completa das obras de Descartes feita por Charles Adam e Paul Tannery (AT)
Taacuterik de Athayde Prata | 55
possibilitar uma explanaccedilatildeo informativa da consciecircncia como uma
propriedade de estados mentais pois se a consciecircncia jaacute caracteriza de
saiacuteda todos os fenocircmenos psiacutequicos como pensava Descartes ldquotoda
tentativa de explanar a consciecircncia formulando condiccedilotildees necessaacuterias e
suficientes para um estado mental ser consciente vatildeo fracassar
automaticamente Se a consciecircncia jaacute estaacute embutida na mentalidade toda
explanaccedilatildeo seraacute natildeo informativardquo (ROSENTHAL 1986 p 330) E eu
acrescentaria que essa perspectiva tem a vantagem adicional de ser
compatiacutevel com os incontaacuteveis e no meu entender muito convincentes
indiacutecios de que a maior parte de nossa vida mental ocorre
independentemente da consciecircncia (cf por exemplo SEARLE 1992 p
164 1997 p 236 2004 p 244-45)
Entretanto esse tipo de perspectiva sobre a consciecircncia que a
considera natildeo essencial para o psiacutequico natildeo foi aceita por importantes
filoacutesofos do seacuteculo passado entre os quais se encontra Jean-Paul Sartre
(1905-1980) um dos mais influentes intelectuais do seacuteculo XX que
produziu uma obra de enorme abrangecircncia se estendendo desde a
escritura em diversos gecircneros literaacuterios passando pela filosofia pelos
textos de cunho poliacutetico4 e que na juventude empreendeu
interessantiacutessimas reflexotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia e os
fundamentos da psicologia5 Em sua mais importante obra anterior a O
ser e o nada (1943) o livro O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da
imaginaccedilatildeo (1940) Sartre (1996 p 36) afirma sem reservas que ldquoa
existecircncia de um fenocircmeno psiacutequico e o sentido que ele tem para a
consciecircncia satildeo uma coisa soacuterdquo o que o leva admitir em nota de rodapeacute que
ldquoessas constataccedilotildees nos obrigam a rejeitar inteiramente a existecircncia de um
inconscienterdquo (SARTRE 1996 p 36 nota no 13)
4 Como afirma Annie Cohen-Solal (2007 p 16) a mais conhecida bioacutegrafa de Sartre ele ldquoabordou todos os domiacutenios da escrita (romance novela filosofia teatro cinema biografia autobiografia ensaio criacutetico reportagem jornaliacutestica canccedilatildeo entre outros)rdquo
5 Em uma entrevista concedida jaacute no final de sua vida Sartre declarou que no iniacutecio de sua carreira filosoacutefica ldquoo que eu chamava de lsquofilosofiarsquo era pura e simplesmente psicologiardquo (COHEN-SOLAL 1986 p 90)
56 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Apesar das diversas passagens de sua obra que atacam a ideia de
inconsciente6 existem inteacuterpretes que questionam se Sartre de fato estava
comprometido com a rejeiccedilatildeo a essa ideia (cf GENNARO 2002 p 299-301)
Mas o fato eacute que ela natildeo eacute (pelo menos agrave primeira vista) compatiacutevel com sua
perspectiva pois de acordo com ele quando a consciecircncia (de algo) e uma
autoconsciecircncia impliacutecita natildeo satildeo concebidas como unificadas somos
confrontados com graves problemas No meu entendimento Sartre parte da
constataccedilatildeo de que introduzir uma dualidade na consciecircncia a torna
incompreensiacutevel pois leva a teorias insustentaacuteveis Em termos sumaacuterios a
dualidade nos deixa diante de um dilema
Ou paramos em um termo qualquer da seacuterie conhecido ndash cognoscente
conhecido ndash cognoscente conhecido pelo cognoscente etc e entatildeo a totalidade
do fenocircmeno cai no desconhecido quer dizer esbarramos sempre com uma
reflexatildeo natildeo consciente de si como derradeiro termo ndash ou entatildeo afirmamos a
necessidade de regressatildeo ao infinito (idea ideae ideae etc) o que eacute absurdo
(SARTRE 1943 p 18-19 SARTRE 1997 p 23)
Se haacute uma dualidade entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a
autoconsciecircncia entatildeo ou (I) esta autoconsciecircncia eacute inconsciente ou (II) a
autoconsciecircncia exige (para se tornar consciente) uma outra consciecircncia a
respeito dela que por sua vez exige outra e assim ad infinitum dois
resultados que parecem insatisfatoacuterios ndash pois uma consciecircncia
inconsciente parece uma contradiccedilatildeo em termos7 e um regresso ao
6 Jaacute em A transcendecircncia do ego (1937) seu primeiro texto escrito sob a influecircncia husserliana ele escreveu ldquoSem mesmo se dar conta os teoacutericos do amor-proacuteprio supotildeem que o refletido eacute anterior original e dissimulado no inconsciente Eacute penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipoacutetese Mesmo se o inconsciente existisse o que nos faria acreditar ser ele o depositaacuterio de espontaneidades da forma refletida A definiccedilatildeo do refletido natildeo eacute a do que eacute colocado por uma consciecircnciardquo (SARTRE 1966 p 40-41 SARTRE 2010 p 198-99)
7 Eacute interessante notar que Franz Brentano um dos mais importantes pensadores da virada do seacuteculo XX (JACQUETTE 2004 p 1) autor que sem duacutevida atraveacutes de sua influecircncia sobre Husserl estaacute na raiz de muitas das concepccedilotildees de Sartre natildeo concordava com a visatildeo de que o inconsciente eacute uma noccedilatildeo contraditoacuteria apesar de Brentano ter sido um ferrenho opositor dessa noccedilatildeo Nas palavras de Brentano ldquoAlgumas pessoas iriam apenas balanccedilar a cabeccedila diante dessa questatildeo Supor uma consciecircncia inconsciente parece a elas absurdo Mesmo eminentes psicoacutelogos como por exemplo Locke e John Stuart Mill consideravam essa ideia uma contradiccedilatildeo direta Mas algueacutem que presta atenccedilatildeo agraves determinaccedilotildees feitas a seguir dificilmente iraacute julgar assim Esse algueacutem reconheceraacute que quem levanta a questatildeo sobre a existecircncia de uma consciecircncia inconsciente natildeo estaacute sendo ridiacuteculo como algueacutem que perguntasse se existe um vermelho natildeo vermelho Uma consciecircncia inconsciente eacute tatildeo pouco uma contraditio in adjecto quanto uma visatildeo natildeo vistardquo (BRENTANO 1924 p 143-4 [102-3])
Taacuterik de Athayde Prata | 57
infinito significa que a consciecircncia permanece natildeo explicada (aleacutem do fato
de que a proacutepria ideia de que haacute um regresso infinito parece insustentaacutevel
ndash de modo que a concepccedilatildeo comprometida com um regresso se mostra
absurda) Eacute interessante notar que essas dificuldades ndash (I) e (II) ndash satildeo
aplicaacuteveis ao tipo de teoria proposta por Rosenthal Ao conceber a
consciecircncia de um estado mental como decorrente do monitoramento
deste estado por um outro estado mental a respeito do primeiro
Rosenthal se expotildee ao perigo do regresso ao infinito e eacute para evitar esse
regresso que ele concebe o estado mental de ordem superior como
inconsciente o que evidentemente o leva a recair no primeiro termo do
dilema apontado por Sartre o pensamento que gera a consciecircncia do
estado mental de niacutevel inferior eacute ele proacuteprio inconsciente8
Devido a essas dificuldades Sartre conclui que ldquoConsciecircncia de si natildeo
eacute dualidade Se quisermos evitar regressatildeo ao infinito tem de ser relaccedilatildeo
imediata e natildeo cognitiva de si a sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24)
Exatamente por isso ele opta por colocar o ldquoderdquo da expressatildeo ldquoconsciecircncia
de sirdquo entre parecircnteses de modo a indicar que essa partiacutecula eacute empregada
por imposiccedilatildeo da gramaacutetica (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25) e natildeo
deve ser entendida como sugerindo uma dualidade entre a lsquoconsciecircnciarsquo e
o lsquosirsquo E a ideia da consciecircncia como uma relaccedilatildeo imediata a si mesma
constitui aquele que Kathleen Wider (1997 p 1) considera ser a alegaccedilatildeo
fundamental de Sartre sobre a consciecircncia a saber a alegaccedilatildeo de que
ldquotoda consciecircncia eacute por sua proacutepria natureza autoconsciecircnciardquo No ensaio
sobre A transcendecircncia do ego Sartre defendera que ldquoo tipo de existecircncia
da consciecircncia implica ser consciecircncia de si E ela toma consciecircncia de si
na exata medida em que eacute consciecircncia de um objeto transcendenterdquo
(SARTRE 1966 p 23-4 2010 p 188) Tomando o exemplo de uma
percepccedilatildeo ndash ou seja nos termos dele uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo ndash
Sartre afirma em O ser e o nada que a consciecircncia de si enquanto uma
8 A respeito da teoria de Rosenthal sobre a consciecircncia de estados mentais Uriah Kriegel afirma ldquoO estado de segunda ordem S2 em virtude do qual [o estado de primeira ordem] S1 eacute consciente eacute ele mesmo um estado inconsciente Assim o fato de que S2 representa o eu natildeo implica que por ter S2 o eu eacute consciente de si mesmo pois S2 natildeo eacute uma representaccedilatildeo consciente do eurdquo (KRIEGEL 2002 p 522-23) Cf tambeacutem Kriegel (2005 p 28)
58 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoconsciecircncia espontacircneardquo da percepccedilatildeo ldquoeacute constitutiva de minha
consciecircncia perceptivardquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24) e tomando o
exemplo da accedilatildeo de contar alguns cigarros afirma que ldquoa consciecircncia natildeo
teacutetica de contar eacute condiccedilatildeo mesma de minha atividade aditivardquo (SARTRE
1943 p 19 1997 p 24)
Mas se a assunccedilatildeo de uma dualidade na consciecircncia nos leva a um
dilema entre duas posiccedilotildees insustentaacuteveis a concepccedilatildeo por assim dizer
unitaacuteria da consciecircncia que a entende como uma unidade indissoluacutevel
entre uma (i) consciecircncia de algo e uma (ii) autoconsciecircncia natildeo estaacute livre
de suas proacuteprias dificuldades A concepccedilatildeo sartriana que vecirc essa
autoconsciecircncia como constitutiva ou como condiccedilatildeo de toda consciecircncia
intencional de objetos parece tornar a consciecircncia um fenocircmeno
misterioso inexplicaacutevel pois natildeo conseguimos formar uma noccedilatildeo clara de
qual seja a sua estrutura jaacute que ldquoa consciecircncia de si que caracteriza toda
consciecircncia de algo parece estar de algum modo misturada a esta
consciecircncia de algo de maneira que natildeo eacute nada faacutecil discerni-lasrdquo (PRATA
2017 p 460) e se essas noccedilotildees natildeo podem ser discernidas natildeo eacute possiacutevel
articular uma explicaccedilatildeo do que seja propriamente a consciecircncia
Consciecircncia Posicional e Consciecircncia Natildeo Posicional
Antes de examinar a dificuldade de explicar a consciecircncia tal como
concebida por Sartre eacute importante compreender uma distinccedilatildeo
importante proposta por ele a distinccedilatildeo entre (i) a consciecircncia posicional
ou teacutetica (cf SARTRE 1966 p 28 2010 p 191) por um lado e (ii) a
consciecircncia natildeo posicional (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou natildeo
teacutetica (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) por outro lado A consciecircncia
posicional eacute aquela que potildee um objeto de determinado modo Por exemplo
uma consciecircncia perceptiva potildee seu objeto como existente jaacute que a
percepccedilatildeo se articula enquanto apreensatildeo de algo que existe previamente
a ela ao passo que uma consciecircncia em imagem potildee seu objeto
(imaginado) de diferentes formas (p ex como ausente ou como
Taacuterik de Athayde Prata | 59
inexistente ndash cf SARTRE 1996 p 26) que pressupotildeem que a consciecircncia
eacute a criadora dessa imagem mental E eacute importante notar que o que cada
consciecircncia potildee eacute um objeto que portanto eacute concebido implicitamente
como algo que transcende a consciecircncia existindo para aleacutem de toda
consciecircncia que se possa ter dele9 Jaacute a consciecircncia natildeo posicional natildeo potildee
um objeto pois ela eacute um tipo especial de relaccedilatildeo que natildeo se volta para algo
contra-posto (ob-jectum) agrave consciecircncia mas eacute uma relaccedilatildeo desta
consciecircncia consigo mesma (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)
A respeito dessa distinccedilatildeo a importante inteacuterprete Kathleen Wider
entende que as duas formas de consciecircncia a posicional e a natildeo posicional
podem ser elucidadas em termos do foco da atenccedilatildeo do sujeito consciente
em cada caso enquanto a consciecircncia posicional implica em uma atenccedilatildeo
focada em um objeto (distinto da proacutepria consciecircncia) a consciecircncia natildeo
posicional apreende aquilo em que o sujeito natildeo concentra a sua atenccedilatildeo
Nas palavras de Wider (1997 p 41)
Por um lado qualquer coisa que cai no campo de ciecircncia [awareness] de
algueacutem e para a qual sua atenccedilatildeo estaacute direcionada eacute um objeto que eacute posto
pela consciecircncia Por isso Sartre chama a consciecircncia desse objeto de
consciecircncia teacutetica ou posicional Por outro lado algueacutem tem apenas uma
consciecircncia natildeo teacutetica ou natildeo posicional de qualquer coisa que cai em seu
campo de ciecircncia mas ao qual ele natildeo estaacute presentemente prestando atenccedilatildeo
Se percebo um objeto ou imagino uma paisagem posiciono essa
referecircncia transcendente agrave minha consciecircncia de determinada maneira ndash
como existente no caso da percepccedilatildeo ou como p ex existente em outro
lugar no caso da imaginaccedilatildeo ndash e minha atenccedilatildeo eacute absorvida por essa
referecircncia transcendente Mas ao mesmo tempo em que minha atenccedilatildeo se
absorve na coisa ndash percebida ou imaginada ndash eu apreendo implicitamente
minha proacutepria consciecircncia perceptiva ou imaginativa pois se percebo
apreendo implicitamente ndash na periferia da atenccedilatildeo ndash minha percepccedilatildeo
9 De acordo com Sartre haacute ldquoalgo de excessivo no mundo das lsquocoisasrsquo a cada instante haacute sempre infinitamente mais do queo que podemos ver para esgotar a riqueza de minha percepccedilatildeo atual seria necessaacuterio um tempo infinitordquo (SARTRE 1996 p 22)
60 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
como passiva ao passo que se imagino apreendo implicitamente minha
imaginaccedilatildeo como criadora (cf PRATA 2016 p 81-82) Essa apreensatildeo
impliacutecita pode ser transformada em uma consciecircncia posicional de
consciecircncia ndash uma consciecircncia posicional da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
Mas nesse caso estamos diante de uma reflexatildeo ou seja uma consciecircncia
reflexiva (cf abaixo)
A Opacidade da Consciecircncia na Teoria de Sartre
A avaliaccedilatildeo de que a teoria de Sartre natildeo eacute capaz de fornecer uma
explicaccedilatildeo da consciecircncia parece ser confirmada pela maneira como ele
em diversas passagens se refere ao fenocircmeno da consciecircncia atraveacutes de
metaacuteforas o que de fato sugere que ele natildeo dispunha de conceitos claros
sobre a estrutura da consciecircncia Penso que a necessidade do uso de
metaacuteforas surge de uma estrutura conceitual obscura como encontramos
em determinada passagem de O ser e o nada na qual apoacutes afirmar a
autoconsciecircncia ldquonatildeo teacuteticardquo10 como constitutiva de todo ato mental (como
uma operaccedilatildeo de contar) nega que isso implique um ciacuterculo vicioso mas
se exprime em termos relativamente nebulosos
Contudo natildeo haacute esse ciacuterculo vicioso ou se preferirmos eacute da proacutepria natureza
da consciecircncia existir ldquoem ciacuterculordquo O que se pode exprimir assim toda existecircncia
consciente existe como consciecircncia de existir Compreendemos agora porque a
consciecircncia primeira de consciecircncia natildeo eacute posicional eacute uma soacute com [un avec] a
consciecircncia da qual eacute consciecircncia (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)
A autoconsciecircncia eacute una com a consciecircncia de algo a respeito da qual
ela eacute e justamente essa unidade parece tornar o fenocircmeno opaco a uma
explicaccedilatildeo conceitual E logo em seguida ele se exprime em termos que
tornam essa opacidade ainda mais flagrante Nas palavras de Sartre
10 Conforme discutido acima uma consciecircncia ldquonatildeo-teacuteticardquo (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) equivale a uma consciecircncia ldquonatildeo-posicionalrdquo (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou seja trata-se de uma consciecircncia que natildeo potildee seu objeto como algo distinto de si mesma (cf SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)
Taacuterik de Athayde Prata | 61
Natildeo haacute antes uma consciecircncia que recebesse depois [grifado no original] a
afecccedilatildeo ldquoprazerrdquo tal como se colore a aacutegua ndash do mesmo modo como natildeo haacute
antes um prazer (inconsciente ou psicoloacutegico) que recebesse depois a
qualidade de consciente como um feixe de luz Haacute um ser indivisiacutevel
indissoluacutevel [grifo meu] ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas
qualidades como seres menores mas um ser que eacute existecircncia de ponta a ponta
(SARTRE 1943 p 21 1997 p 26)
Aqui ele rejeita a ideia de que a relaccedilatildeo entre a (i) consciecircncia de algo
e a (ii) autoconsciecircncia seja comparaacutevel agrave relaccedilatildeo entre um sujeito e seu
predicado fazendo dela um ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo cuja
compreensatildeo se torna muito difiacutecil Desse modo natildeo parece restar
alternativa para Sartre aleacutem de recorrer a metaacuteforas para exprimir esse
modo de existecircncia peculiar da consciecircncia como quando ele afirma que a
autoconsciecircncia
Natildeo deve ser considerada uma nova consciecircncia mas o uacutenico modo de
existecircncia possiacutevel para uma consciecircncia de alguma coisa Assim como um
objeto extenso estaacute obrigado a existir segundo as trecircs dimensotildees tambeacutem uma
intenccedilatildeo um prazer uma dor natildeo poderiam existir exceto como consciecircncia
imediata de si mesmos (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25 grifado no original)
Neste trecho o modo de existecircncia da consciecircncia (enquanto
essencialmente marcada por uma autoconsciecircncia) eacute simplesmente
comparado a um fato bruto a saber o de que objetos espaciais
necessariamente existem nas trecircs dimensotildees E jaacute anos antes no ensaio
sobre A transcendecircncia do ego ele se expressara em termos semelhantes
ao dizer que o fato de a consciecircncia irrefletida ser consciecircncia de ser
consciecircncia de um objeto eacute ldquoa lei de sua existecircnciardquo (SARTRE 1966 p 24
2010 p 188-89 grifo meu)
Vejamos agora de modo mais detalhado a maneira como Sartre
concebe a consciecircncia atraveacutes de uma segunda distinccedilatildeo fundamental a
distinccedilatildeo entre (arsquo) consciecircncia irrefletida tida por ele como a forma
fundamental e (brsquo) consciecircncia reflexiva tida por ele como derivada
62 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Consciecircncia Irrefletida e Consciecircncia Reflexiva
Para articular adequadamente a relaccedilatildeo entre a consciecircncia e o eu no
esforccedilo de negar a noccedilatildeo husserliana de um eu transcendental Sartre
desenvolveu uma distinccedilatildeo entre (arsquo) a consciecircncia irrefletida (irreacutefleacutechie)
a forma mais fundamental originaacuteria e (brsquo) a consciecircncia reflexiva
(reacuteflexive) derivada da primeira na qual o fenocircmeno do ldquoeurdquo teria sua
origem (cf SARTRE 1966 p 37 2010 p 196) Na consciecircncia reflexiva
temos duas manifestaccedilotildees de consciecircncia11 a consciecircncia reflexionante
(reacutefleacutechissante) e a consciecircncia refletida (reacutefleacutechie) onde uma se debruccedila
sobre a outra colocando esta uacuteltima como seu objeto Entretanto essa
forma de consciecircncia (cindida entre duas manifestaccedilotildees) natildeo poderia ser
a forma mais fundamental pois a consciecircncia reflexionante que faz da
consciecircncia refletida um objeto jaacute eacute uma consciecircncia (mesmo quando essa
consciecircncia reflexionante natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo ulterior o que eacute
sempre possiacutevel ndash cf SARTRE 1966 p 29 2010 p 191) Portanto deve
haver algo nela (assim como tambeacutem nas manifestaccedilotildees de consciecircncia
voltadas para objetos exteriores) que jaacute a torne consciecircncia
Isso leva Sartre a articular sua concepccedilatildeo a respeito da consciecircncia
irrefletida a consciecircncia que natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo que se investe
completamente no visar um objeto para aleacutem dela proacutepria e eacute nesse
contexto que surge a tese basilar da teoria de Sartre a respeito da
consciecircncia (cf WIDER 1997 p 1) que podemos designar como a tese da
autoreferencialidade da consciecircncia irrefletida que pode ser formulada
nos seguintes termos ldquotoda consciecircncia posicional do objeto eacute ao mesmo
tempo consciecircncia natildeo posicional de sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p
24)12 Eacute exatamente por isso que a consciecircncia irrefletida eacute por si mesma
consciecircncia independentemente da reflexatildeo pois a consciecircncia irrefletida
11 Temos aqui um uso de ldquoconsciecircnciardquo que se refere a cada episoacutedio particular de vivecircncia consciente (cf SARTRE 1996 p 13) isto eacute nesse sentido cada episoacutedio de percepccedilatildeo cada episoacutedio de imagem mental cada episoacutedio de emoccedilatildeo eacute uma consciecircncia Esse uso eacute diferente de um outro aceito por sartre um uso mais globalizante no qual ldquoconsciecircnciardquo se refere agrave ldquomocircnada e o conjunto de suas estruturas psiacutequicasrdquo (SARTRE 1996 p 13)
12 Sartre caracteriza a noccedilatildeo de ldquoposicionalrdquo nos seguintes termos ldquoToda consciecircncia eacute posicional na medida em que se transcende para alcanccedilar um objeto e ela esgota-se nessa posiccedilatildeo [position] mesmardquo (SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)
Taacuterik de Athayde Prata | 63
(na medida em que eacute intencional) eacute uma relaccedilatildeo com um objeto
transcendente a ela que eacute simultaneamente uma relaccedilatildeo a si mesma
Para que se possa construir uma compreensatildeo teoacuterica adequada dessa
autoconsciecircncia preacute-reflexiva tal como concebida por Sartre eacute necessaacuterio no
meu modo de entender um modelo no qual os elementos constituintes dessa
autoconsciecircncia possam ser conceitualmente discernidos ao mesmo tempo
em que a sua unidade por assim dizer orgacircnica se mostre de maneira
inteligiacutevel Seguindo uma indicaccedilatildeo do professor Andreacute Leclerc13 me
proponho a investigar o modelo integrativo da consciecircncia articulado por
Uriah Kriegel para verificar se ele pode servir como um modelo adequado
para se compreender a teoria sartriana da consciecircncia (de) si
O Modelo Integrativo de Kriegel
Kriegel articula o seu modelo integrativo na tentativa de naturalizar
aquilo que ele denomina de ldquocaraacuteter subjetivordquo da experiecircncia consciente
visto por ele como um aspecto constituinte daquilo que ele chama de
ldquocaraacuteter fenomenalrdquo dessa experiecircncia Esse caraacuteter fenomenal pensado por
Kriegel corresponde a aquilo que Thomas Nagel (1974 p 436 2005 p 247)
chamou de subjetividade a saber lsquoo modo como eacute vivenciar um estado
mental x para a criatura que o vivenciarsquo Kriegel propotildee analisar esse caraacuteter
fenomenal em dois aspectos constituintes (a) o modo como eacute vivenciar o
estado mental x ndash que ele denomina caraacuteter qualitativo ndash e (b) o fato desse
modo se doar ao sujeito que vivencia esse estado mental ndash que Kriegel
denomina o caraacuteter subjetivo desse estado Na visatildeo de Kriegel (2005 p 24)
ldquoo caraacuteter qualitativo de uma experiecircncia consciente determina qual
experiecircncia consciente ela eacute mas eacute o caraacuteter subjetivo da experiecircncia que
determina se ela eacute de algum modo [at all] uma experiecircncia conscienterdquo
E eacute importante perceber que esse caraacuteter subjetivo se encontra em
uma relaccedilatildeo essencial com o conceito de ciecircncia [awareness] pois na exata
13 Aproveito para agradecer por essa observaccedilatildeo que o professor fez no debate de uma apresentaccedilatildeo que fiz sobre a teoria de Sartre no IX Encontro Interinstitucional de Filosofia em 2015 no Recife
64 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
medida em que uma experiecircncia se doa ndash ou se manifesta ndash ao sujeito
consciente este sujeito tem que estar ciente [aware] dessa experiecircncia (cf
KRIEGEL 2005 p 25)14 Mas Kriegel enfatiza que o modo como o sujeito
estaacute ciente de suas proacuteprias experiecircncias eacute bastante peculiar pois essa
ciecircncia normalmente natildeo estaacute focada na proacutepria experiecircncia mas sim
nos objetos ou estados de coisas extra-psiacutequicos que satildeo o tema dessa
experiecircncia Sendo assim ele se vecirc levado a introduzir uma distinccedilatildeo entre
(I) estar ciente de algo de modo focado e (II) estar ciente disso de modo
perifeacuterico15 A ideia baacutesica eacute do mesmo modo que em uma percepccedilatildeo
visual estamos cientes de maneira focada do objeto que estaacute no centro do
campo visual e estamos cientes de maneira perifeacuterica dos objetos que se
afastam desse centro no que diz respeito agraves nossas proacuteprias experiecircncias
estamos normalmente16 cientes delas de modo perifeacuterico ao mesmo
tempo em que temos uma ciecircncia focada dos objetos extra-psiacutequicos
dessas experiecircncias Como esclarece Kriegel (2005 p 26)
Minha sugestatildeo eacute que nossa ciecircncia de nossas experiecircncias conscientes eacute
normalmente uma forma de tal ciecircncia perifeacuterica natildeo-perceptiva Experiecircncias
conscientes exibem caraacuteter subjetivo em virtude do fato de que sempre que
temos uma experiecircncia consciente noacutes estamos perifericamente cientes de tecirc-la
Ele entende que o problema do caraacuteter subjetivo ldquoeacute o problema de
compreender como um estado mental pode incluir em si uma ciecircncia de si
proacutepriordquo (KRIEGEL 2005 p 30) E para explicar isso ele propotildee um
modelo teoacuterico baseado na integraccedilatildeo de informaccedilotildees que por essa razatildeo
eu denomino um modelo ldquointegrativordquo Para Kriegel a inclusatildeo de uma
ciecircncia de si mesmo no interior do proacuteprio estado mental consciente pode
14 Em um texto bastante conhecido no debate sobre a consciecircncia David Woodruff Smith (1986 p 149) escreveu ldquoum estado mental eacute consciente se o sujeito desse estado estaacute ciente [aware] de sua ocorrecircnciardquo
15Natildeo eacute difiacutecil perceber que essa maneira como Kriegel procura esclarecer o caraacuteter impliacutecito da ciecircncia que temos de nossas experiecircncias coincide com a maneira como Kathleen Wider (1997 p 41) interpreta a distinccedilatildeo sartriana entre consciecircncia posicional e natildeo posicional discutida na seccedilatildeo 2 acima
16A exceccedilatildeo satildeo os casos de reflexatildeo ndash no dizer de Sartre (1966 p 27-28 2010 p 190-91) ndash ou introspecccedilatildeo ndash no dizer de Rosenthal (1986 p 336-37 1997 p 730) caso que satildeo menos comuns do que os de consciecircncia natildeo reflexiva (cf KRIEGEL 2002 p 518 2003 p 105)
Taacuterik de Athayde Prata | 65
ser explicada atraveacutes da presenccedila de um tipo peculiar de conteuacutedo no
estado consciente conteuacutedo que conecta (a) a ciecircncia de um objeto ndash ou
estado de coisas ndash externo agrave mente com (b) a ciecircncia do proacuteprio estado
mental que se direciona a aquele objeto ndash ou estado de coisas ndash tornando-
se entatildeo necessaacuterio explicar como esse conteuacutedo eacute produzido E eacute aiacute que
entra em cena o modelo integrativo Nas palavras de Kriegel (2005 p 46)
A abordagem que pretendo introduzir sugere que esse tipo de conteuacutedo
representacional pode ser produzido simplesmente atraveacutes da integraccedilatildeo da
informaccedilatildeo carregada por o que eram inicialmente estados mentais separados
Quando os conteuacutedos desses estados mentais separados satildeo apropriadamente
integrados surge um (uacutenico) estado mental que possui exatamente o tipo
correto de conteuacutedo representacional
Apoacutes essa sinteacutetica exposiccedilatildeo do modelo de Kriegel somos obrigados
por motivos de espaccedilo a passar diretamente a uma discussatildeo da teoria de
Sartre
Consideraccedilotildees Finais
Se a visatildeo cartesiana da consciecircncia como a essecircncia da mente sofreu
fortes contestaccedilotildees ao longo do seacuteculo XX vimos que a perspectiva
sartriana ndash influenciada por Descartes ndash da autoconsciecircncia (impliacutecita)
como constitutiva de todo estado intencional parece inviabilizar uma
compreensatildeo teoacuterica adequada da consciecircncia Sartre defende uma
unidade essencial entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a autoconsciecircncia
porque a separaccedilatildeo desses elementos levaria a um dilema entre (I) uma
autoconsciecircncia inconsciente e (II) um regresso ao infinito (cf SARTRE
1943 p 18-19 1997 p 23 cf KRIEGEL 2005 p 28) Entretanto essa
visatildeo unitaacuteria tambeacutem eacute problemaacutetica pois torna a consciecircncia algo
inexplicaacutevel deixando a Sartre apenas a opccedilatildeo de recorrer a metaacuteforas ndash
como a do ldquociacuterculordquo e a das ldquotrecircs dimensotildeesrdquo (cf SARTRE 1943 p 20
1997 p 25) ou ainda a da ldquolei de existecircnciardquo (cf SARTRE 1966 p 24
2010 p 188-89) ndash ou entatildeo recorrer a conceitos obscuros ndash como o de um
66 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo (cf SARTRE 1943 p 21 1997 p 26) ndash para
tentar exprimir o que a consciecircncia eacute
Em outras palavras natildeo resta duacutevida de que o terreno em que esse
debate sobre a consciecircncia eacute travado eacute extremamente movediccedilo pois a
exposiccedilatildeo feita acima mostrou que se a visatildeo da consciecircncia como
essencialmente conectada a uma autoconsciecircncia eacute obscura a visatildeo que
separa a consciecircncia de algo da autoconsciecircncia tambeacutem natildeo funciona
pois recai no dilema acima mencionado ndash entre (I) e (II) Eacute aqui que o
modelo de Kriegel se mostra promissor pois a ideia de uma efetiva
integraccedilatildeo de estados mentais que existiam originalmente separados por
um lado nos fornece a distinccedilatildeo entre conceitos ndash o conceito da (i) ciecircncia
[awareness] do objeto por um lado e o conceito da (ii) ciecircncia do proacuteprio
estado mental por outro lado ndash que possibilita a articulaccedilatildeo de uma
explanaccedilatildeo propriamente dita jaacute que a unidade proposta por Sartre
concebida de uma maneira natildeo predicativa17 como vimos parece
inviabilizar qualquer explanaccedilatildeo conceitual E por outro lado a ideia da
integraccedilatildeo real de estados mentais (originalmente distintos) nos fornece
uma unidade diferente daquela que encontramos nos escritos do filoacutesofo
francecircs pois aleacutem de evitar o regresso ao infinito (como faz a unidade
misteriosa de Sartre) ela permanece permeaacutevel a uma explanaccedilatildeo
conceitual tornando-se assim uma opccedilatildeo mais atraente no cenaacuterio das
elaboraccedilotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia
Referecircncias
ADAM Ch TANNERY P (Orgs) Ouvres de Descartes ndash Meditationes de prima
philosophia Paris Vrin 1996 (Vol VII)
_____ Ouvres de Descartes ndash Meacuteditations et priacutencipes (traduction franccedilaise) Paris Vrin
1996 (Vol IX)
17 ldquoHaacute um ser indivisiacutevel indissoluacutevel ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas qualidades como seres menoresrdquo (SARTRE 1943 p 21 1997 p 26 grifos meus) Temos aqui uma terminologia ontoloacutegica que pressupotildee o discurso sujeito-predicado (cf IMAGUIRE 2007 p 274)
Taacuterik de Athayde Prata | 67
BRENTANO F Psychologie vom empirischen Standpunkt 2a ediccedilatildeo Leipzig Felix
Meiner 1924
_____ Psychology from an empirical standpoint London Routledge amp Kegan Paul 1995
CHALMERS D Facing Up To The Problem of Consciousness Journal of Consciousness
Studies vol 2 no 3 p 200-219 1995
COHEN-SOLAL A Sartre ndash 1905-1980 Porto Alegre Satildeo Paulo LPM Editores 1986
_____ Sartre Porto Alegre LampPM 2007
DESCARTES R Discurso do meacutetodo Meditaccedilotildees Objeccedilotildees e Respostas As Paixotildees
da Alma Cartas 2ordf ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1979
GENNARO R J Jean-Paul Sartre and the HOT Theory of Consciousness Canadian
Journal of Philosophy vol 32 no 3 p 293-330 setember 2002
IMAGUIRE G A substacircncia e suas alternativas feixes e tropos In Imaguire G Almeida
C L S Oliveira M A (Orgs) Metafiacutesica contemporacircnea Petroacutepolis Vozes p
271-289 2007
JACQUETTE D Introduction Brentanorsquos Philosophy In Jacquette D (Org) The
Cambridge companion to Brentano Cambridge Cambridge University Press p
1-19 2004
KRIEGEL U Consciousness permanent self-Awareness and higher order monitoring
Dialogue 41 p 517-40 2002
_____ Consciousness as intransitive self-consciousness two views and an argument
Canadian Journal of Philosophy vol 33 no 1 p 103-32 2003
_____ Naturalizing subjective character Philosophy and Phenomenological Research
vol LXXXI no 1 p 23-57 2005
NAGEL T What is it like to be a bat The Philosophical Review vol 83 no 4 p 435-50 1974
_____ Como eacute ser um morcego Cadernos de Histoacuteria e de Filosofia da Ciecircncia seacuterie
3 vol 15 no 1 p 245-62 2005
68 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
PRATA T A Consciecircncia e auto-relaccedilatildeo na primeira filosofia de Sartre em exame a partir
de um debate contemporacircneo a respeito da consciecircncia Aacutegora Filosoacutefica ano 16 n
2 p 76-92 2016
_____ A concepccedilatildeo sartriana da consciecircncia na perspectiva da filosofia analiacutetica da mente In
Oliveira Eacute A M Costa M R N Benvinda N M (Orgs) Liberdade loacutegica e accedilatildeo
homenagem ao Prof Dr Juan Adolfo Bonaccini Recife Editora UFPE p 455-68 2017
ROSENTHAL D Two concepts of consciousness Philosophical Studies 49 p 329-359 1986
_____ A theory of consciousness In Block N Flanagan O Guumlzeldere G (Orgs) The
nature of consciousness philosophical debates Cambridge (Massachusetts) MIT
Press p 729-753 1997
Sartre J-P Lrsquoecirctre et le neaacutent essai drsquoontologie pheacutenomeacutenologique Paris Gallimard 1943
_____ La transcendece de lrsquoego ndash esquisse drsquoune description pheacutenomeacutenologique Paris
Vrin 1966
_____ O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da imaginaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica
1996
_____ O ser e o nada ensaio de ontologia fenomenoloacutegica Petroacutepolis Vozes 1997
_____ A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica In Cadernos
Espinosanos XXII p 183-228 2010
SEARLE J R The rediscovery of the mind Cambridge Mass London MIT Press 1992
_____ A redescoberta da mente Satildeo Paulo Martins Fontes 1997
_____ Mind a brief introduction Oxford Oxford University Press 2004
SMITH D W The structure of (self-)consciousness Topoi n 5 p 149-56 1986
WIDER K The bodily nature of consciousness Sartre and contemporary philosophy of
mind Ithaca Cornell University Press 1997
4
A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico
A Criacutetica de John Searle agraves Principais Correntes
da Filosofia da Mente
Maxwell Morais de Lima Filho 1
Parece muito doce aquela cana
Descasco-a provo-a chupo-ahellip ilusatildeo treda
Augusto dos Anjos
Para Searle (2006 p 7-9) nem eacute verdade que o problema mente-
corpo seja insoluacutevel nem que seja necessaacuterio um projeto de naturalizaccedilatildeo
para atacaacute-lo pois basta reconhecermos que os fenocircmenos mentais satildeo
caracteriacutesticas de niacutevel superior causadas e realizadas no sistema nervoso
para resolvecirc-lo2
O famoso problema mente-corpo fonte de tanta controveacutersia ao longo dos
dois uacuteltimos milecircnios tem uma soluccedilatildeo simples [] Aqui estaacute ela os
fenocircmenos mentais satildeo causados por processos neurofisioloacutegicos no ceacuterebro
e satildeo eles proacuteprios caracteriacutesticas do ceacuterebro
[]
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) e Professor do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
2 Em Intencionalidade Searle (1995 p 21-2) critica tanto os dualistas quanto os fisicalistas por tentarem resolver um problema que sequer existe ldquoOs dualistas que percebem corretamente o papel causal do mental consideram que precisamente por esta razatildeo devem postular uma categoria ontoloacutegica separada Muitos fisicalistas que percebem corretamente que tudo o que temos no cracircnio eacute um ceacuterebro acham que por esta razatildeo devem negar a eficaacutecia causal dos aspectos mentais do ceacuterebro ou mesmo a existecircncia desses aspectos mentais irredutiacuteveis Acredito que ambas as visotildees estejam equivocadas Ambas tentam resolver o problema mente-corpo quando a abordagem correta eacute perceber que tal problema natildeo existe O lsquoproblema mente-corporsquo natildeo eacute um problema mais real que o do lsquoestocircmago-digestatildeorsquordquo
70 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo eacute
espantosamente difiacutecil talvez completamente insoluacutevel Os materialistas
concordam que se a intencionalidade e a consciecircncia realmente existem e satildeo
irredutiacuteveis a fenocircmenos fiacutesicos entatildeo de fato haveria um difiacutecil problema
mente-corpo mas eles pretendem ldquonaturalizarrdquo a intencionalidade e talvez
tambeacutem a consciecircncia Por ldquonaturalizaccedilatildeordquo de fenocircmenos mentais eles
entendem a sua reduccedilatildeo a fenocircmenos fiacutesicos
Perpassando as incontaacuteveis divergecircncias teoacutericas entre dualistas e
fisicalistas se encontra um liame terminoloacutegico herdado de Descartes que
contrapotildee o fiacutesico ao mental essa distinccedilatildeo substancial do mundo por sua
vez teria sido uacutetil para superar o aparente conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia
no seacuteculo XVII Sendo assim os assuntos concernentes agrave alma e agrave moral
humanas seriam tratados exclusivamente pela Religiatildeo enquanto os
cientistas se debruccedilariam sobre os mais diversos fenocircmenos naturais ndash
fiacutesicos quiacutemicos bioloacutegicos etc Em realidade natildeo houve uma completa
superaccedilatildeo do conflito como o proacuteprio Searle adverte (2010c) haja vista
que Galileu se retratou perante a Igreja e Descartes se mudou para a mais
tolerante Holanda Interessante notarmos que o filoacutesofo britacircnico Gilbert
Ryle tambeacutem menciona os pensadores italiano e francecircs na origem do erro
categorial presente na doutrina do fantasma na maacutequina Poreacutem no que
se refere ao conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia Ryle (1970 p 18-9) o
restringe agrave esfera pessoal de Descartes que aceitou o mecanicismo
galilaico somente na esfera corpoacuterea
[Q]uando Galileu mostrou que os seus meacutetodos de descoberta cientiacutefica eram
capazes de estabelecer uma teoria mecacircnica que abrangeria todos os
ocupantes do espaccedilo Descartes encontrou em si proacuteprio duas razotildees em
conflito Como homem de gecircnio cientiacutefico natildeo tinha outro remeacutedio senatildeo
sancionar as descobertas da mecacircnica ao passo que como homem religioso e
moral natildeo poderia aceitar como Hobbes aceitou os desencorajantes
corolaacuterios dessas descobertas ou seja que a natureza humana difere apenas
em grau de complexidade do mecanismo de um reloacutegio O mental natildeo poderia
ser uma variedade do mecacircnico
Maxwell Morais de Lima Filho | 71
Eacute justamente contra essa visatildeo que o autor drsquoA Redescoberta da
Mente defende que o passo que devemos dar antes mesmo de iniciar a
investigaccedilatildeo eacute abandonar o dualismo conceitual que estaacute presente nas
concepccedilotildees mais diacutespares do espectro da Filosofia da Mente o dualismo
de substacircncia o dualismo de propriedade o materialismo o monismo o
behaviorismo a teoria da identidade o funcionalismo e a inteligecircncia
artificial forte Se largarmos o dualismo conceitual dissolveremos o falso
dilema que nos faz acreditar que ou defendemos uma concepccedilatildeo dualista
ou uma fisicalista como ostenta Searle (2002a p 15) nesta passagem
Os filoacutesofos analiacuteticos juntamente com o restante da tradiccedilatildeo cartesiana
assumiram de modo caracteriacutestico que ldquomentalrdquo implica ldquonatildeo-materialrdquo ou
ldquoimaterialrdquo e que ldquomaterialrdquo ou ldquofiacutesicordquo implica ldquonatildeo mentalrdquo No entanto
quando se reflete sobre o modo como o ceacuterebro opera tem-se a impressatildeo de
que ambos os pressupostos satildeo obviamente falsos
Feitas essas ressalvas exporemos as criacuteticas que Searle tece agraves
principais correntes da Filosofia da Mente comeccedilando pelo dualismo de
substacircncia Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia rastreamos versotildees dessa
concepccedilatildeo sendo defendidas por pensadores desde a Greacutecia Antiga sendo
Platatildeo o mais insigne entre eles Tambeacutem registramos brevemente que o
dualismo de substacircncia se configurou como uma posiccedilatildeo-padratildeo tanto na
Patriacutestica como na Escolaacutestica e foi defendido por eruditos do porte de
Agostinho e de Tomaacutes de Aquino Em que pesem todos esses antecedentes
a versatildeo do dualismo de substacircncia que eacute levada em consideraccedilatildeo pela
maioria dos filoacutesofos da mente eacute aquela consumada na obra de Reneacute
Descartes Em resumo o filoacutesofo francecircs propunha uma cisatildeo entre o
domiacutenio fiacutesico res extensa (substacircncia material ou fiacutesica) e o domiacutenio
mental res cogitans3 (alma mente ou substacircncia mental) Para
fundamentar a dualidade ontoloacutegica o filoacutesofo francecircs parte do princiacutepio
de distinccedilatildeo para afianccedilar a possibilidade de concebermos claramente que
3 Cottingham (1999 p 26) nos adverte para natildeo nos desencaminharmos pelo significado religioso ou espiritual que foi imputado ao termo ldquoalmardquo tendo em conta que Descartes utiliza os vocaacutebulos ldquolrsquoacircme (ldquoalmardquo) e lrsquoesprit (ldquomenterdquo) mais ou menos indiferentemente simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente []rdquo
72 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
a discriminaccedilatildeo e a independecircncia entre corpo e alma decorrem do fato de
eles assim terem sido produzidos por Deus Mas afinal de contas em que
reside a diferenccedila fundamental entre esses dois domiacutenios ontoloacutegicos
Descartes (1996 p 326) responde a esse questionamento afirmando que
a caracteriacutestica crucial dos corpos eacute a extensatildeo e a da alma o pensamento
E embora [] eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente
conjugado todavia jaacute que de um lado tenho uma ideacuteia clara e distinta de mim
mesmo na medida em que sou apenas uma coisa pensante [res cogitans] e
inextensa e que de outro tenho uma ideacuteia distinta do corpo na medida em
que eacute apenas uma coisa extensa [res extensa] e que natildeo pensa eacute certo que este
eu isto eacute minha alma pela qual eu sou o que sou eacute inteira e verdadeiramente
distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele [independecircncia
entre alma e corpo]
Seguindo o raciociacutenio cartesiano ao examinar o meu corpo (ou outro
qualquer como uma mesa por exemplo) constatariacuteamos que ele tem uma
extensatildeo e a partir disso posso falar algo como ldquomeccedilo 174 mrdquo
Conquanto natildeo faria sentido algum aferirmos ao peacute da letra o
comprimento da minha crenccedila na democracia Logo haacute uma diferenciaccedilatildeo
ontoloacutegica entre o meu corpo (coisa fiacutesicasubstacircncia extensa) e a minha
mente (coisa natildeo fiacutesicasubstacircncia pensante) a coisa extensa eacute natildeo
pensante e a coisa pensante eacute natildeo extensa Decorre diretamente dessa
distinccedilatildeo a irredutibilidade e a independecircncia do mental em relaccedilatildeo ao
fiacutesico e entre outras coisas isso significa que natildeo haacute nenhum
impedimento para a persistecircncia de minha alma apoacutes a morte do meu
corpo Para Descartes (2004 p 227)
o corpo humano na medida em que difere dos outros corpos eacute constituiacutedo
por certa configuraccedilatildeo de membros e de outros acidentes desse modo ao
passo que a mente humana natildeo eacute constituiacuteda dessa maneira a partir de
acidentes nenhuns mas eacute pura substacircncia Pois embora todos os seus
acidentes se modifiquem ndash ela entende umas coisas quer outras sente outras
etc ndash nem por isso a proacutepria mente torna-se uma outra Ao passo que o corpo
humano torna-se outro em virtude apenas de que se modifique a figura de
qualquer uma de suas partes Disto se segue que tal corpo morre muito
Maxwell Morais de Lima Filho | 73
facilmente enquanto a mente ou a alma do homem (o que natildeo distingo) eacute
imortal por sua natureza
Jaacute em sua eacutepoca o filoacutesofo francecircs foi criticado por defender a
interaccedilatildeo entre esses dois tipos totalmente diferentes de substacircncia porque
restou inexplicado como algo fiacutesico causaria algo mental e inversamente
como o mental atuaria sobre o fiacutesico Na tentativa de resguardar seu
posicionamento interacionista ele recorreu agrave glacircndula pineal e aos
espiacuteritos animais resguardando agravequela a sede da alma e conferindo a estes
uacuteltimos a funccedilatildeo comunicativa entre as duas substacircncias Todavia
Descartes (1996 p 328-9) nos alerta para natildeo olvidarmos que o contraste
metafiacutesico entre espiacuterito e mateacuteria natildeo impede a sua iacutentima conjunccedilatildeo
como uma totalidade coerente
A natureza me ensina tambeacutem por esses sentimentos de dor fome sede etc
que natildeo somente estou alojado em meu corpo como um piloto em seu navio
mas que aleacutem disso lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo
confundido e misturado que componho com ele um uacutenico todo
Para Cottingham (1989) seria incorreto enquadrar a posiccedilatildeo de
Descartes como um dualismo pois existem atributos humanos que natildeo se
encaixariam nem como modos de extensatildeo nem como modos de
pensamento haja vista que seriam o resultado da uniatildeo de ambos Sendo
assim como os fenocircmenos psicofiacutesicos natildeo se identificariam nem aos
fenocircmenos fiacutesicos (res extensa) nem aos mentais (res cogitans)
estariacuteamos diante de um ldquotrialismo cartesianordquo Para justificar sua linha
de raciociacutenio Cottingham (1989 p 172) menciona uma carta que
Descartes enviou agrave rainha Elizabeth em 1643 na qual o filoacutesofo francecircs
reconhece a existecircncia de ldquotrecircs categorias ou noccedilotildees primitivasrdquo a forma
e o movimento se relacionam agrave extensatildeo a compreensatildeo e a vontade ao
pensamento e as sensaccedilotildees e paixotildees agrave uniatildeo entre o corpo e a alma
Independentemente de qual leitura exegeacutetica prevaleccedila ndash dualismo ou
trialismo ndash o ponto eacute que os expedientes da glacircndula pineal e dos espiacuteritos
animais utilizados por Descartes estatildeo longe de serem satisfatoacuterios Por um
74 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
lado eacute incoerente delimitar a alma na glacircndula pineal porque a res cogitans
eacute uma substacircncia natildeo extensa e portanto sem localizaccedilatildeo espacial por
outro ainda que se considere que os espiacuteritos animais sejam constituiacutedos de
uma substacircncia fiacutesica bastante delicada permanece aberta a questatildeo
original como os espiacuteritos animais que possuem massa e satildeo espacialmente
situados satildeo capazes de interatuar com uma substacircncia imaterial Natildeo
obstante as criacuteticas direcionadas ao dualismo de substacircncia ao longo dos
seacuteculos e o fato de ele ser minoritaacuterio no ambiente acadecircmico atual natildeo
devemos esquecer que essa concepccedilatildeo estaacute intimamente afinada tanto com
o senso comum quanto com o pensamento religioso pois a maioria das
Religiotildees ndash se natildeo todas ndash defende uma separaccedilatildeo entre a alma e o corpo
Para o autor drsquoA Redescoberta da Mente no entanto essa corrente seria
inconciliaacutevel com o arcabouccedilo conceitual proveniente das Ciecircncias da
Natureza segundo o qual as caracteriacutesticas de niacutevel superior se
fundamentam na microestrutura o que nos impede de tratarmos a
consciecircncia como se fosse uma substacircncia distinta ou uma entidade
adicional ao substrato fiacutesico Nesse sentido Searle (2010a p 4-5) assevera
que por ser causada e realizada neurofisiologicamente eacute que a consciecircncia
natildeo passa de uma caracteriacutestica de niacutevel superior do sistema nervoso
O cheiro da flor o som da sinfonia os pensamentos sobre os postulados da
geometria euclidiana ndash tudo eacute causado por processos bioloacutegicos de niacutevel
inferior no ceacuterebro e ateacute onde sabemos os elementos cruciais satildeo os
neurocircnios e as sinapses
[]
Assim eacute possiacutevel resumir da seguinte maneira as duas relaccedilotildees cruciais entre
consciecircncia e ceacuterebro os processos neurocircnicos de niacutevel inferior no ceacuterebro
causam a consciecircncia e a consciecircncia eacute apenas uma caracteriacutestica de niacutevel
superior de um sistema composto de elementos neurocircnicos de niacutevel inferior
Obviamente esse modo de pensar vai de encontro agrave tese central do
dualismo de substacircncia de que a distinccedilatildeo ontoloacutegica4 entre os dois
4 Por motivos distintos o eliminativista Rorty (1994 p 133) tambeacutem critica as categorias cartesianas ldquoEssas assim chamadas categorias ontoloacutegicas [de lsquomentalrsquo e de lsquofiacutesicorsquo] satildeo simplesmente os modos de embalar noccedilotildees deveras heterogecircneas de fontes histoacutericas deveras heterogecircneas que eram convenientes aos propoacutesitos do proacuteprio Descartes
Maxwell Morais de Lima Filho | 75
domiacutenios sustenta que o fiacutesico tem um modo de existecircncia diferente do
mental Portanto ao defender que a consciecircncia eacute uma caracteriacutestica
emergente do sistema nervoso o filoacutesofo estadunidense estaacute propondo
que o acircmbito fiacutesico eacute mais abrangente do que o dualista de substacircncia
poderia supor pois a mentalidade eacute fiacutesica Eacute somente a partir disso que
compreendemos a revisatildeo do adaacutegio cartesiano pretendida por Searle
(2006 p 26) quando afirma que ldquosou um ser pensante portanto sou um
ser fiacutesicordquo Mais do que isso como a consciecircncia emerge da organizaccedilatildeo e
da complexidade fiacutesicas Searle (2010d p 98) tambeacutem discorda do
posicionamento cartesiano de que os animais natildeo humanos satildeo
autocircmatos haja vista que o grau de semelhanccedila5 conosco ndash principalmente
com os primatas ndash leva-nos na direccedilatildeo contraacuteria
Do ponto de vista anatocircmico as semelhanccedilas satildeo grandes demais para que
essa especulaccedilatildeo [da ausecircncia de intencionalidade e de pensamento nos
animais natildeo humanos] pareccedila plausiacutevel ainda que remotamente do ponto de
vista fisioloacutegico como sabemos os mecanismos que produzem a
intencionalidade e o pensamento nos humanos tecircm estreitos paralelos com os
que se verificam em outros animais
Foi com o intuito de fugir das dificuldades que se impotildeem ao
dualismo de substacircncia que alguns filoacutesofos comprometidos com a
irredutibilidade dos fenocircmenos mentais propuseram o dualismo de
propriedade Essa abordagem postula a existecircncia de uma uacutenica
substacircncia a substacircncia fiacutesica (monismo fiacutesico) e de dois tipos de
propriedade mutuamente excludentes as fiacutesicas e as mentais Ao
observarmos uma pessoa qualquer diria o dualista de propriedade
Mas os seus propoacutesitos natildeo satildeo os nossos Os filoacutesofos natildeo devem pensar em seu conglomerado artificial como se fosse uma descoberta de algo preacute-existente ndash uma descoberta que por lsquointuitivarsquo ou lsquoconceitualrsquo ou lsquocategoacutericarsquo estabelece paracircmetros permanentes para a ciecircncia e a filosofiardquo
5 Changeux (1985 p 74) assegura que natildeo haacute diferenccedila significativa entre ldquoas peccedilas e parafusosrdquo que compotildeem por exemplo os ceacuterebros dos ratos e dos homens ldquoTanto ao niacutevel da anatomia macroscoacutepica do coacutertex como da sua arquitectura microscoacutepica natildeo ocorre qualquer brutal reorganizaccedilatildeo lsquoqualitativarsquo que leve do ceacuterebro lsquoanimalrsquo ao ceacuterebro lsquohumanorsquo Deu-se pelo contraacuterio uma evoluccedilatildeo quantitativa e contiacutenua do nuacutemero total de neuroacutenios da diversidade das aacutereas do nuacutemero de possibilidades conexionais entre neuroacutenios e por conseguinte da complexidade das redes de neuroacutenios que constituem a maacutequina cerebralrdquo
76 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
constatamos que o seu corpo ndash cabeccedila pernas braccedilos etc ndash tem um modo
de existecircncia fiacutesico poreacutem se analisarmos o ceacuterebro dela veremos que
aleacutem de possuir propriedades fiacutesicas ndash muitas delas semelhantes agraves que
satildeo encontradas na cabeccedila nas pernas e nos braccedilos ndash tal oacutergatildeo tambeacutem
possui propriedades mentais
Dessa maneira poderiacuteamos afirmar que esse enrugado oacutergatildeo
formado por bilhotildees de ceacutelulas e que pesa um quilo e meio possui
propriedades que se distinguem e natildeo se reduzem a nenhuma dessas
propriedades fiacutesicas Em geral contrapotildeem-se os aspectos subjetivo
qualitativo e privado das propriedades mentais agrave precisatildeo intersubjetiva
com que mensuramos os objetos e propriedades fiacutesicos o acesso direto agrave
dor estaacute restrito ao sujeito que a experiencia mas que ele pese oitenta
quilos eacute um dado objetivo quantitativo e publicamente acessiacutevel a
qualquer um que disponha de uma balanccedila Como explica Pereira (2013)
os filoacutesofos da mente se valem dos termos quale (singular) e qualia6
(plural) para se referir ao caraacuteter subjetivo e qualitativo dos fenocircmenos
mentais que experienciamos quando saboreamos o azedume do
tamarindo vemos a beleza de um flamboyant ouvimos uma bela canccedilatildeo
tocamos na pessoa querida ou cheiramos um bebecirc Abrantes (2005 p
226) nos alerta entretanto que os uacutenicos estados mentais
consensualmente considerados qualia satildeo as sensaccedilotildees Nesse sentido
muitos filoacutesofos negam ndash diferentemente de Searle ndash que haja qualquer
tipo de aspecto qualitativo envolvido na realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo
matemaacutetica como a adiccedilatildeo por exemplo
Para o dualista de propriedade as propriedades mentais satildeo especiais
em dois sentidos em primeiro lugar por conta de sua singularidade
bioloacutegica apesar de os objetos serem constituiacutedos basicamente pelos
6 Por salvaguardar que a consciecircncia eacute qualitativa Searle (2010b p 34) julga como absurda a tentativa daqueles que pretendem apartar o que para ele eacute inseparaacutevel ldquoNatildeo haacute dois problemas separados ndash o problema da consciecircncia e entatildeo um problema subsidiaacuterio o dos qualia O problema da consciecircncia eacute idecircntico ao dos qualia porque os estados conscientes satildeo acima de tudo estados qualitativosrdquo Em outras palavras Searle (2010c p 57-8) considera o termo qualia dispensaacutevel porque todos os fenocircmenos conscientes satildeo qualitativos ldquo[T]al como entendo esses termos qualia eacute somente uma designaccedilatildeo coletiva dos estados conscientes Na medida em que a lsquoconsciecircnciarsquo e os qualia satildeo coextensivos natildeo haacute razatildeo para introduzir um termo especiacuteficordquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 77
mesmos ldquoblocos de construccedilatildeordquo (aacutetomos) somente algumas estruturas
fiacutesicas possuem propriedades mentais a saber ceacuterebros complexos Em
segundo lugar a despeito de dependerem ontologicamente dos sistemas
fiacutesicos que as produzem as propriedades mentais satildeo irredutiacuteveis e
inexplicaacuteveis a partir dos conceitos provenientes das Ciecircncias Naturais
como a Fiacutesica a Quiacutemica e a Biologia
Para mostrar isso o filoacutesofo Frank Jackson (1986 2004) propocircs um
importante experimento de pensamento objetivando sustentar a
irredutibilidade dos qualia Imaginemos que Mary seja uma neurocientista
que sabe tudo acerca dos aspectos fiacutesicos e neurofisioloacutegicos das cores isto
eacute que ela domine o conhecimento sobre as leis oacutepticas das reflectacircncias
de luz bem como da anatomia e da fisiologia das ceacutelulas fotorreceptoras e
do coacutertex visual Natildeo obstante seu profundo conhecimento cientiacutefico ela
vive em um mundo preto e branco e portanto nunca experenciou
visualmente cores que natildeo estas duas Imaginemos ainda que um dia ela
saiu do seu laboratoacuterio alvinegro e percebeu pela primeira vez a cor
vermelha de uma maccedilatilde De acordo com essa linha de pensamento essa
experiecircncia visual traria um novo tipo de conhecimento a Mary a saber a
experiecircncia qualitativa de ver vermelho Ora argumenta Jackson se Mary
possuiacutea todo o conhecimento fiacutesico sobre as cores agrave sua disposiccedilatildeo e
mesmo assim aprende um novo fato cromaacutetico concluiacutemos que a sensaccedilatildeo
de ver vermelho (fato novo) aleacutem de natildeo ser fiacutesica eacute irredutiacutevel
ontologicamente a qualquer tipo de estado ou propriedade material Com
isso Jackson (2004 p 765) quer defender que as propriedades mentais
estatildeo acima e aleacutem da realidade fiacutesica e que se mantecircm intocadas pela
explicaccedilatildeo fiacutesico-bioloacutegica da visatildeo
A conclusatildeo [] eacute que os qualia satildeo deixados de fora da histoacuteria fisicalista E a
forccedila polecircmica do argumento do Conhecimento eacute que eacute tatildeo difiacutecil negar a sua
afirmaccedilatildeo central de que se pode ter toda a informaccedilatildeo fiacutesica sem ter todas as
informaccedilotildees que haacute para ter
78 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Searle (2000) natildeo admite essa diferenciaccedilatildeo e advoga que o mental eacute
fiacutesico por ser bioloacutegico ou seja os fenocircmenos mentais satildeo fenocircmenos
bioloacutegicos tais quais outros processos encontrados no mundo vivo como
a digestatildeo a fotossiacutentese e a mitose Portanto para sermos exitosos na
superaccedilatildeo do dualismo de propriedade devemos rejeitar a terminologia
que exclui a consciecircncia do mundo natural e a trata como se natildeo fosse
bioloacutegica Com o intuito de denunciar o quanto esse sistema de categorias
eacute problemaacutetico ele assevera que o dualista inevitavelmente estaraacute diante
de uma encruzilhada se pressupuser que as propriedades mentais estatildeo
acima e aleacutem das propriedades fiacutesicas Se levarmos em consideraccedilatildeo o
fechamento causal fiacutesico do Universo ndash todo evento fiacutesico possui como
causa suficiente outro evento fiacutesico ndash teriacuteamos como resultado que as
propriedades natildeo fiacutesicas satildeo causalmente ineficazes ou seja o mental
subsistiria como um domiacutenio epifenomecircnico
Nesse cenaacuterio as nossas sensaccedilotildees crenccedilas e desejos seriam
totalmente irrelevantes para o nosso comportamento assim como seria
ilusoacuteria a causaccedilatildeo mental O caminho alternativo eacute igualmente
problemaacutetico porque se comprometeria ndash na contramatildeo do que
pressupotildeem as melhores teorias cientiacuteficas ndash com a tese de que o Universo
natildeo eacute fisicamente fechado Essa conjuntura asseguraria a eficaacutecia causal
do mental em troca de acatarmos a sobreposiccedilatildeo causal de certos eventos
isto eacute comprometer-nos-iacuteamos com a sobredeterminaccedilatildeo causal por
afirmar que um evento fiacutesico F eacute duplamente produzido por um evento
fiacutesico F e por um evento mental M Segundo Searle7 (2014 p 107)
sabemos [] que quando eu levanto meu braccedilo haacute uma histoacuteria a ser contada
no niacutevel de disparos de neurocircnios neurotransmissores e contraccedilotildees
musculares que eacute suficiente para descrever [] o movimento do meu braccedilo
Entatildeo se supusermos que a consciecircncia tambeacutem funciona no movimento do
meu braccedilo entatildeo parece que temos duas histoacuterias causais distintas nenhuma
redutiacutevel agrave outra e para colocar muito brevemente a questatildeo meus
7 Em Lima Filho (2010b) analisamos em detalhes o problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico
Maxwell Morais de Lima Filho | 79
movimentos corporais tecircm muitas causas Noacutes temos [sobredeterminaccedilatildeo]
causal
O autor drsquoA Redescoberta da Mente eacute da opiniatildeo que apesar da
relutacircncia o dualista de propriedade acaba por cair na ldquovelhardquo dualidade
substancial como fica patente no uso de metaacuteforas que insinuam a
separaccedilatildeo entre os fenocircmenos conscientes a consciecircncia se origina do
ceacuterebro mas estaacute acima e aleacutem dos processos cerebrais por ser uma
propriedade emergente Esse modo de pensar nos conduz agrave imagem da
consciecircncia como uma cereja que por estar acima do bolo dele difere
Searle (2014 p 114) enxerga uma inconsistecircncia nessa posiccedilatildeo segundo a
qual a consciecircncia (cereja) eacute uma propriedade que estaacute acima e aleacutem do
ceacuterebro (bolo) afirmando que essa incongruecircncia acaba por minar o
monismo fiacutesico e passa a incidir em alguma versatildeo do dualismo de
substacircncia
A imagem verdadeira se vamos persistir na metaacutefora do bolo eacute que a
consciecircncia eacute o estado em que o bolo (ceacuterebro) estaacute Oficialmente o dualista
de propriedades diz que a consciecircncia eacute uma propriedade do ceacuterebro mas se
vocecirc considerar propriedades incontroversas do ceacuterebro como peso forma
cor solidez etc ningueacutem diz que elas ldquosurgem dordquo [hellip] ou estatildeo ldquoaleacutemrdquo [hellip]
do ceacuterebro e somente num sentido especial algumas delas podem ser descritas
como ldquoemergentesrdquo [hellip] e certamente natildeo como ldquoemergentes dordquo [hellip] ceacuterebro
Uma corrente que se opocircs fortemente ao dualismo foi o behaviorismo
analiacutetico8 Muitos estudiosos consideram como marco da Filosofia da
Mente Contemporacircnea o livro de Gilbert Ryle (1970 p 11) Concept of
Mind publicado originalmente em 1949 que principia resumindo a
posiccedilatildeo a ser combatida o ldquomito de Descartesrdquo ou o ldquodogma do fantasma
na maacutequinardquo
8 Natildeo devemos confundi-lo com a corrente psicoloacutegica associada aos nomes de John Watson Ivan Pavlov e Burrhus Frederic Skinner Como esclarece Blackburn (1997 p 39) em vez de levar em consideraccedilatildeo a introspecccedilatildeo e a subjetividade o behaviorismo psicoloacutegico inicialmente se orientou pela perspectiva metodoloacutegica de mensuraccedilatildeo das causas comportamentais Posteriormente sobretudo com Skinner passou a vigorar o empreendimento de se gerir a accedilatildeo humana por meio de estiacutemulos e reforccedilos
80 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A doutrina oficial que vem principalmente de Descartes eacute qualquer coisa
como isto com as exceccedilotildees duvidosas dos idiotas e das crianccedilas de colo todo
ser humano tem um corpo e um espiacuterito Alguns prefeririam dizer que todo
ser humano eacute simultaneamente corpo e espiacuterito O seu corpo e o seu espiacuterito
estatildeo geralmente reunidos mas depois da morte do corpo o espiacuterito pode
continuar a existir e a funcionar
O intento de Ryle eacute imunizar todos contra o ldquopatoloacutegicordquo legado
cartesiano valendo-se de anaacutelises conceituais com o duplo objetivo de
criticar as operaccedilotildees realizadas pelos defensores da ldquodoutrina oficialrdquo e de
situar o conceito mental no tipo loacutegico adequado Com o intuito de ilustrar
sua argumentaccedilatildeo contra o dualismo ele daacute o seguinte exemplo de erro
categorial Se apoacutes termos apresentado a Reitoria as Unidades
Acadecircmicas as Faculdades o Restaurante Universitaacuterio e os Museus que
compotildeem a nossa instituiccedilatildeo o que responderiacuteamos ao estrangeiro que
persistisse perguntando pela localizaccedilatildeo da Universidade haja vista que
ele afirma ter visto somente os departamentos administrativos as salas de
aula e os aparelhos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica Ora diz Ryle (1970 p 16)
devemos mostrar que o nosso colega se equivoca ao natildeo observar que a
Universidade eacute constituiacuteda pela coordenaccedilatildeo conjunta dos oacutergatildeos
burocraacuteticos espaccedilos didaacuteticos laboratoacuterios etc que ele observou em sua
visita ao campus
O seu erro [do estrangeiro] assenta na suposiccedilatildeo inocente de que era correto
falar da Christ Church da Bodleian Library do Ashmolean Museum e da
Universidade como se a ldquoUniversidaderdquo significasse um membro extra da
classe da qual estas outras unidades satildeo membros Ele estava a situar
erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras instituiccedilotildees
pertencem
Consoante o behaviorista algo semelhante ocorre quando nos
emocionamos ao ler um poema sentimos dor de dente desejamos um
chocolate ou cremos na Biacuteblia tendo em conta que natildeo estariacuteamos nos
referindo a eventos mentais interiores mas tatildeo somente ao nosso
comportamento seja ele real ou potencial Eacute justamente por esse motivo
Maxwell Morais de Lima Filho | 81
que ele pretende preservar a equivalecircncia semacircntica quando traduz a
crenccedila de Tomeacute no Cristianismo nas seguintes descriccedilotildees
comportamentais
(i) Se lhe oferecerem de presente a Biacuteblia ou o Coratildeo ele optaraacute pelo primeiro
(ii) Se lhe perguntarem em qual livro Deus se revela ele responderaacute que eacute na Biacuteblia
(iii) Se lhe questionarem sobre a autoria dos Dez Mandamentos ele afirmaraacute que
foram escritos por Deus
(iv) Se houver oportunidade ele pregaraacute a mensagem biacuteblica
Uma criacutetica inicial a essa proposta teoacuterica se reflete no repuacutedio de
sermos reduzidos agrave pura e simples mecacircnica comportamental
desconsiderando-se para tal fim a totalidade dos fenocircmenos subjetivos e
qualitativos que constituem a rica vida mental que todos noacutes inclusive os
behavioristas experimentamos Em outras palavras haacute uma distinccedilatildeo de
tipo9 entre a crenccedila cristatilde e a observaccedilatildeo comportamental de Tomeacute Para
ser consistente essa anaacutelise deveria levar em consideraccedilatildeo a
indeterminaccedilatildeo e o nuacutemero potencialmente infinito de vias relacionadas agrave
crenccedila religiosa de Tomeacute e natildeo apenas os quatro condicionais listados
anteriormente
Esse tipo de exame tambeacutem padece de circularidade porque o
behaviorista deve lanccedilar matildeo de hipoacuteteses adicionais natildeo explicitadas para
sustentar que a crenccedila no Cristianismo se traduz comportamentalmente
na inclinaccedilatildeo de ser presenteado por uma Biacuteblia Caso Tomeacute possua dez
traduccedilotildees comentadas da Biacuteblia em diferentes liacutenguas seria provaacutevel que
ele preferisse ganhar o Coratildeo de presente ndash na verdade a lista de regalos
passiacuteveis de corroborar a crenccedila de Tomeacute eacute deveras extensa sendo muito
difiacutecil determinaacute-la precisamente A disposiccedilatildeo comportamental de
preferir a Biacuteblia tambeacutem assume sub-repticiamente que Tomeacute sabe e gosta
de ler o que obviamente natildeo eacute necessaacuterio Por fim querer ganhar uma
9 Searle (2010h p 337) realccedila essa dessemelhanccedila entre os fenocircmenos mentais conscientes e a anaacutelise comportamental a partir desse exemplo da dor gaacutestrica ldquoO fato de sentir essa dor eacute completamente diferente ndash aliaacutes um tipo de fato completamente diferente ndash de quaisquer fatos inclusive condicionais que digam respeito a meu comportamento Ter uma dor de estocircmago eacute uma coisa adotar este ou aquele tipo de comportamento adequado a uma dor de estocircmago eacute algo totalmente diferenterdquo
82 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Biacuteblia soacute faz sentido se Tomeacute acreditar que ela natildeo viraacute com paacuteginas em
branco que ela estaacute redigida em liacutengua compreensiacutevel que sua mensagem
natildeo foi corrompida por editores inescrupulosos etc
A tentativa de se explicar a crenccedila de Tomeacute no Cristianismo
(analysandum) atraveacutes de sua conduta de pregaccedilatildeo evangeacutelica (analysans)
eacute malograda porque o comportamento que pretende esclarecer o estado
psicoloacutegico eacute ele proacuteprio intencional10 Ou seja os movimentos corporais
de pegar a Biacuteblia e sair de porta em porta anunciando que Jesus eacute a nossa
salvaccedilatildeo e a soluccedilatildeo para todos os nossos problemas soacute podem ser
denominados accedilotildees se forem causados por intenccedilotildees que satildeo tatildeo mentais
quanto o que se pretende elucidar a crenccedila de Tomeacute Eacute guiado por linha
de raciociacutenio semelhante que Searle (2010h p 339) afirma que o
behaviorista estaria diante de um dilema pois ou ele considera que o
comportamento eacute intencional ou natildeo por um lado permaneceria o
elemento mental se se admitir que o comportamento eacute intencionalmente
causado por outro caso natildeo se defenda isso
temos de interpretar o comportamento como uma seacuterie de movimentos
corporais descritos tatildeo somente como movimentos corporais e nenhuma
anaacutelise dos enunciados sobre crenccedilas desejos e intenccedilotildees em funccedilatildeo de
enunciados sobre movimentos corporais jamais seraacute suficiente porque os
movimentos ainda natildeo satildeo accedilotildees humanas e a noccedilatildeo de um movimento
corporal em si mesmo eacute insuficiente para qualquer anaacutelise dos estados
mentais
Desse modo o filoacutesofo estadunidense reitera que soacute podemos
acreditar em algo ou desejarmos alguma coisa se tivermos uma Rede
(Network) com diversas crenccedilas e desejos Poreacutem como o conteuacutedo
intencional natildeo eacute autointerpretativo Searle (2010g p 249-50) postula que
a Rede necessita de um Pano de Fundo (Background)11 constituiacutedo por
habilidades preacute-intencionais
10 Consoante Leclerc (2015) Roderick Chisholm defendeu na deacutecada de 50 que eacute impossiacutevel transpormos o ciacuterculo das noccedilotildees intencionais haja vista que a intencionalidade eacute indefiniacutevel a partir de termos natildeo intencionais
11 Vimos que a intransponibilidade do ciacuterculo intencional eacute sustentada por Chisholm porque os termos natildeo intencionais satildeo inuacuteteis para definir a intencionalidade Apesar de reconhecer a importacircncia da Rede Searle (1995
Maxwell Morais de Lima Filho | 83
Todos os fenocircmenos intencionais quer sejam crenccedilas desejos esperanccedilas
medos ou outros pressupotildeem capacidades natildeo intencionais de background
para que possam funcionar Com isso quero dizer que os estados intencionais
somente determinam suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo e portanto somente
funcionam como estados intencionais se for pressuposto um conjunto de
capacidades que nos permitem aplicar os estados intencionais A
intencionalidade natildeo eacute por assim dizer autointerpretante ou autoaplicativa
[hellip] [O] ponto importante dessas habilidades de background eacute que elas
mesmas natildeo satildeo representacionais Natildeo consistem num conjunto de regras
crenccedilas ou outros tipos de representaccedilotildees
Nos anos 50 e 60 do seacuteculo XX pouco apoacutes a proposta behaviorista
de Ryle filoacutesofos como Herbert Feigl Ullin Thomas Place John Jamieson
Carswell Smart e David Malet Armstrong defenderam uma teoria da
identidade mente-ceacuterebro segundo a qual os estados mentais nada mais
satildeo do que estados fiacutesicos que ocorrem no sistema nervoso Portanto
estamos diante de um monismo fiacutesico que identifica ontologicamente o
domiacutenio psicoloacutegico ao neurobioloacutegico como ocorre na identificaccedilatildeo entre
a dor e a descarga de fibras C Em artigo publicado originalmente em 1956
Place (2002) defende a hipoacutetese cientiacutefica de que a consciecircncia eacute um
processo cerebral sem se comprometer com a suposiccedilatildeo adicional de que
a linguagem neurobioloacutegica sirva para descrever os sonhos as fantasias e
as sensaccedilotildees Eacute justamente porque a assunccedilatildeo da identidade mente-
ceacuterebro eacute anaacuteloga agravequela das Ciecircncias Naturais ndash que se reflete por sua
vez na ausecircncia de equivalecircncia semacircntica entre as descriccedilotildees dos
fenocircmenos fiacutesicos e mentais ndash que natildeo seria irracional se Royce afirmasse
p 198) recua um passo ao advogar que o Pano de Fundo preacute-intencional eacute a condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer estado intencional ldquoO Background eacute lsquopreacute-intencionalrsquo no sentido de que embora natildeo seja uma forma ou formas de Intencionalidade eacute natildeo obstante uma precondiccedilatildeo ou um conjunto de precondiccedilotildees de Intencionalidaderdquo Portanto se a definiccedilatildeo de intencionalidade empregada por Searle eacute circular natildeo deixa de ser verdade que ela se explica a partir do Pano de Fundo Ressaltamos que os obstaacuteculos impostos por determinadas praacuteticas humanas situadas podem ser transpostos devido ao compartilhamento de um Background profundo Eis dois exemplos do proacuteprio Searle (2006 p 277) ldquoDiferenccedilas de Backgrounds locais tornam difiacutecil a traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra a generalidade do Background profundo torna-a possiacutevel de qualquer modo Se vocecirc lecirc a descriccedilatildeo de um jantar festivo na casa dos Guermantes em Proust provavelmente deve achar alguns aspectos da descriccedilatildeo enigmaacuteticos Isso tem a ver com diferenccedilas de praacuteticas culturais locais Mas existem certas coisas que vocecirc pode dar por certas Por exemplo os participantes natildeo comem enfiando a comida em seus ouvidosrdquo
84 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que sente dor e que as suas fibras C natildeo disparam haja vista que o
enunciado ldquoRoyce estaacute com dorrdquo natildeo eacute sinocircnimo de ldquoas fibras C de Royce
estatildeo disparandordquo do mesmo modo que natildeo seria um absurdo declarar
que a aacutegua deste copo natildeo eacute composta por H2O
Como Searle defende que os fenocircmenos mentais satildeo causados e
realizados no sistema nervoso ele natildeo veria problema algum em localizaacute-
los espaacutecio-temporalmente nos processos cerebrais subjacentes desde que
levemos em conta que uns e outros satildeo ontologicamente distintos ou seja
que aqueles fenocircmenos possuem caracteriacutesticas intriacutensecas que os tornam
irredutiacuteveis a padrotildees sinaacutepticos estes sim descritiacuteveis a partir do
vocabulaacuterio neurocientiacutefico de terceira pessoa Dito isso vemos o porquecirc
de Searle (2010e p 129-30) criticar a identificaccedilatildeo ontoloacutegica do
fisicalismo redutivo
Assim quando o teoacuterico da identidade nos diz que os estados mentais satildeo
somente estados cerebrais haacute um modo de compreender essa tese que eacute
perfeitamente compatiacutevel com nossa pressuposiccedilatildeo de senso comum sobre o
caraacuteter intriacutenseco e irredutiacutevel da consciecircncia e de outras formas de
intencionalidade [hellip] Mas em geral natildeo eacute isso o que os teoacutericos da identidade
querem dizer Um exame cuidadoso dos textos [hellip] revela que em geral os
teoacutericos da identidade [hellip] acabam por negar a existecircncia das caracteriacutesticas
intrinsecamente mentais do mundo
Outra objeccedilatildeo eacute feita agrave contundente asserccedilatildeo de que os estados
mentais compartilhados por duas pessoas implicam que eles satildeo
necessariamente determinados por processos neurofisioloacutegicos de tipo
idecircntico Assim sendo os mesmos estados fiacutesicos devem ocorrer nos
ceacuterebros de Jacoacute e de Luiz para que eles compartilhem a crenccedila de que
Januaacuterio eacute o maior dos sanfoneiros Ora jaacute que somos cercados por
estruturas bioloacutegicas e por artefatos que satildeo multiplamente realizaacuteveis do
ponto de vista fiacutesico por que o mesmo natildeo ocorreria com os estados
mentais Em outras palavras se olhos asas reloacutegios e cadeiras satildeo
compostos e organizados fisicamente de mais de um modo por que algo
semelhante natildeo se daria com a mentalidade Destarte nada impede que a
Maxwell Morais de Lima Filho | 85
mesma crenccedila na grandiosidade musical de Januaacuterio seja realizada por
padrotildees neurocircnicos de tipo X no velho Jacoacute e de tipo Y em seu filho Searle
(2010h p 344) se vale de outros exemplos para corroborar a tese da
realizaccedilatildeo muacuteltipla do mental e para explicitar o que faz com que dois
estados psicoloacutegicos sejam do mesmo tipo
Assim vocecirc e eu podemos ter cada qual a mesma crenccedila de que estaacute nevando
sem que nossas neurofisiologias sejam necessariamente de tipo idecircntico assim
como meu carro e o seu podem ter cada qual um carburador embora o meu
seja de accedilo e o seu de latatildeo Mas entatildeo o que os estados mentais tecircm em
comum capaz de tornaacute-los de tipo idecircntico Creio que a resposta oacutebvia eacute que
eles satildeo de tipo idecircntico por causa de suas caracteriacutesticas mentais comuns
sejam elas caracteriacutesticas de consciecircncia da intencionalidade ou de ambas ou
ainda outras espeacutecies de caracteriacutesticas mentais
Aliaacutes foi motivado por esse tipo de criacutetica ao fisicalismo redutivo que
surgiu nos anos 60 a teoria funcionalista que talvez ainda hoje seja a
concepccedilatildeo de maior prestiacutegio acadecircmico De acordo com uma de suas
vertentes os fenocircmenos mentais podem ser produzidos artificialmente
pelos chips de siliacutecio de computador o que demonstraria a inexistecircncia de
um viacutenculo necessaacuterio entre ceacuterebros complexos e estados mentais Como
natildeo seriam essencialmente bioloacutegicos o aspecto relevante residiria no
papel funcional envolvido nas relaccedilotildees entre os proacuteprios estados mentais
bem como destes com as informaccedilotildees provenientes do ambiente e que
direcionam o comportamento Essa centralidade do papel funcional estaacute
por traacutes do pressuposto metodoloacutegico do teste de Turing (1950) de que se
uma maacutequina manifesta um comportamento linguiacutestico tatildeo complexo
quanto o do ser humano eacute porque nos eacute similar em inteligecircncia e
mentalidade
Com o fito de atacar esse pressuposto behaviorista do funcionalismo
e para asseverar que toda e qualquer maacutequina de Turing eacute incapaz de
compreender os siacutembolos que manipula Searle12 (1980a) propocircs o
12 Apresentamos o ataque de Searle ao funcionalismo computacional em Lima Filho (2010a)
86 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
experimento de pensamento do quarto chinecircs Em linhas gerais podemos
expor o famoso Gedankenexperiment do seguinte modo confinado em um
quarto Searle passa a receber folhas escritas em chinecircs liacutengua da qual ele
natildeo conhece um soacute ideograma e que eacute incapaz de falar quaisquer palavras
tambeacutem o fornecem um manual com regras escritas em inglecircs que lhe
permite relacionar pelo formato os siacutembolos recebidos com outras folhas
redigidas em chinecircs que ele passa por debaixo da porta Esse processo
ocorre repetidamente ndash recebimento do texto em chinecircs consulta ao
manual e devoluccedilatildeo do siacutembolo correspondente ndash e sem que o filoacutesofo se
aperceba disso o falante de chinecircs julga que estaacute entabulando uma
conversaccedilatildeo porque dele recebeu respostas satisfatoacuterias sobre o seu nome
a sua origem e a sua profissatildeo O ponto nevraacutelgico da argumentaccedilatildeo eacute que
a manipulaccedilatildeo simboacutelica natildeo eacute suficiente para a compreensatildeo semacircntica e
que o maacuteximo alcanccedilaacutevel por um programa de computador eacute a simulaccedilatildeo13
ndash mas natildeo a duplicaccedilatildeo ndash de estados mentais Eis como Searle (1998a p
38-9) posteriormente resume o seu argumento
1 Programas satildeo totalmente sintaacuteticos
2 As mentes tecircm uma capacidade semacircntica
3 A sintaxe natildeo eacute a mesma coisa que a semacircntica nem eacute por si soacute suficiente
para garantir um conteuacutedo semacircntico
Consequentemente programas natildeo satildeo mentes
Para golpear o cognitivismo ndash linha para a qual os processos
cognitivos satildeo inconscientes e computacionais ndash Searle propotildee um
argumento assentado na tese de que a computaccedilatildeo eacute relativa ao
observador e eacute exclusivamente sintaacutetica Consoante Moural (2003)
podemos resumi-lo nessas quatro asserccedilotildees
13 Analogamente Searle (2007 p 66) afirma que um programa computacional simulador da digestatildeo eacute incapaz de decompor fiacutesico-quimicamente um pedaccedilo de pizza ldquo[U]m computador realiza um modelo ou uma simulaccedilatildeo de um processo E a simulaccedilatildeo computacional de uma mente eacute como a simulaccedilatildeo computacional da digestatildeo Eu natildeo sei por qual motivo as pessoas cometem um erro tatildeo bobo Veja se fizermos uma simulaccedilatildeo computacional perfeita da digestatildeo ningueacutem poderia pensar lsquovamos comprar uma pizza e pocirc-la no computadorrsquo Eacute um modelo uma fotografia da digestatildeo Nos mostra que a estrutura formal de funcionamento de fato natildeo digere nada Isso eacute o que ocorre com um computador Um modelo computacional do que eacute apaixonar-se ler um romance ou embriagar-se natildeo se apaixona nem lecirc um romance nem se embriaga de fato Somente faz uma representaccedilatildeo dessas coisasrdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 87
(i) Por definiccedilatildeo computaccedilatildeo consiste em uma manipulaccedilatildeo formal de siacutembolos
(ii) No entanto como nem a sintaxe nem os siacutembolos satildeo definidos em termos fiacutesicos
natildeo podemos consideraacute-los intriacutensecos agrave Fiacutesica
(iii) Como o significado da sintaxe e dos siacutembolos soacute podem ser atribuiacutedos perante
um observador segue-se que o mesmo deva se dar com a computaccedilatildeo
(iv) Consequentemente a possibilidade de realizarmos uma interpretaccedilatildeo
computacional do ceacuterebro natildeo nos autoriza a conjecturar que esse oacutergatildeo seja
intrinsecamente um computador
A distinccedilatildeo capital que permeia esse argumento eacute aquela entre as
caracteriacutesticas que independem e as que dependem do observador14 como
o satildeo respectivamente a massa da moleacutecula de aacutegua e a funccedilatildeo
cronomeacutetrica do reloacutegio Com isso Searle (2002b) faz uma discriminaccedilatildeo
entre estados mentais humanos e aqueles atribuiacutedos ao computador o
estado de consciecircncia de Searle eacute intrinsecamente intencional porque
existe independentemente do que pensemos a seu respeito diversamente
dos estados mentais que outorgamos agrave maacutequina e que possuem uma
intencionalidade relativa ao observador15 Portanto o medo expresso por
14 Para Searle (1998a p 42) as Ciecircncias da Natureza se distinguem das Ciecircncias Sociais pelo estudo dessas caracteriacutesticas ldquoAs ciecircncias naturais lidam com essas propriedades da natureza que satildeo intriacutensecas ou independentes do observador no sentido de sua existecircncia natildeo depender do que pensamos sobre ela Exemplos dessas propriedades satildeo a massa a fotossiacutentese a carga eleacutetrica e a mitose As ciecircncias sociais em geral lidam com propriedades que satildeo dependentes do observador ou relativas ao observador no sentido de que sua existecircncia depende de como os seres humanos tratam usam ou ao menos pensam a respeito delas Exemplos tiacutepicos satildeo o dinheiro a propriedade e o casamentordquo
15 Estamos diante de uma intencionalidade intriacutenseca quando adicionamos mentalmente dois e dois e obtemos quatro jaacute quando expressamos esse caacutelculo pela linguagem falada ou escrita referimo-nos agrave intencionalidade derivada por fim temos tambeacutem a intencionalidade ldquocomo serdquo quando falamos que o gramado ou o carro estatildeo
sedentos Como adverte Searle (2010f p 189-90) a sede do gramado ou do automoacutevel natildeo eacute intencional mas tatildeo somente metafoacuterica ldquoa intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo eacute intencionalidade de modo nenhum Quando afirmo que um sistema tem uma intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo lhe atribuo intencionalidade Estou afirmando apenas que o sistema se comporta como se tivesse intencionalidade embora natildeo a tenha de fatordquo Como a intencionalidade intriacutenseca precede a linguagem poderiacuteamos encontraacute-la em bebecircs humanos e em outras espeacutecies animais Eacute nesse sentido que as carecircncias de aacutegua e de alimento causariam os primordiais desejos de beber e de comer como assinala Searle (2000 p 91-2) ldquoAs formas biologicamente mais primitivas de intencionalidade satildeo as formas de desejo que envolvem necessidades fiacutesicas como a fome e a sede Ambas satildeo intencionais porque ambas satildeo formas de desejo A fome eacute um desejo de comer a sede um desejo de beberrdquo Searle (2012 p 24) vai aleacutem e advoga que esses estados mentais preacute-linguiacutesticos satildeo indissociaacuteveis de suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo ldquoEssas formas preacute-linguiacutesticas de intencionalidade jaacute possuem algumas propriedades loacutegicas cruciais Porque percepccedilotildees intenccedilotildees crenccedilas desejos e assim por diante satildeo formas de intencionalidade elas trazem em si especificamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees de sucesso ou fracasso Por exemplo um animal faminto tem o desejo de comer e patologias agrave parte assim ele tem a capacidade de reconhecer quando esse desejo eacute satisfeito e quando natildeo o eacuterdquo No entanto essa alegada intrinsecalidade dos estados mentais eacute posta em duacutevida por Gauker (2012 p 154) ldquoO fato de que os bebecircs os animais natildeo humanos e os hominiacutedeos preacute-linguiacutesticos possuam estados intencionais se isso fosse um fato natildeo mostraria
88 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Hal 9000 quando David Bowman estava desativando seus processos
superiores natildeo passa de uma fobia metafoacuterica Para Searle (1980a) natildeo haacute
qualquer arbitrariedade no criteacuterio que se funda na intencionalidade
intriacutenseca para diferenciar a mentalidade da decisatildeo de Bowman do pavor
figurado de Hal 9000 se assim o fosse estaria subjugado a nosso bel-
prazer encarar os nossos semelhantes como zumbis e a estiagem como
mental
Os argumentos levantados por Searle de que a sintaxe eacute insuficiente
para a semacircntica e de que ela natildeo eacute intriacutenseca agrave Fiacutesica natildeo raras vezes tem
conduzido agrave interpretaccedilatildeo de que ele seja repulsivo ao projeto de um
ceacuterebro e de uma mente artificiais No entanto essa chave de leitura eacute
injusta porque ambos os argumentos do filoacutesofo estadunidense satildeo
voltados para o programa do computador ndash e natildeo para o hardware
Justamente por se apoiar nas Ciecircncias da Natureza Searle natildeo nega que
uma funccedilatildeo possa ser multiplamente realizada como eacute o caso do voo
executaacutevel bioloacutegica ndash insetos aves e morcegos ndash ou tecnologicamente ndash
balotildees aviotildees helicoacutepteros e foguetes Por mais distintas que sejam as asas
da mosca e as do 14-bis elas compartilham poderes causais que permitem
ao animal e ao aviatildeo sobrepujarem a forccedila da gravidade Ora se a
consciecircncia eacute uma caracteriacutestica sistecircmica do ceacuterebro e desejamos
produzi-la artificialmente basta que dupliquemos os poderes causais
desse oacutergatildeo Nas palavras de Searle (2000 p 56)
Quando digo que o ceacuterebro eacute um oacutergatildeo bioloacutegico e a consciecircncia um processo
bioloacutegico eacute claro que natildeo estou dizendo ou sugerindo que seria impossiacutevel
produzir um ceacuterebro artificial a partir de materiais natildeo bioloacutegicos que tambeacutem
pudessem ser causa da consciecircncia e sustentaacute-la [] O ponto que deve ser
enfatizado eacute que tal ceacuterebro artificial teria de reproduzir as verdadeiras causas
dos ceacuterebros humanos e animais para produzir estados de consciecircncia
internos qualitativos e subjetivos A produccedilatildeo de comportamentos similares
por si soacute natildeo seria suficiente
que a intencionalidade dos estados mentais eacute lsquointriacutensecarsquo em qualquer sentido mas mostraria que a capacidade para pensar com as propriedades semacircnticas natildeo depende da posse de uma linguagem ao contraacuterio de minha hipoacuteteserdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 89
Dessa maneira o autor drsquoA Redescoberta da Mente aceita uma versatildeo
bem mais branda da tese de realizaccedilatildeo muacuteltipla em comparaccedilatildeo com a que
eacute acatada pelos funcionalistas pois nem todo material seria capaz de
efetuar a funccedilatildeo em questatildeo Como Searle (1984) diz abertamente o
ceacuterebro eacute uma maacutequina viva e portanto a sua constituiccedilatildeo bioloacutegica eacute
relevante para a produccedilatildeo e para a realizaccedilatildeo da mente ou seja eacute de nosso
conhecimento que os padrotildees sinaacutepticos satildeo efetivos para a emergecircncia de
estados intencionalmente intriacutensecos Contudo diferentemente do que se
daacute com o voo a nossa atual ignoracircncia sobre os detalhes bioquiacutemicos e
fisioloacutegicos nos impede por enquanto de duplicar os estados mentais em
estruturas natildeo bioloacutegicas
Para fechar o nosso itineraacuterio pela Filosofia da Mente apresentamos
a seguir o fisicalismo eliminativista corrente defendida por Paul
Feyerabend Richard Rorty Patricia e Paul Churchland Diferentemente da
abordagem fisicalista de Feigl Place Smart e Armstrong o eliminativista
rejeita a identificaccedilatildeo entre os fenocircmenos neurofisioloacutegicos e os mentais
haja vista que estes uacuteltimos natildeo passam de ilusatildeo Para defender a tese do
irrealismo do mental e a sua necessaacuteria eliminaccedilatildeo teoacuterica o fisicalista
eliminativo lanccedila matildeo da seguinte analogia histoacuterica no tempo das
Inquisiccedilotildees sustentava-se a necessidade de caccedilar e de queimar na fogueira
a mulher que pactuava com Satanaacutes mas atualmente nenhuma pessoa
sensata admitiria a existecircncia de bruxas Essa mudanccedila de perspectiva se
daacute porque o progresso epistecircmico revelou a falsidade do conceito de bruxa
e o eliminou do arcabouccedilo terminoloacutegico da Ciecircncia como aconteceraacute ndash
alega Paul Churchland (2004 p 79) ndash com os termos da Psicologia
Popular
[N]atildeo podemos esperar que uma explicaccedilatildeo realmente adequada de nossa vida
interior feita pela neurociecircncia revele categorias teoacutericas que correspondam
exatamente agraves categorias do arcabouccedilo de senso comum [posiccedilatildeo anti-
reducionista] Dessa forma devemos esperar que o antigo arcabouccedilo seja
simplesmente eliminado e natildeo reduzido por uma neurociecircncia amadurecida
90 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Consoante Teixeira (2008) a Psicologia Popular eacute a teoria que nos
permite explicar o comportamento humano evocando conceitos como
crenccedila desejo e intenccedilatildeo Desse modo o avanccedilo neurocientiacutefico natildeo
acarretaraacute a reduccedilatildeo da Psicologia Popular pois natildeo haacute uma
correspondecircncia um-a-um entre essas duas aacutereas o que demonstraria a
necessidade de suprimir os termos psicoloacutegicos que representam de modo
distorcido os estados neurofisioloacutegicos e as causas do comportamento Por
conseguinte uma Neurociecircncia16 avanccedilada e precisa propiciaraacute
eliminaccedilotildees teoacutericas como a de algueacutem que mencione a ativaccedilatildeo de suas
fibras C em tal regiatildeo do ceacuterebro no lugar de falar que estaacute com dor como
expotildee Churchland (2004 p 82)
Nossas explicaccedilotildees sobre os comportamentos uns dos outros iratildeo recorrer a
coisas como nossos estados neurofarmacoloacutegicos nossa atividade neural em
aacutereas anatocircmicas especiacuteficas e a outros estados que forem relevantes para a
nova teoria Nossa introspecccedilatildeo individual tambeacutem seraacute transformada e
poderaacute ser profundamente aprimorada em razatildeo de um arcabouccedilo conceitual
mais penetrante e preciso com o qual ela teraacute de trabalhar []
Searle (2006) trata com sarcasmo os eliminativistas ao perguntar se
deveria beliscaacute-los para provar que satildeo conscientes e que sentem dor
advogando que o fato de os estados mentais dependerem ontologicamente
dos processos neurobioloacutegicos natildeo os tornam aparentes ou ilusoacuterios Em
outras palavras por mais que conheccedilamos todos os pormenores
bioquiacutemicos e fisioloacutegicos dos processos cerebrais isso natildeo baniraacute ndash nem
ontoloacutegica nem explicativamente ndash o niacutevel dos fenocircmenos psicoloacutegicos
Estes fenocircmenos inexistiriam se houvesse uma distinccedilatildeo entre a aparecircncia
e a realidade17 mas esse natildeo eacute o caso como pontua Searle (2000 p 59)
16 Rorty (1997 p 158) pinta o hipoteacutetico progresso neurocientiacutefico com essas tintas ldquoNoacutes esperamos que a fisiologia possa algum dia traccedilar um caminho a partir da distribuiccedilatildeo de descargas eleacutetricas em meu ceacuterebro ateacute as interfaces [neuromusculares] em minha garganta e por conseguinte nos viabilizar predizer elocuccedilotildees por sobre a base dos estados cerebraisrdquo
17 Em outro texto Searle (1998c p 224) faz a seguinte comparaccedilatildeo ldquoReduccedilotildees eliminatoacuterias exigem uma distinccedilatildeo entre a realidade e a aparecircncia Por exemplo o Sol parece se pocircr mas na realidade eacute a Terra que realiza o movimento de rotaccedilatildeo Mas vocecirc natildeo pode fazer este movimento para a consciecircncia porque no que diz respeito agrave consciecircncia a realidade eacute a aparecircncia Se conscientemente tenho a impressatildeo de ser consciente entatildeo sou conscienterdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 91
Natildeo podemos fazer uma reduccedilatildeo eliminatoacuteria da consciecircncia porque o padratildeo
das reduccedilotildees eliminatoacuterias eacute mostrar que o fenocircmeno reduzido eacute apenas uma
ilusatildeo No entanto no que diz respeito agrave consciecircncia a existecircncia da ldquoilusatildeordquo eacute
a proacutepria realidade Isso quer dizer que se me parece que estou consciente
entatildeo eu estou Natildeo haacute nada na consciecircncia aleacutem de uma sequumlecircncia de
ldquoaparecircnciasrdquo desse tipo A esse respeito a consciecircncia eacute diferente dos poentes
porque eu posso ter a ilusatildeo de que o sol estaacute se pondo por traacutes das montanhas
quando na verdade ele natildeo estaacute fazendo isso
Dessa maneira os processos neurofisioloacutegicos satildeo capazes de explicar
minuciosamente a causa da dor mas isso natildeo significa deixaacute-la de lado
como um conceito preacute-cientiacutefico muito pelo contraacuterio haja vista que a
sensaccedilatildeo dolorosa possui uma ontologia de primeira pessoa no sentido de
ser experienciada por um sujeito e de possuir um modo de existecircncia
qualitativo que a diferencia dos disparos neurocircnicos que a causam Essa
caracteriacutestica real e ineliminaacutevel da mentalidade eacute expressa por Searle
(1998b p 57-8) ao declarar que
a pura sensaccedilatildeo qualitativa de dor eacute uma propriedade do ceacuterebro bem
diferente das descargas neuronais que causam a dor Logo em se tratando de
descargas neuronais vocecirc pode obter uma reduccedilatildeo causal de dor mas natildeo
uma reduccedilatildeo ontoloacutegica Isto eacute vocecirc pode fornecer uma anaacutelise causal
completa da razatildeo de sentirmos dores mas isso natildeo mostra que as dores natildeo
existam realmente
Fazendo um apanhado geral do que apresentamos constatamos que
o filoacutesofo estadunidense critica severamente todas as principais correntes
recusando igualmente o dualismo a reduccedilatildeo ontoloacutegica e a eliminaccedilatildeo da
Psicologia Popular Para ele a criacutetica ao dualismo acabou jogando o bebecirc
junto com a aacutegua suja do banho pois os fenocircmenos mentais conscientes
foram descartados juntamente com a alma imaterial Eacute como se o pavor
pelo conceito de alma justificasse a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer
92 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
subjetividade18 do seio da natureza O polo oposto tambeacutem eacute desalentador
pois a defesa da mentalidade se faz agraves custas de uma consciecircncia natildeo fiacutesica
Searle (2006 p 23-4) pinta com essas tintas o quadro sinoacuteptico da
Filosofia da Mente
Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais que soam
ldquocartesianosrdquo porque parece que se aceitarmos os fatos teremos de aceitar
toda a metafiacutesica cartesiana Qualquer espeacutecie de mentalismo que reconheccedila
os fatos oacutebvios de nossa existecircncia eacute considerada automaticamente suspeita
[hellip] De um modo talvez mais exasperante ainda eles satildeo auxiliados nesse erro
por aqueles filoacutesofos que de bom grado reconhecem a existecircncia da consciecircncia
e assim fazendo supotildeem estar afirmando a existecircncia de algo natildeo fiacutesico
Ao recusar ambas as posiccedilotildees Searle (2006 p 26-7) pretende articular
uma concepccedilatildeo que natildeo apenas leve em consideraccedilatildeo a subjetividade do
mental mas que a fundamente nas Ciecircncias Naturais deixando de lado
quaisquer ldquoaparatos cartesianosrdquo haja vista que o mental eacute fiacutesico
[O] fato de uma caracteriacutestica ser mental natildeo implica que natildeo seja fiacutesica o fato
de uma caracteriacutestica ser fiacutesica natildeo implica que natildeo seja mental Revisitando
Descartes [] poderiacuteamos dizer natildeo somente ldquopenso logo existordquo e ldquosou um ser
pensanterdquo mas tambeacutem sou um ser pensante portanto sou um ser fiacutesicordquo
[]
Minhas proacuteprias concepccedilotildees natildeo se encaixam em nenhum dos roacutetulos
tradicionais mas para muitos filoacutesofos a ideia de que algueacutem possa defender
um ponto de vista que natildeo se encaixe nessas categorias parece incompreensiacutevel
Pior ainda talvez haacute diversos substantivos e verbos que parecem ter significados
claros como se realmente apresentassem objetos e atividades bem definidos ndash
ldquomenterdquo ldquoegordquo e ldquointrospecccedilatildeordquo satildeo exemplos oacutebvios
A concepccedilatildeo positiva de Searle (1980b p 455) ndash por ele denominada
de naturalismo bioloacutegico ndash surgiu pela primeira vez quando rebateu as
criacuteticas feitas a Mentes Ceacuterebros e Programas no artigo Intencionalidade
Intriacutenseca ocasiatildeo na qual comparou os estados mentais agraves propriedades
18 Para mais informaccedilotildees sobre o importante papel da subjetividade no naturalismo bioloacutegico consultar Lima Filho (2017c)
Maxwell Morais de Lima Filho | 93
de um pneu Na ocasiatildeo seu principal alvo era atacar o funcionalismo
computacional ao apontar as limitaccedilotildees intriacutensecas ao programa de
computador ao mesmo tempo em que destacava a relevacircncia do estofo
bioloacutegico para a mentalidade No entanto tambeacutem vislumbramos nesse
texto o seu repuacutedio ao irrealismo do mental propugnado pelos fisicalistas
redutivos e eliminativos e ao caraacuteter natildeo fiacutesico resguardado pelos dualistas
de substacircncia e de propriedade Natildeo consiste nenhuma surpresa que a
estrateacutegia ofensiva de Searle tenha gerado contra-ataques dos mais
variados vieses dualistas e fisicalistas os quais o impulsionaram em parte
a desenvolver cada vez mais a sua posiccedilatildeo ancorada em dois grandes
compromissos teoacutericos a saber a subjetividade e a biologicidade do
mental Os fenocircmenos mentais ndash ontologicamente subjetivos ndash satildeo
bioloacutegicos tanto na acepccedilatildeo evolutiva quanto na funcional De acordo com
esta uacuteltima os processos neurofisioloacutegicos causam e sustentam a
mentalidade a qual surgiu historicamente devido aos processos evolutivos
que atuaram sobre linhagens animais no decorrer das eras geoloacutegicas19
Referecircncias
ABRANTES Paulo Cesar Coelho T Nagel e os limites de um reducionismo fisicalista (uma
introduccedilatildeo ao artigo ldquoWhat is it like to be a batrdquo) Cadernos de Histoacuteria e Filosofia
da Ciecircncia Campinas v 15 n 1 janeirojunho p 223-44 2005
BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Traduccedilatildeo de Desideacuterio Murcho
Pedro Galvatildeo Ana Cristina Domingues Pedro Santos Clara Joana Martins e Antocircnio
Horta Branco Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997
CHANGEUX Jean-Pierre O homem neuronal Traduccedilatildeo de Artur Jorge Pires Monteiro
Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1985
CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia uma introduccedilatildeo contemporacircnea agrave filosofia
da mente Traduccedilatildeo de Maria Clara Cescato Satildeo Paulo Editora UNESP 2004
19 Expomos a concepccedilatildeo naturalista de Darwin e o pano de fundo cientiacutefico do naturalismo bioloacutegico em Lima Filho (2015a 2015b 2017a e 2017b)
94 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
COTTINGHAM John A filosofia de Descartes Traduccedilatildeo de Maria do Rosaacuterio Sousa
Guedes Lisboa Ediccedilotildees 70 1989
_____ Descartes a filosofia da mente de Descartes Traduccedilatildeo de Jesus de Paula Assis Satildeo
Paulo Editora UNESP 1999
DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Traduccedilatildeo de J Ginsburg e Bento Prado Juacutenior Satildeo Paulo
Nova Cultural 1996
_____ Meditaccedilotildees sobre filosofia primeira Traduccedilatildeo de Fausto Castilho Campinas
Editora da Unicamp 2004
GAUKER Christopher Sobre a alegada prioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem
In TSOHATZIDIS Savas (Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila
significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora
UNESP 2012 p 143-63
JACKSON Frank What Mary didnt know The Journal of Philosophy v 83 n 5 p 291-
5 1986
_____ Epiphenomenal qualia In HEIL John (Ed) Philosophy of mind a guide and
anthology Oxford University Press 2004 p 762-71
LECLERC Andreacute Intencionalidade In BRANQUINHO Joatildeo SANTOS Ricardo (Eds)
Compecircndio em linha de problemas de filosofia analiacutetica Lisboa Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa p 1-25 2015 Disponiacutevel em lt
httprepositorioulptbitstream10451200431leclerc_2015_intencionalidadep
dfgt Acesso em 25 jul 2017
LIMA FILHO Maxwell Morais de O experimento de pensamento do quarto chinecircs a criacutetica
de John Searle agrave inteligecircncia artificial forte Argumentos ndash Revista de Filosofia n 3
p 51-8 2010a
_____ O problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico o dilema entre
epifenomenalismo e sobredeterminaccedilatildeo Cadernos UFS Filosofia v 8 p 85-96
agodez 2010b
_____ Teoria atocircmica biologia evolutiva e consciecircncia In SOUZA Marcus Joseacute Alves de
LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs) Escritos de filosofia linguagem e
cogniccedilatildeo Maceioacute EDUFAL 2015a p 31-46
Maxwell Morais de Lima Filho | 95
_____ A criacutetica de Darwin ao argumento teleoloacutegico de Paley In MAIA Antonio Glaudenir
Brasil OLIVEIRA Geovani Paulino (Orgs) Filosofia religiatildeo e secularizaccedilatildeo
Porto Alegre Editora Fi 2015b p 84-108
_____ Pode-se estudar cientificamente a consciecircncia In ARAUacuteJO Arthur et al (Orgs)
Pragmatismo filosofia da mente e filosofia da neurociecircncia Satildeo Paulo
Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia (Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF)
2017a p 379-95 Republicado em SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO
Maxwell Morais de (Orgs) Escritos de filosofia II linguagem e cogniccedilatildeo Maceioacute
EDUFAL 2017b p 67-89
_____ Subjetividade ontoloacutegica no naturalismo bioloacutegico de John Searle In TEMPLE
Giovana C (Org) Subjetividade no pensamento do seacuteculo XX Curitiba Appris
Editora 2017c p 267-85
MOURAL Josef The chinese room argument In SMITH Barry (Ed) John Searle
Cambridge University Press 2003 p 214-60
PEREIRA Roberto Horaacutecio de Saacute Qualia In BRANQUINHO Joatildeo SANTOS Ricardo
(Eds) Compecircndio em linha de problemas de filosofia analiacutetica Lisboa Centro
de Filosofia da Universidade de Lisboa p 1-14 2013 Disponiacutevel em
lthttpcompendioemlinhaletrasulisboaptqualia-roberto-horacio-pereiragt
Acesso em 27 jun 2016
PLACE Ullin Thomas Is conciousness a brain process In CHALMERS David (ed)
Philosophy of mind classical and contemporary readings New YorkOxford
Oxford University Press 2002 p 55-60
RORTY Richard A filosofia e o espelho da natureza Traduccedilatildeo de Antocircnio Tracircnsito Rio
de Janeiro Relume Dumaraacute 1994
_____ Fisicalismo natildeo-redutivo In _____ Objetivismo relativismo e verdade escritos
filosoacuteficos volume 1 Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume
Dumaraacute 1997 p 157-72
RYLE Gilbert Introduccedilatildeo agrave psicologia o conceito de espiacuterito Traduccedilatildeo de M Luiacutesa
Nunes Lisboa Moraes Editores 1970
SEARLE John Minds brains and programs Behavioral and Brain Sciences v 3 n 3 p
417-24 1980a
96 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ Intrinsic intentionality reply to criticisms of Minds brains and programs
Behavioral and Brain Sciences v 3 n 3 p 450-6 1980b
_____ Mente ceacuterebro e ciecircncia Traduccedilatildeo de Artur Moratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1984
_____ Intencionalidade Traduccedilatildeo de Julio Fischer e Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo
Martins Fontes 1995
_____ A consciecircncia como um problema bioloacutegico In _____ O misteacuterio da consciecircncia
e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji
Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra 1998a p 29-45
_____ Francis Crick o problema da integraccedilatildeo e a hipoacutetese dos quarenta hertz In _____
O misteacuterio da consciecircncia e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers
Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra
1998b p 47-62
_____ Como transformar o misteacuterio da consciecircncia no problema da consciecircncia In _____
O misteacuterio da consciecircncia e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers
Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra
1998c p 201-26
_____ Mente linguagem e sociedade filosofia no mundo real Traduccedilatildeo de F Rangel
Rio de Janeiro Rocco 2000
_____ Filosofia contemporacircnea nos Estados Unidos In BUNNIN Nicholas TSUI-JAMES
Eric (Eds) Compecircndio de filosofia Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Ediccedilotildees Loyola 2002a p 1-23
_____ Twenty-one years in the chinese room In PRESTON John BISHOP Mark (Eds)
Views into the chinese room new essays on Searle and artificial intelligence New
York Oxford University Press 2002b p 51-69
_____ A redescoberta da mente Traduccedilatildeo de Eduardo Pereira Ferreira 2 ed Satildeo Paulo
Martins Fontes 2006
_____ Los haacutebitos del pensamiento critico Entrevista a John Searle Traduccioacuten de Edison
Otero Bello Cuadernos de Neuropsicologiacutea Valparaiso v 1 n 1 p 58-71 2007
Maxwell Morais de Lima Filho | 97
_____ O problema da consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de
Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010a p 1-19
_____ Como estudar cientificamente a consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010b p 21-50
_____ A consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira
Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010c p 51-92
_____ As mentes dos animais In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio
Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010d p 93-119
_____ A intencionalidade e seu lugar na natureza In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010e p 121-42
_____ A explicaccedilatildeo da cogniccedilatildeo In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio
Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010f p 171-210
_____ A intencionalidade individual e os fenocircmenos sociais na teoria dos atos de fala In
_____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo
Martins Fontes 2010g p 231-53
_____ A filosofia analiacutetica e os fenocircmenos mentais In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010h p 335-73
_____ O que eacute a linguagem algumas observaccedilotildees preliminares In TSOHATZIDIS Savas
(Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo
de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora UNESP 2012 p 17-51
_____ Por que eu natildeo sou um dualista de propriedades Traduccedilatildeo de Joseacute Renato Freitas
Recircgo amp Juliana de Orione Arraes Fagundes Filosofando Revista de Filosofia da
UESB Vitoacuteria da Conquista n 2 juldez p 104-14 2014
TEIXEIRA Joatildeo de Fernandes A mente segundo Dennett Satildeo Paulo Perspectiva 2008
TURING Alan Computing machinery and intelligence Mind v 59 n 236 p 433-60 1950
5
Da Natureza Humana
As Perspectivas Epistemoloacutegicas
de Piaget Chomsky e Foucault
Argus Romero Abreu de Morais 1
Consideraccedilotildees Iniciais
Em 1971 convidados pelo apresentador holandecircs Fons Elders para
um debate televisivo Noam Chomsky e Michel Foucault aceitaram
esclarecer suas perspectivas a respeito dos conceitos de natureza humana
justiccedila e poder (CHOMSKY 2014) Poucos anos apoacutes em 1975 Jean Piaget
e Noam Chomsky se reuniram com renomados pesquisadores do mundo
na Abadia de Royaumont na Franccedila para discutirem as questotildees
vinculadas agrave aquisiccedilatildeo e agrave aprendizagem da linguagem humana
(PIATELLI-PALMARINI 1983)
A nosso ver aproximar tais debates torna-se interessante por
permitir elucidar os pressupostos epistemoloacutegicos de autores acadecircmicos
tatildeo relevantes do seacuteculo XX e com isso demarcar as linhas de tensatildeo entre
seus campos e as escolhas teoacutericas das suas pesquisas Nesse sentido no
presente trabalho Chomsky funciona como uma espeacutecie de elo virtual
entre Foucault e Piaget os quais natildeo produziram um debate particular
Natildeo obstante entendemos que os apontamentos feitos por estes dois
1 Professor colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Cultura Educaccedilatildeo e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGCELUESB) e poacutes-doutorando no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Teoria Literaacuteria e Criacutetica da Cultura da Universidade Federal de Satildeo Joatildeo del-Rei (PROMELUFSJ) Email argusromeroyahoocombr
Argus Romero Abreu de Morais | 99
uacuteltimos teoacutericos durante a defesa de seus pilares conceituais permitem
contrastaacute-los sendo marcante a distinccedilatildeo entre ambos no que diz respeito
agrave gecircnese do conhecimento humano nos indiviacuteduos por consequecircncia agrave
Histoacuteria das Ciecircncias
Assim pretendemos colocar face a face os vieses da autorregulaccedilatildeo em
Piaget do inatismo da linguagem em Chomsky e de um certo empirismo
histoacuterico em Foucault Evidentemente cada um desses pensadores natildeo soacute
possui uma enorme produccedilatildeo teoacuterica sobre distintos temas acadecircmicos
como tambeacutem apresentou mudanccedilas de perspectiva nas deacutecadas seguintes
Apesar disso entendemos que os fundamentos epistecircmicos das suas aacutereas de
pesquisa natildeo se alteraram significativamente ao longo do tempo garantindo
certa coerecircncia aos seus projetos de estudo
Natildeo eacute nosso intuito portanto em um breve texto dar conta da
amplitude das contribuiccedilotildees desses pensadores seja pela nossa incapacidade
de cumprir com tal propoacutesito seja pelos limites impostos pelo nosso recorte
investigativo o qual prioriza avaliar os argumentos dos trecircs estudiosos em
torno da existecircncia ou natildeo de uma natureza humana Cumpre-nos destacar
que nos vinculamos agrave epistemologia da Anaacutelise do Discurso Francesa (AD) a
qual pressupotildee a determinaccedilatildeo histoacuterica das formaccedilotildees sociais humanas
inclusive a do proacuteprio pensamento Foucault eacute considerado um dos
principais expoentes desse campo de estudos sendo por conseguinte a
partir do seu olhar discursivo que concluiremos o presente escrito tecendo
comentaacuterios criacuteticos aos demais domiacutenios Antes disso apresentaremos a
perspectiva piagetiana em seguida a abordagem chomskyana
A Funccedilatildeo Sensoacuterio-Motora como Fundamento da Formaccedilatildeo da Linguagem2
Eacute verdade que a auto-regulaccedilatildeo eacute em parte inata mas a tiacutetulo mais de
funcionamento do que de estrutura
Jean Piaget
2 Almejando tornar o texto mais fluido colocaremos as citaccedilotildees diretas ndash ipsis litteris ndash que fundamentam os nossos raciociacutenios em notas de rodapeacute Ressaltamos todavia que utilizaremos um nuacutemero expressivo de notas permitindo o acesso do leitor aos argumentos dos proacuteprios debatedoresautores Esperamos com isso possibilitar o esclarecimento e aprofundamento teoacutericos que o tema exige
100 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Segundo Piaget os estudos que definem a aprendizagem humana
pela associaccedilatildeo entre percepccedilotildees dos indiviacuteduos e objetos se mostraram
ineficientes na tentativa de explicar a formaccedilatildeo do conhecimento humano
(criacutetica ao meacutetodo empirista) Para o epistemoacutelogo esse modelo teoacuterico
tem por principal falha natildeo considerar a atividade do sujeito na construccedilatildeo
do proacuteprio conhecimento engendrado por dois processos
interdependentes o processo de assimilaccedilatildeo no qual os indiviacuteduos
assimilariam novos objetos a esquemas previamente conformados nas
suas estruturas cognitivas e no sentido inverso o processo de
acomodaccedilatildeo no qual os antigos esquemas se acomodam de acordo com as
particularidades dos novos objetos produzindo com isso novos esquemas
(PIATELLI-PALMARINI 1983)3
Busca-se assim definir os constructos cognitivos como frutos de
uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o ser e o mundo desconstruindo a
necessidade de um a priori universal inato ndash criacutetica ao Gerativismo ndash em
prol de um pensamento dinacircmicosistecircmico Desse modo a um soacute tempo
Piaget renega o empreendimento empirista segundo o qual o sujeito se
ajusta ao mundo pelas experiecircncias (o sujeito seria uma taacutebula rasa) e
descarta a empreitada gerativista chomskyana na qual a forma do sujeito
eacute preacutevia agrave experiecircncia e agrave forma do mundo (PIATELLI-PALMARINI 1983)4
Consoante Piaget apenas o funcionamento da inteligecircncia humana eacute
hereditaacuterio sendo essa definida como o mecanismo capaz de gerar
3 Ao criticar o Empirismo Behaviorista campo teoacuterico tambeacutem renegado por Chomsky Piaget destaca ldquoNenhum conhecimento se deve somente agraves percepccedilotildees pois estas satildeo sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de accedilotildees O conhecimento procede pois da accedilatildeo e toda a accedilatildeo que se repete ou se generaliza por aplicaccedilatildeo a novos objetos gera por isso mesmo um lsquoesquemarsquo ou seja uma espeacutecie de conceito praacutexico A ligaccedilatildeo fundamental constitutiva de todo o conhecimento natildeo eacute portanto uma simples associaccedilatildeo entre objetos mas a assimilaccedilatildeo dos objetos a esquemas desse indiviacuteduo Esse processo prolonga aliaacutes diversas formas de lsquoassimilaccedilotildeesrsquo bioloacutegicas das quais a assimilaccedilatildeo cognitiva eacute um caso particular enquanto processo funcional de integraccedilatildeo Em contrapartida quando os objetos satildeo assimilados aos esquemas de accedilatildeo haacute a obrigaccedilatildeo de uma acomodaccedilatildeo agraves particularidades desses objetos (cf os lsquoaccommodatsrsquo fenotiacutepicos em biologia) e essa acomodaccedilatildeo resulta de dados exteriores logo da experiecircnciardquo (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor)
4No dizer de Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor) ldquoCinquenta anos de experiecircncias ensinaram-nos que natildeo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observaccedilotildees Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas soacute o funcionamento da inteligecircncia eacute hereditaacuterio e soacute gera estruturas mediante uma organizaccedilatildeo de accedilotildees sucessivas exercidas sobre objetosrdquo
Argus Romero Abreu de Morais | 101
continuamente estruturas conceituais atraveacutes de operaccedilotildees sobre os
objetos A seu ver assim como a Psicanaacutelise de Jung o projeto gerativista
se equivoca ao confundir as estruturas gerais do espiacuterito com a existecircncia
de estruturas inatas base da suposiccedilatildeo da linguagem como faculdade
hereditaacuteria alocada no ceacuterebro humano Segundo aponta eacute possiacutevel a
existecircncia das primeiras sem que haja as segundas
Definida como construtivista a Epistemologia Geneacutetica piagetiana
expotildee aleacutem do argumento da confusatildeo entre universalidade e inatismo
dois motivos principais para negar a hipoacutetese nativista do Gerativismo
primeiro na forma como estaacute posta a Gramaacutetica Universal (GU) supotildee
que a linguagem humana seria resultado de mutaccedilotildees exclusivas agrave espeacutecie
humana sem que consiga contudo dar explicaccedilotildees plausiacuteveis sobre o(s)
porquecirc(s) desse privileacutegio segundo conseguir-se-ia chegar agraves mesmas
conclusotildees de existecircncia de estruturas universais caso se concebesse a
linguagem como produto de um processo de autorregulaccedilatildeo dispensando
com isso os problemas dos universais modulares de Chomsky (PIATELLI-
PALMARINI 1983)
A autorregulaccedilatildeo funciona portanto como o conceito-chave do
Construtivismo na medida em que eacute o mecanismo responsaacutevel tanto pela
construccedilatildeo humana do conhecimento quanto pela organizaccedilatildeo da
realidade natildeo caoacutetica do mundo Ambos tecircm em comum o fato de se
disporem em forma loacutegico-matemaacutetica Ademais diferentemente da
recursividade algoriacutetmica tal como proposta por Chomsky o pensamento
sistecircmico de Piaget sugere que o retorno agraves estruturas cognitivas de base
natildeo ocorre sobre as regras iniciais como se os componentes primeiros
fossem estaacuteveis na relaccedilatildeo entre o ser e o mundo5
5 Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 83) expressa do seguinte modo seu pensamento sistecircmico ldquoA auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio do organismo limita-se em geral e normalmente a conservar um certo estado de equiliacutebrio e em caso de desvio ou de nova formaccedilatildeo a reconduzi-lo ao estado inicial Enquanto que pelo contraacuterio a auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio dos comportamentos impele incessantemente o organismo o sujeito se se trata de comportamento cognitivo para novos avanccedilos O organismo fisioloacutegico natildeo tem razatildeo de espeacutecie alguma para variar [] A conservaccedilatildeo eacute a norma suprema para o equiliacutebrio fisioloacutegico Ao passo que pelo contraacuterio quando se aborda o terreno do comportamento este persegue dois objetivos o primeiro eacute a extensatildeo do meio superar o meio no qual o organismo estaacute atualmente mergulhado por exploraccedilotildees e pesquisas em novos meios e o segundo o reforccedilo dos poderes do organismo sobre o meiordquo
102 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Para Piaget haacute a superaccedilatildeo contiacutenua do modelo antecedente pelos
modelos subsequentes na mente da crianccedila que embora mais complexos
estavam presentes no anterior como possibilidade ndash latente ndash de
existecircncia e que quando concretizados superam o anterior englobando-
o a saber sensoacuterio-motor de 0 a 1824 meses periacuteodo que antecede a
proacutepria linguagem preacute-operatoacuterio de 162 anos a 78 anos periacuteodo
marcado pelo desenvolvimento das representaccedilotildeessiacutembolos o
operatoacuterio-concreto de 78 anos a 1112 anos periacuteodo da construccedilatildeo
loacutegica e por fim operatoacuterio-formal de 1112 anos em diante periacuteodo em
que a crianccedila eacute capaz de raciociacutenios hipoteacutetico-dedutivos (PIATELLI-
PALMARINI 1983)6
Logo todo sistema se torna subsistema de um novo sistema isto eacute uma
subestrutura da nova estrutura organizadora seguindo um movimento em
direccedilatildeo agrave maior complexidade No caso do pensamento humano quanto
mais proacuteximo da organizaccedilatildeo loacutegica do real melhor o sistema recriado pelas
suas estruturas intelectivas Nesse vieacutes supotildee-se que o ceacuterebro humano seja
capaz de reproduzir internamente a mesma complexidade que o mundo
produz de forma dessubjetivada externamente Isto eacute concluiacutedas as etapas
de amadurecimento cognitivo no indiviacuteduo este seria capaz de reproduzir
ainda que inconscientemente o mesmo niacutevel de complexidade das estruturas
do mundo na forma de conhecimento (matemaacutetico por excelecircncia)
(PIATELLI-PALMARINI 1983)7
Destarte conforme o epistemoacutelogo suiacuteccedilo tanto o pensamento
humano como as ideias cientiacuteficas parecem funcionar por meio da
6 No que diz respeitos agraves etapas de maturaccedilatildeo do conhecimento humano Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 40) especifica ldquoEm primeiro lugar um periacuteodo sensoacuterio-motor anterior agrave linguagem vecirc constituir-se uma loacutegica das accedilotildees (relaccedilotildees de ordem concatenaccedilatildeo de esquemas intersecccedilotildees estabelecimentos de correspondecircncia etc) fecunda em descobertas e mesmo invenccedilotildees (objetos permanentes organizaccedilatildeo do espaccedilo causalidade etc) Dos 2 aos 7 anos haacute uma conceptualizaccedilatildeo das accedilotildees logo representaccedilotildees com descoberta de funccedilotildees entre as co-variaccedilotildees de fenocircmenos identidades etc mas ainda sem operaccedilotildees reversiacuteveis nem conservaccedilotildees Estas duas uacuteltimas constituem-se ao niacutevel das operaccedilotildees concretas (7-10 anos) com lsquoagrupamentosrsquo logicamente estruturados mas ainda ligados agrave manipulaccedilatildeo de objetos Finalmente por volta dos 11-12 anos constitui-se uma loacutegica proposicional hipoteacutetico-dedutiva sem combinatoacuterio lsquoconjunto de partesrsquo grupos de quaternidade etcrdquo
7 A respeito da relaccedilatildeo entre conhecimento e realidade Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 81) assevera ldquoRecuso-me terminantemente por minha parte a pensar que as estruturas matemaacutetico-loacutegicas tivessem uma origem aleatoacuteria elas nada tecircm de fortuito natildeo eacute por seleccedilotildees de sobrevivecircncia que puderam constituir-se mas por uma adequaccedilatildeo propriamente dita e detalhada agrave realidaderdquo
Argus Romero Abreu de Morais | 103
acumulaccedilatildeo de saberes No primeiro caso atraveacutes da capacidade loacutegico-
matemaacutetica ndash capacidade racional ndash de interagir com o ambiente os
indiviacuteduos adquirem estruturas de comportamento ou morfoloacutegicas via
fenoacutetipo que ainda desprovidas de hereditariedade passam a modificar o
proacuteprio genoma humano de modo que a mudanccedila nos niacuteveis inferiores
incorre por consequecircncia nos niacuteveis superiores do meio epigeneacutetico Essa
aquisiccedilatildeo de ldquofenocoacutepiasrdquo seria de acordo com Piaget a responsaacutevel por
selecionar as variaccedilotildees ou mutaccedilotildees no proacuteprio genoma passando a serem
hereditaacuterias Isso explicaria no seu dizer o modo pelo qual a proacutepria
linguagem teria evoluiacutedo na espeacutecie humana8
No segundo caso pela forma como a realidade parece se organizar
por leis que em uacuteltima instacircncia seguem a loacutegica matemaacutetica Associada
agrave pureza das formas a praacutetica cientiacutefica seria a principal responsaacutevel por
intermediar a relaccedilatildeo entre o homem e o mundo criando instrumentais
teoacutericos que possam fazer com que aquele compreenda e transforme o seu
habitat Ademais como vimos o processo de desenvolvimento da
linguagem na crianccedila repetiria com alta semelhanccedila a evoluccedilatildeo das
proacuteprias descobertas cientiacuteficas (PIATELLI-PALMARINI 1983)9
Ao sugerir uma oacutetica sistecircmica para a construccedilatildeo do conhecimento
Piaget avanccedila agrave sua maneira na proposta de um sujeito processual
dinacircmico em detrimento da imutabilidade do sujeito cartesiano em
8 O conceito de fenocoacutepia eacute um dos principais vetores do debate Piaget-Chomsky Piaget (apud PIATELLI-
PALMARINI 1983 p 81-2) explica tal categoria da seguinte forma ldquoFenocoacutepia eacute um processo bioloacutegico em que certos comportamentos (eacute sobretudo vaacutelido no domiacutenio dos comportamentos) ou entatildeo uma certa forma ou estrutura morfoloacutegica satildeo primeiramente adquiridos pelo fenoacutetipo mas sem hereditariedade O fenoacutetipo pelo contraacuterio modifica o meio interior e modifica os niacuteveis superiores pelo meio epigeneacutetico e entatildeo as variaccedilotildees ou as mutaccedilotildees que podem produzir-se no genoma seratildeo selecionadas natildeo pelo meio exterior mas por esse meio interior ou epigeneacutetico que vai canalizaacute-las na mesma direccedilatildeo da conduta jaacute adquirida pelo fenoacutetipo por outras palavras haveria uma reconstruccedilatildeo geneacutetica ou gecircnica de uma aquisiccedilatildeo feita pelo fenoacutetipordquo
9 Sobre o tema Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 48) conclui ldquoPara periacuteodos mais vastos da histoacuteria eacute evidente que natildeo se encontra um paralelismo estaacutegio por estaacutegio mas eacute possiacutevel encontrar mecanismos comuns [] Ora deparamo-nos com um processo anaacutelogo [agrave histoacuteria da geometria ocidental] embora em escala reduzida nas crianccedilas as quais comeccedilam naturalmente pelo intrafigural mas descobrem por volta dos 7 anos que para determinar um ponto num plano natildeo basta uma medida sendo precisas duas que estejam dispostas de maneira ortogonal A essa etapa lsquointerfiguralrsquo (necessaacuteria tambeacutem para a construccedilatildeo de horizontais) sucede aquela que podemos denominar lsquotransfiguralrsquo em que as propriedades a descobrir natildeo podem ler-se numa uacutenica figura mas requerem uma deduccedilatildeo e um caacutelculo as curvas mecacircnicas os movimentos relativos etcrdquo
104 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Chomsky10 o qual antecede a experiecircncia Desse modo por um lado sua
perspectiva de geraccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da linguagem a partir dos
significantes sensoacuterio-motores ndash associaccedilatildeo de objetos a esquemas de accedilatildeo
ndash o opotildee ao modo pelo qual Chomsky entende o ldquonuacutecleo fixordquo da
linguagem por outro ao prescindir da opacidade do mundo em relaccedilatildeo agrave
linguagem bem como das rupturas e contradiccedilotildees advindas da histoacuteria
contrasta indiretamente sua teoria com a perspectiva do pensamento
sustentada por Foucault
O Algoritmo eacute o Sujeito
Se qualquer coisa fosse possiacutevel entatildeo nada seria possiacutevel
Noam Chomsky
Para Chomsky (1979) o ceacuterebro humano eacute arquitetado por diferentes
subsistemas inatos em interaccedilatildeo limitada os quais decorrem de distintos
processos evolutivos no Homo sapiens A linguagem seria uma dessas
faculdades isto eacute um subsistema da inteligecircncia humana que permite a
interface com o moacutedulo conceptual-intencional (semacircntico-pragmaacutetico) e
o perceptual-articulatoacuterio (sensoacuterio-motor) Sendo a forma da linguagem
restrita evolutivamente agraves formas representacionais possiacuteveis no ceacuterebro
humano pode-se adquirir apenas o que eacute biologicamente previsto11
Nesse vieacutes o empreendimento gerativista se baseia em pelo menos
trecircs hipoacuteteses importantes para as Ciecircncias Cognitivas em particular no
que toca agrave Linguiacutestica (I) a estrutura representacional do pensamento
humano eacute preacutevia a toda experiecircncia do corpo de modo que a linguagem
10 Sobre esse toacutepico Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 45) destaca ldquoMas o que os inatistas parecem esquecer de maneira surpreendente eacute que existe um mecanismo tatildeo geral quanto a hereditariedade e que num sentido ateacute a comanda eacute a auto-regulaccedilatildeo a qual desempenha um papel em todas as escalas desde o genoma e um papel tanto mais importante quanto mais se avizinha dos niacuteveis superiores e do comportamento A auto-regulaccedilatildeo cujas raiacutezes satildeo evidentemente orgacircnicas eacute assim comum aos processos vitais e mentais e suas accedilotildees tecircm aleacutem disso a grande vantagem de ser diretamente controlaacuteveis portanto eacute nessa direccedilatildeo e natildeo na da simples hereditariedade que conveacutem buscar a explicaccedilatildeo bioloacutegica das construccedilotildees cognitivas tanto mais que pelo jogo das regulaccedilotildees de regulaccedilotildees a auto-regulaccedilatildeo eacute por sua proacutepria natureza eminentemente construtivista (e dialeacutetica)rdquo
11 Para aprofundar essas questotildees sugerimos a leitura de Chomsky (2006 2008) e de Berwick e Chomsky (2017) Utilizaremos algumas passagens dessas obras no presente texto
Argus Romero Abreu de Morais | 105
deve ser explicada com relaccedilatildeo agrave heranccedila bioloacutegica da espeacutecie humana (II)
a linguagem humana eacute constituiacuteda por um conjunto de algoritmos ndash regras
de formaccedilatildeo ndash implementados no nosso ceacuterebro os quais fundariam o
ldquoestado inicial S0 geneticamente determinadordquo12 tambeacutem conhecido como
Gramaacutetica Universal (GU) a qual conteacutem os princiacutepios pelos quais pode-
se adquirir uma dada liacutengua natural ndash condicionada agrave experiecircncia humana
ndash ateacute chegar a um ldquoestado estacionaacuteriordquo (steady state) (III) a Linguiacutestica
deve se formalizar de modo a explicar como um indiviacuteduo eacute capaz de gerar
um nuacutemero infinito de frases em sua liacutengua vernaacutecula a partir de um
conjunto limitado de regras sintaacuteticas (infinitude discreta) em vista disso
a teoria chomskyana eacute chamada de Gramaacutetica Gerativa13
Se tanto Chomsky como Piaget parecem concordar com a existecircncia
de um ldquonuacutecleo fixordquo da linguagem o linguista norte-americano se afasta
do bioacutelogo suiacuteccedilo ao responder as duas principais criacuteticas piagetianas ao
seu modelo teoacuterico quais sejam (a) a inexplicabilidade das mutaccedilotildees na
espeacutecie humana responsaacuteveis por lhe dotar dessas estruturas inatas (b) a
consideraccedilatildeo da inteligecircncia sensoacuterio-motora na formaccedilatildeo da inteligecircncia
simboacutelica seria tatildeo eficiente quanto a hipoacutetese do inatismo na explicaccedilatildeo
da formaccedilatildeo desse ldquonuacutecleo fixordquo
12 Consoante Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoO desenvolvimento dessa pessoa (em um ambiente natural) efetua-se a partir do estado inicial S0 geneticamente determinado passa por uma sequecircncia de estados S1 S2 e atinge finalmente um lsquoestado estacionaacuteriorsquo (steady state) S8 o qual soacute parece entatildeo modificar-se de maneira secundaacuteria (digamos por acreacutescimo de vocabulaacuterio novo) O estado estacionaacuterio eacute alcanccedilado numa idade relativamente fixa aparentemente na puberdade ou um pouco antesrdquo
13 De acordo com Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoEle [investigador independente] abordaraacute ou deveria abordar o estudo das estruturas cognitivas como eacute o caso da linguagem humana de uma forma anaacuteloga agravequela como estudaria um oacutergatildeo do corpo ndash o olho ou o coraccedilatildeo por exemplo ndash a fim de determinar (I) as suas caracteriacutesticas num dado indiviacuteduo (II) suas propriedades gerais invariantes de uma espeacutecie agrave outra abstraccedilatildeo feita de todo o deacuteficit flagrante (III) seu lugar num sistema de estruturas desse tipo (IV) o curso do seu desenvolvimento no indiviacuteduo em questatildeo (V) o fundamento geneticamente determinado desse desenvolvimento (VI) os fatores que deram origem a esse oacutergatildeo no decorrer da evoluccedilatildeordquo No que concerne aos aspectos matemaacuteticos dos estudos da mente humana Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 2014 p 16) complementa ldquoEntendo por isso [teoria matemaacutetica da mente] simplesmente uma teoria abstrata articulada com precisatildeo e formulada com clareza que tenha consequecircncias empiacutericas que nos permita saber se a teoria estaacute certa ou errada ou se estaacute no caminho errado ou certo E que ao mesmo tempo tenha as propriedades da ciecircncia matemaacutetica isto eacute as propriedades do rigor e da precisatildeo e uma estrutura que nos permita deduzir conclusotildees a partir de hipoacuteteses e assim por dianterdquo Por fim Berwick e Chomsky (2017 p 108) esclarecem o que entendem por infinitude discreta ldquoDiscreta porque haacute frases de cinco palavras e frases de seis palavras mas nenhuma frase de cinco palavras e meia infinita porque natildeo haacute [virtualmente] uma frase que seja a frase mais longa da liacutenguardquo
106 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A esse respeito Chomsky responde que apesar de haver brechas na
teoria evolutiva no que concerne ao entendimento da seleccedilatildeo natural em
relaccedilatildeo ao corpo humano natildeo haacute outra compreensatildeo possiacutevel para
considerar a constituiccedilatildeo dos seus oacutergatildeos Nesse sentido considera-se que
a estrutura interna dos distintos oacutergatildeos do organismo bem como seu
desenvolvimento e funcionamento satildeo independentes das experiecircncias
ontogeneacuteticas do ser Isso o impede de concordar com a hipoacutetese das
fenocoacutepias a qual sugere que estruturas adquiridas poderiam ser
absorvidas pelo genoma
Como universalizar no desenvolvimento dos indiviacuteduos algo
adquirido Essa eacute uma questatildeo que de acordo com Chomsky natildeo pode
ser resolvida pelo mecanismo construtivo da autorregulaccedilatildeo o qual natildeo
limitaria o nuacutemero de estados possiacuteveis na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro A
soluccedilatildeo seria considerar que a mente se reduz causalmente ao ceacuterebro
Ademais a derivaccedilatildeo do sistema simboacutelico do estaacutegio sensoacuterio-motor na
crianccedila e a sua estabilizaccedilatildeo via processo de autorregulaccedilatildeo seriam
insuficientes para explicar o caraacuteter especiacutefico desse moacutedulo da
linguagem suas regras limites e relaccedilotildees com os demais aparatos da
inteligecircncia humana14
Chomsky (1977) relembra o curioso fato de tanto ele quanto Foucault
terem conseguido aproximar as suas opiniotildees acerca do tema da ldquonatureza
14 No dizer de Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 51) ldquoSe eacute verdade que ignoramos completamente como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias dotaram a espeacutecie humana da capacidade especiacutefica de aprender uma linguagem humana eacute igualmente verdadeiro que tambeacutem ignoramos como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias conduziram ao desenvolvimento das estruturas particulares do olho dos mamiacuteferos ou do coacutertex cerebral Natildeo concluiacutemos portanto
que essas estruturas em sua natureza fundamental no indiviacuteduo que chegou agrave maturidade satildeo determinadas por interaccedilatildeo com o meio ambiente []rdquo Berwick e Chomsky (2017 p 104 Itaacutelico dos autores) detecircm-se exclusivamente sobre o fato de a linguagem humana ser exclusiva agrave nossa espeacutecie e de sua breve existecircncia ser possiacutevel dentro de uma teoria evolucionista que considere aleacutem dos processos seletivos e adaptativos claacutessicos as mutaccedilotildees e os efeitos estocaacutesticos da Biologia Moderna ldquoDe maneira completamente desconhecida nossos antepassados desenvolveram conceitos humanos Em algum momento no passado muito recente ao que parece algum tempo antes de 80 mil anos atraacutes se pudermos julgar a partir de nossos representantes simboacutelicos indiviacuteduos em um pequeno grupo de hominiacutedeos na Aacutefrica Oriental sofreram uma pequena mudanccedila bioloacutegica que favoreceu o surgimento da operaccedilatildeo Merge ndash uma operaccedilatildeo que toma conceitos humanos como aacutetomos computacionais [leacutexico] e produz expressotildees estruturadas que sistematicamente interpretadas pelo sistema conceitual fornecem uma rica linguagem do pensamento [] A inovaccedilatildeo teve vantagens oacutebvias e se disseminou pelo pequeno grupo Em algum estaacutegio posterior a linguagem do pensamento interna estava ligada ao sistema sensoacuterio-motor []rdquo De acordo com essa abordagem a linguagem emerge como ldquoferramentardquo para o pensamento (foco na internalizaccedilatildeo) e natildeo para a comunicaccedilatildeo (foco na externalizaccedilatildeo) garantindo agravequeles que a possuem as vantagens da abstraccedilatildeo inferecircncia interpretaccedilatildeo organizaccedilatildeo da accedilatildeo e do planejamento em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que natildeo a possuem
Argus Romero Abreu de Morais | 107
humanardquo enquanto que o mesmo natildeo ocorreu com relaccedilatildeo agravequele
relacionado ao ldquoaspecto poliacutetico do saberrdquo A seu ver isso pode ser
explicado pela seguinte metaacutefora ldquoQuanto ao conceito de natureza
humana pareceu-me que cavaacutevamos a mesma montanha a partir de
direccedilotildees opostasrdquo (CHOMSKY 1977 p 78-9)
Embora seja difiacutecil supor um consenso entre o pesquisador norte-
americano defensor do inatismo da linguagem e o filoacutesofo francecircs um
dos principais nomes da empreitada filosoacutefica do ldquodescentramento do
sujeitordquo o primeiro supotildee que no fim das contas isso eacute possiacutevel pelo fato
de eles se deterem sobre as mesmas questotildees embora partindo de pontos
diferentes Para Chomsky (1977) a pesquisa cientiacutefica eacute devedora de dois
aspectos 1) as propriedades constituintes do espiacuterito e 2) as condiccedilotildees
sociais e intelectuais que possibilitam a emergecircncia e a consolidaccedilatildeo dos
saberes em um dado periacuteodo histoacuterico Natildeo se trataria de excluir um ou
outro pois ambos estatildeo relacionados Ele se deteria sobre o primeiro
abordando os processos de aquisiccedilatildeo e de desenvolvimento da linguagem
nos indiviacuteduos enquanto Foucault priorizaria a anaacutelise das condiccedilotildees
histoacutericas que possibilitam a conformaccedilatildeo social do conhecimento em
meio agraves relaccedilotildees de saber-poder (CHOMSKY 1977)15
15 Apesar de essa argumentaccedilatildeo parecer dirimir as distinccedilotildees epistemoloacutegicas dos autores via complementaridade o vieacutes chomskyano prioriza sempre os argumentos relacionados agraves estruturas cerebrais humanas em detrimento do vieacutes sociocultural foucaultiano inclusive quando tratam dos paracircmetros de cientificidade na produccedilatildeo do conhecimento humano como nos deixa entrever o seguinte raciociacutenio ldquoOra quando por felicidade acontece de algum aspecto da realidade conter a propriedade de uma das estruturas existentes em nossa mente entatildeo temos um
exemplo do conhecimento Isso quer dizer que afortunadamente a estrutura da nossa mente e a estrutura de algum aspecto da realidade coincidem o bastante para que possamos desenvolver um conhecimento inteligiacutevel Eacute exatamente essa limitaccedilatildeo inicial que existe em nossa mente quanto a certo tipo de conhecimento possiacutevel que proporciona a enorme riqueza e criatividade do conhecimento cientiacuteficordquo (CHOMSKY 2014 p 34) A ldquocoincidecircncia suficienterdquo entre as propriedades da mente e as propriedades do mundo parece curiosamente aproximar Chomsky de Piaget ou pelo menos do que o linguista norte-americano denomina de ldquodoutrinas do referencialismordquo abrindo a nosso ver uma possiacutevel contradiccedilatildeo teoacuterica com as seguintes passagens ldquoOs siacutembolos da linguagem humana e do pensamento satildeo muito diferentes [em relaccedilatildeo ao dos chimpanzeacutes] Seu uso natildeo estaacute automaticamente condicionado por estados emocionais e eles natildeo dependem de objetos independentes da mente ou eventos no mundo externo Para a linguagem e o pensamento ao que parece natildeo haacute uma relaccedilatildeo de referecircncia no sentido de Frege Peirce Tarski Quine e da filosofia contemporacircnea da linguagem e da menterdquo (BERWICK CHOMSKY 2017 p 102 Itaacutelico dos autores) Pouco depois Berwick e Chomsky (2017 p 103 Itaacutelicos dos autores) redefinem a referecircncia como um ldquoideal normativordquo para a ciecircncia ldquoPara a ciecircncia o conceito de referecircncia no sentido teacutecnico eacute um ideal normativo esperamos que os conceitos inventados de foacuteton ou de sintagma verbal se refiram a alguma coisa real dono mundo E eacute claro que o conceito de referecircncia eacute muito bom para o contexto para o qual foi inventado na loacutegica moderna para os sistemas formais em que a relaccedilatildeo de referecircncia eacute estipuladardquo Resta-nos perguntar qual o paracircmetro para
108 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Se Chomsky recorre a Descartes para estabelecer parte dos
fundamentos filosoacuteficos do Gerativismo notadamente no que concerne
ao entendimento da relaccedilatildeo entre sujeito cognoscente e objeto
cognosciacutevel16 pauta-se no corte copeacuternico-galileano da fundaccedilatildeo da ciecircncia
moderna para definir o modelo hipoteacutetico-dedutivo na pesquisa
linguiacutestica17 Logo o problema do conhecimento no sujeito eacute tambeacutem o
problema do que pode ser conhecido no mundo almejando compreender
tanto como as estruturas cognitivas humanas permitem o desvendamento
das estruturas da realidade vivenciada como a melhor forma de organizar
as primeiras no intuito de desenvolver programas investigativos
sistemaacuteticos Esse problema epistemoloacutegico eacute transversal a Piaget
Chomsky e Foucault em suas empreitadas teoacutericas de modo que eacute nesse
ponto em que suas distintas teorias sobre a formaccedilatildeo do ser tocam no
entendimento da Histoacuteria das Ciecircncias englobando a constituiccedilatildeo dos
campos disciplinares a validade das proposiccedilotildees cientiacuteficas e a
transformaccedilatildeo dos seus pressupostos ao longo do tempo
distinguir quais conceitos coincidem com a realidade e quais natildeo Quais os limites do imaginaacuterio humano em relaccedilatildeo ao simboacutelico e ao real
16 Nesse ponto Chomsky (2008 p 28) por vezes se ancora em Descartes Kant e Leibniz aproximando suas contribuiccedilotildees filosoacuteficas daquelas de Franccedilois Jacob e Jacques Monod ndash tambeacutem presentes no debate Piaget-Chomsky ndash para o entendimento da neurofisiologia da linguagem ldquoAcho que Monod estaacute certo ao comentar que lsquoessas descobertas [sobre um sistema analiacutetico primitivo em animais natildeo-humanos] apoiam num sentido novo as teses de Descartes e Kant contrariamente ao empirismo radical que tem dominado a ciecircncia por dois seacuteculos e que lanccedila suspeitas sobre qualquer hipoacutetese que postule a natureza inata das formas de conhecimentorsquo Ateacute onde sabemos os animais aprendem de acordo com um programa determinado geneticamente Natildeo haacute razatildeo para duvidar que isto seja verdade tambeacutem no que se refere lsquoagraves categorias fundamentais do conhecimento humanorsquo []rdquo Sobre o papel da experiecircncia na aprendizagem lembra ldquoQue a experiecircncia seja um requisito para colocar em funcionamento estruturas inatas ou para ativar um sistema de ideias inatas eacute algo admitido de modo bastante expliacutecito por Descartes
Leibniz e outros como parte de teorias que dificilmente podem ser consideradas lsquoempiristasrsquo []rdquo (CHOMSKY 2008 p 32-3) Em outra passagem afirma ldquoA ideia eacute lsquoinato agrave mentersquo no sentido em que Descartes argumentou que lsquoa ideia de um triacircngulo verdadeirorsquo eacute inatardquo (CHOMSKY 2008 p 48)
17 Sobre a importacircncia do corte copeacuternico-galileano para o estabelecimento do meacutetodo cientiacutefico moderno e consequentemente para a formaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Chomsky (2006 p 121) ressalta ldquoO que foi notaacutevel com respeito a Galileu e considerado muito ofensivo na eacutepoca foi que ele rejeitou muitos dados Ele estava disposto a dizer lsquoVejam se os dados refutam a teoria os dados provavelmente estatildeo erradosrsquo E os dados que descartou natildeo eram insignificantes Por exemplo ele defendia a tese de Copeacuternico mas natildeo era capaz de explicar porque os corpos natildeo se desprendiam da Terra se a Terra estaacute girando por que tudo natildeo estaacute solto no espaccedilordquo Em seguida complementa ldquoBem tudo isso eacute parte do que vocecirc poderia chamar de lsquoestilo galileanorsquo dedicaccedilatildeo agrave busca do entendimento natildeo apenas do registro O registro dos fenocircmenos em si eacute insignificante [] [] O reconhecimento de que esse eacute o caminho que a ciecircncia deve seguir se quisermos buscar o entendimento [] eacute um passo bastante grande e que tem muitas partes como a estrateacutegia galileana de descartar fenocircmenos recalcitrantes quando isso implicar um aumento de compreensatildeo a maior preocupaccedilatildeo poacutes-newtoniana com a inteligibilidade das teorias do que com o mundo e assim por dianterdquo (CHOMSKY 2006 p 125-6)
Argus Romero Abreu de Morais | 109
Para Foucault (CHOMSKY 2014) o problema da perspectiva
argumentativa de Chomsky (1977) estaria em natildeo reconhecer o fato de que
os lados da montanha natildeo podem ser separados de forma estanque pondo
o indiviacuteduo-sujeito de um lado e a constituiccedilatildeo histoacuterica do saber de
outro Isso ocasionaria um vieacutes metafiacutesico na explicaccedilatildeo da subjetividade
humana a qual poderia transformar sem ser transformada De certo
modo de tatildeo racionalista o vieacutes chomskyano entraria no campo do
idealismo rompendo com o vieacutes materialista da anaacutelise teoacuterica Tomando
por base esse raciociacutenio perguntamo-nos os domiacutenios histoacutericos do saber
possibilitam a constituiccedilatildeo e a emergecircncia das propriedades constituintes
do espiacuterito em um dado indiviacuteduo Passaremos a essa questatildeo na seccedilatildeo
seguinte
Pensamento e Discurso
E se o intelecto fosse uma estrutura complexa muacuteltipla e natildeo individual natildeo
lsquosujeita ao sujeitorsquo que produzisse resultados autecircnticos
Michel Foucault
O projeto filosoacutefico foucaultiano se interessa pelo entendimento
daquilo que ele chama de saber discursivo de modo a estabelecer uma
perspectiva da Histoacuteria das Ciecircncias ou das Ideias que natildeo se atenha agrave
criatividade centrada no indiviacuteduo no sujeito falante e no cientista assim
como na continuidade cumulativa do conhecimento Destarte o que se
estabelece como verdadeiro em cada periacuteodo histoacuterico depende da
maneira como uma dada sociedade organiza a validade ndash inclusive a
cientificidade ndash de determinados dizeres e por consequecircncia exclui a de
outros criando mecanismos sociais de controle do que se pode ou deve
dizer sobre um dado objeto
Para Foucault a liacutengua como sistema de signos criado socialmente
conforme definida por Saussure (2006) natildeo se reduz ao discurso
possuindo uma ordem simboacutelica proacutepria com sua loacutegica e suas regras
Consoante o linguista suiacuteccedilo a liacutengua seria uma forma sendo equivocado
110 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
consideraacute-la como uma substacircncia visto que como fato social ela
funciona tambeacutem como instituiccedilatildeo estabelecendo normas classificaccedilotildees e
nomenclaturas Ela seria aleacutem disso o principal sistema organizador da
linguagem humana sendo o signo a junccedilatildeo de um conceito (significado) a
uma imagem acuacutestica (significante) ambos psiacutequicos e em relaccedilatildeo
negativa com o mundo em si O valor de um dado signo se daacute por oposiccedilatildeo
aos demais maneira pela qual estabelece suas relaccedilotildees no sistema
linguiacutestico
Segundo Foucault (2008) a liacutengua natildeo se materializa no vaacutecuo pois
para que possa produzir sentido eacute recortada pela funccedilatildeo discursiva um
modo histoacuterico de organizaacute-la em zonas do conhecimento atribuindo-lhe
conceitos isto eacute objetos Liacutengua e discurso se atravessam pela funccedilatildeo
enunciativa18 constituindo os limites da cogniccedilatildeo humana Tratar-se-ia
portanto natildeo do pensamento do sujeito mas do pensaacutevel no sujeito natildeo
do dizer do falante mas do diziacutevel pelo falante os quais necessitam de preacute-
formaccedilotildees do saber histoacuterico para que possam constituir os estados
mentais e as possibilidades de fala nos indiviacuteduos19 Natildeo haacute assim
anterioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem sob pena de o
18 Nesta seccedilatildeo em alguns momentos remeteremos aos raciociacutenios de Foucault (2008) como forma de aprofundar sua perspectiva e instrumentais teoacutericos os quais natildeo satildeo trabalhados precisamente em Chomsky (2014) Sobre a singularidade do enunciado em relaccedilatildeo agraves demais categorias de estudos da linguagem Foucault (2008 p 103 Itaacutelicos nossos) esclarece ldquoUm enunciado natildeo tem diante de si (e numa espeacutecie de conversa) um correlato - ou uma ausecircncia de correlato assim como uma proposiccedilatildeo tem um referente (ou natildeo) ou como um nome proacuteprio designa um indiviacuteduo (ou ningueacutem) Estaacute antes ligado a um lsquoreferencialrsquo que natildeo eacute constituiacutedo de lsquocoisasrsquo de lsquofatosrsquo de lsquorealidadesrsquo ou de lsquoseresrsquo mas de leis de possibilidade de regras de existecircncia para os objetos que aiacute se encontram nomeados designados ou descritos para as relaccedilotildees que aiacute se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condiccedilatildeo o campo de emergecircncia a instacircncia de diferenciaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou dos
objetos dos estados de coisas e das relaccedilotildees que satildeo postas em jogo pelo proacuteprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitaccedilatildeo do que daacute agrave frase seu sentido agrave proposiccedilatildeo seu valor de verdaderdquo
19 Sobre o assunto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 23 Itaacutelicos nossos) destaca ldquoQuando estudamos a histoacuteria do conhecimento percebemos que existem duas linhas gerais de anaacutelise de acordo com uma delas deve-se demonstrar como sob que condiccedilotildees e por que razotildees o intelecto se modifica no que diz respeito a suas regras formadoras sem passar por um lsquoinventorrsquo que descobre a verdade e de acordo com a outra deve-se demonstrar como o funcionamento das regras de um intelecto pode produzir num indiviacuteduo conhecimento novo e ineacutedito Aqui meu objetivo junta-se com meacutetodos imperfeitos e de uma forma bem inferior ao projeto do sr Chomsky ao explicar o fato de que algumas poucas regras ou elementos precisos totalidades desconhecidas que nunca foram nem produzidas podem ser elucidadas pelos indiviacuteduos Para resolver este problema o sr Chomsky tem de reintroduzir o dilema do sujeito no campo da anaacutelise gramatical Para resolver um problema anaacutelogo no campo da histoacuteria com o qual me encontro envolvido eacute preciso fazer o oposto de certo modo introduzir o ponto de vista do intelecto de suas regras de seus sistemas de suas transformaccedilotildees de totalidades no jogo do conhecimento individual Tanto em um como no outro caso o problema da criatividade natildeo pode ser resolvido da mesma maneira ou melhor natildeo pode ser formulado nos mesmos termos dada a condiccedilatildeo das disciplinas em cujo interior ele eacute colocadordquo
Argus Romero Abreu de Morais | 111
primeiro funcionar como uma instacircncia imaterial pura sem
temporalidade nem espacialidade
Sendo a linguagem uma produccedilatildeo social anterior ndash externalizada ndash
aos indiviacuteduos (seres orgacircnicos) deve-se considerar que as formas
simboacutelicas satildeo as responsaacuteveis pela instituiccedilatildeo do sujeito (aquele que
concretiza o enunciado) natildeo sendo os primeiros a dizerem o que dizem
natildeo satildeo tambeacutem o locus da gecircnese semacircntica Engajar-se numa situaccedilatildeo
de produccedilatildeo de sentidos eacute necessariamente posicionar-se ndash ou ser
posicionado ndash de acordo com as regras enunciativas vivenciadas e
institucionalizadas em sociedade Os enunciados representam as regras
historicizadas da forma de pensar e natildeo o revelar da intencionalidade e
do conhecimento em si por vezes tidos como a priori universais em
relaccedilatildeo agravequelas20 Logo como emergecircncia das organizaccedilotildees histoacutericas do
pensamento em distintas praacuteticas sociais o sujeito irrompe fragmentado
visto que sua internalidade decorre das descontinuidades dos saberes que
lhe atravessam natildeo sendo possiacutevel encontrar sua essecircncia nem na
interioridade do espiacuterito (FOUCAULT 2008) O sujeito torna-se portanto
uma instacircncia simboacutelica fugidia e clivada uma forma natildeo uma substacircncia
Agora pode-se compreender com mais clareza o motivo pelo qual
Foucault (CHOMSKY 2014) sustenta que a competecircncia natildeo eacute inata assim
como as regras do pensamento humano natildeo satildeo matemaacuteticas As
regularidades se devem aos sistemas enunciativos e estes satildeo submetidos
agraves contradiccedilotildees histoacutericas decorrentes das diversas formas de organizaccedilatildeo
dos homens em sociedade A proacutepria verdade sobre um objeto portanto
20 No que concerne agrave criatividade na linguagem conceito central na abordagem chomskyana Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 27 Itaacutelicos nossos) afirma ldquoO que de fato existe satildeo criaccedilotildees possiacuteveis inovaccedilotildees possiacuteveis Em termos de linguagem ou de conhecimento soacute se pode criar algo novo aplicando determinado nuacutemero de regras que definiratildeo a aceitabilidade ou a gramaticalidade dessas afirmaccedilotildees ou que definiratildeo no caso do conhecimento o caraacuteter cientiacutefico das afirmaccedilotildeesrdquo Em seguida acrescenta ldquoTambeacutem natildeo vejo problema em dizer que essas regras devem permitir que compreendamos aquilo que eacute falado ou pensado por esses indiviacuteduos Mas dizer que essas regulamentaccedilotildees estatildeo conectadas como precondiccedilatildeo da existecircncia agrave mente humana ou [agrave] sua natureza eacute algo difiacutecil de aceitar para mim Parece-me que antes de chegar a esse ponto ndash e seja como for estou me referindo apenas ao conhecimento ndash devemos reinseri-las no acircmbito de outras praacuteticas humanas como a economia a tecnologia a poliacutetica a sociologia que podem servir-lhes como condiccedilotildees de formaccedilatildeo de modelos de lugar de surgimento etc Gostaria de saber por que natildeo se pode descobrir o sistema de regularidade de limitaccedilatildeo ndash que torna a ciecircncia possiacutevel ndash em outro lugar mesmo fora da mente humana nos sistemas sociais nas relaccedilotildees de produccedilatildeo na luta de classes etcrdquo (FOUCAULT apud CHOMSKY 2014 p 36)
112 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
estaria submetida agrave temporalidade da histoacuteria e natildeo a uma descoberta
apesar da histoacuteria Assim em uacuteltima instacircncia a verdade estaria
condicionada agrave historicidade das ideias visto que a veracidade de um dado
referente decorre dos regimes de verdade os quais satildeo criados e
reproduzidos pelos grupos e instituiccedilotildees sociais bem como pelas relaccedilotildees
de forccedila instituiacutedas entre eles em cada sociedade (FOUCAULT 2008)
Para o filoacutesofo a proacutepria noccedilatildeo de ldquonatureza humanardquo natildeo se
configuraria como um conceito cientiacutefico funcionando mais como uma
espeacutecie de ldquoindicador epistemoloacutegicordquo que organiza distintas incursotildees
cientiacuteficas ao longo do seacuteculo XX21 Nesse sentido podemos entender que em
uma abordagem discursiva da relaccedilatildeo pensamentolinguagemmundo a
proacutepria forma deve ceder espaccedilo ao funcionamento22 Isso significa que
Foucault almeja desconstruir a psicologia interna dos sujeitos nos seguintes
termos constituiccedilatildeo social da linguagem (externalismo em oposiccedilatildeo ao
internalismoinatismo) rarr regras de enunciaccedilatildeo histoacutericas rarr
discursividades rarr pensamento rarr fala rarr condiccedilotildees de enunciaccedilatildeo rarr
sujeito do discurso (subjetividade imanente agrave linguagem em oposiccedilatildeo agrave
subjetividade transcendente) rarr praacutetica discursiva (FOUCAULT 2008)
A singularidade de uma produccedilatildeo discursiva decorre do fato de a
liacutengua(gem) por consequecircncia o proacuteprio pensamento soacute se materializar
em uma dada praacutetica constrangida por possibilidades que natildeo satildeo da sua
proacutepria ordem23 A infinidade de possibilidades para a realizaccedilatildeo de um
21 Ao comentar sobre a ldquonatureza humanardquo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 8 Itaacutelicos nossos) pondera ldquoNatildeo foi estudando a natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutaccedilatildeo consonantal que Freud descobriu
os princiacutepios da anaacutelise dos sonhos ou que os antropoacutelogos culturais descobriram as estruturas dos mitos Tenho a impressatildeo de que na histoacuteria do conhecimento a ideia de natureza humana desempenhou principalmente o papel de um indicador epistemoloacutegico [semelhante ao ideal normativo de Berwick e Chomsky (2017)] para designar certos tipos de discurso relacionados ou contraacuterios agrave teologia agrave biologia ou agrave histoacuteria Para mim seria difiacutecil ver nisso um conceito cientiacuteficordquo
22 Sobre esse aspecto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 36) pontua ldquoTalvez a diferenccedila entre o sr Chomsky e eu seja que quando fala de ciecircncia ele provavelmente estaacute pensando na organizaccedilatildeo formal do conhecimento enquanto eu estou falando do conhecimento em si ou seja eu penso no conteuacutedo de diversos conhecimentos que se encontram dispersos numa sociedade especiacutefica que permeiam a sociedade e que se afirmam como o fundamento da educaccedilatildeo das teorias das praacuteticas etcrdquo
23 Segundo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 21 Itaacutelicos nossos) ldquoO que me preocupa eacute a substituiccedilatildeo das transformaccedilotildees do intelecto pela histoacuteria das descobertas do conhecimento Desse modo eu tenho ao menos aparentemente uma atitude completamente diferente da do sr Chomsky a propoacutesito da criatividade porque para mim a questatildeo eacute eliminar o dilema do sujeito cognoscente enquanto para ele a questatildeo eacute permitir que o dilema do sujeito falante reapareccedila Poreacutem se ele o fez reaparecer se ele o descreveu eacute porque tem condiccedilotildees de fazecirc-lo Jaacute faz
Argus Romero Abreu de Morais | 113
enunciado natildeo representa a sua aleatoriedade pois esse gozaria de uma
caracteriacutestica semelhante agrave linguagem em Chomsky tendendo agrave raridade
das suas regras A diferenccedila entre o algoritmo no Gerativismo e a funccedilatildeo
enunciativa na perspectiva discursiva de Foucault eacute que esta uacuteltima se
constitui externamente ao espiacuterito sendo adquirida pelas experiecircncias em
sociedade Essa espeacutecie de empirismo histoacuterico natildeo se associa ao
comportamentalismo skinneriano dado que natildeo se funda na
transparecircncia da relaccedilatildeo entre o sistema perceptual e o mundo e na
consequente abstraccedilatildeo das relaccedilotildees dos objetos pela induccedilatildeo direta A
linguagem eacute opaca ndash indeterminada ndash em sua estrutura fundamental
sendo o sujeito sua consequecircncia
Eacute nesse ponto que Chomsky pode ter visto semelhanccedila entre a sua
abordagem e a de Foucault de modo que o filoacutesofo francecircs natildeo abandona
necessariamente as capacidades da inteligecircncia humana apenas se opotildee agrave
reduccedilatildeo dos conceitos a sistemas loacutegicos a priori no espiacuterito Ambos
parecem concordar que a linguagem funda um limite do possiacutevel no ser
considerando-a como instacircncia que aponta recursivamente para si mesma
e que demarca os estados finitos do dizer e de suas propriedades de
encadeamento diferentemente do sujeito tendencialmente onipotente
piagetiano e de seu ajuste em relaccedilatildeo agraves estruturas loacutegicas do mundo
Por fim podemos concluir que Chomsky e Foucault satildeo
antirreferencialistas na medida em que negam a relaccedilatildeo direta entre
palavra e objeto24 Opotildeem-se contudo na associaccedilatildeo ao estruturalismo
saussureano para o qual a liacutengua eacute uma entidade coletiva fundada em uma
espeacutecie de contrato social e natildeo um objeto bioloacutegico internalizado como
pretende o Gerativismo Em semelhanccedila com Piaget para Foucault
(2008) o sujeito natildeo eacute uma preacute-formaccedilatildeo do espiacuterito pois se constitui na
relaccedilatildeo dinacircmica entre estruturas simboacutelicas natildeo-inatas e experiecircncias em
sociedade embora segundo o estudioso francecircs a gecircnese deva ceder
muito tempo que os linguistas tecircm analisado a linguagem como um sistema que possui valor coletivo [dentre os quais Saussure] O intelecto como uma soma coletiva de regras que possibilitam que tais conhecimentos sejam produzidosem determinado periacuteodo mal foi estudado ateacute agorardquo
24 Ver aparente paradoxo em Chomsky na nota 15
114 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
espaccedilo agrave singularidade os universais semacircnticos agraves contingecircncias o
indiviacuteduo agrave subjetividade e a loacutegica matemaacutetica agrave dinacircmica histoacuterica Em
siacutentese Foucault sustenta que tanto o pensamento humano quanto os
sistemas de pensamento se organizam pela descontinuidade das ideias
frutos da emergecircncia de possiacuteveis histoacutericos e de horizontes de validade
dos conhecimentos25
Consideraccedilotildees Finais
Cada praacutetica teoacuterica constroacutei os seus limites e as suas potencialidades
dentro de um domiacutenio mais vasto dos saberes Tais diaacutelogos natildeo satildeo
desinteressados pois propotildeem construir ou desconstruir pontes do
conhecimento autorizar ou desautorizar o olhar do outro definir enfim
a si e ao outro enquanto campo do saber No que concerne a este trabalho
retomamos os debates entre Piaget Chomsky e Foucault para demonstrar
que a AD natildeo estaacute alheia aos aspectos cognitivos dos sujeitos apenas os
incorpora a uma perspectiva de historicidade radical da linguagem Pode-
25 No dizer de Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 32 Itaacutelicos do autor) ldquoExiste haacute muito tempo a ideia de que as ciecircncias e o conhecimento seguiam certa linha de lsquoprogressorsquo obedecendo ao princiacutepio de lsquocrescimentorsquo e ao princiacutepio de convergecircncia de todos os tipos de saber [] Cada nova versatildeo torna o conhecimento completamente diferente em suas funccedilotildees em sua organizaccedilatildeo em suas relaccedilotildees internas O que se tem aiacute eacute um princiacutepio de divergecircncia muito mais do que de crescimento Eu diria antes que existem muitas maneiras diferentes de tornar possiacuteveis simultaneamente alguns tipos de conhecimento Portanto existe sempre de certo ponto de vista um excesso de informaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos possiacuteveis sistemas em determinado periacuteodo o que faz com que eles sejam conhecidos dentro de seus limites mesmo em sua deficiecircncia o que significa que natildeo se consegue perceber sua criatividade E de outro ponto de vista o do historiador existe um excesso uma proliferaccedilatildeo de sistemas para uma pequena quantidade de informaccedilatildeo daiacute a ideia amplamente difundida de que o que determina o movimento na histoacuteria da
ciecircncia eacute a descoberta de novos fatosrdquo Eacute notoacuteria a proximidade entre a perspectiva foucaultiana de saber descontinuidade e acontecimento discursivo na Histoacuteria das Ciecircncias e aquela de paradigma descontinuidade e revoluccedilatildeo cientiacutefica desenvolvida por Kuhn (1998 [1962] p 20-1) como podemos notar a seguir ldquoPreocupado com o desenvolvimento cientiacutefico o historiador parece entatildeo ter duas tarefas principais De um lado deve determinar quando e por quem cada fato teoria ou lei cientiacutefica contemporacircnea foi descoberta ou inventada De outro lado deve explicar os amontoados de erros mitos e supersticcedilotildees que inibiram a acumulaccedilatildeo mais raacutepida dos elementos constituintes do moderno texto cientiacutefico [] Contudo nos uacuteltimos anos alguns historiadores estatildeo encontrando mais e mais dificuldades para preencher as funccedilotildees que lhe satildeo prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulaccedilatildeo [] Talvez a ciecircncia natildeo se desenvolva pela acumulaccedilatildeo de descobertas e invenccedilotildees individuaisrdquo No capiacutetulo ldquoAs revoluccedilotildees como concepccedilotildees de mundordquo o fiacutesico acrescenta ldquoGuiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direccedilotildees E o que eacute ainda mais importante durante as revoluccedilotildees os cientistas veem coisas novas e diferentes quando empregando instrumentos familiares olham para os mesmos pontos jaacute examinados anteriormente Eacute como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares satildeo vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidosrdquo (KUHN 1998 p 145-6)
Argus Romero Abreu de Morais | 115
se com isso demonstrar os limites das abordagens logicizantes da relaccedilatildeo
pensamentolinguagemmundo aspecto transversal ao Construtivismo e
ao Gerativismo No sentido contraacuterio entendemos que a AD deve testar
seus fundamentos teoacutericos a partir da problemaacutetica da aquisiccedilatildeo da
linguagem a qual continuaremos a explorar em trabalhos futuros tendo
por foco avaliar os fundamentos epistemoloacutegicos de uma aquisiccedilatildeo do
discurso
Referecircncias
BERWICK R CHOMSKY N Por que apenas noacutes Linguagem e evoluccedilatildeo Satildeo Paulo
Editora Unesp 2017 [2016]
CHOMSKY N Diaacutelogos com Mitsuo Ronat Satildeo Paulo Cultrix 1977
_____ Sobre o minimalismo In CHOMSKY N Sobre natureza e linguagem Satildeo Paulo
Martins Fontes 2006 [1999] p 113-200
_____ Problemas do conhecimento e da liberdade Rio de janeiro Record 2008 [1971]
_____ Natureza humana justiccedila vs poder o debate entre Chomsky e Foucault Satildeo
Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 [1974]
FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2008
[1969]
KUHN T A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1998
[1962]
PIATELLI-PALMARINI M (Org) Teorias da linguagem teorias da aprendizagem o
debate entre Jean Piaget amp Noam Chomsky Satildeo Paulo Cultrix Editora da
Universidade de Satildeo Paulo 1983 [1979]
SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Satildeo Paulo Cultrix 2006 [1916]
6
Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche
A Leitura de Guumlnter Abel
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa 1
O presente texto esboccedila uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento de
Nietzsche e a filosofia da mente no que diz respeito ao tratamento de
algumas questotildees centrais aiacute presentes ndash em particular o problema da
consciecircncia no debate entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo
entre processos fiacutesicos e mentais Para a compreensatildeo de tais questotildees o
pensamento nietzscheano ndash aqui mediado pela interpretaccedilatildeo de Guumlnter
Abel ndash mostra sua relevacircncia e atualidade no sentido de uma superaccedilatildeo
daquela dicotomia
Em ldquoConsciecircncia ndash linguagem ndash natureza a filosofia da mente em
Nietzscherdquo (ABEL 2005 p 1-41)2 Abel parte da anaacutelise de alguns aspectos
da investigaccedilatildeo atual em filosofia da mente para a partir de uma exegese
do corpus nietzscheano3 apontar para sua pertinecircncia e relevacircncia dentro
desse contexto As reflexotildees de Nietzsche acerca dos acircmbitos e das relaccedilotildees
entre consciecircncia natureza e linguagem ndash a limitaccedilatildeo do consciente pelo
natildeo consciente a formaccedilatildeo de conceitos e da memoacuteria a ideia de natureza
como conjunto complexo de forccedilas por exemplo ndash mostram a importacircncia
que essa triacuteade tem para o seu pensamento
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE)
2 Esse texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001) Berlim De Gruyter
3 Em particular trechos da Gaia ciecircncia e Aleacutem de bem e mal bem como fragmentos poacutestumos de 1884 a 1887 contidos em KSA nos vols X XI XII e XIII da ediccedilatildeo criacutetica de G Colli e M Montinari (1999a 1999b 1999c 1999d)
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 117
O foco da anaacutelise de Abel recai sobre o debate ndash renovado na
atualidade apoacutes a chamada ldquoreviravolta linguiacutesticardquo iniciada por
Wittgenstein e a ldquoredescoberta da consciecircnciardquo (ABEL 2005 p 199) pela
filosofia analiacutetica ndash entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo
entre processos fiacutesicos e mentais em particular os processos consciente-
mentais Segundo Abel de uma maneira geral duas posturas antagocircnicas
podem daqui emergir de um lado a tese do materialismo fisicalismo
monista a defender que estados e processos mentais satildeo tatildeo somente
fenocircmenos da mateacuteria de outro a tese do mentalismo dualista que
defende a irredutibilidade daqueles a estes Ambas as posturas no entanto
por suas proacuteprias limitaccedilotildees natildeo poderiam ser superadas uma pela outra
Precisamente pela ldquoarmaccedilatildeo conceitual que implica ou tem como
consequecircncia essa natildeo resoluccedilatildeordquo (ABEL 2005 p 206) ter-se-ia entatildeo um
impasse E soacute uma modificaccedilatildeo na arquitetura mesma dessa armaccedilatildeo
conceitual tornaria possiacutevel um encaminhamento do problema de modo a
indicar as condiccedilotildees sob as quais ele natildeo poderia mais ocorrer
Os elementos de interpretaccedilatildeo apropriados a essa modificaccedilatildeo
poderiam ser encontrados segundo Abel no pensamento nietzscheano A
tese que defende e que aqui procuraremos expor eacute a de que as criacuteticas
realizadas por Nietzsche agrave questatildeo da consciecircncia expondo seus limites
apontam para uma reinterpretaccedilatildeo do fenocircmeno que natildeo se deixa reduzir
a um mero fisicalismo naturalista nem tampouco se deixa levar por uma
hipoacutestase do conceito-modelo ldquoConsciecircnciardquo A triacuteade acima citada seria
nesse sentido natildeo soacute de fundamental importacircncia para a compreensatildeo do
pensamento nietzscheano como por outro lado seu pensamento a esse
respeito ndash ao acentuar o papel da praacutexis interpretativa e das funccedilotildees
simboacutelicas linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas na constituiccedilatildeo da consciecircncia e
da autoconsciecircncia ndash mostra sua relevacircncia no sentido de uma superaccedilatildeo
daquela dicotomia Tais elementos foram reconstruiacutedos pelo autor em seis
seccedilotildees que seratildeo apresentadas a seguir princiacutepio do continuum modelo
do processo organizaccedilatildeo funcional consciecircncia e linguagem
fenomenalismo da experiecircncia interna e consciecircncia e corporeidade
118 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
O Princiacutepio do Continuum
Abel parte da compreensatildeo de que a superaccedilatildeo das dicotomias entre
mentalismo e materialismofisicalismo soacute pode ocorrer a partir de um
modo de ver natildeo dualista E Nietzsche segundo Abel defende tal
concepccedilatildeo a partir do que chama de princiacutepio do continuum o mundo
para Nietzsche constitui-se como um espectro de continuidade que vai do
inorgacircnico passando pelo orgacircnico ateacute as atividades cognitivas e aos
projetos e consecuccedilatildeo das accedilotildees O que significa que por um lado o
homem seria entendido como corporificaccedilatildeo de todas as atividades
ldquointeligentesrdquo que jaacute se encontram no orgacircnico e com as quais o ser
humano seria retraduzido na natureza por outro o ldquocaraacuteter espiritualrdquo
das atividades vivas poderia ser encontrado nas formas de manifestaccedilatildeo
orgacircnica e ateacute para aleacutem destas
Natildeo se trata aqui de uma superaccedilatildeo redutora ou derivativa do modelo
dualista na relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o consciente No modelo do
continuum a consciecircncia desponta como um fenocircmeno gradual que surge
a partir de ldquodiferenciaccedilotildees filogeneacuteticas e ontogeneacuteticas no acircmbito do
orgacircnicordquo (ABEL 2005 p 209) e cujos elementos jaacute se encontram
presentes em animais enquanto o tornar-se consciente e a autoconsciecircncia
somente no homem seriam encontrados Dois pressupostos do princiacutepio
nietzscheanos satildeo aqui delineados em primeiro lugar formas de vida preacute-
conscientes e orgacircnicas devem ser vistas como ldquoprocessos dinacircmicosrdquo jaacute
inteligentes e basilares para a formaccedilatildeo da consciecircncia por outro ldquoestados
mentais conscientesrdquo devem ser distintos dos ldquoinconscientesrdquo sendo este
acircmbito mais amplo e a partir do qual aquele pode ser explicado Em todo
caso por peticcedilatildeo de princiacutepio ldquoa consciecircncia mesma natildeo estaacute em condiccedilatildeo
de indicar uma lsquocausa objetivarsquo para sua proacutepria origemrdquo (ABEL 2005 p
209)
O que seria entatildeo o ldquoeurdquo da consciecircncia ou o lsquoSi mesmorsquo [Selbst] do
corpo humano Dois aspectos devem ser aqui observados por um lado
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 119
como o modelo do continuum abre-se a possibilidade de que esse ldquoeurdquo
ldquoinfluencie num certo sentido os processos orgacircnicosrdquo (ABEL 2005 p
208) ou seja que determinados pensamentos possam ser ldquoincorporadosrdquo
organicamente por outro o sujeito da consciecircncia ndash ou o que Abel chama
de ldquoeu consciente e lsquoindexicalrsquordquo ndash surge como uma delimitaccedilatildeo dentro da
ldquocorrente contiacutenua de acontecimentosrdquo e natildeo mais como uma coisa
individual que precede a consciecircncia de algo O Eu aparece assim como a
ponta de um processo da qual por isso mesmo prescinde o todo restante
Daiacute a formulaccedilatildeo de Nietzsche ldquoPara que em geral consciecircncia se ela eacute
no geral supeacuterfluardquo e agrave qual ele mesmo responde ldquouma rede de ligaccedilatildeo
entre homem e homemrdquo que teve de ldquodesenvolver-se somente enquanto
talrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354)
Modelo do Processo
Enquanto continuum que vai do orgacircnico ao consciente o mundo de
Nietzsche eacute um conjunto de ldquoefeitos cambiantes dinacircmicos altamente
complexos de variadas organizaccedilotildees de forccedilas vivas e inteligentesrdquo (ABEL
2005 p 215) ndash luta e arregimentaccedilatildeo de impulsos cujo pathos se mostra a
ele como vontade de poder [der Wille zur Macht] Os elementos da
natureza nesse sentido natildeo podem mais ser tomados coisas ndash corpos
materiais ocupando posiccedilotildees no espaccedilo-tempo mas ldquoeventosrdquo ou ldquoobjetos-
processordquo (ABEL 2005 p 216)4 Tal concepccedilatildeo certamente traz
consequecircncias natildeo somente para o status do conceito de ldquocoisardquo mas
tambeacutem para a ideia de ldquosujeitordquo A questatildeo que Abel aqui se coloca eacute os
processos devem ainda pressupor um sujeito ou eacute possiacutevel partir de
processos sem sujeito
A ideia de um sujeito da consciecircncia que a represente e organize seus
conteuacutedos parece implicada no momento mesmo em que a consciecircncia
4 Abel salienta aqui a proximidade da concepccedilatildeo nietzscheana com a fiacutesica contemporacircnea (objetos como uma identidade de eventos) e com as pesquisas em filosofia da linguagem (em particular as ideias de Reichenbach e Davidson)
120 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
enquanto consciecircncia-de-algo transitiva designada por meio da
intencionalidade manifesta-se Ocorre que tambeacutem o ldquoeurdquo o sujeito da
consciecircncia soacute se manifesta em virtude do surgimento desta uacuteltima5
Como afirma Nietzsche em Aleacutem do bem e do mal a ideia de um ldquosujeito
lsquoeursquordquo como condiccedilatildeo do predicado ldquopensordquo seria uma ldquofalsificaccedilatildeo dos
fatosrdquo (NIETZSCHE 2005 sect17) Ora com isso dois postulados expostos
na seccedilatildeo anterior comeccedilam a ser esclarecidos
(a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciecircncia jaacute depende de
uma amaacutelgama de processos sem sujeito e (b) que o estado e fenocircmeno da
consciecircncia repousa genealogicamente jaacute sobre estados mentais [eventos
processos] natildeo conscientes (ABEL 2005 p 218)
Haveria nesse sentido uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a ideia de um
ldquosujeito da consciecircnciardquo e a figura de ldquoprocessos sem sujeitordquo A pergunta
ldquoquem pensardquo deve ser respondida com ldquoalgo pensardquo no sentido de que
esse ldquoalgordquo jaacute natildeo eacute um ldquoeurdquo objeto e representaccedilatildeo mas um processo e
uma interpretaccedilatildeo ndash ou citando Nietzsche ldquouma interpretaccedilatildeo do processo
que natildeo pertence ao processo mesmordquo (NIETZSCHE 2005 sect17) ndash
designada com a palavra indexical ldquoeurdquo funccedilatildeo desse processo Da mesma
forma no plano linguiacutestico as sentenccedilas de processo natildeo seriam mais
vinculadas a um sujeito gramatical (ABEL 2005 p 221)6 A ideia de sujeito
enquanto ldquoindiviacuteduo-coisardquo dissolve-se nesse sentido pelo ldquoretorno do
sujeito da consciecircncia em si mesmo como sua consequecircncia internardquo
(ABEL 2005 p 220) Em seu lugar surgem o indiviacuteduo-evento e o eu-
interpretaccedilatildeo
A suspeita de uma contaminaccedilatildeo categorial [] de que somente indiviacuteduos-
coisa fornecem o modelo de referecircncia parece banida atraveacutes da passagem ao
esquema do evento e uma teoria natildeo dualista natildeo estaacute mais aprisionada ao
5 Veremos adiante (na seccedilatildeo ldquoFenomenalismo da experiecircncia internardquo) que o eu-consciecircncia a perspectiva da primeira pessoa surge no momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a consciecircncia
6 O autor faz aqui atraveacutes de Lichtenberg um paralelo entre a concepccedilatildeo nietzscheana (com o exemplo das expressotildees impessoais) e a criacutetica ao eu-portador feita por Wittgenstein (o do Tractatus assim como o das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas na comparaccedilatildeo entre olho e o campo visual)
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 121
leito de Procrusto do sujeito da consciecircncia Somente um modelo de referecircncia
baseado em indiviacuteduos-evento abre essa possibilidade (ABEL 2005 p 222)
A partir daqui abre-se o caminho para se pensar eventos mentais
conscientes e natildeo conscientes em uma ldquoco-pertenccedila natildeo dualistardquo com
processos orgacircnicos e corporais
Organizaccedilatildeo Funcional
A ideia de processo implicaria tambeacutem uma passagem do modelo de
organismo ao de organizaccedilatildeo Com efeito o orgacircnico em Nietzsche eacute
entendido como uma ldquoestrutura de organizaccedilatildeordquo na qual a consciecircncia o
pensamento consciente e outros processos mentais resultam como
ldquopropriedades e consequecircncias emergentes da co-relaccedilatildeo muacuteltipla e
altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem
a organizaccedilatildeo e garantem sua funcionalidaderdquo Aqui natildeo se trata
propriamente de uma relaccedilatildeo entre parte e todo ndash entre particular e
universal mas de uma combinaccedilatildeo de ldquomuacuteltiplas organizaccedilotildees de forccedilas
das partesrdquo cujos efeitos fazem surgir aqueles estados mentais e emergir
a ldquoespiritualidade viva e inteligenterdquo jaacute presente no orgacircnico (ABEL 2005
p 223)
Tambeacutem aqui haveria uma proximidade com a concepccedilatildeo
atualmente defendida e aceita nas pesquisas sobre o ceacuterebro ndash em
particular ao modelo dos ldquomultiple draftsrdquo desenvolvido por Dennett
(1991 cap 5 apud ABEL 2005 p 224) ndash de que estados mentais
conscientes e natildeo conscientes satildeo resultados da organizaccedilatildeo e da
complexa dinacircmica de configuraccedilotildees de neurocircnios ndash o que vale ser aqui
salientado dado que tal modelo vai de encontro agrave concepccedilatildeo cartesiana
centralista da consciecircncia na qual o ceacuterebro teria um centro ndash um ldquoolho
internordquo para as experiecircncias conscientes Por outro lado a proacutepria ideia
de um ldquofluxo da consciecircnciardquo natildeo pode ser vista como uma sequecircncia
unificada mas ao contraacuterio processos de conformaccedilotildees dinacircmicas e
muacuteltiplas combinaccedilotildees das partes do sistema envolvidas
122 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Na concepccedilatildeo nietzscheana diz Abel esse aspecto eacute enfatizado no
sentido da dependecircncia do ldquoperfil funcionalrdquo do orgacircnico em relaccedilatildeo agraves
combinaccedilotildees de suas partes A ldquoorganizaccedilatildeo processualrdquo pode ser
entendida como configuraccedilotildees de forccedilas que preponderam e dominam ndash
ldquoregentesrdquo mas que satildeo ao mesmo tempo ldquodependentes das forccedilas
particulares funcionaisrdquo ndash e forccedilas ldquoregidasrdquo As partes ndash eventos e
processos por sua vez jaacute natildeo podem ser representadas como elementos
atomiacutesticos mas como ldquoconsecuccedilatildeo efetivo-relacional do acontecerrdquo
(ABEL 2005 p 227) Para Nietzsche esse eacute um evento fundamental de
tudo o que eacute efetivo e vivo E eacute nesse sentido que para ele a vida pode ser
definida como ldquolsquouma forma duradoura do processo de afirmaccedilatildeo da forccedila
onde os lutadores crescem de modo desigual entre sirsquordquo (COLLI
MONTINARI 1999b KSA-XI 36 [22])
A centralidade que o aspecto da organizaccedilatildeo funcional ocupa na
concepccedilatildeo nietzscheana permite caracterizaacute-la segundo Abel como um
funcionalismo entendido no sentido de que estados e processos mentais ndash
em particular estados e processos natildeo conscientes exercem papeacuteis
funcionais e referem-se agrave organizaccedilatildeo funcional de um sistema podendo
ser descritos por uma terminologia funcionalista No entanto natildeo seria
possiacutevel aqui uma associaccedilatildeo ao funcionalismo defendido por Putnam
(1975 apud ABEL 2005 p 228) com base em um modelo computacional
de descriccedilatildeo do funcionamento e individuaccedilatildeo de estados mentais Isso
porque entraria na concepccedilatildeo nietzscheana um ldquoelemento de liberdade e
criatividaderdquo que permite ao eu da consciecircncia dispor dos conteuacutedos e
subsumi-los a um ldquotratamento imaginativo ou planejado do agirrdquo
Um uacuteltimo aspecto quanto agrave organizaccedilatildeo funcional em Nietzsche e
na filosofia da mente diz respeito a uma possiacutevel interpretaccedilatildeo
teleoloacutegico-normativa dos papeacuteis funcionais exercidos pelos processos
mentais Na concepccedilatildeo nietzscheana os processos de organizaccedilatildeo de
forccedilas satildeo eventos de autorregulaccedilatildeo e otimizaccedilatildeo das relaccedilotildees de forccedilas
atuando tanto na organizaccedilatildeo como nas partes nela envolvidas Essas
muacuteltiplas combinaccedilotildees soacute posteriormente apareceriam agrave consciecircncia como
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 123
em conformidade a um fim Natildeo haveria nesse sentido nenhuma
teleologia na coisa mesma mas apenas em como ela aparece agrave consciecircncia
ldquoA organizaccedilatildeo e a dinacircmica dos processos complexos de forccedilas se
realizam () de modo ateleoloacutegicordquo (ABEL 2005 p 231) Seria preciso
distinguir entre duas espeacutecies de finalidade seja a ideia de fim entendida
como um motivo ndash uma ldquoteleologia do atuar exoacutegenordquo ou no como uma
consequecircncia ndash uma ldquofuncionalidade e regularidade endoacutegenardquo Nesse
sentido soacute como expressatildeo de um ldquoolhar que observa posteriormenterdquo
uma conformidade a fins seria possiacutevel
Consciecircncia e Linguagem
Os modelos e organizaccedilotildees acima natildeo estariam bem esclarecidos sem
a compreensatildeo de que por detraacutes das representaccedilotildees sobre as quais a
consciecircncia se efetiva estatildeo os signos linguiacutesticos e funccedilotildees gramaticais
que por sua vez exercem-se no contexto de uma praacutexis interpretativa Em
outras palavras na base do fenocircmeno da consciecircncia aparece o
fundamento linguiacutestico-gramatical e interpretativo de todo pensar Para
Nietzsche soacute podemos pensar ldquode forma linguiacutesticardquo (COLLI
MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22]) O ldquopensar racionalrdquo eacute nesse sentido
um ldquointerpretar segundo um esquema que natildeo podemos dispensarrdquo
(COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22])
Para Abel o que assume significaccedilatildeo fundamental nos dias de hoje eacute
que se por um lado a consciecircncia apresenta a linguagem ndash enquanto uso
dos signos (linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticos) por outro na base mesma de
seu surgimento consecuccedilatildeo e desenvolvimento ela revela tambeacutem com a
linguagem o seu caraacuteter puacuteblico e social A consciecircncia (e suas
especificidades) nesse sentido eacute tematizada agora ldquona interseccedilatildeo dos
desenvolvimentos no acircmbito do natural-orgacircnico [] com os processos
nas esferas do social do histoacuterico e do culturalrdquo (ABEL 2005 p 233)
Jaacute em seus primeiros escritos postumamente publicados Nietzsche
aponta para o cerne comunicativo constitutivo da consciecircncia Na forma
124 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
como apresentado em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral o
homem natildeo apreende coisas objetos mas sensaccedilotildees ndash marcas de
excitaccedilotildees externas que satildeo por meio de transposiccedilatildeo metafoacutericas ndash do
objeto em imagem e da imagem em conceito ndash simplificadas
antropomorfizadas e restituiacutedas pela linguagem na forma de signos Por
uma ldquotransposiccedilatildeo artiacutesticardquo entatildeo a linguagem opera uma identificaccedilatildeo
do natildeo idecircntico da qual surge o conceito Mais ainda eacute nessa identificaccedilatildeo
que se constitui o objeto e tambeacutemo sujeito criador como esfera a ele
oposta com o qual natildeo pode ter senatildeo uma ldquorelaccedilatildeo esteacuteticardquo que eacute a sua
proacutepria criaccedilatildeoconstituiccedilatildeo
Tal processo nesse sentido soacute se justifica do ponto de vista de uma
praacutexis social ou seja por uma necessidade de comunicaccedilatildeo e de
ldquoestabilizaccedilatildeo de sistemas sociaisrdquo (ABEL 2005 p 235) A proacutepria
ldquoverdaderdquo nada mais eacute que uma metaacutefora cristalizada e aceita socialmente
isto eacute pelo rebanho Nietzsche ressalta as condiccedilotildees fisioloacutegicas e
histoacutericas do ldquoinstinto (ou impulso) de verdaderdquo que marca nossa
civilizaccedilatildeo e cujo cerne ilusoacuterio e metafoacuterico revela antes uma crenccedila na
verdade como valor incondicional ldquoas verdades satildeo ilusotildees cuja origem
estaacute esquecidardquo (NIETZSCHE 2007 1 30)
Essa compreensatildeo eacute retomada posteriormente em A gaia ciecircncia
Para Nietzsche na constituiccedilatildeo mesma da consciecircncia aparece uma
ldquonecessidade de comunicaccedilatildeordquo que pressupotildee por sua vez uma
ldquocapacidade [entendida como forccedila e arte] de comunicaccedilatildeordquo
[] posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas
sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeo () Consciecircncia eacute na realidade
apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas () o pensar que se torna
consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos ndash pois
apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de
comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia
(NIETZSCHE 2004 sect 354)
O pensar conceitual e a experiecircncia consciente efetivam-se nesse
sentido enquanto ldquosignos de comunicaccedilatildeordquo ou ldquoformaccedilotildees e abreviaccedilotildees
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 125
de signos sobre signosrdquo Segundo Abel a constituiccedilatildeo de um sistema
conceitual ndash pelo qual o eu da consciecircncia se efetiva ndash ocorre no momento
em que ela proacutepria eacute capaz de diferenciar conceitualmente algo de algo e
com essa delimitaccedilatildeo constituir objetos e a si proacutepria como objeto
O caraacuteter interpretativo da consciecircncia no entanto natildeo se restringe
a um aspecto de suas funccedilotildees simboacutelicas mas eacute sua proacutepria condicionante
no sentido de que os processos orgacircnicos mesmos jaacute pressupotildeem um
ldquointerpretar contiacutenuordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 2 [148])
sendo por ele caracterizados A consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo soacute procede
de modo interpretativo em sua consecuccedilatildeo mas tambeacutem jaacute repousa em
processos de interpretaccedilatildeo natildeo conscientesrdquo (ABEL 2005 p 237) sendo
jaacute um resultado dessas relaccedilotildees Daqui se tem como consequecircncia que ela
natildeo pode ser nem causa sui nem finis sui no sentido de que permanece
sem acesso a seu proacuteprio fundamento A tarefa de uma filosofia da mente
nesse sentido consistiria principalmente em destacar o caraacuteter simboacutelico
e principalmente interpretativo subjacente a estados processos e
fenocircmenos da consciecircncia
Sempre haveria no entanto o perigo de a consciecircncia de modo auto-
causal e auto-teleoloacutegico hipostasiar-se a si proacutepria e mascarar o caraacuteter
problemaacutetico de as representaccedilotildees que surgem na consciecircncia estarem agrave
disposiccedilatildeo e poder do eu-consciecircncia como se esta as antecedesse e
pudesse com elas relacionar-se de outro modo Uma suposta
autocertificaccedilatildeo da autoconsciecircncia compensaria a incerteza quanto ao
objeto e ao sujeito que ela representa Eacute a tendecircncia proacutepria agrave consciecircncia
de querer ir aleacutem natildeo soacute do fenomenalismo da experiecircncia exterior como
tambeacutem da interior (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 15 [90]) Esse
ponto seraacute abordado na proacutexima seccedilatildeo
Fenomenalismo da Experiecircncia Interna
Vimos que pela articulaccedilatildeo linguiacutestica a consciecircncia opera uma
simplificaccedilatildeo esquematizaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo (ABEL 2005 p 237) de
126 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
tudo o que ateacute ela chega do mundo exterior Da mesma forma na
experiecircncia interna natildeo deparamos com fatos como sendo algo primaacuterio
mas eles proacuteprios ldquotecircm de ser o resultado de interpretaccedilotildeesrdquo Sensaccedilotildees de
prazer e dor por exemplo bem como aquilo que costumamos chamar de
ldquosentido internordquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 14 [152]) satildeo
para Nietzsche segundo Abel ldquofenocircmenos tardios derivados
interpretados intelectualmente de processos de forccedilas que estatildeo ao fundordquo
(ABEL 2005 p 238-239)
Duas perspectivas aqui se abrem para a caracterizaccedilatildeo
dessefenomenalismo da percepccedilatildeointerior em primeiro lugar a ordem e
cronologia de causa e efeito eacute continuamente invertida de forma que por
meio da memoacuteria das experiecircncias internas passadas a causa eacute imaginada
ndash em adequaccedilatildeo agrave causa real ndash depois de o efeito jaacute ter sucedido Em
segundo lugar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem (conforme exposta
acima) conduz tambeacutem a uma relaccedilatildeo entre fenomenalismo e
perspectivismo de forma que as experiecircncias internas ndash que satildeo uacutenicas e
individuais satildeo pela linguagem traduzidas para a consciecircncia como
estados internos conhecidos delimitados e tangiacuteveis ao indiviacuteduo7
Natildeo podemos assim transgredir o mundo fenomenal Mas isso natildeo
quer dizer que aquilo a que natildeo temos acesso seja o mundo ldquoverdadeirordquo
e sim tatildeo somente o ldquoinformulaacutevel mundo sem forma do caos de
sensaccedilotildeesrdquo ldquouma outra espeacutecie de mundo fenomenal para noacutes
incognosciacutevelrdquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 9 [106]) Haveria
aqui segundo Abel uma forte criacutetica ao princiacutepio mesmo da racionalidade
moderna a autoconsciecircncia cartesiana ndash ou mais precisamente agrave ldquoideia de
uma autocertificaccedilatildeo fundamentalista numa experiecircncia pura preacute-
linguiacutestica preacute-conceitual e independente da interpretaccedilatildeordquo ABEL 2005
p 241) Na base desse fundamentalismo epistemoloacutegico ldquoo ponto de
partida errado ndash como se houvesse lsquofatos da consciecircnciarsquo ndash e nenhum
fenomenalismo na observaccedilatildeo de si mesmordquo Erro que resultaria em seis
7 Processo esse que como vimos natildeo subsiste independentemente de uma praacutexis social
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 127
pressuposiccedilotildees nenhuma delas para Nietzsche (COLLI MONTINARI
1999d KSA XIII 15 [90]) plena de sentido
(1) transparecircncia completa da consciecircncia (2) manutenccedilatildeo da ideia do dado
ao menos para o acircmbito da experiecircncia interna da consciecircncia (3) a
experiecircncia humana eacute independente da linguagem da descriccedilatildeo e por fim ateacute
mesmo da interpretaccedilatildeo (4) o fenomenalismo eacute restrito somente ao mundo
exterior () (5) haacute um ponto de observaccedilatildeo fixo (6) a consciecircncia tem acesso
imediato a seus proacuteprios estados de experiecircncia interna de si (ABEL 2005 p
238-239)
Com ofenomenalismo e perspectivismo da experiecircncia interna entra
em cena o eu-consciecircncia ndash a perspectiva da primeira pessoa que surge no
momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a
consciecircncia Tambeacutem com ele o ldquocaraacuteter subjetivo qualitativo e
fenomenal da vivecircncia conscienterdquo (ABEL 2005 p 241) Tais aspectos satildeo
segundo Abel discutidos na atual filosofia da mente a partir de duas teses
(1) que os aspectos subjetivos qualitativos e fenomenais satildeo fundamentais
para a experiecircncia interna (2) [que] esses aspectos subjetivos qualitativos e
fenomenais ligados agrave perspectiva da vivecircncia na primeira pessoa natildeo podem
ser reduzidos agrave conformidade a leis fiacutesicas [que satildeo] explicadas da perspectiva
neutra da [] intersubjetividade [Esta] no entanto eacute precisamente aquilo
que natildeo somente eacute dado na vivecircncia factual subjetiva qualitativa e fenomenal
mas tambeacutem sistematicamente excluiacuteda (ABEL 2005 p 242)
Consciecircncia e Corporeidade
Apesar de natildeo poder representar ou sequer distanciar-se da rede natildeo
consciente de seus condicionamentos a consciecircncia ndash enquanto eu-
consciecircncia tem no entanto a ldquopossibilidade de abrir-se retroagindo a si
mesma em contraposiccedilatildeo ao complexo de suas condiccedilotildeesrdquo (ABEL 2005
p 244) Transiccedilatildeo essa que segundo Abel pode ser vista como a passagem
de uma consciecircncia autoteleoloacutegica e autocausal para um eu-consciecircncia
que sem perder a autoconsciecircncia eacute o proacuteprio si-mesmo do corpo ndash aquilo
que Nietzsche chama de grande razatildeo Isso implicaria a transiccedilatildeo de uma
128 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoontologia moralrdquo (COLLI MONTINARI 1999b KSA XI 7 [4]) a uma
ldquofilosofia do corpordquo que comeccedila quando a pequena razatildeo se volta sobre si
por sua proacutepria autoconservaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo a seus
condicionamentos O que natildeo deve ser confundido como uma reduccedilatildeo a
um naturalismo ou biologismo ndash nem tampouco de uma ldquoneurofilosofiardquo
como em Churchland (1998) Natildeo se trata na filosofia do corpo de
Nietzsche de organismos corpos e neurocircnios mas do corpo-organizaccedilatildeo
Natildeo haacute aqui um ldquoalgordquo a ser estudado mas uma ldquocombinaccedilatildeo dinacircmica e
altamente complexa de [] inteligecircncias em processordquo (ABEL 2005 p
244) A passagem do eu-consciecircncia ao si-mesmo (o ldquodominador do eurdquo)
eacute nesse sentido a passagem de uma ldquosubjetividade produtorardquo para a
ldquoindividualidade no sentido da organizaccedilatildeo do corpo [Leib] () que cada
um eacute enquanto ser que interpretardquo ABEL 2005 p 246-7) Isto natildeo implica
um retorno da individualidade ao sujeito racional universal mas a
subsunccedilatildeo em uma ldquoindividualidade-corpordquo
Dois aspectos satildeo salientados aqui por Abel em primeiro lugar a
ldquocorporeidade preacute-cognitiva preacute-linguiacutestica e preacute-racional em seus
estados esteacuteticos pode ser vista como o lugar de surgimento dos signos
simbolizadores linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticosrdquo (ABEL 2005 p 247) em
cuja invenccedilatildeo estatildeo envolvidos estados corporais Na abertura do eu-
consciecircncia agrave rede de seus condicionantes revela-se ldquoo caraacuteter dos signos e
da interpretaccedilatildeo em sua posiccedilatildeo fundamentalrdquo (ABEL 2005 p 248) Por
outro lado o modo de consideraccedilatildeo do ldquofio-condutor do corpordquo apresenta-
se como um ldquofenocircmeno mais ricordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII
40 [15]) no sentido de que se situa no interior mesmo da posiccedilatildeo criticista
A posiccedilatildeo da consciecircncia bem como da criacutetica da linguagem eacute nesse
sentido aprofundada Trata-se nas palavras de Nietzsche ldquodo corpo em
todo o desenvolvimento do espiacuterito ele eacute a histoacuteria que se torna sensiacutevel
de que um corpo superior se formardquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X
24 [16]) Em que o mental por outro lado eacute a ldquolinguagem simboacutelica do
corpordquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X 7 [126])
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 129
Criacutetica da Consciecircncia e Criacutetica da Linguagem
Dois aspectos devem ser salientados quanto a este toacutepico por um
lado a importacircncia da consciecircncia e da linguagem nas relaccedilotildees humanas
ndash com o mundo com o outro e consigo ndash e por outro o reconhecimento
de seus limites ndash em uacuteltima instacircncia do limite-corpo que subjaz a ambas
linguagem e consciecircncia
No caso da linguagem os limites parecem ser bastante sutis no
sentido de que ela proacutepria enquanto ldquogramaacuteticardquo atua como preacute-
formadora do pensamento consciente e nesse sentido ldquoo que pode ser
pensado e dito em geral tem de estar jaacute na gramaacutetica de uma linguagemrdquo
(ABEL 2005 p 249) Como afirma Nietzsche em Crepuacutesculo dos iacutedolos
ldquoA lsquorazatildeorsquo na linguagem oh que velha e enganadora senhora Receio que
natildeo nos livremos de Deus porque ainda acreditamos na gramaacuteticardquo
(NIETZSCHE 2006 III sect5) Tais limites que a tornam suscetiacutevel a uma
petrificaccedilatildeo estatildeo precisamente pelo caraacuteter de universalidade das
sentenccedilas e palavras Principalmente quando estas se tornam conceitos
frutos da ldquoidentificaccedilatildeo do natildeo idecircnticordquo (NIETZSCHE 2007 1) e jaacute
distantes de sua ldquovivecircncia original uacutenica e totalmente individualizadardquo Haacute
aqui o risco de se fazer mitologia com o ldquomundo dos signosrdquo e de tornaacute-lo
o ldquoem si das coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 sect21)
Uma superaccedilatildeo no pensamento dos ldquoerrosrdquo da razatildeo petrificados na
linguagem ndash ou em uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo (NIETZSCHE 2006
III sect5) ndash seria no entanto impossiacutevel porque noacutes ldquonecessitamos do errordquo
O problema crucial aqui como aponta Abel eacute que o indiviacuteduo uma
sensaccedilatildeo ou o proacuteprio inefaacutevel jaacute pressupotildeem a linguagem quando satildeo
expressos comunicados Como entatildeo conciliar o caraacuteter individual de uma
sensaccedilatildeo com a pretensatildeo agrave universalidade e o caraacuteter comunicativo e
social da linguagem que a expressa
No acircmbito da consciecircncia por sua vez por intermeacutedio e constituiccedilatildeo
da linguagem tudo perde a individualidade e eacute traduzido para o acircmbito do
universal O que impede um acesso agrave profundidade e deixa agravequela apenas
130 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
um ldquomundo de superfiacutecies e signosrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354) A
consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo pertence propriamente agrave existecircncia
individual do homemrdquo A relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem mostra-se
uma relaccedilatildeo de constituiccedilatildeo universalizaccedilatildeo simplificaccedilatildeo e
superficializaccedilatildeo Os limites se datildeo em que nessa relaccedilatildeo com a iminecircncia
de uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo a consciecircncia corre de vaacuterias formas o
risco de hipostasiar-se a si mesma
Em primeiro lugar na medida em que ela pretende identificar-se com a ampla
situaccedilatildeo total de um homem Entatildeo conforme ela considera seu eu isto eacute o
sujeito como substacircncia ela assumiria como sujeito uma posiccedilatildeo aprioriacutestica
face aos conteuacutedos da consciecircncia Por fim na medida em que o eu isto eacute o
sujeito da consciecircncia vecirc suas determinaccedilotildees das representaccedilotildees da consciecircncia
dos objetos da experiecircncia como determinaccedilotildees ontoloacutegicas Aleacutem disso haacute o
risco de hipoacutestase no sentido de que [] a consciecircncia e a mente tendem a
entenderem a si mesmas de modo autoteleoloacutegico e autocausal como finis sui e
causa sui e que elas jaacute natildeo podem abrir-se desse modo agrave rede abarcante das
condiccedilotildees de sua proacutepria existecircncia (ABEL 2005 p 252)
A criacutetica de Nietzsche em suma natildeo se refere propriamente agrave
consciecircncia ndash erro necessaacuterio ndash nem tampouco tem caraacuteter reducionista
Antes dirige-se ao modelo cartesiano hipostasiado de reflexatildeo da
consciecircncia e da autoconsciecircncia em seus seis erros ou pressuposiccedilotildees
Filosofia Simboacutelica e Interpretativa da Mente
Pode-se formular a advertecircncia articulada na criacutetica da consciecircncia e da
linguagem do seguinte modo natildeo se confunda a circunstacircncia de que noacutes
temos a ver na consciecircncia assim como na autoconsciecircncia com signos e
interpretaccedilotildees com a concepccedilatildeo de que noacutes nos deparariacuteamos com as ldquocoisas
mesmasrdquo ou com as coisas-em-si-mesmas Assumir essa uacuteltima significa
recair no sofisma naturalista da consciecircncia (ABEL 2005 p 253-4)
Do que foi exposto quanto aspectos acima atenccedilatildeo especial deve ser
dada ao caraacuteter simboacutelico e interpretativo ndash semioacutetico ndash dos estados e
processos da consciecircncia da autoconsciecircncia e dos outros processos
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 131
mentais conscientes e natildeo conscientes Consciecircncia eacute consciecircncia de signos
cujos elementos (sintaacuteticos semacircnticos e pragmaacuteticos) natildeo os precedem
mas satildeo eles mesmos constituiacutedos em sua ldquoorientaccedilatildeo a algo ou a outras
pessoasrdquo ndash orientaccedilatildeo que tem o caraacuteter de uma ldquointerpretaccedilatildeo
construcionalrdquo (ABEL 2005 p 253-4) As funccedilotildees da interpretaccedilatildeo
constituem assim o fundamento dos signos Todos os estados processos
e fenocircmenos mentais bem como a comunicaccedilatildeo desses conteuacutedos
realizam-se em e como signos e interpretaccedilotildees O ponto chave nessa
concepccedilatildeo pragmaacutetica simboacutelica e interpretativa diz Abel eacute que ldquonoacutes
temos consciecircncia mente e pensamento natildeo por meio mas por forccedila dos
processos de signos e interpretaccedilotildeesrdquo (ABEL 2005 p 256) A
interpretaccedilatildeo nesse sentido ldquoeacute condiccedilatildeo e natildeo opccedilatildeo para o emprego
bem-logrado dos signosrdquo (ABEL 2005 p 257)
Para o autor a construccedilatildeo nos dias de hoje de uma teoria da
consciecircncia que parta dessa tese ou seja para aleacutem da dicotomia
materialismofisicalismo e mentalismo deve levar em consideraccedilatildeo cinco
aspectos (1) uma postura contra o fisicalismo das funccedilotildees simboacutelicas dos
signos e interpretaccedilotildees (2) a introduccedilatildeo de sistemas e signos e
interpretaccedilotildees natildeo linguiacutesticos e natildeo proposicionais revelando a
insuficiecircncia dos siacutembolos linguiacutesticos e proposicionais como uacutenico meio
de representaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo mentais (3) a consideraccedilatildeo aleacutem de
Nietzsche do pragmatismo de Peirce da teoria geral do siacutembolo de
Goodman e a teoria das formas simboacutelicas de Cassirer (4) a ideia de uma
relaccedilatildeo ou uma ligaccedilatildeo interna entre signos interpretaccedilotildees e
possibilidade de accedilatildeo (5) a consideraccedilatildeo dos valores avaliaccedilotildees e normas
(sentido e dever) no emprego dos signos e nas accedilotildees
Assim o fundamental na concepccedilatildeo de uma filosofia da mente a
partir do pensamento de Nietzsche deve estar na ideia de que os processos
de interpretaccedilatildeo estatildeo implicados desde o iniacutecio tatildeo logo se trate de
submeter o que estaacute na consciecircncia a uma delimitaccedilatildeo ordenaccedilatildeo
classificaccedilatildeo coerecircncia ou comunicaccedilatildeo O orgacircnico mesmo jaacute eacute para
Nietzsche uma interpretaccedilatildeo contiacutenua
132 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Referecircncias
ABEL Guumlnter ldquoConsciecircncia-Linguagem-Natureza ndash A filosofia da mente em Nietzscherdquo In
MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo
Discurso Editorial 2005
_____ ldquoVerdade e interpretaccedilatildeordquo In MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad
Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo Discurso Editorial 2005a
CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia Trad Maria C Cescato Satildeo Paulo UNESP 1998
COLLI G MONTINARI M (orgs) Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe
(KSA v X) Berlim Munique Nova York Walter de Gruyter 1999a
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XI) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999b
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XII) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999c
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XIII) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999d
NIETZSCHE Friedrich W Genealogia da moral (GM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo
Paulo Companhia das Letras 1998
_____ A gaia ciecircncia (FWGC) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das
Letras 2004
_____ Aleacutem de bem e mal (GBBM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia
de Bolso 2005
_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos (GDCI) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo
Companhia das Letras 2006
_____ Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WLVM) In Sobre verdade e
mentira Trad e Org Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2007
7
Habermas e o Problema do Mundo Objetivo
em Verdade e Justificaccedilatildeo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira 1
Introduccedilatildeo
O objetivo deste artigo eacute investigar a questatildeo do mundo objetivo a
partir da recente distinccedilatildeo que Habermas realiza entre verdade e
justificaccedilatildeo na obra de mesmo tiacutetulo Eacute preciso entatildeo entendermos o
lugar que o mundo objetivo passa a ter no pensamento habermasiano
sobretudo a partir da diferenccedila entre verdade e justificaccedilatildeo algo outrora
inexistente
Verdade e justificaccedilatildeo de 1999 reuacutene trabalhos escritos entre 1996 e
1998 que retomam o fio de uma reflexatildeo interrompida em Conhecimento
e Interesse (1987) Apesar de a pragmaacutetica da linguagem que Habermas
desenvolveu nos anos 1970 ter feito uso de conceitos como verdade
referecircncia validade objetividade realidade e racionalidade estes natildeo
foram abordados agrave luz da filosofia teoacuterica como em Verdade e justificaccedilatildeo
Habermas (2012) nos tempos da Teoria do agir comunicativo obra
de 1971 definia o sentido de verdade a partir da situaccedilatildeo ideal de fala
atraveacutes dos pressupostos idealizantes de 1) publicidade e total inclusatildeo de
todos os envolvidos 2) distribuiccedilatildeo equitativa dos direitos de
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) com Doutorado Sanduiacuteche pela Ludwig-Maximilian-Universitaumlt (LMU) em Munique Alemanha Poacutes-doutorando pela Universidade Federal do Piauiacute (UFPI) e Bolsista Capes Email julianocordeiro81gmailcom
134 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
comunicaccedilatildeo 3) caraacuteter natildeo violento de uma situaccedilatildeo que admite apenas
a forccedila natildeo coerciva do melhor argumento e 4) a probidade dos
proferimentos de todos os participantes Nesse sentido a verdade
relacionava-se diretamente com o consenso construiacutedo pelos sujeitos
atraveacutes da situaccedilatildeo ideal de fala
Entretanto Habermas em Verdade e justificaccedilatildeo partindo das
criacuteticas que recebeu por igualar o conceito de verdade agrave justificaccedilatildeo ao
longo de seu projeto teoacuterico afirma hoje em dia que a verdade natildeo pode
mais ser assimilada simplesmente agrave situaccedilatildeo ideal de fala agrave justificaccedilatildeo
pragmaacutetica dos sujeitos ldquoDe laacute para caacute percebi que essa assimilaccedilatildeo natildeo
pode dar certo Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade que
natildeo eacute errado mas eacute pelo menos incompletordquo (HABERMAS 2004 p 60)
A verdade agora tem a ver com o mundo objetivo que temos
inevitavelmente de pressupor nos atos de fala e nas nossas accedilotildees A
justificaccedilatildeo por sua vez seria um criteacuterio pragmaacutetico relacionado
unicamente aos sujeitos falantes natildeo podendo ser assimilado agrave verdade
como Habermas conceituava antes A verdade por assim dizer relaciona-
se com um pressuposto formal que os sujeitos precisam admitir sob pena
de natildeo falar nem agir no mundo
Poreacutem mesmo com a distinccedilatildeo habermasiana entre os conceitos de
verdade e justificaccedilatildeo continua natildeo estando em questatildeo a representaccedilatildeo
correta da realidade ou a estrutura ontoloacutegica do mundo Eacute impossiacutevel
determinar a significaccedilatildeo das palavras sem uma consideraccedilatildeo do contexto
social em que satildeo usadas porque eacute o uso que decide a significaccedilatildeo das
expressotildees linguiacutesticas caracteriacutestica central do pragmatismo No
Segundo Wittgenstein e tambeacutem em Habermas a ecircnfase eacute dada
sobretudo agrave pragmaacutetica
Como entatildeo entender o novo lugar que o mundo objetivo passou a
ter no pensamento habermasiano haja vista que ele continua a ser criacutetico
da noccedilatildeo representacionista de verdade Como conciliar a tese da
pressuposiccedilatildeo irrecusaacutevel de um mundo objetivo independente de nossas
descriccedilotildees e idecircntico para todos os observadores com a tese baacutesica da
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 135
reviravolta linguiacutestica de que natildeo temos acesso diretamente isto eacute natildeo
linguisticamente mediado a uma realidade ldquonuardquo Eacute o que veremos a
seguir
A Necessaacuteria Diferenccedila entre Verdade e Justificaccedilatildeo
Inicialmente Habermas conceituava a verdade como sinocircnimo de
justificaccedilatildeo Ou seja a verdade era aquilo que os sujeitos estabeleciam
consensualmente nas deliberaccedilotildees Wellmer (apud ALVARENGA 1999)
por exemplo numa criacutetica a Habermas destaca que racionalidade e
verdade natildeo necessariamente coincidem Para ele natildeo podemos afirmar
que havendo consenso racional exista verdade de imediato Nada impede
que no futuro seja considerado falso um consenso atual o que natildeo
implica que agimos irracionalmente A verdade eacute sempre algo maior do
que a racionalidade dos consensos situados Todo consenso encontra-se
sob reserva podendo no futuro ser posto em questatildeo mediante razotildees
Wellmer argumenta referindo-se agrave primeira concepccedilatildeo de verdade
de Habermas que um conceito de verdade como consenso eacute insuficiente
por natildeo abranger o aspecto da correspondecircncia da verdade Seria preciso
esse complemento na teoria discursiva de Habermas Mesmo que se
cumpram as condiccedilotildees ideais de fala tal fato natildeo significa que as razotildees
alegadas no processo deliberativo tenham sido boas Um consenso falso
pode ser racional no sentido de que foi alcanccedilado sob condiccedilotildees formais
de uma situaccedilatildeo ideal
Habermas a partir de tais criacuteticas reformulou sua concepccedilatildeo de
verdade distinguindo verdade de justificaccedilatildeo Ele assume que o consenso
natildeo pode ser considerado como um criteacuterio mas deve ser visto como um
mecanismo de certificaccedilatildeo da verdade Ele relaciona o conceito discursivo
mantido de aceitabilidade racional com um conceito de verdade
pragmaacutetico natildeo epistecircmico sem assimilar a verdade agrave assertibilidade
ideal ou seja agrave justificaccedilatildeo
136 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Inicialmente Habermas (2012) na Teoria do agir comunicativo
apresentou uma teoria consensual da verdade o consenso era o criteacuterio de
verdade O que eacute verdadeiro seria aquilo advindo de um consenso racional
e universal como consequecircncia de um diaacutelogo numa situaccedilatildeo ideal de fala
Entretanto como demonstra Puntel (2013) Habermas viu as dificuldades
dessa concepccedilatildeo uma vez que haacute uma incapacidade de explicar por que
mesmo as asserccedilotildees mais exaustivamente justificadas podem ser falsas
Habermas trabalha atualmente com uma concepccedilatildeo de verdade orientada
realisticamente denominada de realismo epistemoloacutegico pragmaacutetico
Os principais passos de Habermas na apresentaccedilatildeo e explicaccedilatildeo de
sua nova concepccedilatildeo pragmaacutetico-realista da verdade segundo Puntel
(2013) satildeo os seguintes 1) o ponto de partida satildeo pretensotildees de verdade
feitas no mundo da vida 2) a verdade eacute conceitualmente (natildeo
epistemologicamente) desconectada da justificaccedilatildeo a verdade eacute
transcendente agrave justificaccedilatildeo 3) a verdade implica uma referecircncia a um
mundo objetivo independente 4) a verdade articula a conexatildeo entre a
sentenccedilaproposiccedilatildeo qualificada como verdadeira e o mundo
Habermas (2004) explica que argumentos que nos convencem da
verdade de ldquoprdquo podem se revelar falsos em outra situaccedilatildeo epistecircmica Ou
seja por mais que ldquoprdquo seja bem justificado ele pode ainda revelar-se falso
A argumentaccedilatildeo permanece reforccedila ele como o uacutenico meio disponiacutevel
para se certificar da verdade de modo que natildeo haacute outra maneira de
examinar as pretensotildees de validade tornadas problemaacuteticas Entretanto a
justificaccedilatildeo natildeo pode ser validada ainda como verdade Habermas entatildeo
pretende salvar a dimensatildeo do mundo objetivo em sua teoria
relacionando-a com a verdade
Ele estabelece um conceito de verdade em que as pretensotildees de
validade transcendam toda justificaccedilatildeo ldquo() depois da
destranscendentalizaccedilatildeo do sujeito cognoscente continua a existir uma
lacuna entre o que eacute verdadeiro e o que conta como justificado ou
racionalmente aceitaacutevel para noacutesrdquo (HABERMAS 2002 p 44) Habermas
pretende assegurar a diferenccedila entre verdade e aceitabilidade racional
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 137
Contudo tal diferenccedila coloca os sujeitos numa situaccedilatildeo paradoxal De um
lado sem acesso direto agraves condiccedilotildees de verdade eles soacute podem resgatar as
pretensotildees de validade por meio de boas razotildees de outro as melhores
razotildees satildeo tambeacutem faliacuteveis Portanto Habermas defende que o abismo
entre aceitabilidade racional e verdade natildeo pode ser transposto uma vez
que todo acordo alcanccedilado pela justificaccedilatildeo eacute tambeacutem faliacutevel
Habermas (2004) destaca que verdade e falibilidade satildeo dois lados de
uma mesma moeda Ele entende que falta agrave justificaccedilatildeo no sentido por
exemplo de Richard Rorty uma referecircncia aos objetos Nesse sentido as
pretensotildees de validade devem transcender o contexto natildeo se satisfazendo
apenas com a justificaccedilatildeo alcanccedilada O verdadeiro para Habermas deve
ser defendido em todos os contextos possiacuteveis
Segundo ele uma concepccedilatildeo que faccedila justiccedila agrave intuiccedilatildeo realista de um
mundo que existe independentemente de noacutes mesmo sem a
representaccedilatildeo de uma correspondecircncia entre proposiccedilotildees e fatos favorece
o projeto de explicar os aspectos nos quais a verdade e a justificaccedilatildeo ao
mesmo tempo assemelham-se e distinguem-se Em suma a verdade eacute um
conceito que transcende toda justificaccedilatildeo natildeo podendo ser identificada
com o conceito de assertibilidade idealmente justificada
De acordo com Habermas a conexatildeo interna entre verdade e
justificaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo epistemoloacutegica pois natildeo estaacute em jogo a
representaccedilatildeo correta da realidade mas uma praacutexis que natildeo pode vir
abaixo O entendimento muacutetuo natildeo pode funcionar sem que os envolvidos
se refiram a um uacutenico mundo objetivo dentro de um espaccedilo puacuteblico
intersubjetivamente partilhado O conceito discursivo de verdade natildeo eacute
exatamente falso mas insuficiente ele natildeo explica o que nos autoriza a ter
por verdadeiro um enunciado suposto como idealmente justificado Dessa
forma asserccedilotildees bem justificadas podem se revelar falsas porque a
verdade deve transcender qualquer contexto de justificaccedilatildeo
Puntel (2013) destaca uma criacutetica a Habermas apontando-nos uma
dimensatildeo natildeo aprofundada por este Puntel com razatildeo critica Habermas
agrave medida que este rejeita a teoria tradicional da verdade sem oferecer uma
138 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
explanaccedilatildeo miacutenima do que ele chama de conexatildeo ou entrelaccedilamento de
verdade e mundo Sua concepccedilatildeo realista pragmaacutetica permaneceria vaga
Se Habermas acertou por um lado em separar verdade de
justificaccedilatildeo ele simultaneamente tambeacutem criou um novo problema em
sua filosofia O que realmente Habermas chama de mundo objetivo O que
de fato significa verdade em Habermas visto que esta se relaciona com um
mundo objetivo que apenas podemos pressupor mas natildeo tematizar tal
qual uma praacutexis que natildeo pode vir abaixo Que dimensatildeo eacute essa que
transcende a justificaccedilatildeo
O Estatuto do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo de um Novo
Acerto a um Novo Problema
Segundo Cliacutestenes Franccedila (2015) Habermas em Verdade e
justificaccedilatildeo substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da
justificaccedilatildeo deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuiacutena
Uma teoria da verdade e uma teoria da justificaccedilatildeo satildeo empreendimentos
teoacutericos distintos A primeira teoria da verdade de Habermas dos tempos
do Agir comunicativo era uma teoria antirrealista pois como vimos antes
a verdade era algo sinocircnimo de justificaccedilatildeo Ela natildeo dependia da
ocorrecircncia no mundo de um estado de coisas tendo a ver com a
legitimaccedilatildeo das pretensotildees de validade dos falantes
Jaacute em Verdade e justificaccedilatildeo a verdade natildeo se circunscreve agrave esfera
do discurso ela sempre o ultrapassa Portanto o maacuteximo que podemos
afirmar sobre a aceitabilidade racional de uma asserccedilatildeo eacute que muito
provavelmente ela eacute verdadeira mas natildeo podemos garantir que isso ocorra
de fato Criteacuterios de autorizaccedilatildeo entretanto satildeo formulados por teorias da
justificaccedilatildeo e natildeo por teorias da verdade Franccedila (2015) levanta a hipoacutetese
de que em Verdade e justificaccedilatildeo Habermas apresenta uma teoria da
justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade Habermas natildeo pode mais
dizer em que a verdade consiste mas apenas indicar o que nossas intuiccedilotildees
pragmaacuteticas realistas nos afirmam que ela seja
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 139
Para Franccedila (2015) agrave luz de Kirkham uma teoria da verdade seria
uma teoria metafiacutesica que buscaria fixar uma definiccedilatildeo do que seja a
verdade Uma teoria metafiacutesica da verdade contudo natildeo procuraria
oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos
encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro Jaacute uma teoria da
justificaccedilatildeo busca indicar as evidecircncias e garantias que algo deve possuir
para ser considerado como provavelmente verdadeiro Criteacuterios de
autorizaccedilatildeo satildeo formulados por teorias da justificaccedilatildeo e natildeo por teorias
da verdade
Habermas apresentaria em Verdade e justificaccedilatildeo uma teoria da
justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade A incorporaccedilatildeo de aspectos
realistas ao conceito da verdade na pragmaacutetica formal de Habermas
resultou no abandono de se oferecer uma definiccedilatildeo positiva do que eacute a
verdade de fato Como pensar a partir disso o problema do mundo
objetivo
Habermas chega ao mundo objetivo somente atraveacutes de anaacutelises das
accedilotildees e discursos que os falantes e agentes realizam no processo
comunicativo Mas isso natildeo transcende a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo
Segundo Puntel (2013) Habermas sempre privilegia a dimensatildeo
pragmaacutetica em relaccedilatildeo agrave semacircntica embora defenda que satildeo duas
dimensotildees co-originaacuterias
Ele supotildee que o ldquoproacuteprio mundordquo eacute o ldquoproacuteprio mundordquo apenas se
permanecer completamente intocado pela linguagem Habermas separa
fatos de objetos Ele natildeo menciona a perspectiva de que ao identificarmos
os objetos como elementos do ldquoproacuteprio mundordquo noacutes jaacute estamos falando
acerca desses objetos pertencentes ao ldquoproacuteprio mundordquo Aqui haacute como
pano de fundo a claacutessica criacutetica de Hegel a Kant
Se os fatos acerca dos objetos natildeo tecircm um status ontoloacutegico entatildeo somos
confrontados com uma declaraccedilatildeo incorreta Com efeito para que tenha um
significado inteligiacutevel lsquoser acerca de um objetorsquo deve ser entendido como
lsquoalcanccedilarrsquo ou lsquoatingirrsquo ou lsquoconcernirrsquo o proacuteprio objeto eacute algo sem sentido
declarar um fato acerca de um objeto e entatildeo defender que este fato nada tem
a ver com o objeto Se o fato expresso nada tem a ver com o objeto o objeto
140 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
permaneceria em um esplecircndido isolamento desconhecido inarticulado O
processo de aprendizagem que torna possiacutevel a expressatildeo de fatos acerca dos
objetos natildeo teria qualquer sentido (PUNTEL 2013 p 206)
Habermas (2004) por sua vez defende uma concepccedilatildeo nominalista
do mundo o mundo eacute a totalidade de objetos dos quais podemos
estabelecer fatos Segundo Habermas os fatos satildeo o que noacutes declaramos
acerca dos objetos Ele enfatiza que o nominalismo eacute menos suspeito do
que outras posiccedilotildees ontoloacutegicas especialmente as posiccedilotildees que atribuem
um status ontoloacutegico aos fatos De acordo com Puntel (2013) o argumento
de Habermas eacute incoerente visto que se os fatos tecircm uma relaccedilatildeo essencial
com a linguagem o mesmo deve ser dito dos objetos Se os fatos estatildeo
entrelaccedilados com a linguagem porque podem ser expressos o mesmo
ocorre com os objetos haja vista que podem ser referidos a algo
Habermas poreacutem defende que apenas os fatos satildeo tocados pela
linguagem natildeo os objetos
Podemos dizer que haacute um abismo que separa a dimensatildeo pragmaacutetica
da semacircntica em Habermas embora ele sempre argumente que satildeo duas
perspectivas inseparaacuteveis Esse eacute um aspecto a ser criticado no
pensamento de Habermas agrave medida que ele natildeo concilia de fato a
pragmaacutetica e a semacircntica Segundo Manfredo Oliveira (2010) do
pressuposto metodoloacutegico fundamental da razatildeo comunicativa Habermas
deriva uma consequecircncia temaacutetica draacutestica isto eacute a restriccedilatildeo do tema da
filosofia agrave dimensatildeo pragmaacutetica Dessa forma como tambeacutem aponta
Puntel (2013) a abordagem pragmaacutetica habermasiana considera que as
estruturas e praacuteticas da comunicaccedilatildeo satildeo a base uacutenica uacuteltima e decisiva
do pensar filosoacutefico privilegiando a linguagem natural em sua
integralidade
Habermas (2004) em Verdade e justificaccedilatildeo distingue entre as
funccedilotildees expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da
linguagem natural afirmando que elas se pressupotildeem mutuamente
aceitando a tese de Michael Dummett Poreacutem Habermas privilegia
claramente a dimensatildeo pragmaacutetica colocando a semacircntica em segundo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 141
plano O resultado eacute que o problema do mundo objetivo em Habermas
natildeo eacute explorado suficientemente em sua teoria aparecendo apenas como
pressuposiccedilatildeo formal
Natildeo haacute uma clareza acerca da relaccedilatildeo entre verdade e mundo
objetivo apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade
Nesse sentido podemos dizer que haacute um deacuteficit ontoloacutegico em Habermas
pois a ontologia aparece sempre agrave sombra em sua teoria mas nunca como
algo tematizado e sim pressuposto formalmente Ou seja haacute uma
postulaccedilatildeo da dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo propriamente da ontologia que
eacute a teoria dessa dimensatildeo A semacircntica eacute reduzida agrave pragmaacutetica (ou pelo
menos articulada em funccedilatildeo da pragmaacutetica e a ela submetida) referecircncia
central de toda a filosofia de Habermas
Como vimos antes Habermas diz que a justificaccedilatildeo natildeo pode ser mais
um criteacuterio de verdade mas ela continua sendo um mecanismo de
certificaccedilatildeo da verdade De acordo com Puntel poreacutem quando uma
sentenccedila eacute qualificada como verdadeira supotildee-se a correspondecircncia com
algo no mundo levantando-se a questatildeo de como deve ser concebido esse
algo
Se assim eacute ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulaccedilatildeo ou
conexatildeo eacute exprimiacutevel e portanto natildeo somente pode mas deve ser explicitada
ndash caso contraacuterio falar dela seria vazio e autocontraditoacuterio Mas isto eacute algo que
Habermas poderia ou deveria aceitar De fato ele natildeo apresenta qualquer
explicaccedilatildeo relevante da dimensatildeo da conexatildeo ou entrelaccedilamento e isto deve
ser considerado como resultado de sua posiccedilatildeo poacutes-metafiacutesica (PUNTEL
2013 p 198)
Segue-se daiacute que a articulaccedilatildeo teoacuterica da dimensatildeo pressuposta ndash do
entrelaccedilamentoconexatildeo de verdade e mundo ndash natildeo pode ser realizada
pelo discurso pragmaacutetico ou dentro de seu quadro referencial teoacuterico
pragmaacutetico Isso torna claro que a afirmaccedilatildeo de Habermas a respeito de
uma verdade incondicional eacute extremamente restrita Em suma eacute uma
afirmaccedilatildeo dentro do acircmbito da pragmaacutetica que torna Habermas incapaz
de articular uma verdade genuinamente incondicional
142 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Ele fala da importacircncia de se reconhecer a dimensatildeo da validade
incondicionada mas natildeo avanccedila para aleacutem de tal afirmaccedilatildeo Se haacute a
necessidade de separar verdade de justificaccedilatildeo ele teria que aprofundar e
tematizar o que estaacute chamando de verdadee mundo objetivo Ou seja que
algo eacute esse que se encontra para aleacutem da justificaccedilatildeo e que ao mesmo
tempo pode pocircr abaixo as justificaccedilotildees no mesmo instante em que soacute
temos acesso ao mundo objetivo pelas proacuteprias justificaccedilotildees
A mesma criacutetica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradiccedilatildeo
transcendental oriunda de Kant Este afirma que a representaccedilatildeo das
coisas como nos satildeo dadas deve regular-se como fenocircmenos e natildeo como
coisas em si Em Kant natildeo eacute possiacutevel no conhecimento a priori
acrescentar aos objetos nada a natildeo ser o que o sujeito pensante toma de si
mesmo Todavia Kant exemplifica que se natildeo eacute possiacutevel conhecermos os
objetos como coisas em si mesmas podemos contudo pensaacute-los
Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa natildeo tanto
com objetos mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida
em que ele deva ser possiacutevel a priori Um sistema de tais conceitos denominar-
se-ia filosofia transcendental (KANT 1974 p 33)
Habermas segue a mesma perspectiva de Kant postulando a
intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito
transcendental Poreacutem a orientaccedilatildeo continua a mesma quando Habermas
afirma que podemos conhecer apenas os fatos natildeo os objetos do mundo
O mundo em Habermas natildeo nos impotildee sua linguagem ele natildeo fala e soacute
responde em sentido figurado
Habermas elabora uma teoria filosoacutefica centrada na dimensatildeo
comunicativa (pragmaacutetica) Seria a partir dela que outras dimensotildees
poderiam ser compreendidas Percebemos que a dimensatildeo expositiva
(semacircntica) eacute posta em segundo plano Em Habermas o modo como as
coisas do mundo satildeo apreendidas e denominadas se orienta no contato
comunicativo entre pessoas O mundo objetivo para ele soacute eacute conhecido
com base na relaccedilatildeo com o quadro referencial da comunicaccedilatildeo Ele eacute
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 143
apenas considerado de tal modo que a interaccedilatildeo entre pessoas se faccedila
possiacutevel Contudo Habermas natildeo se interroga pela condiccedilatildeo de
inteligibilidade da proacutepria pragmaacutetica sendo sua consideraccedilatildeo do mundo
objetivo algo vago
Conclusatildeo
Habermas como vimos distingue verdade de justificaccedilatildeo
entendendo verdade tal qual demonstra Puntel de alguma maneira no
sentido da teoria da correspondecircncia relacionada ao mundo objetivo Uma
pergunta contudo permanece sem resposta em Habermas o que significa
compreender algo Eacute preciso destacar contra ele que haacute um deacuteficit acerca
de uma consideraccedilatildeo da linguagem em sua dimensatildeo estruturalno que diz
respeito agrave dimensatildeo ontoloacutegica
Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificaccedilatildeo
haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo
mundo para todos) ele ao mesmo tempo natildeo consegue esclarecer como
ocorre a relaccedilatildeo da co-originaridade entre exposiccedilatildeo e comunicaccedilatildeo natildeo
aprofundando o estatuto que o mundo objetivo possui em sua filosofia
teoacuterica Habermas natildeo avanccedila de forma mais profunda acerca de questotildees
ontoloacutegicas exigidas por sua nova posiccedilatildeo realista-pragmaacutetica
Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questotildees filosoacuteficas que
tradicionalmente seriam chamadas de metafiacutesicas como a tematizaccedilatildeo do
mundo objetivo A virada radicalmente epistecircmica de toda a filosofia
moderna como no esquema transcendental deslocou o sujeito para o
centro de toda a empresa teoacuterica e desse modo tambeacutem da filosofia Fala-
se como sabemos no acircmbito da modernidade de uma filosofia do sujeito
No caso de Habermas e de seu kantismo pragmaacutetico revirado
linguisticamente podemos falar de uma filosofia centralizada na
intersubjetividade e na pragmaacutetica mas que manteacutem ainda a dicotomia
entre sujeitos e mundo
144 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Em Verdade e justificaccedilatildeo os sujeitos supotildeem em comum um
mundo objetivo como totalidade dos objetos que podem ser tratados e
apreciados Eacute justamente o conceito de fracasso performativo que nos
conduz em Habermas a uma pressuposiccedilatildeo formal de nossas accedilotildees
linguiacutesticas e de nossas intervenccedilotildees no mundo objetivo entendido como
sistema de possiacuteveis referecircncias e possiacuteveis manipulaccedilotildees
Trata-se em Habermas de um postulado que inevitavelmente temos
de fazer caso contraacuterio a fala e a intervenccedilatildeo no mundo se tornariam
impossiacuteveis Os participantes do discurso assumem a mesma
pressuposiccedilatildeo formal de um mundo independente de noacutes de nossas
descriccedilotildees de nossos esquemas conceituais
Nesse sentido em Habermas a referecircncia ao mundo natildeo eacute
apresentada como constituindo uma caracteriacutestica componente da
semacircntica da linguagem mas como um pressuposto acrescentado para
que possamos explicar nossas falas e nossas intervenccedilotildees Habermas fala
de semacircntica apenas como dimensatildeo da linguagem (Darstellung der
Welt) mas nunca a analisa Como ressalta Puntel (2013) as tentativas de
Habermas de abordar questotildees filosoacuteficas centrais sem deixar de ser fiel
ao pensamento poacutes-metafiacutesico conduziram-no a problemas
fundamentais obscuridades incoerecircncias ausecircncias de esclarecimentos e
soluccedilotildees
Referecircncias
ALVARENGA N Verdade contingecircncia e falibilismo a teoria discursiva da verdade de J
Habermas agrave luz das criacuteticas de A Wellmer Siacutentese Belo Horizonte v 26 n 86 p
347-373 1999
FRANCcedilA C A problemaacutetica incorporaccedilatildeo do realismo na pragmaacutetica-formal de Juumlrgen
Habermas In CARVALHO M (Org) Teoria criacutetica Coleccedilatildeo XI Encontro ANPOF
2015 p 159-173
HABERMAS J Conhecimento e interesse Rio de Janeiro Guanabara 1987
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 145
_____ Agir comunicativo e razatildeo destranscendentalizada Rio de Janeiro Tempo
Brasileiro 2002
_____ Verdade e justificaccedilatildeo ensaios filosoacuteficos Satildeo Paulo Loyola 2004
_____ Teoria do agir comunicativo 1 racionalidade da accedilatildeo e racionalidade social Satildeo
Paulo Martins Fontes 2012
KANT I Criacutetica da razatildeo pura Satildeo Paulo Abril Cultural 1974
OLIVEIRA M A Eacute a filosofia uma pragmaacutetica Revista Tempo Brasileiro Juumlrgen
Habermas ndash 80 anos Laranjeiras n 181-182 p 103-126 2010
PUNTEL L O pensamento poacutes-metafiacutesico de Habermas uma criacutetica Siacutentese Revista de
Filosofia Belo Horizonte v 40 n 127 p 173-223 2013
8
Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes
para se Pensar a Natureza de Sistemas Formais
Uma Abordagem Wittgensteiniana
Marcos Silva 1
I want to say an education quite different from ours
might also be the foundation for quite different concepts
(Wittgenstein Zettel 387)
Em 1930 segundo algumas conversas documentadas em
Wittgenstein (1984a)2 estava discutindo com alguns membros influentes
do Ciacuterculo de Viena aspectos importantes de sua filosofia Essas
discussotildees pretendiam esclarecer novidades e dificuldades advindas da
revisatildeo e aprofundamento de toacutepicos de seu Tractatus (1984b) Neste
contexto histoacuterico fica claro pela dinacircmica das conversas que Waismann
conduziu as discussotildees para a filosofia da matemaacutetica uma vez que
Wittgenstein estava preparando-o para um painel a tomar lugar em
Koumlnigsberg naquele mesmo ano O painel trataria justamente de
diferentes perspectivas a respeito dos desafios filosoacuteficos concernentes agrave
crise dos fundamentos na matemaacutetica Nesta discussatildeo em Koumlnisberg Von
Neumann representaria o formalismo Carnap o logicismo e Heyting a
escola intuitionista Jaacute Waismann o quarto membro ilustre da mesa de
1 Professor Adjunto do curso de Filosofia da UFAL e bolsista de produtividade do CNPq (2018-2021) Agradeccedilo aos comentaacuterios valiosos de Luiz Henrique da Silva Santos a este trabalho
2 Estas discussotildees foram documentadas por Waismann e organizadas para publicaccedilatildeo por McGuinness em Wittgenstein und Wiener Kreis doravante WWK
Marcos Silva | 147
discussotildees sobre o estado da arte da filosofia da matemaacutetica seria
responsaacutevel por representar a filosofia de Wittgenstein
A literatura secundaacuteria sobre estes toacutepicos de discussatildeo acerca da
natureza da matemaacutetica no WWK de maneira frequente e acertada a meu
ver aborda os comentaacuterios de Wittgenstein como sendo muito criacuteticos em
relaccedilatildeo ao programa de Hilbert A criacutetica tinha como alvo a meta do
programa que consistia na procura por uma prova absoluta para a
consistecircncia da matemaacutetica (Hacker 1986 Engelmann 2013) Segundo
Wittgenstein provocativamente afirma a tentativa de se fornecer uma prova
absoluta da consistecircncia da aritmeacutetica seria anaacuteloga agrave procura por uma
ldquodoenccedila escondidardquo em um corpo funcional (WITTGENSTEIN 1984a p
120) Contudo acredito que o ponto faltante nesta literatura seja a observaccedilatildeo
de que nesta altura Wittgenstein natildeo foi de forma alguma criacutetico de uma
tese central da tradiccedilatildeo formalista Essa tese diz respeito agrave arbitrariedade da
sintaxe Assim como as regras de um jogo as regras da sintaxe de sistemas
formais seriam para formalistas arbitraacuterias ou seja natildeo residiriam na
essecircncia da linguagem da mente ou do mundo Com efeito Wittgenstein
teria afirmado contundentemente nas discussotildees com os membros do
Ciacuterculo de Viena que ldquoa verdade no formalismo eacute que toda sintaxe pode ser
concebida como se fosse um sistema de regras de um jogo (hellip) Eu gostaria
de afirmar que natildeo somente os axiomas da matemaacutetica mas toda a sintaxe eacute
arbitraacuteriardquo (WITTGENSTEIN 1984a p103 minha traduccedilatildeo)
Minha hipoacutetese de trabalho para se entender esta formulaccedilatildeo forte
de Wittgenstein eacute a de que ela ilustra a sua reaccedilatildeo agrave visatildeo de Frege esta
muito criacutetica ao formalismo Esta reaccedilatildeo me parece ser baseada em uma
ainda incipiente aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de jogos para se entender de maneira
geral a natureza das regras da sintaxe e particularmente a proacutepria noccedilatildeo
de sistemas formais Em junho de 1930 Wittgenstein e Waismann estavam
lendo Grundgetsetze II de Frege em Viena como a entrada ldquoo que dizer
em Koumlnigsbergrdquo do WWK nos mostra No Grundgesetze II Frege (1903
sect106-119) defendeu inter alia contra teses formalistas que identificam a
natureza de sistemas formais com jogos que 1) nuacutemeros da aritmeacutetica natildeo
148 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
podem ser reduzidos a meros sinais ou marcas fiacutesicas porque por
exemplo lsquo0rsquo natildeo tem a propriedade de resultar no sinal lsquo1rsquo quando
adicionado ao sinal lsquo1rsquo ou seja sinais fiacutesicos eles mesmos em uma folha
de papel por exemplo natildeo possuem propriedades matemaacuteticas 2) que
uma contradiccedilatildeo um conceito propriamente loacutegico pode somente ocorrer
nas regras do jogo de xadrez e natildeo nas configuraccedilotildees baacutesicas isto eacute em
nenhum arranjo fiacutesico atual de peccedilas (do xadrez) e 3) que eacute impossiacutevel
inferir regras de um sistema formal pela mera inspeccedilatildeo de posiccedilotildees de
alguns sinais assim como seria impossiacutevel inferir as regras de um jogo de
tabuleiro dado a partir da mera disposiccedilatildeo de suas peccedilas
Nesta altura nas discussotildees com Waismann Wittgenstein parece
concordar com todas essas criacuteticas de Frege ao formalismo contudo vale
notar que Wittgenstein (1984a p 105) acusou indiretamente Frege de ter
cometido uma espeacutecie de falaacutecia do falso dilema se loacutegica e matemaacutetica
natildeo satildeo uma questatildeo de mera inspeccedilatildeo de sinais fiacutesicos ou da disposiccedilatildeo
de marcas materiais em um folha de papel por exemplo o significado de
seus sinais natildeo precisam ser fundados em seu Bedeutung ou seja em sua
referecircncia a entidades abstratas como Frege argumentou Wittgenstein
critica o seguinte raciociacutenio Se o significado de sinais em um sistema
formal natildeo pode ser dado pela mera configuraccedilatildeo de suas marcas fiacutesicas
entatildeo o seu significado deveria ser dado pela sua referecircncia a
determinados objetos especiais Wittgenstein parece ter defendido que ou
bem Bedeutung ou bem meramente sinais fiacutesicos natildeo satildeo todas as
alternativas neste horizonte De fato noacutes precisamos de sinais isto eacute de
algumas marcas fiacutesicas organizadas para a elaboraccedilatildeo de sistemas formais
variados mas noacutes precisamos ainda de regras para manipular estes sinais
Como consequecircncia uma compreensatildeo adequada da metaacutefora de jogos
dos formalistas deveria redundar na assimilaccedilatildeo da ideia que noacutes natildeo
precisamos nos engajar com algum Bedeutung transcendente ao jogo ele
mesmo para garantirmos que os sinais de um sistema formal tenham
significado Em outras palavras sinais seriam sim necessaacuterios mas natildeo
suficientes para a constituiccedilatildeo de um sistema formal mas nem por isso
Marcos Silva | 149
deveriacuteamos postular uma referecircncia a coisas fora do sistema ele mesmo
para dotaacute-lo de significado caso compreendamos a natureza das regras
que organizam o sistema e governam a manipulaccedilatildeo dos seus sinais
Eacute importante notar que Wittgenstein depois desta criacutetica
imediatamente comeccedila a usar o vocabulaacuterio que Frege introduziu ao criticar
formalistas a saber sistemas formais como jogos mas natildeo a posiccedilatildeo de
Frege de que a loacutegica deveria representar leis de uma realidade abstrata
Parece que Frege assumiu o vocabulaacuterio formalista como o de regras e
jogos para mostrar em uacuteltima instacircncia seu absurdo ou ao menos sua
implausibilidade para se entender a aritmeacutetica e a loacutegica Acredito que
Wittgenstein assumiu o vocabulaacuterio formalista de Frege mas condenou seu
falso dilema a saber ou bem somente sinais ou bem a necessidade de um
Bedeutung ao mostrar que formalistas fazem um bom ponto ao defenderem
que toda a sintaxe eacute arbitraacuteria como as regras de jogos Wittgenstein
assumiu o vocabulaacuterio formalista de jogos para mostrar que quaisquer
regras sintaacuteticas poderiam ser outras as regras de sistemas formais natildeo
precisam estar ancoradas na realidade mesmo que rejeitemos que natildeo
devem ser redutiacuteveis a meros sinais ou marcas fiacutesicas Nestas discussotildees
documentadas em WWK Wittgenstein natildeo parecia estar preocupado com
nenhuma lei loacutegica da realidade ou do pensamento mas sim com as regras
para manipular sinais que satildeo estipuladas quando noacutes estipulamos um
sistema loacutegico Ao se entender sistemas como jogos deveriacuteamos entendecirc-los
como independentes de uma realizaccedilatildeo material especiacutefica uma vez que o
fato de o rei num jogo de xadrez ser de plaacutestico madeira ou ateacute mesmo uma
bola de papel eacute irrelevante para a constituiccedilatildeo do proacuteprio sistema Os
sistemas formais como jogos deveriam ser compostos de marcas fiacutesicas sim
mas que possam exercer funccedilotildees variadas no sistema sempre determinadas
pelas regras de manipulaccedilatildeo do jogo
Neste periacuteodo histoacuterico no comeccedilo da deacutecada de 1930 a discussatildeo de
Wittgenstein estaacute ainda circunscrita agrave natureza de sistemas formais e natildeo
eacute desenvolvida para um entendimento geral da linguagem ou das
atividades humanas como um todo Wittgenstein eacute um pensador radical
150 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Eacute razoaacutevel defender que o desenvolvimento de sua filosofia madura possa
ser visto como o desenvolvimento proacuteprio das consequecircncias radicais
desta metaacutefora de jogos natildeo somente para entender matemaacutetica e loacutegica
mas para se entender a linguagem a intencionalidade e a normatividade
peculiares de atividades de seres humanos
No que se segue eu gostaria de responder a pergunta acerca do
porquecirc e de como a noccedilatildeo de jogos desenvolvida por Wittgenstein em 1930
(e nāo de jogos de linguagem porque ele natildeo tinha ainda este conceito
nesta eacutepoca) poderia ainda ser relevante para a filosofia da loacutegica Esta
questatildeo fica ainda mais premente ao considerarmos os problemas
contemporacircneos associados agrave emergecircncia de tantos sistemas natildeo-claacutessicos
legiacutetimos e seu desafio agrave natureza da racionalidade
Eu natildeo pretendo apresentar aqui um quadro nem original e nem
exaustivo de caracteriacutesticas filosoficamente importantes de sistemas
formais ao serem vinculadas a natureza de jogos Mas em vez disso eu
espero defender algumas intuiccedilotildees de Wittgenstein no comeccedilo da deacutecada
de 1930 sobre jogos e regras antes mesmo de suas noccedilotildees maduras (e
elusivas) de jogos de linguagem e semelhanccedila de famiacutelia Minhas
preocupaccedilotildees natildeo redundam em avanccedilar e defender todas as ideias
associadas agrave loacutegica como jogos mas restringir minhas ambiccedilotildees a
promover esta visatildeo filosoacutefica como cogente
Eacute importante evidenciar que os primeiros sistemas de ldquodeduccedilatildeo
naturalrdquo como introduzidos por Jaskowski (1934) e Gentzen (1934-35)
foram desenvolvidos na deacutecada de 1930 Nestes sistemas axiomas
foacutermulas bem formadas e pretensamente evidentes de onde se partem as
derivaccedilotildees satildeo substituiacutedos por conjuntos de inferecircncias que definem o
significado do vocabulaacuterio loacutegico de maneira que natildeo faz sentido dizer que
um sistema loacutegico descreve alguma coisa na realidade Embora as
conexotildees entre diferentes abordagens da loacutegica na deacutecada de 1930 e o
embate contemporacircneo entre teoria da prova e teoria de modelos sejam
histoacuterica e conceitualmente importantes seu exame natildeo estaacute no escopo
deste trabalho
Marcos Silva | 151
Com efeito muito mais poderia ser dito a respeito de jogos e seu uso
em abordagens anti-realistas na loacutegica e na epistemologia A teoria de
jogos foi oficialmente apresentada em 1944 mas foi antecipada por Borel
na deacutecada de 1920 Aleacutem disso a analogia com jogo de xadrez foi
frequentemente usada por exemplo por Weyl (1944) para criticar o
formalismo de Hilbert Vale tambeacutem notar que depois da segunda guerra
mundial o loacutegico Paul Lorenzen (1961) desenvolveu uma influente loacutegica
baseada em jogos dialoacutegicos materiais Estes jogos natildeo foram
influenciados por Wittgenstein mas por outras sugestotildees filosoacuteficas de
natureza construtivista Estes exemplos mostram a seminalidade filosoacutefica
e teacutecnica em se aplicar a metaacutefora do jogo agrave loacutegica independentemente de
uma abordagem wittgensteiniana Um projeto de pesquisa mais
abrangente a respeito disto parece ser bem-vindo
No que se segue eu natildeo estou interessado diretamente na exegese da
filosofia de Wittgenstein3 portanto natildeo vou me concentrar em seu
desenvolvimento filosoacutefico Eu proponho em vez disso oferecer uma
abordagem filosoacutefica mais geral sobre a loacutegica que tambeacutem poderia ser uacutetil
para se entender a natureza do vocabulaacuterio loacutegico
De fato a seguir eu seleciono e brevemente discuto algumas
caracteriacutesticas filosoficamente atraentes a respeito de se pensar loacutegica em
termos de regras em jogos isto eacute em tomar loacutegica como um conjunto de
praacuteticas governadas por regras engajadas por agentes racionais A
motivaccedilatildeo principal aqui eacute a respeito de como esta abordagem poderia ser
filosoficamente seminal para se entender loacutegica e racionalidade em um
ambiente de uma grande pluralidade de jogos Em outras palavras eu vou
mostrar como ao aceitarmos a ideia de sistemas loacutegicos como jogos
poderiacuteamos nos prover de ferramentas filosoacuteficas e loacutegicas para se avanccedilar
discussotildees contemporacircneas em filosofia da loacutegica
Um primeiro ponto relevante em se desenvolver a metaacutefora formalista
a respeito de sistemas formais como jogos eacute o anti-representacionismo
3 Estes problemas conceituais e histoacutericos satildeo tatildeo importantes quanto controversos por um nuacutemero grande razotildees Ver Engelmann (2013) para uma apresentaccedilatildeo mais detalhada Algum anacronismo seraacute cometido no presente trabalho
152 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Regras de um jogo natildeo precisam descrever a experiecircncia e nem a realidade
Regras natildeo podem ser falsificadas e nem verificadas pela experiecircncia uma
vez que natildeo satildeo proposiccedilotildees empiacutericas e natildeo descrevem nada
(WITTGENSTEIN 1984b 61222) De fato noacutes testamos nossa experiecircncia
do mundo usando regras como criteacuterio mas a regra ela mesma natildeo pode
ser testada pela experiecircncia como uma proposiccedilatildeo descrevendo-a pode ser
testada Uma distinccedilatildeo deve ser feita aqui por um lado noacutes testamos uma
proposiccedilatildeo a partir da experiecircncia porque a proposiccedilatildeo descreve o que
ocorre falsa ou verdadeiramente por outro lado proposiccedilotildees empiacutericas satildeo
diferentes de regras na medida em que noacutes testamos ou avaliamos a
qualidade de nossas descriccedilotildees usando algumas regras como criteacuterios Os
criteacuterios eles mesmo natildeo satildeo nem verdadeiros nem falsos Criteacuterios podem
contudo ser tomados como adequados ou inadequados para um
determinado contexto ou uso mas eles natildeo podem ser falsificados a partir
da comparaccedilatildeo com a realidade O motivo da recusa ou rejeiccedilatildeo de criteacuterios
para avaliar a qualidade de nossas praacuteticas discursivas satildeo quase sempre
pragmaacuteticas ou seja baseados na sua legitimidade ou adequaccedilatildeo conceitual
em contextos variados de accedilatildeo e natildeo metafiacutesicos
Outro ponto relevante envolvido na abordagem da loacutegica a partir da
noccedilatildeo de jogos eacute a ecircnfase na generalidade ao inveacutes da universalidade do
conhecimento Regras satildeo gerais isto eacute noacutes podemos compreender um
sistema complexo com um nuacutemero pequeno de regras simples e gerais e
estas natildeo satildeo e natildeo precisam ser universais ou seja ser vaacutelidas para o
domiacutenio de todas as coisas Regras satildeo aplicadas a muitos casos por pessoas
diferentes em contextos diferentes e em muitos periacuteodos diferentes Neste
sentido uma regra natildeo eacute conectada com uma situaccedilatildeo particular mas sim
com uma multiplicidade de situaccedilotildees possiacuteveis Noacutes podemos muito bem
entender um sistema complexo em um momento pela compreensatildeo das
regras que governam seu comportamento De fato a partir do entendimento
comum da noccedilatildeo de regras noacutes podemos pensaacute-las como uma foacutermula geral
que pode determinar um nuacutemero infinito de aplicaccedilotildees
Marcos Silva | 153
Ademais como em uma perspectiva funcionalista para o
entendimento do comportamento de sistemas complexos podemos
associar o desenvolvimento da metaacutefora formalista de jogos com uma
reaccedilatildeo criacutetica ao essencialismo uma vez que natildeo precisamos entender a
essecircncia do mundo para entender o funcionamento de sistemas loacutegicos
Por outro lado esta metaacutefora tambeacutem redunda em uma criacutetica ao
fisicalismo uma vez que a base material eacute irrelevante para o entendimento
da constituiccedilatildeo do significado a partir das regras de um dado sistema O
que Wittgenstein defende eacute um desenvolvimento importante da analogia
formalista de sistemas formais com jogos a saber assim como a base
material de um jogo de tabuleiro natildeo define o significado de suas peccedilas os
sinais na folha de papel por exemplo natildeo determinam o significado destas
marcas Satildeo contudo as regras que fixam o significado tanto das peccedilas do
jogo quanto dos sinais em um sistema formal
Vale notar tambeacutem que um jogo ou uma atividade regrada natildeo
precisa nem ter uma justificaccedilatildeo e nem ter uma fundamentaccedilatildeo Hacker
(1986) apresenta esta caracteriacutestica de jogos como a autonomia ou
arbitrariedade da sintaxe Isto significa que noacutes natildeo precisamos pensar ou
entender a essecircncia da linguagem ou do mundo para aprender como jogar
um jogo Jogos sāo auto-contidos o que eacute dito ou feito em um jogo natildeo
precisa ter nenhuma relaccedilatildeo com o que eacute feito num outro jogo Aqui noacutes
podemos ter uma interessante liberaccedilatildeo de restriccedilotildees metafiacutesicas
relacionadas agrave exigecircncia de referecircncia ao mundo para que estruturas
linguiacutesticas tenham significado uma vez que jogos natildeo precisam ser
pensados em relaccedilatildeo a alguma coisa isto eacute eles natildeo precisam ser
comportar de acordo com um fato determinado no mundo
Em se jogando jogos noacutes temos um claro aspecto de Handlung
dentro de sua dinacircmica loacutegica Ou seja para entendermos o que eacute um jogo
noacutes somos obrigados a pensarmos em termos de alguma accedilatildeo passos
(ldquomovesrdquo) operaccedilotildees ou em uma palavra praacuteticas em atividades regradas
(geregelte Handlung) Existe um niacutevel performativo mandataacuterio em jogos
Regras satildeo instruccedilotildees para atividades (jogos) ou para a construccedilatildeo de algo
154 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
por exemplo A ecircnfase filosoacutefica deve estar no procedimento pelo qual ou
a teacutecnica a partir da qual alguma performance eacute desempenhada e natildeo no
conhecimento proposicional a partir do qual o mundo eacute conhecido
verdadeiramente Natildeo eacute acidental que regras com frequecircncia funcionem
como normas para a accedilatildeo uma vez que expressam o que eacute considerado
adequado ou inadequado correto ou incorreto aceitaacutevel ou inaceitaacutevel
legiacutetimo ou ilegiacutetimo Um operador loacutegico neste contexto pode ser
tomado apenas como um procedimento tomado como legiacutetimo pelo qual
manipulamos sinais ou como uma seacuterie de manipulaccedilotildees permitidas que
contribui com o significado para proposiccedilotildees complexas
Nesta visatildeo que enfatiza o elemento humano em sistemas formais
como atividades regradas de seres humanos uma via de compatibilidade
com o pluralismo loacutegico a tese contemporacircnea que defende a
possibilidade de vaacuterios sistemas loacutegicos conflitantes serem legiacutetimos
conjuntamente pode ser pavimentada Ao se manter que sistemas loacutegicos
satildeo jogos noacutes podemos falar de maneira muito natural a respeito de vaacuterios
caacutelculos sem que precisemos nos comprometer com a verdade ou a
falsidade de alguns deles Com efeito caacutelculos natildeo podem ser falsos no
mesmo sentido que uma proposiccedilatildeo empiacuterica pode ser falsa Mesmo a
loacutegica proposicional entendida classicamente natildeo pode ser verdadeira ou
falsa Como eacute defendido aqui um jogo natildeo pode ser nem falso nem
verdadeiro uma vez que natildeo precisa descrever nada
Aleacutem disso vale notar que natildeo haacute nem um jogo sem regra ou seja
num certo sentido natildeo haacute um jogo anaacuterquico nenhuma regra sem jogo
ou uma regra sem o sistema em que ela deva estar situada Em outras
palavras regras satildeo mortas sem um sistema e um sistema sem regras natildeo
eacute realmente um sistema Aqui noacutes temos uma motivaccedilatildeo para introduzir
o que podemos chamar de holismo loacutegico para cada passo (ldquomoverdquo) ou
operaccedilatildeo em uma atividade governada eles devem estar inseridos em um
sistema Analogamente em sistemas formais operaccedilotildees ganham
significado em relaccedilatildeo a muitas outras Como resultado desta visatildeo
Marcos Silva | 155
mudar uma regra formal significa mudar o jogo uma vez que natildeo haacute
mudanccedila local que natildeo impactaria globalmente no sistema formal inteiro
O desenvolvimento da visatildeo formalista inspirada por Wittgenstein
tambeacutem permite as propriedades muito seminais de sistemas formais
como flexibilidade e plasticidade a partir da noccedilatildeo de jogos Em principio
noacutes podemos rejeitaraceitar ou mudar qualquer regraprinciacutepio em um
sistema loacutegico (claro evitando trivializaccedilāo com notado por Da Costa
1958) Em outras palavras operar em um sistema loacutegico eacute um Handlung
com signos governado por regras que satildeo convencionais no sentido que
poderiam ser outras
Consequentemente noacutes podemos rejeitar a visatildeo tiacutepica a respeito da
normatividade oferecida pelo realista monista Se noacutes temos apenas uma
uacutenica loacutegica verdadeira natildeo importando aqui qual e se a loacutegica determinar
as condiccedilotildees de inteligibilidade de nossas praacuteticas e os limites de nossa
racionalidade entatildeo eacute faacutecil transformar a discussatildeo loacutegica em uma discussatildeo
normativa qualquer desvio da supostaloacutegica verdadeira (como qualquer
outra loacutegica com outros princiacutepios) deveria ser tomado como contrassensual
Desvios sob o ponto de vista de um monista satildeo instacircncias de mau raciociacutenio
ou mesmo ilustraccedilotildees de nenhum raciociacutenio ou seja de que nenhum
raciociacutenio foi de fato feito Se noacutes levarmos a noccedilatildeo de jogos devidamente a
seacuterio a resposta para a normatividade da loacutegica fica encapsulada em normas
de accedilatildeo ou em instruccedilotildees para praacuteticas associadas com uma finalidade
particular Eacute evidente que noacutes poderiacuteamos ter outras normas como de fato
outras comunidades tecircm Com efeito existem outras comunidades que
obedecem outras regras uma comunidade de matemaacuteticos de orientaccedilatildeo
intuicionista por exemplo (LOumlF 1996 2013)
Como um uacuteltimo ponto para a relevacircncia filosoacutefica de se pensar
sistemas formais como jogos vale se destacar que regras satildeo puacuteblicas e
natildeo fundamentadas em representaccedilotildees privadas mentais ou em quaisquer
leis da mente Regras devem ser aprendidas em um ambiente social e a
partir de interaccedilotildees sociais Aqui a noccedilatildeo de educaccedilatildeo ou de iniciaccedilatildeo em
uma praacutetica naturalmente ganha importacircncia dentro do escopo da
156 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
discussatildeo em filosofia da loacutegica e da matemaacutetica Esta visatildeo encoraja
consequentemente uma virada antropoloacutegica na abordagem de sistemas
formais uma vez que enfatiza o niacutevel institucional e social na performance
de um jogo A questatildeo natural eacute Quem joga o jogo Quem aplica os
sistemas autocircnomos ao mundo Responder a esta questatildeo propondo um
sujeito metafiacutesico imaterial fora do mundo ou mesmo um
transcendental impondo estruturas a priori as suas representaccedilotildees
parece ser altamente inadequado Uma resposta natural deveria ser que
indiviacuteduos materiais com uma histoacuteria natural e social jogam os jogos ou
performam atividades regradas em uma comunidade de outros
indiviacuteduos Com efeito regras devem ser sempre associadas com uma
forma de vida Um indiviacuteduo radicalmente isolado natildeo pode jogar um jogo
ou seguir uma regra se noacutes aceitarmos as consequecircncias do famoso
argumento contra a linguagem privada de Wittgenstein em suas
Investigaccedilotildees filosoacuteficas Um jogo jogado objetivamente deve poder ser
ensinado para outros indiviacuteduos a partir dos criteacuterios puacuteblicos pelos quais
se corrigem passos inadequados ou ilegiacutetimos em atividades regradas
Com estas observaccedilotildees neste curto ensaio pretendi mostrar como a
noccedilatildeo de jogos pode ainda ser relevante filosoficamente para se entender a
natureza de sistemas formais a partir de uma abordagem wittgensteiniana
usando principalmente os textos compilados como WWK
Referecircncias
BOREL Eacute La theacuteorie du jeu et les eacutequations inteacutegrates agrave noyau symeacutetrique Comptes
Rendus Hebdomadaires des Seacuteances de lrsquoAcademie des Sciences 173 1304ndash1308
1921English Translation (Savage LJ) The theory of play and integral equations
with skew symmetric kernels Econometrica 21 97ndash100 (1953)
DA COSTA N C A Nota sobre o conceito de contradiccedilatildeo Anais da Sociedade Paranaense
de Matemaacutetica1 6ndash8 1958
ENGELMANN MauroWittgensteinrsquos philosophical development phenomenology
grammar method and the antropological view Hampshire Palgrave Macmillan2013
Marcos Silva | 157
FREGE G Grundgesezte der arithmetic Band II Verlag Hermann Pohle Jena 1903
GENTZEN G 1934ndash1935 Untersuchungen uumlber das logische schliessen
(Investigations into logical inference) PhD thesis Universitaumlt
GoumlttingenPublished in Gentzen 1969 68ndash131
_____ The collected papers of Gerhard Gentzen ed M Szabo Amsterdam North-
Holland 1969
HACKER PM S Insight and illusion 2 ed Oxford 1986
JASKOWSKI S On the rules of suppositions in formal logic Studia Logica 15-32 1934
LOumlF Martin On the meanings of the logical constants and the justifications of the logical
laws Nordic Journal of Philosophical Logic Vol 1 No 1 p 11ndash60 Scandinavian
University Press 1996
_____ Verificationism then and now In M van der Schaar (ed) Judgement and the
epistemic foundation of logic 3 Logic epistemology and the unity of science 31 p
03-14 Springer Science amp Business Media Dordrecht 2013
LORENZEN Paul Ein dialogisches konstruktivitaumltskriterium In Infinitistic methods 1961
Infinitistic methods (Proceedings of the Symposium on Foundations of Mathematics
Warsaw 2ndash9 September 1959) Oxford Pergamon Press p 193ndash2001961
WEYL Hermann David Hilbert and his mathematical work Bull Am Math Soc 50 612ndash
654 1944
WITTGENSTEIN L Some remarks on logical form Proceedings of the Aristotelian Society
Supplementary Volumes Vol 9 Knowledge experience and realism p 162-171
Published by Blackwell Publishing on behalf of The Aristotelian Society 1929
_____ Wittgenstein und der Wiener kreis (1929-1932) Translated into English by
Joachim Schulte and Brian McGuinnessWerkausgabe Band 3 Frankfurt am Main
Suhrkamp 1984a
_____ Tractatus logico-philosophicus Tagebuumlcher 1914-16 philosophische
untersuchungen Werkausgabe Band 1 Frankfurt am Main Suhrkamp 1984b
9
Revisitando o Argumento da Linguagem Privada
Marcus Joseacute Alves de Souza 1
Introduccedilatildeo
Falar de ldquolinguagem privadardquo aponta para um conceito intuitivamente
ou aparentemente contraditoacuterio como pode existir uma linguagem privada
uma vez que a linguagem de um ponto de vista simplista pressupotildee
comunicaccedilatildeo interaccedilatildeo entre falantes Linguagem privada parece um
oxiacutemoro patente Entretanto do ponto de vista teoacuterico a depender de qual
moldura teoacuterica do significado se adere ldquolinguagem privadardquo natildeo eacute algo tatildeo
contraditoacuterio assim Deste modo ao se falar de ldquoargumento da linguagem
privadardquo natildeo se estaacute pensando num argumento que demonstre a
plausibilidade da linguagem privada Na acepccedilatildeo corrente dos estudos sobre
o pensamento de Wittgenstein objeto desta reflexatildeo ldquoargumento da
linguagem privadardquo eacute o argumento mais especificamente os argumentos
que tecircm a linguagem privada como objeto a rigor argumentos contra a
linguagem privada Segundo Hacker (2010 p 616) o que a expressatildeo indica
natildeo satildeo argumentos claros que o filoacutesofo apresenta na verdade satildeo
argumentos de tortuosa interpretaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo presentes nos
paraacutegrafos de 243 a 315 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas
A proposta deste artigo eacute modesta Primeiro apresentar um possiacutevel
modo de estruturaccedilatildeo do argumento que tornaria plausiacutevel uma
linguagem privada argumento se de enquadra no acircmbito de uma
1 Professor de Filosofia da UFAL Liacuteder do Grupo Linguagem e Cogniccedilatildeo-UFAL
Marcus Joseacute Alves de Souza | 159
compreensatildeo mental de caraacuteter privatista A seguir indicar trecircs pontos de
ataques contra o argumento extraiacutedos dos paraacutegrafos das Investigaccedilotildees
Filosoacuteficas tentando mostrar falhas nas premissas do argumento
formalizado da plausibilidade da linguagem privada Feito isso encerra-
se o artigo anunciando brevemente alguns elementos desdobrados da
proposta do filoacutesofo para pensar o mental dentro do quadro da
compreensatildeo de linguagem do filoacutesofo
Argumento a Favor da Linguagem Privada
Natildeo eacute claro que Wittgenstein tenha em mente um alvo apenas de ataque
nos trechos indicados como referecircncia do que ficou conhecido como
ldquoargumento da linguagem privadardquo2 todavia eacute possiacutevel determinar que o
filoacutesofo busca atacar certa imagem de privacidade que podemos chamar de
moderna e o modelo de teoria do significado subjacente a tal privacidade
modelo mentalista de significado Nesta imagem existe o mundo da proacutepria
mente e o mundo exterior agrave mente dos objetos materiais e da mente das
outras pessoas O mundo da proacutepria mente eacute privado inicialmente
encapsulado em si e acessiacutevel privadamente de modo direto ao sujeito mental
e de modo indireto por outros sujeitos mentais (outras mentes)
Numa acepccedilatildeo cartesiana a mente eacute uma substacircncia imaterial ligada
ao corpo do portador da mente mas o corpo poderia existir por si proacuteprio
Na mente cartesiana se desenrola os pensamentos sentimentos
sensaccedilotildees Estes satildeo fundamentalmente privados Tal compreensatildeo cria
um problema efetivo quanto ao conhecimento de outras mentes
Tal imagem tambeacutem sobrevive numa acepccedilatildeo empirista mesmo que
o candidato a mente seja algo empiricamente observaacutevel o ceacuterebro Parece
existir uma dificuldade em transpor das operaccedilotildees neuroloacutegicas toda a
gama de manifestaccedilotildees comportamentais e toda a gama de capacidades
2 Eacute possiacutevel perceber que o ataque eacute claro para uma imagem cartesiana de mente bem como o modelo linguagem x designaccedilatildeo no ldquoargumento da linguagem privadardquo mas eacute possiacutevel perceber pelo itineraacuterio reflexivo do filoacutesofo que mesmo uma compreensatildeo empiacuterica mentalista da linguagem ou mesmo o ataque pode se conectar com problemas detectados naquilo que foi o projeto de linguagem fenomenoloacutegica Cf Nielsen 2008 Parte I
160 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
intelectuais disposiccedilotildees etc da nossa espeacutecie e de outras semelhantes o
que faz com que se estabeleccedila uma independecircncia de esferas mental e
fiacutesica (manifestaccedilotildees comportamentais x operaccedilotildees neuronais) que
alimenta a mesma imagem de mente
A compreensatildeo que a mente eacute algo privado e que a linguagem eacute
expressatildeo externa do que estaacute interno eacute a concepccedilatildeo em termos gerais
comum tanto do idealismoracionalismo quanto do
fisicalismoempirismo Isso cria um problema para o conhecimento de
outras mentes sendo que o encaminhamento da soluccedilatildeo se estabeleccedila por
analogia entre minha mente que tenho acesso direto e a mente dos
outros que numa hipoacutetese otimista tenho acesso indireto
Assim um dos alvos talvez o principal dos trechos das Investigaccedilotildees
Filosoacuteficas seja a compreensatildeo privada da mente e associada a esta a
teoria do significado que decorre desta privacidade que daacute condiccedilotildees para
se pensar uma linguagem privada No sect 243 Wittgenstein (1999) daacute as
bases para esta linguagem Natildeo se trata de uma linguagem
circunstancialmente privada algo como monoacutelogos criptografados mas
uma linguagem radicalmente privada A indicaccedilatildeo do filoacutesofo eacute uma
linguagem que diga respeito agraves proacuteprias ocorrecircncias mentais vivecircncias
interiores que seriam nesta moldura radicalmente privadas
Mas seria tambeacutem pensaacutevel uma linguagem na qual algueacutem pudesse para seu
uso proacuteprio anotar ou exprimir suas vivecircncias interiores ndash seus sentimentos
seus estados de espiacuterito ndash Natildeo podemos fazer isso em nossa linguagem
costumeira ndash acho que natildeo As palavras dessa linguagem devem referir-se
agravequilo que apenas o falante pode saber agraves suas sensaccedilotildees imediatas privadas
Um outro pois natildeo pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN
1999 p 98 sect 243)
Assim aquilo sobre de que a linguagem se compotildee signos regras
referecircncia enfim todos seus elementos seriam privados apenas o criador-
usuaacuterio definiria o significado e apenas ele saberia o significado dos signos
De modo esquemaacutetico o argumento a favor da possibilidade de uma
linguagem privada poderia ser feito assim
Marcus Joseacute Alves de Souza | 161
- ldquoSensaccedilotildees satildeo privadas da mente da pessoa que as temrdquo (premissa 1 = P1)
- ldquoAs sensaccedilotildees satildeo inacessiacuteveis a outras pessoas uma vez que os outros natildeo tecircm
certeza se algueacutem tem ou natildeo uma sensaccedilatildeo particularrdquo (premissa 2 = P2)
- ldquoAlgueacutem pode dar um nome a uma sensaccedilatildeo particular na privacidade de sua mente
e usar este nome e o acerto deste nome nunca seria acessado por ningueacutem a
natildeo ser o usuaacuterio privadordquo (premissa 3 = P3)
- ldquoO significado de um termo nesta linguagem nada mais eacute que a referecircncia de uma
ocorrecircncia mental (sensaccedilatildeo) e seu modo de expressatildeo (signo) sobre uma
sensaccedilatildeo presente ou passada eacute a simples indicaccedilatildeo privada (ostensatildeo) desta
ocorrecircncia mentalrdquo (premissa 4 = P4)
rarr ldquoA linguagem privada eacute possiacutevel seria a linguagem de nossas ocorrecircncias
mentaisrdquo (Conclusatildeo)
Fazendo uma avaliaccedilatildeo inicial dessas premissas se pode estabelecer
sobretudo dentro de uma moldura privatista da mente e uma concepccedilatildeo
mentalista do significado que existe uma certa plausibilidade do argumento
A premissa 1 (P1) parece ser verdadeira as ocorrecircncias mentais as
sensaccedilotildees satildeo privadas ldquoningueacutem sente a minha dorrdquo por exemplo eacute uma
afirmaccedilatildeo claramente verdadeira o que aponta para a verdade da
premissa 1
A premissa 3 (P3) parece ser verdadeira tambeacutem parece ser
plausiacutevel admitir sua verdade Sendo privadas e sendo algo as sensaccedilotildees
podem ser nomeadas como qualquer objeto exterior na linguagem puacuteblica
(mesmo que passe por um processo mental de representaccedilatildeo) Como
apenas o criador e usuaacuterio conhece o termo soacute ele conhece sua associaccedilatildeo
referencial com o objeto e soacute ele conhece o objeto logo eacute possiacutevel admitir
que soacute ele sabe se acertou ou natildeo no uso deste termo
A premissa 4 (P4) tambeacutem pode ser plausiacutevel uma vez que pode se
admitir que o ato de ostensatildeo eacute fundamental para a instanciaccedilatildeo do
significado de um termo eacute possiacutevel admitir que semanticamente o
significado de um termo eacute sua substituiccedilatildeo por ostensatildeo no plano da
linguagem e como os elementos satildeo privados tal mecanismo pode ser
executado privadamente
162 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A premissa 2 (P2) parece ser a problemaacutetica pois parece existir uma
seacuterie de situaccedilotildees que claramente sabemos que uma pessoa tem dor por
exemplo o que aponta para uma implausibilidade da premissa Claro que
existem situaccedilotildees de simulaccedilatildeo de sensaccedilotildees mas seraacute possiacutevel duvidar que
ao enfiar um prego debaixo da unha de uma pessoa ela natildeo tenha dor Os
mais aferrados agrave moldura privatista da mente podem pensar que no maacuteximo
o que posso fazer eacute dado agraves reaccedilotildees da pessoa (comportamento) supor que
ela estaacute tendo dor pois natildeo sinto a dor dela logo natildeo tenho condiccedilotildees de
dizer com certeza que ela tem ou natildeo dor Assim mesmo que se possa pensar
que haacute uma inconfundiacutevel expressatildeo comportamental de dor natildeo existe clara
e confiaacutevel regularidade entre causa e efeito no caso das sensaccedilotildees Por mais
regular que seja a relaccedilatildeo entre enfiar um prego debaixo de uma unha de
algueacutem e este algueacutem gritar chorar se contorcer parece possiacutevel pensar
contra-exemplos desta regularidade algueacutem que fique impassiacutevel por
exemplo Assim parece natildeo existir uma correlaccedilatildeo perfeita entre tiacutepica causa
do comportamento de dor a dor e o comportamento de dor o que torna mais
plausiacutevel a premissa 2
Esta avaliaccedilatildeo preliminar tem como objetivo reforccedilar as bases da
plausibilidade da admissatildeo da linguagem privada P1 aponta para o
aspecto da natureza privada das ocorrecircncias mentais P2 para a dimensatildeo
epistemoloacutegica das ocorrecircncias mentais P3 e P4 para o mecanismo
semacircntico da proposta de linguagem privada
O exemplo recorrente de Wittgenstein eacute o da dor em algumas
ocasiotildees trabalha tambeacutem com o exemplo das cores Natildeo se pretende fugir
desses exemplos pois dado a sua vivacidade e forccedila retoacuterica servem
melhor para esclarecer a questatildeo e desdobrar para outros exemplos
Pontos de Ataque ao Argumento
A seguir tentaremos indicar a partir das reflexotildees de Wittgenstein o
ataque a este argumento na verdade indicando a inadmissibilidade do
argumento proposto para embasar a possibilidade da linguagem privada
Marcus Joseacute Alves de Souza | 163
A Engrenagem Solta
Este ponto de ataque pode ser detectado na sequecircncia dos paraacutegrafos
271 272 279 e 293 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas
Eacute uma das metaacuteforas recorrentes de Wittgenstein para explicar a
linguagem a das engrenagens Assim aponta para o fato do significado ser
uma articulaccedilatildeo de uma seacuterie de elementos
Para a formulaccedilatildeo deste ataque os paraacutegrafos apontam para a
ambiguumlidade possiacutevel na denotaccedilatildeo do significado de palavras de cores
Nos paraacutegrafos eacute possiacutevel perceber a alegaccedilatildeo de que cada pessoa processa
seu exemplar de cor na sua mente e que existe a possibilidade de confusatildeo
na denotaccedilatildeo das cores Eacute possiacutevel que eu e parte da humanidade tenham
uma sensaccedilatildeo de vermelho e outra parte tenha outra sensaccedilatildeo cromaacutetica
(WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 272)
Um empirista como Locke admite a mesma situaccedilatildeo mas
sabiamente ele aponta (como Wittgenstein) que eacute uma situaccedilatildeo
inverificaacutevel Ou seja se vocecirc tem um exemplar privado na memoacuteria que
vocecirc chama de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute verde e eu tenho um
exemplar privado que eu chamo de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute azul e
um terceiro chama seu exemplar privado de ldquovermelhordquo e ele na realidade
eacute vermelho Dado a privacidade efetiva natildeo posso verificar os exemplares
privados dos trecircs A questatildeo mais problemaacutetica entra pela porta dos fundos
pela linguagem Para Locke ndash e aqui eacute a oportunidade de expor uma teoria
mentalista standart do significado - os nomes satildeo marcas sensiacuteveis de ideias
armazenadas na memoacuteria assim as palavras estatildeo em associaccedilatildeo com ideias
da mente Se uma palavra natildeo ldquoexecutardquo a mesma ideia armazenada na
mente de duas pessoas ou mais pessoas ela natildeo seraacute significativa
Quando um homem fala com outro o faz para que possa ser entendido e o fim
da fala implica que estes sons como marcas devem tornar conhecidas suas
ideias ao ouvinte Essas palavras entatildeo satildeo as marcas das ideias de quem fala
ningueacutem pode aplicaacute-las como marcas imediatamente a nenhuma outra coisa
164 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
exceto agraves ideias que ele mesmo possui jaacute que isto as tornaria sinais de suas
proacuteprias concepccedilotildees e ao contraacuterio aplicaacute-las a outras ideias faria com que elas
fossem e natildeo fossem ao mesmo tempo sinais de suas ideias e deste modo natildeo
teriam de nenhum modo qualquer significado (LOCKE 1983 p 222)
Assim no uso puacuteblico o desacordo eacute detectaacutevel uma vez que um dos
falantes mostre publicamente o que eacute que ele tem como exemplar de
ldquovermelhordquo do mesmo modo o outro e assim aleacutem de detectar o desacordo
superaacute-lo isso mantendo a moldura mentalista Cores a princiacutepio satildeo
elementos ou aspectos fiacutesicos de objetos fiacutesicosmateriais uma vez que se
tem a vantagem de poder ldquomostrarrdquo exteriormente um exemplar fiacutesico
similar ou idecircntico com a cor para superar a ambiguumlidade Transpor esta
problemaacutetica para o exemplo da dor torna a situaccedilatildeo bem mais problemaacutetica
e complexa Dor eacute uma sensaccedilatildeo sendo privada ningueacutem que natildeo tenha a
experiecircncia da sensaccedilatildeo de dor saberaacute o que significa o signo qualquer que
o designa Se o usuaacuterio e falante do signo dor usa-o para significar X num
momento e noutro para significar Y natildeo haveraacute desacordo nem
possibilidade de verificaccedilatildeo Na verdade seraacute tomado pelo usuaacuterio da
linguagem privada como significando a mesma coisa A mesma situaccedilatildeo
pode ser pensada em uso comum Suponha que algueacutem se queixa de uma
dor sendo privada a sensaccedilatildeo pode variar de pessoa para pessoa se for
diferente de pessoa para pessoa a duacutevida eacute sem sentido pois eacute radicalmente
insuperaacutevel a privacidade o que afeta o uso puacuteblico da palavra ldquodorrdquo como
palavra significativa Tal situaccedilatildeo aponta para a ideia de engrenagem solta
no uso do termo torna-se irrelevante se este algueacutem tem dor ou natildeo para a
significaccedilatildeo do termo em uso privado e para a comunicaccedilatildeo em uso puacuteblico
ldquo[] a roda que se pode mover sem que mais nada se mova natildeo pertence a
maacutequinardquo (WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 271)
A este respeito Wittgenstein (1997 p 427 ndash traduccedilatildeo nossa) diz nas
notas para conferecircncia de filosofia3 ldquoNatildeo eacute um ato oculto nomear um
objeto que possa dar significado a uma palavrardquo
3 Este texto que ficou com o tiacutetulo Conferecircncia Filosoacutefica (MS 166) eacute um conjunto de notas segundo Von Wright de em 1935 ou 1936 denotando uma conferecircncia natildeo realizada pelo filoacutesofo que segundo Anthony Kenny deveria ser realizada em 1941 supostamente para Academia Britacircnica Essas notas dizem respeito agraves reflexotildees de Wittgenstein
Marcus Joseacute Alves de Souza | 165
O que significa essa reflexatildeo para o argumento a favor da linguagem
privada Natildeo eacute um reforccedilo agrave privacidade como uma esfera inexpugnaacutevel
mas para mostrar que eacute irrelevante o objeto referecircncia da sensaccedilatildeo numa
moldura mentalista que na verdade supostamente funciona como
elemento fundamental para a significaccedilatildeo Nisso mesmo sem entrar no
meacuterito de que as sensaccedilotildees satildeo privadas (P1) sendo inacessiacuteveis aos outros
(P2) elas natildeo jogam papel algum para a significaccedilatildeo o que tira a
plausibilidade de P3 Entretanto no uso comum natildeo eacute possiacutevel supor que
estejamos num permanente engano ou mal entendido do significado dos
termos de sensaccedilatildeo evidecircncia que ataca a premissa 2 (P2)
Ausecircncia de Criteacuterio
No sect 258 Wittgenstein (1999) cria uma hipoteacutetica situaccedilatildeo de algueacutem
que quer escrever em um diaacuterio sobre a repeticcedilatildeo de uma sensaccedilatildeo Diz
ele ldquoPara tanto associo-a com o signo lsquoSrsquo e escrevo este signo num
calendaacuterio todos os dias em que tenho a sensaccedilatildeordquo A ideia eacute que faccedilo isso
por uma espeacutecie de ostensatildeo privada concentro-me na sensaccedilatildeo como
um apontar interior e a nomeio A pergunta que surge eacute ldquopara que tal
ritualrdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 100 sect 258) Se ele serve para
estabelecer o significado de ldquoSrdquo deve-se dizer que toda vez que a sensaccedilatildeo
surgir e nomeaacute-la isso se deu porque me recordo da ligaccedilatildeo pois gravei
em mim a associaccedilatildeo de ldquoSrdquo e a sensaccedilatildeo Escreve-se ldquoSrdquo para expressar
minha certeza interior dessa associaccedilatildeo Esta seria uma possiacutevel
justificativa para o ldquoritualrdquo mas ela eacute claramente insuficiente Pensemos
que significa tal situaccedilatildeo Um dos aspectos que mostra a insuficiecircncia eacute o
fato de que pode existir uma falha na instanciaccedilatildeo por erro de memoacuteria
por exemplo Ou seja marco no diaacuterio ldquoSrdquo no dia X quando tenho a
sensaccedilatildeo S no mesmo dia X tenho a mesma sensaccedilatildeo e por familiaridade
interior tenha a certeza de que a sensaccedilatildeo foi a mesma e marco ldquoSrdquo no
sobre a linguagem privada sua implausibilidade Mesmo pouco sistemaacutetico o escrito eacute um grande auxiacutelio para a compreensatildeo e da evoluccedilatildeo do tema no pensamento do filoacutesofo
166 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
calendaacuterio Passados 15 dias tenho a sensaccedilatildeo mas natildeo estou tatildeo certo
fico titubeante tenho duacutevidas de mim para mim se eacute a mesma sensaccedilatildeo
minha memoacuteria natildeo me daacute a certeza que precisaria mas depois de um
pouco mais de introspecccedilatildeo e esforccedilo de lembranccedila a certeza vem e anoto
ldquoSrdquo no calendaacuterio No dia seguinte tenho a sensaccedilatildeo desta vez ela me
pareceu niacutetida e familiar e escrevo sem titubear ldquoSrdquo
A pergunta que surge eacute como se pode sustentar a correccedilatildeo deste uso
denotativo interno Algueacutem mais apegado ao quadro criado atribuiria agrave
sinceridade ou agrave honestidade do ldquousuaacuteriordquo Mas novamente como aferir
tal sinceridade ou honestidade desta associaccedilatildeo Em tese apenas o usuaacuterio
da definiccedilatildeo extensional seria o avaliador de tal sinceridade ou
honestidade Seria algo como ldquoserei sincero com minha honesta
associaccedilatildeordquo ldquoserei sincero comigo mesmo e por isso garanto que natildeo erro
(intencionalmente) ao associar repetidas sensaccedilotildees ao signo lsquoSrsquordquo Mas ser
vocecirc o avalizador de sua sinceridade serum sincero e honesto avalizador
de sua sinceridade e honestidade eacute expressatildeo de um sem sentido de falta
de engrenagem significativa desta situaccedilatildeo E segundo Wittgenstein (1997
p 427-438) nas notas para conferecircncia filosoacutefica se o objeto interno
muda e nossa memoacuteria nos engana o que eacute possiacutevel e usamos a expressatildeo
privada de boa-feacute para significar o objeto usamos a mesma expressatildeo a
cada vez para significar algo distinto Falar de sinceridade honestidade e
boa feacute neste contexto eacute sem sentido exatamente porque boa-feacute
honestidade e sinceridade satildeo conceitos puacuteblicos natildeo faz sentido a natildeo
ser figuradamente e em uso puacuteblico dizer que se eacute honesto consigo
mesmo natildeo existe honestidade ou sinceridade privada Isso marca o
aspecto da falta de criteacuterio de correccedilatildeo desta situaccedilatildeo Aleacutem disso se pode
pensar voltando ao exemplo que se houvesse uma falha na memoacuteria que
criasse a incerteza o usuaacuterio natildeo deveria escrever ldquoSrdquo no dia em que ficou
com duacutevida isso eacute expressatildeo de que seria possiacutevel evitar o erro ou o
engano desde que o usuaacuterio fosse diligente epistemologicamente no
reconhecimento da sensaccedilatildeo e na sua posterior nomeaccedilatildeo Mas a questatildeo
natildeo eacute de capacidade memoriacutestica de reconhecimento A memoacuteria eacute uma
Marcus Joseacute Alves de Souza | 167
habilidade construiacuteda numa linguagem puacuteblica natildeo um ldquobauacuterdquo privado de
vivecircncias acumuladas Neste caso se o ldquousuaacuteriordquo competente ou natildeo em
termos de memoacuteria associar a sensaccedilatildeo ao signo ldquoSrdquo e disser que associou
corretamente seraacute correto Se ele associar incorretamente e disser que
associou corretamente seraacute correto tambeacutem Ou mesmo numa hipoacutetese
de desonestidade se ele natildeo tiver sensaccedilatildeo alguma mas se disser que ldquoSrdquo
significou tal sensaccedilatildeo assim seraacute tido como correto Isso fica claro em
trechos dos sectsect 258 e 259 ldquoCorreto eacute aquilo que sempre me parecer
correto E isto significa apenas que natildeo se pode falar de corretordquo ou ldquoA
balanccedila na qual se pesa as impressotildees natildeo eacute a impressatildeo da balanccedilardquo
(WITTGENSTEIN 1999 p 101 sectsect 258 e 259)
Tal situaccedilatildeo aponta para o fato de que criteacuterio privado de correccedilatildeo
natildeo eacute criteacuterio eacute impressatildeo de criteacuterio Parece haver criteacuterio mas satildeo
impressotildees de criteacuterio natildeo se descrimina nem corrige nada
O interessante eacute que todo o ldquoritualrdquo descrito anteriormente se faz a
semelhanccedila de procedimentos regrados publicamente transpostos par
uma esfera privada numa clara hipostasia de significado
Esta reflexatildeo ataca diretamente a premissas 3 (P3) e 4 (P4) do
argumento em favor da linguagem privada Do mesmo modo que a
inscriccedilatildeo ldquoSrdquo natildeo denota a sensaccedilatildeo necessariamente eacute possiacutevel como
decorrecircncia atacar a premissa 1 (P1) uma vez que se for o caso nem o
usuaacuterioportador da sensaccedilatildeo ldquosaberdquo se a tem isso pela situaccedilatildeo criada
pelo diaacuterio
TransiccedilatildeoDescritibilidade
No modelo cartesiano seria possiacutevel algo como o que Wittgenstein
aventa no sect 257 da crianccedila gecircnio que descobre por si mesma o nome de
uma sensaccedilatildeo ldquolsquoComo seria se os homens natildeo manifestassem suas dores
(natildeo gemessem natildeo fizessem caretas etc) Entatildeo natildeo se poderia ensinar
a uma crianccedila o uso das palavras lsquodor de dentersquo ndash Ora imaginemos que
uma crianccedila seja um gecircnio e descubra por si proacutepria um nome para a
168 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
sensaccedilatildeordquo (WITTGENSTEIN 1999 p 101) Seria uma situaccedilatildeo em que se
aprende o que eacute dor sentindo-a De novo seria algo como ao me
machucar concentro-me na sensaccedilatildeo e imprimo em mim o que eacute ldquodorrdquo
com um signo qualquer Como vimos pela argumentaccedilatildeo anterior falta
criteacuterios para identificar corretamente as minhas proacuteprias dores por
exemplo Mas deixemos isso de lado por enquanto pois no sect 265 haacute um
interessante desdobramento Admitindo a princiacutepio ser possiacutevel
identificar minhas proacuteprias dores corretamente entatildeo rigorosamente eu
natildeo poderia ser capaz de entender proferimentos como ldquoX tem dorrdquo
Podemos supor que descrevo dores a partir da minha proacutepria dor por
introspecccedilatildeo (ostensatildeo interior) mas se eacute assim isso natildeo me permite
ensinar aos outros como descrever a sensaccedilatildeo para uma pessoa particular
a rigor nem a mesma pois isso natildeo foi feito privadamente (Hume jaacute
assinalava que o ldquoeurdquo natildeo eacute objeto de introspecccedilatildeo) Assim quando sinto
dor natildeo eacute meu ego sente dor nem uma parte especial de mim como meu
ceacuterebro Isso eacute claramente uma falaacutecia (falaacutecia do homuacutenculo4) Mas o
ponto aqui eacute o da transcriccedilatildeo de ldquohaacute doresrdquo de ldquoeu tenho doresrdquo uma vez
que satildeo identificadas como sendo a mesma descriccedilatildeo pois natildeo posso sair
de mim dado a privacidade radical das sensaccedilotildees Do mesmo modo ldquoele
tem dorrdquo natildeo significa que eu designei ldquodorrdquo como algo que acontece num
lugar que natildeo seja o da minha privacidade ou seja o corpo ou a mente de
outra pessoa Se o modelo cartesiano estaacute certo ldquodorrdquo eacute um evento
privado captado introspectivamente enquanto ldquodorrdquo no corpo ou na
mente de outrem natildeo eacute algo introspectivamente captaacutevel por mim Assim
falar de dor a partir de mim como ldquodorrdquo de outra pessoa eacute no miacutenimo
uma significaccedilatildeo indevida Natildeo haacute garantia alguma de identidade entre os
significados (WITTGENSTEIN 1999 p 107 sect 292) Sendo assim natildeo
posso descrever dores que sinto em mim como dores que outro sente Em
sect302 Wittgenstein diz ldquoSe precisamos representar-nos a dor dos outros
segundo modelo de nossa proacutepria dor entatildeo isso natildeo eacute coisa faacutecil pois
4 KENNY J P The homunculus fallacy Cf KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein Oxford Blackwell 1984 p 124-136
Marcus Joseacute Alves de Souza | 169
devo representar-me dores que natildeo sinto segundo dores que sintordquo
(WITTGENSTEIN 1999 p 108)
O objetivo deste ponto eacute destacar agraves avessas que o fundamento
privado de constituiccedilatildeo da linguagem eacute implausiacutevel Ele cria uma seacuterie de
dificuldades para o argumento por analogia para conhecimento de outras
mentes numa perspectiva puacuteblica mostra que pela ausecircncia de criteacuterios
para constituiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel estabelecer qualquer descriccedilatildeo sobre algo
que ocorra na mente de outro tal linguagem aleacutem de ser privada deve
ser autocontida o que se mostra sem sentido pois mesmo as
descriccedilotildeesnomeaccedilotildees privadas perdem toda funccedilatildeo como descriccedilatildeo ou
nomeaccedilatildeo Nomear natildeo eacute um ato privado e oculto para que o termo tenha
significado Segundo Wittgenstein nas notas para conferecircncia filosoacutefica
nomear estaacute dentro de uma teacutecnica de uso nomear natildeo eacute espeacutecie de
batismo maacutegico privado ldquonatildeo serve para nada dizer que temos um objeto
privado ante a mente e damos um nomerdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 129
sect 428) Soacute existe nome segundo ele quando haacute uma teacutecnica para usaacute-lo e
esta teacutecnica natildeo pode ser privada Isso atesta agraves avessas que para que as
descriccedilotildeesnomeaccedilotildees sejam significativas devem ser puacuteblicas O que
ataca especialmente a premissa 2 do argumento (P2) as sensaccedilotildees natildeo satildeo
autocontidas indescritiacuteveis e inacessiacuteveis a outrem logo nem sempre terei
duacutevidas sobre se o outro tem ou natildeo determinada sensaccedilatildeo pois para que
a nomeaccedilatildeodescriccedilatildeo qualquer seja significativa ela deve ser puacuteblica o
que aponta para a noccedilatildeo de que se algum termo ou descriccedilatildeo de sensaccedilatildeo
eacute significativo ele se construiu publicamente logo as sensaccedilotildees natildeo satildeo
inacessiacuteveis e natildeo vivemos numa permanente duacutevida sobre se o outro tem
ou natildeo uma sensaccedilatildeo qualquer como dor
Argumento da Linguagem Privada e Filosofia da Mente em
Wittgenstein
Argumento da linguagem privada eacute o esforccedilo de levar ao extremo das
contradiccedilotildees uma concepccedilatildeo privada e representacional de mente que
170 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ganha forccedila ou eacute caudataacuteria de uma concepccedilatildeo referencialista de
significado (objeto ndash representaccedilatildeo ndash signo) Os argumentos apontam para
a perspectiva de fazer uma terapia de tal entendimento de apontar
deficiecircncias conceituais e de buscar suprimi-las com outro registro de
significado e mente
Este novo registro se encontra na concepccedilatildeo de linguagem como uso
como conjunto de accedilotildees puacuteblicas e regradas Nisso emergem conceitos natildeo
referencialistas de linguagem como jogos padrotildees regras criteacuterios
aprendizado e treinamento Tal conjunto de elementos numa avaliaccedilatildeo
panoracircmica dos usos de um termo e seus aparentados faz com que surja
a ldquogramaacuteticardquo de um conceito que abre espaccedilo para o entendimento da
filosofia da mente de Wittgenstein
A proposta de filosofia da mente do filoacutesofo se associa agrave gama de
conceitos surgidos do uso especialmente do uso de verbos intencionais
crer querer conhecer lembrar memorizar imaginar pensar etc cada
um com sua gramaacutetica Sendo assim mente natildeo eacute uma instacircncia
metafiacutesica privada e pneumaacutetica A configuraccedilatildeo dos elementos
conceituais extraiacutedo dos usos dos conceitos mentais traz uma explicaccedilatildeo
de uma seacuterie de fenocircmenos mentais a partir de
Nisso emergem conceitos de explicaccedilatildeo de uma seacuterie de fenocircmenos
mentais como
a) paracircmetros conceituais de definiccedilatildeo de conceitos mentais articulaccedilotildees e
exclusotildees pragmaacuteticas de uso que traccedilam o limite da gramaacutetica dos conceitos
mentais
b) assimetria pronominais de primeira e terceira pessoa como elementos
pragmaacuteticos que explicam a diferenccedila entre o interno e o externo como jogos
de linguagem entre auto e heacutetero descriccedilotildees ou expressotildees caracteriacutesticas de
exteriorizaccedilotildees (primeira pessoa) e afirmaccedilotildees sobre dimensotildees mentais de
outrem (terceira pessoa) diluindo o problema das outras mentes no formato
mentalista Assim interno e externo natildeo satildeo instacircncias metafiacutesicas o externo
natildeo eacute fachada do interno satildeo conceitos que tem um papel fundamental na nossa
imagem de pessoa como um conceito puacuteblico
c) comportamentos caracteriacutesticos associados pragmaticamente como conceitos
mentais
Marcus Joseacute Alves de Souza | 171
Outros aspectos da investigaccedilatildeo de Wittgenstein poderiam ser
levantados e aprofundados mas estes trecircs sumaacuterios elementos apontam
para onde se desenvolve a reflexatildeo do filoacutesofo A proposta aqui foi apenas
apresentar a discussatildeo sobre a plausibilidade da linguagem privada e
apontar elementos da filosofia da mente de Wittgenstein Do mesmo
modo compreender que o argumento contra a linguagem privada eacute de
fundamental importacircncia para o entendimento da filosofia da mente de
Wittgenstein
Referecircncias
HACKER P M S Privative language argument In DANCY J SOSA E STEUP M (eds)
A companion to epistemology 2 ed Oxford Wiley-Blackwell 2010 p 616-621
KENNY J P The homunculus fallacy In KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein
Oxford Blackwell 1984 pp 124-136
LOCKE J Ensaio acerca do entendimento humano Trad Anoar Aiex Satildeo Paulo Nova
Cultural 1983
NIELSEN K S The evolution of the private language argument Hampshire UK
Ashgate Publishing Company 2007
SCHROEDER S Private language and private experience In GLOCK H-J Wittgenstein
a critical reader Oxford Backwell Publishers 2001 p 174-198
WITTGENSTEIN L Ocasiones filosoacuteficas 1912-1951 Trad Angel Garcia Rodrigues
Madrid Ediciones Caacutetedra 1997
______ Investigaccedilotildees filosoacuteficas Trad Joseacute Carlos Bruni Satildeo Paulo Nova Cultural
1999
10
O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico
Ricardo S Rabenschlag 1
No capiacutetulo que publiquei nesta mesma seacuterie de livros que registram
parte da produccedilatildeo acadecircmica do grupo de pesquisa Linguagem e
Cogniccedilatildeo afirmei que seria inuacutetil tentar extrair uma concepccedilatildeo coerente
de ciecircncia a partir da anaacutelise das principais obras publicadas pelos Novos
Ateus Embora minha convicccedilatildeo a este respeito permaneccedila inalterada natildeo
creio ser inuacutetil a tentativa de identificar os principais equiacutevocos
epistemoloacutegicos que este e outros grupos de autodeclarados pensadores
criacuteticos cometem em sua cruzada contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo
Em sua acepccedilatildeo vulgar ter uma atitude criacutetica significa suspender o
juiacutezo acerca de uma ideia a menos que tenhamos argumentos logicamente
vaacutelidos e bem fundados seja para afirmaacute-la seja para negaacute-la
Compreendido dessa forma o pensamento ou a atitude criacutetica se opotildeem
de um lado ao raciociacutenio falacioso e de outro agrave atitude dogmaacutetica Por
que devemos preferir raciociacutenios vaacutelidos agrave raciociacutenios falaciosos eacute algo que
dispensa maiores explicaccedilotildees Com efeito o proacuteprio conceito de falaacutecia jaacute
conteacutem um elemento pejorativo e o mesmo se daacute em relaccedilatildeo agrave atitude
dogmaacutetica compreendida natildeo apenas como indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave
busca de razotildees para se afirmar ou negar certas ideias mas sobretudo
como recusa em fazecirc-lo mesmo quando a afirmaccedilatildeo ou a negaccedilatildeo destas
ideais entra em flagrante contradiccedilatildeo com aquilo que acreditamos com
base em argumentos vaacutelidos e bem fundados
1 Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Ricardo S Rabenschlag | 173
Mas se eacute assim o que poderia haver de errado com o Pensamento
Criacutetico Como jaacute disse natildeo creio que haja nada de errado com a ideia de que
devemos sempre que possiacutevel suspender nosso juiacutezo antes que tenhamos
boas razotildees quer para negar quer para afirmar algo A ressalva eacute importante
porque no acircmbito praacutetico nem sempre podemos nos dar ao luxo de
suspender nosso juiacutezo sobretudo quando as consequecircncias desta indecisatildeo
satildeo moralmente graves O problema com o Pensamento Criacutetico natildeo diz
respeito a esta atitude criacutetica moderada e sim a um conjunto mais ou menos
bem definido de crenccedilas largamente difundidas por autores que se
identificam como pensadores criacuteticos entre eles os principais
representantes do novo ateiacutesmo2 Neste breve capiacutetulo examinarei uma das
maacuteximas mais populares entre os autoproclamados pensadores criacuteticos3
Qualquer um que jaacute tenha passado dos cinquenta anos e que tenha
amor pela ciecircncia se lembra com carinho das noites em que assistiu pela
primeira vez e ao longo de vaacuterias semanas aos treze capiacutetulos da seacuterie
Cosmos apresentada por Carl Sagan Natildeo foi o primeiro programa do tipo
e nem o melhor segundo muitos criacuteticos4 mas sob um aspecto ele foi
uacutenico pois nenhum outro programa de divulgaccedilatildeo cientiacutefica alcanccedilou uma
audiecircncia tatildeo vasta Seja pela beliacutessima trilha sonora pelos efeitos
especiais inovadores ou pelo carisma do seu apresentador a seacuterie Cosmos
foi um marco na divulgaccedilatildeo cientiacutefica audiovisual
Uma das caracteriacutesticas principais da seacuterie Cosmos posteriormente
publicada em forma de livro com o mesmo tiacutetulo e que teve enorme
sucesso de vendas em todo o mundo eacute que ela natildeo visava apenas
2 Estou me referindo aqui aos Quatro Cavaleiros do Natildeo-Apocalipse Richard Dawkins Christopher Hitchens Daniel Dennett e Sam Harris
3 Esta eacute apenas uma pequena parte de um projeto mais amplo cujos resultados pretendo publicar num livro com o mesmo tiacutetulo do presente capiacutetulo
4 Muitos incluindo o autor deste capiacutetulo consideram a seacuterie A Escalada do Homem apresentada por Jacob Bronowski como sendo superior sobretudo em razatildeo do maior escopo profundidade e interdisciplinaridade
174 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
transmitir a moderna visatildeo cientiacutefica do mundo ela buscava tambeacutem
promover o espiacuterito cientiacutefico moderno que tornara possiacutevel aos cientistas
modernos descobrirem tudo aquilo que Carl Sagan nos apresentava de
maneira tatildeo cativante Em outras palavras uma parte substancial do
programa tinha como foco a proacutepria ciecircncia sua histoacuteria seus meacutetodos e
sobretudo a atitude criacutetica que segundo Carl Sagan estaacute na raiz dessa
inovadora e bem-sucedida maneira de buscar respostas para questotildees
fundamentais como a origem da vida a origem do homem e do pequeno
planeta que ele habita e ateacute mesmo a origem do proacuteprio Universo
Na tentativa de explicar para o grande puacuteblico os traccedilos essenciais da
atitude criacutetica que caracterizaria o pensamento cientiacutefico Carl Sagan fez
uso5 do seguinte aformismo que rapidamente foi adotado pelos
autoproclamados pensadores criacuteticos como um princiacutepio metodoloacutegico
essencial a toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica6
Princiacutepio de Sagan alegaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias
extraordinaacuterias7
Embora muitos educadores e divulgadores da ciecircncia entre eles
vaacuterios cientistas e alguns filoacutesofos interpretem o aforismo tornado ceacutelebre
por Carl Sagan como expressando um princiacutepio metodoloacutegico essencial a
toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica vejamos o que a
Epistemologia da Ciecircncia tem a dizer sobre essa suposta peacuterola do
pensamento criacutetico Nunca eacute demais lembrar que a Epistemologia da
Ciecircncia natildeo eacute uma ciecircncia que investiga a proacutepria ciecircncia como satildeo a
Histoacuteria da Ciecircncia e a Sociologia da Ciecircncia e sim uma disciplina filosoacutefica
que estuda a natureza a origem e os limites do conhecimento cientiacutefico
5 O aforismo eacute provavelmente uma adaptaccedilatildeo de uma frase praticamente idecircntica publicada num artigo de 1978 de autoria do socioacutelogo italiano Marcello Truzzi Com efeito em seu artigo ldquoOn the Extraordinary An Attempt at Clarification ele afirma que an extraordinary claim requires extraordinary proof
6 Uma busca raacutepida no Google Scholar revela que o aforismo na versatildeo tornada ceacutelebre por Sagan eacute usado em mais de 1000 publicaccedilotildees acadecircmicas
7 O aformismo orignal em inglecircs ldquoExtraordinary claims requery extraordinary evidencerdquo pode ser traduzido tambeacutem como ldquoAfirmaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias extraordinaacuteriasrdquo
Ricardo S Rabenschlag | 175
Antes de tudo eacute importante deixar claro que embora Carl Sagan
tenha empregado o aforismo para descartar explicaccedilotildees pseudocientiacuteficas
em momento algum ele afirmou que se tratava de um princiacutepio
metodoloacutegico e nem se deu ao trabalho de explicar seu sentido preciso e
a menos que se faccedila isso o tatildeo celebrado aforismo aparenta ser uma
apenas uma consequecircncia ilegiacutetima do fato psicoloacutegico de que em geral eacute
mais difiacutecil convencer algueacutem da verdade de uma crenccedila que contraria
suas expectativas do que da verdade de uma crenccedila que natildeo se contraria
suas expectativas Poderiacuteamos expressar essa compreensatildeo vulgar e
psicologista do Princiacutecio de Sagan do seguinte modo
Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas
requerem evidecircncias mais robustas
A consequecircncia eacute obviamente ilegiacutetima jaacute que da proposiccedilatildeo que
descreve o fato psicoloacutegico de que tendemos a rejeitar aquilo que contraria
nossas expectativas e a aceitar aquilo a que estamos acostumados natildeo se
segue o princiacutepio metodoloacutegico de que devemos ser mais exigentes em
relaccedilatildeo agraves evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que
contrariam nossas expectativas e menos exigentes em relaccedilatildeo agraves
evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que natildeo contrariam
nossas expectativas Mais importante que isso esta interpretaccedilatildeo
independentemente da sua origem natildeo eacute aceitaacutevel uma vez que se de fato
estamos naturalmente precavidos em relaccedilatildeo agraves alegaccedilotildees que
consideramos extraordinaacuterias nesse sentido psicoloacutegico do termo
ldquoextraordinaacuteriordquo o mais correto do ponto de vista metodoloacutegico seria
requerermos evidecircncias mais robustas justamente em relaccedilatildeo agraves
alegaccedilotildees que natildeo consideramos extraodinaacuterias
Outra possiacutevel leitura psicologista do Princiacutepio de Sagan resultaria de
uma interpretaccedilatildeo em que ambas as ocorrecircncias do termo
ldquoextraordinaacuteriasrdquo teriam a mesma acepccedilatildeo psicoloacutegica caso em que ele
assumiria a seguinte forma
176 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas
requerem evidecircncias igualmente contraacuterias as nossas expectativas
Em primeiro lugar cumpre observar que se o caraacuteter surpreendente
de uma evidecircncia for definido pelos seus efeitos isto eacute pelo caraacuteter
surpreendente daquilo que ela evidencia o aforismo natildeo passa de um
truiacutesmo pois nesse caso qualquer evidecircncia em favor de uma alegaccedilatildeo
que contrariasse nossas expectativas seria por definiccedilatildeo uma evidecircncia
contraacuteria as nossas expectativas Mais importante que isso por natildeo se
tratar de uma trivialidade evidecircncias cientiacuteficas possuem um caraacuteter
peculiar que deriva do fato de que as explicaccedilotildees cientiacuteficas operam por
meio de teorias Em razatildeo dessa dependecircncia muacutetua que existe entre as
teorias cientiacuteficas e as evidecircncias cientiacuteficas uma evidecircncia cientiacutefica
nunca deve ser considerada de modo independente Daiacute que mesmo os
eventos mais corriqueiros e ateacute mesmo banais aos olhos do cientista isto
eacute quando examinados a partir de um refencial teoacuterico particular possam
adquirir um significado surpreendente Lembro ainda hoje do espanto que
senti quando li pela primeira vez sobre o Paradoxo da Noite Escura8 Este
famoso paradoxo trata das implicaccedilotildees cosmoloacutegicas da escuridatildeo
noturna Ao menos para a maioria de noacutes eacute difiacutecil encontrar algo mais
banal do que a escuridatildeo noturna9 e no entanto Johannes Kepler
considerou justamente a escuridatildeo da noite como sendo uma evidecircncia da
finitude espacial do Universo
Em linhas gerais o raciociacutenio de Kepler foi o seguinte suponha que
as estrelas estejam distribuiacutedas regularmente e que o Universo seja
espacialmente infinito Para um observador em qualquer ponto deste
espaccedilo infinito haacute uma esfera com centro nele cujo volume aumenta com
o quadrado do seu raio Portanto agrave medida que nos dintanciamos deste
observador hipoteacutetico o nuacutemero de estrelas que intercepta o seu raio de
visatildeo cresce com o quadrado da distacircncia Como resultado natildeo importa
8 Tambeacutem conhecido como Paradoxo de Olbers
9 Os Esquimoacutes sabem muito bem que nem toda noite eacute escura
Ricardo S Rabenschlag | 177
para onde ele olhe haveraacute sempre uma estrela interceptando o seu raio de
visatildeo Portanto se nosso Universo fosse espacialmente infinto e estivesse
repleto de estrelas regularmente distribuiacutedas como defendia Giordano
Bruno o ceacuteu noturno deveria ser tatildeo brilhante quanto a superfiacutecie de uma
estrela meacutedia Como isso natildeo ocorre a conclusatildeo do argumento eacute falsa o
que implica que ao menos uma das premissas do argumento eacute igualmente
falsa ou seja ou o Universo eacute espacialmente infinito ou as estrelas natildeo
estatildeo regularmente distribuiacutedas ou ambos Como a distribuiccedilatildeo das
estrelas se mostrava regular Kepler inferiu que o Universo deveria ser
espacialmente finito mostrando que algo tatildeo coriqueiro como a escuridatildeo
da noite pode ser legitimamente tomado como evidecircncia de uma alegaccedilatildeo
absolutamente extraodinaacuteria10
Este eacute apenas um entre muitos exemplos em que eventos ou fatos
nada extraordinaacuterios serviram de evidecircncia para afirmaccedilotildees
extraordinaacuterias o que mostra claramente a inadequaccedilatildeo desta segunda
interpretaccedilatildeo psicoloacutegica do Princiacutepio de Sagan Outro que me traz boas
recordaccedilotildees eacute o do chuvisco que aparecia nos antigos televisores de tubo
quando as emissoras de TV encerravam a sua programaccedilatildeo diaacuteria e que
hoje sabemos ser causado pela Radiaccedilatildeo Coacutesmica de Fundo que teve
origem no Big Bang Em outras palavras uma evidecircncia de que o Universo
teve iniacutecio haacute bilhotildees de anos numa ldquogrande explosatildeordquo estava agrave vista de
todos sem que ningueacutem suspeitasse
Em resumo interpretado psicologicamente o tatildeo celebrado Princiacutepio
de Sagan ou eacute trivial ou deriva de uma concepccedilatildeo profundamente
equivocada acerca da natureza do conhecimento cientiacutefico moderno Em
ambos os casos o Princiacutepio de Sagan natildeo deve ser considerado vaacutelido e
seu uso como guia para a investigaccedilatildeo cientiacutefica tem consequecircncias
desastrosas para ciecircncia
10 A soluccedilatildeo atualmente aceita para o paradoxo eacute diferente daquela proposta por Kepler Atualmente o paradoxo eacute resolvido com base em duas descobertas a) que o Universo tem uma idade finita e b) a luz tem uma velocidade finita a luz das estrelas mais distantes ainda natildeo teve tempo de chegar ateacute noacutes Portanto o Universo que enxergamos eacute limitado no espaccedilo por ser finito no tempo A escuridatildeo da noite eacute uma prova de que o Universo teve um iniacutecio
178 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Mas natildeo haveria alguma interpretaccedilatildeo ao mesmo tempo natildeo trivial e
natildeo psicologista do Princiacutepio de Sagan No intuito de nos livrarmos de
uma leitura pscicologista da formulaccedilatildeo tornada ceacutelebre por Carl Sagan
poderiacuteamos reformular o Princiacutepio de Sagan como expressando a ideia de
que deve haver uma proporcionalidade entre a forccedila das nossas alegaccedilotildees
e a forccedila das evidecircncias que apresentamos em favor delas Uma maneira
de expressar isso poderia ser a seguinte
Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees extraordinariamente fortes requerem
evidecircncias extraordinariamente fortes
Com base nessa reinterpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan poder-se-ia
alegar por exemplo que acreditar na existecircncia de discos voadores com
base apenas no fato de que algueacutem afirma ter visto um disco voador seria
uma violaccedilatildeo do princiacutepio jaacute que a forccedila da alegaccedilatildeo medida pelo impacto
que ela tem sobre o conhecimento cientiacutefico exigiria evidecircncias mais
robustas como por exemplo a exibiccedilatildeo dos destroccedilos do disco voador que
a pessoa alega ter visto e natildeo o simples relato de uma testemunha
afirmando ter visto um disco metaacutelico voando em baixa altitude No
primeiro caso tudo o que temos eacute o relato do avistamento de um OVNI
(Objeto Voador Natildeo Indentificado) no segundo temos uma evidecircncia
material a saber o proacuteprio objeto avistado o que nos permite uma
avaliccedilatildeo direta e possiacutevel identificaccedilatildeo do objeto que iraacute ou natildeo confirmar
a afirmaccedilatildeo de que o objeto avistado era uma nave alieniacutegena O mais
provaacutevel eacute que a pilha de destroccedilos por mais extraordinaacuteria que pareccedila
aos olhos de um leigo seja imediatamente reconhecida por um especialista
como sendo os restos de um balatildeo meteoroloacutegico ou algum outro aparato
tecnoloacutegico humano como de fato aconteceu no famoso incidente ocorrido
em Roswell Novo Meacutexico em 1947
Mas seraacute que esta reformulaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan tem o mesmo
sentido que os autoproclamados pensadores criacuteticos conferem a sua
Ricardo S Rabenschlag | 179
formulaccedilatildeo original E ainda que a aceitemos como uma traduccedilatildeo razoaacutevel
do Princiacutepio de Sagan o sentido da expressatildeo ldquoextraordinariamete fortesrdquo
que aparece nas expressotildees ldquoalegaccedilotildees extraordinariamente fortesrdquo e
ldquoevidecircncias extraordinariamente fortesrdquo eacute o mesmo em ambos os casos E
ainda que se diga que elas tecircm o mesmo sentido eacute mesmo verdadeiro que
toda alegaccedilatildeo que tem grande impacto em nossa atual visatildeo cientiacutefica do
mundo requer evidecircncias igualmente extraordinaacuterias Natildeo poderia haver
evidecircncias absolutamente conformes agrave visatildeo cientiacutefica do mundo e que natildeo
obstante isso seriam uma soacutelida evidecircncia para alegaccedilotildees extraodinaacuterias
como a finitude espacial do Universo A forccedila de uma evidecircncia eacute medida
pelas suas consequecircncias ou haacute um criteacuterio intriacutenseco como sugere a
comparaccedilatildeo entre evidecircncias testemunhais e materiais Alegaccedilotildees
conformes a nossa visatildeo de mundo podem ser aceitas com base apenas em
testemunhos ao passo que as que contrariam o que acreditamos saber
requerem evidecircncias materiais Nesse uacuteltimo caso que admitimos ser o
mais promissor qual a relevacircncia da forccedila de nossas alegaccedilotildees no que diz
respeito ao tipo de evidecircncia que devemos exigir para aceitaacute-la
Uma vez mais nos vemos em meio a uma dupla confusatildeo De um lado
natildeo temos clareza sobre o significado do enunciado do princiacutepio de outro
natildeo temos uma concepccedilatildeo clara sobre e natureza do conhecimneto
cientiacutefico Visando sanar estes problemas poderiacuteamos interpretar a ideia de
forccedila de uma alegaccedilatildeo ou de uma evidecircncia como uma referecircncia agravequilo que
poderiacuteamos chamar de estatuto epistecircmico de uma proposiccedilatildeo definido
como o grau de confiabilidade de uma proposiccedilatildeo Assim compreendido o
Princiacutepio de Sagan seria um corolaacuterio da ideia de que o estatuto epistecircmico
das premissas de um argumento deve ser igual ao estatuto epistecircmico da
sua conclusatildeo e poderia ser enunciado do seguinte modo
Interpretaccedilatildeo espistecircmica alegaccedilotildees com alto grau de confiabilidade
requerem evidecircncias com alto grau de confiabilidade
Reneacute Descartes certamente concordaria com essa interpretaccedilatildeo do
Princiacutepio de Sagan afinal toda sua filosofia estaacute baseada na ideia de que
180 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
somente evidecircncias indubitaacuteveis podem servir de base para afirmaccedilotildees
indubitaacuteveis11 Natildeo foi outra a razatildeo que o levou numa das passagens mais
memoraacuteveis da histoacuteria da filosofia12 a apresentar o Cogito como a uacutenica
saiacuteda para o que ele chamou de duacutevida hiperboacutelica e tomaacute-lo como o uacutenico
fundamento aceitaacutevel para a filosofia Ainda que Descartes esteja longe de
ser um iacutecone dos ldquopensadores criacuteticosrdquo um projeto fundacionista anaacutelogo
ao cartesiano estaacute na raiz do Positivismo Loacutegico uma das fontes de
inspiraccedilatildeo da grande maioria dos autoproclamados pensadores criacuteticos
Rudolf Carnap o maior expoente desta corrente neopositivista buscou
ancorar todo o conhecimento humano no que ele chamou de enunciados
protocolares descritos por ele como sendo registros em primeira pessoa
de dados sensiacuteveis elementares (sense data) que estariam na base de toda
a experiecircncia humana
O problema com essa interpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan eacute que
embora a nova formulaccedilatildeo do princiacutepio seja mais promissora ela
obviamnete natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo plausiacutevel do Princiacutepio de Sagan jaacute
que o grau de confiabilidade de alegaccedilotildees extraordinaacuterias natildeo eacute alto e sim
extremamente baixo daiacute que a maioria de noacutes esteja naturalmente
precavido contra elas
Uma terceira interpretaccedilatildeo epistecircmica do Princiacutepio de Sagan resulta
de uma leitura indutivista humeana da ideia de estatuto epistecircmico de uma
proposiccedilatildeo A ciecircncia segundo David Hume eacute um empreendimento
essencialmente indutivo e provisoacuterio e sua grandeza reside precisamente
no fato de que a ciecircncia natildeo busca verdades absolutas Do fato de que todo
conhecimento eacute provisoacuterio e por conseguinte dubitaacutevel natildeo se segue
contudo que nossas crenccedilas tenham todas elas o mesmo grau de
confiabilidade Obviamente uma afirmaccedilatildeo que jaacute tenha sido refutada natildeo
eacute nem um pouco confiaacutevel Mas o que dizer das que ainda natildeo foram
refutadas Segundo David Hume o grau de confiabilidade de uma crenccedila
11 No caso do coacutegito a proacutepria afirmaccedilatildeo ou mais precisamente o pensamento que ela expressa eacute evidecircncia da sua veracidade
12 Iniacutecio da Segunda Meditaccedilatildeo das Meditaccedilotildees Metafiacutesicas de Reneacute Descartes
Ricardo S Rabenschlag | 181
eacute proporcional ao nuacutemero de vezes em que ela foi experimentalmente
confirmada Seguindo essa linha de raciociacutenio poder-se-ia interpretar o
Princiacutepio de Sagan como a recomendaccedilatildeo de que afirmaccedilotildees que
contrariem crenccedilas que tenham sobrevivido a inuacutemeras e variadas
tentativas de refutaccedilatildeo e que satildeo nesse sentido extraordinaacuterias devam
ser igualmente submetidas a um longo e variado processo de testes
acumulando assim uma quantidade igualmente extraordinaacuteria de
evidecircncias em seu favor antes de serem consideradas mais confiaacuteveis que
agraves antigas crenccedilas que elas pretendem substituir
Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees que contrariam crenccedilas
corroboradas por uma extraordinaacuteria quantidade de evidecircncias requerem um
nuacutemero igualmente extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis
A longa disputa entre os sistemas ptolomaico e copernicano que
marca o iniacutecio da ciecircncia moderna eacute um bom exemplo de como devemos
ser cautelosos em relaccedilatildeo a afirmaccedilotildees extraordinaacuterias como por
exemplo a afirmaccedilatildeo de que a Terra natildeo estaacute parada no centro do
Universo e sim girando em uma grande velocidade em torno do Sol Tenho
certeza de que a maioria dos Novos Ateus endossaria aliviado esta leitura
indutivista do Princiacutepio de Saganrdquo e natildeo ficaria de modo algum surpreso
se Richard Dawkins acrescentasse de forma desdenhosa a observaccedilatildeo de
que era exatamente isso que ele estava querendo dizer o tempo todo
embora nunca o tivesse feito por achar oacutebvio demais Infelizmente as
coisas natildeo satildeo tatildeo simples quanto parecem a um leigo em Espistemologia
da Ciecircncia como Richard Dawkins Em primeiro lugar mesmo nos casos
mais promissores como o da disputa entre geocentrismo e
heliocentrismo a interpretaccedilatildeo mencionada acima apresenta seacuterios
problemas jaacute que o que pocircs fim a disputa em favor do heliocentrismo natildeo
foi um nuacutemero extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis e sim a criaccedilatildeo da
primeira teoria fiacutesica moderna capaz de explicar de maneira unificada
fenocircmenos corriqueiros como o movimento dos corpos terrestres e o
movimento dos corpos celestes
182 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Uma vez mais o problema aqui eacute o de como evitar a confusatildeo entre
o loacutegico e o psicoloacutegico Natildeo resta duacutevida de que a repeticcedilatildeo de uma mesma
ocorrecircncia aumente nossa confianccedila em relaccedilatildeo ao enunciado universal
que a descreve a questatildeo contudo eacute saber se ela aumenta o nosso
conhecimento e natildeo as nossas expectativas Eacute provaacutevel que um iacutempeto
indutivista esteja na base de parte importante do apoio ao Princiacutepio de
Sagan embora natildeo devamos esquecer que boa parte dos seus apoiadores
em especial os autoproclamados pensadores criacuteticos tem imensa adoraccedilatildeo
pelo racionalismo popperiano e que Karl Popper considerava ilegiacutetima
qualquer tentativa de justificar indutivamente uma crenccedila De qualquer
modo tanto o fundacionismo como o indutivismo satildeo extremamente
problemaacuteticos razatildeo pela qual foram haacute muito tempo descartados e natildeo
haacute hoje muitos especialistas que defendam quer a ideia de um fundamento
inabalaacutevel para as ciecircncias quer a ideia de uma loacutegica indutiva
Pode-se contra-argumentar dizendo que natildeo haacute verdades ou
conhecimento em sentido absoluto que natildeo haacute um mundo ou uma realidade
independente do sujeito que tudo eacute relativo provisoacuterio e incerto e que
portanto uma loacutegica indutiva eacute tatildeo boa quanto uma dedutiva Mas
obviamente que se adotarmos esta estrateacutegia de defesa o problema assume
uma feiccedilatildeo ainda mais sombria pois a menos que ser possa conciliar esta
concepccedilatildeo relativista com a objetividade cientiacutefica natildeo haacute como evitar que o
ceticismo moderado que caracteriza a atitude cientiacutefica se transforme num
ceticismo radical e portanto numa nova e poderosa forma de irracionalismo
Se o Princiacutepio de Sagan eacute assim tatildeo inadequado por que ele eacute
considerado por muitos como uma das regras de ouro do pensamento
criacutetico Como dissemos anteriormente o enunciado do princiacutepio eacute vago
deliberadamente vago a ponto de comportar interpretaccedilotildees muito diferentes
e ateacute mesmo antagocircnicas o que certamente contribui para o seu sucesso Haacute
contudo uma outra razatildeo que julgamos ser ainda mais importante a saber
Ricardo S Rabenschlag | 183
que ele natildeo eacute uma ferramenta cientiacutefica e sim ideoloacutegica Ele natildeo eacute utilizado
por cientistas em suas investigaccedilotildees e sim por ativistas que podem ou natildeo
ser cientistas em sua luta contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo
O combate agraves pseudociecircncias eacute um combate justo e necessaacuterio e a
atitude criacutetica tem um papel fundamental nesse processo natildeo temos
duacutevida quanto a isso Nossa criacutetica natildeo busca desencorajar o combate agraves
pseudociecircncias ela busca apenas mostrar por um lado que a ciecircncia natildeo
estaacute inume ao irriacionalismo e por outro que o irracionalismo na ciecircncia
se manifesta sob a forma de pseudofilosofias e natildeo de pseudociecircncias
Evidentemente esta natildeo eacute uma tarefa faacutecil e este pequeno capiacutetulo natildeo
esgota de forma alguma o assunto Ainda assim espero que esta breve
criacutetica do tatildeo aclamado Princiacutepio de Sagan tenha despertado a atenccedilatildeo dos
leitores para a importacircncia de uma criacutetica do Pensamento Criacutetico13
Referecircncias
CARNAP R The Logical Structure of the World Open Court New York 2003
DAWKINS R The God Delusion Transworld Pub London 2016
DENNETT D Breaking the Spell Penguim London 2007
DESCARTES R Meacuteditations Meacutetaphysiques Nabu Press Paris 2014
HARRIS S The End of Faith WW Norton London 2005
HITCHENS C God Is Not Great Atlantic Books London 2008
HUME D On Miracles Open Court London 1985
POPPER K Conjectures and Refutations Routledge New York 2002
SAGAN C Cosmos Ballantine Books New York 2013
13 Talvez seja o caso de cunharmos a expressatildeo ldquoNovo Pensamento Criacuteticordquo a exemplo do que se fez em relaccedilatildeo aos Novos Ateus seja para reforccedilar o viacutenculo entre as duas correntes seja para diferenciar este Novo Pensamento Criacutetico da Filosofia Criacutetica de Kant No presente texto optamos por usar a expressatildeo empregada na literatura existente
11
A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo
Sagid Salles 1
Introduccedilatildeo
Haacute pelo menos duas coisas que tornam o fenocircmeno da vagueza
interessante Primeiro a vagueza estaacute espalhada por toda a linguagem
natural Uma parte significativa das expressotildees de nossa linguagem satildeo
vagas e podemos encontrar a vagueza em expressotildees de diferentes
categorias loacutegicas como termos singulares predicados e quantificadores
Por razotildees de simplicidade contudo ao longo deste artigo considero
apenas o caso dos predicados vagos Segundo o fenocircmeno da vagueza estaacute
por traacutes de um difiacutecil paradoxo conhecido como Paradoxo Sorites
Atualmente haacute muitas tentativas de explicar esse fenocircmeno e resolver o
Sorites sendo uma delas a Teoria Trivalente da Vagueza Essa teoria eacute
interessante natildeo apenas porque fornece uma explicaccedilatildeo elegante da
vagueza acompanhada de uma soluccedilatildeo engenhosa para o paradoxo em
questatildeo mas tambeacutem porque serve de base para a compreensatildeo de outras
teorias claacutessicas da vagueza Tanto o Gradualismo como o
Supervalorativismo por exemplo incorporam parte significativa de suas
ideias centrais A despeito disso existem alguns seacuterios obstaacuteculos para a
Teoria Trivalente Acredito que o principal deles eacute que ela falha em
satisfazer pelo menos um dos trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria
1 Sagid Salles eacute graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto Mestre e Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da UFRJ com sanduiacuteche realizado em University of Miami Atualmente eacute professor substituto de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (E-mail sagidsallesgmailcom)
Sagid Salles | 185
ideal da vagueza o criteacuterio da precisatildeo Meu objetivo eacute apresentar essa
teoria e mostrar como essa dificuldade surge para ela
O artigo seraacute dividido em quatro seccedilotildees Na primeira apresento o
problema da vagueza ressaltando os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma
teoria ideal o criteacuterio do Sorites o criteacuterio da coerecircncia e o criteacuterio da
precisatildeo Na segunda e terceira apresento respectivamente os aspectos
centrais da Teoria Trivalente e uma das soluccedilotildees da mesma para o Sorites
Por fim defendo que apesar de satisfazer os dois primeiros criteacuterios de
adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente falha com respeito ao criteacuterio da precisatildeo
Vagueza Sorites e os Trecircs Criteacuterios de Adequaccedilatildeo
A palavra ldquovaguezardquo eacute usada cotidianamente em diferentes sentidos
mas o interesse filosoacutefico pela vagueza eacute direcionado a um fenocircmeno
especiacutefico O que mais chama a atenccedilatildeo sobre esse fenocircmeno eacute que ele estaacute
por traacutes do que eacute conhecido como Paradoxo Sorites Esse paradoxo foi
descoberto por Eubulides de Mileto ainda no seacuteculo IV ac mas eacute
argumentaacutevel que somente recentemente (talvez nos uacuteltimos 60 ou 70
anos) ele venha recebendo a atenccedilatildeo que merece Aliaacutes atualmente existe
uma grande variedade de versotildees diferentes do paradoxo (HYDE 2011)
uma delas a versatildeo quantificada seraacute apresentada a seguir
Seja ldquoCrdquo o predicado ldquocarecardquo ldquoardquo um nome arbitraacuterio de pessoas e
deixe os nuacutemeros na direita inferior indicarem o nuacutemero de cabelos que a
tem na cabeccedila Nesse contexto a versatildeo quantificada do Sorites para
ldquocarecardquo pode ser formulada como segue
(SC)
(1) Ca0
(2) foralln (CanrarrCan+1)
_______________
(3) Ca10000
186 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
(SC) parte da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa
com 0 fios de cabelo na cabeccedila eacute careca para a conclusatildeo claramente falsa
de que uma pessoa com 10000 fios de cabelo na cabeccedila tambeacutem eacute careca
A conclusatildeo (3) se segue de (1) e (2) por repetidas aplicaccedilotildees de
Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens
Agora repare que podemos facilmente formular o Sorites na direccedilatildeo
inversa partindo da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa
com 10000 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca para a conclusatildeo
claramente falsa de que uma pessoa com 0 fios tambeacutem natildeo eacute careca
(notSC)
(1) notCa10000
(2)foralln (notCan+1rarrnotCan)
______________
(3) notCa0
A conclusatildeo de (notSC) tambeacutem eacute obtida por repetidas aplicaccedilotildees de
Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens Enquanto argumentos como (SC)
nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute careca argumentos como
(notSC) nos permite mostrar que cada indiviacuteduo natildeo eacute careca Se tomadas
em conjunto os argumentos nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute
careca e natildeo eacute careca ao mesmo tempo Resultado o predicado ldquocarecardquo eacute
incoerente Se isso jaacute nos parece absurdo a coisa fica muito pior quando
lembramos que o mesmo paradoxo pode ser formulado para muitos
outros predicados ldquoaltordquo ldquobaixordquo ldquoricordquo ldquopobrerdquo ldquovivordquo ldquomortordquo
ldquoraacutepidordquo ldquolentordquo ldquomonterdquo etc Em uacuteltima instacircncia aceitar a conclusatildeo
do Sorites implicaria em aceitar que cada um desses predicados eacute
incoerente
A premissa (1) de cada argumento acima eacute claramente verdadeira
enquanto a conclusatildeo se segue de (1) e (2) por regras de inferecircncia que
Sagid Salles | 187
natildeo gostariacuteamos de rejeitar Isso torna (2) a premissa quantificada na
principal suspeita Nesse contexto algueacutem poderia pensar que a soluccedilatildeo
do paradoxo reside na simples negaccedilatildeo da premissa (2) Infelizmente essa
estrateacutegia eacute mais difiacutecil do que parece Suponhamos por exemplo que a
premissa quantificada de (SC) eacute falsa Se esse eacute o caso entatildeo eacute verdade que
notforalln (CanrarrCan+1) Isso eacute logicamente equivalente a Ǝn (Can˄notCan+1) que
diz que haacute um nuacutemero natural n tal que a com n fios de cabelo na cabeccedila
eacute careca e a com n+1 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca O problema eacute
que esse resultado eacute difiacutecil de engolir Para qualquer valor que se atribua a
n a suposiccedilatildeo de que uma pessoa com n fios de cabelo eacute careca e uma
pessoa com n+1 natildeo eacute careca pareceraacute altamente contraintuitiva
O ponto fica mais claro se pensarmos em termos de sequecircncias
Imagine uma sequecircncia como segue
lta0 a1 a2 a5000 a5001 a9998 a9999 a10000gt
Intuitivamente o predicado ldquocarecardquo se aplica a a0 a1 a2 etc e natildeo se
aplica a a10000 a9999 a9998 etc Entretanto natildeo haacute um uacuteltimo caso na
sequecircncia ao qual ldquocarecardquo se aplica seguido por um primeiro caso ao qual
o predicado natildeo se aplica nenhuma linha divisoacuteria eacute traccedilada Se
simplesmente negarmos a premissa quantificada aceitando que Ǝn
(Can˄notCan+1) teremos de assumir que o predicado ldquocarecardquo estabelece
uma linha divisoacuteria desse tipo2 Isso implicaria que ldquocarecardquo eacute um
predicado preciso e portanto natildeo vago O mesmo vale para todos os
predicados vagos Na verdade ser vago e ser preciso satildeo propriedades
incompatiacuteveis de modo que nenhuma expressatildeo linguiacutestica pode ser vaga
e precisa ao mesmo tempo
2 Iago Bozza chamou minha atenccedilatildeo para o fato de que aceitar que Ǝn (CanʌnotCan+1) natildeo implica que haja um par de itens na sequecircncia que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo careca e o primeiro natildeo careca Considere uma analogia com caso dos nuacutemeros naturais Todos podemos aceitar que existe um nuacutemero n tal que n eacute iacutempar e n+1 natildeo eacute iacutempar Disso natildeo se segue que haacute um par de itens adjacentes na sequecircncia dos nuacutemeros naturais que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo iacutempar e o primeiro natildeo iacutempar da mesma Quando falamos que tal divisatildeo entre os carecas e os natildeo carecas se segue de Ǝn (CanʌnotCan+1) estamos adicionalmente assumindo que certas restriccedilotildees oacutebvias para a aplicaccedilatildeo do predicado ldquocarecardquo estatildeo em jogo Sobre tais restriccedilotildees veja-se GraffFara (2000 p 57)
188 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Por fim repare que essa breve apresentaccedilatildeo do Paradoxo Sorites nos
sugere trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria ideal da vagueza Satildeo
eles
a) O criteacuterio do Sorites resolver o Paradoxo Sorites
b) O criteacuterio da coerecircncia natildeo implicar que predicados vagos satildeo incoerentes
c) O criteacuterio da precisatildeo natildeo implicar que predicados vagos satildeo precisos
Ao alegar que (a)-(c) satildeo trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria
ideal da vagueza quero dizer que a falha em satisfazer algum deles deve
ser interpretado como um defeito para qualquer teoria da vagueza Noacutes
queremos uma teoria da vagueza que explique os predicados vagos de
forma a resolver o Sorites mas sem implicar que eles satildeo incoerentes ou
precisos (Uma defesa desses criteacuterios pode ser encontrada em Salles
2016) Eacute dentro desse pano de fundo que a Teoria Trivalente seraacute avaliada
Teoria Trivalente da Vagueza
Por ldquoTeoria Trivalente da Vaguezardquo entendo uma famiacutelia de teorias
que explicam a vagueza em termos de um terceiro valor de verdade ou
uma lacuna entre os dois valores claacutessicos verdadeiro e falso Apesar de
requererem uma loacutegica trivalente nem toda teoria da vagueza que faz uso
dessa loacutegica eacute uma instacircncia da Teoria Trivalente da Vagueza O traccedilo
distintivo dessas teorias eacute colocar o terceiro valorlacuna no centro da
explicaccedilatildeo das expressotildees vagas
A motivaccedilatildeo de base para essa teoria eacute a intuiccedilatildeo dos casos de
fronteira os predicados vagos admitem casos de fronteira casos a respeito
dos quais sua aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara A existecircncia desses casos serve como
um indiacutecio a favor da Teoria Trivalente Considere a frase (1)
Sagid Salles | 189
1 Joatildeo eacute careca
Se Joatildeo tem 0 fios de cabelo em sua cabeccedila entatildeo (1) expressa uma
proposiccedilatildeo verdadeira se Joatildeo tem todo o couro cabeludo coberto por
cabelo entatildeo (1) expressa uma proposiccedilatildeo falsa Mas o que dizer do caso
em que ele tem 85 do couro cabeludo coberto por cabelo (se quiser
pense em uma porcentagem que ache mais favoraacutevel ao exemplo)
Intuitivamente seria incorreto dizer que (1) eacute verdadeira nesse caso assim
como seria incorreto dizer que eacute falsa Uma explicaccedilatildeo para isso eacute que de
fato natildeo eacute verdadeira e de fato natildeo eacute falsa (1) eacute nem verdadeira nem falsa
ou como prefere Tye (1994) indefinida
Haacute duas interpretaccedilotildees de indefinido Pode-se interpretaacute-lo como um
terceiro valor de verdade ou como uma lacuna entre o verdadeiro e o falso
A vantagem de interpretaacute-lo como um terceiro valor eacute que fica mais faacutecil
explicar como (1) pode expressar uma proposiccedilatildeo Afinal proposiccedilotildees satildeo
tradicionalmente concebidas como os portadores dos valores de verdade
Por outro lado ficamos com o difiacutecil problema metafiacutesico de explicar o que
eacute esse terceiro valor o indefinido A vantagem da concepccedilatildeo da lacuna eacute
que natildeo carrega esse problema metafiacutesico pois natildeo aceita um terceiro
valor de verdade A desvantagem eacute que natildeo eacute claro como (1) nesse caso
poderia expressar uma proposiccedilatildeo Tanto quanto for possiacutevel manter-me-
ei neutro quanto ao ponto Para simplificar vou falar em uma frase sendo
indefinida e o leitor pode interpretar isso como significando que expressa
uma proposiccedilatildeo com o valor indefinido ou que falha em expressar uma
proposiccedilatildeo
A pergunta mais importante eacute como o apelo a frases indefinidas nos
leva a uma teoria dos predicados vagos A resposta se revela ao olharmos
para as expressotildees que constituem a frase Tradicionalmente entende-se
que uma frase como (1) eacute verdadeira se o objeto referido por ldquoJoatildeordquo
pertence ao conjunto de coisas selecionado pelo predicado ldquoeacute careca e
falsa de outro modo Nessa imagem o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de um
predicado pode ser dividido em duas partes (i) as coisas agraves quais o
190 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
predicado se aplica a sua extensatildeo positiva (ii) as coisas agraves quais o
predicado natildeo se aplica a sua extensatildeo negativa Cada elemento do
domiacutenio pertenceraacute a um ou a outro Se Joatildeo for um elemento da extensatildeo
positiva de ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute verdadeira se for um elemento da
extensatildeo negativa entatildeo eacute falsa natildeo haacute outra opccedilatildeo De acordo com a
Teoria Trivalente os predicados vagos natildeo se encaixam nessa imagem
O problema eacute que os predicados vagos natildeo dividem o seu domiacutenio em
duas partes Eacute verdade que eles tecircm uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo
negativa Mas fosse essa toda a histoacuteria cada frase como (1) seria
verdadeira ou falsa natildeo havendo espaccedilo para o nem verdadeiro nem falso
ou indefinido Para aleacutem da extensatildeo positiva e a extensatildeo negativa de um
predicado vago existe tambeacutem o que eacute chamado de ldquopenumbrardquo A
penumbra eacute formada pelos casos fronteira do predicado aqueles com
relaccedilatildeo aos quais a aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara Se Joatildeo estaacute na penumbra de
ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute indefinida ou nem verdadeira nem falsa
Pode haver divergecircncia sobre se a explicaccedilatildeo para o fato de que os
predicados vagos admitem penumbra eacute linguiacutestica ou metafiacutesica Tye
assume uma concepccedilatildeo metafiacutesica De acordo com ele satildeo os proacuteprios
conjuntos que satildeo vagos e os predicados satildeo vagos apenas porque os
conjuntos satildeo Nesse sentido o conjunto dos carecas eacute tal que para
algumas pessoas eacute indefinido se elas satildeo ou natildeo elementos do conjunto
(TYE 1994 p 195) Tye gosta de expressar isso dizendo que natildeo haacute uma
questatildeo de fato sobre se essas pessoas satildeo ou natildeo elementos do conjunto
dos carecas Predicados vagos satildeo vagos apenas porque satildeo associados a
conjuntos vagos Haacute tambeacutem aqueles que preferem uma explicaccedilatildeo
linguiacutestica para a penumbra Concepccedilotildees linguiacutesticas geralmente se datildeo
em termos das condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo do predicado Pode-se sustentar que
um predicado admite penumbra devido a alguma caracteriacutestica nas suas
condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo De acordo com Soames (1999 p 163) ndash que no
entanto natildeo defende a Teoria Trivalente da Vagueza ndash os predicados que
admitem penumbra tecircm condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida e
condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida Essas condiccedilotildees satildeo mutuamente
Sagid Salles | 191
exclusivas mas natildeo conjuntamente exaustivas Como as condiccedilotildees satildeo
mutuamente exclusivas se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-
sucedida de ldquocarecardquo entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-
sucedida e se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida
entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida Como natildeo
satildeo conjuntamente exaustivas haacute casos que nem satisfazem as condiccedilotildees
de aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem satisfazem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo
mal-sucedida os casos indefinidos Para criacuteticas agrave proacutepria ideia de um
terceiro valorlacuna veja-se Glanzberg (2009) Para os nossos
propoacutesitos contudo natildeo precisamos ir aleacutem do que jaacute fomos
Em resumo os predicados vagos natildeo cortam seu domiacutenio de
aplicaccedilatildeo apenas em uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo negativa Eles
tambeacutem admitem uma penumbra formada pelos casos fronteira do
predicado Eacute isso que explica o suposto fato de algumas frases contendo
predicados vagos serem nem verdadeiras nem falsas Quando a estaacute na
penumbra de ldquoFrdquo ldquoFardquo eacute indefinida A Teoria Trivalente assume que a
propriedade caracteriacutestica dos predicados vagos eacute encaixar-se na descriccedilatildeo
acima
Teoria Trivalente e a Soluccedilatildeo do Sorites
O modo como a Teoria Trivalente da Vagueza resolve o Paradoxo
Sorites depende dos detalhes de cada versatildeo Mais especificamente
depende do tratamento dado aos conectivosquantificadores e da
concepccedilatildeo de validade adotada A introduccedilatildeo de um terceiro valor ndash ou de
uma lacuna entre os dois valores claacutessicos ndash implica na necessidade de
reformular algumas definiccedilotildees Pode-se adotar uma concepccedilatildeo de validade
que nos permita rejeitar a validade do argumento Sorites mas a soluccedilatildeo
mais simples eacute manter a validade como preservaccedilatildeo de verdade e rejeitar
alguma premissa (KEEFE 2000 p104 e 107) Isto pode ser feito olhando
apenas para os conectivos e quantificadores Existem diferentes
interpretaccedilotildees dos conectivos Primeiro podem ser interpretados
192 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
verofuncionalmente (TYE 1994) ou natildeo verofuncionalmente (RICHARD
2009) Segundo mesmo que adotemos uma das duas haveraacute divergecircncia
sobre qual seraacute a interpretaccedilatildeo correta de cada um Natildeo vou entrar em
qualquer discussatildeo deste tipo aqui No que segue assumo a interpretaccedilatildeo
verofuncional de Tye e apresento a sua soluccedilatildeo do paradoxo
Tye (1994 p 194) adota uma das interpretaccedilotildees propostas por Kleene
(1952 p 332-340) dos conectivos
Natildeo eacute difiacutecil ver a motivaccedilatildeo por traacutes de cada tabela escolhida
Quando as frases componentes da frase mais complexa possuem apenas
valores claacutessicos os conectivos funcionam precisamente como funcionam
na leitura claacutessica ndash esse eacute o chamado ldquorequisito de normalidaderdquo (KEEFE
2000 p 86 MACHINA 1976 p 55) Assim as diferenccedilas relevantes
ocorrem apenas quando uma das frases componentes eacute indefinida
A negaccedilatildeo de uma frase indefinida A eacute ela mesma indefinida Por um
lado se notA fosse verdadeira entatildeo A seria falsa e consequentemente natildeo
seria indefinida Por outro lado se notA fosse falsa entatildeo A seria verdadeira
e portanto natildeo seria indefinida Para que uma disjunccedilatildeo seja verdadeira
A B notA AvB A˄B ArarrB
V V F V V V
V I F V I I
V F F V F F
I V I V I V
I I I I I I
I F I I F I
F V V V F V
F I V I F V
F F V F F V
Sagid Salles | 193
basta que uma disjunta seja verdadeira e para que seja falsa basta que
todas as disjuntas sejam falsas Nos outros casos a disjunccedilatildeo eacute indefinida
Uma conjunccedilatildeo eacute verdadeira se todas conjuntas satildeo verdadeiras falsa se
pelo menos uma conjunta eacute falsa e indefinida nos outros casos A
condicional eacute como se espera um caso problemaacutetico A uacutenica motivaccedilatildeo
notada por Tye eacute que ArarrB deve ser equivalente a notAvB Por fim AharrB
pode ser definido como (ArarrB) ˄ (BrarrA)
O quantificador existencial eacute definido como segue ƎxFx eacute verdadeiro
se tem uma instacircncia verdadeira falsa se todas as suas instacircncias satildeo
falsas e indefinida nos outros casos A intuiccedilatildeo por traacutes da definiccedilatildeo eacute que
uma afirmaccedilatildeo existencial seraacute indefinida quando nenhuma instacircncia for
verdadeira e pelo menos algumas forem indefinitas o mesmo que
ocorreria com a disjunccedilatildeo de todas as instacircncias Fa1vFa2vFa3v Fan O
quantificador universal eacute definido como segue forallxFx eacute verdadeira se todas
as suas instacircncias satildeo verdadeiras falsa se alguma instacircncia eacute falsa e
indefinida nos outros casos A ideia aqui eacute que uma afirmaccedilatildeo universal eacute
indefinida apenas quando nenhuma instacircncia eacute falsa e algumas satildeo
indefinidas o mesmo que ocorreria com a conjunccedilatildeo de todas as instacircncias
Fa1˄Fa2˄Fa3˄Fan
Essa leitura dos conectivos nos leva a alguns resultados
contraintuitivos quanto ao valor de verdade de certas frases Por exemplo
intuitivamente toda frase da forma A˄notA eacute falsa e toda frase da forma
AvnotA eacute verdadeira mas na leitura de Tye ambas as intuiccedilotildees estatildeo
erradas Quando A eacute indefinido tanto A˄notA quanto AvnotA seratildeo
indefinidos Tudo que Tye (1994 p 194) consegue reter de nossas
intuiccedilotildees eacute que nenhuma frase da primeira forma seraacute verdadeira (trata-
se de uma quase-contradiccedilatildeo) e nenhuma da segunda forma seraacute falsa
(trata-se de uma quase-tautologia) Agora imagine que Joatildeo eacute mais alto do
que Marcos mas ambos estatildeo na penumbra de ldquoaltordquo Nossa intuiccedilatildeo eacute que
a condicional ldquoSe Marcos eacute alto entatildeo Joatildeo eacute altordquo eacute verdadeira Na leitura
de Tye dos conectivos contudo a condicional seraacute indefinida Exemplos
do tipo podem ser multiplicados (KEEFE 2000 p 96-97 SANTOS 2015
194 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
p 5-6) Por fim problemas similares aparecem para diferentes
interpretaccedilotildees verofuncionais dos conectivos (WILLIAMSON 1994 cap
4)
Em todo caso o que nos interessa aqui eacute como Tye resolve o Paradoxo
Sorites A sua soluccedilatildeo consiste em rejeitar a premissa quantificada sem
com isso aceitar a sua negaccedilatildeo Na versatildeo para ldquocarecardquo a premissa
quantificada era foralln (CanrarrCan+1) Nenhuma instacircncia dessa premissa seraacute
falsa de modo que ela proacutepria natildeo seraacute falsa Por outro lado algumas
instacircncias seratildeo indefinidas dado que teratildeo antecedente e consequente
indefinidos Lembre-se de acordo com a Teoria Trivalente o predicado
ldquocarecardquo admite uma penumbra um conjunto de casos aos quais a sua
aplicaccedilatildeo eacute indefinida Eacute plausiacutevel supor que para algum n tanto Can
quanto Can+1 seratildeo indefinidas e nesse caso a condicional CanrarrCan+1 seraacute
tambeacutem indefinida Ora uma afirmaccedilatildeo universal com nenhuma instacircncia
falsa e algumas indefinidas eacute ela mesma indefinida Logo a premissa
quantificada eacute indefinida Assim Tye consegue rejeitar a premissa
quantificada sem precisar assumir que ela seja falsa e portanto sem
precisar aceitar a sua negaccedilatildeo
Teoria Trivalente e o Criteacuterio da Precisatildeo
Vimos que uma teoria ideal da vagueza satisfaria trecircs criteacuterios
resolver o Paradoxo Sorites natildeo implicar que os predicados vagos satildeo
incoerentes e natildeo implicar que eles satildeo precisos Na seccedilatildeo anterior vimos
que a Teoria Trivalente fornece uma resposta ao Sorites Aleacutem disso estaacute
claro que ela natildeo implica que os predicados vagos satildeo incoerentes Seu
principal problema eacute com o criteacuterio da precisatildeo
Na concepccedilatildeo tradicional o domiacutenio de um predicado eacute dividido em
uma extensatildeo positiva e uma negativa e todo objeto do domiacutenio estaacute ou
em uma ou na outra Supondo que o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo seja
o domiacutenio das pessoas cada pessoa ou estaacute na extensatildeo positiva ou estaacute
na extensatildeo negativa de ldquocarecardquo Isso implica que uma sequecircncia para
Sagid Salles | 195
ldquocarecardquo seria dividida de modo a haver um nuacutemero n tal que uma pessoa
com n fios eacute careca e uma pessoa com n+1 natildeo eacute O resultado pode ser
representado como segue
Extensatildeo Positiva Extensatildeo negativa
|a0 a1 a2 a3 an | an+1 an+2hellip an+m|
Verdadeiro Falso
Fica evidente que na concepccedilatildeo acima ldquocarecardquo eacute um predicado
preciso Existe um uacuteltimo caso ao qual ldquocarecardquo se aplica e um primeiro
caso ao qual natildeo se aplica A Teoria Trivalente evita isto por meio da
postulaccedilatildeo de uma penumbra entre a extensatildeo positiva e a negativa O
resultado pode ser representado como segue
Ext Positiva Penumbra Ext negativa
|a0 a1 an | an+1an+m | an+m+1 an+m+k|
Verdadeiro Indefinido Falso
Esta imagem no entanto natildeo evita o problema da anterior Eacute
verdade que a Teoria Trivalente eacute capaz de separar os casos nos quais a
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo gera uma verdade dos casos nos quais ela gera uma
falsidade Existe um uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo na sequecircncia an e
existe um primeiro caso negativo an+m+1 Entre eles contudo haacute um
conjunto de casos nos quais a aplicaccedilatildeo gera o valorlacuna indefinido
Chamemos-lhes de ldquocasos indefinidosrdquo Nada disso evita a consequecircncia
de que predicados vagos satildeo precisos Na imagem acima o predicado
ldquocarecardquo continua cortando a sequecircncia de forma ciruacutergica A uacutenica
diferenccedila relevante eacute que ao inveacutes de haver apenas uma fronteira ndash a
fronteira entre os casos positivos e negativos ndash agora haacute duas fronteiras a
fronteira positivoindefinido e a fronteira indefinidonegativo O item an eacute
o uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo seu vizinho imediato an+1 eacute o primeiro
caso indefinido Portanto haacute uma fronteira precisa entre os casos positivos
e os casos indefinidos de ldquocarecardquo O item an+m eacute o uacuteltimo caso indefinido
e seu vizinho imediato an+m+1 eacute o primeiro negativo Portanto haacute tambeacutem
uma fronteira precisa entre os casos indefinidos e os negativos de ldquocarecardquo
196 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Comeccedilamos com uma fronteira e terminamos com duas Ao inveacutes de
ldquocarecardquo cortar o seu domiacutenio cirurgicamente em um ponto corta em dois
A Teoria Trivalente natildeo satisfaz o criteacuterio da precisatildeo
O resultado acima eacute que a Teoria Trivalente implica que os
predicados vagos satildeo de fato precisos Assumindo a intuiccedilatildeo de que ser
preciso e ser vago satildeo propriedades incompatiacuteveis o resultado eacute que as
expressotildees aparentemente vagas natildeo satildeo realmente vagas Isso ainda nos
deixaria com o que chamei de ldquoproblema fundacional da precisatildeordquo
(SALLES 2016 p 163) Se os predicados vagos satildeo precisos entatildeo como a
sua extensatildeo eacute determinada Essa pergunta eacute ainda mais difiacutecil de ser
respondida pela Teoria Trivalente do que pela concepccedilatildeo tradicional
Afinal agora temos de explicar como cada uma das duas fronteiras de
ldquocarecardquo por exemplo eacute determinada Nossos usos desse predicado seriam
refinados o bastante para estabelecer um corte entre os casos
positivoindefinidos e outro entre os indefinidonegativos de ldquocarecardquo
No que segue considero duas respostas disponiacuteveis ao defensor da
Teoria Trivalente A primeira sustenta que o erro do argumento acima eacute
supor que todos os objetos do domiacutenio de aplicaccedilatildeo do predicado ou estatildeo
na extensatildeo positiva ou estatildeo na negativa ou estatildeo na penumbra Natildeo se
trata aqui de aumentar ainda mais o nuacutemero de fronteiras Pelo
contraacuterio o ponto eacute questionar que soacute existam aquelas trecircs opccedilotildees sem
no entanto afirmar que existam mais Essa eacute a estrateacutegia de Tye (1994 p
195) para quem devemos assumir o seguinte
bull Os predicados vagos admitem casos positivos indefinidos e negativos e natildeo
existe uma questatildeo de fato acerca de se esses satildeo ou natildeo os uacutenicos casos
A tese acima natildeo afirma que existem mais do que as trecircs opccedilotildees
consideradas Mas ela impede que suponhamos que existam somente as
trecircs Uma vez que o argumento contra a Teoria Trivalente depende dessa
suposiccedilatildeo ele falha
O argumento de Tye a favor dessa tese eacute como segue Considere a
pergunta existem apenas trecircs opccedilotildees Suponha que sim Nesse caso
Sagid Salles | 197
como vimos o predicado ldquocarecardquo eacute preciso Suponha que natildeo Nesse caso
existe ainda uma quarta opccedilatildeo Pode-se entatildeo perguntar satildeo essas quatro
opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo caiacutemos no mesmo problema de antes e
predicados vagos seratildeo de fato precisos Se natildeo entatildeo precisaremos de
uma quinta opccedilatildeo Satildeo as cinco opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo predicados
vagos satildeo precisos Se natildeo entatildeo precisamos de uma sexta opccedilatildeo e assim
por diante Por um lado natildeo eacute verdade que existam apenas trecircs opccedilotildees
pois isso implica que predicados vagos satildeo precisos Por outro natildeo eacute falso
que existam apenas trecircs opccedilotildees pois isso implica em esquisitices
metafiacutesicas (o proacuteprio quarto valor) ou regresso ao infinito Conclusatildeo
natildeo haacute uma questatildeo de fato sobre se existe ou natildeo uma quarta opccedilatildeo Isso
pode ser expresso dizendo-se que eacute em si mesmo indefinido se ou natildeo
existem apenas trecircs opccedilotildees
Keefe (2000 p 121) apresenta uma objeccedilatildeo que me parece decisiva
contra o argumento acima Podemos explicitar o argumento de Tye como
segue
α Natildeo eacute verdadeiro que existem apenas trecircs opccedilotildees
β Natildeo eacute falso que existem apenas trecircs opccedilotildees
γ Logo eacute indefinido se existem apenas trecircs opccedilotildees
Como (γ) se segue de (α) e (β) Suponha por exemplo que existe
uma quarta opccedilatildeo indefinido Nesse caso o maacuteximo que poderiacuteamos
concluir a partir de (α) e (β) eacute que eacute indefinido ou indefinido que existem
apenas trecircs opccedilotildees De fato para que a inferecircncia de (γ) no argumento
acima seja permitida eacute preciso que haja apenas trecircs opccedilotildees verdadeiro
falso e indefinido Para mostrar que eacute indefinido que existem apenas trecircs
opccedilotildees Tye assume justamente que existem apenas trecircs opccedilotildees No fim
das contas Tye assume aquilo que pretende rejeitar
Mark Richard (2009 p 476) sustenta que o erro do argumento contra
a Teoria Trivalente estaacute em assumir que existe um uacuteltimo caso positivo de
ldquocarecardquo e um primeiro caso indefinido A sua resposta passa pelas noccedilotildees
de penumbra e indefinido Primeiro ele adota uma concepccedilatildeo linguiacutestica do
198 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que eacute para um predicado possuir uma penumbra Seguindo Soames um
predicado possui uma penumbra quando haacute objetos que nem satisfazem as
condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo
mal-sucedida3 Se Joatildeo estaacute na penumbra de ldquocarecardquo entatildeo as condiccedilotildees de
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo nada dizem sobre se ele deve ser incluiacutedo na extensatildeo
positiva ou na extensatildeo negativa desse predicado Como as condiccedilotildees de
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo natildeo determinam em qual lado estaacute Joatildeo eacute indefinido
se (1) eacute verdadeira ou falsa Por outras palavras (1) eacute indefinida (Richard
prefere indeterminada) Segundo indefinido natildeo eacute entendido como um
terceiro valor de verdade Nessa concepccedilatildeo soacute existem dois valores de
verdade mas pode estar indefinido qual deles uma frase tem
Agora o argumento procede como segue Uma vez que an+1estaacute na
penumbra de ldquocarecardquo natildeo estaacute definido se ele eacute careca ou natildeo Mas se natildeo
estaacute definido se an+1 eacute careca ou natildeo entatildeo natildeo podemos assumir que aneacute
o uacuteltimo caso de ldquocarecardquo na sequecircncia Por outro lado tambeacutem natildeo
podemos assumir que an natildeo seja o uacuteltimo item careca da sequecircncia Pois
soacute poderiacuteamos assumir isso se estivesse definido que o proacuteximo item an+1
eacute careca Mas isso tambeacutem estaacute indefinido Portanto natildeo haacute um caso que
possamos justificadamente apontar como sendo o uacuteltimo caso positivo de
ldquocarecardquo Um argumento similar nos permitiria mostrar que tambeacutem natildeo
haacute um que possamos apontar como sendo o primeiro caso negativo de
ldquocarecardquo Tatildeo logo entendemos corretamente no que consiste ser
indefinido se um item eacute ou natildeo careca percebemos que ldquocarecardquo natildeo
estabelece fronteiras e portanto natildeo eacute preciso
Natildeo acredito esse argumento evite a violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo
Mesmo aceitando tudo que foi dito continua sendo o caso de ldquocarecardquo
3 Haacute diferenccedilas entre Soames e Richard no que diz respeito ao mecanismo que faz com que um predicado acabe por ter uma penumbra De acordo com Soames isso ocorre porque o predicado (i) tem condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) essas condiccedilotildees satildeo mutuamente exclusivas mas (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas Richard (2009 p 465-467) pensa que essa definiccedilatildeo natildeo eacute boa o bastante para justificar uma lacuna entre os dois valores claacutessicos de verdade propondo uma pequena modificaccedilatildeo De acordo com ele um predicado ldquoFrdquo tem uma penumbra quando (i) tem um conjunto C de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) tem um conjunto Crsquo de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) C e Crsquo satildeo mutuamente exclusivas e (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas
Sagid Salles | 199
cortar o seu domiacutenio de forma precisa em trecircs partes Retorne agrave imagem
acima da divisatildeo tripartida do domiacutenio de ldquocarecardquo O item an eacute o uacuteltimo
para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo se aplica enquanto an+1 eacute o primeiro
para o qual estaacute indefinido Haacute uma fronteira precisa entre os casos
definidos e os indefinidos de ldquocarecardquo Do mesmo modo an+m eacute o ultimo
caso para o qual estaacute indefinido se ldquocarecardquo se aplica ou natildeo e an+m+1 eacute o
primeiro caso para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo natildeo se aplica Haacute uma
fronteira precisa entre os casos indefinidos e os definidos de ldquonatildeo-carecardquo
Novamente temos duas fronteiras precisas onde deveria haver nenhuma
O proacuteprio Richard reconhece essa objeccedilatildeo e apela a uma soluccedilatildeo
epistecircmica para a mesma (2009 p 476-477) Apesar dos predicados vagos
possuiacuterem fronteiras no sentido acima frequentemente natildeo eacute possiacutevel
para noacutes sabermos onde ela se situa Nesse caso natildeo eacute claro se natildeo seria
mais plausiacutevel rejeitar de uma vez por todas a Teoria Trivalente e aceitar
a Teoria Epistecircmica em seu lugar Seja como for essa soluccedilatildeo aceita a
violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo
Conclusatildeo
A principal conclusatildeo deste texto eacute que embora a Teoria Trivalente
satisfaccedila os criteacuterios do Sorites e da coerecircncia tem claros problemas em
satisfazer o criteacuterio da precisatildeo Em todo caso estou convencido de que
satisfazer a todos os trecircs criteacuterios eacute algo dificiacutelimo e que as outras teorias
tradicionais da vagueza (Gradualismo Supervalorativismo Incoerentismo
Epistemicismo etc) tambeacutem falham em satisfazer pelo menos algum deles
Se isso estiver correto fica em aberto a possibilidade de a Teoria Trivalente
ainda ser a nossa melhor opccedilatildeo Afinal nem sempre a melhor opccedilatildeo de que
dispomos eacute a opccedilatildeo ideal Por outro lado se houver uma teoria que satisfaccedila
conjuntamente a todos os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente
estaraacute em desvantagem quanto a mesma Eu de fato penso que exista tal
teoria mas essa eacute uma histoacuteria para outro momento
200 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Referecircncias
BURNNYEAT M F Gods and heaps In SCHOFIELD M NUSSBAUM M C Language
and logos Cambridge University Press 1982 p 315-338
GLANZBERG M Against truth-value gaps In BEALL J Liars and leaps Oxford
University Press 2003 p 151-194
GRAFF D Shifting sands an interest-relative theory of vagueness Philosophical Topics
v 28 n1 p 45-81 2000
HYDE D The sorites paradox In RONZITTI G Vagueness a guide Springer Science amp
Business Media 2011 p 1-17
KEEFE R Theories of vagueness Cambridge University Press 2000
KLEENE S C Introduction to metamathematics American Elsevier Publishing
Company 1952
MACHINA K F Truth belief and vagueness Journal of Philosophical Logic v 5 p 47-
78 1976
RICHARD M Indeterminacy and truth value gaps In DIETZ R MORUZZI S Cuts and
clouds Oxford University Press 2009
SALLES S O problema da vagueza Fundamento n 12 p 139-174 2016
SANTOS R Vagueza In BRANQUINHO J SANTOS R (Eds) Compecircndio em linha de
problemas de filosofia analiacutetica Lisboa 2015 p 1-18
SOAMES S Vagueness partiality and the sorites paradox In Understanding truth
Oxford University Press 1999 p 203-227
TYE M Sorites paradoxes and the semantics of vagueness Philosophical Perspectives
v8 (Logic and Language) p 189-206 1994
WILLIAMSON T Vagueness Routledge 1994
12
O Leibniz de Deleuze
Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido1
William de Siqueira Piauiacute 2
Introduccedilatildeo
O que gostariacuteamos ao menos de comeccedilar a fazer em nosso mini-curso
eacute semelhante ao que fez Derrida em ldquoCogito e Histoacuteria da Loucurardquo
(Escritura e diferenccedila de 1967) com o trabalho exegeacutetico realizado por
Foucault quando este havia tentado localizar nas Meditaccedilotildees de Descartes
uma recusa ou exclusatildeo criticaacutevel da loucura tratava-se de mostrar que
um especialista em modernidade naquele momento jaacute autor de As
palavras e as coisas (de 1966) podia natildeo ter compreendido corretamente
o texto cartesiano acusaccedilatildeo grave e que por isso exigia natildeo soacute um novo
trabalho exegeacutetico do texto em questatildeo mas tambeacutem a explicitaccedilatildeo dos
pontos mais importantes e o centro da argumentaccedilatildeo da hipoacutetese
interpretativa a ser criticada3 Assim em termos comparativos o que
pretendemos mostrar eacute quais seriam os pontos principais e mesmo o
1 Texto-aula do minicurso que de iniacutecio tinha o nome O Leibniz de Deleuze problemas de exegese ministrado no IV Encontro Linguagem e Cogniccedilatildeo realizado junto agrave 8ordf Bienal Internacional do Livro de Alagoas em outubro de 2017 texto que com algumas alteraccedilotildees serviu de base para a palestra Deleuze e a noccedilatildeo leibniziana de sujeito apresentada no III Congresso Ibero-americano Leibniz realizado na Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Curitiba em novembro de 2017 palestra que foi um desenvolvimento das hipoacuteteses interpretativas que levantamos no V Encontro do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporacircneo realizado em junho de 2017 na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
2 Professor do Departamento de Filosofia (DFL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) E-mail piauiuspgmailcom
3 E nos parece que Derrida faz o mesmo com Jean-Pierre Vernant em Khora cf por exemplo 1995 p 7
202 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
centro do trabalho exegeacutetico de Deleuze com relaccedilatildeo a Leibniz mostrar
que mesmo um ldquoespecialistardquo do seu quilate pode natildeo ter compreendido
bem a filosofia leibniziana ao fazer uma apropriaccedilatildeo elogiosa poreacutem
equivocada principalmente dos seus conceitos de mocircnada individual ou
substacircncia particular Deus mundo corpo e principalmente ao defender a
necessidade de certo deslocamento que corroboraria a hipoacutetese que
Leibniz teria ido muito longe naquilo que o francecircs compreendia como
gecircnese estaacutetica ontoloacutegica etapa fundamental de sua Loacutegica do sentido
obra que seraacute nosso principal ponto de partida Do nosso ponto de vista eacute
o que estaacute em jogo principalmente no seguinte trecho de sua 16ordf seacuterie
Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada
mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente
compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia dos
predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo expresso
natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas mocircnadas como
a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos verdade entretanto
que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas [ou seja Deus criou natildeo
exatamente Adatildeo-pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou] e [tambeacutem eacute
verdade] que o expresso natildeo se confunde com sua expressatildeo mas insiste ou
subsiste [] Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na
filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na mocircnada
expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo expresso e
esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo
as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma
loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e
da verdade Leibniz foi muito longe nesta primeira etapa da gecircnese [de um
certo campo transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades
entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentais o indiviacuteduo
constituiacutedo como centro de envolvimento como envolvendo singularidades
em um mundo e sobre seu corpo (DELEUZE 2003 p 114-5 grifo nosso)
Do nosso ponto de vista natildeo eacute necessaacuterio afirmar o deslocamento
defendido por Deleuze que corroboraria a obrigatoriedade do
encadeamento de I a III e natildeo do seu contraacuterio Em nossa opiniatildeo a
apropriaccedilatildeo equivocada da filosofia leibniziana fica mais evidente
William de Siqueira Piauiacute | 203
especialmente em parte do trabalho exegeacutetico que Deleuze faz do Discurso
de metafiacutesica em associaccedilatildeo com a Correspondecircncia de Leibniz e de
Arnauld dos sect408 sect409 e sect414 da Teodiceia na menccedilatildeo natildeo explicitada
de parte do sect47 da quinta carta da Correspondecircncia Leibniz Clarke ndash
que faz a base da noccedilatildeo de coexistecircncia ndash e inclusive no alcance que supocircs
do texto ldquoSobre o meacutetodo da universalidaderdquo ndash o que seraacute mantido em A
dobra ndash ao mencionar um suposto uso geral que Leibniz faria da noccedilatildeo de
ldquosigno ambiacuteguordquo e principalmente para defender que por conta de seu
antigeneralismo o alematildeo forneceria as bases para pensarmos um ldquocampo
transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades
entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentaisrdquo Para noacutes
Deleuze teria criado dado o uso que supocircs dos atributos verbais uma
ficccedilatildeo falsa a la Lorenzo Valha que se sobrepotildee ao que de fato eacute afirmado
no final da Teodiceia ndash talvez por ter decidido parar em seu sect408 ou pela
excessiva importacircncia que conferiu a uma parte de seu sect414 Tudo
apontando para uma aproximaccedilatildeo excessiva entre Leibniz e Newton
inclusive a partir de certa caracterizaccedilatildeo de um mundo expresso feito de
relaccedilotildees diferenciais e de singularidades adjacentes que acabariam por
conduzir a uma dinacircmica sem causa proacutexima
Quanto aos motivos que nos levam a rever a leitura de Deleuze jaacute haacute
tantos anos publicada e criticada temos que dizer que eles satildeo de caraacuteter
regional recentemente em 2015 vimos publicado no Brasil a traduccedilatildeo do
livro de Alain Badiou A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX que
conteacutem um capiacutetulo de tiacutetulo ldquoGilles Deleuze Sobre A dobra Leibniz e o
barrocordquo e a publicaccedilatildeo em 2016 do excelente artigo de Gonzalo
Montenegro ldquoDeleuze em diaacutelogo com Freacutemont tentativas de ler Leibnizrdquo
tais textos deixam claro que ainda haacute muito que problematizar quanto agraves
interpretaccedilotildees de Deleuze mesmo quanto agrave sua afirmaccedilatildeo que
permanecemos leibnizianos e eacute com esse trabalho que gostariacuteamos de
contribuir voltando especialmente ao texto que serviu de base para A
dobra Mesmo natildeo desconsiderando o ldquobrilhantismordquo ou a ldquogenialidaderdquo
da interpretaccedilatildeo do francecircs ndash o que tenta nos mostrar Badiou ndash para que
204 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
o leitor natildeo se engane quanto ao nosso ponto de vista de fundo fazendo
outros caminhos estamos mais de acordo com grande parte das objeccedilotildees
que Freacutemont fez agrave leitura deleuziana especialmente se tomarmos a Loacutegica
do sentido como ponto de partida inclusive consideramos a pertinecircncia
daquelas objeccedilotildees como o motivo mais forte para a obra A dobra ter
demorado vinte anos para ser confeccionada Para noacutes em termos de
comentaacuterio de obra a leitura de Fremoacutent eacute muito mais bem fundamentada
e corresponde mais apropriadamente com o que o texto leibniziano
permitiria concluir principalmente se natildeo aceitarmos o deslocamento
exigido em a Loacutegica do sentido ou se recusamos a inversatildeo do caminho
argumentativo da Monadologia bases da argumentaccedilatildeo defendida em A
dobra de qualquer modo natildeo nos parece que Gonzalo deixa claro com que
interpretaccedilatildeo estaria mais de acordo Eacute por aiacute portanto que caminharaacute
nossa tentativa de problematizar o trabalho interpretativo feito na Loacutegica
do sentido e que em grande medida prepara todo o trabalho realizado em
A dobra Por fim e em termos da leitura de Badiou mesmo que estejamos
de acordo com a opiniatildeo que A dobra eacute ldquoum livro rarordquo ldquoadmiraacutevelrdquo e que
ldquopropotildee-nos uma visatildeo e um pensamento do nosso mundordquo pretendemos
ainda uma vez voltar agraves querelas genealoacutegicas agrave agrimensura dos textos
especialmente daquele que lanccedila as bases da argumentaccedilatildeo defendida em
A dobra quem sabe tal empreitada nos permita recolocar a pergunta o
que vemos como ou pensamos ser o nosso mundo
I Parte ndash Entre Literatura Psicanaacutelise Linguiacutestica e Loacutegica Deleuze
de Loacutegica do Sentido e a Filosofia Contemporacircnea
Como nos diz Pierre Franccedilois Marietti (HUISMAN 2001 p 255) em
geral se costuma distinguir trecircs periacuteodos da filosofia do francecircs Gilles
Deleuze (1925-1995) O primeiro entre 1953 ou 52 e 1968 que
compreenderia a produccedilatildeo de vaacuterios trabalhos sobre filoacutesofos e literatos
o periacuteodo das monografias tais como sobre Hume em Hume sua vida e
sua obra de 1952 e em Empirismo e subjetividade de 1953 sobre
William de Siqueira Piauiacute | 205
Nietzsche em Nietzsche e a filosofia de 1962 ou simplesmente Nietzsche
de 1965 sobre Proust em Proust e os signos de 1964 sobre Bergson em
Bergsonismo de 1966 sobre Espinosa em Espinosa ou o problema da
expressatildeo de 1968 ano que marcaria o final deste periacuteodo O segundo
periacuteodo 1968-1972 teria iniacutecio com as produccedilotildees mais autocircnomas e
propriamente filosoacuteficas de Deleuze tais como os volumosos Diferenccedila e
repeticcedilatildeo de 1968 e Loacutegica do sentido de 1969 Mas eacute preciso dizer que
aquele primeiro tipo de produccedilatildeo caracteriacutestico do primeiro periacuteodo natildeo
seraacute abandonado e seratildeo produzidas dentre outras mais duas obras sobre
Espinosa (em 1970 e 1981) a obra Foucault de 1986 e a famosa A dobra
Leibniz e o Barroco de 1988 (publicado quase 20 anos depois de a Loacutegica
do sentido e que foi o resultado de aulas dadas nos anos 80 86 e 87)
Tambeacutem nesse periacuteodo se intensificaratildeo seus estudos sobre psicanaacutelise e
literatura isto eacute a produccedilatildeo das obras escritas em parceria com o
psicanalista Feacutelix Guattari (1930-1992) tais como O anti-Eacutedipo e mesmo
Kafka por uma literatura menor ambas de 1972 o primeiro estudo
marca o iniacutecio do que se costuma chamar de a grande ruptura que
certamente faz o pano de fundo de obras como O que eacute filosofia jaacute de
1991 e Criacutetica e Cliacutenica de 1997 este uacuteltimo publicado jaacute dois anos depois
da morte de Deleuze
Dito isso e como jaacute o indicamos a obra principal sobre a qual
falaremos neste minicurso seraacute a Loacutegica do sentido praticamente o tema
da nossa III Semana de Filosofia da Linguagem4 obra que foi publicada
em 1969 e que faria parte daquele segundo periacuteodo obra que segundo
Marietti mais que Diferenccedila e repeticcedilatildeo ldquoextrapola em muito os cacircnones
universitaacuterios vigentes na eacutepoca com seu interesse pelas meninasrdquo pelos
poetas ldquoe pelos esquizofrecircnicosrdquo ndash certamente uma referecircncia agrave 13ordf seacuterie
do livro ndash ldquocomrdquo completa ele uma ldquoreflexatildeo profunda sobre a linguagem
e a literaturardquo (HUISMAN 2001 p 255) e acrescentariacuteamos uma reflexatildeo
sobre o estruturalismo e ainda mais especifica sobre a loacutegica a qual
4 Evento ocorrido no DFL-UFS em marccedilo de 2017 e que teve por tema ldquoGilles Deleuze Loacutegica e Sentidordquo onde tambeacutem ministramos um minicurso sobre a Loacutegica do sentido
206 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
acompanharaacute Deleuze certamente ateacute o final de sua vida como o
comprova o capiacutetulo II (Prospectos e Conceitos) da parte II (Filosofia
Ciecircncia Loacutegica e Arte) do livro escrito em parceria com Guattari O que eacute
filosofia
O que extrapola os cacircnones universitaacuterios vigentes certamente natildeo
se associa somente a certas figuras que despertam o interesse de Deleuze
mas o proacuteprio assunto e a forma como ele seraacute exposto ou como nos diz
o proacuteprio tratar-se-aacute da ldquoconstituiccedilatildeo paradoxal da teoria do sentidordquo
teoria que seraacute apresentada em 34 seacuteries (espeacutecie de capiacutetulos) que
receberatildeo mais 2 apecircndices subdivididos em 5 tiacutetulos seacuteries em que
veremos a elaboraccedilatildeo de uma espeacutecie de histoacuteria ldquouma lsquohistoacuteria
embrulhadarsquordquo por fim a obra seraacute apresentada como um ldquoensaio de
romance loacutegico e psicanaliacuteticordquo Falar de loacutegica a partir do gecircnero
romance misturando tal tema com psicanaacutelise e ensaiando compor uma
histoacuteria embrulhada obra em que em muitos de seus capiacutetulos tratam do
tema ldquoparadoxordquo certamente tambeacutem significava extrapolar os cacircnones
universitaacuterios vigentes basta pensarmos em obras sobre loacutegica ou
linguagem como as de Frege (a Conceitografia por exemplo) Russell
(Principia mathematica) Carnap (Da construccedilatildeo loacutegica do mundo)
Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) Husserl (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e mesmo a de Heidegger (Princiacutepios metafiacutesicos da loacutegica) ou
Merleau-Ponty (A prosa do mundo) ou ainda a de Foucault (As palavras
e as coisas uma arqueologia das ciecircncias humanas) e de Derrida
(Gramatologia) para imaginarmos quatildeo grande era aquela extrapolaccedilatildeo
Toda essa extrapolaccedilatildeo ou abandono daquele rigor claacutessico rigor
ainda presente segundo Marietti em Diferenccedila e repeticcedilatildeo jaacute garantiria
um lugar de destaque agrave obra Loacutegica do sentido junto agrave filosofia
contemporacircnea ou dos modernos como quer Badiou o que seraacute
intensificado pela valorizaccedilatildeo de um tipo de filosofia que jaacute tinha aceitado
a ponto de se misturar com elas seja a intromissatildeo da literatura seja a da
psicanaacutelise seja a da linguiacutestica Quanto agrave uacuteltima eacute faacutecil perceber a
importacircncia natildeo costumeiramente afirmada em livros de loacutegica que
William de Siqueira Piauiacute | 207
assumiratildeo as consideraccedilotildees de um Benveniste (de Problemas de
linguiacutestica geral por exemplo) de Jakobson (de dentre outros ldquoO signo
zerordquo) e mesmo que indiretamente de Sausurre (de Curso de linguiacutestica
geral) para a elaboraccedilatildeo das ldquotrecircs relaccedilotildees distintas da proposiccedilatildeo
(designaccedilatildeo ou indicaccedilatildeo manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo) tema da 3ordf seacuterie
Mais do que isto a contribuiccedilatildeo geral da linguiacutestica e estruturalismo seratildeo
enunciadas na 12ordf seacuterie do seguinte modo
Os autores que se costuma atualmente chamar de estruturalistas [tais como
Benveniste e Jakobson] natildeo tecircm talvez outro ponto em comum ndash poreacutem
essencial ndash aleacutem do seguinte o sentido natildeo como aparecircncia mas como efeito
de superfiacutecie e de posiccedilatildeo produzido pela circulaccedilatildeo da casa vazia nas seacuteries
da estrutura [le sens non pas du tout comme apparence mais comme effet de
surface et de position produit par la circulation de la case vide dans les seacuteries
de la structure] ([] significante flutuante valor zero cantonada ou causa
ausente etc) O estruturalismo conscientemente ou natildeo celebra novos
achados de inspiraccedilatildeo estoica ou carrolliana [] (DELEUZE 2003 p 73-4
grifo nosso)
Ora natildeo eacute o elogio de tipo semelhante que veremos em muitos outros
filoacutesofos contemporacircneos Ao menos podemos dizer que eacute o caso
inclusive dito de modo muito semelhante de Derrida em Escritura e
diferenccedila especialmente no capiacutetulo ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo E a noccedilatildeo do
sentido como superfiacutecie certamente marca uma das viradas mais
conscientemente assumidas e feita jaacute no iniacutecio de a Loacutegica do sentido ou
seja na atualidade ou a partir daqueles achados o ldquoProfundo deixou de
ser um elogiordquo (Idem p 16) Eacute preciso pois se aproximar da filosofia da
literatura ou da arte da psicologia ou psicanaacutelise das teorias da linguagem
ou dos estruturalismos que natildeo simulam mais a profundidade e vivem dos
incorporais ou da superfiacutecie Jaacute antecipamos que a obra buscaraacute
justamente tornar mais explicito e de modo talvez mais consciente o que
a literatura produzida por Carroll e a filosofia produzida pelos Estoicos
podem nos inspirar mas voltemos ao que diziacuteamos
208 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Haacute outros dois tipos de produccedilatildeo que jaacute haviam aceitado se
embrulhar na investigaccedilatildeo do sentido associada agrave superfiacutecie Deleuze natildeo
procura em Nietzsche ldquoum profeta da reviravolta nem da superaccedilatildeordquo nem
em Freud ldquoum explorador da profundidade humanardquo pois
Se haacute um autor para o qual a morte de Deus a queda em altura do ideal
asceacutetico natildeo tem nenhuma importacircncia enquanto eacute compensada pelas falsas
profundidades do humano maacute consciecircncia e ressentimento eacute sem duacutevida
Nietzsche [] Natildeo procuramos em Freud um explorador da profundidade
humana e do sentido originaacuterio mas o prodigioso descobridor da maquinaria
do inconsciente[ e vale lembrar que o paradoxo eacute a potecircncia do inconsciente]5
por meio do qual o sentido eacute produzido sempre produzido em funccedilatildeo do natildeo-
senso [] O que haacute de burocraacutetico nestas maacutequinas fantasmas que satildeo os
povos e os poemas [] Basta que nos dissipemos um pouco que saibamos
estar na superfiacutecie que estendamos nossa pele como um tambor para que a
ldquogrande poliacuteticardquo comece [] Fazer circular a casa vazia e fazer falar as
singularidades pre-individuais e natildeo pessoais [faire parler las singulariteacutes preacute-
individuelles non personnelle] [que natildeo satildeo nem da ordem do geral nem da
ordem do individual nem pessoais nem universais] em suma produzir o
sentido eacute a tarefe de hoje (Idem p 75-6)
Nenhuma novidade quanto agrave menccedilatildeo a Nietzsche e Freud geste que
tambeacutem lembraraacute Derrida em ldquoLa diffeacuterancerdquo6 trata-se de autores
fundamentais para pensar filosofia contemporacircnea ao menos a produzida
no continente Mantermo-nos na superfiacutecie naquele algo que insiste em
subsistir deixar de elogiar o profundo compreender ao menos em termos
gerais o que pretendiam os estruturalistas bem como Nietzsche e Freud
fazer comeccedilar a grande poliacutetica (incluiriacuteamos tambeacutem aiacute a justiccedila) e natildeo
apenas relembrar ou comentar mas produzir o sentido satildeo portanto as
tarefas da filosofia contemporacircnea defendida por Deleuze em Loacutegica do
sentido Mas assim como ao seu modo os Estoicos natildeo realizaram tal
tarefa eacute preciso estar atento ao fato que para Deleuze tambeacutem Nietzsche
teria se desviado dela ou como ele mesmo nos dizia
5 Cf op cit p 82
6 Cf Margens da filosofia 1991 p 49
William de Siqueira Piauiacute | 209
Nietzsche esteve primeiramente entre estes [Boehme Schelling etc] disciacutepulo
de Schopenhauer no Nascimento da trageacutedia quando ele faz falar Dioniacutesio
sem fundo opondo-o agrave individuaccedilatildeo divina de Apolo e natildeo menos agrave pessoa
humana de Soacutecrates [] Assim a descoberta de Nietzsche estaacute alhures[ em
outro lugar em outra parte] quando tendo se livrado de Schopenhauer e de
Wagner explora um mundo de singularidades impessoais e preacute-
individuais [un monde de singulariteacutes impersonnelles et preacute-individuelles]
mundo que chama agora de dionisiacuteaco ou da vontade de potecircncia energia livre
e natildeo ligada [] Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que
trata o sentido enfim natildeo como predicado [ou] como propriedade mas
como acontecimento [traite le sens enfin non pas comme preacutedicat comme
proprieacuteteacute mais comme eacuteveacutenement] [] Na sua descoberta Nietzsche entreviu
como em um sonho o meio de pisar a [superfiacutecie da] terra de roccedilaacute-la de
danccedilar e de trazer de volta agrave superfiacutecie o que restava dos monstros do fundo e
das figuras do ceacuteu Mas eacute verdade que ele foi tomado por uma ocupaccedilatildeo mais
profunda mais perigosa tambeacutem na sua descoberta ele viu um novo meio de
explorar o fundo [] correndo o risco de ser tragado por essa profundidade
(Idem p 110 grifo nosso)
Em sua avaliaccedilatildeo da filosofia nietzscheana embalado pela renovaccedilatildeo
da filosofia que ela sugeria Deleuze menciona uma espeacutecie de condiccedilatildeo da
tarefa fundamental de sua teoria do sentido ou seja aquele ldquoestranho
discursordquo deve nos conduzir a tratar ldquoo sentido enfim natildeo como
predicadordquo ou ldquocomo propriedade mas como acontecimentordquo para entatildeo
explorarmos ldquoum mundo de singularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo
inspiraccedilatildeo expliacutecita do Nietzsche de Nascimento da trageacutedia mas claro
tambeacutem que a noccedilatildeo freudiana de inconsciente e limite dado seu elemento
paradoxal limite do horizonte de saber (e talvez a grande poliacutetica e a
justiccedila tivessem justamente que assumir tal pressuposto) inclusive recusa
da profundidade das filosofias da intencionalidade satildeo fundamentais aqui
E vale repetir fonte inclusive da estranheza de seu discurso e que parece
ser a principal responsaacutevel pela distacircncia que separa ldquocontinentaisrdquo e
ldquoanaliacuteticosrdquo Nietzsche teria sonhado com o outro aspecto fundamental das
filosofias contemporacircneas que se embaralham com o problema do
significado e sentido o sentido natildeo deve ser tratado como predicado como
210 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
propriedade mas como acontecimento como eacuteveacutenement conceito
fundamental das filosofias e teorias da linguagem contemporacircneas
especialmente as continentais Tambeacutem eacute por causa deste aspecto que se
exigiraacute toda uma nova maneira de pensar a loacutegica do sentido que por isso
mesmo deveraacute ultrapassar aquelas trecircs relaccedilotildees distintas na proposiccedilatildeo
e seraacute especialmente associada agrave primeira a da designaccedilatildeo que Deleuze
formularaacute o problema mais geral de tal loacutegica
[] de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro agrave do sentido se fosse
para encontrar entre o sentido e o natildeo-senso [le sens et non-sens] uma relaccedilatildeo
anaacuteloga agrave do verdadeiro e do falso () A loacutegica dos sentidos vecirc-se
necessariamente determinada a colocar entre sentido e o natildeo-senso um tipo
original de relaccedilatildeo intriacutenseca um modo de co-presenccedila [] (Idem p 71)
Muitos foram os autores que esbarraram neste problema ou seja o
de determinar um novo e original tipo de relaccedilatildeo que permitisse
diferenciar de uma vez por todas os problemas de significaccedilatildeo ou
relacionados diretamente ao verdadeiro e falso dos de sentido e que ao
menos em termo de designaccedilatildeo adotaram ao menos a postura de aceitar
sua complexidade e dificuldade nem perto da radicalidade de um Deleuze
evidentemente foi esse o caso de Bertrand Russell em Significaccedilatildeo e
verdade7 em que afrontou dentre outras a noccedilatildeo de Carnap de sentido-
significado seja como for a descoberta da necessidade de um novo e
original tipo de relaccedilatildeo mais proacutepria ao sentido uma outra dimensatildeo ou
relaccedilatildeo jaacute havia sido descoberta haacute muito tempo ou como lembrava
Deleuze
O sentido eacute a quarta dimensatildeo da proposiccedilatildeo [aleacutem de designaccedilatildeo
manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo] Os estoicos a descobriram com o acontecimento
o sentido eacute o expresso da proposiccedilatildeo este incorporal na superfiacutecie das coisas
entidade complexa irredutiacutevel [que natildeo pode ser simplificada separada do
natildeo-senso] acontecimento puro (eacuteveacutenement pur) que insiste ou subsiste na
proposiccedilatildeo (Idem p 20)
7 Cf tambeacutem DELEUZE 2003 [Loacutegica do sentido] p 18-9
William de Siqueira Piauiacute | 211
E tal descoberta se repetiu na histoacuteria no medievo pelos
nominalistas da escola de Ockham Gregoacuterio de Rimini (1300-1358) e
Nicolas de Autrecourt (1299-1369) e depois pela loacutegica dos objetos
inexistentes de Alexius Meinong (1853-1920) que foi duramente atacada
pelo mesmo Russell E tal dimensatildeo teria sido chamada pelo fenomenoacutelogo
Edmund Husserl (1859-1938) de ldquoexpressatildeordquo quanto a quem e ao que
Deleuze afirmava ldquoHusserl natildeo menos que Meinong reencontra as fontes
vivas de uma inspiraccedilatildeo estoicardquo (Idem p 21) Ateacute certo ponto afinado com
aquela boa nova aquela inspiraccedilatildeo contudo semelhantemente a
Nietzsche Husserl tambeacutem teria sido tragado pelas profundezas neste
caso natildeo soacute por natildeo ter compreendido os atributos como verbos-
acontecimentos e sim como predicados-conceitos (Idem p 100) mas por
ter pecado em sua interpretaccedilatildeo contra uma filosofia propriamente da
expressatildeo supostamente defensora das ldquosingularidades nocircmades
impessoais e preacute-individuaisrdquo (Idem p 113) daiacute que em pleno acordo com
aquela tarefa de uma loacutegica do sentido Deleuze afirmasse
[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida
em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e
sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de
Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como
veremos uma mudanccedila muito importante [] A ideia de singularidades
logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-
individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste
domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)
Como era de se esperar dado a menccedilatildeo ao conceito de mocircnada para
fazer avanccedilar a determinaccedilatildeo daquele domiacutenio e constituir uma nova
noccedilatildeo de tal campo Deleuze trataraacute em seguida na 16ordf seacuterie (a da gecircnese
estaacutetica ontoloacutegica) da Loacutegica do sentido da filosofia de Leibniz Com o
que dissemos ateacute aqui fica evidenciado o quatildeo central seraacute a reavaliaccedilatildeo
da filosofia leibniziana especialmente de seu conceito de mocircnada
individual tendo vista que seraacute justamente ele que permitiraacute a base da
212 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
hipoacutetese ou seja a estruturaccedilatildeo da ldquoideia de singularidades logo de anti-
generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-individuaisrdquo daquelas
ldquosingularidades nocircmades impessoais e preacute-individuaisrdquo isto eacute daquilo
que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do sentido de qualquer
modo a conclusatildeo de tal seacuterie seraacute
Na obra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduo a mocircnada que descobre
o sentido e jaacute presente o natildeo-senso remontando agrave superfiacutecie a partir de um
mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que se envolve nela e lhe impotildee a
dura lei das misturas [jaacute] Silvia e Bruno seriam antes como as pessoas lsquovagasrsquo
que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo
comum a vaacuterios mundos mundo dos homens e mundo das fadas (Idem p
121)
O que novamente atesta o papel central que o conceito leibiziano de
mocircnada desempenha para toda a Loacutegica do sentido inclusive pela
apropriaccedilatildeo que ela faz da obra de Carroll ou seja o conteuacutedo da 16ordf seacuterie
deveraacute servir para voltar a compreender parte daquela boa nova agora
associada mais propriamente agraves obras Aventuras de Alice no paiacutes das
maravilhes Atraveacutes do espelho e o que Alice viu laacute e As aventuras de
Silvia e Bruno de Lewis Carroll que junto com a teoria dos incorporais
dos Estoicos satildeo os grandes temas de a Loacutegica do sentido Assim o que
trataremos a seguir eacute da reconstituiccedilatildeo deleuzeana do conceito de mocircnada
individual
II Parte ndash Interpretaccedilatildeo Deleuziana da Filosofia Leibniziana uma
Ficccedilatildeo Falsa
Como noacutes indicamos eacute jaacute a partir de 1968 que o filoacutesofo francecircs Gilles
Deleuze demonstra seu apreccedilo pela filosofia leibniziana como fica
evidente em alguns momentos da obra Diferenccedila e repeticcedilatildeo mas na
obra que escreve um ano depois Loacutegica do sentido tal seraacute sua
importacircncia que ela se tornaraacute o tema principal de toda uma seacuterie a 16ordf
seacuterie justamente um dos momentos mais cruciais de seu romance ou
William de Siqueira Piauiacute | 213
histoacuteria embrulhada momento em que veremos Deleuze caracterizar as
Alices e Silvia e Bruno de Carroll a partir do suposto8 conceito leibniziano
de pessoa vaga e do de mocircnada individual conceitos que ofereceriam as
bases para pensar aquilo que ele chamou de gecircnese estaacutetica ontoloacutegica de
um certo campo transcendental Satildeo certamente as consideraccedilotildees feitas
aqui que forneceratildeo a direccedilatildeo principal das leituras que Deleuze faraacute de
Leibniz nos trecircs cursos que deu na deacutecada de oitenta (1980 86 e 87) aulas
que receberatildeo o tiacutetulo de Exasperaccedilatildeo da filosofia e que com algumas
poucas mudanccedilas substanciais teratildeo como resultado a obra A dobra
Leibniz e o barroco publicada em 1988 Assim o que pretendemos eacute
problematizar a compreensatildeo dos conceitos leibnizianos que serviriam
para caracterizar os personagens de Carroll tentando apontar alguns dos
problemas da leitura de Deleuze especialmente se levarmos em conta
dentre outros textos a carta que Leibniz escreve a Molanus em 1679 bem
antes do Discurso de metafiacutesica este nosso principal ponto de partida e
o que faz a base do capitulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou diversidaderdquo
dos Novos ensaios (II XXVII) posterior ao Discurso e anterior tanto agrave
Teodiceia quanto agrave Monadologia Com isso esperamos lanccedilar luz sobre
a noccedilatildeo de fato leibniziana de sujeito ou indiviacuteduo e as bases do
deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo deleuziana Vejamos entatildeo como a
filosofia de Leibniz aparece na obra de 1969
Como jaacute o dissemos em Loacutegica do sentido tudo parece comeccedilar
com a criacutetica a Husserl em sua 14ordf seacuterie Deleuze considera que
[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida
em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e
sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de
Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como
veremos uma mudanccedila muito importante9 [] A ideia de singularidades
8 Dizemos ldquosupostordquo tendo em vista que em nossa opiniatildeo Deleuze forccedila demais a oposiccedilatildeo entre o que Leibniz afirmou na correspondecircncia que travou com Arnauld especialmente a nota agrave carta de 13 de maio de 1686 e teria querido dizer nos paraacutegrafos finais da Teodiceia especialmente o sect414 Cf DELEUZE 2003 p 118 [nota 4]
9 A expressatildeo ldquoHaacute contudo como veremos uma mudanccedila muito importanterdquo parece apontar para uma interpretaccedilatildeo diferente da de Husserl e que seraacute parte do motivo de retornar agrave filosofia leibniziana nas seacuteries seguintes diferenccedila
214 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-
individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste
domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)
Segundo Deleuze Husserl teria construiacutedo um campo transcendental
sem atentar para as condiccedilotildees impostas por Sartre em seu famoso artigo de
1937 intitulado ldquoA transcendecircncia do Egordquo e natildeo teria vislumbrado a ideia
de ldquosingularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo que jaacute estariam
suficientemente desenvolvidas na filosofia de Leibniz10 em uma palavra
Husserl teria se mantido kantiano demais11 talvez inclusive por natildeo ter
compreendido uma suposta precedecircncia do mundo com relaccedilatildeo agrave mocircnada
expressiva e a arbitrariedade da aplicaccedilatildeo irrestrita do princiacutepio de inclusatildeo
do predicado no sujeito dito de outra forma por Husserl natildeo ter visto em
Leibniz uma loacutegica do acontecimento ou topologia de superfiacutecie que
permitiria a ldquodeterminaccedilatildeo daquele domiacutenio e de sua potecircncia geneacuteticardquo e
ainda de outra forma por natildeo ter visto nos textos de Leibniz os elementos
para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese segundo a qual as ldquosingularidadesrdquo ou ldquoanti-
generalidadesrdquo devem ser consideradas ldquoimpessoais e preacute-individuaisrdquo
Como era de se esperar dada a associaccedilatildeo ao conceito de mocircnada Deleuze
trataraacute na 16ordf seacuterie (ldquoDa gecircnese estaacutetica ontoloacutegicardquo) da Loacutegica do sentido
da filosofia de Leibniz e como esta permitiria compreender a constituiccedilatildeo de
tal campo e tal ideia e que se tornaraacute a base de sua argumentaccedilatildeo em A
dobra ndash o que fica evidente especialmente em seu capiacutetulo 5 trata-se aqui
de levar adiante aquilo que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do
sentido ou do acontecimento12
Entatildeo nos voltando para a conclusatildeo da 16ordf seacuterie e parte da sua
hipoacutetese geral A primeira pergunta que devemos fazer eacute Qual eacute o
que causou muita estranheza a muitos interpretes de Leibniz Gonzalo deixa claro em seu artigo jaacute mencionado os termos em que se deu a polecircmica entre Fremont e Deleuze
10 Certamente o que permitiraacute a Deleuze terminar A dobra dizendo que permanecemos leibnizianos (DELEUZE 1991 p 208) posicionamento filosoacutefico com o qual esse sim Alain Badiou se potildee em desacordo ao defender a ldquooutra escolha ontoloacutegicardquo (BADIOU 2015 p 39-44)
11 DELEUZE 2003 p 101
12 Idem todo o final da 14ordf seacuterie
William de Siqueira Piauiacute | 215
imperativo do uso das obras de Carroll que marcaria as nuacutepcias da
linguagem e do inconsciente A resposta eacute a contestaccedilatildeo da identidade
pessoal (Idem p 3) Pressuposto que permitia a circulaccedilatildeo da ldquocasa vaziardquo
e o falar das ldquosingularidades pre-individuais e natildeo pessoaisrdquo ldquoque natildeo satildeo
nem da ordem do geral nem da ordem do individual nem pessoais nem
universaisrdquo ldquoem sumardquo o que possibilitaria a produccedilatildeo do sentido Se
deixar arrastar pelos verbos de puro devir natildeo deixar que a noccedilatildeo de
atributo verbal seja confundida e assimilada pela de predicado da loacutegica
formal (claacutessica-aristoteacutelica) dai que evidente e novamente se queremos
tomaacute-lo como ponto de partida tenha de ser arbitraacuterio na filosofia de
Leibniz a inerecircncia do predicado no sujeito (Idem p 115) o que deve levar
agravequeles conceitos de pessoa ou indiviacuteduo que permitiriam comparar Alice
com uma mocircnada e Silvia e Bruno com pessoas vagas Mas seraacute mesmo
arbitraacuterio
Assim e para o que nos interessa em Loacutegica do sentido os pontos
principais e o centro da interpretaccedilatildeo de Deleuze da filosofia leibniziana
estariam na seguinte afirmaccedilatildeo
Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada
mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente
compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia
dos predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo
expresso natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas
mocircnadas como a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos
verdade entretanto que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas (Dieu
creacutee le monde plutocirct que les monades)13 e [tambeacutem eacute verdade] que o expresso
13 Outra traduccedilatildeo possiacutevel dessa afirmaccedilatildeo e que afasta o problema da anterioridade temporal seria ldquoDeus cria o mundo e natildeo (plutocirct que) as mocircnadasrdquo A expressatildeo francesa plutocirct nos arrastaria inclusive para o que parece ser o contraacuterio da anterior ldquoDeus cria o mundo sobretudo (plutocirct) as mocircnadasrdquo Nossa interpretaccedilatildeo vai se basear na afirmaccedilatildeo e nota correspondente o que tambeacutem consideramos ser uma intensificaccedilatildeo feitas em A dobra Leibniz e o barroco ldquoEstas natildeo satildeo as generalidades mas acontecimentos gotas de acontecimento Nem por isso deixam [os acontecimentos as gotas de acontecimento] de ser preacute-individuais uma vez que o mundo eacute virtualmente primeiro em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que o expressam (Deus criou natildeo Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou) O indiviacuteduo nesse sentido eacute atualizaccedilatildeo de singularidades preacute-individuais [Elles nrsquoen sont pas moins preacute-individuelles dans la mesure ougrave le monde est virtuellement premier par rapport aux individus qui lrsquoexpriment (Dieu a creacuteeacute non pas Adam peacutecheur mais le monde ougrave Adam a peacutecheacute) Lrsquoindividu en ce sens est lrsquoactualisation de singulariteacutes preacute-individuelles et nrsquoimplique aucune speacutecification preacutealable Il faut mecircme dire le contraire et constater que la speacutecification suppose elle-mecircme lrsquoindividuation]rdquo (DELEUZE 1991 p 101) Podemos mesmo falar em
216 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
natildeo se confunde com sua expressatildeo mas [partindo de um ponto de vista
estoico] insiste ou subsiste () Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos
predicados na filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na
mocircnada expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo
expresso e esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras
singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que
pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a]
uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdade Leibniz foi muito longe nesta
primeira etapa da gecircnese [ontoloacutegica de um certo campo transcendental
impessoal e preacute-individual ou das singularidades entendidas como
verdadeiros acontecimentos transcendentais14] o indiviacuteduo constituiacutedo
como centro de envolvimento como envolvendo singularidades em um
mundo e sobre seu corpo (Idem p 114-5 grifo nosso)15
Como jaacute indicamos ao falar da associaccedilatildeo de Husserl com os achados
estoicos para aleacutem da noccedilatildeo de sujeito indiviacuteduo ou pessoa o outro tema
cariacutessimo agrave Loacutegica do sentido e que tambeacutem deve ter contribuiacutedo para a
escolha da filosofia leibniziana eacute o de ldquoexpressatildeordquo tema que leva agrave
pergunta Como as mocircnadas expressariam o mundo e qual a ordem de
precedecircncia ou preferecircncia seja com relaccedilatildeo a Deus ao mundo ou aos
corpos De qualquer modo com relaccedilatildeo agrave polecircmica entre ambos natildeo eacute
preciso muito para compreender a insistecircncia de Fremoacutent na reconstruccedilatildeo
anterioridade virtual do mundo em Leibniz Seria isso suficiente para aceitarmos o deslocamento proposto por Deleuze desde a Loacutegica do sentido
14 Cf a p 105 da mesma obra
15 ldquoSrsquoeffectuer crsquoest aussi ecirctre exprimeacute Leibniz soutient une thegravese ceacutelegravebre chaque monade individuelle exprime le monde Mais cette thegravese nrsquoest pas suffisamment comprise tant qursquoon lrsquointerpregravete comme signifiant lrsquoinheacuterence des predicats dans la monade expressive Car il est bien vrai que le monde exprimeacute nrsquoexiste pas hors des monades qui
lrsquoexpriment donc existe dans les monades comme la seacuterie des preacutedicats qui leur sont inheacuterents Il nrsquoest pas moins vrai cependant que Dieu creacutee le monde plutocirct que les monades et que lrsquoexprimeacute ne se confond pas avec son expression mais insiste ou subsiste [nota 1] [] Il est arbitraire de privileacutegier lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la philosophie de Leibniz Car lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la monade expressive suppose drsquoabord la compossibiliteacute du monde exprimeacute et celle-ci agrave son tour suppose la distribution de pures singulariteacutes drsquoapregraves des regravegles de convergence et de divergence qui appartiennent encore agrave une logique du sens et de lrsquoeacuteveacutenement non pas agrave une logique de la preacutedicacion et de la veacuteriteacute Leibniz a eacuteteacute tregraves loin dans cette premiegravere eacutetape de la genegravese lrsquoindividu constitueacute comme centre drsquoenveloppement comme enveloppant des singulariteacutes dans un monde et sur son corps et Adammiddotnon peacutecheur deacutecoule de lrsquoincompossibiliteacute des mondes ougrave Adam pegraveche et ne pegraveche pas Dans chaque monde les monades individuelles expriment toutes les singulariteacutes de ce monde - une infiniteacute - comme dans un murmure ou un eacutevanouissement mais chacune nrsquoenveloppe ou nrsquoexprime laquoclairementraquo qursquoun certain nombre de singulariteacutes celles au voisinage desquelles elle se constitue et qui se combinent avec son corpsrdquo (DELEUZE 1969 p 134-5) Ao que segue o comentaacuterio da nota 1 ldquoTema constante das cartas de Leibniz a Arnauld Deus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou (Theme constant des lettres de Leibniz agrave Arnauld Dieu a creacuteeacute non pas exactament Adam-pecheur mais le monde ouacute Adam peacutecheacute)rdquo
William de Siqueira Piauiacute | 217
dos conceitos leibnizianos de Deus e de indiviacuteduo fica evidente com a
citaccedilatildeo feita acima que esses deveriam fazer a base da argumentaccedilatildeo do
proacuteprio Deleuze que muitas vezes prefere recorrer aos textos esparsos e
de difiacutecil interpretaccedilatildeo em que Leibniz fala de compossibilidade ou
incompossibilidade da universalidade ou generalidade e singularidade ou
especificaccedilatildeo das regras de convergecircncia ou divergecircncia e mesmo do
caacutelculo diferencial e integral mas natildeo tanto aos em que o alematildeo fala
propriamente dos conceitos de substacircncia particular ou mocircnada
individual Todavia natildeo eacute nossa intenccedilatildeo remontar tal embate Assim eacute
nossa pretensatildeo problematizar ainda uma vez a partir dos textos onde
Leibniz de fato trata deles inclusive os associando os assuntos ldquoinerecircncia
do predicado no sujeitordquo ldquoDeusrdquo ldquomocircnada individualrdquo ou ldquosubstacircncia
particularrdquo e ldquoacontecimentordquo tentando remontar o que do nosso ponto
de vista parece ser um dos principais problemas da leitura deleuziana
certa cadeia argumentativa e associaccedilatildeo inevitaacutevel de temas presentes nos
textos leibnizianos
Dito isso em primeiro lugar mesmo que acreditemos que a leitura
que faz Russell da filosofia de Leibniz eacute purista demais com relaccedilatildeo agrave sua
vinculaccedilatildeo agrave loacutegica aristoteacutelica se eacute arbitraacuterio a inerecircncia do predicado no
sujeito com relaccedilatildeo agrave mocircnada individual expressiva ndash que devemos fazer
preceder da noccedilatildeo de uma substacircncia individual16 ndash Deleuze deveria ter se
explicado melhor quanto agrave afirmaccedilatildeo feita no sect8 do Discurso de
metafiacutesica que trata justamente do conceito de Deus e de ldquoem que
consiste uma substacircncia individualrdquo a saber
Ora eacute bem constante que toda predicaccedilatildeo tem algum fundamento verdadeiro
na natureza da coisa e quando uma proposiccedilatildeo natildeo eacute idecircntica isto eacute quando
o predicado natildeo estaacute compreendido expressamente no sujeito eacute preciso que
esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filoacutesofos in-esse
16 Com relaccedilatildeo ao modo como compreendemos a associaccedilatildeo do conceito de mocircnada humana com o de substacircncia individual indicamos nossos artigos ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo e ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e Infinito em Leibnizrdquo seja como for eacute no sentido do conceito de substacircncia individual ou noccedilatildeo de indiviacuteduo singular ou noccedilatildeo individual completa ou mesmo de pessoa possiacutevel que Deleuze entende o conceito de mocircnada individual ou humana
218 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
dizendo estar o predicado no sujeito Eacute preciso pois o termo do sujeito
conter sempre o do predicado de tal forma que quem entender
perfeitamente a noccedilatildeo do sujeito julgue tambeacutem que o predicado lhe
pertencerdquo (LEIBNIZ 1983 p 124 grifo nosso)
Afirmaccedilatildeo que fundamentaraacute as seguintes consequecircncias
Isto posto podemos dizer que a natureza de uma substacircncia individual ou
de um ser complexo consiste em ter uma noccedilatildeo tatildeo perfeita que seja
suficiente para deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se
atribui estaacute noccedilatildeo [] [Daiacute que] Deus vendo a noccedilatildeo individual ou
ecceidade de Alexandre nela vecirc ao mesmo tempo o fundamento e a razatildeo
de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar []
(Idem grifo nosso)
Apesar do deslocamento quanto agrave noccedilatildeo de criaccedilatildeo antes ou depois
de preferecircncia ou natildeo com relaccedilatildeo ao mundo ateacute aqui nada aponta para
uma restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse a natildeo ser a menccedilatildeo ao virtual
(virtuellement) ou seja nada aponta para a restriccedilatildeo do princiacutepio de
inerecircncia do predicado no sujeito especialmente quando se trata de pensar
a natureza de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo individual
completa ou perfeita noccedilatildeo individual ou ecceidade bem como nada
parece apontar para algo que permitisse concluir que ldquoDeus criou natildeo
exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo talvez no
sentido que a qualidade o adjetivo ldquopecadorrdquo o predicado natildeo seria
previa e propriamente ldquoinerenterdquo ao sujeito Adatildeo Restaria pois
compreender o que seria essa visatildeo sem precedecircncia ou preferecircncias e ldquoao
mesmo tempordquo da noccedilatildeo individual ou ecceidade O que quer dizer este
ldquoao mesmo tempordquo esta simultaneidade e como compreender este
fundamento e razatildeo de todos os predicados que verdadeiramente se
podem afirmar de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo
individual completa ou perfeita de um ser complexo (talvez o misteacuterio
mencionado em A dobra) Mas natildeo resta duacutevida que a verdade entra em
jogo aqui jaacute que se trata tambeacutem do fundamento de ldquotoda predicaccedilatildeordquo
por isso mesmo podemos colocar o problema no mesmo registro da
William de Siqueira Piauiacute | 219
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld17 quando o alematildeo afirma jaacute
na carta de 14 de julho de 1686 que semper enim notio praedicati inest
subjecto in propositione vera18 Nesse sentido a questatildeo seria perguntar se
o conhecimento que Deus tem de uma substacircncia individual noccedilatildeo
individual completa ou perfeita um noccedilatildeo individual ou ecceidade eacute certo
ndash infaliacutevel ndash a ponto de dizermos que as proposiccedilotildees formadas com relaccedilatildeo
a elas tecircm de ser ditas verdadeiras ou falsas mas claro que para Leibniz o
conhecimento de Deus eacute infaliacutevel e mesmo que em termos de predicaccedilatildeo
tiveacutessemos que levar a anaacutelise de tais noccedilotildees ao infinito temos de lembrar
que aquele conhecimento tambeacutem compreende o infinito Restaria ainda
perguntar se tal conhecimento se prenderia a uma caracteriacutestica
semelhante a um atributo verbal no sentido deleuzeano ou a um predicado
no sentido claacutessico De qualquer modo no sect31 do Discurso de metafiacutesica
que trata justamente da ldquorazatildeo que fez Deus chamar agrave existecircncia tal pessoa
possiacutevelrdquo tal substacircncia individual noccedilatildeo individual completa ou perfeita
noccedilatildeo individual ou ecceidade possiacuteveis e dos acontecimentos relacionados
a tais pessoas possiacuteveis ao menos parte da questatildeo eacute resolvida com a
seguinte consequecircncia geral
[] creio mais exato e seguro dizer segundo nossos princiacutepios e como jaacute notei
ser forccediloso haver entre os entes possiacuteveis a pessoa de Pedro ou Joatildeo cuja
noccedilatildeo ou ideia conteacutem toda esta seacuterie de graccedilas ordinaacuterias e todo o resto
destes acontecimentos (eacuteveacutenements) com suas circunstacircncias e que entre
uma infinidade de outras pessoas igualmente possiacuteveis agradou a Deus
escolhecirc-la para existir atualmente (actuellement) (Idem p 147 grifo nosso)19
17 Insistindo pois naquele lugar onde esse tema teria sido tatildeo debatido cf DELEUZE 2003 [nota 1] p 114
18 ldquoDe fato [ou manifestamente] na proposiccedilatildeo verdadeira sempre a noccedilatildeo do predicado lsquoinerersquo ao sujeitordquo
19 De pleno acordo com o que Leibniz defende na nota agrave carta de Arnauld com relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma noccedilatildeo vaga de sujeito ldquo[primeira resposta] que minha suposiccedilatildeo natildeo eacute simplesmente que Deus tenha querido criar um Adatildeo cuja noccedilatildeo seja vaga e incompleta mas que Deus quis criar um tal Adatildeo suficientemente determinado para um indiviacuteduo Esta noccedilatildeo individual completa encerra [ou envolve] em minha opiniatildeo relaccedilotildees com toda a serie das coisas o qual deve parecer tanto mais razoaacutevel quanto que o Sr Arnauld me concede aqui o enlace que haacute entre as resoluccedilotildees de Deus a saber que Deus ao resolver-se a criar determinado Adatildeo tem em conta todas as resoluccedilotildees que toma sobre toda a seria do universo agrave maneira de uma pessoa prudente que ao tomar uma resoluccedilatildeo com respeito a um propoacutesito tem em vista em sua totalidade dito propoacutesito jaacute que pode decidir-se melhor quando se resolve sobre todas as partes (que ma supposition nrsquoest paacutes simplement que Dieu a voulu creacuteer un Adam dont la notion soit vague et incomplegravete mais que Dieu a voulu creacuteer un tal Adam assez deacutetermineacute agrave un individu Et cette notion individuelle complete selon moi enveloppe decircs rapport agrave toute la suite des choses ce qui doit paraicirctre
220 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Fica evidente inclusive que mesmo quanto aos acontecimentos
(eacuteveacutenements) todos jaacute com suas circunstacircncias devem ser considerados
incluiacutedos nas ideias das pessoas possiacuteveis ou nas noccedilotildees completas das
pessoas possiacuteveis ou seja nas noccedilotildees das substacircncias individuais ou
particulares noccedilotildees individuais ou ecceidades possiacuteveis Em que sentido
portanto interpretar a afirmaccedilatildeo ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo
pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo Talvez ou no sentido que haacute
uma ruptura no desenvolvimento da filosofia de Leibniz entre o conceito
de substacircncia individual e mocircnada como querem muitos comentadores
ou concedendo que em Leibniz haveria a afirmaccedilatildeo do conceito de pessoa
vaga o que natildeo vemos como corroborar tendo em vista o que eacute afirmado
na nota agrave carta que mencionamos em nota mais acima mas poderia ser
um problema com relaccedilatildeo agrave hipoacutetese interpretativa que o sect414 da
Teodiceia exige uma ldquounidade objetividade muito especialrdquo para ser
compreendido e neste caso voltariacuteamos a uma saiacuteda semelhante agrave
daqueles comentadores Mas se nos mantemos na eacutepoca do Discurso
certamente podemos dizer que aquela consequecircncia seraacute seguida da
explicaccedilatildeo que parte dos princiacutepios fundamentais que guiam a
argumentaccedilatildeo de Leibniz satildeo 1) o da perfeiccedilatildeo ou completude das
operaccedilotildees de Deus e 2) o da noccedilatildeo individual completa ou perfeita (uma
noccedilatildeo natildeo vaga e natildeo incompleta) que encerra in-esse todos os
acontecimentos com todas as suas circunstacircncias Ateacute este momento o do
Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld
portanto nada parece apontar para o acontecimento ou gota de
acontecimento no sentido deleuziano mesmo que o revolucionaacuterio artigo
drsquoautant plus raisonnable que M Arnauld mrsquoaccorde ici la liaison qursquoil y a entre les reacutesolutions de Dieu savoir que Dieu prenant la reacutesolutions de creacuteer un tel Adam a eacutegard agrave toutes lecircs reacutesolutions qursquoil prend touchand toute la suiacutete de lrsquouniverse agrave peu pregraves comme une persone sage qui prend une reacutesolutions agrave lrsquoegard drsquoune partie de son dessein lrsquoa tout entier em vue et se reacutesoudra drsquoautant mieux si elle pourra se reacutesoudre drsquoautant mieux si elle pourrra se resoudre sur toutes lecircs parties agrave la fois)rdquo (LEIBNIZ 1900 p 182) Cf tambeacutem DELEUZE 2003 p 118 [e tambeacutem a nota 4] Vale lembrar que a questatildeo da escolha entre uma infinidade de pessoas possiacuteveis leva o problema do conhecimento do infinito natildeo mais para uma anaacutelise infinita de uma noccedilatildeo e sim para a de uma infinidade de noccedilotildees uma multidatildeo ou conjunto infinitos nesse sentido agrave de compossibilidade e incompossibilidade quanto ao que pensamos sobre a ligaccedilatildeo desse detalhe com o labirinto da liberdade gostariacuteamos de indicar novamente nosso artigo ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibnizrdquo
William de Siqueira Piauiacute | 221
sobre ldquoUm novo meacutetodo para os maacuteximos e miacutenimos assim como para as
tangentes que natildeo para ante quantidades fracionaacuterias ou irracionais e eacute
um gecircnero singular de caacutelculo para estes problemasrdquo jaacute esteja pronto
comprovadamente desde 1684 Na verdade cremos que a melhor
estrateacutegia para pensar uma topologia da superfiacutecie em Leibniz a partir de
1684 seria reconstituir sua noccedilatildeo de funccedilatildeo e se voltar para a sua
dinacircmica20 mas se distanciando de sua noccedilatildeo de mocircnada humana e
afirmando inclusive diferenccedilas importantes entre o conceito de substacircncia
individual do Discurso e o de mocircnada na Monadologia
De qualquer modo e em sentido contraacuterio agora a noccedilatildeo de pessoa
defendida no Discurso parece ser um desenvolvimento da de pessoa
espiritual que Leibniz defendia jaacute na carta a Molanus de 167921 justamente
contra a moral Estoica ndash o que deveria ter chamado a atenccedilatildeo do jovem
Deleuze ndash e a de Descartes e natildeo eacute diferente da utilizada na
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld portanto ambas as seacuteries de
cartas estariam em pleno acordo com o Discurso Mais que isso do nosso
ponto de vista trava-se desde a carta a Molanus daquilo que permitiraacute
compreender a peculiaridade e novidade do fatum christianum do iniacutecio
da Teodiceia novamente contra o fatum stoiumlcum vale lembrar Aleacutem
disso a noccedilatildeo individual completa ou perfeita eacute reafirmada nos Novos
ensaios justamente no capiacutetulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou
diversidaderdquo ndash capiacutetulo curiosamente natildeo analisado por Deleuze seja em
Loacutegica do sentido seja em A dobra ndash onde jaacute aparece o conceito de
mocircnada que a partir dali assimilaraacute grande parte das caracteriacutesticas do
conceito de noccedilatildeo individual completa ou perfeita capiacutetulo que deveria ter
sido interpretado por Deleuze ou ao menos mencionado dado que tanto
em A dobra e mais ainda em Loacutegica do sentido se tratava do problema
da identidade pessoal Assim ateacute por conta da boa nova que representaria
a obra carrolliana quanto agrave dissoluccedilatildeo da identidade pessoal nos parece
20 Quanto ao que pensamos sobre o conceito leibniziano de funccedilatildeo associado ao de continuidade e histoacuteria gostariacuteamos de indicar nosso artigo ldquoLeibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologiardquo
21 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartesrdquo
222 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que teria faltado um agrupamento mais cuidadoso dos textos a partir do
tema geral da noccedilatildeo individual completa ou perfeita De qualquer modo
ateacute esse momento o do Discurso ou em torno dos Novos ensaios e com
relaccedilatildeo seja ao conceito de mocircnada humana individual seja o de noccedilatildeo
individual completa natildeo vemos a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos alcanccedilados com o
artigo de 1684 ou que nos obrigue a leitura do texto ldquoSobre o meacutetodo da
universalidaderdquo de conforme Couturat o mais tardar 167422 o que parece
deixar sem fundamento o deslocamento exigido por Deleuze ao menos em
a Loacutegica do sentido A partir de quais textos que tratem propriamente do
problema do sujeito indiviacuteduo e mocircnada humana com as associaccedilotildees que
mencionamos acima fundamentariacuteamos aquela exigecircncia de recusarmos
o princiacutepio inesse e a de estarmos obrigados a apelar para as regras de
divergecircncia e convergecircncia ou para outro tipo de singularidade
Arriscariacuteamos dizer que por conta do todo da obra apenas os sect6 que
menciona a noccedilatildeo de funccedilatildeo e sect17 a sect22 que trabalham o conceito de
forccedila e causalidade final do Discurso poderiam fornecer algum
fundamento para tal deslocamento mas todo o resto da obra seria prova
suficiente que a adoccedilatildeo de tais regras em nada invalida o princiacutepio inesse
principalmente se as questotildees tiverem a ver com a tentativa de pensar a
noccedilatildeo completa de indiviacuteduo ou aquele conceito de mocircnada humana
defendido nos Novos ensaios e mesmo os conceitos de acontecimento e
suas circunstacircncias ou o conteuacutedo do intelecto divino23
Dito assim voltando ainda uma vez ao Discurso de metafiacutesica o
sect14 que trata das perspectivas do universo que Deus decide criar e que
corresponderiam ao que acontece agraves substacircncias individuais ndash talvez
daquilo que sem nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de Leibniz permitiria falar
da aplicaccedilatildeo das regras de convergecircncia e divergecircncia ou ao novo meacutetodo
para os maacuteximos e miacutenimos ndash natildeo deixa duacutevidas quanto agrave noccedilatildeo de
22 Anterior agrave carta a Molanus portanto
23 Vale lembrar o tiacutetulo que recebeu o sect6 do Discurso ldquoDeus nada faz fora de ordem e nem eacute possiacutevel forjar acontecimentos (eacuteveacutenements) que natildeo sejam regularesrdquo Neste caso os outros paraacutegrafos que mencionamos encaminham a pergunta que talvez impediria aquele deslocamento Com relaccedilatildeo ao conteuacutedo do intelecto divino o que faz o fundamento ou substacircncia da continuidade da mudanccedila Problema que no nosso entender eacute o principal que aparece jaacute desde o iniacutecio da Monadologia cf sect8 e que exige a noccedilatildeo de mocircnada individual fechada
William de Siqueira Piauiacute | 223
acontecimento e emprego irrestrito do princiacutepio da inclusatildeo do predicado
no sujeito com relaccedilatildeo agraves ideias de pessoas ou noccedilotildees completas ali
Leibniz afirmava
De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poder-se-aacute dizer
que nunca uma substacircncia particular atua (agit) sobre uma outra substacircncia
particular e tampouco padece se os eventos24 de cada um satildeo considerados
apenas como consequecircncia de sua simples ideia ou noccedilatildeo completa pois
esta ideia [ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular] encerra jaacute
todos os predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime
(exprime) todo o universo Com efeito nada pode acontecer-nos (arriver)
aleacutem de pensamentos e percepccedilotildees e todos os nossos futuros pensamentos e
percepccedilotildees natildeo passam de consequecircncias embora contingentes
(contingentes) dos nossos pensamentos e percepccedilotildees anteriores de tal modo
que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora
me acontece ou aparece nessa percepccedilatildeo poderia ver tudo quanto me
aconteceraacute e apareceraacute sempre o que natildeo falharia e aconteceria da mesma
maneira embora tudo quanto existisse fora de mim fosse destruiacutedo desde que
restasse Deus e eu (LEIBNIZ 1983 p 129-30)
A ideia ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular encerra jaacute
todos os predicados ou acontecimentos e exprime todo o universo E
exprime jaacute enquanto ideia ou noccedilatildeo completa todo o universo Claro que
um grande problema eacute compreender aquela contingecircncia mas natildeo no
esqueccedilamos da intensificaccedilatildeo que vem a seguir ldquodesde que restasse
apenas eu e Deusrdquo Apesar da necessidade de problematizar quatildeo longe
vai a impossibilidade de distinccedilatildeo completa dos nossos pensamentos e
percepccedilotildees certamente associada agrave necessidade de uma anaacutelise infinita
para a compreensatildeo total ou perfeita de uma noccedilatildeo individual o que pode
apontar para aquela contingecircncia em nenhum momento da Carta a
Molanus do Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz
e de Anauld vimos Leibniz afirmar a precedecircncia ou preferecircncia do
mundo e mesmo dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de pessoas
24 Aqui podemos ter um problema de traduccedilatildeo de fato soacute mais agrave frente surgiraacute no original francecircs a palavra lsquoeventorsquo ou lsquoacontecimentorsquo ou seja eacuteveacutenement
224 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
especialmente no sentido que haveria singularidades que precederiam as
individualidades o que justificaria a necessidade de recorrermos agraves suas
noccedilotildees de compossibilidade e incompossibilidade ou agraves regras de
convergecircncia e de divergecircncia Parece-nos que a afirmaccedilatildeo ldquoesta ideiardquo ou
noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular ldquoencerra jaacute todos os
predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime
(exprime) todo o universordquo vai justamente no sentido contraacuterio ao
pretendido por Deleuze De qualquer modo o problema da significaccedilatildeo do
conceito de expressatildeo seu campo semacircntico parece nos obrigar a passar
para a regiatildeo dos possiacuteveis e vai mais no sentido das noccedilotildees completas
para o universo do que o contraacuterio Assim eacute preciso atentar para o fato
que ao menos aqui ldquopredicadordquo ldquoacontecimentordquo e ldquoexpressatildeordquo satildeo
colocados no mesmo registro daquelas ideias e nada aponta para uma
restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse ou para a anterioridade ou preferecircncia do
mundo com relaccedilatildeo agraves ideias ou noccedilotildees completas de substacircncias
particulares ou mocircnadas individuais De qualquer modo e essa eacute nossa
opiniatildeo os paraacutegrafos finais da Teodiceia e a uacuteltima carta que Leibniz
escreveu a Samuel Clarke parecem ser decisivos Primeiro
Vocecirc vecirc [afirma a deusa Palas Atena] que meu pai [Juacutepiter] natildeo fez Sextus
mau ele [Sextus] o foi [mau] desde toda a eternidade ele o foi sempre
livremente [meu pai] soacute fez lhe consentir a existecircncia que sua sabedoria
natildeo podia recusar ao mundo em que ele estaacute compreendido ele o fez
passar da regiatildeo dos possiacuteveis para a dos seres atuais (LEIBNIZ 2013
[Teodiceia] sect416 p 415 grifo nosso)
Aqui eacute afirmada a necessidade de uma determinada pessoa possiacutevel
dever estar compreendida em um determinado mundo possiacutevel25 que
Deus ou na histoacuteria que termina a Teodiceia Juacutepiter faz ou consente vir
agrave existecircncia suposto ser o melhor dos mundos possiacuteveis ldquopassar da regiatildeo
dos possiacuteveis para a dos seres atuaisrdquo e certamente podiacuteamos pensar tal
25 A partir da perfeiccedilatildeo das operaccedilotildees do intelecto divino Leibniz natildeo soacute natildeo defende que haacute pessoas possiacuteveis vagas mas tambeacutem natildeo haacute propriamente falando mundos possiacuteveis vagos
William de Siqueira Piauiacute | 225
necessidade nos valendo da noccedilatildeo de compossibilidade e
incompossibilidade mas natildeo nos adiantemos Eacute preciso voltar ao que diz
o texto e lembrar que Juacutepiter apenas consentiu a existecircncia a Sextus
existecircncia que eacute precedida portanto de uma noccedilatildeo completa individual
que faz parte do conteuacutedo do intelecto divino e que se relaciona com as
perfeiccedilotildees de suas operaccedilotildees daiacute sua eternidade perfeiccedilatildeo ou completude
(em oposiccedilatildeo a vago) e precedecircncia com relaccedilatildeo agrave existecircncia isto eacute agrave
posterior atualizaccedilatildeo Em que sentido portanto interpretar a afirmaccedilatildeo
ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo
pecourdquo Contra parte da interpretaccedilatildeo de Deleuze pois Apolo-Juacutepiter natildeo
criou Sextus mau ou fez a inclusatildeo de tal predicado ou atributo verbal a
partir de uma seacuterie universo ou mundo determinado de singularidades
adjacentes preacute-individuais natildeo eacute nesse sentido que o mundo precede ou
tem preferecircncia com relaccedilatildeo a Sextus De todo modo e no mesmo sentido
das trecircs obras que mencionamos mais acima nem o Deus cristatildeo criou
Adatildeo pecador nem Juacutepiter criou o Sextus violador (de Lucreacutecia)26 eles o
foram de modo completo e perfeito desde sempre e seus acontecimentos
com todas as circunstacircncia estavam registrados no livro dos destinos ou
das verdades eternas no palaacutecio dos destinos ou na regiatildeo dos possiacuteveis
no mesmo ldquolugarrdquo em que Leibniz diz muitas vezes deveriacuteamos ldquobuscarrdquo
os mundos possiacuteveis as seacuteries que corresponderiam aos universos etc
Deus ou Juacutepiter os teriam visto como ideias ou noccedilotildees completas e sem
precedecircncia de tempo ou preferecircncia moral ao mesmo tempo e antes do
decreto da criaccedilatildeo Justamente o que permite dizer do diabo que ldquoporque
estava escrito no livro das verdades eternas que conteacutem tambeacutem os
possiacuteveis antes de todo o decreto de Deus que essa criatura [o diabo] se
dirigiria livremente para o mal se ela fosse criadardquo (Idem p 329)27
26 A partir disso perguntariacuteamos O Deus leibniziano a partir de sua ciecircncia de simples inteligecircncia natildeo vecirc desde sempre na ideia da natureza das criaturas livres Adatildeo e Sextus que elas satildeo pecadoras e violadoras (ou preguiccedilosa) Se sim natildeo fica claro de fato o que faz a base da necessidade daquele deslocamento e termos de supor uma noccedilatildeo leibniziana de acontecimento a partir de singularidades adjacentes
27 Eis o motivo porque Derrida achou necessaacuterio criticar em ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo (Escritura e diferenccedila) de 1967 as noccedilotildees leibnizianas de livro e histoacuteria criticar a noccedilatildeo de repeticcedilatildeo associada aos destinos depositados no palaacutecio dos destinos (Teodiceia sect414) ou no livro dos destinos (Teodiceia sect275) Certamente o que faria eco agrave recusa por parte de Badiou quanto agrave inclusatildeo de Mallarmeacute em A dobra E talvez aqui possamos pensar que tendo em vista que
226 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Somente assim Jupiacuteter natildeo se torna o culpado do destino de Sextus e natildeo
nos perdemos nessa regiatildeo do labirinto da liberdade Seja como for a
partir de seu conhecimento infinito e infaliacutevel Deus criou fez vir agrave
existecircncia exatamente Adatildeo pecador e de um soacute golpe o mundo em que
ele pecaraacute
Natildeo vemos outra maneira de interpretar o final da Teodiceia a natildeo
ser que queiramos e contra o que estabelece a filosofia leibniziana nos
perder no labirinto da liberdade e necessidade Daiacute que natildeo vemos como
corroborar aquela divisatildeo em seleccedilotildees28 que faz a base da hipoacutetese
interpretativa formulada no segundo momento da nota 4 da 16ordf seacuterie de
Loacutegica do sentido e que nos obrigaria aceitar aquele deslocamento e
ordem de dependecircncia Seraacute mesmo que precisamos pensar ldquouma unidade
objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo
de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo
infinitordquo base daquela necessidade de deslocamento e ordem de
dependecircncia que nos levaria para muito longe do que afirmava a nota agrave
carta a Arnauld de 13 de maio de 1686 que jaacute mencionamos em nota para
compreender os paraacutegrafos finais da Teodiceia
Deleuze natildeo menciona Derrida em a Loacutegica do sentido publicada um ano apoacutes Escritura e diferenccedila ou em A dobra a menccedilatildeo a Husserl e a inclusatildeo de Mallarmeacute podem ser indicadoras de sua oposiccedilatildeo agravequela interpretaccedilatildeo De qualquer modo tanto Derrida quanto Badiou recusam ou recusariam a opiniatildeo que permanecemos leibnizianos especialmente se queremos fazer Mallarmeacute estar de acordo conosco Se o leitor quiser entender melhor o que estamos tentando dizer aqui teraacute de cruzar nossos artigos ldquoLeibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agrave teoria tradicional da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegadardquo e ldquoDerrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeordquo e se perguntar se Leibniz natildeo tem de ser colocado naquele momento preacute Mallarmeacute e Goumldel em que se acreditava na completude sistecircmica da linguagem
28 Nos referimos agrave seguinte afirmaccedilatildeo ldquo[I momento] Distinguimos pois trecircs seleccedilotildees (seacutelections) conforme ao tema
leibniziano uma que define um mundo por convergecircncia uma outra que define neste mundo indiviacuteduos completos uma outra enfim que define elementos incompletos ou entes ambiacuteguos comuns a vaacuterios mundos e aos indiviacuteduos correspondentes [II momento] Sobre esta terceira seleccedilatildeo ou sobre Adatildeo lsquovagorsquo constituiacutedo por um pequeno nuacutemero de predicados (ser o primeiro homem etc) que devem ser completados diferentemente em diferentes mundos cf Leibniz lsquoObservaccedilotildees sobre a carta de M Arnauldrsquo [que citamos na nota 15] [] Eacute verdade que neste texto Adatildeo vago natildeo tecircm existecircncia por si mesmo vale somente com relaccedilatildeo ao nosso entendimento finito seus predicados natildeo satildeo mais que generalidades Mas ao contraacuterio no texto ceacutelebre da Teodiceia (sectsect414-416) os diferentes Sextus nos mundos diversos tecircm uma unidade objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo infinito Muito cedo Leibniz havia elaborado uma teoria dos lsquosignos ambiacuteguosrsquo em relaccedilatildeo com os pontos singulares tomando por exemplo as seccedilotildees cocircnicas [les diffeacuterents Sextus dans les mondes diverses ont une uniteacute objective tregraves speacuteciale qui repose sur 1a nature ambigueuml de la notion de singulariteacute et sur la cateacutegorie de problegraveme du point de vue drsquoun calcul infini Tregraves tocirct Leibniz avait eacutelaboreacute une theacuteorie des lsquosignes ambigusrsquo en rapport avec les points singuliers prenant pour exemple les sections coniques] cf lsquoDo meacutetodo da universalidadersquo (Opuacutesculos Couturat [p 97-144])rdquo (DELEUZE 2003 p 118 grifo nosso)
William de Siqueira Piauiacute | 227
Dito isso nos parece que o que faltou a Deleuze foi buscar
compreender melhor as noccedilotildees de ideia e representaccedilatildeo associadas agrave de
noccedilatildeo completa de um individuo singular tanto no Discurso e
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld quanto nos paraacutegrafos finais
da Teodiceia e como o uso indistinto que ele proacuteprio faz do filosofema o
comprova pouco importa os detalhes do desenvolvimento do conceito de
mocircnada humana individual Mas isso se pareceria muito com a criacutetica que
fez Derrida a Foucault e que jaacute mencionamos no iniacutecio Eacute como se Deleuze
tivesse ficado parado na parte da ficccedilatildeo em que Lorenzo Valla fala de um
querer ainda indeterminado uma singularidade preacute-individual apenas
que permitiria bifurcaccedilatildeo e soacute posterior inclusatildeo base de sua gecircnese
estaacutetica ontoloacutegica como um pecar ainda indeterminado um verbo-
atributo que permitiria falar em inclusatildeo do que ainda natildeo estava
totalmente ldquodeterminadordquo natildeo exatamente determinado o em bifurcaccedilatildeo
base daquela ldquounidade objetiva muito especialrdquo a partir de um mundo de
singularidades adjacentes um mundo regido por uma espeacutecie de siacutentese
disjuntiva que permitiria falar em ldquonatureza ambiacutegua da noccedilatildeo de
singularidaderdquo e em ldquocategoria do ponto de vista de um caacutelculo infinitordquo e
permitiria pensar indiviacuteduos possiacuteveis lsquovagosrsquo constituiacutedos ldquopor um
pequeno nuacutemero de predicados que devem ser completados
diferentemente em diferentes mundosrdquo mas tivesse se esquecido que
trata-se para Leibniz de uma ficccedilatildeo falsa que teria desconsiderado o
segundo aspecto do tipo de conhecimento que Apolo-Juacutepiter-Palas-Atena
teria ou seja soacute teria considerado algo semelhante agrave ciecircncia divina de
visatildeo (que vecirc as existecircncias o mundo ou os corpos) e esquecido a ciecircncia
da simples inteligecircncia (que vecirc todos os possiacuteveis sem precedecircncia ou
preferecircncia) neste caso justamente contra ao que advertia o proacuteprio
Leibniz a saber a ciecircncia da simples inteligecircncia eacute ldquoonde eacute preciso
procurar a fonte de todas as coisasrdquo (Idem p 416 [sect417]) tanto dos
mundos ou seacuteries universo quanto dos indiviacuteduos possiacuteveis
Segundo de qualquer modo pouco antes de morrer Leibniz afirmava
para Samuel Clarke
228 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
[sect6] Mas nem essa presciecircncia nem essa preordenaccedilatildeo atentam contra a
liberdade De fato Deus levado pela suprema razatildeo [que pode ser comparada
agrave suprema perfeiccedilatildeo do sect31 do Discurso de metafiacutesica] a fazer a escolha
entre muitas sequecircncias [ou seacuteries] de coisas ou mundos possiacuteveis daquele
em que as criaturas livres tomassem tais e tais resoluccedilotildees ainda que natildeo sem
seu concurso tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez
por todas (tout eacuteveacutenement certain et determine une fois pour toutes) [] esse
simples decreto da escolha natildeo muda mas apenas atualiza as suas naturezas
[as das criaturas livres] vistas por ele em suas ideias (LEIBNIZ 1983 [Quinta
carta] p 194)29
Tanto Arnauld quanto o teoacutelogo Clarke teriam se incomodado com o
mesmo Novamente tendo em vista que a criaccedilatildeo do mundo eacute uma
atualizaccedilatildeo das naturezas das criaturas livres que foram vistas por Deus
em suas ideias e que eacute a partir do conhecimento preacutevio presciecircncia ou
ciecircncia da simples inteligecircncia de ldquotodasrdquo as resoluccedilotildees que elas tomaratildeo
que podemos falar em pontos de vistas de um mundo que as compreende
e que seraacute atualizado junto com elas tendo em vista tudo isso natildeo haacute
motivo para falar em precedecircncia de mundo que resulte em singularidades
preacute-individuais ou que Deus cria ou vecirc primeiro o mundo onde Adatildeo eacute
pecador que levaria a crer que Deus natildeo vecirc ou cria um Adatildeo exatamente
pecador Ou seja nada aponta para uma ldquounidade objetiva muito especialrdquo
que nos obrigaria a diferenciar a noccedilatildeo de individuo possiacutevel com relaccedilatildeo
ao Adatildeo da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld ou do Discurso
da com relaccedilatildeo aos Sextus dos paraacutegrafos finais da Teodiceia Se levarmos
a seacuterio as obras que mencionamos ateacute aqui e principalmente a histoacuteria
contada ao final da Teodiceia mesmo os mundos possiacuteveis tecircm como
conteuacutedo as noccedilotildees completas ou perfeitas de pessoas possiacuteveis e natildeo haacute
por que falar em anterioridade ou preferecircncia do mundo com relaccedilatildeo ao
seu conteuacutedo
29 Mais ny cette prescience ny cette preordination ne derogent point agrave la liberteacute Car Dieu porte par la supremo raison agrave choisir plusieurs suites des choses ou mondes possibiles celuy ougrave les creatures libres prendroient telles ou telles resolutions quoyque non sans son concours a rendu par lagrave tout evenement certain et determine une fois pour toutes sans deroger por lagrave a liberte de ces creatures ce simple decret du choix ne changeant point mais actualisant seulement leur natures libres quirsquoil y voyoit dans ses ideacutees
William de Siqueira Piauiacute | 229
Agora fica claro que ateacute o final da sua vida Leibniz defendeu natildeo soacute
uma noccedilatildeo de pessoa espiritual (previamente conhecida) daiacute de mocircnada
humana individual que de modo nenhum se assemelha agrave noccedilatildeo de uma
pessoa vaga mas tambeacutem de acontecimento (previamente conhecido e
ordenado) que de modo nenhum se assemelha agrave ideia de caos ou que
lembre siacutenteses disjuntivas portanto ambas nada tecircm a ver com as boas
novas que Deleuze viu seja nas trecircs obras de Carroll seja na filosofia dos
Estoicos Na verdade se obedecemos seja agrave ordem de argumentaccedilatildeo do
Discurso seja agrave da Monadologia quem ilumina a noccedilatildeo de
acontecimento mudanccedila ou movimento eacute a de substacircncia individual ou
mocircnada e natildeo o contraacuterio aleacutem disso o que permite compreender o
conhecimento preacutevio que o deus leibniziano teria do mundo a ser
efetivado daiacute criado depende do que ele considerava ser a ciecircncia de
simples inteligecircncia e natildeo de visatildeo
Do nosso ponto de vista o que dissemos ateacute aqui jaacute nos impediria de
aceitar a natildeo ser com muitas ressalvas e natildeo vemos qualquer vantagem
nisso o deslocamento exigido por Deleuze seja na 16ordf seacuterie de Loacutegica do
sentido seja no capiacutetulo ldquoIndividuaccedilatildeo e especificaccedilatildeordquo de A dobra ou
seja inclusive por que natildeo vimos motivo para aceitar a defesa daquela
ldquounidade objetiva muito especialrdquo nos uacuteltimos paraacutegrafos da Teodiceia os
textos que mencionamos parecem fornecer prova suficiente que natildeo eacute
necessaacuterio nos encaminhar para as noccedilotildees de compossibilidade ou
incompossibilidade e regra de convergecircncia ou divergecircncia se queremos
compreender adequadamente o que Leibniz entendia por pessoa ou
indiviacuteduo possiacutevel associado a acontecimento e que seria muito diferente
do que o tinha visto Husserl Ao inveacutes de comeccedilarmos por aceitar tal
deslocamento preferimos nos perguntar Mas quais entatildeo seriam as
principais fontes do deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo de Deleuze ou
da peculiaridade daquela unidade objetiva Nossa hipoacutetese eacute que a Loacutegica
do sentido e mesmo A dobra Leibniz e o barroco estariam associados agrave
excessiva importacircncia que ele deu agrave seguinte parte do sect414 da Teodiceia
230 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
E quando as condiccedilotildees natildeo estiverem determinadas o bastante haveraacute tanto
quanto se quiser de tais mundos diferentes entre si que responderatildeo
diferentemente agrave mesma questatildeo de tantas maneiras quanto eacute possiacutevel Vocecirc
aprendeu geometria quando era ainda jovem como todos os gregos bastante
elevados Vocecirc sabe entatildeo que quando as condiccedilotildees de um assunto que se
pergunta natildeo o determinam o bastante e que haacute uma infinidade deles e ao
menos esse lugar que frequentemente eacute uma linha seraacute determinado Desse
modo vocecirc pode afigurar uma sequecircncia regrada de mundos que conteratildeo
todos ou somente o caso de que se trata e nisso variaratildeo as circunstacircncias e
as consequecircncias Mas se vocecirc coloca um caso que natildeo difere do mundo
atual exceto numa uacutenica coisa definida e na sua sequecircncia um certo
mundo determinado lhe corresponderaacute esses mundos estatildeo aqui [no
palaacutecio dos destinos] quero dizer em ideias (LEIBNIZ 2103 p 413 grifo
nosso)
Novamente os mundos enquanto ideias estatildeo naquele ambiente
regido pela ciecircncia de simples inteligecircncia Mas talvez tenhamos aqui o
uacutenico caso em que uma variedade de mundos eacute posta antes dos indiviacuteduos
possiacuteveis ou da determinaccedilatildeo completa dos acontecimentos com suas
circunstacircncias e permitiria falar em uma unidade objetiva especial
entretanto eacute preciso lembrar que trata-se de uma suposiccedilatildeo em que ldquoas
condiccedilotildees natildeo estejam determinadasrdquo exatamente com o mesmo sentido
de suposiccedilatildeo da menccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pessoa vaga da nota agrave carta de Arnauld
ndash que jaacute mencionamos tantas vezes de qualquer modo tal suposiccedilatildeo deve
ser compreendida com a ajuda de noccedilotildees tiradas de uma geometria que jaacute
era conhecida dos gregos30 e no miacutenimo natildeo justifica simplesmente o
apelo ou passagem para uma topologia de superfiacutecie ou para a defesa da
tese que em Leibniz podemos encontrar a defesa da noccedilatildeo completa ou
perfeita de uma substacircncia particular a partir da de singularidade
subjacente ou de uma unidade objetiva especial Todavia e em primeiro
lugar tambeacutem eacute preciso lembrar o que vem logo em seguida e que
grifamos no texto acima justamente o que permite a consequecircncia e
30 Vejam que aqui o proacuteprio Leibniz natildeo faz qualquer referecircncia agraves novidades que havia descoberto em matemaacutetica seja com relaccedilatildeo ao infinito agraves singularidades ou aos signos ambiacuteguos o que ele faz ou daacute a entender em outros momentos da Teodiceia ele prefere tendo em vista a eacutepoca em que viveria o personagem Teodoro se referir ao que jaacute era conhecido a partir da geometria dos gregos
William de Siqueira Piauiacute | 231
comparaccedilatildeo que viratildeo a seguir ou seja neste palaacutecio dos destinos Palas
Atena diz que mostraraacute a Teodoro ldquoonde (ougrave) ele [Sextus] se encontraraacuterdquo
ao que se seguira a advertecircncia ldquonatildeo completamente o mesmo Sextus que
vocecirc viu isto natildeo pode ser pois ele leva sempre consigo aquilo que ele
seraacute mas outros Sextus semelhantesrdquo mas tambeacutem totalmente
determinados ldquoque teratildeo o que vocecirc jaacute conhece do verdadeiro Sextusrdquo
Tudo segue no sentido de que haacute presciecircncia das ldquosequecircncias [ou seacuteries]
de coisas ou mundos possiacuteveisrdquo nos quais tais ou tais ldquocriaturas livres
tomassem tais e tais resoluccedilotildeesrdquo Claro que aquele ldquoonderdquo se refere a um
lugar que deve ser pensado no plano das ideias e aqui sim poderiacuteamos
utilizar a topologia leibniziana (Caracteriacutestica Geomeacutetrica ou Analysis
situs) ou a doutrina do espaccedilo e tempo relacionais para compreender o
que seria a noccedilatildeo individual completa e perfeita de um tal Sextus Seja
como for jaacute podemos dizer que tal ou tais Sextus nada tecircm a ver com o
Fang de ldquoO jardim de caminhos que se birfurcamrdquo31 de Borges daiacute de Silvia
e Bruno ou das Alices de Carroll ou seja apesar de estar de acordo que
Leibniz eacute um antigeneralista quando se trata das noccedilotildees completas ou
perfeitas isso natildeo traz a consequecircncia que por isso ele teria de defender a
constituiccedilatildeo de indiviacuteduos a partir de singularidades adjacentes A natildeo
necessidade da consequecircncia pode ser pensada natildeo soacute a partir do que de
fato lemos no sect414 da Teodiceia mas ainda mais explicitamente nos dois
momentos do sect9 do Discurso eacute verdade que ali Leibniz se mostra um
antigeneralista e nesse sentido um antitomista mas tambeacutem eacute verdade
que manteacutem a noccedilatildeo tomista das inteligecircncias separadas para a
compreensatildeo adequada do que ele havia defendido no sect8 da mesma obra
a saber quod ibi omne individuum sit specie infima Concordamos que
para pensar a noccedilatildeo leibniziana de espeacutecie a partir dessa antigeneralidade
eacute preciso opor a noccedilatildeo matemaacutetica de espeacutecie agrave noccedilatildeo fiacutesica de espeacutecie
mas novamente isso natildeo eacute razatildeo suficiente para recusar o que ele mesmo
afirma no sect9 e que faz o fundo de grande parte da oposiccedilatildeo dele ao
nominalismo de um Locke nos Novos ensaios E quanto ao que Leibniz
31 Cf BORGES 2005 [Ficciones] p 80
232 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
diz da existecircncia das espeacutecies no sentido matemaacutetico prefeririacuteamos
interpretaacute-la a partir do embate que ele teve com Newton quanto agrave
realidade e materialidade dos objetos matemaacuteticos que pode ser
depreendida do que eacute afirmado em Sobre o peso ndash a gravitaccedilatildeo ndash e
equiliacutebrio dos fluidos (De gravitatione et aequipondio fluidorum)32
Cremos que para o alematildeo as figuras matemaacuteticas natildeo precisam existir
para que falemos em verdade ou em movimentos em acordo com elas a
verdade de tais objetos eacute de outra ordem satildeo verdades eternas que
tambeacutem mas diferentemente das noccedilotildees de indiviacuteduos fazem o conteuacutedo
do intelecto divino Mas isso natildeo eacute o fundamental aqui
De qualquer forma parece-nos que foi justamente a excessiva
importacircncia que Deleuze conferiu a aquela parte tendo sido separada de
seu final consequecircncia e comparaccedilatildeo que conduziu Deleuze ao final do
texto ldquoSobre o meacutetodo universalrdquo33 o que seraacute mantido e de certa forma
intensificado em A dobra o que mais uma vez seraacute chamado para
fundamentar a exigecircncia de parte daquele deslocamento isto eacute o
pensamento generalista de Leibniz conduziria diretamente agrave exigecircncia do
uso geral das regras de convergecircncia e divergecircncia ndash e mesmo a um caacutelculo
do infinito ou agrave noccedilatildeo de signo ambiacuteguo ndash para as singularidades
adjacentes e o consequente delas para as noccedilotildees de compossibilidade e
incompossibilidade34
Do nosso ponto de vista talvez associada a essa importacircncia
exagerada e por que natildeo interpretaccedilatildeo equivocada outro problema talvez
ainda mais grave de exegese parece ter tido origem no lugar de parada que
Deleuze fez ou permite que faccedilamos no iniacutecio do sect47 da Quinta carta a
Clarke texto que de fato soacute pode ser interpretado a partir de parte da
32 Para um comeccedilo de conversa indicariacuteamos o nosso artigo ldquoQuerela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo agrave filosofia modernardquo
33 Cf LEIBNIZ 1903 [Opuscules et fragments ineacutedits de Leibniz] p 145
34 Vale relembrar a ordem de dependecircncia das suposiccedilotildees ldquoEacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na filosofia de Leibniz Pois (III) a inerecircncia de predicados na mocircnada expressiva supotildee primeiro (II) a compossibilidade do mundo expresso e esta por sua vez supotildee (I) a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdaderdquo (DELEUZE 2003 p 115)
William de Siqueira Piauiacute | 233
topologia leibniziana e da doutrina do espaccedilo e tempo relacionais quer
dizer ele teria parado justamente no modo como os homens
semelhantemente a Newton pensam a noccedilatildeo de movimento (daiacute mudanccedila
referente aos corpos por consequecircncia acontecimento) situaccedilatildeo e
possiacutevel teria parado e pensado a noccedilatildeo de indiviacuteduo apenas a partir de
uma topologia posicional que desconsidera justamente a necessidade de os
acidentes natildeo passearem fora das mocircnadas Neste caso Deleuze teria
esquecido de separar e mesmo teria invertido a importacircncia as duas
partes do texto ou seja a que comeccedila com ldquoEis como os homens chegam
a formar a noccedilatildeo de espaccedilordquo e a que comeccedila com ldquoE eacute bom considerar aqui
a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa
o lugarrdquo que continua com ldquodois sujeitos diferentesrdquo ldquonatildeo poderiam ter
precisamenterdquo de modo completamente determinado ldquoa mesma situaccedilatildeo
individual natildeo podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em
dois sujeitos nem passar de sujeito para sujeitordquo Onde pois colocar o
Fang de Borges se natildeo queremos ir contra a doutrina leibniziana do espaccedilo
e tempo relacionais ou fazer esquecer a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo
de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugar ou que um mesmo acidente
individual natildeo pode encontrar-se em dois sujeitos Trata-se de retomada
explicita do sect7 da Monadologia que deve ser compreendida a partir de
uma noccedilatildeo de mocircnada fechada e natildeo vemos outro jeito do princiacutepio do
predicado inerente ao sujeito ou de predicados acontecimento (sentido
claacutessico) dados de uma vez por todas e natildeo atributos verbais que se
associem a uma espeacutecie de siacutentese disjuntiva ou exijam uma unidade
objetiva muito especial
Uma interpretaccedilatildeo atenta agrave inversatildeo necessaacuteria teria permitido a
Deleuze compreender o motivo da afirmaccedilatildeo de Leibniz no sect61 da
Monadologia segundo a qual os corpos les composeacutes apenas simbolizam
(symbolisent) no sentido que apenas ldquoconcordam comrdquo e que remeteria
ao convencionalismo no sentido que sozinhos careceriam de fundamento
defendido no sect1 do De interpretatione de Aristoacuteteles os fenocircmenos bem
234 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
fundados apenas simbolizam os simples35 e natildeo o contraacuterio o que mais
uma vez parece colocar Deleuze em dificuldades se se pretende afirmar a
precedecircncia do mundo ou dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees completas de
indiviacuteduos ou agrave necessidade de recorrer agraves singularidades adjacentes
E aqui do nosso ponto de vista chegamos ao ponto central do
deslocamento exigido por Deleuze desde a Loacutegica do sentido ele toma
seu pleno sentido somente se invertermos o plano argumentativo da
Monadologia ou seja se recusamos o caminho sinteacutetico do simples para
o composto dito de outro modo se pensarmos o conceito de mocircnada a
partir de uma matemaacutetica uma topologia que utilizariacuteamos para dar
conta das mudanccedilas que ocorreriam no plano dos corpos mas sem
individuaccedilatildeo preacutevia isto eacute a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos corpos viria em
primeiro lugar e comporia a seacuterie universo mas isso eacute inverter a ordem
de importacircncia entre a metafiacutesica e dinacircmica ndash ir contra o que diz o sect18
do Discurso ndash e eacute preciso estar muito atento para natildeo defender sem o
saber uma distinccedilatildeo que funciona muito bem no plano dos corpos mas
que eacute solo nuacutemero com relaccedilatildeo ao que de fato resolve o problema da
mudanccedila dito de outro modo tal inversatildeo desconsideraria justamente o
fundamento da ldquorelaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo
A proacutepria ordem dos capiacutetulos de A dobra evidenciaria tal inversatildeo as
consideraccedilotildees sobre as redobras na mateacuteria vecircm antes das sobre as dobras
nas almas e seu capiacutetulo 5 estaacute repleto de consideraccedilotildees que tomam o
corpo ou o mundo antes daquilo que faz o fundamento ldquoda relaccedilatildeo de
situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo
35 ldquoEt les composeacutes symbolisent en cela avec le simplesrdquo (LEIBNIZ 2004 p 235) Mais natildeo eacute o exato contraacuterio que defendiam os estoicos nesse sentido invertendo o valor da ldquoexpressatildeordquo do expresso do lekton Seria estranho que algueacutem que defendeu muitas vezes tanto o fato que os estoicos foram os criadores da filosofia da linguagem quanto que sua diferenciaccedilatildeo e dependecircncia entre lekton e corpo eram baacutesicas para a loacutegica do sentido e do acontecimento defendesse o contraacuterio mas aqui mantemos a suposiccedilatildeo de uma mudanccedila de ponto de vista que parece ter ocorrido por volta da elaboraccedilatildeo de Mil platocircs e que ficaria mais evidente nos capiacutetulos de tiacutetulo ldquoPostulados da linguiacutesticardquo e ldquoSobre alguns regimes de signosrdquo ou seja a partir de 1980 o conceito de palavra de ordem (le mot drsquoordre) o registro do lekton passa a assumir o mesmo valor causal que os corpos mais forccedila ainda para o plano da expressatildeo Marca inconteste da ldquogenialidaderdquo do francecircs teriacuteamos permanecido ainda mais leibnizianos ndash um Leibniz deleuzeano natildeo nos esqueccedilamos ndash a partir da deacutecada de 80 portanto talvez o principal motivo que levou Deleuze a voltar aos textos de Leibniz e intensificar os pontos principais da 16ordf seacuterie de a Loacutegica do sentido
William de Siqueira Piauiacute | 235
Do nosso ponto de vista tal inversatildeo que consideramos ser o
fundamento real da exigecircncia daquele deslocamento eacute o problema mais
grave da interpretaccedilatildeo que Deleuze faz da filosofia leibniziana ela teria
desconsiderado a resposta que Leibniz teria dado a um outro problema
levantado por Newton em De gravitatione et aequipondio fluidorum
mas que se associava agrave caracterizaccedilatildeo cartesiana do movimento e que fica
explicito no uso da expressatildeo affectiones locorum ou the properties of
places por parte do inglecircs Problema que para Leibniz tem de ser
resolvido para que possamos falar em mudanccedila ou movimento real Isso
nos permite formular um questionamento para a interpretaccedilatildeo geral
empreendida por Deleuze seja em A dobra seja em Loacutegica do sentido
Como diferenciar a noccedilatildeo newtoniana de individuaccedilatildeo (solo numero) da
leibniziana se nos mantemos apenas nas affectiones locorum36 Vale
lembrar que a filosofia natural de Newton e sua matemaacutetica tambeacutem
permitem singularidades adjacentes Com as agravantes Como o
equacionou Leibniz natildeo eacute justamente por seu fechamento que o conceito
de mocircnada resolve o problema cartesiano do movimento Dito de outro
modo Como o conceito de mocircnada baseado em singularidades adjacentes
tatildeo semelhante ao de vizinhanccedila imediata resolveria o problema da causa
proacutexima do movimento Assim cremos que a leitura de Deleuze aproxima
perigosamente Leibniz de Newton sem ter respondido suficientemente agrave
pergunta geral Por que a preferecircncia pelo alematildeo se em termos de
descoberta e grande parte do tipo de uso que ambos fizeram do caacutelculo
diferencial e integral de uma geometria de posiccedilatildeo e mesmo das regras de
convergecircncia e divergecircncia nada impediria de ver tambeacutem na filosofia do
inglecircs uma topologia de superfiacutecies37 E terminariacuteamos com as
provocaccedilotildees oacutebvias Permanecemos leibnizianos ou newtonianos
36 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect47 da uacuteltima carta a Clarkerdquo ou ldquoLeibniz y el papel de la imaginacioacuten en la geacutenesis de la nocioacuten de espacio newtonianordquo
37 Referimo-nos ao que eacute defendido entre outros no excelente livro De Newton y los newtonianos entre Descartes e Berkeley de Laura Benitez Grobet e Joseacute A Robles Garciacutea cf Bibliografia De qualquer modo o que estamos tentando dizer aqui agravaria ainda mais tais questionamentos desde que a hipoacutetese defendida por Benitez Grobet e Robles Garciacutea eacute a de que Newton precisava de um outro modelo de predicaccedilatildeo que natildeo a aristoteacutelica e por que natildeo da recusa do princiacutepio in-esse para levar a cabo sua filosofia natural e nesse sentido vale lembrar as muitas vezes em que Leibniz pergunta a Clarke que papel em termos de predicaccedilatildeo aristoteacutelica em termos de sujeito predicado
236 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Conclusatildeo
Do nosso ponto de vista em primeiro lugar a tese ceacutelebre de Leibniz
segundo a qual cada mocircnada individual exprime o mundo pode e deve ser
compreendida a partir do princiacutepio de inerecircncia do predicado no sujeito
obviamente um grande desafio para o inteacuterprete em segundo lugar natildeo
eacute verdade que para Leibniz Deus criou o mundo antes das ou de
preferecircncia agraves mocircnadas ao menos natildeo no sentido que haveria de fato
inclusatildeo posterior de algum acidente (enquanto predicado um adjetivo)
natildeo jaacute preacute-vista nas noccedilotildees completas de indiviacuteduos ou pessoas ou mesmo
na seacuterie possiacutevel de um mundo em terceiro lugar se aquela precedecircncia
ou preferecircncia for pensada em termos de compossibilidade e
incompossibilidade ndash que oferecesse alguma alternativa para o princiacutepio
de contradiccedilatildeo ndash eacute preciso lembrar que o entendimento divino eacute fora da
ordem do tempo e mais uma vez natildeo podemos falar em precedecircncia ou
preferecircncia de partes de suas operaccedilotildees e por fim natildeo vemos como as
regras de convergecircncia e divergecircncia nos ajudariam ou seria necessaacuterio
recorrer a elas para corroborar a interpretaccedilatildeo de Deleuze se aquela
precedecircncia ou preferecircncia natildeo se viu confirmada Assim natildeo vemos
motivos para aceitar a necessidade do deslocamento que Deleuze pretende
impor desde a Loacutegica do sentido Vale lembrar que nossa oposiccedilatildeo nada
tem a ver com o uso do caacutelculo diferencial e integral e as regras de
convergecircncia e divergecircncia para pensar o conceito de mocircnada ldquofechadardquo
e mesmo de uma topologia de superfiacutecie jaacute mostramos em outro lugar38 o
como a matemaacutetica criada por Leibniz pode ajudar a pensar um conceito
de mocircnada humana individual fechada e de seacuterie universo fechado em
e acidente desempenharia o tempo e espaccedilo absolutos de Newton Sendo que o sect47 da quinta resposta que deu a Clarke deve ser considerado justamente natildeo soacute como uma tentativa de se manter fiel aacute metafiacutesica que fundamenta a loacutegica aristoteacutelica e o inicio da Monadologia mas tambeacutem sem perder de vista seja os princiacutepios de sua topologia (Caracteriacutestica Geometrica ou Analysis situs) seja de sua doutrina do espaccedilo e tempo relacionais
38 Cf nossos artigos ldquoMatemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e Integral e o processo psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeordquo e ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo
William de Siqueira Piauiacute | 237
pleno acordo com sua metafiacutesica e sua dinacircmica em uma palavra em
pleno acordo com a histoacuteria contada ao final da Teodiceia
Por fim se na ldquoobra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduordquo
ldquoque descobre o sentido e jaacute pressente o natildeo-senso remontando agrave
superfiacutecie a partir de um mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que
se envolve nela e lhe impotildee a dura lei das misturasrdquo ela nada tem a ver
com o conceito leibniziano de mocircnada humana individual ou substacircncia
particular e se novamente na ldquoobra de Carrollrdquo ldquoSilvia e Bruno seriam
antes como as pessoas lsquovagasrsquo que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila
ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo comum a vaacuterios mundos mundo dos
homens e mundo das fadasrdquo a proacutepria referecircncia agrave noccedilatildeo lsquopessoa vagarsquo
deveria ser prova suficiente que natildeo podem ser melhor compreendidas a
partir das noccedilotildees leibnizianas de mocircnada humana individual ou
substacircncia particular Mas natildeo eacute justamente porque queremos estar com
Carroll ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de sujeito ou contestaccedilatildeo da
identidade pessoal ndash e Mallarmeacute ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de
livro ou texto ndash que natildeo somos leibnizianos e nem mesmo newtonianos
E aqui deixamos algo mais que a simples discordacircncia entre os ldquofiloacutesofosrdquo
Badiou e Deleuze
Referecircncias39
BADIOU Alain A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX Trad Antonio Teixeira e
Gilson Iannini Belo Horizonte MG Autecircntica 2015
BENITEZ GROBET Laura e GARCIacuteA Joseacute A Robles De Newton y loacutes newtonianos entre
Descartes e Berkeley Argentina Universidad Nacional de Quilmes 2006
BORGES Jorge Luis O jardim de caminhos que se bifurcam In _____ Ficccedilotildees Trad
Carlos Nejar Satildeo Paulo Ed Globo 1989
39 Tendo em vista que se tratava inicialmente de um minicurso cremos ser justificativa suficiente para oferecermos uma Bibliografia ao inveacutes de apenas referecircncias bibliograacuteficas
238 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ El jardiacuten de senderos que se bifurcan In _____ Ficiones Buenos Aires Emeceacute
Editores 2005
CARROLL Lewis (Charles Lutwidge Dodgson) As aventuras de Alice no paiacutes das
maravilhas e Atraveacutes do espelho e o que Alice encontrou laacute Trad Sebastiatildeo
Uchoa Leite Satildeo Paulo Ed Summus 1980
_____ Algumas aventuras de Siacutelvia e Bruno Trad Seacutergio Medeiros Satildeo Paulo
Iluminuras 1997
_____ Complete Works Nova York Vintage Books 1976
_____ Diaries Londres Cassell 1953
_____ The selected letters Londres Macmillan 1989
DELEUZE Gilles A dobra Leibniz e o barroco Trad Luiz B L Orlandi Campinas SP
Papirus 1991
_____ Loacutegica do sentido Trad Luiz Roberto Salinas Fortes Satildeo Paulo Ed Perspectiva
2003
_____ Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro
Graal 2006
_____ Exasperacioacuten de la filosofiacutea el Leibniz de Deleuze Trad equipe editorial Cactus
Buenos Aires Ed Cactus 2006
_____ Conversaccedilotildees Trad Peter Paacutel Pelbart Rio de Janeiro Ed 34 2013
DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia Trad Luiz
B L Orlandi Rio de Janeiro Ed 34 2011
DERRIDA Jacques ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo In _____ A escritura e a diferenccedila Trad
Maria Beatriz Marques Nizza da Silva et al Satildeo Paulo Ed Perspectiva 2014
HUISMAN Denis Dicionaacuterio de filoacutesofos Trad Claudia Berlinder et al Satildeo Paulo Martins
Fontes 2001
William de Siqueira Piauiacute | 239
HUSSERL Edmund Meditaccedilotildees cartesiana introduccedilatildeo agrave fenomenologia Trad Frank de
Oliveira Satildeo Paulo Ed Madras 2001
LEIBNIZ G W Opuscule et fragments ineacutedits de Leibniz Organizado por Louis
Couturat Paris Alcan 1903
_____ Correspondance Leibniz-Clarke (Org Andreacute Robinet) Paris Presses
Universitaires de France (PUF) 1957
_____ The Leibniz-Clarke correspondence with extracts from Newtonrsquos ldquoPrincipiardquo and
ldquoOpticsrdquo Org H G Alexander Manchester Manchester University Press 1956
_____ Die philosophischen Schriften (GP IV Letter to Molanus (p 297-303) On God
and Soul (1679) e GP V Nouveaux essais Hildesheim Olms 1960
_____ Mathematische Schriften (GM) Hildesheim Olms 1962
_____ Anaacutelisis infinitesimal Trad Teresa Martin Santos Madri Tecnos 1987
_____ Sobre a anaacutelise da situaccedilatildeo Trad Homero Santiago Cadernos de filosofiacutea alematilde
n 5 p 64-75 1999
_____ La caracteacuteristica geacuteomeacutetrique Trad Marc Parmentier Paris J Vrin 1995
_____ Discurso de metafiacutesica Monadologia Correspondecircncia com Clarke Trad
Marilena de Souza Chauiacute e Carlos Lopes de Mattos Satildeo Paulo Ed Abril Cultural
1983
_____ Discurso de metafiacutesica e outros textos Trad Marilena Chauiacute e Alexandre da Cruz
Bonilha Satildeo Paulo Ed Martins Fontes 2004
_____ Discours de metaphysique suivi de Monadologia et autres textes Estabelecido
apresentado e com notas de Michel Fichant Paris Gallimard 2004
_____ La monadologiacutea Trad Virginia Naughton Buenos Aires Quadrata 2005
_____ Novos ensaios Trad Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Abril Cultural 1984
_____ Nouveaux essais Paris Flamarion 1990
240 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ Correspondencia con Arnauld Trad Vicente P Quintero Buenos Aires Ed
Losada 2004
_____ Correspondance de Leibniz et drsquoArnauld In _____ Œuvres philosophiques de
Leibniz aos cuidados de Paul Janet) Paris Alcan 1900
_____ Observaccedilotildees quanto ao livro sobre a origem do mal publicado haacute pouco na
Inglaterra (sectsect 18-22) [Leibniz e a metafiacutesica das diferenccedilas qualitativas dos
possiacuteveis] Theoria revista eletrocircnica de filosofia v 4 n 11 p 151-60 2012
_____ Ensaios de Teodiceia Trad William de Siqueira Piauiacute e Juliana Cecci Silva Satildeo
Paulo Ed Estaccedilatildeo Liberdade 2013
_____ Essais de theacuteodiceacutee Paris Flamarion 1969
_____ Escritos Filosoacuteficos Org Ezequiel Olaso Buenos Aires Ed Charcas 1982
PIAUIacute William de Siqueira Leibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da
criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartes Prometeus ano 10 n 22 p 49-64 2017
_____ Derrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeo
Prometeus ano 10 n 24 p 178-93 2017
_____ Leibniz y el papel de la imaginacioacuten em la geacutenesis de la nocioacuten de espacio
newtoniano Imaginacioacuten y conocimiento de Descartes a Freud NASR Zuraya
Monroy e RODRIacuteGUEZ-SALAZAR Luis Mauriacutecio Meacutexico Ed Corinter e Ed Gedisa
p 33-49 2016
_____ Leibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologia Prometeus ano 9 n 19 p 100-26
2016
_____ Querela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo aacute filosofia
moderna Kalagatos v 11 n 21 p 523-49 2014
_____ Leibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect 47 da uacuteltima carta a Clarke
Prometeus ano 6 n 11 p 9-34 2013
_____ Noccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibniz Cadernos de
histoacuteria e filosofia da ciecircncia v 21 n 1 p 257-87 2011
William de Siqueira Piauiacute | 241
_____ Matemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e integral e o processo
psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeo Theoria ndash Revista eletrocircnica de Filosofia Pouso
Alegre v 5 p 1-16 2010
_____ Leibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeo Aacutegora filosoacutefica
Pernambuco Universidade Catoacutelica ano 6 n 1 p 117-36 2006
PIAUIacute William de Siqueira e CECCI SILVA Juliana Leibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agraves
teorias tradicionais da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegada O
Mutum revista de literatura e pensamento (Dossiecirc Literatura escrever o pensar)
Org por Piero Eyben Brasiacutelia UnB n 1 v 1 p 183-203 2013
SARTRE Jean-Paul A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica
Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Cadernos
espinosanos n 22 2010 p 183-228
_____ A transcendecircncia do ego esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica Trad Joatildeo
Batista Kreuch Petroacutepolis RJ Ed Vozes 2013
Sobre os Organizadores
Natural de Brasiacutelia Marcus Joseacute Alves de
Souza eacute Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal da Paraiacuteba
Professor do Instituto de Ciecircncias
Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes e do
Mestrado em Filosofia da Universidade
Federal de Alagoas Liacuteder do Grupo de
Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo
Potiguar de Mossoroacute Maxwell Morais de
Lima Filho eacute Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal do Cearaacute e
Professor do Instituto de Ciecircncias
Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes da
Universidade Federal de Alagoas desde
2011
A Editora Fi eacute especializada na editoraccedilatildeo publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de pesquisa
acadecircmicacientiacutefica das humanidades sob acesso aberto produzida em parceria das mais diversas instituiccedilotildees de ensino superior no Brasil Conheccedila
nosso cataacutelogo e siga as paacuteginas oficiais nas principais redes sociais para acompanhar novos lanccedilamentos e eventos
wwweditorafiorg
contatoeditorafiorg
Para Bia Jorginho
Tissi Camu e o Ecossistecircmico Rudaacute
Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 11
Marcus Joseacute Alves de Souza
1 14
Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica
Manfredo Arauacutejo de Oliveira
2 40
Encheiriacutedion Capiacutetulo I Traduccedilotildees e Comentaacuterios
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio
3 53
A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva da Filosofia Analiacutetica da Mente
Taacuterik de Athayde Prata
4 69
A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico A Criacutetica de John Searle agraves Principais
Correntes da Filosofia da Mente
Maxwell Morais de Lima Filho
5 98
Da Natureza Humana As Perspectivas Epistemoloacutegicas de Piaget Chomsky e
Foucault
Argus Romero Abreu de Morais
6 116
Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche A Leitura de Guumlnter Abel
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa
7 133
Habermas e o Problema do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira
8 146
Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes para se Pensar a Natureza de Sistemas
Formais Uma Abordagem Wittgensteiniana
Marcos Silva
9 158
Revisitando o Argumento da Linguagem Privada
Marcus Joseacute Alves de Souza
10 172
O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico
Ricardo S Rabenschlag
11 184
A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo
Sagid Salles
12 201
O Leibniz de Deleuze Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido
William de Siqueira Piauiacute
Sobre os Organizadores 242
Apresentaccedilatildeo
Marcus Joseacute Alves de Souza
O empreendimento filosoacutefico eacute uma atividade coletiva especialmente
por seu caraacuteter corretivo estabelecido em debate puacuteblico Eacute claro que haacute
momentos de reflexatildeo solitaacuteria mas mesmo estes satildeo momentos de
organizaccedilatildeo discursiva que visam agrave correccedilatildeo em debate e o debate com
os autores eacute fundamental para o desenvolvimento do empreendimento
filosoacutefico Ao apresentar este novo volume da seacuterie Escritos de Filosofia
Linguagem e Cogniccedilatildeo gostariacuteamos de enfatizar estes dois aspectos
sugeridos no iniacutecio o aspecto coletivo e o corretivo deste trabalho Na
dimensatildeo coletiva este eacute mais um fruto da atividade do Grupo de Pesquisa
Linguagem e Cogniccedilatildeo da Universidade Federal de Alagoas Ele resulta da
continuidade de um trabalho que desde 2014 reuacutene profissionais de
Filosofia de variadas instituiccedilotildees para apresentarem e debaterem suas
pesquisas Num Estado com pouca tradiccedilatildeo em realizaccedilatildeo deste tipo de
atividade a reuniatildeo coletiva para divulgaccedilatildeo de pesquisas eacute uma conquista
que deve ser ressaltada pois fortaleceu o Grupo de Pesquisa e originou
uma linha do receacutem-criado Mestrado Acadecircmico de Filosofia da UFAL
(2018) Mas filoacutesofos se reuacutenem especialmente para apresentar ideias e
debatecirc-las numa perspectiva de autocorreccedilatildeo entre pares Isso vem se
dando nas atividades do Grupo inclusive nos Encontros seis ateacute agora
mas sobretudo atraveacutes desta seacuterie de publicaccedilotildees Aqui o aspecto
corretivo ganha relevo A perspectiva eacute incrementar ainda mais uma
tradiccedilatildeo de publicaccedilotildees que mantenha o debate de ideias vivo
contribuindo para o avanccedilo das discussotildees filosoacuteficas daqueles que
tomarem contato com cada publicaccedilatildeo da seacuterie Escritos de Filosofia
Linguagem e Cogniccedilatildeo Possibilitando assim a acareaccedilatildeo criacutetica dos vaacuterios
12 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
escritos e animando o avanccedilo do conhecimento filosoacutefico num acircmbito da
Filosofia que reuacutene temas relacionados agraves aacutereas de Loacutegica da Filosofia da
Linguagem da Filosofia da Mente e da Epistemologia
Os textos aqui apresentados satildeo resultado do IV Encontro Linguagem
e Cogniccedilatildeo realizado em novembro de 2017 que reuniu mais uma vez
profissionais de vaacuterias instituiccedilotildees (UFAL UFAM UFPI UFS UFC UFPE
UFSJ PUC-Rio UnB dentre outras) no intuito de avanccedilarmos a pesquisa
filosoacutefica nos contextos alagoano e nordestino Como nas outras ediccedilotildees
as temaacuteticas de investigaccedilatildeo estatildeo relacionadas agrave loacutegica agrave linguagem agrave
consciecircncia e ao conhecimento
Eacute importante afirmarmos que para aleacutem de uma possiacutevel
organicidade temaacutetica dos textos este livro eacute resultado tambeacutem de
confluecircncias de amizades construiacutedas pelo interesse filosoacutefico Nisso
nossos Encontros tecircm se mostrado frutiacuteferos ao mostrar a forccedila da
tradiccedilatildeo de associar a ldquoamizade ao saberrdquo
Esta eacute a terceira coletacircnea da seacuterie Escritos de Filosofia Linguagem e
Cogniccedilatildeo mostrando continuidade e esforccedilo em darmos publicidade ao
trabalho de pesquisa realizado Reforccedilando e aprofundando laccedilos teoacutericos
de investigaccedilatildeo este volume eacute composto de 12 capiacutetulos escritos por 14
pesquisadores de 8 instituiccedilotildees (UFAM UFPI UFC UECE UFPE UFAL
UFS e UFSJ) O leitor teraacute oportunidade de refletir e avaliar criticamente
sobre uma diversidade de temas filosoacuteficos Neste ponto eacute interessante
destacar que os temas abarcados vatildeo aleacutem daquilo que ficou conhecido
como ldquoFilosofia Analiacuteticardquo haja vista a salutar heterogeneidade de autores
e abordagens jaacute presente nos outros volumes
O leitor poderaacute pensar a trajetoacuteria histoacuterico-filosoacutefica da conhecida
ldquoreviravolta linguiacutesticardquo e avaliar se efetivamente saiacutemos de um marco
reflexivo da subjetividade para o da linguagem em Filosofia Ler um
trabalho cuidadoso de traduccedilatildeo comentada de um capiacutetulo do Encheiriacutedion
de Epicteto Tomar contato com uma reflexatildeo sobre o conceito de
consciecircncia em Sartre numa perspectiva analiacutetica Compreender a criacutetica
de John Searle agraves principais correntes da Filosofia da Mente Revisitar o
Marcus Joseacute | 13
tema da natureza humana a partir de trecircs autores natildeo-analiacuteticos Piaget
Foucault e Chomsky Rediscutir os temas da consciecircncia da linguagem e
da natureza em Nietzsche a partir da avaliaccedilatildeo de Guumlnter Abel
Aprofundar no conhecimento da temaacutetica da objetividade dentro do
pensamento de Habermas Refletir sobre o conceito de jogo em sistemas
loacutegicos formais Retomar a discussatildeo do argumento da linguagem privada
de Wittgenstein Avaliar aspectos filosoacuteficos do pensamento dos ldquonovos
ateusrdquo Aproximar-se da problemaacutetica da vagueza numa avaliaccedilatildeo criacutetica
da teoria trivalente da vagueza e as dificuldades loacutegico-filosoacuteficas do
estabelecimento da precisatildeo conceitual Analisar de modo criacutetico a
interpretaccedilatildeo que Deleuze faz de Leibniz Enfim o leitor teraacute oportunidade
de pensar temas autores e abordagens variadas neste volume Esperamos
que seja de proveito para conhecimento inicial ou mesmo de
aprofundamento para o leitor experiente em Filosofia e que todos tenham
uma leitura filosoficamente estimulante
Agradecemos aos participantes que gentilmente forneceram os textos
para a composiccedilatildeo deste trabalho coletivo Agradecemos agrave agecircncia de
fomento agrave pesquisa de Alagoas FAPEAL (Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa
do Estado de Alagoas) pelo apoio financeiro ao evento que deu origem a
este volume Ao apoio do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e
Artes (ICHCA) e do Curso de Filosofia da UFAL A todos que contribuem
com as atividades o Grupo de Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo da UFAL Agrave
Editora Fi pela parceria nesta publicaccedilatildeo
Maceioacute setembro de 2019
1
Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta
de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica
Manfredo Arauacutejo de Oliveira 1
A filosofia se encontra hoje diante de um desafio que tem a ver com
a proacutepria forma de sua configuraccedilatildeo enquanto teoria ou seja o desafio da
articulaccedilatildeo de um novo paradigma teoacuterico O ponto de partida desta
situaccedilatildeo foi certamente a reviravolta linguiacutestica ou seja a substituiccedilatildeo no
pensamento de Frege da anaacutelise de sensaccedilotildees representaccedilotildees e juiacutezos pela
anaacutelise das expressotildees linguiacutesticas Quine (1981 p 23) ao fazer um
balanccedilo dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do seacuteculo
XX afirmou que o evento decisivo e irreversiacutevel da filosofia depois de
Hume foi a reviravolta linguiacutestica Que significa isto para a filosofia Hoje
haacute pensadores que defendem que ela apenas significou uma radicalizaccedilatildeo
da reviravolta transcendental da filosofia moderna Faremos uma breve
apresentaccedilatildeo da proposta da fenomenologia transcendental no
pensamento de Husserl que levantou a pretensatildeo de articular o paradigma
transcendental da forma mais rigorosa possiacutevel para poder depois mostrar
que a reviravolta linguiacutestica natildeo necessariamente se deve entender como
uma radicalizaccedilatildeo deste paradigma mas articula antes um quadro teoacuterico
propriamente poacutes-transcendental
1 Graduado pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) Doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilian de Munique (LMU) e Professor Emeacuterito da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 15
A Filosofia Transcendental Preacute-Linguiacutestica O Mundo se nos Daacute em
Intuiccedilotildees Puras A Fenomenologia Husserliana
Para Husserl a filosofia exige uma mudanccedila radical de postura o que
revela o caraacuteter ingecircnuo da atitude da postura natural Essa transformaccedilatildeo
radical de postura nos vai mostrar que todos os entes soacute nos podem ser
dados na esfera da subjetividade transcendental atraveacutes de muacuteltiplos
modos de manifestaccedilatildeo que satildeo em princiacutepio variaacuteveis e ilimitados Neste
sentido fenomenologia natildeo eacute simples descriccedilatildeo do que aparece sem que
possa haver uma decisatildeo sobre o que o ente eacute em sua essecircncia e seu ser
mas ela eacute precisamente o esclarecimento dos entes em sua essecircncia em
seu sentido e em seu ser Nesta perspectiva se deve dizer que a questatildeo
central da fenomenologia natildeo eacute o ser mas o sentido embora natildeo seja claro
como Husserl interpreta o sentido De qualquer modo ele sempre tematiza
o sentido e natildeo o ser mesmo (PUNTEL 2011 p 305)
Isto se faz atraveacutes do retorno agraves vivecircncias intencionais nas quais os
sentidos vecircm agrave doaccedilatildeo Dessa forma o tema especiacutefico da fenomenologia
eacute a correlatividade entre as ldquoformas de doaccedilatildeordquo dos objetos e os momentos
intencionais das vivecircncias (dos atos intencionais) em suas inuacutemeras
modificaccedilotildees (TUGENDHAT 1967 p 172)2 Numa palavra fenomenologia
eacute anaacutelise da correlaccedilatildeo entre objeto intencional e ato intencional ou seja
trata-se de determinar a partir da intenccedilatildeo o sentido do ldquointendidordquo
Portanto o que temos eacute sempre um objeto num modo determinado de nos
dar-se natildeo haacute objeto sem a mediaccedilatildeo de seu modo de dar-se Fenocircmeno
eacute entatildeo aqui um correlato intencional da consciecircncia (FINK 1976 p 83)
e a subjetividade eacute o princiacutepio da originariedade (FINK 1976 p 91)
Ser eacute entatildeo ser para a consciecircncia esta eacute a tese baacutesica da filosofia
transcendental e natildeo se pode entender o projeto husserliano de filosofia
sem vinculaacute-lo agrave tradiccedilatildeo do pensamento transcendental de Kant e
sobretudo de Fichte3 no giro reflexivo da filosofia na expressatildeo de
2 A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl cf PORTA (2003 p 85-106)
3 Essa eacute a tese baacutesica de Siemek Cf SIEMEK (2001 p 190 e ss) Cf OLIVEIRA (1973 p 139-220)
16 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Tugendhat (1976 p 16 e ss) aceita e radicalizada por Husserl Isto significa
dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos enquanto
idecircntico atraveacutes das diferentes formas de consciecircncia se formam atraveacutes
de nossas accedilotildees sinteacuteticas no como de sua doaccedilatildeo isto eacute nos diferentes
tipos de objetualidade (HABERMAS 1984 p 37) Para a postura
fenomenoloacutegica todos os entes abstratos ou concretos reais ou ideais tecircm
seus modos de doaccedilatildeo (HUSSERL 1963 p 169) Numa palavra tudo se
revela na consciecircncia como objeto constituiacutedo por atos constituintes e
portanto a subjetividade emerge como a fonte uacuteltima de toda doaccedilatildeo de
sentido
Husserl rejeita este meacutetodo regressivo natildeo no sentido da pergunta
pelas condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento objetivo mas no sentido
de que esta pergunta no pensamento de Kant natildeo realiza um retorno agrave
intuiccedilatildeo e neste sentido eacute em uacuteltima anaacutelise uma construccedilatildeo atraveacutes de
deduccedilatildeo Com isto todo o procedimento se radica em suposiccedilotildees natildeo
intuiacutedas o que tem como consequecircncia que desta forma natildeo eacute possiacutevel
atingir a autodoaccedilatildeo da subjetividade em seu ser em si ela eacute apenas
ldquoconstruiacutedardquo num pensamento vazio
O grande ausente no pensamento de Kant eacute precisamente a intuiccedilatildeo
que Husserl denomina o ldquoPrinciacutepio dos Princiacutepiosrdquo entendida como a
fonte originaacuteria a evidecircncia fundante de todo conhecimento (HUSSERL
1950 p 25 e STROumlKER 1987 p 1-34) Desta forma a tese central da
fenomenologia eacute que soacute o retorno aos atos intencionais pode produzir
aquela autodoaccedilatildeo em evidecircncia intuitiva que constitui o cerne da
fenomenologia Assim as coisas mesmas natildeo satildeo objetos no sentido de
uma ldquoposiccedilatildeo transcendente de serrdquo mas o que eacute intuiacutedo na satisfaccedilatildeo de
atos intencionais (GADAMER 1987 p 118)
Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a respeito
da forma suprema do dar-se da realidade a noacutes pode iniciar-se com a
criacutetica articulada por E Tugendhat (1976 p 85-87) conhecido eacute para
Husserl precisamente o que nos eacute imediatamente dado Para Tugendhat
justamente nisto se mostra o caraacuteter unilateral da concepccedilatildeo husserliana
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 17
de conhecimento a funccedilatildeo do conceito para o que eacute sensivelmente preacute-
dado perde importacircncia frente ao papel da intuiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que eacute
significado de tal modo que ascensatildeo no conhecimento significa
exclusivamente maior proximidade da coisa e natildeo igualmente aumento
em diferenciaccedilatildeo e distinccedilatildeo
Este preacute-conceito da fenomenologia ou seja de que a simples
presenccedila garante por si mesma o cumprimento uacuteltimo de uma intenccedilatildeo
significante tem para Tugendhat enormes consequecircncias na concepccedilatildeo
husserliana da filosofia Em primeiro lugar isto eacute decisivo para o modelo
de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepccedilatildeo da
consciecircncia pura como o campo absoluto precisamente porque o campo
do que se daacute adequadamente Em segundo lugar para a consequecircncia
metoacutedica de que a anaacutelise fenomenoloacutegica se restringe ao que eacute
simplesmente dado intuitivamente na intuiccedilatildeo originaacuteria (HUSSERL
1950 p 52) A natildeo consideraccedilatildeo da questatildeo da determinaccedilatildeo tem como
resultado que o determinado eacute aceito ingenuamente e natildeo eacute considerado
expressamente mas por outro lado ele eacute o ponto de chegada de um
processo de determinaccedilatildeo que se faz atraveacutes de sua relaccedilatildeo agrave forma de seu
dar-se Isto conduz sempre a uma absolutizaccedilatildeo da experiecircncia em
questatildeo
De fato aqui se situa a questatildeo fundamental de confronto com o
pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto
fenomenologia transcendental mesmo na sua formulaccedilatildeo uacuteltima de
filosofia do mundo vivido como o originariamente dado Trata-se para ele
de atingir a dimensatildeo mais originaacuteria do pensamento enquanto tal e esta
eacute para ele a intuiccedilatildeo que se daacute originariamente e que constitui a fonte de
justificaccedilatildeo de todo conhecimento Isso leva segundo E Fink (1976 p 85)
a uma postura ldquointencionalistardquo na concepccedilatildeo do ser e da verdade
enquanto posiccedilatildeo especiacutefica da fenomenologia enquanto filosofia Na
realidade aqui natildeo se articula propriamente uma justificaccedilatildeo mas se
defende a tese de que se trata em uacuteltima instacircncia de um ver de um
mostrar-se a dimensatildeo originaacuteria se mostra daacute-se
18 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Como diz Habermas (1984 p 47-59) em Husserl a intuiccedilatildeo sensiacutevel
serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuiccedilatildeo possiacutevel pois
aqui aparece em niacutevel elementar o que constitui a intuiccedilatildeo a autodoaccedilatildeo
de um objeto Sua suposiccedilatildeo fundamental eacute que temos na experiecircncia
sensiacutevel acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente Para E
Fink (1976 p 84) em Husserl a percepccedilatildeo intuitiva constitui de fato o
modo originaacuterio de autodoaccedilatildeo Sua tese eacute que em Husserl isto natildeo
significa um intuicionismo inimigo do pensamento mas defesa do
ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo e do caraacuteter secundaacuterio do pensamento Habermas
aponta para a dificuldade de defesa desta tese do ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo a
partir inclusive de consideraccedilotildees do proacuteprio Husserl (1964) em sua obra
ldquoErfahrung und Urteilrdquo A razatildeo fundamental eacute que em cada intuiccedilatildeo
originaacuteria jaacute estatildeo presentes determinaccedilotildees categoriais o que para ele
significa que o modelo de uma filosofia da consciecircncia tem que ser
substituiacutedo pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na
linguagem
Que significa isto para a filosofia Em primeiro lugar que depois da
reviravolta linguiacutestica natildeo podemos mais analisar nossa capacidade de
conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir uma
vez que noacutes enquanto sujeitos cognoscentes jaacute sempre nos encontramos
no horizonte de nossas praacuteticas no mundo vivido Linguagem e realidade
estatildeo mutuamente imbricadas de tal modo que toda experiecircncia humana
eacute linguisticamente impregnada Com isto supera-se definitivamente o
ldquomito do dadordquo uma vez que mesmo a experiecircncia sensiacutevel jaacute eacute mediada
linguisticamente de tal modo que ela perde a autoridade epistecircmica
daquela instacircncia que nos daria imediatamente a realidade pura Para
Habermas (1984 p 20) foi meacuterito de W Sellars (2003 p 23 ss) em sua
criacutetica ao empirismo do Ciacuterculo de Viena de ter explicitado esta
consequecircncia da reviravolta linguiacutestica
Isto tem como consequecircncia a eliminaccedilatildeo do primado da
intencionalidade e de sua substituiccedilatildeo pelo primado de uma compreensatildeo
linguiacutestica Neste caso a urgecircncia de uma fundamentaccedilatildeo que eacute central na
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 19
filosofia natildeo pode satisfazer-se atraveacutes de uma consideraccedilatildeo
fenomenoloacutegica da histoacuteria da originaccedilatildeo do mundo vivido mas atraveacutes
da acareaccedilatildeo das pretensotildees de validade que levantamos em nossas
praacuteticas simboacutelicas ordinaacuterias Natildeo intuiccedilatildeo mas argumentos eacute o que pode
justificar a aceitaccedilatildeo ou natildeo das pretensotildees de validade e por conseguinte
eacute neste niacutevel que se situa uma teoria filosoacutefica
Em direccedilatildeo semelhante Apel rearticula a filosofia transcendental
claacutessica a partir do diaacutelogo com as filosofias que saiacuteram da reviravolta
linguiacutestica a filosofia analiacutetica e a filosofia hermenecircutica Para ele essa
reviravolta provocou uma transformaccedilatildeo daquilo que constitui a questatildeo
central desta tradiccedilatildeo de pensamento filosoacutefico ou seja a pergunta pelas
condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido Foi nesse contexto que
Tugendhat (1976 p 16) 4 interpretou a reviravolta linguiacutestica como
radicalizaccedilatildeo do movimento do pensamento que constitui o cerne da
filosofia transcendental que ele denomina de ldquoreviravolta reflexivardquo cujo
cerne consiste em dizer que a filosofia natildeo tem como tarefa o
conhecimento direto dos objetos do mundo mas sua especificidade eacute uma
reflexatildeo sobre como os objetos do mundo enquanto tais nos podem ser
dados
Eacute neste sentido estrito que K-O Apel afirma ser a filosofia da
linguagem a nova ldquofilosofia primeirardquo ou seja natildeo uma filosofia primeira
enquanto pergunta pelo ente enquanto tal ou pela estrutura da
consciecircncia transcendental enquanto fundamento do conhecimento
vaacutelido mas uma filosofia primeira agrave altura da consciecircncia criacutetica alcanccedilada
em nossos dias o que neste contexto significa a consciecircncia da
inevitabilidade da mediaccedilatildeo linguiacutestica de nosso acesso ao mundo
Neste sentido eacute que natildeo haacute como diz J McDowell (2005 p 64)
qualquer experiecircncia originaacuteria que esteja fora da esfera conceitual natildeo
haacute uma fronteira exterior para aleacutem da esfera conceitual como ele diz
comentando Wittgenstein
4 ldquoSie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstaumlnde sondern in der gleichzeitigen Reflexion darauf wie uns diese Gegenstaumlnde gegeben sein koumlnnenwie sie uns zugaumlnglich werdenrdquo
20 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
natildeo existe lacuna ontoloacutegica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer
ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de
coisa que pode ocorrer Quando algueacutem pensa de modo verdadeiro aquilo em
que ele pensa eacute aquilo que ocorre Como o mundo eacute tudo que ocorre (como ele
proacuteprio escrevera) natildeo haacute lacuna entre o pensamento enquanto tal e o
mundo
Natildeo haacute portanto nenhuma lacuna entre o pensamento enquanto tal
e o mundo mas um jogo reciacuteproco entre conceitos e intuiccedilotildees entre
receptividade e espontaneidade (McDOWELL 2005 p 40) o que poreacutem
natildeo nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um
controle racional sobre nosso pensamento Isso natildeo significa contudo que
o mundo seja completamente no espaccedilo de um sistema de conceitos
Precisamos de um trabalho longo e paciente o que implica uma obrigaccedilatildeo
permanente de reflexatildeo O importante aqui eacute afirmaccedilatildeo de que a realidade
natildeo estaacute fora da esfera conceitual e a rejeiccedilatildeo do ldquomito do dadordquo significa
precisamente que natildeo existe uma presenccedila pura originaacuteria fora da esfera
conceitual Eacute isto que McDowell chama de ldquoo caraacuteter indelimitado do
conceitualrdquo
A Posiccedilatildeo da Filosofia-Sistemaacutetico-Estrutural de L B Puntel
A questatildeo do papel exercido pela linguagem na filosofia constitui
certamente para L B Puntel uma questatildeo central partindo-se de uma nova
forma de articular a filosofia e suas questotildees que eacute resultado do que se
convencionou denominar de ldquogiro ou reviravolta linguiacutesticardquo da filosofia
(OLIVEIRA 2015) Natildeo se trata aqui de um novo objeto ou um novo campo
de investigaccedilatildeo para uma teoria filosoacutefica mas da filosofia mesma em sua
configuraccedilatildeo teoacuterica Isto significa dizer que a tematizaccedilatildeo da linguagem
natildeo constitui uma disciplina filosoacutefica nova mas sua consideraccedilatildeo faz
parte da tematizaccedilatildeo dos pressupostos irrenunciaacuteveis da articulaccedilatildeo da
filosofia enquanto uma forma de atividade teoacuterica na vida humana jaacute que
o que estaacute em jogo aqui eacute a instacircncia imprescindiacutevel de articulaccedilatildeo de uma
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 21
teoria filosoacutefica sem ela nada eacute dado a uma teoria filosoacutefica o que seria
dizer que a teoria seria inviaacutevel
A tese baacutesica da reviravolta linguiacutestica eacute de que natildeo eacute mais possiacutevel
pensar a filosofia sem a mediaccedilatildeo da linguagem e isto tem consequecircncias
fundamentais em sua articulaccedilatildeo o que se configura como tese da
centralidade da linguagem na filosofia Na proposta da filosofia
sistemaacutetico-estrutural de Puntel (OLIVEIRA 2014 p 190 ss) esta eacute
elucidada no contexto de uma ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo da revoluccedilatildeo
transcendental que caracteriza o pensamento moderno e desemboca
numa filosofia poacutes-transcendental Que significa propriamente isto
Uma filosofia sistemaacutetico-estrutural na proposta de Puntel (2008 p
97 ss) radica-se na concepccedilatildeo fundamental de que filosofia eacute uma
atividade humana que se distingue de outras atividades em razatildeo de seu
objetivo baacutesico isto eacute a elaboraccedilatildeo e a apresentaccedilatildeo de teorias Teoria eacute a
forma de discurso metoacutedico e rigorosamente ordenado que se compotildee de
sentenccedilas puramente declarativas Nesta posiccedilatildeo em oposiccedilatildeo a vaacuterias
propostas hoje existentes a filosofia eacute concebida como um
empreendimento estritamente teoacuterico Esta ldquoatividaderdquo e seu ldquoprodutordquo
tecircm a ver com o ldquomundordquo compreendido como a totalidade ilimitada dos
ldquoobjetosrdquo ou ldquocamposrdquo ou ldquoacircmbitosrdquo a totalidade do que eacute dado na
linguagem
A uniatildeo desses trecircs fatores baacutesicos nos autoriza a falar da ldquodimensatildeo
expositivardquo como sendo o especiacutefico da atividade filosoacutefica Por esta razatildeo
seu primeiro trabalho consiste precisamente no esclarecimento da
dimensatildeo da teoricidade e da explicitaccedilatildeo do conceito de uma teoria
filosoacutefica pela apresentaccedilatildeo de seus componentes irrenunciaacuteveis Numa
palavra sendo a filosofia uma atividade que se efetiva na esfera da
linguagem tendo assim a linguagem como seu pressuposto primeiro
exige-se para o cumprimento de sua tarefa a tematizaccedilatildeo de seus
pressupostos linguiacutesticos o que eacute uma decorrecircncia da reflexividade que
caracteriza a atividade teoacuterica neste niacutevel de sua efetivaccedilatildeo Isto implica
22 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
dizer que uma filosofia deve comeccedilar pela consideraccedilatildeo de sua mediaccedilatildeo
linguiacutestica
Num sentido programaacutetico Puntel elabora uma quase-definiccedilatildeo de
filosofia que serviraacute de fio condutor para toda a exposiccedilatildeo ldquoa filosofia
sistemaacutetico-estrutural eacute a teoria das estruturas universais (mais gerais) do
universo do discurso [universe of discourse] ilimitadordquo (PUNTEL 2008
p 33) ldquoUniverso do discursordquo pode ser explicitado por conceitos mais
determinados do ponto de vista do conteuacutedo como ldquomundordquo ldquouniversordquo
ldquorealidaderdquo e em uacuteltima instacircncia ldquoserrdquo A dimensatildeo do universo do
discurso eacute o dado abrangente dado eacute compreendido aqui como o
ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila portanto algo linguisticamente articulado
precisamente aquilo que eacute dado para ser compreendido ou explicado pela
filosofia seu objeto sua temaacutetica especiacutefica tudo o que eacute candidato a um
tratamento teoacuterico-filosoacutefico
A pretensatildeo proacutepria de qualquer teoria eacute assim compreender um
dado um setor do mundo ou o mundo enquanto tal no caso de uma teoria
filosoacutefica Desta forma eacute tarefa do filoacutesofo sistemaacutetico-estrutural tentar
integrar numa teoria compreensiva todos estes dados que num primeiro
momento emergem justamente como candidatos agrave compreensatildeo como
candidatos agrave teoria Daiacute porque a formaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica
consiste em trabalhar a interconexatildeo entre a dimensatildeo dos dados e a
dimensatildeo das estruturas isto eacute os componentes irrecusaacuteveis da
linguagem enquanto os pressupostos irrenunciaacuteveis para a compreensatildeo
de qualquer dado de tal forma que as estruturas afinal se revelam como
estruturas dos dados e os dados enquanto incluiacutedos na dimensatildeo das
estruturas
Uma pergunta se revela aqui como fundamental Que eacute entatildeo
compreender Que implica o compreender Esta eacute uma questatildeo que
subjaz a todo empreendimento teoacuterico uma vez que compreender um
determinado X constitui a tarefa especiacutefica de qualquer empreendimento
teoacuterico ldquosendo que ldquocompreenderrdquo neste caso eacute um conceito geral para
ldquoentenderrdquo ldquoexplicarrdquo ldquoarticularrdquo (PUNTEL 2008 p 205) O X por sua
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 23
vez designa a coisa a temaacutetica o objeto do compreender o dado em
questatildeo
Neste contexto um procedimento teoacuterico se revela muito produtivo
as diferentes posiccedilotildees filosoacuteficas (PUNTEL 2008 p 206) podem ser
consideradas a partir de como elas pensam a relaccedilatildeo entre o compreender
e a coisa a ser compreendida A pergunta baacutesica aqui eacute entatildeo se o
compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao
contraacuterio De acordo com a primeira posiccedilatildeo (PUNTEL 1990 p 266 ss)
noacutes natildeo criamos produzimos ou constituiacutemos o mundo efetivo mas antes
o encontramos o mundo efetivo nos eacute preacute-dado Isto significa dizer que
apreendemos a realidade sem conceito sem linguagem5 sem teorias o
que segundo esta posiccedilatildeo se mostra em muitas experiecircncias Assim nesta
perspectiva uma coisa eacute a apreensatildeo da realidade outra a sua
compreensatildeo de tal forma que a verdadeira tarefa de uma atividade teoacuterica
consiste em descobrir o mundo em si mesmo aprendecirc-lo descrevecirc-lo e
explicaacute-lo O mundo portanto situa-se fora do conceitual isto constitui o
cerne do que se denomina de ldquorealismordquo
A posiccedilatildeo contraposta (normalmente denominada pelos realistas de
idealista hoje se fala mais de antirrealismo) procura desvelar a
ingenuidade desta primeira posiccedilatildeo ressaltando a mediaccedilatildeo irrecusaacutevel de
um sistema conceitual em toda atividade teoacuterica assim que admitir uma
realidade inteiramente desprovida de esquemas conceituais se mostra
impossiacutevel Realidade mundo universo soacute tecircm sentido no interior de um
esquema conceitual por noacutes articulado Distinguimos os objetos
justamente atraveacutes da introduccedilatildeo deste ou daquele esquema conceitual Jaacute
sempre estamos em relaccedilatildeo com o mundo pela atividade conceitual de tal
modo que fora desta relaccedilatildeo o mundo eacute simplesmente ininteligiacutevel Desta
forma falar de independecircncia do mundo natildeo significa afirmar que ele se
coloque para aleacutem da esfera conceitual
5 Haacute filoacutesofos que distinguem entre significado linguiacutestico e conteuacutedos mentais Cf Miller (2010 p 208) ldquoFiloacutesofos chamam estados mentais tais como crenccedilas desejos vontades intenccedilotildees esperanccedilas e assim por diante de atitudes proposicionais Podemos dizer que enquanto sentenccedilas possuem significado linguiacutestico atitudes proposicionais possuem conteuacutedo mentalrdquo Cf a respeito Branquinho (2006 p 72-78)
24 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Neste contexto McDowell (2005 p 65) estabelece uma distinccedilatildeo
fundamental
Pensamento pode significar o ato de pensar mas pode significar tambeacutem o
conteuacutedo que eacute pensado ndash aquilo que algueacutem pensa6 Ora se quisermos dar o
devido reconhecimento agrave independecircncia da realidade precisamos de uma
coerccedilatildeo exterior ao pensamento e ao juiacutezo entendidos enquanto exerciacutecios de
espontaneidade Esta coerccedilatildeo natildeo precisa vir de um lugar exterior aos
conteuacutedos pensaacuteveis7
Foram aqui apresentadas duas posiccedilotildees extremas que habitualmente
natildeo se articulam desta forma uma vez que as diferentes propostas
filosoacuteficas satildeo normalmente formas mistas portadoras de elementos de
ambas as posturas o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant
fundamentalmente marcado pela dicotomia radical entre sujeito e objeto
Putnam empenhou-se em caracterizar com rigor a primeira posiccedilatildeo
Ele defende a partir de 1976 a posiccedilatildeo denominada por ele mesmo de
ldquorealismo internordquo que levanta a pretensatildeo de articular uma posiccedilatildeo
intermediaacuteria entre o que ele chama de ldquorealismo metafiacutesicordquo8 da tradiccedilatildeo
e o ldquorelativismordquo muito difundido em nossos dias A primeira o realismo
metafiacutesico (PUTNAM 1996 p 205) eacute o que Moore e Russell teriam
retomado depois de ter sido recusado pelo idealismo moderno de Kant e
Hegel Putnam (1993 p 213) atribui ao proacuteprio Kant a distinccedilatildeo entre
estes dois tipos de realismo
Outros autores falam simplesmente de ldquorealismordquo ou como eacute caso de
Puntel (PUNTEL 1990 p 269) de ldquorealismo transcendenterdquo Para ele
pode-se distinguir aqui duas variantes a) O realismo transcendente
absoluto que afirma existir um uacutenico sistema conceitual correto
considerando os demais como algo puramente subjetivo 2) O realismo
6 Na perspectiva da filosofia sistemaacutetico-estrutural pensamento proposiccedilatildeo e estado-de-coisas satildeo expressotildees sinocircnimas e constituem o ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila Cf Puntel (2008 p 214-216)
7 McDowell (2005 p 73) tambeacutem afirma o seguinte ldquoO objeto de uma experiecircncia [] eacute entendido como parte do mundo pensaacutevel tomado como um todordquo
8A respeito das raiacutezes teoacutericas do realismo metafiacutesico no pensamento de Putnam cf Engel (1994 p 363-364)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 25
transcendente moderado que admite uma pluralidade de sistemas
conceituais e os interpreta como tambeacutem as teorias como diferentes
aproximaccedilotildees ao uacutenico mundo efetivo
Em nossos dias o realismo metafiacutesico para Putnam constitui a tese
especiacutefica dos materialistas9 Sua tese baacutesica eacute que a fiacutesica constitui uma
configuraccedilatildeo de uma teoria verdadeira e acabada da estrutura do mundo
Putnam admite ter sido precisamente esta sua primeira posiccedilatildeo teoacuterica jaacute
que tambeacutem ele defendeu a tese de que as ciecircncias descrevem e explicam
uma realidade inteiramente independente de noacutes Constituiu um
argumento decisivo para ele neste momento o fato de que a transformaccedilatildeo
de significaccedilatildeo dos termos teoacutericos natildeo demanda que se deixe de falar de
uma uacutenica e mesma realidade o que seria impossiacutevel se ela natildeo se situasse
para aleacutem de nossas teorias
O realismo metafiacutesico se fundamenta entatildeo na crenccedila de que haacute
apenas uma teoria verdadeira capaz de expor exaustivamente a estrutura
do mundo como ele eacute em si mesmo independente de noacutes de nossas
concepccedilotildees a seu respeito Numa palavra o realista metafiacutesico afirma que
podemos falar de coisas e pensar nelas como elas satildeo em si mesmas em
sua constituiccedilatildeo intriacutenseca independentemente de nosso espiacuterito de nossa
linguagem de nossas teorias A razatildeo disto eacute a relaccedilatildeo de correspondecircncia
entre as expressotildees de nossa linguagem e certos tipos de entidades
independentes Nesta perspectiva o mundo eacute entendido enquanto a
totalidade invariaacutevel de objetos independentes de nosso espiacuterito de nossa
linguagem de nossas teorias (PUTNAM 1993 p 156) Hoje se defende a
tese de que estas entidades tecircm nos objetos materiais seu paradigma e de
que a correspondecircncia em tela eacute uma relaccedilatildeo causal
Numa palavra o mundo efetivo nos eacute preacute-dado enquanto plenamente
estruturado em si mesmo (ldquoa ready-made worldrdquo expressatildeo sugerida por
N Goodman) e o objetivo fundamental de toda e qualquer atividade
9 Cf Putnam (1996 p 208) ldquoMetaphysics or the enterprise of describing the ldquofurniture of the worldrdquo the ldquothings in themselvesrdquo apart from our conceptual imposition has been rejected by many analytic philosophers (though not as I remarked by Russell) and by all the leading brands of continental philosophy Today apart from relics it is virtually only materialists (or ldquophysicalistsrdquo as they like to call themselves) who continue the traditional enterpriserdquo
26 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
teoacuterica consiste em apresentar o mundo como ele eacute em si mesmo da
maneira mais fiel possiacutevel Putnam denomina esta posiccedilatildeo de
ldquoexternaliacutesticardquo jaacute que sua postura pressupotildee que noacutes podemos dispor do
ldquoponto de vista de Deusrdquo (ldquoGodacutes-Eye Viewrdquo) que teria condiccedilotildees de
alcanccedilar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo
que fosse possiacutevel comparar linguagem e mundo e decidir se haacute
correspondecircncia entre os dois
Neste caso tornar-se-ia possiacutevel distinguir claramente entre o que
realmente eacute o caso e o que se julga ser o caso (PUTNAM 1990 p 102) Esta
eacute a razatildeo pela qual uma teoria correspondencial da verdade eacute um elemento
essencial desta posiccedilatildeo uma teoria que segundo ele foi contestada por
Kant (PUTNAM 1990 p 92-93) Putnam (1990 p 85) chama a teoria da
correspondecircncia de ldquoteoria da semelhanccedila de relaccedilatildeordquo precisamente por
ela sustentar que a relaccedilatildeo vigente entre nossas representaccedilotildees e os
objetos externos eacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila
Satildeo vaacuterias as razotildees que levaram Putnam a abandonar esta posiccedilatildeo
Puntel (2008 p 480) enumera as trecircs mais importantes 1) A
compreensatildeo de que a crenccedila de que poderiacuteamos dispor de uma
perspectiva de Deus eacute uma presunccedilatildeo e uma ilusatildeo 2) O realismo
metafiacutesico produz uma consequecircncia inadmissiacutevel uma vez que o abismo
entre linguagem (teoria) e mundo eacute insuperaacutevel para seres finitos natildeo se
pode afastar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por noacutes
elaborada possa enganar-se em relaccedilatildeo ao mundo e isto eacute certamente
ininteligiacutevel 3) O contato com o uacuteltimo Wittgenstein o levou a considerar
o realismo metafiacutesico uma teoria ingecircnua quanto ao sentido que
simplesmente natildeo se sustenta mais
Na perspectiva pragmaacutetica aberta por Wittgenstein a referecircncia a um
jogo de linguagem eacute essencial o que significa dizer que o significado
linguiacutestico natildeo se esgota na esfera da semacircntica Isto conduz agrave afirmaccedilatildeo
da primazia da dimensatildeo pragmaacutetica na linguagem e consequentemente a
uma articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas de forma inteiramente diferente
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 27
Como diz Zilhatildeo (1993 p 204) para descrever a mudanccedila radical de
perspectiva
[hellip] soacute no interior dos jogos de linguagem correspondentes eacute que
determinadas expressotildees mesmo quando apresentam uma estrutura formal
declarativa adquirem o caraacutecter de ldquopensamentosrdquo e ldquoproposiccedilotildeesrdquo isto eacute a
sua simples aparecircncia formal considerada independentemente do uso que
elas tenham num contexto determinado natildeo nos autoriza a classificaacute-las de
acordo com qualquer categoria
No entanto para Puntel a posiccedilatildeo alternativa articulada por Putnam
o ldquorealismo internordquo que eacute uma versatildeo da posiccedilatildeo antirrealista apesar de
ter um aspecto profundamente correto tem tambeacutem uma dimensatildeo
inaceitaacutevel Certamente a tese de que o mundo (a natureza a realidade o
universo as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta
independecircncia do espiacuterito respectivamente da linguagem enquanto tal se
autodestroacutei em sua enunciaccedilatildeo portanto natildeo eacute inteligiacutevel e por isto
inaceitaacutevel (PUNTEL 1990 p 271-72) Antes de tudo porque
inteligibilidade implica algo conceitual
Na realidade um tal mundo natildeo passa de um constructo
contraditoacuterio por um lado o mundo eacute aceito como algo independente de
qualquer elemento conceitual por outro lado se fala de mundo relaciona-
se com o mundo o que inclui elementos conceituais em muacuteltiplas formas
linguisticamente expressos A Keller defende a tese de que a palavra em
contraposiccedilatildeo a siacutelabas sem sentido caracteriza-se por ser uma sequecircncia
de sons com significado A partir daqui ele justifica a vinculaccedilatildeo entre
ldquoconceito e linguagemrdquo afirmando que jaacute que natildeo existe significado sem
uma sequecircncia de sons pelo menos pensada natildeo existe conceito sem uma
sequecircncia de sons sem palavra nenhum conceito (KELLER 1979 p93)
Esta tese antirrealista eacute para Puntel correta mas insuficiente porque
ele natildeo mostrou em que sentido exatamente a tese de uma realidade
concebida deste modo seria nua O argumento aqui eacute que questotildees a
respeito da dicotomia entre pensamentoatos
constituintesespiacuteritolinguagem e mundonaturezarealidadecoisa
28 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
mesma natildeo podem ser elucidadas sem a referecircncia clara a uma tese
ontoloacutegica central que eacute o pressuposto de qualquer empreendimento
teoacuterico o que possa ser aquela dimensatildeo que habitualmente se denomina
mundorealidadecoisa mesma ela eacute portadora de qualquer forma de uma
estruturaccedilatildeo imanente fundamental ou seja de uma expressabilidade
plena sem a qual a teoria seria privada de sentido
Puntel (2008 p 482) emprega o termo ldquoexpressabilidaderdquo como uma
espeacutecie de foacutermula abreviada de uma seacuterie de termos como
inteligibilidade conceituabilidade compreensibilidade explicabilidade
articulabilidade etc Portanto se o ser enquanto tal eacute expressaacutevel e eacute isto
que todo empreendimento teoacuterico em princiacutepio pressupotildee sob pena de ou
ser autocontraditoacuterio ou natildeo ter sentido entatildeo a esta universalidade
corresponde uma instacircncia de sua expressatildeo igualmente universal uma
instacircncia expressante a linguagem de modo que parafraseando Gadamer
se pode dizer ldquoo ser que pode ser entendido eacute o universo do discursordquo
(PUNTEL 2008 p 526-527) o que implica uma relaccedilatildeo essencial entre o
ser e a linguagem
Em contraposiccedilatildeo ao realismo metafiacutesico a posiccedilatildeo aqui eacute que a
expressabilidade do mundo pressuposta por nossos empreendimentos
teoacutericos natildeo eacute compreensiacutevel sem uma instacircncia que a exprima ou seja a
tese de um ldquomundo nurdquo sem qualquer relaccedilatildeo a algo como linguagem
espiacuterito conceitualidade etc numa palavra a tese de um mundo
enclausurado em si mesmo eacute uma impossibilidade metafiacutesica e por esta
razatildeo ininteligiacutevel
Quando se afirma [] a ldquoindependecircncia absolutardquo do mundo (do universo
etc) isso daacute a impressatildeo de que se estaacute afirmando algo natildeo inteligiacutevel a saber
um ldquomundo natildeo conceitualizadordquo ldquonatildeo estruturadordquo totalmente
incompreendido e incompreensiacutevel situado fora do alcance do compreensiacutevel
do articulaacutevel etc Esta eacute a aporia em que incorre o realista (metafiacutesico)
(PUNTEL 2008 p 498)
Portanto a linguagem diz o mundo ela eacute a instacircncia intransponiacutevel
da expressabilidade do mundo e por isto seu lugar na filosofia eacute
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 29
absolutamente central Partindo das teses da antropologia do iniacutecio do
seacuteculo XX A Keller apresenta esta problemaacutetica afirmando que o ser
humano enquanto ldquoser biologicamente carenterdquo natildeo estaacute contudo preso
por seus instintos a um meio ambiente especiacutefico mas eacute relacionado ao
mundo em seu todo Ele natildeo conhece contudo esta totalidade
simplesmente atraveacutes de um conjunto desordenado de impressotildees mas a
capta atraveacutes de esquemas aprendidos o que se pode denominar a
ldquoestrutura-enquantordquo porque ele sempre capta algo enquanto algo
determinado isto eacute linguisticamente delimitado Daiacute porque para o ser
humano a linguagem eacute tatildeo vitalmente necessaacuteria como o instinto para o
animal (KELLER 1979 p 121 129)
Em segundo lugar para Puntel Putnam como os antirrealistas em
geral sempre afirma que a realidade (o mundo o universo) se refere a
ldquonosso espiacuteritordquo aldquonossa linguagemrdquo Isto significa dizer que a maneira
como o mundo estaacute estruturadodepende da linguagem em que ele se
expressa e essa linguagem para ele eacute sempre ldquonossa linguagemrdquo Desta
forma nem tudo se pode dizer em cada linguagem trata-se aqui de uma
grandeza limitada Nossas visotildees do mundo satildeo sempre diferentemente
relativas agraves nossas diferentes linguagens Eacute por isto afirma Humboldt
(1903a p 14-15) que soacute atraveacutes da linguagem captamos o mundo seus
objetos propriedades e relaccedilotildees e a linguagem eacute sempre um todo uma
estrutura cujas partes devem ser consideradas em seu papel no todo
Realizamos isso no entanto sempre numa linguagem determinada
de uma forma determinada Cada linguagem efetiva uma transformaccedilatildeo
do mundo em linguagem (HUMBOLDT 1903b p 28) articula uma visatildeo
do mundo (Weltansicht) uma concepccedilatildeo peculiar do mundo e de sua
estrutura10 uma ontologia proacutepria Assim se a cultura engendra a
linguagem a linguagem entatildeo eacute frente ao indiviacuteduo uma potecircncia que
determina seu pensamento e sua experiecircncia configurando sua visatildeo do
mundo Desta forma cada linguagem eacute em si mesma uma individualidade
espiritual (HUMBOLDT 1903b p 151) que delimita o caraacuteter nacional de
10 A respeito das questotildees epistemoloacutegicas que marcam essa posiccedilatildeo cf Kutschera (1975 p 332 e ss)
30 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
tal forma que o ser humano natildeo fala como ele fala simplesmente porque
deseja falar assim mas porque tem que falar assim11 Nele a maneira de
falar eacute um constrangimento de sua natureza intelectual (HUMBOLDT
1903b p 127) Na perspectiva da concepccedilatildeo pragmaacutetica contudo nada haacute
aqui de necessaacuterio
[hellip] nada haacute de necessaacuterio no facto de usarmos os nossos sinais do modo como
os usamos isto eacute em vez de uma forma loacutegica que espelha a forma da
realidade a gramaacutetica eacute algo de arbitraacuterio [hellip] Natildeo se pode assim falar de uma
gramaacutetica errada mas tatildeo soacute de uma desadequaccedilatildeo de uma linguagem ou jogo
de linguagem em funccedilatildeo de determinadas necessidades praacuteticas [hellip] na
linguagem tal como no xadrez se seguirmos outras regras gramaticais
estaremos respectivamente ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de
regras ou a jogar outro jogo (ZILHAtildeO 1993 p 205-206)
Aqui se manifesta uma conexatildeo muacutetua entre pensamento e palavra
(HUMBOLDT 1903a p 27) pensando a partir da consciecircncia Humboldt
defende o caraacuteter inseparaacutevel da consciecircncia e da linguagem humanas
uma vez que a linguagem eacute o oacutergatildeo que estrutura o pensamento Neste
sentido a linguagem natildeo eacute apenas meio de expressatildeo e comunicaccedilatildeo de
conteuacutedos de pensamento portanto de uma verdade jaacute articulada sem ela
mas antes pensamento e linguagem instituem uma unidade indissoluacutevel
(HUMBOLDT 1903b p 22 ss)12
O grande problema aqui e que toca o cerne das filosofias da
subjetividade inclusive as que fizeram a reviravolta linguiacutestica eacute o
seguinte estas afirmaccedilotildees levam a estabelecer a subjetividade como
instacircncia doadora de sentido a tudo A questatildeo se potildee igualmente numa
filosofia pragmaacutetica jaacute que o elemento central da pragmaacutetica (OLIVEIRA
2012 p 87-106) consiste na consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem e
falantes ou da linguagem na perspectiva da maneira como os falantes a
usam o que significa que aqui eacute determinante a accedilatildeo dos falantes Nesse
11 Uma tese que foi desenvolvida por Sapir (1929 p 209) ldquoHuman beings do not live in the objective world alone not alone in the world of social activity as ordinarily understood but are very much at the mercy of the particular language which has become the medium of expression for their societyrdquo
12 Cf Sellars (1973 p 82) ldquoThinking at the distinctly human level [hellip] is essentially verbal activityrdquo
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 31
sentido a passagem da subjetividade para a intersubjetividade proposta
como mudanccedila de paradigma na realidade natildeo resulta na superaccedilatildeo do
caraacuteter determinante da subjetividade na filosofia ou seja da postura em
que a subjetividade eacute a instacircncia teoacuterica que determina tudo
Ora noacutes somos entes puramente contingentes entatildeo
inevitavelmente se levanta a questatildeo ldquoComo poderiam entatildeo os lsquoentes
humanosrsquo (mesmo em sua totalidade como quer que esta seja pensada)
ser tomados como lsquoparacircmetrorsquo para o que eacute o mundordquo (PUNTEL 2008
p 482-483) Como nesta postura natildeo se pode falar de forma coerente do
grande mundo uma soluccedilatildeo razoaacutevel poderia ser reduzir a grande
dimensatildeo do mundo ao nosso mundo entendido como nosso mundo
vivido com a consequecircncia de ter que avaliar como sem sentido ou como
ficccedilatildeo tudo aquilo que natildeo for compatiacutevel com este mundo como por
exemplo muito do que eacute elaborado pelas ciecircncias
A implausibilidade desta posiccedilatildeo aponta para a verdadeira questatildeo
neste contexto como entender a linguagem (espiacuterito) a fim de que se
legitime a afirmaccedilatildeo de que natildeo tem sentido falar de um mundo sem
nenhuma relaccedilatildeo a ela Esta eacute a questatildeo irrefutaacutevel em primeiro lugar
para a articulaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica precisamente enquanto uma
atividade teoacuterica Numa palavra trata-se antes de tudo da determinaccedilatildeo
de um criteacuterio universal de teoricidade e justamente de um criteacuterio
linguiacutestico pois a linguagem eacute o primeiro pressuposto de uma teoria que
se compotildee de sentenccedilas especificamente de sentenccedilas teoacutericas em
segundo lugar para o enfrentamento da questatildeo do lugar central atribuiacutedo
agrave subjetividade pela filosofia moderna A resposta a esta questatildeo implica
uma virada no pensamento moderno que vai justificar falar de uma
despontencializaccedilatildeo da subjetividade
A primeira etapa nesta direccedilatildeo consiste para Puntel na diferenciaccedilatildeo
entre duas formas diferentes de compreensatildeo da linguagem Quando
familiarmente nos referimos a signos linguiacutesticos entatildeo o ser humano
com sua histoacuteria obras e contingecircncias se revela seu autor e nesta
32 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
perspectiva haacute razatildeo para falar de ldquonossardquo linguagem uma vez que sem o
ser humano natildeo se pode falar de siacutembolos linguiacutesticos bem determinados
Eacute justamente nesse sentido que A Keller (1979 p 42) entende a
linguagem como um sistema de formas de proferimentos produzido pelo
ser humano que para expressar-se para entender-se para organizar seus
conhecimentos e comunicaacute-los e para defrontar-se de diferentes formas
com a realidade Numa palavra na medida em que a linguagem se
constitui de siacutembolos linguiacutesticos assim compreendidos ela eacute uma
produccedilatildeo histoacuterico-contingente de sujeitos humanos de tal forma que a
referecircncia a estes sujeitos eacute ineliminaacutevel Nisto tecircm razatildeo os pragmaacuteticos
aqui a accedilatildeo humana eacute simplesmente decisiva ldquoisto eacute o modo particular
atraveacutes do qual intervimos na realidaderdquo (ZILHAtildeO 1993 p 207) embora
se deva afirmar tambeacutem como o faz Kutschera que a linguagem eacute natildeo soacute
uma criaccedilatildeo da comunidade e da cultura humanas mas igualmente sua
condiccedilatildeo de possibilidade Nela com uma quantidade finita de expressotildees
e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma
quantidade infinita de informaccedilotildees que possibilitam a forma determinada
de comunicaccedilatildeo que gera a comunidade e a cultura A linguagem eacute assim
a pressuposiccedilatildeo da qualidade especificamente humana de uma
comunidade (KUTSCHERA 1998 p 105 ss)
No entanto a linguagem entendida no sentido maximal ou seja
como linguagem absolutamente universal natildeo eacute um produto humano
mas jaacute estaacute dada com o mundo entendido como ser em seu todo Ela eacute a
instacircncia da expressabilidade universal enquanto esfera correlata agrave
expressabilidade do ser enquanto tal
ldquoexpressabilidaderdquo eacute uma relaccedilatildeo que soacute eacute explicaacutevel e desse modo
compreensiacutevel se tambeacutem seu reverso for reconhecido X eacute expressaacutevel se e
somente se houver um Y que eacute a instacircncia expressante de X [hellip] a
expressabilidade universal do mundo tem como pressuposto ou [hellip] como
implicaccedilatildeo uma instacircncia expressante universal [hellip] uma linguagem
(PUNTEL 2008 p 501)
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 33
Isto significa dizer que o relacionamento com a realidade soacute ocorre
linguisticamente Numa palavra a expressabilidade universal implica uma
instacircncia expressante universal uma linguagem universal que
consequentemente tem que ter um caraacuteter diferente da ldquonossardquo
linguagem Neste sentido ela natildeo eacute um produto humano puramente
contingente mas uma estruturalidade imanente ou seja um momento
estrutural do mundo entendido como ser em seu todo e dessa maneira ela
jaacute estaacute dada com o mundo em sentido do todo da realidade Enquanto tal
ela eacute um sistema semioacutetico objetivo (PUNTEL 1990 p 135)
O ser na medida em que eacute expressaacutevel enquanto tal possui uma
relaccedilatildeo imanente essencial com a linguagem que eacute precisamente a
instacircncia correlata a esta expressabilidade universal uma caracteriacutestica
imanente do ser em si mesmo Neste contexto linguagem eacute entendida
como um sistema semioacutetico abstrato que conteacutem uma quantidade
inumeraacutevel de expressotildees Este eacute para Puntel o ldquolocus originariusrdquo da
compreensatildeo da linguagem ou melhor da linguisticidade Ele denomina
por esta razatildeo a linguagem assim entendida como ldquolinguagem originaacuteriardquo
e eacute ela que ocupa a posiccedilatildeo primordial na filosofia
Assim a linguagem enquanto linguisticidade do ser enquanto tal eacute a
linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso
da expressabilidade universal do ser em seu todo Esta linguagem assim
entendida eacute coextensiva ao ser em seu todo pois o mundo (o universo o
ser) em seu todo eacute expressaacutevel o pressuposto ineliminaacutevel de qualquer
passo teoacuterico Nada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser articulado em
forma de linguagem
Neste sentido a expressabilidade eacute um momento estrutural imanente
do mundoe desse modo coextensional com o mundo como o eacute
consequentemente a linguagem Isso significa dizer que todo conteuacutedo
conceitual eacute articulado no seio da linguagem e eacute precisamente nesse
sentido que a linguagem emerge como meio indispensaacutevel da expressatildeo
ou da exposiccedilatildeo no sentido de que conteuacutedos conceituais natildeo existem sem
sua articulaccedilatildeo linguiacutestica
34 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
[hellip] linguagem constitui meio indispensaacutevel da expressatildeo ou exposiccedilatildeo no
seguinte sentido se compreendidos adequada e rigorosamente os assim
chamados ldquoconteuacutedos conceituaisrdquo natildeo existem sem sua articulaccedilatildeo (ou
articulabilidade) linguiacutestica (PUNTEL 2008 p 226)
Eacute nessa oacutetica que tem sentido a afirmaccedilatildeo de Kutschera articulada na
linguagem da semacircntica e da ontologia composicionais natildeo conhecemos
o mundo primeiro no pensamento e depois exprimimos o conhecido na
linguagem mas captamos a realidade os objetos suas diferenccedilas
propriedades e relaccedilotildees em forma linguiacutestica Pensamento e linguagem se
desenvolvem sempre juntos os pensamentos soacute se exprimem em forma
linguiacutestica A linguagem eacute o ldquomeacutediumrdquo do pensamento (KUTSCHERA
1998 p 111) Uma consequecircncia primeira fundamental aqui eacute que eacute na
articulaccedilatildeo linguiacutestica que eacute possiacutevel apreender o que eacute o conteuacutedo
conceitual como ele eacute estruturado
Quando se entende poreacutem linguagem como siacutembolos linguiacutesticos
entra em jogo o ser humano com sua histoacuteria ou seja aqui a linguagem eacute
produccedilatildeo humana e eacute isto que explica a contingecircncia histoacuterica dessas
linguagens13 Ela entatildeo se revela como a pressuposiccedilatildeo na expressatildeo de
V Kutschera (1998 p 113) de todas as nossas produccedilotildees culturais de
nossa autocompreensatildeo de nossa autoconsciecircncia e de nosso pensamento
Mas quando se leva em consideraccedilatildeo a estruturalidade semacircntico-
ontoloacutegica da linguagem entatildeo ela eacute o resultado da expressabilidade da
proacutepria realidade e ldquofalantes e sujeitos satildeo determinados e entendidos a
partir da linguagem e natildeo a linguagem a partir dos falantes ou sujeitosrdquo
(PUNTEL 2008 p 130)
Entendendo assim a linguagem no sentido maximal ou seja como
um sistema semioacutetico composto de uma quantidade infinita natildeo
enumeraacutevel de expressotildees isto eacute quando a linguagem eacute entendida como
13 Cf Zilhatildeo (1993 p 206) ldquoA analogia adequada que nos permite compreender a ligaccedilatildeo que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo eacute-nos dada pela consideraccedilatildeo das ferramentas que usamos Se soubermos olhar para elas poderemos ficar a saber tudo o que haacute para saber tanto acerca da lsquoformarsquo do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [hellip]rdquo
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 35
o reverso da expressabilidade do mundo entatildeo a fala sobre o mundo (a
realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica
sua reduccedilatildeo ao mundo da nossa linguagem e com isto cai tambeacutem por
terra a dicotomia ldquoem si e para noacutesrdquo Uma primeira consequecircncia desta
tese eacute que natildeo pode haver entidades excluiacutedas da dimensatildeo da linguagem
pois isto implicaria que tais entidades natildeo seriam expressaacuteveis Assim a
quantidade de sentenccedilas deve corresponder pelo menos ao nuacutemero de
entidades ou de fatos do mundo
O caraacuteter unilateral da posiccedilatildeo antirrealista se mostra justamente
nareduccedilatildeo da linguagem a uma criaccedilatildeo humana e consequentemente agrave
ldquonossa linguagemrdquo no desconhecimento total da linguagem maximal ou
absolutamente universal Isto significa dizer que falta aqui uma visatildeo para
o ldquotodordquo do fenocircmeno da linguagem e consequentemente a compreensatildeo
de que ldquonossardquo linguagem eacute apenas um segmento de uma linguagem
muito mais abrangente ou seja de um sistema semioacutetico composto de
uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees que eacute o ldquoinversordquo
da expressabilidade universal do ser em seu todo Nesse sentido a
linguagem possui um poder de expressatildeo muitiacutessimo maior do que a
linguagem entendida como sistema semioacutetico de comunicaccedilatildeo
Na consideraccedilatildeo da linguagem maximal a referecircncia agrave subjetividade
se torna simplesmente supeacuterflua uma tese que Apel (1973 p 240 ss) jaacute vecirc
presente na posiccedilatildeo de Wittgenstein Ele defende a tese de que o Tractatus
de Wittgenstein eacute uma filosofia transcendental sem sujeito uma vez que
Wittgenstein identifica o sujeito com a operaccedilatildeo formal constitutiva da
linguagem Com isto a referecircncia ao sujeito se torna supeacuterflua Em
contraposiccedilatildeo a esta posiccedilatildeo Apel defende a tese do caraacuteter irrecusaacutevel
pelo menos implicitamente de uma autorreferecircncia da linguagem a si
mesma que eacute depois da reviravolta linguiacutestica a nova forma de auto-
reflexividade Com isto se daacute a referecircncia a um sujeito individual como
suporte da forma loacutegica a fim de que ela possa exercer sua funccedilatildeo
transcendental Portanto a referecircncia ao sujeito eacute ineliminaacutevel
36 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Puntel (2008 p 129) denomina a linguagem maximal que de
nenhuma forma eacute tematizada pelas diferentes formas de filosofia
antirrealista como a de Apel de originaacuteria ou antes o ldquolocus originariusrdquo
de compreensatildeo da linguagem ldquono sentido de sistema semioacutetico que se
baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo do
ser)rdquo Neste contexto uma observaccedilatildeo eacute absolutamente fundamental
a linguagem filosoacutefica e cientiacutefica infinita natildeo enumeraacutevel natildeo eacute compreendida
como se fosse uma grandeza ldquomanipulaacutevelrdquo ela eacute antes uma espeacutecie de ideia
reguladora ou emolduradora em qualquer caso uma assunccedilatildeo metafiacutesica cuja
funccedilatildeo principal consiste em desempenhar um importante papel explanatoacuterio
(PUNTEL 2008 p 522)
Uma pergunta que emerge neste contexto inevitavelmente eacute o que eacute
mesmo essa linguagem maximal essa linguagem universal Para Puntel
(2008 p 527) se tem que dizer em primeiro lugar que ela por um lado
natildeo existe em lugar algum mas por outro lado existe em toda parte no
sentido de que ldquonada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser lsquoarticulado em
forma de linguagemrsquordquo Ocorre que o falante escolhe um certo ldquosegmentordquo
desta linguagem para se adequar a seus objetivos poreacutem este segmento
de nenhuma forma se identifica simplesmente com a totalidade da
linguagem o que tambeacutem vale para uma linguagem artificial que conteacutem
uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees direcionadas ao
objetivo da exposiccedilatildeo e natildeo da comunicaccedilatildeo Eacute esta a razatildeo porque se fala
aqui de linguagem maximal e ela natildeo soacute constitui o lugar originaacuterio da
compreensatildeo da linguagem mas soacute a partir daqui se pode compreender
adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da
linguagem na filosofia
Referecircncias
APEL K-O Wittgenstein und Heidegger die frage nach dem sinn von sein und die
sinnlosigkeitsverdacht gegen alle metaphysik In _____ Transformation der
philosophie (vol 1) Frankfurt am Main Suhrkamp 1973
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 37
BRANQUINHO J Atitude proposicional In _____ MURCHO D amp GOMES N G (Orgs)
Enciclopeacutedia de termos loacutegico-filosoacuteficos Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
ENGEL P Quine et les post-quiniens reacutealisme et antireacutealisme In MEYER M (Ed) La
philosophie anglo-saxonne Paris PUF p 348-368 1994
FINK E Naumlhe und distanz phaumlnomenologische vortraumlge und aufsaumltze
FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1976
GADAMER H-G Die phaumlnomenologische bewegung In _____ Gesammelte werke vol
3 Tuumlbingen 1987
HABERMAS J Vorlesungen zu einer sprachtheoretischen grundlegung der soziologie
(197071) In _____ Vorstudien und ergaumlnzungen zur theorie des
kommunikativen handelns Frankfurt am Main Suhrkamp 2 ed 1984
HUMBOLDT W v Gesammelte schriftenVol IV Berlim Academia Real Prussiana das
Ciecircncias (Org) 1903a
_____ Gesammelte schriften Vol VI Berlim Academia Real Prussiana das Ciecircncias
(Org) 1903b
HUSSERL E Ideen zu einer reinen phaumlnomenologie und phaumlnomenologischen
philosophie Haag Martinus Nijhoff 1950 (Husserliana vol III)
_____ Die krisis der europaumlischen wissenschaften und die transzendentale
phaumlnomenologie 2 ed Haag Martinus Nijhoff 1963 (Husserliana vol VI)
_____ Erfahrung und urteil untersuchungen zur genealogie der logik 3 ed Hamburg
Claassen Verlag 1964
KELLER A Sprachphilosophie FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1979
KUTSCHERA F v Sprachphilosophie 2 ed Muumlnchen Wilhelm Fink Verlag 1975
_____ Die teile der philosophie und das ganze der wirklichkeit BerlinNew York W
de Gruyter 1998
McDOWELL J Mente e mundo Aparecida Ideias amp Letras 2005
38 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
MILLER A Filosofia da linguagem Satildeo Paulo Paulus 2010
OLIVEIRA M A de Subjektivitaumlt und vermittlung studien zur entwicklung des
transzendentalen denkens bei I Kant E Husserl und H Wagner Muumlnchen Wilhelm
Fink Verlag 1973
_____ A centralidade da intersubjetividade uma leitura pragmaacutetica da filosofia
transcendental em J Habermas In _____ Antropologia filosoacutefica
contemporacircnea subjetividade e inversatildeo teoacuterica Satildeo Paulo Paulus 2012
_____ A ontologia em debate no pensamento contemporacircneo Satildeo Paulo Paulus 2014
_____ A reviravolta linguiacutestico-pragmaacutetica na filosofia contemporacircnea4 ed Satildeo
Paulo Loyola 2015
PORTA M A G Platonismo e intencionalidad a propoacutesito de Bernard Bolzano (2ordf Parte)
Siacutentese v 30 n 96 p 85-106 2003
PUNTEL L B Grundlagen einer theorie der wahrheit BerlinNew York de Gruyter
1990
_____ Estrutura e ser um quadro referencial teoacuterico para uma filosofia sistemaacutetica Satildeo
Leopoldo Editora Unisinos 2008
_____ Ser e Deus um enfoque sistemaacutetico em confronto com M Heidegger Eacute Leacutevinas e
J-L Marion Satildeo Leopoldo Editora Unisinos 2011
PUTNAM HVernunft wahreit und geschichte Frankfurt am Main Suhrkamp 1990
_____ Auf messers schneide interner realismus und relativismus In Von einem
realistischen standpunkt schriften zu sprache und wirklichkeit Ed e trad por V
C Muumlller Reinbek bei Hamburg Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH 1993
_____ Why there isnacutet a ready-made world In _____ Realism and reason Philosophical
Papers vol 3 Cambridge Cambridge University Press 1996
QUINE W V O The pragmatists` place in empiricism In MULVANEY R J amp ZELTNER
P M (Orgs) Pragmatism its sources and prospects University of South California
Press 1981
Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 39
SAPIR E The status of linguistics as a science Language v 5 n 4 p 207-214 1929
SELLARS W Conceptual change In PEARCE G amp MAYNARD P (Orgs) Conceptual
change Dordrecht D Reidel 1973
_____ Empirismo e filosofia da mente Com uma introduccedilatildeo de Richard Rorty e um guia
de estudos de Robert Brandom Petroacutepolis Vozes 2003
SIEMEK M J Husserl e a heranccedila da filosofia transcendental Siacutentese v 28 n 91 p 189-
202 2001
STROumlKER E Phaumlnomenologische studien Frankfurt am Main V Klostermann 1987
TUGENDHAT E Der wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger Berlin de Gruyter
1967
_____ Vorlesungen zur einfuumlhrung in die sprachanalytische Philosophie Frankfurt
am Main Suhrkamp 1976
ZILHAtildeO A Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem estudos sobre
Wittgenstein Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993
2
Encheiriacutedion Capiacutetulo I
Traduccedilotildees e Comentaacuterios
Aldo Dinucci 1
Alfredo Julien 2
Antonio Carlos Tarquiacutenio 3
O Encheiriacutedion termo que em grego significa ldquoadaga punhal arma
portaacutetil ou livro portaacutetil manualrdquo foi composto por Luacutecio Flaacutevio Arriano
de Nicomeacutedia4 tomando por base suas compilaccedilotildees das aulas de Epicteto
Consistindo em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do
Estoicismo tenha sempre ao alcance da matildeo os princiacutepios para enfrentar
as dificuldades da vida e vencecirc-las o Encheiriacutedion tornou ceacutelebre o nome
de Epicteto Seguem breves mas importantes traduccedilotildees e comentaacuterios
sobre o primeiro capiacutetulo do Encheiriacutedion de Epicteto A primeira traduccedilatildeo
comentada foi realizada por Aldo Dinucci e Alfredo Julien pesquisadores
que dedicaram alguns anos agrave traduccedilatildeo da obra culminando com uma
ediccedilatildeo em Coimbra da mesma pelos Classica Digitalia A segunda por
Antonio Carlos Tarquiacutenio filoacutesofo radicado em Satildeo Paulo que tem se
dedicado intensamente nas uacuteltimas deacutecadas ao estudo de Epicteto
publicando em 2017 o livro Uma filosofia do desapego a askesis de
desapropriaccedilatildeo epictetiana agrave luz da katharsis do Feacutedon de Platatildeo resultado
1 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
2 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)
3 Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)
4 Ca 86-160
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 41
de suas pesquisas de doutorado sobre o velho de Nicoacutepolis Imediatamente
abaixo temos o texto em grego estabelecido pela primeira vez por Boter
em 1999
[11] Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ ἡμῖν τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἐφ ἡμῖν μὲν
ὑπόληψις ὁρμή ὄρεξις ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα οὐκ ἐφ
ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα ἡ κτῆσις δόξαι ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα
ἔργα[12]καὶ τὰ μὲν ἐφ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα ἀκώλυτα παραπόδιστα
τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀσθενῆ δοῦλα κωλυτά ἀλλότρια[13] μέμνησο οὖν ὅτι
ἐὰν τὰ φύσει δοῦλα ἐλεύθερα οἰηθῇς καὶ τὰ ἀλλότρια ἴδια ἐμποδισθήσῃ
πενθήσεις ταραχθήσῃ μέμψῃ καὶ θεοὺς καὶ ἀνθρώπους ἐὰν δὲ τὸ σὸν
μόνον οἰηθῇς σὸν εἶναι τὸ δὲ ἀλλότριον ὥσπερ ἐστίν ἀλλότριον οὐδείς σε
ἀναγκάσει οὐδέποτε οὐδείς σε κωλύσει οὐ μέμψῃ οὐδένα οὐκ ἐγκαλέσεις
τινί ἄκων πράξεις οὐδὲ ἕν οὐδείς σε βλάψει ἐχθρὸν οὐχ ἕξεις οὐδὲ γὰρ
βλαβερόν τι πείσῃ [14] τηλικούτων οὖν ἐφιέμενος μέμνησο ὅτι οὐ δεῖ
μετρίως κεκινημένον ἅπτεσθαι αὐτῶν ἀλλὰ τὰ μὲν ἀφιέναι παντελῶς τὰ δ
ὑπερτίθεσθαι πρὸς τὸ παρόν ἐὰν δὲ καὶ ταῦτ ἐθέλῃς καὶ ἄρχειν καὶ
πλουτεῖν τυχὸν μὲν οὐδ αὐτῶν τούτων τεύξῃ διὰ τὸ καὶ τῶν προτέρων
ἐφίεσθαι πάντως γε μὴν ἐκείνων ἀποτεύξη δι ὧν μόνων ἐλευθερία καὶ
εὐδαιμονία περιγίνεται [15] εὐθὺς οὖν πάσῃ φαντασίᾳ τραχείᾳ μελέτα
ἐπιλέγειν ὅτι lsquoφαντασία εἶ καὶ οὐ πάντως τὸ φαινόμενονrsquo ἔπειτα ἐξέταζε
αὐτὴν καὶ δοκίμαζε τοῖς κανόσι τούτοις οἷς ἔχεις πρώτῳ δὲ τούτῳ καὶ
μάλιστα πότερον περὶ τὰ ἐφ ἡμῖν ἐστιν ἢ περὶ τὰ οὐκ ἐφ ἡμῖν κἂν περί τι
τῶν οὐκ ἐφ ἡμῖν ᾖ πρόχειρον ἔστω τὸ διότι lsquoοὐδὲν πρὸς ἐμέrsquo
Encheiriacutedion Capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Aldo Dinucci e
Alfredo Julien)
[11] Das coisas existentes algumas satildeo encargos nossos outras natildeo Satildeo
encargos nossos o juiacutezo o impulso o desejo a repulsa ndash em suma tudo quanto
seja accedilatildeo nossa Natildeo satildeo encargos nossos o corpo as posses a reputaccedilatildeo os
cargos puacuteblicos ndash em suma tudo quanto natildeo seja accedilatildeo nossa [12] Por
natureza as coisas que satildeo encargos nossos satildeo livres5 desobstruiacutedas6 sem
5 Eleutheros livre por oposiccedilatildeo a escravo Para Epicteto quem deseja o que natildeo eacute encargo seu necessariamente torna-se escravo pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso agrave coisa desejada (cf Diatribes I 419)
6 Akolytos adjetivo verbal de privaccedilatildeo da accedilatildeo relacionada ao verbo kolyo que significa ldquoafastar desviarrdquo adquirindo o sentido de ldquoimpedirrdquo Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to kolyon com o significado de ldquoobstaacuteculordquo
42 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
entraves7 As que natildeo satildeo encargos nossos satildeo deacutebeis8 escravas obstruiacutedas9
de outrem10 [13] Lembra entatildeo que se pensares11 livres as coisas escravas por
natureza e tuas as de outrem tu te faraacutes entraves12 tu te afligiraacutes13 tu te
inquietaraacutes14 censuraraacutes tanto os deuses como os homens Mas se pensares
teu unicamente o que eacute teu e o que eacute de outrem como o eacute de outrem ningueacutem
jamais te constrangeraacute15 ningueacutem te faraacute obstaacuteculos natildeo censuraraacutes
ningueacutem nem acusaraacutes quem quer que seja de modo algum agiraacutes
constrangido ningueacutem te causaraacute dano natildeo teraacutes inimigos pois natildeo seraacutes
persuadido em relaccedilatildeo a nada nocivo [14] Entatildeo almejando coisas de
tamanha importacircncia lembra que eacute preciso que natildeo te empenhes de modo
comedido mas que abandones completamente algumas coisas e por ora
deixes outras para depois Mas se quiseres aquelas coisas e tambeacutem ter cargos
e ser rico talvez natildeo obtenhas estas duas uacuteltimas por tambeacutem buscar as
primeiras e absolutamente natildeo atingiraacutes aquelas coisas por meio das
quaisunicamente resultam a liberdade e a felicidade16 [15] Entatildeo pratica dizer
prontamente a toda representaccedilatildeo bruta17 ldquoEacutes representaccedilatildeo e de modo
algum lteacutesgt o que se afigurardquo18 Em seguida examina-a e testa-a com essas
mesmas regras que possuis em primeiro lugar e principalmente se eacute sobre
ldquoimpedimentordquo Assim a-kolytos refere-se a algo para o que natildeo haacute impedimento quanto agrave sua obtenccedilatildeo sendo portanto ldquodesimpedidordquo
7 Aparapodistos optamos traduzir o termo por ldquosem entravesrdquo pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a accedilatildeo relacionada ao verbo podizo que significa ldquosujeitar os peacutes com travasrdquo referindo-se principalmente a armadilhas para animais Cf o substantivo feminino podistra que pode significar tanto ldquoarmadilha que prende pelos peacutesrdquo (Antologia Palatina 6 107) quanto ldquoteia de aranhardquo (Antologia Palatina 9 372)
8 Asthene privado de forccedila no sentido de ldquoforccedila fiacutesica vigorrdquo
9 Kolytos Cf nota acima sobre akolutos
10 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para qualificar o que eacute encargo nosso e o que natildeo eacute o que eacute encargo nosso eacute livre desobstruiacutedo sem entraves o que natildeo eacute encargo nosso eacute deacutebil escravo de outrem
11 Oio ldquopensarrdquo no sentido de ldquopresumirrdquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute ldquopressentir crer estimarrdquo
12 Empodizo significa literalmente ldquometer os peacutes em uma armadilhardquo
13 Pentheo verbo relacionado ao substantivo to penthos que siginifica ldquodor afliccedilatildeordquo
14 Tarasso significa primariamente ldquoremexerrdquo ldquoagitarrdquo no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compotildeem
15 Anankazo ldquoforccedilarrdquo ldquoconstrangerrdquo
16 Felicidade traduz eudaimoniacutea No contexto do paganismo grego daimoniacuteos eacute um adjetivo que qualifica tudo o que proveacutem da divindade ou eacute enviado por um deus Associado ao prefixo ldquoeṷrdquo (ldquobemrdquo no sentido de coisas boas) esse vocaacutebulo tem significaccedilatildeo proacutexima agrave de ldquobem-aventuranccedilardquo na acepccedilatildeo cristatilde
17 Trata-se do adjetivo trachys apresentado por Bailly (2000) com o significado de ldquoruderdquo adquirindo diversos sentidos dependendo do substantivo ao qual esteja ligado ldquoAacutesperordquo ao se tratar de uma pedra ldquopedregosordquo ao se referir a um rio ou a um terreno ldquoroucardquo ao qualificar um tipo voz ldquogrosseiro duro cruel violento e irasciacutevelrdquo ao se referir ao comportamento de algueacutem Simpliacutecio (Comentaacuterio ao Encheiriacutedion de Epicteto V 15) observa que tal representaccedilatildeo eacute chamada tracheiacutea (dura bruta) por ser contraacuteria agrave razatildeo tornando ldquoaacutesperardquo a vida Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por ldquoharshrdquo Gourinat (1998) por ldquopeacuteniblerdquo Garciacutea (1995) por ldquobrutardquo
18 Phainoacutemenon ldquoo que estaacute se manifestando ou se mostrandordquo particiacutepio presente meacutedio do verbo phaaino
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 43
coisas que satildeo encargos nossos ou natildeo E caso esteja entre as coisas que natildeo
sejam encargos nossos tem agrave matildeo que ldquoNada eacute para mimrdquo
A expressatildeo ephi hemin que ora traduzimos por ldquosob nosso encargordquo
ou ldquoencargo nossordquo natildeo possui equivalente direto que possa dar conta de
seu significado Literalmente poderiacuteamos traduzi-la por ldquoalgumas coisas
estatildeo sobre noacutes outras natildeordquo Henrique Murachco traduz expressatildeo
semelhante (to epi emoi) por ldquono que estaacute sobre mimrdquo no sentido ldquode
quanto a mimrdquo ldquono que me concernerdquo (2001 p 573) No caso do
Encheiridion de Epicteto a traduccedilatildeo poderia ser ldquoalgumas coisas nos
concernem outras natildeordquo Bailly (2000) citando a mesma expressatildeo
acentua a ideia de dependecircncia e de poder que ela expressa traduzindo-a
por ldquoautant qursquoil est em mon pouvoirrdquo enfatizando assim a ideia de
controle (cf Xenofonte Ciropeacutedia 54 11) A expressatildeo possui imagem
concreta e clara referindo-se a algo que eacute colocado sobre noacutes sustentado
por noacutes pois nos encontramos embaixo fornecendo seu apoio A opccedilatildeo
por ldquoencargo nossordquo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto
a isso que estaacute sobre noacutes (e do que somos a causa primaacuteria)
A expressatildeo eacute diferentemente vertida por diferentes tradutores
Oldfather a traduz por ldquothings under our controlrdquo (2000) White por
ldquowhat is up to usrdquo (1983) Gourinat por ldquochoses qui deacutependent de nousrdquo
(1998)
Como dissemos epi expressa uma relaccedilatildeo de dependecircncia Satildeo
portanto coisas que dependem de noacutes Como Epicteto diraacute na continuaccedilatildeo
do texto eacute preciso que nos concentremos sobre as coisas que estatildeo sob
nosso controle em trecircs sentidos Em relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo (phantasia)
retirando dela todo juiacutezo (hypolepsis) equivocado a partir da
compreensatildeo de que nada que natildeo depende de noacutes eacute por si mesmo um
bem ou um mal Em relaccedilatildeo ao impulso (horme) uma vez cientes de que
produzimos nosso bem e nosso mal eacute preciso moderar os impulsos e
encontrar o modo de agir segundo a natureza Em relaccedilatildeo ao desejo
(orexis) e agrave repulsa (ekklisis) partindo mais uma vez da compreensatildeo de
que nada externo eacute por si soacute um bem ou um mal eacute preciso que o desejo e
44 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
a repulsa se apliquem natildeo mais agraves coisas que natildeo dependem de noacutes
(sendo-nos necessaacuterio desejaacute-las como satildeo) mas agraves coisas que estatildeo sob
nosso controle
Traduzimos por juiacutezo o vocaacutebulo grego hypolepsis que eacute substantivo
relacionado ao verbo hypolambano que expressa a ideia de sucessatildeo e de
substituiccedilatildeo adquirindo os sentidos de ldquoreacuteplica resposta concepccedilatildeo e
pensamentordquo O vocaacutebulo ldquojuiacutezordquo empregado aqui para traduzir essa
noccedilatildeo deve ser entendido como um parecer ou uma opiniatildeo que orienta
nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta Vale a
pena ressaltar que no contexto deste capiacutetulo o vocaacutebulo estaacute associado
ao verbo oiocedil traduzido aqui por ldquopensarrdquo No capiacutetulo 20 do Encheiriacutedion
apresenta-se uma associaccedilatildeo clara entre hypolepsis e dogma (opiniatildeo) No
capiacutetulo 5 apresenta-se tambeacutem uma associaccedilatildeo entre dogma (opiniatildeo) e
phantasiacutea (representaccedilatildeo) por meio do verbo phainomai (afigurar-se) Eacute
interessante notar que o juiacutezo nesses exemplos envolve a ponderaccedilatildeo ndash
como a consideraccedilatildeo sobre se algo eacute livre ou escravo - mas tambeacutem
sentimentos relacionados agraves nossas recusas medos e desejos Oldfather
(2000) traduz hypolepsis por ldquoconceptionrdquo White (1993) por ldquoopinionrdquo
Gourinat (1998) por ldquojugementrdquo e Garciacutea (1995) por ldquojuiciordquo
A noccedilatildeo de phantasiacutea que ora traduzimos por representaccedilatildeo eacute de
fundamental importacircncia para a compreensatildeo da filosofia estoica por
relacionar-se tanto a questotildees loacutegicas quanto epistemoloacutegicas e eacuteticas
Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasiacutea uma
modificaccedilatildeo da faculdade diretriz eles divergem ao explicar essa mudanccedila
Para Lesses (1998 p 6) Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma
concepccedilatildeo ingecircnua de representaccedilatildeo mental segundo a qual as phantasiacuteai
perceptivas satildeo coacutepias de qualidades que os objetos representados
possuem (cf Dioacutegenes Laeacutercio 7504) Aleacutem disso Annas (1991 p 74-75)
compreende estar implicado nas observaccedilotildees de Crisipo que as phantasiacuteai
satildeo proposicionais ou articulaacuteveis em forma linguiacutestica Ora quanto agraves
alternativas para traduzirmos o termo phantasiacutea parece-nos que
impressatildeo estaacute mais proacuteximo de Cleanto que de Crisipo pois a metaacutefora
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 45
utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questatildeo eacute justamente
agrave da impressatildeo sobre a cera metaacutefora que eacute criticada por Crisipo por seu
caraacuteter imageacutetico A concepccedilatildeo de Crisipo sobre a phantasiacutea ndash adotada
desde entatildeo pelo Estoicismo ndash eacute que ela tem duas facetas uma sensiacutevel
(pois como dissemos trata-se de uma modificaccedilatildeo da faculdade diretriz)
e outra virtual (pois a essa modificaccedilatildeo eacute afixado um juiacutezo que descreve e
avalia aquilo que efetuou a modificaccedilatildeo) Assim sendo parece-nos que a
palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo (que possui de acordo com o Aureacutelio o sentido
filosoacutefico geral de ldquoconteuacutedo concreto apreendido pelos sentidos pela
imaginaccedilatildeo pela memoacuteria ou pelo pensamentordquo) serve para o nosso
propoacutesito e por ela traduziremos phantasiacutea
Traduzimos por lsquoimpulsorsquo o termo grego horme que eacute substantivo
relacionado ao verbo ornumi (ldquolevantar-serdquo) designando o primeiro bote
de um assalto ou ataque adquirindo os sentidos de elatilde e de impulso Entre
as traduccedilotildees consultadas para este trabalho a uacutenica exceccedilatildeo a ldquoimpulsordquo
como vocaacutebulo para traduzir horme eacute a opccedilatildeo de Oldfather (2000) que
emprega ldquochoicerdquo (ldquoescolhardquo) Horme deve ser entendido no contexto do
pensamento epictetiano como o iacutempeto para a accedilatildeo a tendecircncia para agir
desta ou daquela maneira diante de determinada coisa
Traduzimos por lsquodesejorsquo o termo grego orexis que eacute o nome da accedilatildeo
do verbo orego que apresenta o significado de ldquoestender ou tender na
direccedilatildeo de algordquo (por exemplo estender as matildeos para o ceacuteu ou para pedir
algo a algueacutem) de onde ldquodesejordquo ldquoapetiterdquo Eacute uma palavra difiacutecil para ser
transportada ao contexto cultural presente Embora sua traduccedilatildeo por
ldquodesejordquo seja corrente eacute preciso ter cautela com ela pois natildeo se deve
entender orexis no sentido do emaranhado de pulsotildees originadas em niacutevel
inconsciente que caracteriza a visatildeo moderna da subjetividade humana
Orexis descreve a accedilatildeo de tender em direccedilatildeo a algo Uma forma de
apreender da maneira mais precisa possiacutevel seu significado eacute ter em conta
que orexis se opotildee a ekklisis que expressa o movimento contraacuterio o de
afastar-se Para Epicteto desejamos as coisas que consideramos boas (cf
Diatribes I42-3)
46 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
lsquoRepulsarsquo eacute nossa escolha para traduzir eacutekklisis termo grego que
identifica a accedilatildeo de declinar expressando o movimento contraacuterio de klisis
que significa a accedilatildeo de inclinar-se Eacute empregado para descrever o
movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o decliacutenio de
um astro Oldfather (2000) White (1983) e Gourinat (1998) optaram
traduzi-lo por ldquoaversatildeordquo Garciacutea (1998) por ldquorechazordquo No Aureacutelio
ldquoaversatildeordquo apresenta os significados de ldquooacutedio rancor antipatiardquo que natildeo
cabem no presente caso Optamos entatildeo por ldquorepulsardquo para expressar a
ideia de repelir afastar ou evitar algo sem a conotaccedilatildeo de aversatildeo Para
Epicteto repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf Diatribes
I42-3)
Encheiriacutedion capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Antonio Carlos
Tarquiacutenio)
(1-1) Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes19 outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute
propriamente nosso20 julgamento de valor21 impulso para agir desejo
aversatildeo - em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa
alccedilada22 o corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos
- em uma palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem
propriamente (1-2) E as coisas que nos competem satildeo por natureza livres
sem impedimentos sem entraves e as que natildeo satildeo fracas escravas
impedidas de outrem (1-3) Lembra entatildeo que se consideras as coisas
escravas por natureza livres e as coisas alheias proacuteprias seraacutes impedido
estaraacutes triste e perturbado censuraraacutes tanto os deuses como tambeacutem os
homens Mas se consideras ser teu somente o teu e o alheio como eacute alheio
ningueacutem te obrigaraacute nem te impediraacute natildeo censuraraacutes a ningueacutem tampouco
acusaraacutes a algueacutem nenhuma accedilatildeo contra vontade ningueacutem te prejudicaraacute
natildeo teraacutes inimigo uma vez que ningueacutem te convenceraacute de algo danoso23 (1-
4) Lembra-te enfim de que aspirando coisas de tal tamanho24 natildeo eacute preciso
19 Satildeo de nossa alccedilada
20 Eacute de nossa competecircncia
21 Aceito a traduccedilatildeo de Pierre Hadot da palavra hypolepsis
22 Natildeo satildeo de nossa competecircncia natildeo satildeo propriamente nossos
23 Ou seja que tenha sofrido algo de danoso Ningueacutem nos convenceraacute de havermos sido prejudicados
24 Isto eacute tatildeo grandes Elevadas
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 47
se mover moderadamente para alcanccedilaacute-las25 mas umas abandonar
completamente e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois
Mas se queres tambeacutem essas coisas (isto eacute as elevadas e grandes) e mandar e
enriquecer talvez natildeo obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade) por
tambeacutem demandares as primeiras (as elevadas e grandes) erraraacutes o alvo
totalmente pelo menos daquelas (coisas) atraveacutes das quais tatildeo somente
dominarias a liberdade e a felicidade (1-5) Enfim exercita-te rapidamente em
acrescentar a toda fantasia26 que ldquoeacutes impressatildeo e de modo algum o que se
mostra (sendo)rdquo A seguir investiga-a e submeta-a a esses cacircnones os quais
tens e em primeiro lugar esse e sobretudo qual dos dois se a respeito das
coisas sobre noacutes ou a respeito das coisas que natildeo estatildeo sobre noacutes e se for algo
a respeito das que natildeo estatildeo sobre noacutes por isso esteja agrave matildeo ldquonada perante
a mimrdquo
O primeiro capiacutetulo do Enquiriacutedio de Epicteto enfeixa ideias preciosas
que auxiliam o acesso agrave compreensatildeo de sua proposta filosoacutefica Nele
encontramos pontos essenciais de sua doutrina de seu ensinamento Se
no seguimento da obra outros temas surgem e encontram em tempo
oportuno explicaccedilatildeo eacute nos seus cinco itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que
vemos traccedilado o panorama de pensamento do filoacutesofo estoico
Desde o iniacutecio do Enquiriacutedio de Epicteto vecirc-se o estabelecimento de
uma linha divisoacuteria que possui como principal objetivo demarcar a zona
do eu - do verdadeiro eu - distinguindo-a da regiatildeo em que se situam as
coisas em relaccedilatildeo estreita com o corpo Eis a afirmativa de Epicteto a este
respeito
Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute
propriamente nosso julgamento de valor impulso para agir desejo aversatildeo
- em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa alccedilada o
25 Tocaacute-las obtecirc-las
26 Optamos por traduzir phantasiacutea por fantasia em vez de usar os habituais termos ldquorepresentaccedilatildeordquo e ldquoimpressatildeordquo que carreiam consigo interpretaccedilotildees tatildeo incompatiacuteveis entre si que para utilizaacute-los se faria necessaacuteria uma elucidaccedilatildeo criacutetica de cada uma delas De acordo com Sexto Empiacuterico a traduccedilatildeo de phantasiacutea para ldquoimpressatildeordquo (typosis) eacute compatiacutevel com o pensamento de Cleantes conforme a metaacutefora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemocircnico agrave feiccedilatildeo de um sinete sobre a cera Jaacute Crisipo entende a he phantasiacutea ao modo de uma alteraccedilatildeo (heteroiosis) da alma Sexto Empiacuterico M VII 228-230 Doravante citado com a sigla SE
48 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos - em uma
palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem propriamente27
Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais agrave face dessa
tese epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses fama
riquezas inclusive nossos corpos natildeo devam ser situados no campo de
nossas preocupaccedilotildees habituais por natildeo nos pertencerem propriamente
Pois essas satildeo coisas que se no passado jaacute se procuravam hoje muito mais
Em contrapartida o desejar o julgar o agir e o evitar natildeo causam
indignaccedilatildeo como fazeres nossos apesar da descoberta nos uacuteltimos seacuteculos
do inconsciente que parece gerar consequecircncias seriacutessimas em torno das
faculdades aniacutemicas do homem
Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas ldquonatildeo
sobre noacutesrdquo e continuaraacute aparecendo principalmente nas Liccedilotildees de
Epicteto28 toda vez que ele se referir agrave distinccedilatildeo essencial em que figura o
campo de responsabilidade especiacutefica humana Vejamos por exemplo este
trecho das Liccedilotildees
Pois o corpo nos eacute estranho seus membros nos satildeo estranhos nossos teres
nos satildeo estranhos Se por conseguinte tu te prendes a alguma dessas coisas
como a alguma coisa pessoal receberaacutes o castigo que merece aquele que deseja
aquilo que lhe eacute estranho29
Se o corpo e seus amigos natildeo nos pertencem propriamente as obras
da alma satildeo nossas30 natildeo soacute como propriedades inalienaacuteveis mas
sobretudo porque satildeo livres desimpedidas e isentas de qualquer
obstaacuteculo como o Enquiriacutedio de Epicteto inicia separando esferas de
27 E I 1
28 Traduzo Epiktetoi diatribai por Liccedilotildees de Epicteto Seratildeo representadas com a sigla L
29 L IV 1 130-131
30 ldquoE as obras da alma satildeo o impulso para agir o impulso de se afastar o desejar o preparar o intentar o assentirrdquo L IV 11 6 O termo ldquoobras da almardquo demonstra que a real distinccedilatildeo eacute entre a psykhe e o corpo Ora as obras da alma satildeo as obras do hegemocircnico ldquoOs estoicos afirmam que o hegemocircnico eacute a parte mais alta da alma aquela que produz as fantasias os assentimentos as sensaccedilotildees as tendecircncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) 847 Aeacutecio IV 21 1-4 = Pseudo-Plutarque 903A12c-10 Crisipo Oeuvre Philosophique Doravante citado com a sigla Chrys OC
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 49
responsabilidade aquilo por que sou responsaacutevel daquilo pelo que natildeo sou
responsaacutevel nem sempre se consegue perceber a questatildeo de fundo por
traacutes da divisatildeo Entretanto quando Epicteto trata do assunto por outro
acircngulo notamos aquilo que estaacute em jogo na separaccedilatildeo a centralizaccedilatildeo da
vida humana nos valores da alma
Em uma declaraccedilatildeo visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto
se perguntando sobre quem no filoacutesofo do Jardim produziu seus escritos
deixou que sua barba crescesse e tambeacutem quem nele afirmou certa vez
viver seus uacuteltimos dias em estado de felicidade E conclui sua indagaccedilatildeo
com a pergunta A carne (sarks) ou a escolha (prohairesis)31 ou seja
se Epicuro escolheu escrever a prohairesis eacute aquele ato espiritual que o
define mesmo que sua filosofia negue isso Na passagem que segue se
clareia por inteira a noccedilatildeo de que o bem humano eacute por excelecircncia e
essencialmente de ordem espiritual Digo ldquoespiritualrdquo no sentido de
indicar o hegemocircnico em uma das suas funccedilotildees primordiais32 mesmo
sabendo se tratar de um pneuma corpoacutereo uma vez que o proacuteprio Epicteto
compara-o ao corpo utilizando termos antiteacuteticos
A divindade eacute uacutetil mas o bem tambeacutem eacute Entatildeo eacute verossiacutemil onde a essecircncia
da divindade laacute tambeacutem a do bem Entatildeo qual eacute a essecircncia da divindade A
carne Natildeo viria a ser Campo Natildeo viria a ser Fama Natildeo viria a ser A mente
a ciecircncia o pensamento correto Logo procura nessas coisas simplesmente a
essecircncia do bem33
Na introduccedilatildeo ao livro Le Manuel drsquoEacutepicteacutete Pierre Hadot se refere agrave
concentraccedilatildeo do eu qual exerciacutecio espiritual que se poderia derivar
diretamente da separaccedilatildeo sugerida por Epicteto Seria a separaccedilatildeo do eu
do natildeo-eu34 e natildeo discordamos
31 L II 23 21
32 O ato de escolher a prohairesis
33 L II 8 1-3
34 Na medida em que se potildee em operaccedilatildeo a distinccedilatildeo entre as coisas dependentes de noacutes e as coisas independentes de noacutes o eu eacute como que recolocado dentro de seus limites porque natildeo avanccedila mais sobre o que natildeo lhe diz respeito O eu reposicionado deixa para fora de si o natildeo-eu ou seja todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente
50 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Distinguir o que depende de noacutes e o que natildeo depende de noacutes a causalidade
interior e a causalidade exterior eacute finalmente distinguir o eu do natildeo-eu Eacute um
exerciacutecio de concentraccedilatildeo e de delimitaccedilatildeo do eu eu natildeo sou os objetos que
me circundam e que por vezes me satildeo caros esta marmita ou este cavalo ou
esta lacircmpada eu natildeo sou pode-se dizer os atributos gramaticais que o
Destino me impotildee rico ou pobre saudaacutevel ou doente senhor ou escravo
poderoso ou miseraacutevel eu natildeo sou os meus membros eu natildeo sou o meu corpo
nem a emoccedilotildees involuntaacuterias que podem emocionaacute-lo35
O que estaacute no cerne da cisatildeo preceituada por Epicteto eacute a fixaccedilatildeo de
um lugar o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se
voltar a fim de concentrar todos os seus esforccedilos Na verdade a
concentraccedilatildeo do eu demarca dois itineraacuterios bem definidos um em que a
parte dirigente da alma36 eacute assentada a tiacutetulo de oficina e outro em que eacute
definida a principal tarefa do homem ou seja o seu ofiacutecio
Oficina e ofiacutecio juntam-se num mesmo caminho espiritual Enquanto
a primeira diz respeito ao princiacutepio diretor da alma ao hegemocircnico como
lugar de trabalho a segunda se define como o proacuteprio trabalho no cuidado
dele
Referecircncias
ANNAS J Hellenistic philosophy of mind Berkeley University of California Press 1991
BAILLY A Le grand dictionnaire grecfranccedilais Paris Hachette 2000
DINUCCI A O manual de Epicteto aforismos da sabedoria estoica Satildeo Cristoacutevatildeo
EdiUFS 2007
DINUCCI A JULIEN A Epicteto testemunhos e fragmentos Satildeo Cristoacutevatildeo EdiUFS
2008
35 Hadot (2000 p 44-45) Cf L III 24 56 IV 1 129-130
36 Crisipo se refere ao hegemocircnico como o verdadeiro ldquoeurdquo Cf Galeno Sobre as doutrinas de Hipoacutecrates e de Platatildeo II 2 9 1-11 6
Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 51
_____ O Encheiridion de Epicteto Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra
2014
DIOacuteGENES LAEacuteRCIO Lives of eminent philosophers vol I IITrad R D Hicks Harvard
Loeb Classical Library 1925
EPICTETO The Encheiridion of Epictetus and its three christian adaptations Trad
G Boter Leiden Brill 1999
_____ Epictetus EncheiridionTrad G Boter Berlim De Gruyter 2007
_____ Manual Trad P O Garciacutea Madrid Editorial Gredos 1995
EPICTETO Enchiridion Trad G Long Nova York Prometheus 1991
_____ Manuel drsquoEacutepictegravete Trad P Hadot Paris LGF 2000
_____ Penseacutees (Manuel) in extenso In Les stoiciumlens textes choisis Org J Brun Paris
PUF 1998 p 118-39
_____ The discourses of Epictetus as reported by Arrian (Books I II III amp IV)
fragments Encheiridion Trad W A Oldfather Cambridge Loeb 2000
_____ The discourses of Epictetus with the Enchiridion and fragments Trad George
Long Londres George Bell amp Sons 1877
_____ Epictetus the handbook the EncheiriacutedionTrad N P White Cambridge
Hacket 1983
LESSES G Content cause and stoic impressions Phronesis XLIII1 1998 p 2-24
MAacuteXIMO PLANUDES Greek anthology vol I IIITrad W R Paton Harvard Loeb
Classical Library 1916-8
MURACHCO Henrique Liacutengua grega visatildeo semacircntica loacutegica orgacircnica e funcional Satildeo
Paulo Discurso EditorialEditora Vozes 2001
SEXTO EMPIacuteRICO Against the professors Trad R G Bury Harvard Loeb 1949
SCHENKL H Epictetus dissertationiones ab Arriani digestae Stutgart Taubner 1965
52 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
SCHWEIGHAUSER Epicteteae philosophiae monumenta 3 vol Leipsig Weidmann
1800
XENOFONTE Cyropaedia vol I II Symposium Apology Trad Walter Miller Harvard
Loeb Classical Library 1914
_____ Memorabilia oeconomicus Symposium ApologyTrad E C Marchant O J
ToddHarvard Loeb Classical Library 1923
3
A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva
da Filosofia Analiacutetica da Mente
Taacuterik de Athayde Prata 1
Alguns Problemas a Respeito da Consciecircncia
Enquanto escrevo estas palavras estou consciente Isso significa que
estou desperto e assim capaz de interagir com meu ambiente imediato
atraveacutes de percepccedilotildees bem como de accedilotildees Sinto a temperatura desta sala
ao mesmo tempo em que vejo as letras surgindo na tela do computador
enquanto sinto a textura das teclas ao deslizar meus dedos sobre elas
Assim entendida minha consciecircncia eacute algo que diz respeito ao
funcionamento de meu organismo e dessa forma pertence a aqueles que
David Chalmers chamou de ldquoproblemas faacuteceisrdquo (easy problems) isto eacute
problemas que se referem a (i) funccedilotildees de modo que se precisa apenas
buscar o (ii) mecanismo que as desempenha (cf CHALMERS 1995 p
202) De acordo com ele ldquoPara uma explanaccedilatildeo do sono e da vigiacutelia seraacute
suficiente uma adequada explanaccedilatildeo neurofisioloacutegica dos processos
responsaacuteveis pelo comportamento contrastante do organismo nesses
estadosrdquo (CHALMERS 1995 p 201) E a diferenccedila entre sono e vigiacutelia eacute
constitutiva da consciecircncia como uma propriedade de um organismo
Mas se eu enquanto organismo posso ser qualificado como
ldquoconscienterdquo natildeo eacute difiacutecil perceber que haacute um uso plenamente legiacutetimo
desse adjetivo em relaccedilatildeo agrave minha vida psicoloacutegica em seus detalhes mais
1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
54 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
especiacuteficos ou seja em relaccedilatildeo a meus estados eventos e processos
mentais entidades psiacutequicas que podem tambeacutem ser conscientes Minhas
percepccedilotildees (da temperatura da sala das letras na tela da textura das
teclas) minhas intenccedilotildees (de digitar certas palavras de escrever um texto
para um evento acadecircmico) assim como meus pensamentos (p ex a
respeito do tema filosoacutefico da consciecircncia) ou minhas eventuais emoccedilotildees
(como a ansiedade de concluir o texto a tempo) tudo isso satildeo fenocircmenos
mentais que podem ou natildeo se tornar conscientes
Entra aqui em cena a distinccedilatildeo proposta por David Rosenthal entre
(a) consciecircncia de criatura (que seria um tema mais permeaacutevel agrave pesquisa
empiacuterica do funcionamento orgacircnico) e (b) consciecircncia de estado (que
seria um tema mais especiacutefico da investigaccedilatildeo filosoacutefica)2 Eacute interessante
notar que Rosenthal eacute um filoacutesofo que assume uma perspectiva anti-
cartesiana no sentido de recusar a ideia defendida pelo filoacutesofo francecircs
da consciecircncia como a essecircncia da mente3 Para ele natildeo haacute grande
dificuldade para se perceber que diversos estados mentais existem
desprovidos de consciecircncia por exemplo quando ldquosabemos sem que nos
seja dito o que outra pessoa estaacute pensando ou sentindo E algumas vezes
sabemos isso mesmo quando a pessoa na verdade natildeo estaacute ciente [aware]
pelo menos a princiacutepio de ter esses sentimentos e pensamentosrdquo
(ROSENTHAL 1986 p 329)
Uma visatildeo como essa segundo a qual os fenocircmenos mentais satildeo em
si mesmos inconscientes tem para Rosenthal a importante vantagem de
2 ldquoDois assuntos satildeo frequentemente confundidos nas discussotildees sobre a consciecircncia Uma questatildeo eacute o que eacute para um estado mental ser consciente Supondo que nem todos os estados mentais satildeo conscientes noacutes queremos saber como os estados conscientes se diferenciam daqueles que natildeo satildeo E ainda que todos os estados mentais fossem conscientes noacutes ainda perguntariacuteamos em que consiste a sua consciecircncia Denominamos essa a questatildeo da consciecircncia de estado Esse seraacute meu principal tema no texto que segue Mas noacutes natildeo descrevemos apenas estados mentais como sendo conscientes ou natildeo noacutes tambeacutem atribuiacutemos consciecircncia a criaturas Assim existe uma segunda questatildeo a questatildeo sobre o que eacute para uma pessoa ou outra criatura ser consciente ou seja como criaturas conscientes se diferenciam daquelas que natildeo satildeo conscientes Denominamos esta a questatildeo da consciecircncia de criaturardquo (ROSENTHAL 1997 p 729)
3 Descartes caracterizou o pensamento para ele a propriedade essencial do mental como ldquotudo quanto estaacute de tal modo em noacutes que somos imediatamente conscientes [consci]rdquo (DESCARTES 1979 p 169 [AT VII p 160 AT IX p 124]) E em conformidade a isso ele entendeu que ldquonenhum pensamento pode existir em noacutes do qual nos natildeo estejamos conscientes [fit conscia] no exato momento em que ele existe em noacutesrdquo (cf AT VII p 246 AT IX p 190) Os nuacutemeros romanos datildeo as referecircncias nos volumes em latim (volume VII) e em francecircs (volume IX) da ediccedilatildeo completa das obras de Descartes feita por Charles Adam e Paul Tannery (AT)
Taacuterik de Athayde Prata | 55
possibilitar uma explanaccedilatildeo informativa da consciecircncia como uma
propriedade de estados mentais pois se a consciecircncia jaacute caracteriza de
saiacuteda todos os fenocircmenos psiacutequicos como pensava Descartes ldquotoda
tentativa de explanar a consciecircncia formulando condiccedilotildees necessaacuterias e
suficientes para um estado mental ser consciente vatildeo fracassar
automaticamente Se a consciecircncia jaacute estaacute embutida na mentalidade toda
explanaccedilatildeo seraacute natildeo informativardquo (ROSENTHAL 1986 p 330) E eu
acrescentaria que essa perspectiva tem a vantagem adicional de ser
compatiacutevel com os incontaacuteveis e no meu entender muito convincentes
indiacutecios de que a maior parte de nossa vida mental ocorre
independentemente da consciecircncia (cf por exemplo SEARLE 1992 p
164 1997 p 236 2004 p 244-45)
Entretanto esse tipo de perspectiva sobre a consciecircncia que a
considera natildeo essencial para o psiacutequico natildeo foi aceita por importantes
filoacutesofos do seacuteculo passado entre os quais se encontra Jean-Paul Sartre
(1905-1980) um dos mais influentes intelectuais do seacuteculo XX que
produziu uma obra de enorme abrangecircncia se estendendo desde a
escritura em diversos gecircneros literaacuterios passando pela filosofia pelos
textos de cunho poliacutetico4 e que na juventude empreendeu
interessantiacutessimas reflexotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia e os
fundamentos da psicologia5 Em sua mais importante obra anterior a O
ser e o nada (1943) o livro O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da
imaginaccedilatildeo (1940) Sartre (1996 p 36) afirma sem reservas que ldquoa
existecircncia de um fenocircmeno psiacutequico e o sentido que ele tem para a
consciecircncia satildeo uma coisa soacuterdquo o que o leva admitir em nota de rodapeacute que
ldquoessas constataccedilotildees nos obrigam a rejeitar inteiramente a existecircncia de um
inconscienterdquo (SARTRE 1996 p 36 nota no 13)
4 Como afirma Annie Cohen-Solal (2007 p 16) a mais conhecida bioacutegrafa de Sartre ele ldquoabordou todos os domiacutenios da escrita (romance novela filosofia teatro cinema biografia autobiografia ensaio criacutetico reportagem jornaliacutestica canccedilatildeo entre outros)rdquo
5 Em uma entrevista concedida jaacute no final de sua vida Sartre declarou que no iniacutecio de sua carreira filosoacutefica ldquoo que eu chamava de lsquofilosofiarsquo era pura e simplesmente psicologiardquo (COHEN-SOLAL 1986 p 90)
56 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Apesar das diversas passagens de sua obra que atacam a ideia de
inconsciente6 existem inteacuterpretes que questionam se Sartre de fato estava
comprometido com a rejeiccedilatildeo a essa ideia (cf GENNARO 2002 p 299-301)
Mas o fato eacute que ela natildeo eacute (pelo menos agrave primeira vista) compatiacutevel com sua
perspectiva pois de acordo com ele quando a consciecircncia (de algo) e uma
autoconsciecircncia impliacutecita natildeo satildeo concebidas como unificadas somos
confrontados com graves problemas No meu entendimento Sartre parte da
constataccedilatildeo de que introduzir uma dualidade na consciecircncia a torna
incompreensiacutevel pois leva a teorias insustentaacuteveis Em termos sumaacuterios a
dualidade nos deixa diante de um dilema
Ou paramos em um termo qualquer da seacuterie conhecido ndash cognoscente
conhecido ndash cognoscente conhecido pelo cognoscente etc e entatildeo a totalidade
do fenocircmeno cai no desconhecido quer dizer esbarramos sempre com uma
reflexatildeo natildeo consciente de si como derradeiro termo ndash ou entatildeo afirmamos a
necessidade de regressatildeo ao infinito (idea ideae ideae etc) o que eacute absurdo
(SARTRE 1943 p 18-19 SARTRE 1997 p 23)
Se haacute uma dualidade entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a
autoconsciecircncia entatildeo ou (I) esta autoconsciecircncia eacute inconsciente ou (II) a
autoconsciecircncia exige (para se tornar consciente) uma outra consciecircncia a
respeito dela que por sua vez exige outra e assim ad infinitum dois
resultados que parecem insatisfatoacuterios ndash pois uma consciecircncia
inconsciente parece uma contradiccedilatildeo em termos7 e um regresso ao
6 Jaacute em A transcendecircncia do ego (1937) seu primeiro texto escrito sob a influecircncia husserliana ele escreveu ldquoSem mesmo se dar conta os teoacutericos do amor-proacuteprio supotildeem que o refletido eacute anterior original e dissimulado no inconsciente Eacute penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipoacutetese Mesmo se o inconsciente existisse o que nos faria acreditar ser ele o depositaacuterio de espontaneidades da forma refletida A definiccedilatildeo do refletido natildeo eacute a do que eacute colocado por uma consciecircnciardquo (SARTRE 1966 p 40-41 SARTRE 2010 p 198-99)
7 Eacute interessante notar que Franz Brentano um dos mais importantes pensadores da virada do seacuteculo XX (JACQUETTE 2004 p 1) autor que sem duacutevida atraveacutes de sua influecircncia sobre Husserl estaacute na raiz de muitas das concepccedilotildees de Sartre natildeo concordava com a visatildeo de que o inconsciente eacute uma noccedilatildeo contraditoacuteria apesar de Brentano ter sido um ferrenho opositor dessa noccedilatildeo Nas palavras de Brentano ldquoAlgumas pessoas iriam apenas balanccedilar a cabeccedila diante dessa questatildeo Supor uma consciecircncia inconsciente parece a elas absurdo Mesmo eminentes psicoacutelogos como por exemplo Locke e John Stuart Mill consideravam essa ideia uma contradiccedilatildeo direta Mas algueacutem que presta atenccedilatildeo agraves determinaccedilotildees feitas a seguir dificilmente iraacute julgar assim Esse algueacutem reconheceraacute que quem levanta a questatildeo sobre a existecircncia de uma consciecircncia inconsciente natildeo estaacute sendo ridiacuteculo como algueacutem que perguntasse se existe um vermelho natildeo vermelho Uma consciecircncia inconsciente eacute tatildeo pouco uma contraditio in adjecto quanto uma visatildeo natildeo vistardquo (BRENTANO 1924 p 143-4 [102-3])
Taacuterik de Athayde Prata | 57
infinito significa que a consciecircncia permanece natildeo explicada (aleacutem do fato
de que a proacutepria ideia de que haacute um regresso infinito parece insustentaacutevel
ndash de modo que a concepccedilatildeo comprometida com um regresso se mostra
absurda) Eacute interessante notar que essas dificuldades ndash (I) e (II) ndash satildeo
aplicaacuteveis ao tipo de teoria proposta por Rosenthal Ao conceber a
consciecircncia de um estado mental como decorrente do monitoramento
deste estado por um outro estado mental a respeito do primeiro
Rosenthal se expotildee ao perigo do regresso ao infinito e eacute para evitar esse
regresso que ele concebe o estado mental de ordem superior como
inconsciente o que evidentemente o leva a recair no primeiro termo do
dilema apontado por Sartre o pensamento que gera a consciecircncia do
estado mental de niacutevel inferior eacute ele proacuteprio inconsciente8
Devido a essas dificuldades Sartre conclui que ldquoConsciecircncia de si natildeo
eacute dualidade Se quisermos evitar regressatildeo ao infinito tem de ser relaccedilatildeo
imediata e natildeo cognitiva de si a sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24)
Exatamente por isso ele opta por colocar o ldquoderdquo da expressatildeo ldquoconsciecircncia
de sirdquo entre parecircnteses de modo a indicar que essa partiacutecula eacute empregada
por imposiccedilatildeo da gramaacutetica (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25) e natildeo
deve ser entendida como sugerindo uma dualidade entre a lsquoconsciecircnciarsquo e
o lsquosirsquo E a ideia da consciecircncia como uma relaccedilatildeo imediata a si mesma
constitui aquele que Kathleen Wider (1997 p 1) considera ser a alegaccedilatildeo
fundamental de Sartre sobre a consciecircncia a saber a alegaccedilatildeo de que
ldquotoda consciecircncia eacute por sua proacutepria natureza autoconsciecircnciardquo No ensaio
sobre A transcendecircncia do ego Sartre defendera que ldquoo tipo de existecircncia
da consciecircncia implica ser consciecircncia de si E ela toma consciecircncia de si
na exata medida em que eacute consciecircncia de um objeto transcendenterdquo
(SARTRE 1966 p 23-4 2010 p 188) Tomando o exemplo de uma
percepccedilatildeo ndash ou seja nos termos dele uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo ndash
Sartre afirma em O ser e o nada que a consciecircncia de si enquanto uma
8 A respeito da teoria de Rosenthal sobre a consciecircncia de estados mentais Uriah Kriegel afirma ldquoO estado de segunda ordem S2 em virtude do qual [o estado de primeira ordem] S1 eacute consciente eacute ele mesmo um estado inconsciente Assim o fato de que S2 representa o eu natildeo implica que por ter S2 o eu eacute consciente de si mesmo pois S2 natildeo eacute uma representaccedilatildeo consciente do eurdquo (KRIEGEL 2002 p 522-23) Cf tambeacutem Kriegel (2005 p 28)
58 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoconsciecircncia espontacircneardquo da percepccedilatildeo ldquoeacute constitutiva de minha
consciecircncia perceptivardquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24) e tomando o
exemplo da accedilatildeo de contar alguns cigarros afirma que ldquoa consciecircncia natildeo
teacutetica de contar eacute condiccedilatildeo mesma de minha atividade aditivardquo (SARTRE
1943 p 19 1997 p 24)
Mas se a assunccedilatildeo de uma dualidade na consciecircncia nos leva a um
dilema entre duas posiccedilotildees insustentaacuteveis a concepccedilatildeo por assim dizer
unitaacuteria da consciecircncia que a entende como uma unidade indissoluacutevel
entre uma (i) consciecircncia de algo e uma (ii) autoconsciecircncia natildeo estaacute livre
de suas proacuteprias dificuldades A concepccedilatildeo sartriana que vecirc essa
autoconsciecircncia como constitutiva ou como condiccedilatildeo de toda consciecircncia
intencional de objetos parece tornar a consciecircncia um fenocircmeno
misterioso inexplicaacutevel pois natildeo conseguimos formar uma noccedilatildeo clara de
qual seja a sua estrutura jaacute que ldquoa consciecircncia de si que caracteriza toda
consciecircncia de algo parece estar de algum modo misturada a esta
consciecircncia de algo de maneira que natildeo eacute nada faacutecil discerni-lasrdquo (PRATA
2017 p 460) e se essas noccedilotildees natildeo podem ser discernidas natildeo eacute possiacutevel
articular uma explicaccedilatildeo do que seja propriamente a consciecircncia
Consciecircncia Posicional e Consciecircncia Natildeo Posicional
Antes de examinar a dificuldade de explicar a consciecircncia tal como
concebida por Sartre eacute importante compreender uma distinccedilatildeo
importante proposta por ele a distinccedilatildeo entre (i) a consciecircncia posicional
ou teacutetica (cf SARTRE 1966 p 28 2010 p 191) por um lado e (ii) a
consciecircncia natildeo posicional (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou natildeo
teacutetica (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) por outro lado A consciecircncia
posicional eacute aquela que potildee um objeto de determinado modo Por exemplo
uma consciecircncia perceptiva potildee seu objeto como existente jaacute que a
percepccedilatildeo se articula enquanto apreensatildeo de algo que existe previamente
a ela ao passo que uma consciecircncia em imagem potildee seu objeto
(imaginado) de diferentes formas (p ex como ausente ou como
Taacuterik de Athayde Prata | 59
inexistente ndash cf SARTRE 1996 p 26) que pressupotildeem que a consciecircncia
eacute a criadora dessa imagem mental E eacute importante notar que o que cada
consciecircncia potildee eacute um objeto que portanto eacute concebido implicitamente
como algo que transcende a consciecircncia existindo para aleacutem de toda
consciecircncia que se possa ter dele9 Jaacute a consciecircncia natildeo posicional natildeo potildee
um objeto pois ela eacute um tipo especial de relaccedilatildeo que natildeo se volta para algo
contra-posto (ob-jectum) agrave consciecircncia mas eacute uma relaccedilatildeo desta
consciecircncia consigo mesma (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)
A respeito dessa distinccedilatildeo a importante inteacuterprete Kathleen Wider
entende que as duas formas de consciecircncia a posicional e a natildeo posicional
podem ser elucidadas em termos do foco da atenccedilatildeo do sujeito consciente
em cada caso enquanto a consciecircncia posicional implica em uma atenccedilatildeo
focada em um objeto (distinto da proacutepria consciecircncia) a consciecircncia natildeo
posicional apreende aquilo em que o sujeito natildeo concentra a sua atenccedilatildeo
Nas palavras de Wider (1997 p 41)
Por um lado qualquer coisa que cai no campo de ciecircncia [awareness] de
algueacutem e para a qual sua atenccedilatildeo estaacute direcionada eacute um objeto que eacute posto
pela consciecircncia Por isso Sartre chama a consciecircncia desse objeto de
consciecircncia teacutetica ou posicional Por outro lado algueacutem tem apenas uma
consciecircncia natildeo teacutetica ou natildeo posicional de qualquer coisa que cai em seu
campo de ciecircncia mas ao qual ele natildeo estaacute presentemente prestando atenccedilatildeo
Se percebo um objeto ou imagino uma paisagem posiciono essa
referecircncia transcendente agrave minha consciecircncia de determinada maneira ndash
como existente no caso da percepccedilatildeo ou como p ex existente em outro
lugar no caso da imaginaccedilatildeo ndash e minha atenccedilatildeo eacute absorvida por essa
referecircncia transcendente Mas ao mesmo tempo em que minha atenccedilatildeo se
absorve na coisa ndash percebida ou imaginada ndash eu apreendo implicitamente
minha proacutepria consciecircncia perceptiva ou imaginativa pois se percebo
apreendo implicitamente ndash na periferia da atenccedilatildeo ndash minha percepccedilatildeo
9 De acordo com Sartre haacute ldquoalgo de excessivo no mundo das lsquocoisasrsquo a cada instante haacute sempre infinitamente mais do queo que podemos ver para esgotar a riqueza de minha percepccedilatildeo atual seria necessaacuterio um tempo infinitordquo (SARTRE 1996 p 22)
60 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
como passiva ao passo que se imagino apreendo implicitamente minha
imaginaccedilatildeo como criadora (cf PRATA 2016 p 81-82) Essa apreensatildeo
impliacutecita pode ser transformada em uma consciecircncia posicional de
consciecircncia ndash uma consciecircncia posicional da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
Mas nesse caso estamos diante de uma reflexatildeo ou seja uma consciecircncia
reflexiva (cf abaixo)
A Opacidade da Consciecircncia na Teoria de Sartre
A avaliaccedilatildeo de que a teoria de Sartre natildeo eacute capaz de fornecer uma
explicaccedilatildeo da consciecircncia parece ser confirmada pela maneira como ele
em diversas passagens se refere ao fenocircmeno da consciecircncia atraveacutes de
metaacuteforas o que de fato sugere que ele natildeo dispunha de conceitos claros
sobre a estrutura da consciecircncia Penso que a necessidade do uso de
metaacuteforas surge de uma estrutura conceitual obscura como encontramos
em determinada passagem de O ser e o nada na qual apoacutes afirmar a
autoconsciecircncia ldquonatildeo teacuteticardquo10 como constitutiva de todo ato mental (como
uma operaccedilatildeo de contar) nega que isso implique um ciacuterculo vicioso mas
se exprime em termos relativamente nebulosos
Contudo natildeo haacute esse ciacuterculo vicioso ou se preferirmos eacute da proacutepria natureza
da consciecircncia existir ldquoem ciacuterculordquo O que se pode exprimir assim toda existecircncia
consciente existe como consciecircncia de existir Compreendemos agora porque a
consciecircncia primeira de consciecircncia natildeo eacute posicional eacute uma soacute com [un avec] a
consciecircncia da qual eacute consciecircncia (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)
A autoconsciecircncia eacute una com a consciecircncia de algo a respeito da qual
ela eacute e justamente essa unidade parece tornar o fenocircmeno opaco a uma
explicaccedilatildeo conceitual E logo em seguida ele se exprime em termos que
tornam essa opacidade ainda mais flagrante Nas palavras de Sartre
10 Conforme discutido acima uma consciecircncia ldquonatildeo-teacuteticardquo (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) equivale a uma consciecircncia ldquonatildeo-posicionalrdquo (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou seja trata-se de uma consciecircncia que natildeo potildee seu objeto como algo distinto de si mesma (cf SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)
Taacuterik de Athayde Prata | 61
Natildeo haacute antes uma consciecircncia que recebesse depois [grifado no original] a
afecccedilatildeo ldquoprazerrdquo tal como se colore a aacutegua ndash do mesmo modo como natildeo haacute
antes um prazer (inconsciente ou psicoloacutegico) que recebesse depois a
qualidade de consciente como um feixe de luz Haacute um ser indivisiacutevel
indissoluacutevel [grifo meu] ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas
qualidades como seres menores mas um ser que eacute existecircncia de ponta a ponta
(SARTRE 1943 p 21 1997 p 26)
Aqui ele rejeita a ideia de que a relaccedilatildeo entre a (i) consciecircncia de algo
e a (ii) autoconsciecircncia seja comparaacutevel agrave relaccedilatildeo entre um sujeito e seu
predicado fazendo dela um ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo cuja
compreensatildeo se torna muito difiacutecil Desse modo natildeo parece restar
alternativa para Sartre aleacutem de recorrer a metaacuteforas para exprimir esse
modo de existecircncia peculiar da consciecircncia como quando ele afirma que a
autoconsciecircncia
Natildeo deve ser considerada uma nova consciecircncia mas o uacutenico modo de
existecircncia possiacutevel para uma consciecircncia de alguma coisa Assim como um
objeto extenso estaacute obrigado a existir segundo as trecircs dimensotildees tambeacutem uma
intenccedilatildeo um prazer uma dor natildeo poderiam existir exceto como consciecircncia
imediata de si mesmos (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25 grifado no original)
Neste trecho o modo de existecircncia da consciecircncia (enquanto
essencialmente marcada por uma autoconsciecircncia) eacute simplesmente
comparado a um fato bruto a saber o de que objetos espaciais
necessariamente existem nas trecircs dimensotildees E jaacute anos antes no ensaio
sobre A transcendecircncia do ego ele se expressara em termos semelhantes
ao dizer que o fato de a consciecircncia irrefletida ser consciecircncia de ser
consciecircncia de um objeto eacute ldquoa lei de sua existecircnciardquo (SARTRE 1966 p 24
2010 p 188-89 grifo meu)
Vejamos agora de modo mais detalhado a maneira como Sartre
concebe a consciecircncia atraveacutes de uma segunda distinccedilatildeo fundamental a
distinccedilatildeo entre (arsquo) consciecircncia irrefletida tida por ele como a forma
fundamental e (brsquo) consciecircncia reflexiva tida por ele como derivada
62 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Consciecircncia Irrefletida e Consciecircncia Reflexiva
Para articular adequadamente a relaccedilatildeo entre a consciecircncia e o eu no
esforccedilo de negar a noccedilatildeo husserliana de um eu transcendental Sartre
desenvolveu uma distinccedilatildeo entre (arsquo) a consciecircncia irrefletida (irreacutefleacutechie)
a forma mais fundamental originaacuteria e (brsquo) a consciecircncia reflexiva
(reacuteflexive) derivada da primeira na qual o fenocircmeno do ldquoeurdquo teria sua
origem (cf SARTRE 1966 p 37 2010 p 196) Na consciecircncia reflexiva
temos duas manifestaccedilotildees de consciecircncia11 a consciecircncia reflexionante
(reacutefleacutechissante) e a consciecircncia refletida (reacutefleacutechie) onde uma se debruccedila
sobre a outra colocando esta uacuteltima como seu objeto Entretanto essa
forma de consciecircncia (cindida entre duas manifestaccedilotildees) natildeo poderia ser
a forma mais fundamental pois a consciecircncia reflexionante que faz da
consciecircncia refletida um objeto jaacute eacute uma consciecircncia (mesmo quando essa
consciecircncia reflexionante natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo ulterior o que eacute
sempre possiacutevel ndash cf SARTRE 1966 p 29 2010 p 191) Portanto deve
haver algo nela (assim como tambeacutem nas manifestaccedilotildees de consciecircncia
voltadas para objetos exteriores) que jaacute a torne consciecircncia
Isso leva Sartre a articular sua concepccedilatildeo a respeito da consciecircncia
irrefletida a consciecircncia que natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo que se investe
completamente no visar um objeto para aleacutem dela proacutepria e eacute nesse
contexto que surge a tese basilar da teoria de Sartre a respeito da
consciecircncia (cf WIDER 1997 p 1) que podemos designar como a tese da
autoreferencialidade da consciecircncia irrefletida que pode ser formulada
nos seguintes termos ldquotoda consciecircncia posicional do objeto eacute ao mesmo
tempo consciecircncia natildeo posicional de sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p
24)12 Eacute exatamente por isso que a consciecircncia irrefletida eacute por si mesma
consciecircncia independentemente da reflexatildeo pois a consciecircncia irrefletida
11 Temos aqui um uso de ldquoconsciecircnciardquo que se refere a cada episoacutedio particular de vivecircncia consciente (cf SARTRE 1996 p 13) isto eacute nesse sentido cada episoacutedio de percepccedilatildeo cada episoacutedio de imagem mental cada episoacutedio de emoccedilatildeo eacute uma consciecircncia Esse uso eacute diferente de um outro aceito por sartre um uso mais globalizante no qual ldquoconsciecircnciardquo se refere agrave ldquomocircnada e o conjunto de suas estruturas psiacutequicasrdquo (SARTRE 1996 p 13)
12 Sartre caracteriza a noccedilatildeo de ldquoposicionalrdquo nos seguintes termos ldquoToda consciecircncia eacute posicional na medida em que se transcende para alcanccedilar um objeto e ela esgota-se nessa posiccedilatildeo [position] mesmardquo (SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)
Taacuterik de Athayde Prata | 63
(na medida em que eacute intencional) eacute uma relaccedilatildeo com um objeto
transcendente a ela que eacute simultaneamente uma relaccedilatildeo a si mesma
Para que se possa construir uma compreensatildeo teoacuterica adequada dessa
autoconsciecircncia preacute-reflexiva tal como concebida por Sartre eacute necessaacuterio no
meu modo de entender um modelo no qual os elementos constituintes dessa
autoconsciecircncia possam ser conceitualmente discernidos ao mesmo tempo
em que a sua unidade por assim dizer orgacircnica se mostre de maneira
inteligiacutevel Seguindo uma indicaccedilatildeo do professor Andreacute Leclerc13 me
proponho a investigar o modelo integrativo da consciecircncia articulado por
Uriah Kriegel para verificar se ele pode servir como um modelo adequado
para se compreender a teoria sartriana da consciecircncia (de) si
O Modelo Integrativo de Kriegel
Kriegel articula o seu modelo integrativo na tentativa de naturalizar
aquilo que ele denomina de ldquocaraacuteter subjetivordquo da experiecircncia consciente
visto por ele como um aspecto constituinte daquilo que ele chama de
ldquocaraacuteter fenomenalrdquo dessa experiecircncia Esse caraacuteter fenomenal pensado por
Kriegel corresponde a aquilo que Thomas Nagel (1974 p 436 2005 p 247)
chamou de subjetividade a saber lsquoo modo como eacute vivenciar um estado
mental x para a criatura que o vivenciarsquo Kriegel propotildee analisar esse caraacuteter
fenomenal em dois aspectos constituintes (a) o modo como eacute vivenciar o
estado mental x ndash que ele denomina caraacuteter qualitativo ndash e (b) o fato desse
modo se doar ao sujeito que vivencia esse estado mental ndash que Kriegel
denomina o caraacuteter subjetivo desse estado Na visatildeo de Kriegel (2005 p 24)
ldquoo caraacuteter qualitativo de uma experiecircncia consciente determina qual
experiecircncia consciente ela eacute mas eacute o caraacuteter subjetivo da experiecircncia que
determina se ela eacute de algum modo [at all] uma experiecircncia conscienterdquo
E eacute importante perceber que esse caraacuteter subjetivo se encontra em
uma relaccedilatildeo essencial com o conceito de ciecircncia [awareness] pois na exata
13 Aproveito para agradecer por essa observaccedilatildeo que o professor fez no debate de uma apresentaccedilatildeo que fiz sobre a teoria de Sartre no IX Encontro Interinstitucional de Filosofia em 2015 no Recife
64 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
medida em que uma experiecircncia se doa ndash ou se manifesta ndash ao sujeito
consciente este sujeito tem que estar ciente [aware] dessa experiecircncia (cf
KRIEGEL 2005 p 25)14 Mas Kriegel enfatiza que o modo como o sujeito
estaacute ciente de suas proacuteprias experiecircncias eacute bastante peculiar pois essa
ciecircncia normalmente natildeo estaacute focada na proacutepria experiecircncia mas sim
nos objetos ou estados de coisas extra-psiacutequicos que satildeo o tema dessa
experiecircncia Sendo assim ele se vecirc levado a introduzir uma distinccedilatildeo entre
(I) estar ciente de algo de modo focado e (II) estar ciente disso de modo
perifeacuterico15 A ideia baacutesica eacute do mesmo modo que em uma percepccedilatildeo
visual estamos cientes de maneira focada do objeto que estaacute no centro do
campo visual e estamos cientes de maneira perifeacuterica dos objetos que se
afastam desse centro no que diz respeito agraves nossas proacuteprias experiecircncias
estamos normalmente16 cientes delas de modo perifeacuterico ao mesmo
tempo em que temos uma ciecircncia focada dos objetos extra-psiacutequicos
dessas experiecircncias Como esclarece Kriegel (2005 p 26)
Minha sugestatildeo eacute que nossa ciecircncia de nossas experiecircncias conscientes eacute
normalmente uma forma de tal ciecircncia perifeacuterica natildeo-perceptiva Experiecircncias
conscientes exibem caraacuteter subjetivo em virtude do fato de que sempre que
temos uma experiecircncia consciente noacutes estamos perifericamente cientes de tecirc-la
Ele entende que o problema do caraacuteter subjetivo ldquoeacute o problema de
compreender como um estado mental pode incluir em si uma ciecircncia de si
proacutepriordquo (KRIEGEL 2005 p 30) E para explicar isso ele propotildee um
modelo teoacuterico baseado na integraccedilatildeo de informaccedilotildees que por essa razatildeo
eu denomino um modelo ldquointegrativordquo Para Kriegel a inclusatildeo de uma
ciecircncia de si mesmo no interior do proacuteprio estado mental consciente pode
14 Em um texto bastante conhecido no debate sobre a consciecircncia David Woodruff Smith (1986 p 149) escreveu ldquoum estado mental eacute consciente se o sujeito desse estado estaacute ciente [aware] de sua ocorrecircnciardquo
15Natildeo eacute difiacutecil perceber que essa maneira como Kriegel procura esclarecer o caraacuteter impliacutecito da ciecircncia que temos de nossas experiecircncias coincide com a maneira como Kathleen Wider (1997 p 41) interpreta a distinccedilatildeo sartriana entre consciecircncia posicional e natildeo posicional discutida na seccedilatildeo 2 acima
16A exceccedilatildeo satildeo os casos de reflexatildeo ndash no dizer de Sartre (1966 p 27-28 2010 p 190-91) ndash ou introspecccedilatildeo ndash no dizer de Rosenthal (1986 p 336-37 1997 p 730) caso que satildeo menos comuns do que os de consciecircncia natildeo reflexiva (cf KRIEGEL 2002 p 518 2003 p 105)
Taacuterik de Athayde Prata | 65
ser explicada atraveacutes da presenccedila de um tipo peculiar de conteuacutedo no
estado consciente conteuacutedo que conecta (a) a ciecircncia de um objeto ndash ou
estado de coisas ndash externo agrave mente com (b) a ciecircncia do proacuteprio estado
mental que se direciona a aquele objeto ndash ou estado de coisas ndash tornando-
se entatildeo necessaacuterio explicar como esse conteuacutedo eacute produzido E eacute aiacute que
entra em cena o modelo integrativo Nas palavras de Kriegel (2005 p 46)
A abordagem que pretendo introduzir sugere que esse tipo de conteuacutedo
representacional pode ser produzido simplesmente atraveacutes da integraccedilatildeo da
informaccedilatildeo carregada por o que eram inicialmente estados mentais separados
Quando os conteuacutedos desses estados mentais separados satildeo apropriadamente
integrados surge um (uacutenico) estado mental que possui exatamente o tipo
correto de conteuacutedo representacional
Apoacutes essa sinteacutetica exposiccedilatildeo do modelo de Kriegel somos obrigados
por motivos de espaccedilo a passar diretamente a uma discussatildeo da teoria de
Sartre
Consideraccedilotildees Finais
Se a visatildeo cartesiana da consciecircncia como a essecircncia da mente sofreu
fortes contestaccedilotildees ao longo do seacuteculo XX vimos que a perspectiva
sartriana ndash influenciada por Descartes ndash da autoconsciecircncia (impliacutecita)
como constitutiva de todo estado intencional parece inviabilizar uma
compreensatildeo teoacuterica adequada da consciecircncia Sartre defende uma
unidade essencial entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a autoconsciecircncia
porque a separaccedilatildeo desses elementos levaria a um dilema entre (I) uma
autoconsciecircncia inconsciente e (II) um regresso ao infinito (cf SARTRE
1943 p 18-19 1997 p 23 cf KRIEGEL 2005 p 28) Entretanto essa
visatildeo unitaacuteria tambeacutem eacute problemaacutetica pois torna a consciecircncia algo
inexplicaacutevel deixando a Sartre apenas a opccedilatildeo de recorrer a metaacuteforas ndash
como a do ldquociacuterculordquo e a das ldquotrecircs dimensotildeesrdquo (cf SARTRE 1943 p 20
1997 p 25) ou ainda a da ldquolei de existecircnciardquo (cf SARTRE 1966 p 24
2010 p 188-89) ndash ou entatildeo recorrer a conceitos obscuros ndash como o de um
66 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo (cf SARTRE 1943 p 21 1997 p 26) ndash para
tentar exprimir o que a consciecircncia eacute
Em outras palavras natildeo resta duacutevida de que o terreno em que esse
debate sobre a consciecircncia eacute travado eacute extremamente movediccedilo pois a
exposiccedilatildeo feita acima mostrou que se a visatildeo da consciecircncia como
essencialmente conectada a uma autoconsciecircncia eacute obscura a visatildeo que
separa a consciecircncia de algo da autoconsciecircncia tambeacutem natildeo funciona
pois recai no dilema acima mencionado ndash entre (I) e (II) Eacute aqui que o
modelo de Kriegel se mostra promissor pois a ideia de uma efetiva
integraccedilatildeo de estados mentais que existiam originalmente separados por
um lado nos fornece a distinccedilatildeo entre conceitos ndash o conceito da (i) ciecircncia
[awareness] do objeto por um lado e o conceito da (ii) ciecircncia do proacuteprio
estado mental por outro lado ndash que possibilita a articulaccedilatildeo de uma
explanaccedilatildeo propriamente dita jaacute que a unidade proposta por Sartre
concebida de uma maneira natildeo predicativa17 como vimos parece
inviabilizar qualquer explanaccedilatildeo conceitual E por outro lado a ideia da
integraccedilatildeo real de estados mentais (originalmente distintos) nos fornece
uma unidade diferente daquela que encontramos nos escritos do filoacutesofo
francecircs pois aleacutem de evitar o regresso ao infinito (como faz a unidade
misteriosa de Sartre) ela permanece permeaacutevel a uma explanaccedilatildeo
conceitual tornando-se assim uma opccedilatildeo mais atraente no cenaacuterio das
elaboraccedilotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia
Referecircncias
ADAM Ch TANNERY P (Orgs) Ouvres de Descartes ndash Meditationes de prima
philosophia Paris Vrin 1996 (Vol VII)
_____ Ouvres de Descartes ndash Meacuteditations et priacutencipes (traduction franccedilaise) Paris Vrin
1996 (Vol IX)
17 ldquoHaacute um ser indivisiacutevel indissoluacutevel ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas qualidades como seres menoresrdquo (SARTRE 1943 p 21 1997 p 26 grifos meus) Temos aqui uma terminologia ontoloacutegica que pressupotildee o discurso sujeito-predicado (cf IMAGUIRE 2007 p 274)
Taacuterik de Athayde Prata | 67
BRENTANO F Psychologie vom empirischen Standpunkt 2a ediccedilatildeo Leipzig Felix
Meiner 1924
_____ Psychology from an empirical standpoint London Routledge amp Kegan Paul 1995
CHALMERS D Facing Up To The Problem of Consciousness Journal of Consciousness
Studies vol 2 no 3 p 200-219 1995
COHEN-SOLAL A Sartre ndash 1905-1980 Porto Alegre Satildeo Paulo LPM Editores 1986
_____ Sartre Porto Alegre LampPM 2007
DESCARTES R Discurso do meacutetodo Meditaccedilotildees Objeccedilotildees e Respostas As Paixotildees
da Alma Cartas 2ordf ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1979
GENNARO R J Jean-Paul Sartre and the HOT Theory of Consciousness Canadian
Journal of Philosophy vol 32 no 3 p 293-330 setember 2002
IMAGUIRE G A substacircncia e suas alternativas feixes e tropos In Imaguire G Almeida
C L S Oliveira M A (Orgs) Metafiacutesica contemporacircnea Petroacutepolis Vozes p
271-289 2007
JACQUETTE D Introduction Brentanorsquos Philosophy In Jacquette D (Org) The
Cambridge companion to Brentano Cambridge Cambridge University Press p
1-19 2004
KRIEGEL U Consciousness permanent self-Awareness and higher order monitoring
Dialogue 41 p 517-40 2002
_____ Consciousness as intransitive self-consciousness two views and an argument
Canadian Journal of Philosophy vol 33 no 1 p 103-32 2003
_____ Naturalizing subjective character Philosophy and Phenomenological Research
vol LXXXI no 1 p 23-57 2005
NAGEL T What is it like to be a bat The Philosophical Review vol 83 no 4 p 435-50 1974
_____ Como eacute ser um morcego Cadernos de Histoacuteria e de Filosofia da Ciecircncia seacuterie
3 vol 15 no 1 p 245-62 2005
68 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
PRATA T A Consciecircncia e auto-relaccedilatildeo na primeira filosofia de Sartre em exame a partir
de um debate contemporacircneo a respeito da consciecircncia Aacutegora Filosoacutefica ano 16 n
2 p 76-92 2016
_____ A concepccedilatildeo sartriana da consciecircncia na perspectiva da filosofia analiacutetica da mente In
Oliveira Eacute A M Costa M R N Benvinda N M (Orgs) Liberdade loacutegica e accedilatildeo
homenagem ao Prof Dr Juan Adolfo Bonaccini Recife Editora UFPE p 455-68 2017
ROSENTHAL D Two concepts of consciousness Philosophical Studies 49 p 329-359 1986
_____ A theory of consciousness In Block N Flanagan O Guumlzeldere G (Orgs) The
nature of consciousness philosophical debates Cambridge (Massachusetts) MIT
Press p 729-753 1997
Sartre J-P Lrsquoecirctre et le neaacutent essai drsquoontologie pheacutenomeacutenologique Paris Gallimard 1943
_____ La transcendece de lrsquoego ndash esquisse drsquoune description pheacutenomeacutenologique Paris
Vrin 1966
_____ O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da imaginaccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica
1996
_____ O ser e o nada ensaio de ontologia fenomenoloacutegica Petroacutepolis Vozes 1997
_____ A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica In Cadernos
Espinosanos XXII p 183-228 2010
SEARLE J R The rediscovery of the mind Cambridge Mass London MIT Press 1992
_____ A redescoberta da mente Satildeo Paulo Martins Fontes 1997
_____ Mind a brief introduction Oxford Oxford University Press 2004
SMITH D W The structure of (self-)consciousness Topoi n 5 p 149-56 1986
WIDER K The bodily nature of consciousness Sartre and contemporary philosophy of
mind Ithaca Cornell University Press 1997
4
A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico
A Criacutetica de John Searle agraves Principais Correntes
da Filosofia da Mente
Maxwell Morais de Lima Filho 1
Parece muito doce aquela cana
Descasco-a provo-a chupo-ahellip ilusatildeo treda
Augusto dos Anjos
Para Searle (2006 p 7-9) nem eacute verdade que o problema mente-
corpo seja insoluacutevel nem que seja necessaacuterio um projeto de naturalizaccedilatildeo
para atacaacute-lo pois basta reconhecermos que os fenocircmenos mentais satildeo
caracteriacutesticas de niacutevel superior causadas e realizadas no sistema nervoso
para resolvecirc-lo2
O famoso problema mente-corpo fonte de tanta controveacutersia ao longo dos
dois uacuteltimos milecircnios tem uma soluccedilatildeo simples [] Aqui estaacute ela os
fenocircmenos mentais satildeo causados por processos neurofisioloacutegicos no ceacuterebro
e satildeo eles proacuteprios caracteriacutesticas do ceacuterebro
[]
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) e Professor do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
2 Em Intencionalidade Searle (1995 p 21-2) critica tanto os dualistas quanto os fisicalistas por tentarem resolver um problema que sequer existe ldquoOs dualistas que percebem corretamente o papel causal do mental consideram que precisamente por esta razatildeo devem postular uma categoria ontoloacutegica separada Muitos fisicalistas que percebem corretamente que tudo o que temos no cracircnio eacute um ceacuterebro acham que por esta razatildeo devem negar a eficaacutecia causal dos aspectos mentais do ceacuterebro ou mesmo a existecircncia desses aspectos mentais irredutiacuteveis Acredito que ambas as visotildees estejam equivocadas Ambas tentam resolver o problema mente-corpo quando a abordagem correta eacute perceber que tal problema natildeo existe O lsquoproblema mente-corporsquo natildeo eacute um problema mais real que o do lsquoestocircmago-digestatildeorsquordquo
70 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo eacute
espantosamente difiacutecil talvez completamente insoluacutevel Os materialistas
concordam que se a intencionalidade e a consciecircncia realmente existem e satildeo
irredutiacuteveis a fenocircmenos fiacutesicos entatildeo de fato haveria um difiacutecil problema
mente-corpo mas eles pretendem ldquonaturalizarrdquo a intencionalidade e talvez
tambeacutem a consciecircncia Por ldquonaturalizaccedilatildeordquo de fenocircmenos mentais eles
entendem a sua reduccedilatildeo a fenocircmenos fiacutesicos
Perpassando as incontaacuteveis divergecircncias teoacutericas entre dualistas e
fisicalistas se encontra um liame terminoloacutegico herdado de Descartes que
contrapotildee o fiacutesico ao mental essa distinccedilatildeo substancial do mundo por sua
vez teria sido uacutetil para superar o aparente conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia
no seacuteculo XVII Sendo assim os assuntos concernentes agrave alma e agrave moral
humanas seriam tratados exclusivamente pela Religiatildeo enquanto os
cientistas se debruccedilariam sobre os mais diversos fenocircmenos naturais ndash
fiacutesicos quiacutemicos bioloacutegicos etc Em realidade natildeo houve uma completa
superaccedilatildeo do conflito como o proacuteprio Searle adverte (2010c) haja vista
que Galileu se retratou perante a Igreja e Descartes se mudou para a mais
tolerante Holanda Interessante notarmos que o filoacutesofo britacircnico Gilbert
Ryle tambeacutem menciona os pensadores italiano e francecircs na origem do erro
categorial presente na doutrina do fantasma na maacutequina Poreacutem no que
se refere ao conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia Ryle (1970 p 18-9) o
restringe agrave esfera pessoal de Descartes que aceitou o mecanicismo
galilaico somente na esfera corpoacuterea
[Q]uando Galileu mostrou que os seus meacutetodos de descoberta cientiacutefica eram
capazes de estabelecer uma teoria mecacircnica que abrangeria todos os
ocupantes do espaccedilo Descartes encontrou em si proacuteprio duas razotildees em
conflito Como homem de gecircnio cientiacutefico natildeo tinha outro remeacutedio senatildeo
sancionar as descobertas da mecacircnica ao passo que como homem religioso e
moral natildeo poderia aceitar como Hobbes aceitou os desencorajantes
corolaacuterios dessas descobertas ou seja que a natureza humana difere apenas
em grau de complexidade do mecanismo de um reloacutegio O mental natildeo poderia
ser uma variedade do mecacircnico
Maxwell Morais de Lima Filho | 71
Eacute justamente contra essa visatildeo que o autor drsquoA Redescoberta da
Mente defende que o passo que devemos dar antes mesmo de iniciar a
investigaccedilatildeo eacute abandonar o dualismo conceitual que estaacute presente nas
concepccedilotildees mais diacutespares do espectro da Filosofia da Mente o dualismo
de substacircncia o dualismo de propriedade o materialismo o monismo o
behaviorismo a teoria da identidade o funcionalismo e a inteligecircncia
artificial forte Se largarmos o dualismo conceitual dissolveremos o falso
dilema que nos faz acreditar que ou defendemos uma concepccedilatildeo dualista
ou uma fisicalista como ostenta Searle (2002a p 15) nesta passagem
Os filoacutesofos analiacuteticos juntamente com o restante da tradiccedilatildeo cartesiana
assumiram de modo caracteriacutestico que ldquomentalrdquo implica ldquonatildeo-materialrdquo ou
ldquoimaterialrdquo e que ldquomaterialrdquo ou ldquofiacutesicordquo implica ldquonatildeo mentalrdquo No entanto
quando se reflete sobre o modo como o ceacuterebro opera tem-se a impressatildeo de
que ambos os pressupostos satildeo obviamente falsos
Feitas essas ressalvas exporemos as criacuteticas que Searle tece agraves
principais correntes da Filosofia da Mente comeccedilando pelo dualismo de
substacircncia Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia rastreamos versotildees dessa
concepccedilatildeo sendo defendidas por pensadores desde a Greacutecia Antiga sendo
Platatildeo o mais insigne entre eles Tambeacutem registramos brevemente que o
dualismo de substacircncia se configurou como uma posiccedilatildeo-padratildeo tanto na
Patriacutestica como na Escolaacutestica e foi defendido por eruditos do porte de
Agostinho e de Tomaacutes de Aquino Em que pesem todos esses antecedentes
a versatildeo do dualismo de substacircncia que eacute levada em consideraccedilatildeo pela
maioria dos filoacutesofos da mente eacute aquela consumada na obra de Reneacute
Descartes Em resumo o filoacutesofo francecircs propunha uma cisatildeo entre o
domiacutenio fiacutesico res extensa (substacircncia material ou fiacutesica) e o domiacutenio
mental res cogitans3 (alma mente ou substacircncia mental) Para
fundamentar a dualidade ontoloacutegica o filoacutesofo francecircs parte do princiacutepio
de distinccedilatildeo para afianccedilar a possibilidade de concebermos claramente que
3 Cottingham (1999 p 26) nos adverte para natildeo nos desencaminharmos pelo significado religioso ou espiritual que foi imputado ao termo ldquoalmardquo tendo em conta que Descartes utiliza os vocaacutebulos ldquolrsquoacircme (ldquoalmardquo) e lrsquoesprit (ldquomenterdquo) mais ou menos indiferentemente simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente []rdquo
72 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
a discriminaccedilatildeo e a independecircncia entre corpo e alma decorrem do fato de
eles assim terem sido produzidos por Deus Mas afinal de contas em que
reside a diferenccedila fundamental entre esses dois domiacutenios ontoloacutegicos
Descartes (1996 p 326) responde a esse questionamento afirmando que
a caracteriacutestica crucial dos corpos eacute a extensatildeo e a da alma o pensamento
E embora [] eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente
conjugado todavia jaacute que de um lado tenho uma ideacuteia clara e distinta de mim
mesmo na medida em que sou apenas uma coisa pensante [res cogitans] e
inextensa e que de outro tenho uma ideacuteia distinta do corpo na medida em
que eacute apenas uma coisa extensa [res extensa] e que natildeo pensa eacute certo que este
eu isto eacute minha alma pela qual eu sou o que sou eacute inteira e verdadeiramente
distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele [independecircncia
entre alma e corpo]
Seguindo o raciociacutenio cartesiano ao examinar o meu corpo (ou outro
qualquer como uma mesa por exemplo) constatariacuteamos que ele tem uma
extensatildeo e a partir disso posso falar algo como ldquomeccedilo 174 mrdquo
Conquanto natildeo faria sentido algum aferirmos ao peacute da letra o
comprimento da minha crenccedila na democracia Logo haacute uma diferenciaccedilatildeo
ontoloacutegica entre o meu corpo (coisa fiacutesicasubstacircncia extensa) e a minha
mente (coisa natildeo fiacutesicasubstacircncia pensante) a coisa extensa eacute natildeo
pensante e a coisa pensante eacute natildeo extensa Decorre diretamente dessa
distinccedilatildeo a irredutibilidade e a independecircncia do mental em relaccedilatildeo ao
fiacutesico e entre outras coisas isso significa que natildeo haacute nenhum
impedimento para a persistecircncia de minha alma apoacutes a morte do meu
corpo Para Descartes (2004 p 227)
o corpo humano na medida em que difere dos outros corpos eacute constituiacutedo
por certa configuraccedilatildeo de membros e de outros acidentes desse modo ao
passo que a mente humana natildeo eacute constituiacuteda dessa maneira a partir de
acidentes nenhuns mas eacute pura substacircncia Pois embora todos os seus
acidentes se modifiquem ndash ela entende umas coisas quer outras sente outras
etc ndash nem por isso a proacutepria mente torna-se uma outra Ao passo que o corpo
humano torna-se outro em virtude apenas de que se modifique a figura de
qualquer uma de suas partes Disto se segue que tal corpo morre muito
Maxwell Morais de Lima Filho | 73
facilmente enquanto a mente ou a alma do homem (o que natildeo distingo) eacute
imortal por sua natureza
Jaacute em sua eacutepoca o filoacutesofo francecircs foi criticado por defender a
interaccedilatildeo entre esses dois tipos totalmente diferentes de substacircncia porque
restou inexplicado como algo fiacutesico causaria algo mental e inversamente
como o mental atuaria sobre o fiacutesico Na tentativa de resguardar seu
posicionamento interacionista ele recorreu agrave glacircndula pineal e aos
espiacuteritos animais resguardando agravequela a sede da alma e conferindo a estes
uacuteltimos a funccedilatildeo comunicativa entre as duas substacircncias Todavia
Descartes (1996 p 328-9) nos alerta para natildeo olvidarmos que o contraste
metafiacutesico entre espiacuterito e mateacuteria natildeo impede a sua iacutentima conjunccedilatildeo
como uma totalidade coerente
A natureza me ensina tambeacutem por esses sentimentos de dor fome sede etc
que natildeo somente estou alojado em meu corpo como um piloto em seu navio
mas que aleacutem disso lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo
confundido e misturado que componho com ele um uacutenico todo
Para Cottingham (1989) seria incorreto enquadrar a posiccedilatildeo de
Descartes como um dualismo pois existem atributos humanos que natildeo se
encaixariam nem como modos de extensatildeo nem como modos de
pensamento haja vista que seriam o resultado da uniatildeo de ambos Sendo
assim como os fenocircmenos psicofiacutesicos natildeo se identificariam nem aos
fenocircmenos fiacutesicos (res extensa) nem aos mentais (res cogitans)
estariacuteamos diante de um ldquotrialismo cartesianordquo Para justificar sua linha
de raciociacutenio Cottingham (1989 p 172) menciona uma carta que
Descartes enviou agrave rainha Elizabeth em 1643 na qual o filoacutesofo francecircs
reconhece a existecircncia de ldquotrecircs categorias ou noccedilotildees primitivasrdquo a forma
e o movimento se relacionam agrave extensatildeo a compreensatildeo e a vontade ao
pensamento e as sensaccedilotildees e paixotildees agrave uniatildeo entre o corpo e a alma
Independentemente de qual leitura exegeacutetica prevaleccedila ndash dualismo ou
trialismo ndash o ponto eacute que os expedientes da glacircndula pineal e dos espiacuteritos
animais utilizados por Descartes estatildeo longe de serem satisfatoacuterios Por um
74 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
lado eacute incoerente delimitar a alma na glacircndula pineal porque a res cogitans
eacute uma substacircncia natildeo extensa e portanto sem localizaccedilatildeo espacial por
outro ainda que se considere que os espiacuteritos animais sejam constituiacutedos de
uma substacircncia fiacutesica bastante delicada permanece aberta a questatildeo
original como os espiacuteritos animais que possuem massa e satildeo espacialmente
situados satildeo capazes de interatuar com uma substacircncia imaterial Natildeo
obstante as criacuteticas direcionadas ao dualismo de substacircncia ao longo dos
seacuteculos e o fato de ele ser minoritaacuterio no ambiente acadecircmico atual natildeo
devemos esquecer que essa concepccedilatildeo estaacute intimamente afinada tanto com
o senso comum quanto com o pensamento religioso pois a maioria das
Religiotildees ndash se natildeo todas ndash defende uma separaccedilatildeo entre a alma e o corpo
Para o autor drsquoA Redescoberta da Mente no entanto essa corrente seria
inconciliaacutevel com o arcabouccedilo conceitual proveniente das Ciecircncias da
Natureza segundo o qual as caracteriacutesticas de niacutevel superior se
fundamentam na microestrutura o que nos impede de tratarmos a
consciecircncia como se fosse uma substacircncia distinta ou uma entidade
adicional ao substrato fiacutesico Nesse sentido Searle (2010a p 4-5) assevera
que por ser causada e realizada neurofisiologicamente eacute que a consciecircncia
natildeo passa de uma caracteriacutestica de niacutevel superior do sistema nervoso
O cheiro da flor o som da sinfonia os pensamentos sobre os postulados da
geometria euclidiana ndash tudo eacute causado por processos bioloacutegicos de niacutevel
inferior no ceacuterebro e ateacute onde sabemos os elementos cruciais satildeo os
neurocircnios e as sinapses
[]
Assim eacute possiacutevel resumir da seguinte maneira as duas relaccedilotildees cruciais entre
consciecircncia e ceacuterebro os processos neurocircnicos de niacutevel inferior no ceacuterebro
causam a consciecircncia e a consciecircncia eacute apenas uma caracteriacutestica de niacutevel
superior de um sistema composto de elementos neurocircnicos de niacutevel inferior
Obviamente esse modo de pensar vai de encontro agrave tese central do
dualismo de substacircncia de que a distinccedilatildeo ontoloacutegica4 entre os dois
4 Por motivos distintos o eliminativista Rorty (1994 p 133) tambeacutem critica as categorias cartesianas ldquoEssas assim chamadas categorias ontoloacutegicas [de lsquomentalrsquo e de lsquofiacutesicorsquo] satildeo simplesmente os modos de embalar noccedilotildees deveras heterogecircneas de fontes histoacutericas deveras heterogecircneas que eram convenientes aos propoacutesitos do proacuteprio Descartes
Maxwell Morais de Lima Filho | 75
domiacutenios sustenta que o fiacutesico tem um modo de existecircncia diferente do
mental Portanto ao defender que a consciecircncia eacute uma caracteriacutestica
emergente do sistema nervoso o filoacutesofo estadunidense estaacute propondo
que o acircmbito fiacutesico eacute mais abrangente do que o dualista de substacircncia
poderia supor pois a mentalidade eacute fiacutesica Eacute somente a partir disso que
compreendemos a revisatildeo do adaacutegio cartesiano pretendida por Searle
(2006 p 26) quando afirma que ldquosou um ser pensante portanto sou um
ser fiacutesicordquo Mais do que isso como a consciecircncia emerge da organizaccedilatildeo e
da complexidade fiacutesicas Searle (2010d p 98) tambeacutem discorda do
posicionamento cartesiano de que os animais natildeo humanos satildeo
autocircmatos haja vista que o grau de semelhanccedila5 conosco ndash principalmente
com os primatas ndash leva-nos na direccedilatildeo contraacuteria
Do ponto de vista anatocircmico as semelhanccedilas satildeo grandes demais para que
essa especulaccedilatildeo [da ausecircncia de intencionalidade e de pensamento nos
animais natildeo humanos] pareccedila plausiacutevel ainda que remotamente do ponto de
vista fisioloacutegico como sabemos os mecanismos que produzem a
intencionalidade e o pensamento nos humanos tecircm estreitos paralelos com os
que se verificam em outros animais
Foi com o intuito de fugir das dificuldades que se impotildeem ao
dualismo de substacircncia que alguns filoacutesofos comprometidos com a
irredutibilidade dos fenocircmenos mentais propuseram o dualismo de
propriedade Essa abordagem postula a existecircncia de uma uacutenica
substacircncia a substacircncia fiacutesica (monismo fiacutesico) e de dois tipos de
propriedade mutuamente excludentes as fiacutesicas e as mentais Ao
observarmos uma pessoa qualquer diria o dualista de propriedade
Mas os seus propoacutesitos natildeo satildeo os nossos Os filoacutesofos natildeo devem pensar em seu conglomerado artificial como se fosse uma descoberta de algo preacute-existente ndash uma descoberta que por lsquointuitivarsquo ou lsquoconceitualrsquo ou lsquocategoacutericarsquo estabelece paracircmetros permanentes para a ciecircncia e a filosofiardquo
5 Changeux (1985 p 74) assegura que natildeo haacute diferenccedila significativa entre ldquoas peccedilas e parafusosrdquo que compotildeem por exemplo os ceacuterebros dos ratos e dos homens ldquoTanto ao niacutevel da anatomia macroscoacutepica do coacutertex como da sua arquitectura microscoacutepica natildeo ocorre qualquer brutal reorganizaccedilatildeo lsquoqualitativarsquo que leve do ceacuterebro lsquoanimalrsquo ao ceacuterebro lsquohumanorsquo Deu-se pelo contraacuterio uma evoluccedilatildeo quantitativa e contiacutenua do nuacutemero total de neuroacutenios da diversidade das aacutereas do nuacutemero de possibilidades conexionais entre neuroacutenios e por conseguinte da complexidade das redes de neuroacutenios que constituem a maacutequina cerebralrdquo
76 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
constatamos que o seu corpo ndash cabeccedila pernas braccedilos etc ndash tem um modo
de existecircncia fiacutesico poreacutem se analisarmos o ceacuterebro dela veremos que
aleacutem de possuir propriedades fiacutesicas ndash muitas delas semelhantes agraves que
satildeo encontradas na cabeccedila nas pernas e nos braccedilos ndash tal oacutergatildeo tambeacutem
possui propriedades mentais
Dessa maneira poderiacuteamos afirmar que esse enrugado oacutergatildeo
formado por bilhotildees de ceacutelulas e que pesa um quilo e meio possui
propriedades que se distinguem e natildeo se reduzem a nenhuma dessas
propriedades fiacutesicas Em geral contrapotildeem-se os aspectos subjetivo
qualitativo e privado das propriedades mentais agrave precisatildeo intersubjetiva
com que mensuramos os objetos e propriedades fiacutesicos o acesso direto agrave
dor estaacute restrito ao sujeito que a experiencia mas que ele pese oitenta
quilos eacute um dado objetivo quantitativo e publicamente acessiacutevel a
qualquer um que disponha de uma balanccedila Como explica Pereira (2013)
os filoacutesofos da mente se valem dos termos quale (singular) e qualia6
(plural) para se referir ao caraacuteter subjetivo e qualitativo dos fenocircmenos
mentais que experienciamos quando saboreamos o azedume do
tamarindo vemos a beleza de um flamboyant ouvimos uma bela canccedilatildeo
tocamos na pessoa querida ou cheiramos um bebecirc Abrantes (2005 p
226) nos alerta entretanto que os uacutenicos estados mentais
consensualmente considerados qualia satildeo as sensaccedilotildees Nesse sentido
muitos filoacutesofos negam ndash diferentemente de Searle ndash que haja qualquer
tipo de aspecto qualitativo envolvido na realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo
matemaacutetica como a adiccedilatildeo por exemplo
Para o dualista de propriedade as propriedades mentais satildeo especiais
em dois sentidos em primeiro lugar por conta de sua singularidade
bioloacutegica apesar de os objetos serem constituiacutedos basicamente pelos
6 Por salvaguardar que a consciecircncia eacute qualitativa Searle (2010b p 34) julga como absurda a tentativa daqueles que pretendem apartar o que para ele eacute inseparaacutevel ldquoNatildeo haacute dois problemas separados ndash o problema da consciecircncia e entatildeo um problema subsidiaacuterio o dos qualia O problema da consciecircncia eacute idecircntico ao dos qualia porque os estados conscientes satildeo acima de tudo estados qualitativosrdquo Em outras palavras Searle (2010c p 57-8) considera o termo qualia dispensaacutevel porque todos os fenocircmenos conscientes satildeo qualitativos ldquo[T]al como entendo esses termos qualia eacute somente uma designaccedilatildeo coletiva dos estados conscientes Na medida em que a lsquoconsciecircnciarsquo e os qualia satildeo coextensivos natildeo haacute razatildeo para introduzir um termo especiacuteficordquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 77
mesmos ldquoblocos de construccedilatildeordquo (aacutetomos) somente algumas estruturas
fiacutesicas possuem propriedades mentais a saber ceacuterebros complexos Em
segundo lugar a despeito de dependerem ontologicamente dos sistemas
fiacutesicos que as produzem as propriedades mentais satildeo irredutiacuteveis e
inexplicaacuteveis a partir dos conceitos provenientes das Ciecircncias Naturais
como a Fiacutesica a Quiacutemica e a Biologia
Para mostrar isso o filoacutesofo Frank Jackson (1986 2004) propocircs um
importante experimento de pensamento objetivando sustentar a
irredutibilidade dos qualia Imaginemos que Mary seja uma neurocientista
que sabe tudo acerca dos aspectos fiacutesicos e neurofisioloacutegicos das cores isto
eacute que ela domine o conhecimento sobre as leis oacutepticas das reflectacircncias
de luz bem como da anatomia e da fisiologia das ceacutelulas fotorreceptoras e
do coacutertex visual Natildeo obstante seu profundo conhecimento cientiacutefico ela
vive em um mundo preto e branco e portanto nunca experenciou
visualmente cores que natildeo estas duas Imaginemos ainda que um dia ela
saiu do seu laboratoacuterio alvinegro e percebeu pela primeira vez a cor
vermelha de uma maccedilatilde De acordo com essa linha de pensamento essa
experiecircncia visual traria um novo tipo de conhecimento a Mary a saber a
experiecircncia qualitativa de ver vermelho Ora argumenta Jackson se Mary
possuiacutea todo o conhecimento fiacutesico sobre as cores agrave sua disposiccedilatildeo e
mesmo assim aprende um novo fato cromaacutetico concluiacutemos que a sensaccedilatildeo
de ver vermelho (fato novo) aleacutem de natildeo ser fiacutesica eacute irredutiacutevel
ontologicamente a qualquer tipo de estado ou propriedade material Com
isso Jackson (2004 p 765) quer defender que as propriedades mentais
estatildeo acima e aleacutem da realidade fiacutesica e que se mantecircm intocadas pela
explicaccedilatildeo fiacutesico-bioloacutegica da visatildeo
A conclusatildeo [] eacute que os qualia satildeo deixados de fora da histoacuteria fisicalista E a
forccedila polecircmica do argumento do Conhecimento eacute que eacute tatildeo difiacutecil negar a sua
afirmaccedilatildeo central de que se pode ter toda a informaccedilatildeo fiacutesica sem ter todas as
informaccedilotildees que haacute para ter
78 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Searle (2000) natildeo admite essa diferenciaccedilatildeo e advoga que o mental eacute
fiacutesico por ser bioloacutegico ou seja os fenocircmenos mentais satildeo fenocircmenos
bioloacutegicos tais quais outros processos encontrados no mundo vivo como
a digestatildeo a fotossiacutentese e a mitose Portanto para sermos exitosos na
superaccedilatildeo do dualismo de propriedade devemos rejeitar a terminologia
que exclui a consciecircncia do mundo natural e a trata como se natildeo fosse
bioloacutegica Com o intuito de denunciar o quanto esse sistema de categorias
eacute problemaacutetico ele assevera que o dualista inevitavelmente estaraacute diante
de uma encruzilhada se pressupuser que as propriedades mentais estatildeo
acima e aleacutem das propriedades fiacutesicas Se levarmos em consideraccedilatildeo o
fechamento causal fiacutesico do Universo ndash todo evento fiacutesico possui como
causa suficiente outro evento fiacutesico ndash teriacuteamos como resultado que as
propriedades natildeo fiacutesicas satildeo causalmente ineficazes ou seja o mental
subsistiria como um domiacutenio epifenomecircnico
Nesse cenaacuterio as nossas sensaccedilotildees crenccedilas e desejos seriam
totalmente irrelevantes para o nosso comportamento assim como seria
ilusoacuteria a causaccedilatildeo mental O caminho alternativo eacute igualmente
problemaacutetico porque se comprometeria ndash na contramatildeo do que
pressupotildeem as melhores teorias cientiacuteficas ndash com a tese de que o Universo
natildeo eacute fisicamente fechado Essa conjuntura asseguraria a eficaacutecia causal
do mental em troca de acatarmos a sobreposiccedilatildeo causal de certos eventos
isto eacute comprometer-nos-iacuteamos com a sobredeterminaccedilatildeo causal por
afirmar que um evento fiacutesico F eacute duplamente produzido por um evento
fiacutesico F e por um evento mental M Segundo Searle7 (2014 p 107)
sabemos [] que quando eu levanto meu braccedilo haacute uma histoacuteria a ser contada
no niacutevel de disparos de neurocircnios neurotransmissores e contraccedilotildees
musculares que eacute suficiente para descrever [] o movimento do meu braccedilo
Entatildeo se supusermos que a consciecircncia tambeacutem funciona no movimento do
meu braccedilo entatildeo parece que temos duas histoacuterias causais distintas nenhuma
redutiacutevel agrave outra e para colocar muito brevemente a questatildeo meus
7 Em Lima Filho (2010b) analisamos em detalhes o problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico
Maxwell Morais de Lima Filho | 79
movimentos corporais tecircm muitas causas Noacutes temos [sobredeterminaccedilatildeo]
causal
O autor drsquoA Redescoberta da Mente eacute da opiniatildeo que apesar da
relutacircncia o dualista de propriedade acaba por cair na ldquovelhardquo dualidade
substancial como fica patente no uso de metaacuteforas que insinuam a
separaccedilatildeo entre os fenocircmenos conscientes a consciecircncia se origina do
ceacuterebro mas estaacute acima e aleacutem dos processos cerebrais por ser uma
propriedade emergente Esse modo de pensar nos conduz agrave imagem da
consciecircncia como uma cereja que por estar acima do bolo dele difere
Searle (2014 p 114) enxerga uma inconsistecircncia nessa posiccedilatildeo segundo a
qual a consciecircncia (cereja) eacute uma propriedade que estaacute acima e aleacutem do
ceacuterebro (bolo) afirmando que essa incongruecircncia acaba por minar o
monismo fiacutesico e passa a incidir em alguma versatildeo do dualismo de
substacircncia
A imagem verdadeira se vamos persistir na metaacutefora do bolo eacute que a
consciecircncia eacute o estado em que o bolo (ceacuterebro) estaacute Oficialmente o dualista
de propriedades diz que a consciecircncia eacute uma propriedade do ceacuterebro mas se
vocecirc considerar propriedades incontroversas do ceacuterebro como peso forma
cor solidez etc ningueacutem diz que elas ldquosurgem dordquo [hellip] ou estatildeo ldquoaleacutemrdquo [hellip]
do ceacuterebro e somente num sentido especial algumas delas podem ser descritas
como ldquoemergentesrdquo [hellip] e certamente natildeo como ldquoemergentes dordquo [hellip] ceacuterebro
Uma corrente que se opocircs fortemente ao dualismo foi o behaviorismo
analiacutetico8 Muitos estudiosos consideram como marco da Filosofia da
Mente Contemporacircnea o livro de Gilbert Ryle (1970 p 11) Concept of
Mind publicado originalmente em 1949 que principia resumindo a
posiccedilatildeo a ser combatida o ldquomito de Descartesrdquo ou o ldquodogma do fantasma
na maacutequinardquo
8 Natildeo devemos confundi-lo com a corrente psicoloacutegica associada aos nomes de John Watson Ivan Pavlov e Burrhus Frederic Skinner Como esclarece Blackburn (1997 p 39) em vez de levar em consideraccedilatildeo a introspecccedilatildeo e a subjetividade o behaviorismo psicoloacutegico inicialmente se orientou pela perspectiva metodoloacutegica de mensuraccedilatildeo das causas comportamentais Posteriormente sobretudo com Skinner passou a vigorar o empreendimento de se gerir a accedilatildeo humana por meio de estiacutemulos e reforccedilos
80 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A doutrina oficial que vem principalmente de Descartes eacute qualquer coisa
como isto com as exceccedilotildees duvidosas dos idiotas e das crianccedilas de colo todo
ser humano tem um corpo e um espiacuterito Alguns prefeririam dizer que todo
ser humano eacute simultaneamente corpo e espiacuterito O seu corpo e o seu espiacuterito
estatildeo geralmente reunidos mas depois da morte do corpo o espiacuterito pode
continuar a existir e a funcionar
O intento de Ryle eacute imunizar todos contra o ldquopatoloacutegicordquo legado
cartesiano valendo-se de anaacutelises conceituais com o duplo objetivo de
criticar as operaccedilotildees realizadas pelos defensores da ldquodoutrina oficialrdquo e de
situar o conceito mental no tipo loacutegico adequado Com o intuito de ilustrar
sua argumentaccedilatildeo contra o dualismo ele daacute o seguinte exemplo de erro
categorial Se apoacutes termos apresentado a Reitoria as Unidades
Acadecircmicas as Faculdades o Restaurante Universitaacuterio e os Museus que
compotildeem a nossa instituiccedilatildeo o que responderiacuteamos ao estrangeiro que
persistisse perguntando pela localizaccedilatildeo da Universidade haja vista que
ele afirma ter visto somente os departamentos administrativos as salas de
aula e os aparelhos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica Ora diz Ryle (1970 p 16)
devemos mostrar que o nosso colega se equivoca ao natildeo observar que a
Universidade eacute constituiacuteda pela coordenaccedilatildeo conjunta dos oacutergatildeos
burocraacuteticos espaccedilos didaacuteticos laboratoacuterios etc que ele observou em sua
visita ao campus
O seu erro [do estrangeiro] assenta na suposiccedilatildeo inocente de que era correto
falar da Christ Church da Bodleian Library do Ashmolean Museum e da
Universidade como se a ldquoUniversidaderdquo significasse um membro extra da
classe da qual estas outras unidades satildeo membros Ele estava a situar
erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras instituiccedilotildees
pertencem
Consoante o behaviorista algo semelhante ocorre quando nos
emocionamos ao ler um poema sentimos dor de dente desejamos um
chocolate ou cremos na Biacuteblia tendo em conta que natildeo estariacuteamos nos
referindo a eventos mentais interiores mas tatildeo somente ao nosso
comportamento seja ele real ou potencial Eacute justamente por esse motivo
Maxwell Morais de Lima Filho | 81
que ele pretende preservar a equivalecircncia semacircntica quando traduz a
crenccedila de Tomeacute no Cristianismo nas seguintes descriccedilotildees
comportamentais
(i) Se lhe oferecerem de presente a Biacuteblia ou o Coratildeo ele optaraacute pelo primeiro
(ii) Se lhe perguntarem em qual livro Deus se revela ele responderaacute que eacute na Biacuteblia
(iii) Se lhe questionarem sobre a autoria dos Dez Mandamentos ele afirmaraacute que
foram escritos por Deus
(iv) Se houver oportunidade ele pregaraacute a mensagem biacuteblica
Uma criacutetica inicial a essa proposta teoacuterica se reflete no repuacutedio de
sermos reduzidos agrave pura e simples mecacircnica comportamental
desconsiderando-se para tal fim a totalidade dos fenocircmenos subjetivos e
qualitativos que constituem a rica vida mental que todos noacutes inclusive os
behavioristas experimentamos Em outras palavras haacute uma distinccedilatildeo de
tipo9 entre a crenccedila cristatilde e a observaccedilatildeo comportamental de Tomeacute Para
ser consistente essa anaacutelise deveria levar em consideraccedilatildeo a
indeterminaccedilatildeo e o nuacutemero potencialmente infinito de vias relacionadas agrave
crenccedila religiosa de Tomeacute e natildeo apenas os quatro condicionais listados
anteriormente
Esse tipo de exame tambeacutem padece de circularidade porque o
behaviorista deve lanccedilar matildeo de hipoacuteteses adicionais natildeo explicitadas para
sustentar que a crenccedila no Cristianismo se traduz comportamentalmente
na inclinaccedilatildeo de ser presenteado por uma Biacuteblia Caso Tomeacute possua dez
traduccedilotildees comentadas da Biacuteblia em diferentes liacutenguas seria provaacutevel que
ele preferisse ganhar o Coratildeo de presente ndash na verdade a lista de regalos
passiacuteveis de corroborar a crenccedila de Tomeacute eacute deveras extensa sendo muito
difiacutecil determinaacute-la precisamente A disposiccedilatildeo comportamental de
preferir a Biacuteblia tambeacutem assume sub-repticiamente que Tomeacute sabe e gosta
de ler o que obviamente natildeo eacute necessaacuterio Por fim querer ganhar uma
9 Searle (2010h p 337) realccedila essa dessemelhanccedila entre os fenocircmenos mentais conscientes e a anaacutelise comportamental a partir desse exemplo da dor gaacutestrica ldquoO fato de sentir essa dor eacute completamente diferente ndash aliaacutes um tipo de fato completamente diferente ndash de quaisquer fatos inclusive condicionais que digam respeito a meu comportamento Ter uma dor de estocircmago eacute uma coisa adotar este ou aquele tipo de comportamento adequado a uma dor de estocircmago eacute algo totalmente diferenterdquo
82 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Biacuteblia soacute faz sentido se Tomeacute acreditar que ela natildeo viraacute com paacuteginas em
branco que ela estaacute redigida em liacutengua compreensiacutevel que sua mensagem
natildeo foi corrompida por editores inescrupulosos etc
A tentativa de se explicar a crenccedila de Tomeacute no Cristianismo
(analysandum) atraveacutes de sua conduta de pregaccedilatildeo evangeacutelica (analysans)
eacute malograda porque o comportamento que pretende esclarecer o estado
psicoloacutegico eacute ele proacuteprio intencional10 Ou seja os movimentos corporais
de pegar a Biacuteblia e sair de porta em porta anunciando que Jesus eacute a nossa
salvaccedilatildeo e a soluccedilatildeo para todos os nossos problemas soacute podem ser
denominados accedilotildees se forem causados por intenccedilotildees que satildeo tatildeo mentais
quanto o que se pretende elucidar a crenccedila de Tomeacute Eacute guiado por linha
de raciociacutenio semelhante que Searle (2010h p 339) afirma que o
behaviorista estaria diante de um dilema pois ou ele considera que o
comportamento eacute intencional ou natildeo por um lado permaneceria o
elemento mental se se admitir que o comportamento eacute intencionalmente
causado por outro caso natildeo se defenda isso
temos de interpretar o comportamento como uma seacuterie de movimentos
corporais descritos tatildeo somente como movimentos corporais e nenhuma
anaacutelise dos enunciados sobre crenccedilas desejos e intenccedilotildees em funccedilatildeo de
enunciados sobre movimentos corporais jamais seraacute suficiente porque os
movimentos ainda natildeo satildeo accedilotildees humanas e a noccedilatildeo de um movimento
corporal em si mesmo eacute insuficiente para qualquer anaacutelise dos estados
mentais
Desse modo o filoacutesofo estadunidense reitera que soacute podemos
acreditar em algo ou desejarmos alguma coisa se tivermos uma Rede
(Network) com diversas crenccedilas e desejos Poreacutem como o conteuacutedo
intencional natildeo eacute autointerpretativo Searle (2010g p 249-50) postula que
a Rede necessita de um Pano de Fundo (Background)11 constituiacutedo por
habilidades preacute-intencionais
10 Consoante Leclerc (2015) Roderick Chisholm defendeu na deacutecada de 50 que eacute impossiacutevel transpormos o ciacuterculo das noccedilotildees intencionais haja vista que a intencionalidade eacute indefiniacutevel a partir de termos natildeo intencionais
11 Vimos que a intransponibilidade do ciacuterculo intencional eacute sustentada por Chisholm porque os termos natildeo intencionais satildeo inuacuteteis para definir a intencionalidade Apesar de reconhecer a importacircncia da Rede Searle (1995
Maxwell Morais de Lima Filho | 83
Todos os fenocircmenos intencionais quer sejam crenccedilas desejos esperanccedilas
medos ou outros pressupotildeem capacidades natildeo intencionais de background
para que possam funcionar Com isso quero dizer que os estados intencionais
somente determinam suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo e portanto somente
funcionam como estados intencionais se for pressuposto um conjunto de
capacidades que nos permitem aplicar os estados intencionais A
intencionalidade natildeo eacute por assim dizer autointerpretante ou autoaplicativa
[hellip] [O] ponto importante dessas habilidades de background eacute que elas
mesmas natildeo satildeo representacionais Natildeo consistem num conjunto de regras
crenccedilas ou outros tipos de representaccedilotildees
Nos anos 50 e 60 do seacuteculo XX pouco apoacutes a proposta behaviorista
de Ryle filoacutesofos como Herbert Feigl Ullin Thomas Place John Jamieson
Carswell Smart e David Malet Armstrong defenderam uma teoria da
identidade mente-ceacuterebro segundo a qual os estados mentais nada mais
satildeo do que estados fiacutesicos que ocorrem no sistema nervoso Portanto
estamos diante de um monismo fiacutesico que identifica ontologicamente o
domiacutenio psicoloacutegico ao neurobioloacutegico como ocorre na identificaccedilatildeo entre
a dor e a descarga de fibras C Em artigo publicado originalmente em 1956
Place (2002) defende a hipoacutetese cientiacutefica de que a consciecircncia eacute um
processo cerebral sem se comprometer com a suposiccedilatildeo adicional de que
a linguagem neurobioloacutegica sirva para descrever os sonhos as fantasias e
as sensaccedilotildees Eacute justamente porque a assunccedilatildeo da identidade mente-
ceacuterebro eacute anaacuteloga agravequela das Ciecircncias Naturais ndash que se reflete por sua
vez na ausecircncia de equivalecircncia semacircntica entre as descriccedilotildees dos
fenocircmenos fiacutesicos e mentais ndash que natildeo seria irracional se Royce afirmasse
p 198) recua um passo ao advogar que o Pano de Fundo preacute-intencional eacute a condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer estado intencional ldquoO Background eacute lsquopreacute-intencionalrsquo no sentido de que embora natildeo seja uma forma ou formas de Intencionalidade eacute natildeo obstante uma precondiccedilatildeo ou um conjunto de precondiccedilotildees de Intencionalidaderdquo Portanto se a definiccedilatildeo de intencionalidade empregada por Searle eacute circular natildeo deixa de ser verdade que ela se explica a partir do Pano de Fundo Ressaltamos que os obstaacuteculos impostos por determinadas praacuteticas humanas situadas podem ser transpostos devido ao compartilhamento de um Background profundo Eis dois exemplos do proacuteprio Searle (2006 p 277) ldquoDiferenccedilas de Backgrounds locais tornam difiacutecil a traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra a generalidade do Background profundo torna-a possiacutevel de qualquer modo Se vocecirc lecirc a descriccedilatildeo de um jantar festivo na casa dos Guermantes em Proust provavelmente deve achar alguns aspectos da descriccedilatildeo enigmaacuteticos Isso tem a ver com diferenccedilas de praacuteticas culturais locais Mas existem certas coisas que vocecirc pode dar por certas Por exemplo os participantes natildeo comem enfiando a comida em seus ouvidosrdquo
84 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que sente dor e que as suas fibras C natildeo disparam haja vista que o
enunciado ldquoRoyce estaacute com dorrdquo natildeo eacute sinocircnimo de ldquoas fibras C de Royce
estatildeo disparandordquo do mesmo modo que natildeo seria um absurdo declarar
que a aacutegua deste copo natildeo eacute composta por H2O
Como Searle defende que os fenocircmenos mentais satildeo causados e
realizados no sistema nervoso ele natildeo veria problema algum em localizaacute-
los espaacutecio-temporalmente nos processos cerebrais subjacentes desde que
levemos em conta que uns e outros satildeo ontologicamente distintos ou seja
que aqueles fenocircmenos possuem caracteriacutesticas intriacutensecas que os tornam
irredutiacuteveis a padrotildees sinaacutepticos estes sim descritiacuteveis a partir do
vocabulaacuterio neurocientiacutefico de terceira pessoa Dito isso vemos o porquecirc
de Searle (2010e p 129-30) criticar a identificaccedilatildeo ontoloacutegica do
fisicalismo redutivo
Assim quando o teoacuterico da identidade nos diz que os estados mentais satildeo
somente estados cerebrais haacute um modo de compreender essa tese que eacute
perfeitamente compatiacutevel com nossa pressuposiccedilatildeo de senso comum sobre o
caraacuteter intriacutenseco e irredutiacutevel da consciecircncia e de outras formas de
intencionalidade [hellip] Mas em geral natildeo eacute isso o que os teoacutericos da identidade
querem dizer Um exame cuidadoso dos textos [hellip] revela que em geral os
teoacutericos da identidade [hellip] acabam por negar a existecircncia das caracteriacutesticas
intrinsecamente mentais do mundo
Outra objeccedilatildeo eacute feita agrave contundente asserccedilatildeo de que os estados
mentais compartilhados por duas pessoas implicam que eles satildeo
necessariamente determinados por processos neurofisioloacutegicos de tipo
idecircntico Assim sendo os mesmos estados fiacutesicos devem ocorrer nos
ceacuterebros de Jacoacute e de Luiz para que eles compartilhem a crenccedila de que
Januaacuterio eacute o maior dos sanfoneiros Ora jaacute que somos cercados por
estruturas bioloacutegicas e por artefatos que satildeo multiplamente realizaacuteveis do
ponto de vista fiacutesico por que o mesmo natildeo ocorreria com os estados
mentais Em outras palavras se olhos asas reloacutegios e cadeiras satildeo
compostos e organizados fisicamente de mais de um modo por que algo
semelhante natildeo se daria com a mentalidade Destarte nada impede que a
Maxwell Morais de Lima Filho | 85
mesma crenccedila na grandiosidade musical de Januaacuterio seja realizada por
padrotildees neurocircnicos de tipo X no velho Jacoacute e de tipo Y em seu filho Searle
(2010h p 344) se vale de outros exemplos para corroborar a tese da
realizaccedilatildeo muacuteltipla do mental e para explicitar o que faz com que dois
estados psicoloacutegicos sejam do mesmo tipo
Assim vocecirc e eu podemos ter cada qual a mesma crenccedila de que estaacute nevando
sem que nossas neurofisiologias sejam necessariamente de tipo idecircntico assim
como meu carro e o seu podem ter cada qual um carburador embora o meu
seja de accedilo e o seu de latatildeo Mas entatildeo o que os estados mentais tecircm em
comum capaz de tornaacute-los de tipo idecircntico Creio que a resposta oacutebvia eacute que
eles satildeo de tipo idecircntico por causa de suas caracteriacutesticas mentais comuns
sejam elas caracteriacutesticas de consciecircncia da intencionalidade ou de ambas ou
ainda outras espeacutecies de caracteriacutesticas mentais
Aliaacutes foi motivado por esse tipo de criacutetica ao fisicalismo redutivo que
surgiu nos anos 60 a teoria funcionalista que talvez ainda hoje seja a
concepccedilatildeo de maior prestiacutegio acadecircmico De acordo com uma de suas
vertentes os fenocircmenos mentais podem ser produzidos artificialmente
pelos chips de siliacutecio de computador o que demonstraria a inexistecircncia de
um viacutenculo necessaacuterio entre ceacuterebros complexos e estados mentais Como
natildeo seriam essencialmente bioloacutegicos o aspecto relevante residiria no
papel funcional envolvido nas relaccedilotildees entre os proacuteprios estados mentais
bem como destes com as informaccedilotildees provenientes do ambiente e que
direcionam o comportamento Essa centralidade do papel funcional estaacute
por traacutes do pressuposto metodoloacutegico do teste de Turing (1950) de que se
uma maacutequina manifesta um comportamento linguiacutestico tatildeo complexo
quanto o do ser humano eacute porque nos eacute similar em inteligecircncia e
mentalidade
Com o fito de atacar esse pressuposto behaviorista do funcionalismo
e para asseverar que toda e qualquer maacutequina de Turing eacute incapaz de
compreender os siacutembolos que manipula Searle12 (1980a) propocircs o
12 Apresentamos o ataque de Searle ao funcionalismo computacional em Lima Filho (2010a)
86 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
experimento de pensamento do quarto chinecircs Em linhas gerais podemos
expor o famoso Gedankenexperiment do seguinte modo confinado em um
quarto Searle passa a receber folhas escritas em chinecircs liacutengua da qual ele
natildeo conhece um soacute ideograma e que eacute incapaz de falar quaisquer palavras
tambeacutem o fornecem um manual com regras escritas em inglecircs que lhe
permite relacionar pelo formato os siacutembolos recebidos com outras folhas
redigidas em chinecircs que ele passa por debaixo da porta Esse processo
ocorre repetidamente ndash recebimento do texto em chinecircs consulta ao
manual e devoluccedilatildeo do siacutembolo correspondente ndash e sem que o filoacutesofo se
aperceba disso o falante de chinecircs julga que estaacute entabulando uma
conversaccedilatildeo porque dele recebeu respostas satisfatoacuterias sobre o seu nome
a sua origem e a sua profissatildeo O ponto nevraacutelgico da argumentaccedilatildeo eacute que
a manipulaccedilatildeo simboacutelica natildeo eacute suficiente para a compreensatildeo semacircntica e
que o maacuteximo alcanccedilaacutevel por um programa de computador eacute a simulaccedilatildeo13
ndash mas natildeo a duplicaccedilatildeo ndash de estados mentais Eis como Searle (1998a p
38-9) posteriormente resume o seu argumento
1 Programas satildeo totalmente sintaacuteticos
2 As mentes tecircm uma capacidade semacircntica
3 A sintaxe natildeo eacute a mesma coisa que a semacircntica nem eacute por si soacute suficiente
para garantir um conteuacutedo semacircntico
Consequentemente programas natildeo satildeo mentes
Para golpear o cognitivismo ndash linha para a qual os processos
cognitivos satildeo inconscientes e computacionais ndash Searle propotildee um
argumento assentado na tese de que a computaccedilatildeo eacute relativa ao
observador e eacute exclusivamente sintaacutetica Consoante Moural (2003)
podemos resumi-lo nessas quatro asserccedilotildees
13 Analogamente Searle (2007 p 66) afirma que um programa computacional simulador da digestatildeo eacute incapaz de decompor fiacutesico-quimicamente um pedaccedilo de pizza ldquo[U]m computador realiza um modelo ou uma simulaccedilatildeo de um processo E a simulaccedilatildeo computacional de uma mente eacute como a simulaccedilatildeo computacional da digestatildeo Eu natildeo sei por qual motivo as pessoas cometem um erro tatildeo bobo Veja se fizermos uma simulaccedilatildeo computacional perfeita da digestatildeo ningueacutem poderia pensar lsquovamos comprar uma pizza e pocirc-la no computadorrsquo Eacute um modelo uma fotografia da digestatildeo Nos mostra que a estrutura formal de funcionamento de fato natildeo digere nada Isso eacute o que ocorre com um computador Um modelo computacional do que eacute apaixonar-se ler um romance ou embriagar-se natildeo se apaixona nem lecirc um romance nem se embriaga de fato Somente faz uma representaccedilatildeo dessas coisasrdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 87
(i) Por definiccedilatildeo computaccedilatildeo consiste em uma manipulaccedilatildeo formal de siacutembolos
(ii) No entanto como nem a sintaxe nem os siacutembolos satildeo definidos em termos fiacutesicos
natildeo podemos consideraacute-los intriacutensecos agrave Fiacutesica
(iii) Como o significado da sintaxe e dos siacutembolos soacute podem ser atribuiacutedos perante
um observador segue-se que o mesmo deva se dar com a computaccedilatildeo
(iv) Consequentemente a possibilidade de realizarmos uma interpretaccedilatildeo
computacional do ceacuterebro natildeo nos autoriza a conjecturar que esse oacutergatildeo seja
intrinsecamente um computador
A distinccedilatildeo capital que permeia esse argumento eacute aquela entre as
caracteriacutesticas que independem e as que dependem do observador14 como
o satildeo respectivamente a massa da moleacutecula de aacutegua e a funccedilatildeo
cronomeacutetrica do reloacutegio Com isso Searle (2002b) faz uma discriminaccedilatildeo
entre estados mentais humanos e aqueles atribuiacutedos ao computador o
estado de consciecircncia de Searle eacute intrinsecamente intencional porque
existe independentemente do que pensemos a seu respeito diversamente
dos estados mentais que outorgamos agrave maacutequina e que possuem uma
intencionalidade relativa ao observador15 Portanto o medo expresso por
14 Para Searle (1998a p 42) as Ciecircncias da Natureza se distinguem das Ciecircncias Sociais pelo estudo dessas caracteriacutesticas ldquoAs ciecircncias naturais lidam com essas propriedades da natureza que satildeo intriacutensecas ou independentes do observador no sentido de sua existecircncia natildeo depender do que pensamos sobre ela Exemplos dessas propriedades satildeo a massa a fotossiacutentese a carga eleacutetrica e a mitose As ciecircncias sociais em geral lidam com propriedades que satildeo dependentes do observador ou relativas ao observador no sentido de que sua existecircncia depende de como os seres humanos tratam usam ou ao menos pensam a respeito delas Exemplos tiacutepicos satildeo o dinheiro a propriedade e o casamentordquo
15 Estamos diante de uma intencionalidade intriacutenseca quando adicionamos mentalmente dois e dois e obtemos quatro jaacute quando expressamos esse caacutelculo pela linguagem falada ou escrita referimo-nos agrave intencionalidade derivada por fim temos tambeacutem a intencionalidade ldquocomo serdquo quando falamos que o gramado ou o carro estatildeo
sedentos Como adverte Searle (2010f p 189-90) a sede do gramado ou do automoacutevel natildeo eacute intencional mas tatildeo somente metafoacuterica ldquoa intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo eacute intencionalidade de modo nenhum Quando afirmo que um sistema tem uma intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo lhe atribuo intencionalidade Estou afirmando apenas que o sistema se comporta como se tivesse intencionalidade embora natildeo a tenha de fatordquo Como a intencionalidade intriacutenseca precede a linguagem poderiacuteamos encontraacute-la em bebecircs humanos e em outras espeacutecies animais Eacute nesse sentido que as carecircncias de aacutegua e de alimento causariam os primordiais desejos de beber e de comer como assinala Searle (2000 p 91-2) ldquoAs formas biologicamente mais primitivas de intencionalidade satildeo as formas de desejo que envolvem necessidades fiacutesicas como a fome e a sede Ambas satildeo intencionais porque ambas satildeo formas de desejo A fome eacute um desejo de comer a sede um desejo de beberrdquo Searle (2012 p 24) vai aleacutem e advoga que esses estados mentais preacute-linguiacutesticos satildeo indissociaacuteveis de suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo ldquoEssas formas preacute-linguiacutesticas de intencionalidade jaacute possuem algumas propriedades loacutegicas cruciais Porque percepccedilotildees intenccedilotildees crenccedilas desejos e assim por diante satildeo formas de intencionalidade elas trazem em si especificamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees de sucesso ou fracasso Por exemplo um animal faminto tem o desejo de comer e patologias agrave parte assim ele tem a capacidade de reconhecer quando esse desejo eacute satisfeito e quando natildeo o eacuterdquo No entanto essa alegada intrinsecalidade dos estados mentais eacute posta em duacutevida por Gauker (2012 p 154) ldquoO fato de que os bebecircs os animais natildeo humanos e os hominiacutedeos preacute-linguiacutesticos possuam estados intencionais se isso fosse um fato natildeo mostraria
88 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Hal 9000 quando David Bowman estava desativando seus processos
superiores natildeo passa de uma fobia metafoacuterica Para Searle (1980a) natildeo haacute
qualquer arbitrariedade no criteacuterio que se funda na intencionalidade
intriacutenseca para diferenciar a mentalidade da decisatildeo de Bowman do pavor
figurado de Hal 9000 se assim o fosse estaria subjugado a nosso bel-
prazer encarar os nossos semelhantes como zumbis e a estiagem como
mental
Os argumentos levantados por Searle de que a sintaxe eacute insuficiente
para a semacircntica e de que ela natildeo eacute intriacutenseca agrave Fiacutesica natildeo raras vezes tem
conduzido agrave interpretaccedilatildeo de que ele seja repulsivo ao projeto de um
ceacuterebro e de uma mente artificiais No entanto essa chave de leitura eacute
injusta porque ambos os argumentos do filoacutesofo estadunidense satildeo
voltados para o programa do computador ndash e natildeo para o hardware
Justamente por se apoiar nas Ciecircncias da Natureza Searle natildeo nega que
uma funccedilatildeo possa ser multiplamente realizada como eacute o caso do voo
executaacutevel bioloacutegica ndash insetos aves e morcegos ndash ou tecnologicamente ndash
balotildees aviotildees helicoacutepteros e foguetes Por mais distintas que sejam as asas
da mosca e as do 14-bis elas compartilham poderes causais que permitem
ao animal e ao aviatildeo sobrepujarem a forccedila da gravidade Ora se a
consciecircncia eacute uma caracteriacutestica sistecircmica do ceacuterebro e desejamos
produzi-la artificialmente basta que dupliquemos os poderes causais
desse oacutergatildeo Nas palavras de Searle (2000 p 56)
Quando digo que o ceacuterebro eacute um oacutergatildeo bioloacutegico e a consciecircncia um processo
bioloacutegico eacute claro que natildeo estou dizendo ou sugerindo que seria impossiacutevel
produzir um ceacuterebro artificial a partir de materiais natildeo bioloacutegicos que tambeacutem
pudessem ser causa da consciecircncia e sustentaacute-la [] O ponto que deve ser
enfatizado eacute que tal ceacuterebro artificial teria de reproduzir as verdadeiras causas
dos ceacuterebros humanos e animais para produzir estados de consciecircncia
internos qualitativos e subjetivos A produccedilatildeo de comportamentos similares
por si soacute natildeo seria suficiente
que a intencionalidade dos estados mentais eacute lsquointriacutensecarsquo em qualquer sentido mas mostraria que a capacidade para pensar com as propriedades semacircnticas natildeo depende da posse de uma linguagem ao contraacuterio de minha hipoacuteteserdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 89
Dessa maneira o autor drsquoA Redescoberta da Mente aceita uma versatildeo
bem mais branda da tese de realizaccedilatildeo muacuteltipla em comparaccedilatildeo com a que
eacute acatada pelos funcionalistas pois nem todo material seria capaz de
efetuar a funccedilatildeo em questatildeo Como Searle (1984) diz abertamente o
ceacuterebro eacute uma maacutequina viva e portanto a sua constituiccedilatildeo bioloacutegica eacute
relevante para a produccedilatildeo e para a realizaccedilatildeo da mente ou seja eacute de nosso
conhecimento que os padrotildees sinaacutepticos satildeo efetivos para a emergecircncia de
estados intencionalmente intriacutensecos Contudo diferentemente do que se
daacute com o voo a nossa atual ignoracircncia sobre os detalhes bioquiacutemicos e
fisioloacutegicos nos impede por enquanto de duplicar os estados mentais em
estruturas natildeo bioloacutegicas
Para fechar o nosso itineraacuterio pela Filosofia da Mente apresentamos
a seguir o fisicalismo eliminativista corrente defendida por Paul
Feyerabend Richard Rorty Patricia e Paul Churchland Diferentemente da
abordagem fisicalista de Feigl Place Smart e Armstrong o eliminativista
rejeita a identificaccedilatildeo entre os fenocircmenos neurofisioloacutegicos e os mentais
haja vista que estes uacuteltimos natildeo passam de ilusatildeo Para defender a tese do
irrealismo do mental e a sua necessaacuteria eliminaccedilatildeo teoacuterica o fisicalista
eliminativo lanccedila matildeo da seguinte analogia histoacuterica no tempo das
Inquisiccedilotildees sustentava-se a necessidade de caccedilar e de queimar na fogueira
a mulher que pactuava com Satanaacutes mas atualmente nenhuma pessoa
sensata admitiria a existecircncia de bruxas Essa mudanccedila de perspectiva se
daacute porque o progresso epistecircmico revelou a falsidade do conceito de bruxa
e o eliminou do arcabouccedilo terminoloacutegico da Ciecircncia como aconteceraacute ndash
alega Paul Churchland (2004 p 79) ndash com os termos da Psicologia
Popular
[N]atildeo podemos esperar que uma explicaccedilatildeo realmente adequada de nossa vida
interior feita pela neurociecircncia revele categorias teoacutericas que correspondam
exatamente agraves categorias do arcabouccedilo de senso comum [posiccedilatildeo anti-
reducionista] Dessa forma devemos esperar que o antigo arcabouccedilo seja
simplesmente eliminado e natildeo reduzido por uma neurociecircncia amadurecida
90 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Consoante Teixeira (2008) a Psicologia Popular eacute a teoria que nos
permite explicar o comportamento humano evocando conceitos como
crenccedila desejo e intenccedilatildeo Desse modo o avanccedilo neurocientiacutefico natildeo
acarretaraacute a reduccedilatildeo da Psicologia Popular pois natildeo haacute uma
correspondecircncia um-a-um entre essas duas aacutereas o que demonstraria a
necessidade de suprimir os termos psicoloacutegicos que representam de modo
distorcido os estados neurofisioloacutegicos e as causas do comportamento Por
conseguinte uma Neurociecircncia16 avanccedilada e precisa propiciaraacute
eliminaccedilotildees teoacutericas como a de algueacutem que mencione a ativaccedilatildeo de suas
fibras C em tal regiatildeo do ceacuterebro no lugar de falar que estaacute com dor como
expotildee Churchland (2004 p 82)
Nossas explicaccedilotildees sobre os comportamentos uns dos outros iratildeo recorrer a
coisas como nossos estados neurofarmacoloacutegicos nossa atividade neural em
aacutereas anatocircmicas especiacuteficas e a outros estados que forem relevantes para a
nova teoria Nossa introspecccedilatildeo individual tambeacutem seraacute transformada e
poderaacute ser profundamente aprimorada em razatildeo de um arcabouccedilo conceitual
mais penetrante e preciso com o qual ela teraacute de trabalhar []
Searle (2006) trata com sarcasmo os eliminativistas ao perguntar se
deveria beliscaacute-los para provar que satildeo conscientes e que sentem dor
advogando que o fato de os estados mentais dependerem ontologicamente
dos processos neurobioloacutegicos natildeo os tornam aparentes ou ilusoacuterios Em
outras palavras por mais que conheccedilamos todos os pormenores
bioquiacutemicos e fisioloacutegicos dos processos cerebrais isso natildeo baniraacute ndash nem
ontoloacutegica nem explicativamente ndash o niacutevel dos fenocircmenos psicoloacutegicos
Estes fenocircmenos inexistiriam se houvesse uma distinccedilatildeo entre a aparecircncia
e a realidade17 mas esse natildeo eacute o caso como pontua Searle (2000 p 59)
16 Rorty (1997 p 158) pinta o hipoteacutetico progresso neurocientiacutefico com essas tintas ldquoNoacutes esperamos que a fisiologia possa algum dia traccedilar um caminho a partir da distribuiccedilatildeo de descargas eleacutetricas em meu ceacuterebro ateacute as interfaces [neuromusculares] em minha garganta e por conseguinte nos viabilizar predizer elocuccedilotildees por sobre a base dos estados cerebraisrdquo
17 Em outro texto Searle (1998c p 224) faz a seguinte comparaccedilatildeo ldquoReduccedilotildees eliminatoacuterias exigem uma distinccedilatildeo entre a realidade e a aparecircncia Por exemplo o Sol parece se pocircr mas na realidade eacute a Terra que realiza o movimento de rotaccedilatildeo Mas vocecirc natildeo pode fazer este movimento para a consciecircncia porque no que diz respeito agrave consciecircncia a realidade eacute a aparecircncia Se conscientemente tenho a impressatildeo de ser consciente entatildeo sou conscienterdquo
Maxwell Morais de Lima Filho | 91
Natildeo podemos fazer uma reduccedilatildeo eliminatoacuteria da consciecircncia porque o padratildeo
das reduccedilotildees eliminatoacuterias eacute mostrar que o fenocircmeno reduzido eacute apenas uma
ilusatildeo No entanto no que diz respeito agrave consciecircncia a existecircncia da ldquoilusatildeordquo eacute
a proacutepria realidade Isso quer dizer que se me parece que estou consciente
entatildeo eu estou Natildeo haacute nada na consciecircncia aleacutem de uma sequumlecircncia de
ldquoaparecircnciasrdquo desse tipo A esse respeito a consciecircncia eacute diferente dos poentes
porque eu posso ter a ilusatildeo de que o sol estaacute se pondo por traacutes das montanhas
quando na verdade ele natildeo estaacute fazendo isso
Dessa maneira os processos neurofisioloacutegicos satildeo capazes de explicar
minuciosamente a causa da dor mas isso natildeo significa deixaacute-la de lado
como um conceito preacute-cientiacutefico muito pelo contraacuterio haja vista que a
sensaccedilatildeo dolorosa possui uma ontologia de primeira pessoa no sentido de
ser experienciada por um sujeito e de possuir um modo de existecircncia
qualitativo que a diferencia dos disparos neurocircnicos que a causam Essa
caracteriacutestica real e ineliminaacutevel da mentalidade eacute expressa por Searle
(1998b p 57-8) ao declarar que
a pura sensaccedilatildeo qualitativa de dor eacute uma propriedade do ceacuterebro bem
diferente das descargas neuronais que causam a dor Logo em se tratando de
descargas neuronais vocecirc pode obter uma reduccedilatildeo causal de dor mas natildeo
uma reduccedilatildeo ontoloacutegica Isto eacute vocecirc pode fornecer uma anaacutelise causal
completa da razatildeo de sentirmos dores mas isso natildeo mostra que as dores natildeo
existam realmente
Fazendo um apanhado geral do que apresentamos constatamos que
o filoacutesofo estadunidense critica severamente todas as principais correntes
recusando igualmente o dualismo a reduccedilatildeo ontoloacutegica e a eliminaccedilatildeo da
Psicologia Popular Para ele a criacutetica ao dualismo acabou jogando o bebecirc
junto com a aacutegua suja do banho pois os fenocircmenos mentais conscientes
foram descartados juntamente com a alma imaterial Eacute como se o pavor
pelo conceito de alma justificasse a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer
92 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
subjetividade18 do seio da natureza O polo oposto tambeacutem eacute desalentador
pois a defesa da mentalidade se faz agraves custas de uma consciecircncia natildeo fiacutesica
Searle (2006 p 23-4) pinta com essas tintas o quadro sinoacuteptico da
Filosofia da Mente
Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais que soam
ldquocartesianosrdquo porque parece que se aceitarmos os fatos teremos de aceitar
toda a metafiacutesica cartesiana Qualquer espeacutecie de mentalismo que reconheccedila
os fatos oacutebvios de nossa existecircncia eacute considerada automaticamente suspeita
[hellip] De um modo talvez mais exasperante ainda eles satildeo auxiliados nesse erro
por aqueles filoacutesofos que de bom grado reconhecem a existecircncia da consciecircncia
e assim fazendo supotildeem estar afirmando a existecircncia de algo natildeo fiacutesico
Ao recusar ambas as posiccedilotildees Searle (2006 p 26-7) pretende articular
uma concepccedilatildeo que natildeo apenas leve em consideraccedilatildeo a subjetividade do
mental mas que a fundamente nas Ciecircncias Naturais deixando de lado
quaisquer ldquoaparatos cartesianosrdquo haja vista que o mental eacute fiacutesico
[O] fato de uma caracteriacutestica ser mental natildeo implica que natildeo seja fiacutesica o fato
de uma caracteriacutestica ser fiacutesica natildeo implica que natildeo seja mental Revisitando
Descartes [] poderiacuteamos dizer natildeo somente ldquopenso logo existordquo e ldquosou um ser
pensanterdquo mas tambeacutem sou um ser pensante portanto sou um ser fiacutesicordquo
[]
Minhas proacuteprias concepccedilotildees natildeo se encaixam em nenhum dos roacutetulos
tradicionais mas para muitos filoacutesofos a ideia de que algueacutem possa defender
um ponto de vista que natildeo se encaixe nessas categorias parece incompreensiacutevel
Pior ainda talvez haacute diversos substantivos e verbos que parecem ter significados
claros como se realmente apresentassem objetos e atividades bem definidos ndash
ldquomenterdquo ldquoegordquo e ldquointrospecccedilatildeordquo satildeo exemplos oacutebvios
A concepccedilatildeo positiva de Searle (1980b p 455) ndash por ele denominada
de naturalismo bioloacutegico ndash surgiu pela primeira vez quando rebateu as
criacuteticas feitas a Mentes Ceacuterebros e Programas no artigo Intencionalidade
Intriacutenseca ocasiatildeo na qual comparou os estados mentais agraves propriedades
18 Para mais informaccedilotildees sobre o importante papel da subjetividade no naturalismo bioloacutegico consultar Lima Filho (2017c)
Maxwell Morais de Lima Filho | 93
de um pneu Na ocasiatildeo seu principal alvo era atacar o funcionalismo
computacional ao apontar as limitaccedilotildees intriacutensecas ao programa de
computador ao mesmo tempo em que destacava a relevacircncia do estofo
bioloacutegico para a mentalidade No entanto tambeacutem vislumbramos nesse
texto o seu repuacutedio ao irrealismo do mental propugnado pelos fisicalistas
redutivos e eliminativos e ao caraacuteter natildeo fiacutesico resguardado pelos dualistas
de substacircncia e de propriedade Natildeo consiste nenhuma surpresa que a
estrateacutegia ofensiva de Searle tenha gerado contra-ataques dos mais
variados vieses dualistas e fisicalistas os quais o impulsionaram em parte
a desenvolver cada vez mais a sua posiccedilatildeo ancorada em dois grandes
compromissos teoacutericos a saber a subjetividade e a biologicidade do
mental Os fenocircmenos mentais ndash ontologicamente subjetivos ndash satildeo
bioloacutegicos tanto na acepccedilatildeo evolutiva quanto na funcional De acordo com
esta uacuteltima os processos neurofisioloacutegicos causam e sustentam a
mentalidade a qual surgiu historicamente devido aos processos evolutivos
que atuaram sobre linhagens animais no decorrer das eras geoloacutegicas19
Referecircncias
ABRANTES Paulo Cesar Coelho T Nagel e os limites de um reducionismo fisicalista (uma
introduccedilatildeo ao artigo ldquoWhat is it like to be a batrdquo) Cadernos de Histoacuteria e Filosofia
da Ciecircncia Campinas v 15 n 1 janeirojunho p 223-44 2005
BLACKBURN Simon Dicionaacuterio Oxford de filosofia Traduccedilatildeo de Desideacuterio Murcho
Pedro Galvatildeo Ana Cristina Domingues Pedro Santos Clara Joana Martins e Antocircnio
Horta Branco Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1997
CHANGEUX Jean-Pierre O homem neuronal Traduccedilatildeo de Artur Jorge Pires Monteiro
Lisboa Publicaccedilotildees Dom Quixote 1985
CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia uma introduccedilatildeo contemporacircnea agrave filosofia
da mente Traduccedilatildeo de Maria Clara Cescato Satildeo Paulo Editora UNESP 2004
19 Expomos a concepccedilatildeo naturalista de Darwin e o pano de fundo cientiacutefico do naturalismo bioloacutegico em Lima Filho (2015a 2015b 2017a e 2017b)
94 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
COTTINGHAM John A filosofia de Descartes Traduccedilatildeo de Maria do Rosaacuterio Sousa
Guedes Lisboa Ediccedilotildees 70 1989
_____ Descartes a filosofia da mente de Descartes Traduccedilatildeo de Jesus de Paula Assis Satildeo
Paulo Editora UNESP 1999
DESCARTES Reneacute Meditaccedilotildees Traduccedilatildeo de J Ginsburg e Bento Prado Juacutenior Satildeo Paulo
Nova Cultural 1996
_____ Meditaccedilotildees sobre filosofia primeira Traduccedilatildeo de Fausto Castilho Campinas
Editora da Unicamp 2004
GAUKER Christopher Sobre a alegada prioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem
In TSOHATZIDIS Savas (Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila
significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora
UNESP 2012 p 143-63
JACKSON Frank What Mary didnt know The Journal of Philosophy v 83 n 5 p 291-
5 1986
_____ Epiphenomenal qualia In HEIL John (Ed) Philosophy of mind a guide and
anthology Oxford University Press 2004 p 762-71
LECLERC Andreacute Intencionalidade In BRANQUINHO Joatildeo SANTOS Ricardo (Eds)
Compecircndio em linha de problemas de filosofia analiacutetica Lisboa Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa p 1-25 2015 Disponiacutevel em lt
httprepositorioulptbitstream10451200431leclerc_2015_intencionalidadep
dfgt Acesso em 25 jul 2017
LIMA FILHO Maxwell Morais de O experimento de pensamento do quarto chinecircs a criacutetica
de John Searle agrave inteligecircncia artificial forte Argumentos ndash Revista de Filosofia n 3
p 51-8 2010a
_____ O problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico o dilema entre
epifenomenalismo e sobredeterminaccedilatildeo Cadernos UFS Filosofia v 8 p 85-96
agodez 2010b
_____ Teoria atocircmica biologia evolutiva e consciecircncia In SOUZA Marcus Joseacute Alves de
LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs) Escritos de filosofia linguagem e
cogniccedilatildeo Maceioacute EDUFAL 2015a p 31-46
Maxwell Morais de Lima Filho | 95
_____ A criacutetica de Darwin ao argumento teleoloacutegico de Paley In MAIA Antonio Glaudenir
Brasil OLIVEIRA Geovani Paulino (Orgs) Filosofia religiatildeo e secularizaccedilatildeo
Porto Alegre Editora Fi 2015b p 84-108
_____ Pode-se estudar cientificamente a consciecircncia In ARAUacuteJO Arthur et al (Orgs)
Pragmatismo filosofia da mente e filosofia da neurociecircncia Satildeo Paulo
Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia (Coleccedilatildeo XVII Encontro ANPOF)
2017a p 379-95 Republicado em SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO
Maxwell Morais de (Orgs) Escritos de filosofia II linguagem e cogniccedilatildeo Maceioacute
EDUFAL 2017b p 67-89
_____ Subjetividade ontoloacutegica no naturalismo bioloacutegico de John Searle In TEMPLE
Giovana C (Org) Subjetividade no pensamento do seacuteculo XX Curitiba Appris
Editora 2017c p 267-85
MOURAL Josef The chinese room argument In SMITH Barry (Ed) John Searle
Cambridge University Press 2003 p 214-60
PEREIRA Roberto Horaacutecio de Saacute Qualia In BRANQUINHO Joatildeo SANTOS Ricardo
(Eds) Compecircndio em linha de problemas de filosofia analiacutetica Lisboa Centro
de Filosofia da Universidade de Lisboa p 1-14 2013 Disponiacutevel em
lthttpcompendioemlinhaletrasulisboaptqualia-roberto-horacio-pereiragt
Acesso em 27 jun 2016
PLACE Ullin Thomas Is conciousness a brain process In CHALMERS David (ed)
Philosophy of mind classical and contemporary readings New YorkOxford
Oxford University Press 2002 p 55-60
RORTY Richard A filosofia e o espelho da natureza Traduccedilatildeo de Antocircnio Tracircnsito Rio
de Janeiro Relume Dumaraacute 1994
_____ Fisicalismo natildeo-redutivo In _____ Objetivismo relativismo e verdade escritos
filosoacuteficos volume 1 Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume
Dumaraacute 1997 p 157-72
RYLE Gilbert Introduccedilatildeo agrave psicologia o conceito de espiacuterito Traduccedilatildeo de M Luiacutesa
Nunes Lisboa Moraes Editores 1970
SEARLE John Minds brains and programs Behavioral and Brain Sciences v 3 n 3 p
417-24 1980a
96 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ Intrinsic intentionality reply to criticisms of Minds brains and programs
Behavioral and Brain Sciences v 3 n 3 p 450-6 1980b
_____ Mente ceacuterebro e ciecircncia Traduccedilatildeo de Artur Moratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1984
_____ Intencionalidade Traduccedilatildeo de Julio Fischer e Tomaacutes Rosa Bueno Satildeo Paulo
Martins Fontes 1995
_____ A consciecircncia como um problema bioloacutegico In _____ O misteacuterio da consciecircncia
e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji
Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra 1998a p 29-45
_____ Francis Crick o problema da integraccedilatildeo e a hipoacutetese dos quarenta hertz In _____
O misteacuterio da consciecircncia e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers
Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra
1998b p 47-62
_____ Como transformar o misteacuterio da consciecircncia no problema da consciecircncia In _____
O misteacuterio da consciecircncia e discussotildees com Daniel C Dennett e David J Chalmers
Traduccedilatildeo de Andreacute Yuji Pinheiro Uema e Vladimir Safatle Satildeo Paulo Paz e Terra
1998c p 201-26
_____ Mente linguagem e sociedade filosofia no mundo real Traduccedilatildeo de F Rangel
Rio de Janeiro Rocco 2000
_____ Filosofia contemporacircnea nos Estados Unidos In BUNNIN Nicholas TSUI-JAMES
Eric (Eds) Compecircndio de filosofia Traduccedilatildeo de Luiz Paulo Rouanet Satildeo Paulo
Ediccedilotildees Loyola 2002a p 1-23
_____ Twenty-one years in the chinese room In PRESTON John BISHOP Mark (Eds)
Views into the chinese room new essays on Searle and artificial intelligence New
York Oxford University Press 2002b p 51-69
_____ A redescoberta da mente Traduccedilatildeo de Eduardo Pereira Ferreira 2 ed Satildeo Paulo
Martins Fontes 2006
_____ Los haacutebitos del pensamiento critico Entrevista a John Searle Traduccioacuten de Edison
Otero Bello Cuadernos de Neuropsicologiacutea Valparaiso v 1 n 1 p 58-71 2007
Maxwell Morais de Lima Filho | 97
_____ O problema da consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de
Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010a p 1-19
_____ Como estudar cientificamente a consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010b p 21-50
_____ A consciecircncia In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira
Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010c p 51-92
_____ As mentes dos animais In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio
Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010d p 93-119
_____ A intencionalidade e seu lugar na natureza In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010e p 121-42
_____ A explicaccedilatildeo da cogniccedilatildeo In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio
Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010f p 171-210
_____ A intencionalidade individual e os fenocircmenos sociais na teoria dos atos de fala In
_____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo
Martins Fontes 2010g p 231-53
_____ A filosofia analiacutetica e os fenocircmenos mentais In _____ Consciecircncia e linguagem
Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010h p 335-73
_____ O que eacute a linguagem algumas observaccedilotildees preliminares In TSOHATZIDIS Savas
(Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo
de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora UNESP 2012 p 17-51
_____ Por que eu natildeo sou um dualista de propriedades Traduccedilatildeo de Joseacute Renato Freitas
Recircgo amp Juliana de Orione Arraes Fagundes Filosofando Revista de Filosofia da
UESB Vitoacuteria da Conquista n 2 juldez p 104-14 2014
TEIXEIRA Joatildeo de Fernandes A mente segundo Dennett Satildeo Paulo Perspectiva 2008
TURING Alan Computing machinery and intelligence Mind v 59 n 236 p 433-60 1950
5
Da Natureza Humana
As Perspectivas Epistemoloacutegicas
de Piaget Chomsky e Foucault
Argus Romero Abreu de Morais 1
Consideraccedilotildees Iniciais
Em 1971 convidados pelo apresentador holandecircs Fons Elders para
um debate televisivo Noam Chomsky e Michel Foucault aceitaram
esclarecer suas perspectivas a respeito dos conceitos de natureza humana
justiccedila e poder (CHOMSKY 2014) Poucos anos apoacutes em 1975 Jean Piaget
e Noam Chomsky se reuniram com renomados pesquisadores do mundo
na Abadia de Royaumont na Franccedila para discutirem as questotildees
vinculadas agrave aquisiccedilatildeo e agrave aprendizagem da linguagem humana
(PIATELLI-PALMARINI 1983)
A nosso ver aproximar tais debates torna-se interessante por
permitir elucidar os pressupostos epistemoloacutegicos de autores acadecircmicos
tatildeo relevantes do seacuteculo XX e com isso demarcar as linhas de tensatildeo entre
seus campos e as escolhas teoacutericas das suas pesquisas Nesse sentido no
presente trabalho Chomsky funciona como uma espeacutecie de elo virtual
entre Foucault e Piaget os quais natildeo produziram um debate particular
Natildeo obstante entendemos que os apontamentos feitos por estes dois
1 Professor colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Cultura Educaccedilatildeo e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGCELUESB) e poacutes-doutorando no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Teoria Literaacuteria e Criacutetica da Cultura da Universidade Federal de Satildeo Joatildeo del-Rei (PROMELUFSJ) Email argusromeroyahoocombr
Argus Romero Abreu de Morais | 99
uacuteltimos teoacutericos durante a defesa de seus pilares conceituais permitem
contrastaacute-los sendo marcante a distinccedilatildeo entre ambos no que diz respeito
agrave gecircnese do conhecimento humano nos indiviacuteduos por consequecircncia agrave
Histoacuteria das Ciecircncias
Assim pretendemos colocar face a face os vieses da autorregulaccedilatildeo em
Piaget do inatismo da linguagem em Chomsky e de um certo empirismo
histoacuterico em Foucault Evidentemente cada um desses pensadores natildeo soacute
possui uma enorme produccedilatildeo teoacuterica sobre distintos temas acadecircmicos
como tambeacutem apresentou mudanccedilas de perspectiva nas deacutecadas seguintes
Apesar disso entendemos que os fundamentos epistecircmicos das suas aacutereas de
pesquisa natildeo se alteraram significativamente ao longo do tempo garantindo
certa coerecircncia aos seus projetos de estudo
Natildeo eacute nosso intuito portanto em um breve texto dar conta da
amplitude das contribuiccedilotildees desses pensadores seja pela nossa incapacidade
de cumprir com tal propoacutesito seja pelos limites impostos pelo nosso recorte
investigativo o qual prioriza avaliar os argumentos dos trecircs estudiosos em
torno da existecircncia ou natildeo de uma natureza humana Cumpre-nos destacar
que nos vinculamos agrave epistemologia da Anaacutelise do Discurso Francesa (AD) a
qual pressupotildee a determinaccedilatildeo histoacuterica das formaccedilotildees sociais humanas
inclusive a do proacuteprio pensamento Foucault eacute considerado um dos
principais expoentes desse campo de estudos sendo por conseguinte a
partir do seu olhar discursivo que concluiremos o presente escrito tecendo
comentaacuterios criacuteticos aos demais domiacutenios Antes disso apresentaremos a
perspectiva piagetiana em seguida a abordagem chomskyana
A Funccedilatildeo Sensoacuterio-Motora como Fundamento da Formaccedilatildeo da Linguagem2
Eacute verdade que a auto-regulaccedilatildeo eacute em parte inata mas a tiacutetulo mais de
funcionamento do que de estrutura
Jean Piaget
2 Almejando tornar o texto mais fluido colocaremos as citaccedilotildees diretas ndash ipsis litteris ndash que fundamentam os nossos raciociacutenios em notas de rodapeacute Ressaltamos todavia que utilizaremos um nuacutemero expressivo de notas permitindo o acesso do leitor aos argumentos dos proacuteprios debatedoresautores Esperamos com isso possibilitar o esclarecimento e aprofundamento teoacutericos que o tema exige
100 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Segundo Piaget os estudos que definem a aprendizagem humana
pela associaccedilatildeo entre percepccedilotildees dos indiviacuteduos e objetos se mostraram
ineficientes na tentativa de explicar a formaccedilatildeo do conhecimento humano
(criacutetica ao meacutetodo empirista) Para o epistemoacutelogo esse modelo teoacuterico
tem por principal falha natildeo considerar a atividade do sujeito na construccedilatildeo
do proacuteprio conhecimento engendrado por dois processos
interdependentes o processo de assimilaccedilatildeo no qual os indiviacuteduos
assimilariam novos objetos a esquemas previamente conformados nas
suas estruturas cognitivas e no sentido inverso o processo de
acomodaccedilatildeo no qual os antigos esquemas se acomodam de acordo com as
particularidades dos novos objetos produzindo com isso novos esquemas
(PIATELLI-PALMARINI 1983)3
Busca-se assim definir os constructos cognitivos como frutos de
uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o ser e o mundo desconstruindo a
necessidade de um a priori universal inato ndash criacutetica ao Gerativismo ndash em
prol de um pensamento dinacircmicosistecircmico Desse modo a um soacute tempo
Piaget renega o empreendimento empirista segundo o qual o sujeito se
ajusta ao mundo pelas experiecircncias (o sujeito seria uma taacutebula rasa) e
descarta a empreitada gerativista chomskyana na qual a forma do sujeito
eacute preacutevia agrave experiecircncia e agrave forma do mundo (PIATELLI-PALMARINI 1983)4
Consoante Piaget apenas o funcionamento da inteligecircncia humana eacute
hereditaacuterio sendo essa definida como o mecanismo capaz de gerar
3 Ao criticar o Empirismo Behaviorista campo teoacuterico tambeacutem renegado por Chomsky Piaget destaca ldquoNenhum conhecimento se deve somente agraves percepccedilotildees pois estas satildeo sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de accedilotildees O conhecimento procede pois da accedilatildeo e toda a accedilatildeo que se repete ou se generaliza por aplicaccedilatildeo a novos objetos gera por isso mesmo um lsquoesquemarsquo ou seja uma espeacutecie de conceito praacutexico A ligaccedilatildeo fundamental constitutiva de todo o conhecimento natildeo eacute portanto uma simples associaccedilatildeo entre objetos mas a assimilaccedilatildeo dos objetos a esquemas desse indiviacuteduo Esse processo prolonga aliaacutes diversas formas de lsquoassimilaccedilotildeesrsquo bioloacutegicas das quais a assimilaccedilatildeo cognitiva eacute um caso particular enquanto processo funcional de integraccedilatildeo Em contrapartida quando os objetos satildeo assimilados aos esquemas de accedilatildeo haacute a obrigaccedilatildeo de uma acomodaccedilatildeo agraves particularidades desses objetos (cf os lsquoaccommodatsrsquo fenotiacutepicos em biologia) e essa acomodaccedilatildeo resulta de dados exteriores logo da experiecircnciardquo (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor)
4No dizer de Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor) ldquoCinquenta anos de experiecircncias ensinaram-nos que natildeo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observaccedilotildees Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas soacute o funcionamento da inteligecircncia eacute hereditaacuterio e soacute gera estruturas mediante uma organizaccedilatildeo de accedilotildees sucessivas exercidas sobre objetosrdquo
Argus Romero Abreu de Morais | 101
continuamente estruturas conceituais atraveacutes de operaccedilotildees sobre os
objetos A seu ver assim como a Psicanaacutelise de Jung o projeto gerativista
se equivoca ao confundir as estruturas gerais do espiacuterito com a existecircncia
de estruturas inatas base da suposiccedilatildeo da linguagem como faculdade
hereditaacuteria alocada no ceacuterebro humano Segundo aponta eacute possiacutevel a
existecircncia das primeiras sem que haja as segundas
Definida como construtivista a Epistemologia Geneacutetica piagetiana
expotildee aleacutem do argumento da confusatildeo entre universalidade e inatismo
dois motivos principais para negar a hipoacutetese nativista do Gerativismo
primeiro na forma como estaacute posta a Gramaacutetica Universal (GU) supotildee
que a linguagem humana seria resultado de mutaccedilotildees exclusivas agrave espeacutecie
humana sem que consiga contudo dar explicaccedilotildees plausiacuteveis sobre o(s)
porquecirc(s) desse privileacutegio segundo conseguir-se-ia chegar agraves mesmas
conclusotildees de existecircncia de estruturas universais caso se concebesse a
linguagem como produto de um processo de autorregulaccedilatildeo dispensando
com isso os problemas dos universais modulares de Chomsky (PIATELLI-
PALMARINI 1983)
A autorregulaccedilatildeo funciona portanto como o conceito-chave do
Construtivismo na medida em que eacute o mecanismo responsaacutevel tanto pela
construccedilatildeo humana do conhecimento quanto pela organizaccedilatildeo da
realidade natildeo caoacutetica do mundo Ambos tecircm em comum o fato de se
disporem em forma loacutegico-matemaacutetica Ademais diferentemente da
recursividade algoriacutetmica tal como proposta por Chomsky o pensamento
sistecircmico de Piaget sugere que o retorno agraves estruturas cognitivas de base
natildeo ocorre sobre as regras iniciais como se os componentes primeiros
fossem estaacuteveis na relaccedilatildeo entre o ser e o mundo5
5 Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 83) expressa do seguinte modo seu pensamento sistecircmico ldquoA auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio do organismo limita-se em geral e normalmente a conservar um certo estado de equiliacutebrio e em caso de desvio ou de nova formaccedilatildeo a reconduzi-lo ao estado inicial Enquanto que pelo contraacuterio a auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio dos comportamentos impele incessantemente o organismo o sujeito se se trata de comportamento cognitivo para novos avanccedilos O organismo fisioloacutegico natildeo tem razatildeo de espeacutecie alguma para variar [] A conservaccedilatildeo eacute a norma suprema para o equiliacutebrio fisioloacutegico Ao passo que pelo contraacuterio quando se aborda o terreno do comportamento este persegue dois objetivos o primeiro eacute a extensatildeo do meio superar o meio no qual o organismo estaacute atualmente mergulhado por exploraccedilotildees e pesquisas em novos meios e o segundo o reforccedilo dos poderes do organismo sobre o meiordquo
102 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Para Piaget haacute a superaccedilatildeo contiacutenua do modelo antecedente pelos
modelos subsequentes na mente da crianccedila que embora mais complexos
estavam presentes no anterior como possibilidade ndash latente ndash de
existecircncia e que quando concretizados superam o anterior englobando-
o a saber sensoacuterio-motor de 0 a 1824 meses periacuteodo que antecede a
proacutepria linguagem preacute-operatoacuterio de 162 anos a 78 anos periacuteodo
marcado pelo desenvolvimento das representaccedilotildeessiacutembolos o
operatoacuterio-concreto de 78 anos a 1112 anos periacuteodo da construccedilatildeo
loacutegica e por fim operatoacuterio-formal de 1112 anos em diante periacuteodo em
que a crianccedila eacute capaz de raciociacutenios hipoteacutetico-dedutivos (PIATELLI-
PALMARINI 1983)6
Logo todo sistema se torna subsistema de um novo sistema isto eacute uma
subestrutura da nova estrutura organizadora seguindo um movimento em
direccedilatildeo agrave maior complexidade No caso do pensamento humano quanto
mais proacuteximo da organizaccedilatildeo loacutegica do real melhor o sistema recriado pelas
suas estruturas intelectivas Nesse vieacutes supotildee-se que o ceacuterebro humano seja
capaz de reproduzir internamente a mesma complexidade que o mundo
produz de forma dessubjetivada externamente Isto eacute concluiacutedas as etapas
de amadurecimento cognitivo no indiviacuteduo este seria capaz de reproduzir
ainda que inconscientemente o mesmo niacutevel de complexidade das estruturas
do mundo na forma de conhecimento (matemaacutetico por excelecircncia)
(PIATELLI-PALMARINI 1983)7
Destarte conforme o epistemoacutelogo suiacuteccedilo tanto o pensamento
humano como as ideias cientiacuteficas parecem funcionar por meio da
6 No que diz respeitos agraves etapas de maturaccedilatildeo do conhecimento humano Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 40) especifica ldquoEm primeiro lugar um periacuteodo sensoacuterio-motor anterior agrave linguagem vecirc constituir-se uma loacutegica das accedilotildees (relaccedilotildees de ordem concatenaccedilatildeo de esquemas intersecccedilotildees estabelecimentos de correspondecircncia etc) fecunda em descobertas e mesmo invenccedilotildees (objetos permanentes organizaccedilatildeo do espaccedilo causalidade etc) Dos 2 aos 7 anos haacute uma conceptualizaccedilatildeo das accedilotildees logo representaccedilotildees com descoberta de funccedilotildees entre as co-variaccedilotildees de fenocircmenos identidades etc mas ainda sem operaccedilotildees reversiacuteveis nem conservaccedilotildees Estas duas uacuteltimas constituem-se ao niacutevel das operaccedilotildees concretas (7-10 anos) com lsquoagrupamentosrsquo logicamente estruturados mas ainda ligados agrave manipulaccedilatildeo de objetos Finalmente por volta dos 11-12 anos constitui-se uma loacutegica proposicional hipoteacutetico-dedutiva sem combinatoacuterio lsquoconjunto de partesrsquo grupos de quaternidade etcrdquo
7 A respeito da relaccedilatildeo entre conhecimento e realidade Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 81) assevera ldquoRecuso-me terminantemente por minha parte a pensar que as estruturas matemaacutetico-loacutegicas tivessem uma origem aleatoacuteria elas nada tecircm de fortuito natildeo eacute por seleccedilotildees de sobrevivecircncia que puderam constituir-se mas por uma adequaccedilatildeo propriamente dita e detalhada agrave realidaderdquo
Argus Romero Abreu de Morais | 103
acumulaccedilatildeo de saberes No primeiro caso atraveacutes da capacidade loacutegico-
matemaacutetica ndash capacidade racional ndash de interagir com o ambiente os
indiviacuteduos adquirem estruturas de comportamento ou morfoloacutegicas via
fenoacutetipo que ainda desprovidas de hereditariedade passam a modificar o
proacuteprio genoma humano de modo que a mudanccedila nos niacuteveis inferiores
incorre por consequecircncia nos niacuteveis superiores do meio epigeneacutetico Essa
aquisiccedilatildeo de ldquofenocoacutepiasrdquo seria de acordo com Piaget a responsaacutevel por
selecionar as variaccedilotildees ou mutaccedilotildees no proacuteprio genoma passando a serem
hereditaacuterias Isso explicaria no seu dizer o modo pelo qual a proacutepria
linguagem teria evoluiacutedo na espeacutecie humana8
No segundo caso pela forma como a realidade parece se organizar
por leis que em uacuteltima instacircncia seguem a loacutegica matemaacutetica Associada
agrave pureza das formas a praacutetica cientiacutefica seria a principal responsaacutevel por
intermediar a relaccedilatildeo entre o homem e o mundo criando instrumentais
teoacutericos que possam fazer com que aquele compreenda e transforme o seu
habitat Ademais como vimos o processo de desenvolvimento da
linguagem na crianccedila repetiria com alta semelhanccedila a evoluccedilatildeo das
proacuteprias descobertas cientiacuteficas (PIATELLI-PALMARINI 1983)9
Ao sugerir uma oacutetica sistecircmica para a construccedilatildeo do conhecimento
Piaget avanccedila agrave sua maneira na proposta de um sujeito processual
dinacircmico em detrimento da imutabilidade do sujeito cartesiano em
8 O conceito de fenocoacutepia eacute um dos principais vetores do debate Piaget-Chomsky Piaget (apud PIATELLI-
PALMARINI 1983 p 81-2) explica tal categoria da seguinte forma ldquoFenocoacutepia eacute um processo bioloacutegico em que certos comportamentos (eacute sobretudo vaacutelido no domiacutenio dos comportamentos) ou entatildeo uma certa forma ou estrutura morfoloacutegica satildeo primeiramente adquiridos pelo fenoacutetipo mas sem hereditariedade O fenoacutetipo pelo contraacuterio modifica o meio interior e modifica os niacuteveis superiores pelo meio epigeneacutetico e entatildeo as variaccedilotildees ou as mutaccedilotildees que podem produzir-se no genoma seratildeo selecionadas natildeo pelo meio exterior mas por esse meio interior ou epigeneacutetico que vai canalizaacute-las na mesma direccedilatildeo da conduta jaacute adquirida pelo fenoacutetipo por outras palavras haveria uma reconstruccedilatildeo geneacutetica ou gecircnica de uma aquisiccedilatildeo feita pelo fenoacutetipordquo
9 Sobre o tema Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 48) conclui ldquoPara periacuteodos mais vastos da histoacuteria eacute evidente que natildeo se encontra um paralelismo estaacutegio por estaacutegio mas eacute possiacutevel encontrar mecanismos comuns [] Ora deparamo-nos com um processo anaacutelogo [agrave histoacuteria da geometria ocidental] embora em escala reduzida nas crianccedilas as quais comeccedilam naturalmente pelo intrafigural mas descobrem por volta dos 7 anos que para determinar um ponto num plano natildeo basta uma medida sendo precisas duas que estejam dispostas de maneira ortogonal A essa etapa lsquointerfiguralrsquo (necessaacuteria tambeacutem para a construccedilatildeo de horizontais) sucede aquela que podemos denominar lsquotransfiguralrsquo em que as propriedades a descobrir natildeo podem ler-se numa uacutenica figura mas requerem uma deduccedilatildeo e um caacutelculo as curvas mecacircnicas os movimentos relativos etcrdquo
104 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Chomsky10 o qual antecede a experiecircncia Desse modo por um lado sua
perspectiva de geraccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da linguagem a partir dos
significantes sensoacuterio-motores ndash associaccedilatildeo de objetos a esquemas de accedilatildeo
ndash o opotildee ao modo pelo qual Chomsky entende o ldquonuacutecleo fixordquo da
linguagem por outro ao prescindir da opacidade do mundo em relaccedilatildeo agrave
linguagem bem como das rupturas e contradiccedilotildees advindas da histoacuteria
contrasta indiretamente sua teoria com a perspectiva do pensamento
sustentada por Foucault
O Algoritmo eacute o Sujeito
Se qualquer coisa fosse possiacutevel entatildeo nada seria possiacutevel
Noam Chomsky
Para Chomsky (1979) o ceacuterebro humano eacute arquitetado por diferentes
subsistemas inatos em interaccedilatildeo limitada os quais decorrem de distintos
processos evolutivos no Homo sapiens A linguagem seria uma dessas
faculdades isto eacute um subsistema da inteligecircncia humana que permite a
interface com o moacutedulo conceptual-intencional (semacircntico-pragmaacutetico) e
o perceptual-articulatoacuterio (sensoacuterio-motor) Sendo a forma da linguagem
restrita evolutivamente agraves formas representacionais possiacuteveis no ceacuterebro
humano pode-se adquirir apenas o que eacute biologicamente previsto11
Nesse vieacutes o empreendimento gerativista se baseia em pelo menos
trecircs hipoacuteteses importantes para as Ciecircncias Cognitivas em particular no
que toca agrave Linguiacutestica (I) a estrutura representacional do pensamento
humano eacute preacutevia a toda experiecircncia do corpo de modo que a linguagem
10 Sobre esse toacutepico Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 45) destaca ldquoMas o que os inatistas parecem esquecer de maneira surpreendente eacute que existe um mecanismo tatildeo geral quanto a hereditariedade e que num sentido ateacute a comanda eacute a auto-regulaccedilatildeo a qual desempenha um papel em todas as escalas desde o genoma e um papel tanto mais importante quanto mais se avizinha dos niacuteveis superiores e do comportamento A auto-regulaccedilatildeo cujas raiacutezes satildeo evidentemente orgacircnicas eacute assim comum aos processos vitais e mentais e suas accedilotildees tecircm aleacutem disso a grande vantagem de ser diretamente controlaacuteveis portanto eacute nessa direccedilatildeo e natildeo na da simples hereditariedade que conveacutem buscar a explicaccedilatildeo bioloacutegica das construccedilotildees cognitivas tanto mais que pelo jogo das regulaccedilotildees de regulaccedilotildees a auto-regulaccedilatildeo eacute por sua proacutepria natureza eminentemente construtivista (e dialeacutetica)rdquo
11 Para aprofundar essas questotildees sugerimos a leitura de Chomsky (2006 2008) e de Berwick e Chomsky (2017) Utilizaremos algumas passagens dessas obras no presente texto
Argus Romero Abreu de Morais | 105
deve ser explicada com relaccedilatildeo agrave heranccedila bioloacutegica da espeacutecie humana (II)
a linguagem humana eacute constituiacuteda por um conjunto de algoritmos ndash regras
de formaccedilatildeo ndash implementados no nosso ceacuterebro os quais fundariam o
ldquoestado inicial S0 geneticamente determinadordquo12 tambeacutem conhecido como
Gramaacutetica Universal (GU) a qual conteacutem os princiacutepios pelos quais pode-
se adquirir uma dada liacutengua natural ndash condicionada agrave experiecircncia humana
ndash ateacute chegar a um ldquoestado estacionaacuteriordquo (steady state) (III) a Linguiacutestica
deve se formalizar de modo a explicar como um indiviacuteduo eacute capaz de gerar
um nuacutemero infinito de frases em sua liacutengua vernaacutecula a partir de um
conjunto limitado de regras sintaacuteticas (infinitude discreta) em vista disso
a teoria chomskyana eacute chamada de Gramaacutetica Gerativa13
Se tanto Chomsky como Piaget parecem concordar com a existecircncia
de um ldquonuacutecleo fixordquo da linguagem o linguista norte-americano se afasta
do bioacutelogo suiacuteccedilo ao responder as duas principais criacuteticas piagetianas ao
seu modelo teoacuterico quais sejam (a) a inexplicabilidade das mutaccedilotildees na
espeacutecie humana responsaacuteveis por lhe dotar dessas estruturas inatas (b) a
consideraccedilatildeo da inteligecircncia sensoacuterio-motora na formaccedilatildeo da inteligecircncia
simboacutelica seria tatildeo eficiente quanto a hipoacutetese do inatismo na explicaccedilatildeo
da formaccedilatildeo desse ldquonuacutecleo fixordquo
12 Consoante Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoO desenvolvimento dessa pessoa (em um ambiente natural) efetua-se a partir do estado inicial S0 geneticamente determinado passa por uma sequecircncia de estados S1 S2 e atinge finalmente um lsquoestado estacionaacuteriorsquo (steady state) S8 o qual soacute parece entatildeo modificar-se de maneira secundaacuteria (digamos por acreacutescimo de vocabulaacuterio novo) O estado estacionaacuterio eacute alcanccedilado numa idade relativamente fixa aparentemente na puberdade ou um pouco antesrdquo
13 De acordo com Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoEle [investigador independente] abordaraacute ou deveria abordar o estudo das estruturas cognitivas como eacute o caso da linguagem humana de uma forma anaacuteloga agravequela como estudaria um oacutergatildeo do corpo ndash o olho ou o coraccedilatildeo por exemplo ndash a fim de determinar (I) as suas caracteriacutesticas num dado indiviacuteduo (II) suas propriedades gerais invariantes de uma espeacutecie agrave outra abstraccedilatildeo feita de todo o deacuteficit flagrante (III) seu lugar num sistema de estruturas desse tipo (IV) o curso do seu desenvolvimento no indiviacuteduo em questatildeo (V) o fundamento geneticamente determinado desse desenvolvimento (VI) os fatores que deram origem a esse oacutergatildeo no decorrer da evoluccedilatildeordquo No que concerne aos aspectos matemaacuteticos dos estudos da mente humana Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 2014 p 16) complementa ldquoEntendo por isso [teoria matemaacutetica da mente] simplesmente uma teoria abstrata articulada com precisatildeo e formulada com clareza que tenha consequecircncias empiacutericas que nos permita saber se a teoria estaacute certa ou errada ou se estaacute no caminho errado ou certo E que ao mesmo tempo tenha as propriedades da ciecircncia matemaacutetica isto eacute as propriedades do rigor e da precisatildeo e uma estrutura que nos permita deduzir conclusotildees a partir de hipoacuteteses e assim por dianterdquo Por fim Berwick e Chomsky (2017 p 108) esclarecem o que entendem por infinitude discreta ldquoDiscreta porque haacute frases de cinco palavras e frases de seis palavras mas nenhuma frase de cinco palavras e meia infinita porque natildeo haacute [virtualmente] uma frase que seja a frase mais longa da liacutenguardquo
106 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A esse respeito Chomsky responde que apesar de haver brechas na
teoria evolutiva no que concerne ao entendimento da seleccedilatildeo natural em
relaccedilatildeo ao corpo humano natildeo haacute outra compreensatildeo possiacutevel para
considerar a constituiccedilatildeo dos seus oacutergatildeos Nesse sentido considera-se que
a estrutura interna dos distintos oacutergatildeos do organismo bem como seu
desenvolvimento e funcionamento satildeo independentes das experiecircncias
ontogeneacuteticas do ser Isso o impede de concordar com a hipoacutetese das
fenocoacutepias a qual sugere que estruturas adquiridas poderiam ser
absorvidas pelo genoma
Como universalizar no desenvolvimento dos indiviacuteduos algo
adquirido Essa eacute uma questatildeo que de acordo com Chomsky natildeo pode
ser resolvida pelo mecanismo construtivo da autorregulaccedilatildeo o qual natildeo
limitaria o nuacutemero de estados possiacuteveis na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro A
soluccedilatildeo seria considerar que a mente se reduz causalmente ao ceacuterebro
Ademais a derivaccedilatildeo do sistema simboacutelico do estaacutegio sensoacuterio-motor na
crianccedila e a sua estabilizaccedilatildeo via processo de autorregulaccedilatildeo seriam
insuficientes para explicar o caraacuteter especiacutefico desse moacutedulo da
linguagem suas regras limites e relaccedilotildees com os demais aparatos da
inteligecircncia humana14
Chomsky (1977) relembra o curioso fato de tanto ele quanto Foucault
terem conseguido aproximar as suas opiniotildees acerca do tema da ldquonatureza
14 No dizer de Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 51) ldquoSe eacute verdade que ignoramos completamente como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias dotaram a espeacutecie humana da capacidade especiacutefica de aprender uma linguagem humana eacute igualmente verdadeiro que tambeacutem ignoramos como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias conduziram ao desenvolvimento das estruturas particulares do olho dos mamiacuteferos ou do coacutertex cerebral Natildeo concluiacutemos portanto
que essas estruturas em sua natureza fundamental no indiviacuteduo que chegou agrave maturidade satildeo determinadas por interaccedilatildeo com o meio ambiente []rdquo Berwick e Chomsky (2017 p 104 Itaacutelico dos autores) detecircm-se exclusivamente sobre o fato de a linguagem humana ser exclusiva agrave nossa espeacutecie e de sua breve existecircncia ser possiacutevel dentro de uma teoria evolucionista que considere aleacutem dos processos seletivos e adaptativos claacutessicos as mutaccedilotildees e os efeitos estocaacutesticos da Biologia Moderna ldquoDe maneira completamente desconhecida nossos antepassados desenvolveram conceitos humanos Em algum momento no passado muito recente ao que parece algum tempo antes de 80 mil anos atraacutes se pudermos julgar a partir de nossos representantes simboacutelicos indiviacuteduos em um pequeno grupo de hominiacutedeos na Aacutefrica Oriental sofreram uma pequena mudanccedila bioloacutegica que favoreceu o surgimento da operaccedilatildeo Merge ndash uma operaccedilatildeo que toma conceitos humanos como aacutetomos computacionais [leacutexico] e produz expressotildees estruturadas que sistematicamente interpretadas pelo sistema conceitual fornecem uma rica linguagem do pensamento [] A inovaccedilatildeo teve vantagens oacutebvias e se disseminou pelo pequeno grupo Em algum estaacutegio posterior a linguagem do pensamento interna estava ligada ao sistema sensoacuterio-motor []rdquo De acordo com essa abordagem a linguagem emerge como ldquoferramentardquo para o pensamento (foco na internalizaccedilatildeo) e natildeo para a comunicaccedilatildeo (foco na externalizaccedilatildeo) garantindo agravequeles que a possuem as vantagens da abstraccedilatildeo inferecircncia interpretaccedilatildeo organizaccedilatildeo da accedilatildeo e do planejamento em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que natildeo a possuem
Argus Romero Abreu de Morais | 107
humanardquo enquanto que o mesmo natildeo ocorreu com relaccedilatildeo agravequele
relacionado ao ldquoaspecto poliacutetico do saberrdquo A seu ver isso pode ser
explicado pela seguinte metaacutefora ldquoQuanto ao conceito de natureza
humana pareceu-me que cavaacutevamos a mesma montanha a partir de
direccedilotildees opostasrdquo (CHOMSKY 1977 p 78-9)
Embora seja difiacutecil supor um consenso entre o pesquisador norte-
americano defensor do inatismo da linguagem e o filoacutesofo francecircs um
dos principais nomes da empreitada filosoacutefica do ldquodescentramento do
sujeitordquo o primeiro supotildee que no fim das contas isso eacute possiacutevel pelo fato
de eles se deterem sobre as mesmas questotildees embora partindo de pontos
diferentes Para Chomsky (1977) a pesquisa cientiacutefica eacute devedora de dois
aspectos 1) as propriedades constituintes do espiacuterito e 2) as condiccedilotildees
sociais e intelectuais que possibilitam a emergecircncia e a consolidaccedilatildeo dos
saberes em um dado periacuteodo histoacuterico Natildeo se trataria de excluir um ou
outro pois ambos estatildeo relacionados Ele se deteria sobre o primeiro
abordando os processos de aquisiccedilatildeo e de desenvolvimento da linguagem
nos indiviacuteduos enquanto Foucault priorizaria a anaacutelise das condiccedilotildees
histoacutericas que possibilitam a conformaccedilatildeo social do conhecimento em
meio agraves relaccedilotildees de saber-poder (CHOMSKY 1977)15
15 Apesar de essa argumentaccedilatildeo parecer dirimir as distinccedilotildees epistemoloacutegicas dos autores via complementaridade o vieacutes chomskyano prioriza sempre os argumentos relacionados agraves estruturas cerebrais humanas em detrimento do vieacutes sociocultural foucaultiano inclusive quando tratam dos paracircmetros de cientificidade na produccedilatildeo do conhecimento humano como nos deixa entrever o seguinte raciociacutenio ldquoOra quando por felicidade acontece de algum aspecto da realidade conter a propriedade de uma das estruturas existentes em nossa mente entatildeo temos um
exemplo do conhecimento Isso quer dizer que afortunadamente a estrutura da nossa mente e a estrutura de algum aspecto da realidade coincidem o bastante para que possamos desenvolver um conhecimento inteligiacutevel Eacute exatamente essa limitaccedilatildeo inicial que existe em nossa mente quanto a certo tipo de conhecimento possiacutevel que proporciona a enorme riqueza e criatividade do conhecimento cientiacuteficordquo (CHOMSKY 2014 p 34) A ldquocoincidecircncia suficienterdquo entre as propriedades da mente e as propriedades do mundo parece curiosamente aproximar Chomsky de Piaget ou pelo menos do que o linguista norte-americano denomina de ldquodoutrinas do referencialismordquo abrindo a nosso ver uma possiacutevel contradiccedilatildeo teoacuterica com as seguintes passagens ldquoOs siacutembolos da linguagem humana e do pensamento satildeo muito diferentes [em relaccedilatildeo ao dos chimpanzeacutes] Seu uso natildeo estaacute automaticamente condicionado por estados emocionais e eles natildeo dependem de objetos independentes da mente ou eventos no mundo externo Para a linguagem e o pensamento ao que parece natildeo haacute uma relaccedilatildeo de referecircncia no sentido de Frege Peirce Tarski Quine e da filosofia contemporacircnea da linguagem e da menterdquo (BERWICK CHOMSKY 2017 p 102 Itaacutelico dos autores) Pouco depois Berwick e Chomsky (2017 p 103 Itaacutelicos dos autores) redefinem a referecircncia como um ldquoideal normativordquo para a ciecircncia ldquoPara a ciecircncia o conceito de referecircncia no sentido teacutecnico eacute um ideal normativo esperamos que os conceitos inventados de foacuteton ou de sintagma verbal se refiram a alguma coisa real dono mundo E eacute claro que o conceito de referecircncia eacute muito bom para o contexto para o qual foi inventado na loacutegica moderna para os sistemas formais em que a relaccedilatildeo de referecircncia eacute estipuladardquo Resta-nos perguntar qual o paracircmetro para
108 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Se Chomsky recorre a Descartes para estabelecer parte dos
fundamentos filosoacuteficos do Gerativismo notadamente no que concerne
ao entendimento da relaccedilatildeo entre sujeito cognoscente e objeto
cognosciacutevel16 pauta-se no corte copeacuternico-galileano da fundaccedilatildeo da ciecircncia
moderna para definir o modelo hipoteacutetico-dedutivo na pesquisa
linguiacutestica17 Logo o problema do conhecimento no sujeito eacute tambeacutem o
problema do que pode ser conhecido no mundo almejando compreender
tanto como as estruturas cognitivas humanas permitem o desvendamento
das estruturas da realidade vivenciada como a melhor forma de organizar
as primeiras no intuito de desenvolver programas investigativos
sistemaacuteticos Esse problema epistemoloacutegico eacute transversal a Piaget
Chomsky e Foucault em suas empreitadas teoacutericas de modo que eacute nesse
ponto em que suas distintas teorias sobre a formaccedilatildeo do ser tocam no
entendimento da Histoacuteria das Ciecircncias englobando a constituiccedilatildeo dos
campos disciplinares a validade das proposiccedilotildees cientiacuteficas e a
transformaccedilatildeo dos seus pressupostos ao longo do tempo
distinguir quais conceitos coincidem com a realidade e quais natildeo Quais os limites do imaginaacuterio humano em relaccedilatildeo ao simboacutelico e ao real
16 Nesse ponto Chomsky (2008 p 28) por vezes se ancora em Descartes Kant e Leibniz aproximando suas contribuiccedilotildees filosoacuteficas daquelas de Franccedilois Jacob e Jacques Monod ndash tambeacutem presentes no debate Piaget-Chomsky ndash para o entendimento da neurofisiologia da linguagem ldquoAcho que Monod estaacute certo ao comentar que lsquoessas descobertas [sobre um sistema analiacutetico primitivo em animais natildeo-humanos] apoiam num sentido novo as teses de Descartes e Kant contrariamente ao empirismo radical que tem dominado a ciecircncia por dois seacuteculos e que lanccedila suspeitas sobre qualquer hipoacutetese que postule a natureza inata das formas de conhecimentorsquo Ateacute onde sabemos os animais aprendem de acordo com um programa determinado geneticamente Natildeo haacute razatildeo para duvidar que isto seja verdade tambeacutem no que se refere lsquoagraves categorias fundamentais do conhecimento humanorsquo []rdquo Sobre o papel da experiecircncia na aprendizagem lembra ldquoQue a experiecircncia seja um requisito para colocar em funcionamento estruturas inatas ou para ativar um sistema de ideias inatas eacute algo admitido de modo bastante expliacutecito por Descartes
Leibniz e outros como parte de teorias que dificilmente podem ser consideradas lsquoempiristasrsquo []rdquo (CHOMSKY 2008 p 32-3) Em outra passagem afirma ldquoA ideia eacute lsquoinato agrave mentersquo no sentido em que Descartes argumentou que lsquoa ideia de um triacircngulo verdadeirorsquo eacute inatardquo (CHOMSKY 2008 p 48)
17 Sobre a importacircncia do corte copeacuternico-galileano para o estabelecimento do meacutetodo cientiacutefico moderno e consequentemente para a formaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Chomsky (2006 p 121) ressalta ldquoO que foi notaacutevel com respeito a Galileu e considerado muito ofensivo na eacutepoca foi que ele rejeitou muitos dados Ele estava disposto a dizer lsquoVejam se os dados refutam a teoria os dados provavelmente estatildeo erradosrsquo E os dados que descartou natildeo eram insignificantes Por exemplo ele defendia a tese de Copeacuternico mas natildeo era capaz de explicar porque os corpos natildeo se desprendiam da Terra se a Terra estaacute girando por que tudo natildeo estaacute solto no espaccedilordquo Em seguida complementa ldquoBem tudo isso eacute parte do que vocecirc poderia chamar de lsquoestilo galileanorsquo dedicaccedilatildeo agrave busca do entendimento natildeo apenas do registro O registro dos fenocircmenos em si eacute insignificante [] [] O reconhecimento de que esse eacute o caminho que a ciecircncia deve seguir se quisermos buscar o entendimento [] eacute um passo bastante grande e que tem muitas partes como a estrateacutegia galileana de descartar fenocircmenos recalcitrantes quando isso implicar um aumento de compreensatildeo a maior preocupaccedilatildeo poacutes-newtoniana com a inteligibilidade das teorias do que com o mundo e assim por dianterdquo (CHOMSKY 2006 p 125-6)
Argus Romero Abreu de Morais | 109
Para Foucault (CHOMSKY 2014) o problema da perspectiva
argumentativa de Chomsky (1977) estaria em natildeo reconhecer o fato de que
os lados da montanha natildeo podem ser separados de forma estanque pondo
o indiviacuteduo-sujeito de um lado e a constituiccedilatildeo histoacuterica do saber de
outro Isso ocasionaria um vieacutes metafiacutesico na explicaccedilatildeo da subjetividade
humana a qual poderia transformar sem ser transformada De certo
modo de tatildeo racionalista o vieacutes chomskyano entraria no campo do
idealismo rompendo com o vieacutes materialista da anaacutelise teoacuterica Tomando
por base esse raciociacutenio perguntamo-nos os domiacutenios histoacutericos do saber
possibilitam a constituiccedilatildeo e a emergecircncia das propriedades constituintes
do espiacuterito em um dado indiviacuteduo Passaremos a essa questatildeo na seccedilatildeo
seguinte
Pensamento e Discurso
E se o intelecto fosse uma estrutura complexa muacuteltipla e natildeo individual natildeo
lsquosujeita ao sujeitorsquo que produzisse resultados autecircnticos
Michel Foucault
O projeto filosoacutefico foucaultiano se interessa pelo entendimento
daquilo que ele chama de saber discursivo de modo a estabelecer uma
perspectiva da Histoacuteria das Ciecircncias ou das Ideias que natildeo se atenha agrave
criatividade centrada no indiviacuteduo no sujeito falante e no cientista assim
como na continuidade cumulativa do conhecimento Destarte o que se
estabelece como verdadeiro em cada periacuteodo histoacuterico depende da
maneira como uma dada sociedade organiza a validade ndash inclusive a
cientificidade ndash de determinados dizeres e por consequecircncia exclui a de
outros criando mecanismos sociais de controle do que se pode ou deve
dizer sobre um dado objeto
Para Foucault a liacutengua como sistema de signos criado socialmente
conforme definida por Saussure (2006) natildeo se reduz ao discurso
possuindo uma ordem simboacutelica proacutepria com sua loacutegica e suas regras
Consoante o linguista suiacuteccedilo a liacutengua seria uma forma sendo equivocado
110 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
consideraacute-la como uma substacircncia visto que como fato social ela
funciona tambeacutem como instituiccedilatildeo estabelecendo normas classificaccedilotildees e
nomenclaturas Ela seria aleacutem disso o principal sistema organizador da
linguagem humana sendo o signo a junccedilatildeo de um conceito (significado) a
uma imagem acuacutestica (significante) ambos psiacutequicos e em relaccedilatildeo
negativa com o mundo em si O valor de um dado signo se daacute por oposiccedilatildeo
aos demais maneira pela qual estabelece suas relaccedilotildees no sistema
linguiacutestico
Segundo Foucault (2008) a liacutengua natildeo se materializa no vaacutecuo pois
para que possa produzir sentido eacute recortada pela funccedilatildeo discursiva um
modo histoacuterico de organizaacute-la em zonas do conhecimento atribuindo-lhe
conceitos isto eacute objetos Liacutengua e discurso se atravessam pela funccedilatildeo
enunciativa18 constituindo os limites da cogniccedilatildeo humana Tratar-se-ia
portanto natildeo do pensamento do sujeito mas do pensaacutevel no sujeito natildeo
do dizer do falante mas do diziacutevel pelo falante os quais necessitam de preacute-
formaccedilotildees do saber histoacuterico para que possam constituir os estados
mentais e as possibilidades de fala nos indiviacuteduos19 Natildeo haacute assim
anterioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem sob pena de o
18 Nesta seccedilatildeo em alguns momentos remeteremos aos raciociacutenios de Foucault (2008) como forma de aprofundar sua perspectiva e instrumentais teoacutericos os quais natildeo satildeo trabalhados precisamente em Chomsky (2014) Sobre a singularidade do enunciado em relaccedilatildeo agraves demais categorias de estudos da linguagem Foucault (2008 p 103 Itaacutelicos nossos) esclarece ldquoUm enunciado natildeo tem diante de si (e numa espeacutecie de conversa) um correlato - ou uma ausecircncia de correlato assim como uma proposiccedilatildeo tem um referente (ou natildeo) ou como um nome proacuteprio designa um indiviacuteduo (ou ningueacutem) Estaacute antes ligado a um lsquoreferencialrsquo que natildeo eacute constituiacutedo de lsquocoisasrsquo de lsquofatosrsquo de lsquorealidadesrsquo ou de lsquoseresrsquo mas de leis de possibilidade de regras de existecircncia para os objetos que aiacute se encontram nomeados designados ou descritos para as relaccedilotildees que aiacute se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condiccedilatildeo o campo de emergecircncia a instacircncia de diferenciaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou dos
objetos dos estados de coisas e das relaccedilotildees que satildeo postas em jogo pelo proacuteprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitaccedilatildeo do que daacute agrave frase seu sentido agrave proposiccedilatildeo seu valor de verdaderdquo
19 Sobre o assunto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 23 Itaacutelicos nossos) destaca ldquoQuando estudamos a histoacuteria do conhecimento percebemos que existem duas linhas gerais de anaacutelise de acordo com uma delas deve-se demonstrar como sob que condiccedilotildees e por que razotildees o intelecto se modifica no que diz respeito a suas regras formadoras sem passar por um lsquoinventorrsquo que descobre a verdade e de acordo com a outra deve-se demonstrar como o funcionamento das regras de um intelecto pode produzir num indiviacuteduo conhecimento novo e ineacutedito Aqui meu objetivo junta-se com meacutetodos imperfeitos e de uma forma bem inferior ao projeto do sr Chomsky ao explicar o fato de que algumas poucas regras ou elementos precisos totalidades desconhecidas que nunca foram nem produzidas podem ser elucidadas pelos indiviacuteduos Para resolver este problema o sr Chomsky tem de reintroduzir o dilema do sujeito no campo da anaacutelise gramatical Para resolver um problema anaacutelogo no campo da histoacuteria com o qual me encontro envolvido eacute preciso fazer o oposto de certo modo introduzir o ponto de vista do intelecto de suas regras de seus sistemas de suas transformaccedilotildees de totalidades no jogo do conhecimento individual Tanto em um como no outro caso o problema da criatividade natildeo pode ser resolvido da mesma maneira ou melhor natildeo pode ser formulado nos mesmos termos dada a condiccedilatildeo das disciplinas em cujo interior ele eacute colocadordquo
Argus Romero Abreu de Morais | 111
primeiro funcionar como uma instacircncia imaterial pura sem
temporalidade nem espacialidade
Sendo a linguagem uma produccedilatildeo social anterior ndash externalizada ndash
aos indiviacuteduos (seres orgacircnicos) deve-se considerar que as formas
simboacutelicas satildeo as responsaacuteveis pela instituiccedilatildeo do sujeito (aquele que
concretiza o enunciado) natildeo sendo os primeiros a dizerem o que dizem
natildeo satildeo tambeacutem o locus da gecircnese semacircntica Engajar-se numa situaccedilatildeo
de produccedilatildeo de sentidos eacute necessariamente posicionar-se ndash ou ser
posicionado ndash de acordo com as regras enunciativas vivenciadas e
institucionalizadas em sociedade Os enunciados representam as regras
historicizadas da forma de pensar e natildeo o revelar da intencionalidade e
do conhecimento em si por vezes tidos como a priori universais em
relaccedilatildeo agravequelas20 Logo como emergecircncia das organizaccedilotildees histoacutericas do
pensamento em distintas praacuteticas sociais o sujeito irrompe fragmentado
visto que sua internalidade decorre das descontinuidades dos saberes que
lhe atravessam natildeo sendo possiacutevel encontrar sua essecircncia nem na
interioridade do espiacuterito (FOUCAULT 2008) O sujeito torna-se portanto
uma instacircncia simboacutelica fugidia e clivada uma forma natildeo uma substacircncia
Agora pode-se compreender com mais clareza o motivo pelo qual
Foucault (CHOMSKY 2014) sustenta que a competecircncia natildeo eacute inata assim
como as regras do pensamento humano natildeo satildeo matemaacuteticas As
regularidades se devem aos sistemas enunciativos e estes satildeo submetidos
agraves contradiccedilotildees histoacutericas decorrentes das diversas formas de organizaccedilatildeo
dos homens em sociedade A proacutepria verdade sobre um objeto portanto
20 No que concerne agrave criatividade na linguagem conceito central na abordagem chomskyana Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 27 Itaacutelicos nossos) afirma ldquoO que de fato existe satildeo criaccedilotildees possiacuteveis inovaccedilotildees possiacuteveis Em termos de linguagem ou de conhecimento soacute se pode criar algo novo aplicando determinado nuacutemero de regras que definiratildeo a aceitabilidade ou a gramaticalidade dessas afirmaccedilotildees ou que definiratildeo no caso do conhecimento o caraacuteter cientiacutefico das afirmaccedilotildeesrdquo Em seguida acrescenta ldquoTambeacutem natildeo vejo problema em dizer que essas regras devem permitir que compreendamos aquilo que eacute falado ou pensado por esses indiviacuteduos Mas dizer que essas regulamentaccedilotildees estatildeo conectadas como precondiccedilatildeo da existecircncia agrave mente humana ou [agrave] sua natureza eacute algo difiacutecil de aceitar para mim Parece-me que antes de chegar a esse ponto ndash e seja como for estou me referindo apenas ao conhecimento ndash devemos reinseri-las no acircmbito de outras praacuteticas humanas como a economia a tecnologia a poliacutetica a sociologia que podem servir-lhes como condiccedilotildees de formaccedilatildeo de modelos de lugar de surgimento etc Gostaria de saber por que natildeo se pode descobrir o sistema de regularidade de limitaccedilatildeo ndash que torna a ciecircncia possiacutevel ndash em outro lugar mesmo fora da mente humana nos sistemas sociais nas relaccedilotildees de produccedilatildeo na luta de classes etcrdquo (FOUCAULT apud CHOMSKY 2014 p 36)
112 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
estaria submetida agrave temporalidade da histoacuteria e natildeo a uma descoberta
apesar da histoacuteria Assim em uacuteltima instacircncia a verdade estaria
condicionada agrave historicidade das ideias visto que a veracidade de um dado
referente decorre dos regimes de verdade os quais satildeo criados e
reproduzidos pelos grupos e instituiccedilotildees sociais bem como pelas relaccedilotildees
de forccedila instituiacutedas entre eles em cada sociedade (FOUCAULT 2008)
Para o filoacutesofo a proacutepria noccedilatildeo de ldquonatureza humanardquo natildeo se
configuraria como um conceito cientiacutefico funcionando mais como uma
espeacutecie de ldquoindicador epistemoloacutegicordquo que organiza distintas incursotildees
cientiacuteficas ao longo do seacuteculo XX21 Nesse sentido podemos entender que em
uma abordagem discursiva da relaccedilatildeo pensamentolinguagemmundo a
proacutepria forma deve ceder espaccedilo ao funcionamento22 Isso significa que
Foucault almeja desconstruir a psicologia interna dos sujeitos nos seguintes
termos constituiccedilatildeo social da linguagem (externalismo em oposiccedilatildeo ao
internalismoinatismo) rarr regras de enunciaccedilatildeo histoacutericas rarr
discursividades rarr pensamento rarr fala rarr condiccedilotildees de enunciaccedilatildeo rarr
sujeito do discurso (subjetividade imanente agrave linguagem em oposiccedilatildeo agrave
subjetividade transcendente) rarr praacutetica discursiva (FOUCAULT 2008)
A singularidade de uma produccedilatildeo discursiva decorre do fato de a
liacutengua(gem) por consequecircncia o proacuteprio pensamento soacute se materializar
em uma dada praacutetica constrangida por possibilidades que natildeo satildeo da sua
proacutepria ordem23 A infinidade de possibilidades para a realizaccedilatildeo de um
21 Ao comentar sobre a ldquonatureza humanardquo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 8 Itaacutelicos nossos) pondera ldquoNatildeo foi estudando a natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutaccedilatildeo consonantal que Freud descobriu
os princiacutepios da anaacutelise dos sonhos ou que os antropoacutelogos culturais descobriram as estruturas dos mitos Tenho a impressatildeo de que na histoacuteria do conhecimento a ideia de natureza humana desempenhou principalmente o papel de um indicador epistemoloacutegico [semelhante ao ideal normativo de Berwick e Chomsky (2017)] para designar certos tipos de discurso relacionados ou contraacuterios agrave teologia agrave biologia ou agrave histoacuteria Para mim seria difiacutecil ver nisso um conceito cientiacuteficordquo
22 Sobre esse aspecto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 36) pontua ldquoTalvez a diferenccedila entre o sr Chomsky e eu seja que quando fala de ciecircncia ele provavelmente estaacute pensando na organizaccedilatildeo formal do conhecimento enquanto eu estou falando do conhecimento em si ou seja eu penso no conteuacutedo de diversos conhecimentos que se encontram dispersos numa sociedade especiacutefica que permeiam a sociedade e que se afirmam como o fundamento da educaccedilatildeo das teorias das praacuteticas etcrdquo
23 Segundo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 21 Itaacutelicos nossos) ldquoO que me preocupa eacute a substituiccedilatildeo das transformaccedilotildees do intelecto pela histoacuteria das descobertas do conhecimento Desse modo eu tenho ao menos aparentemente uma atitude completamente diferente da do sr Chomsky a propoacutesito da criatividade porque para mim a questatildeo eacute eliminar o dilema do sujeito cognoscente enquanto para ele a questatildeo eacute permitir que o dilema do sujeito falante reapareccedila Poreacutem se ele o fez reaparecer se ele o descreveu eacute porque tem condiccedilotildees de fazecirc-lo Jaacute faz
Argus Romero Abreu de Morais | 113
enunciado natildeo representa a sua aleatoriedade pois esse gozaria de uma
caracteriacutestica semelhante agrave linguagem em Chomsky tendendo agrave raridade
das suas regras A diferenccedila entre o algoritmo no Gerativismo e a funccedilatildeo
enunciativa na perspectiva discursiva de Foucault eacute que esta uacuteltima se
constitui externamente ao espiacuterito sendo adquirida pelas experiecircncias em
sociedade Essa espeacutecie de empirismo histoacuterico natildeo se associa ao
comportamentalismo skinneriano dado que natildeo se funda na
transparecircncia da relaccedilatildeo entre o sistema perceptual e o mundo e na
consequente abstraccedilatildeo das relaccedilotildees dos objetos pela induccedilatildeo direta A
linguagem eacute opaca ndash indeterminada ndash em sua estrutura fundamental
sendo o sujeito sua consequecircncia
Eacute nesse ponto que Chomsky pode ter visto semelhanccedila entre a sua
abordagem e a de Foucault de modo que o filoacutesofo francecircs natildeo abandona
necessariamente as capacidades da inteligecircncia humana apenas se opotildee agrave
reduccedilatildeo dos conceitos a sistemas loacutegicos a priori no espiacuterito Ambos
parecem concordar que a linguagem funda um limite do possiacutevel no ser
considerando-a como instacircncia que aponta recursivamente para si mesma
e que demarca os estados finitos do dizer e de suas propriedades de
encadeamento diferentemente do sujeito tendencialmente onipotente
piagetiano e de seu ajuste em relaccedilatildeo agraves estruturas loacutegicas do mundo
Por fim podemos concluir que Chomsky e Foucault satildeo
antirreferencialistas na medida em que negam a relaccedilatildeo direta entre
palavra e objeto24 Opotildeem-se contudo na associaccedilatildeo ao estruturalismo
saussureano para o qual a liacutengua eacute uma entidade coletiva fundada em uma
espeacutecie de contrato social e natildeo um objeto bioloacutegico internalizado como
pretende o Gerativismo Em semelhanccedila com Piaget para Foucault
(2008) o sujeito natildeo eacute uma preacute-formaccedilatildeo do espiacuterito pois se constitui na
relaccedilatildeo dinacircmica entre estruturas simboacutelicas natildeo-inatas e experiecircncias em
sociedade embora segundo o estudioso francecircs a gecircnese deva ceder
muito tempo que os linguistas tecircm analisado a linguagem como um sistema que possui valor coletivo [dentre os quais Saussure] O intelecto como uma soma coletiva de regras que possibilitam que tais conhecimentos sejam produzidosem determinado periacuteodo mal foi estudado ateacute agorardquo
24 Ver aparente paradoxo em Chomsky na nota 15
114 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
espaccedilo agrave singularidade os universais semacircnticos agraves contingecircncias o
indiviacuteduo agrave subjetividade e a loacutegica matemaacutetica agrave dinacircmica histoacuterica Em
siacutentese Foucault sustenta que tanto o pensamento humano quanto os
sistemas de pensamento se organizam pela descontinuidade das ideias
frutos da emergecircncia de possiacuteveis histoacutericos e de horizontes de validade
dos conhecimentos25
Consideraccedilotildees Finais
Cada praacutetica teoacuterica constroacutei os seus limites e as suas potencialidades
dentro de um domiacutenio mais vasto dos saberes Tais diaacutelogos natildeo satildeo
desinteressados pois propotildeem construir ou desconstruir pontes do
conhecimento autorizar ou desautorizar o olhar do outro definir enfim
a si e ao outro enquanto campo do saber No que concerne a este trabalho
retomamos os debates entre Piaget Chomsky e Foucault para demonstrar
que a AD natildeo estaacute alheia aos aspectos cognitivos dos sujeitos apenas os
incorpora a uma perspectiva de historicidade radical da linguagem Pode-
25 No dizer de Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 32 Itaacutelicos do autor) ldquoExiste haacute muito tempo a ideia de que as ciecircncias e o conhecimento seguiam certa linha de lsquoprogressorsquo obedecendo ao princiacutepio de lsquocrescimentorsquo e ao princiacutepio de convergecircncia de todos os tipos de saber [] Cada nova versatildeo torna o conhecimento completamente diferente em suas funccedilotildees em sua organizaccedilatildeo em suas relaccedilotildees internas O que se tem aiacute eacute um princiacutepio de divergecircncia muito mais do que de crescimento Eu diria antes que existem muitas maneiras diferentes de tornar possiacuteveis simultaneamente alguns tipos de conhecimento Portanto existe sempre de certo ponto de vista um excesso de informaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos possiacuteveis sistemas em determinado periacuteodo o que faz com que eles sejam conhecidos dentro de seus limites mesmo em sua deficiecircncia o que significa que natildeo se consegue perceber sua criatividade E de outro ponto de vista o do historiador existe um excesso uma proliferaccedilatildeo de sistemas para uma pequena quantidade de informaccedilatildeo daiacute a ideia amplamente difundida de que o que determina o movimento na histoacuteria da
ciecircncia eacute a descoberta de novos fatosrdquo Eacute notoacuteria a proximidade entre a perspectiva foucaultiana de saber descontinuidade e acontecimento discursivo na Histoacuteria das Ciecircncias e aquela de paradigma descontinuidade e revoluccedilatildeo cientiacutefica desenvolvida por Kuhn (1998 [1962] p 20-1) como podemos notar a seguir ldquoPreocupado com o desenvolvimento cientiacutefico o historiador parece entatildeo ter duas tarefas principais De um lado deve determinar quando e por quem cada fato teoria ou lei cientiacutefica contemporacircnea foi descoberta ou inventada De outro lado deve explicar os amontoados de erros mitos e supersticcedilotildees que inibiram a acumulaccedilatildeo mais raacutepida dos elementos constituintes do moderno texto cientiacutefico [] Contudo nos uacuteltimos anos alguns historiadores estatildeo encontrando mais e mais dificuldades para preencher as funccedilotildees que lhe satildeo prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulaccedilatildeo [] Talvez a ciecircncia natildeo se desenvolva pela acumulaccedilatildeo de descobertas e invenccedilotildees individuaisrdquo No capiacutetulo ldquoAs revoluccedilotildees como concepccedilotildees de mundordquo o fiacutesico acrescenta ldquoGuiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direccedilotildees E o que eacute ainda mais importante durante as revoluccedilotildees os cientistas veem coisas novas e diferentes quando empregando instrumentos familiares olham para os mesmos pontos jaacute examinados anteriormente Eacute como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares satildeo vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidosrdquo (KUHN 1998 p 145-6)
Argus Romero Abreu de Morais | 115
se com isso demonstrar os limites das abordagens logicizantes da relaccedilatildeo
pensamentolinguagemmundo aspecto transversal ao Construtivismo e
ao Gerativismo No sentido contraacuterio entendemos que a AD deve testar
seus fundamentos teoacutericos a partir da problemaacutetica da aquisiccedilatildeo da
linguagem a qual continuaremos a explorar em trabalhos futuros tendo
por foco avaliar os fundamentos epistemoloacutegicos de uma aquisiccedilatildeo do
discurso
Referecircncias
BERWICK R CHOMSKY N Por que apenas noacutes Linguagem e evoluccedilatildeo Satildeo Paulo
Editora Unesp 2017 [2016]
CHOMSKY N Diaacutelogos com Mitsuo Ronat Satildeo Paulo Cultrix 1977
_____ Sobre o minimalismo In CHOMSKY N Sobre natureza e linguagem Satildeo Paulo
Martins Fontes 2006 [1999] p 113-200
_____ Problemas do conhecimento e da liberdade Rio de janeiro Record 2008 [1971]
_____ Natureza humana justiccedila vs poder o debate entre Chomsky e Foucault Satildeo
Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 [1974]
FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2008
[1969]
KUHN T A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1998
[1962]
PIATELLI-PALMARINI M (Org) Teorias da linguagem teorias da aprendizagem o
debate entre Jean Piaget amp Noam Chomsky Satildeo Paulo Cultrix Editora da
Universidade de Satildeo Paulo 1983 [1979]
SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Satildeo Paulo Cultrix 2006 [1916]
6
Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche
A Leitura de Guumlnter Abel
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa 1
O presente texto esboccedila uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento de
Nietzsche e a filosofia da mente no que diz respeito ao tratamento de
algumas questotildees centrais aiacute presentes ndash em particular o problema da
consciecircncia no debate entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo
entre processos fiacutesicos e mentais Para a compreensatildeo de tais questotildees o
pensamento nietzscheano ndash aqui mediado pela interpretaccedilatildeo de Guumlnter
Abel ndash mostra sua relevacircncia e atualidade no sentido de uma superaccedilatildeo
daquela dicotomia
Em ldquoConsciecircncia ndash linguagem ndash natureza a filosofia da mente em
Nietzscherdquo (ABEL 2005 p 1-41)2 Abel parte da anaacutelise de alguns aspectos
da investigaccedilatildeo atual em filosofia da mente para a partir de uma exegese
do corpus nietzscheano3 apontar para sua pertinecircncia e relevacircncia dentro
desse contexto As reflexotildees de Nietzsche acerca dos acircmbitos e das relaccedilotildees
entre consciecircncia natureza e linguagem ndash a limitaccedilatildeo do consciente pelo
natildeo consciente a formaccedilatildeo de conceitos e da memoacuteria a ideia de natureza
como conjunto complexo de forccedilas por exemplo ndash mostram a importacircncia
que essa triacuteade tem para o seu pensamento
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE)
2 Esse texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001) Berlim De Gruyter
3 Em particular trechos da Gaia ciecircncia e Aleacutem de bem e mal bem como fragmentos poacutestumos de 1884 a 1887 contidos em KSA nos vols X XI XII e XIII da ediccedilatildeo criacutetica de G Colli e M Montinari (1999a 1999b 1999c 1999d)
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 117
O foco da anaacutelise de Abel recai sobre o debate ndash renovado na
atualidade apoacutes a chamada ldquoreviravolta linguiacutesticardquo iniciada por
Wittgenstein e a ldquoredescoberta da consciecircnciardquo (ABEL 2005 p 199) pela
filosofia analiacutetica ndash entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo
entre processos fiacutesicos e mentais em particular os processos consciente-
mentais Segundo Abel de uma maneira geral duas posturas antagocircnicas
podem daqui emergir de um lado a tese do materialismo fisicalismo
monista a defender que estados e processos mentais satildeo tatildeo somente
fenocircmenos da mateacuteria de outro a tese do mentalismo dualista que
defende a irredutibilidade daqueles a estes Ambas as posturas no entanto
por suas proacuteprias limitaccedilotildees natildeo poderiam ser superadas uma pela outra
Precisamente pela ldquoarmaccedilatildeo conceitual que implica ou tem como
consequecircncia essa natildeo resoluccedilatildeordquo (ABEL 2005 p 206) ter-se-ia entatildeo um
impasse E soacute uma modificaccedilatildeo na arquitetura mesma dessa armaccedilatildeo
conceitual tornaria possiacutevel um encaminhamento do problema de modo a
indicar as condiccedilotildees sob as quais ele natildeo poderia mais ocorrer
Os elementos de interpretaccedilatildeo apropriados a essa modificaccedilatildeo
poderiam ser encontrados segundo Abel no pensamento nietzscheano A
tese que defende e que aqui procuraremos expor eacute a de que as criacuteticas
realizadas por Nietzsche agrave questatildeo da consciecircncia expondo seus limites
apontam para uma reinterpretaccedilatildeo do fenocircmeno que natildeo se deixa reduzir
a um mero fisicalismo naturalista nem tampouco se deixa levar por uma
hipoacutestase do conceito-modelo ldquoConsciecircnciardquo A triacuteade acima citada seria
nesse sentido natildeo soacute de fundamental importacircncia para a compreensatildeo do
pensamento nietzscheano como por outro lado seu pensamento a esse
respeito ndash ao acentuar o papel da praacutexis interpretativa e das funccedilotildees
simboacutelicas linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas na constituiccedilatildeo da consciecircncia e
da autoconsciecircncia ndash mostra sua relevacircncia no sentido de uma superaccedilatildeo
daquela dicotomia Tais elementos foram reconstruiacutedos pelo autor em seis
seccedilotildees que seratildeo apresentadas a seguir princiacutepio do continuum modelo
do processo organizaccedilatildeo funcional consciecircncia e linguagem
fenomenalismo da experiecircncia interna e consciecircncia e corporeidade
118 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
O Princiacutepio do Continuum
Abel parte da compreensatildeo de que a superaccedilatildeo das dicotomias entre
mentalismo e materialismofisicalismo soacute pode ocorrer a partir de um
modo de ver natildeo dualista E Nietzsche segundo Abel defende tal
concepccedilatildeo a partir do que chama de princiacutepio do continuum o mundo
para Nietzsche constitui-se como um espectro de continuidade que vai do
inorgacircnico passando pelo orgacircnico ateacute as atividades cognitivas e aos
projetos e consecuccedilatildeo das accedilotildees O que significa que por um lado o
homem seria entendido como corporificaccedilatildeo de todas as atividades
ldquointeligentesrdquo que jaacute se encontram no orgacircnico e com as quais o ser
humano seria retraduzido na natureza por outro o ldquocaraacuteter espiritualrdquo
das atividades vivas poderia ser encontrado nas formas de manifestaccedilatildeo
orgacircnica e ateacute para aleacutem destas
Natildeo se trata aqui de uma superaccedilatildeo redutora ou derivativa do modelo
dualista na relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o consciente No modelo do
continuum a consciecircncia desponta como um fenocircmeno gradual que surge
a partir de ldquodiferenciaccedilotildees filogeneacuteticas e ontogeneacuteticas no acircmbito do
orgacircnicordquo (ABEL 2005 p 209) e cujos elementos jaacute se encontram
presentes em animais enquanto o tornar-se consciente e a autoconsciecircncia
somente no homem seriam encontrados Dois pressupostos do princiacutepio
nietzscheanos satildeo aqui delineados em primeiro lugar formas de vida preacute-
conscientes e orgacircnicas devem ser vistas como ldquoprocessos dinacircmicosrdquo jaacute
inteligentes e basilares para a formaccedilatildeo da consciecircncia por outro ldquoestados
mentais conscientesrdquo devem ser distintos dos ldquoinconscientesrdquo sendo este
acircmbito mais amplo e a partir do qual aquele pode ser explicado Em todo
caso por peticcedilatildeo de princiacutepio ldquoa consciecircncia mesma natildeo estaacute em condiccedilatildeo
de indicar uma lsquocausa objetivarsquo para sua proacutepria origemrdquo (ABEL 2005 p
209)
O que seria entatildeo o ldquoeurdquo da consciecircncia ou o lsquoSi mesmorsquo [Selbst] do
corpo humano Dois aspectos devem ser aqui observados por um lado
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 119
como o modelo do continuum abre-se a possibilidade de que esse ldquoeurdquo
ldquoinfluencie num certo sentido os processos orgacircnicosrdquo (ABEL 2005 p
208) ou seja que determinados pensamentos possam ser ldquoincorporadosrdquo
organicamente por outro o sujeito da consciecircncia ndash ou o que Abel chama
de ldquoeu consciente e lsquoindexicalrsquordquo ndash surge como uma delimitaccedilatildeo dentro da
ldquocorrente contiacutenua de acontecimentosrdquo e natildeo mais como uma coisa
individual que precede a consciecircncia de algo O Eu aparece assim como a
ponta de um processo da qual por isso mesmo prescinde o todo restante
Daiacute a formulaccedilatildeo de Nietzsche ldquoPara que em geral consciecircncia se ela eacute
no geral supeacuterfluardquo e agrave qual ele mesmo responde ldquouma rede de ligaccedilatildeo
entre homem e homemrdquo que teve de ldquodesenvolver-se somente enquanto
talrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354)
Modelo do Processo
Enquanto continuum que vai do orgacircnico ao consciente o mundo de
Nietzsche eacute um conjunto de ldquoefeitos cambiantes dinacircmicos altamente
complexos de variadas organizaccedilotildees de forccedilas vivas e inteligentesrdquo (ABEL
2005 p 215) ndash luta e arregimentaccedilatildeo de impulsos cujo pathos se mostra a
ele como vontade de poder [der Wille zur Macht] Os elementos da
natureza nesse sentido natildeo podem mais ser tomados coisas ndash corpos
materiais ocupando posiccedilotildees no espaccedilo-tempo mas ldquoeventosrdquo ou ldquoobjetos-
processordquo (ABEL 2005 p 216)4 Tal concepccedilatildeo certamente traz
consequecircncias natildeo somente para o status do conceito de ldquocoisardquo mas
tambeacutem para a ideia de ldquosujeitordquo A questatildeo que Abel aqui se coloca eacute os
processos devem ainda pressupor um sujeito ou eacute possiacutevel partir de
processos sem sujeito
A ideia de um sujeito da consciecircncia que a represente e organize seus
conteuacutedos parece implicada no momento mesmo em que a consciecircncia
4 Abel salienta aqui a proximidade da concepccedilatildeo nietzscheana com a fiacutesica contemporacircnea (objetos como uma identidade de eventos) e com as pesquisas em filosofia da linguagem (em particular as ideias de Reichenbach e Davidson)
120 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
enquanto consciecircncia-de-algo transitiva designada por meio da
intencionalidade manifesta-se Ocorre que tambeacutem o ldquoeurdquo o sujeito da
consciecircncia soacute se manifesta em virtude do surgimento desta uacuteltima5
Como afirma Nietzsche em Aleacutem do bem e do mal a ideia de um ldquosujeito
lsquoeursquordquo como condiccedilatildeo do predicado ldquopensordquo seria uma ldquofalsificaccedilatildeo dos
fatosrdquo (NIETZSCHE 2005 sect17) Ora com isso dois postulados expostos
na seccedilatildeo anterior comeccedilam a ser esclarecidos
(a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciecircncia jaacute depende de
uma amaacutelgama de processos sem sujeito e (b) que o estado e fenocircmeno da
consciecircncia repousa genealogicamente jaacute sobre estados mentais [eventos
processos] natildeo conscientes (ABEL 2005 p 218)
Haveria nesse sentido uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a ideia de um
ldquosujeito da consciecircnciardquo e a figura de ldquoprocessos sem sujeitordquo A pergunta
ldquoquem pensardquo deve ser respondida com ldquoalgo pensardquo no sentido de que
esse ldquoalgordquo jaacute natildeo eacute um ldquoeurdquo objeto e representaccedilatildeo mas um processo e
uma interpretaccedilatildeo ndash ou citando Nietzsche ldquouma interpretaccedilatildeo do processo
que natildeo pertence ao processo mesmordquo (NIETZSCHE 2005 sect17) ndash
designada com a palavra indexical ldquoeurdquo funccedilatildeo desse processo Da mesma
forma no plano linguiacutestico as sentenccedilas de processo natildeo seriam mais
vinculadas a um sujeito gramatical (ABEL 2005 p 221)6 A ideia de sujeito
enquanto ldquoindiviacuteduo-coisardquo dissolve-se nesse sentido pelo ldquoretorno do
sujeito da consciecircncia em si mesmo como sua consequecircncia internardquo
(ABEL 2005 p 220) Em seu lugar surgem o indiviacuteduo-evento e o eu-
interpretaccedilatildeo
A suspeita de uma contaminaccedilatildeo categorial [] de que somente indiviacuteduos-
coisa fornecem o modelo de referecircncia parece banida atraveacutes da passagem ao
esquema do evento e uma teoria natildeo dualista natildeo estaacute mais aprisionada ao
5 Veremos adiante (na seccedilatildeo ldquoFenomenalismo da experiecircncia internardquo) que o eu-consciecircncia a perspectiva da primeira pessoa surge no momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a consciecircncia
6 O autor faz aqui atraveacutes de Lichtenberg um paralelo entre a concepccedilatildeo nietzscheana (com o exemplo das expressotildees impessoais) e a criacutetica ao eu-portador feita por Wittgenstein (o do Tractatus assim como o das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas na comparaccedilatildeo entre olho e o campo visual)
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 121
leito de Procrusto do sujeito da consciecircncia Somente um modelo de referecircncia
baseado em indiviacuteduos-evento abre essa possibilidade (ABEL 2005 p 222)
A partir daqui abre-se o caminho para se pensar eventos mentais
conscientes e natildeo conscientes em uma ldquoco-pertenccedila natildeo dualistardquo com
processos orgacircnicos e corporais
Organizaccedilatildeo Funcional
A ideia de processo implicaria tambeacutem uma passagem do modelo de
organismo ao de organizaccedilatildeo Com efeito o orgacircnico em Nietzsche eacute
entendido como uma ldquoestrutura de organizaccedilatildeordquo na qual a consciecircncia o
pensamento consciente e outros processos mentais resultam como
ldquopropriedades e consequecircncias emergentes da co-relaccedilatildeo muacuteltipla e
altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem
a organizaccedilatildeo e garantem sua funcionalidaderdquo Aqui natildeo se trata
propriamente de uma relaccedilatildeo entre parte e todo ndash entre particular e
universal mas de uma combinaccedilatildeo de ldquomuacuteltiplas organizaccedilotildees de forccedilas
das partesrdquo cujos efeitos fazem surgir aqueles estados mentais e emergir
a ldquoespiritualidade viva e inteligenterdquo jaacute presente no orgacircnico (ABEL 2005
p 223)
Tambeacutem aqui haveria uma proximidade com a concepccedilatildeo
atualmente defendida e aceita nas pesquisas sobre o ceacuterebro ndash em
particular ao modelo dos ldquomultiple draftsrdquo desenvolvido por Dennett
(1991 cap 5 apud ABEL 2005 p 224) ndash de que estados mentais
conscientes e natildeo conscientes satildeo resultados da organizaccedilatildeo e da
complexa dinacircmica de configuraccedilotildees de neurocircnios ndash o que vale ser aqui
salientado dado que tal modelo vai de encontro agrave concepccedilatildeo cartesiana
centralista da consciecircncia na qual o ceacuterebro teria um centro ndash um ldquoolho
internordquo para as experiecircncias conscientes Por outro lado a proacutepria ideia
de um ldquofluxo da consciecircnciardquo natildeo pode ser vista como uma sequecircncia
unificada mas ao contraacuterio processos de conformaccedilotildees dinacircmicas e
muacuteltiplas combinaccedilotildees das partes do sistema envolvidas
122 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Na concepccedilatildeo nietzscheana diz Abel esse aspecto eacute enfatizado no
sentido da dependecircncia do ldquoperfil funcionalrdquo do orgacircnico em relaccedilatildeo agraves
combinaccedilotildees de suas partes A ldquoorganizaccedilatildeo processualrdquo pode ser
entendida como configuraccedilotildees de forccedilas que preponderam e dominam ndash
ldquoregentesrdquo mas que satildeo ao mesmo tempo ldquodependentes das forccedilas
particulares funcionaisrdquo ndash e forccedilas ldquoregidasrdquo As partes ndash eventos e
processos por sua vez jaacute natildeo podem ser representadas como elementos
atomiacutesticos mas como ldquoconsecuccedilatildeo efetivo-relacional do acontecerrdquo
(ABEL 2005 p 227) Para Nietzsche esse eacute um evento fundamental de
tudo o que eacute efetivo e vivo E eacute nesse sentido que para ele a vida pode ser
definida como ldquolsquouma forma duradoura do processo de afirmaccedilatildeo da forccedila
onde os lutadores crescem de modo desigual entre sirsquordquo (COLLI
MONTINARI 1999b KSA-XI 36 [22])
A centralidade que o aspecto da organizaccedilatildeo funcional ocupa na
concepccedilatildeo nietzscheana permite caracterizaacute-la segundo Abel como um
funcionalismo entendido no sentido de que estados e processos mentais ndash
em particular estados e processos natildeo conscientes exercem papeacuteis
funcionais e referem-se agrave organizaccedilatildeo funcional de um sistema podendo
ser descritos por uma terminologia funcionalista No entanto natildeo seria
possiacutevel aqui uma associaccedilatildeo ao funcionalismo defendido por Putnam
(1975 apud ABEL 2005 p 228) com base em um modelo computacional
de descriccedilatildeo do funcionamento e individuaccedilatildeo de estados mentais Isso
porque entraria na concepccedilatildeo nietzscheana um ldquoelemento de liberdade e
criatividaderdquo que permite ao eu da consciecircncia dispor dos conteuacutedos e
subsumi-los a um ldquotratamento imaginativo ou planejado do agirrdquo
Um uacuteltimo aspecto quanto agrave organizaccedilatildeo funcional em Nietzsche e
na filosofia da mente diz respeito a uma possiacutevel interpretaccedilatildeo
teleoloacutegico-normativa dos papeacuteis funcionais exercidos pelos processos
mentais Na concepccedilatildeo nietzscheana os processos de organizaccedilatildeo de
forccedilas satildeo eventos de autorregulaccedilatildeo e otimizaccedilatildeo das relaccedilotildees de forccedilas
atuando tanto na organizaccedilatildeo como nas partes nela envolvidas Essas
muacuteltiplas combinaccedilotildees soacute posteriormente apareceriam agrave consciecircncia como
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 123
em conformidade a um fim Natildeo haveria nesse sentido nenhuma
teleologia na coisa mesma mas apenas em como ela aparece agrave consciecircncia
ldquoA organizaccedilatildeo e a dinacircmica dos processos complexos de forccedilas se
realizam () de modo ateleoloacutegicordquo (ABEL 2005 p 231) Seria preciso
distinguir entre duas espeacutecies de finalidade seja a ideia de fim entendida
como um motivo ndash uma ldquoteleologia do atuar exoacutegenordquo ou no como uma
consequecircncia ndash uma ldquofuncionalidade e regularidade endoacutegenardquo Nesse
sentido soacute como expressatildeo de um ldquoolhar que observa posteriormenterdquo
uma conformidade a fins seria possiacutevel
Consciecircncia e Linguagem
Os modelos e organizaccedilotildees acima natildeo estariam bem esclarecidos sem
a compreensatildeo de que por detraacutes das representaccedilotildees sobre as quais a
consciecircncia se efetiva estatildeo os signos linguiacutesticos e funccedilotildees gramaticais
que por sua vez exercem-se no contexto de uma praacutexis interpretativa Em
outras palavras na base do fenocircmeno da consciecircncia aparece o
fundamento linguiacutestico-gramatical e interpretativo de todo pensar Para
Nietzsche soacute podemos pensar ldquode forma linguiacutesticardquo (COLLI
MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22]) O ldquopensar racionalrdquo eacute nesse sentido
um ldquointerpretar segundo um esquema que natildeo podemos dispensarrdquo
(COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22])
Para Abel o que assume significaccedilatildeo fundamental nos dias de hoje eacute
que se por um lado a consciecircncia apresenta a linguagem ndash enquanto uso
dos signos (linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticos) por outro na base mesma de
seu surgimento consecuccedilatildeo e desenvolvimento ela revela tambeacutem com a
linguagem o seu caraacuteter puacuteblico e social A consciecircncia (e suas
especificidades) nesse sentido eacute tematizada agora ldquona interseccedilatildeo dos
desenvolvimentos no acircmbito do natural-orgacircnico [] com os processos
nas esferas do social do histoacuterico e do culturalrdquo (ABEL 2005 p 233)
Jaacute em seus primeiros escritos postumamente publicados Nietzsche
aponta para o cerne comunicativo constitutivo da consciecircncia Na forma
124 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
como apresentado em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral o
homem natildeo apreende coisas objetos mas sensaccedilotildees ndash marcas de
excitaccedilotildees externas que satildeo por meio de transposiccedilatildeo metafoacutericas ndash do
objeto em imagem e da imagem em conceito ndash simplificadas
antropomorfizadas e restituiacutedas pela linguagem na forma de signos Por
uma ldquotransposiccedilatildeo artiacutesticardquo entatildeo a linguagem opera uma identificaccedilatildeo
do natildeo idecircntico da qual surge o conceito Mais ainda eacute nessa identificaccedilatildeo
que se constitui o objeto e tambeacutemo sujeito criador como esfera a ele
oposta com o qual natildeo pode ter senatildeo uma ldquorelaccedilatildeo esteacuteticardquo que eacute a sua
proacutepria criaccedilatildeoconstituiccedilatildeo
Tal processo nesse sentido soacute se justifica do ponto de vista de uma
praacutexis social ou seja por uma necessidade de comunicaccedilatildeo e de
ldquoestabilizaccedilatildeo de sistemas sociaisrdquo (ABEL 2005 p 235) A proacutepria
ldquoverdaderdquo nada mais eacute que uma metaacutefora cristalizada e aceita socialmente
isto eacute pelo rebanho Nietzsche ressalta as condiccedilotildees fisioloacutegicas e
histoacutericas do ldquoinstinto (ou impulso) de verdaderdquo que marca nossa
civilizaccedilatildeo e cujo cerne ilusoacuterio e metafoacuterico revela antes uma crenccedila na
verdade como valor incondicional ldquoas verdades satildeo ilusotildees cuja origem
estaacute esquecidardquo (NIETZSCHE 2007 1 30)
Essa compreensatildeo eacute retomada posteriormente em A gaia ciecircncia
Para Nietzsche na constituiccedilatildeo mesma da consciecircncia aparece uma
ldquonecessidade de comunicaccedilatildeordquo que pressupotildee por sua vez uma
ldquocapacidade [entendida como forccedila e arte] de comunicaccedilatildeordquo
[] posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas
sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeo () Consciecircncia eacute na realidade
apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas () o pensar que se torna
consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos ndash pois
apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de
comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia
(NIETZSCHE 2004 sect 354)
O pensar conceitual e a experiecircncia consciente efetivam-se nesse
sentido enquanto ldquosignos de comunicaccedilatildeordquo ou ldquoformaccedilotildees e abreviaccedilotildees
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 125
de signos sobre signosrdquo Segundo Abel a constituiccedilatildeo de um sistema
conceitual ndash pelo qual o eu da consciecircncia se efetiva ndash ocorre no momento
em que ela proacutepria eacute capaz de diferenciar conceitualmente algo de algo e
com essa delimitaccedilatildeo constituir objetos e a si proacutepria como objeto
O caraacuteter interpretativo da consciecircncia no entanto natildeo se restringe
a um aspecto de suas funccedilotildees simboacutelicas mas eacute sua proacutepria condicionante
no sentido de que os processos orgacircnicos mesmos jaacute pressupotildeem um
ldquointerpretar contiacutenuordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 2 [148])
sendo por ele caracterizados A consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo soacute procede
de modo interpretativo em sua consecuccedilatildeo mas tambeacutem jaacute repousa em
processos de interpretaccedilatildeo natildeo conscientesrdquo (ABEL 2005 p 237) sendo
jaacute um resultado dessas relaccedilotildees Daqui se tem como consequecircncia que ela
natildeo pode ser nem causa sui nem finis sui no sentido de que permanece
sem acesso a seu proacuteprio fundamento A tarefa de uma filosofia da mente
nesse sentido consistiria principalmente em destacar o caraacuteter simboacutelico
e principalmente interpretativo subjacente a estados processos e
fenocircmenos da consciecircncia
Sempre haveria no entanto o perigo de a consciecircncia de modo auto-
causal e auto-teleoloacutegico hipostasiar-se a si proacutepria e mascarar o caraacuteter
problemaacutetico de as representaccedilotildees que surgem na consciecircncia estarem agrave
disposiccedilatildeo e poder do eu-consciecircncia como se esta as antecedesse e
pudesse com elas relacionar-se de outro modo Uma suposta
autocertificaccedilatildeo da autoconsciecircncia compensaria a incerteza quanto ao
objeto e ao sujeito que ela representa Eacute a tendecircncia proacutepria agrave consciecircncia
de querer ir aleacutem natildeo soacute do fenomenalismo da experiecircncia exterior como
tambeacutem da interior (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 15 [90]) Esse
ponto seraacute abordado na proacutexima seccedilatildeo
Fenomenalismo da Experiecircncia Interna
Vimos que pela articulaccedilatildeo linguiacutestica a consciecircncia opera uma
simplificaccedilatildeo esquematizaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo (ABEL 2005 p 237) de
126 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
tudo o que ateacute ela chega do mundo exterior Da mesma forma na
experiecircncia interna natildeo deparamos com fatos como sendo algo primaacuterio
mas eles proacuteprios ldquotecircm de ser o resultado de interpretaccedilotildeesrdquo Sensaccedilotildees de
prazer e dor por exemplo bem como aquilo que costumamos chamar de
ldquosentido internordquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 14 [152]) satildeo
para Nietzsche segundo Abel ldquofenocircmenos tardios derivados
interpretados intelectualmente de processos de forccedilas que estatildeo ao fundordquo
(ABEL 2005 p 238-239)
Duas perspectivas aqui se abrem para a caracterizaccedilatildeo
dessefenomenalismo da percepccedilatildeointerior em primeiro lugar a ordem e
cronologia de causa e efeito eacute continuamente invertida de forma que por
meio da memoacuteria das experiecircncias internas passadas a causa eacute imaginada
ndash em adequaccedilatildeo agrave causa real ndash depois de o efeito jaacute ter sucedido Em
segundo lugar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem (conforme exposta
acima) conduz tambeacutem a uma relaccedilatildeo entre fenomenalismo e
perspectivismo de forma que as experiecircncias internas ndash que satildeo uacutenicas e
individuais satildeo pela linguagem traduzidas para a consciecircncia como
estados internos conhecidos delimitados e tangiacuteveis ao indiviacuteduo7
Natildeo podemos assim transgredir o mundo fenomenal Mas isso natildeo
quer dizer que aquilo a que natildeo temos acesso seja o mundo ldquoverdadeirordquo
e sim tatildeo somente o ldquoinformulaacutevel mundo sem forma do caos de
sensaccedilotildeesrdquo ldquouma outra espeacutecie de mundo fenomenal para noacutes
incognosciacutevelrdquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 9 [106]) Haveria
aqui segundo Abel uma forte criacutetica ao princiacutepio mesmo da racionalidade
moderna a autoconsciecircncia cartesiana ndash ou mais precisamente agrave ldquoideia de
uma autocertificaccedilatildeo fundamentalista numa experiecircncia pura preacute-
linguiacutestica preacute-conceitual e independente da interpretaccedilatildeordquo ABEL 2005
p 241) Na base desse fundamentalismo epistemoloacutegico ldquoo ponto de
partida errado ndash como se houvesse lsquofatos da consciecircnciarsquo ndash e nenhum
fenomenalismo na observaccedilatildeo de si mesmordquo Erro que resultaria em seis
7 Processo esse que como vimos natildeo subsiste independentemente de uma praacutexis social
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 127
pressuposiccedilotildees nenhuma delas para Nietzsche (COLLI MONTINARI
1999d KSA XIII 15 [90]) plena de sentido
(1) transparecircncia completa da consciecircncia (2) manutenccedilatildeo da ideia do dado
ao menos para o acircmbito da experiecircncia interna da consciecircncia (3) a
experiecircncia humana eacute independente da linguagem da descriccedilatildeo e por fim ateacute
mesmo da interpretaccedilatildeo (4) o fenomenalismo eacute restrito somente ao mundo
exterior () (5) haacute um ponto de observaccedilatildeo fixo (6) a consciecircncia tem acesso
imediato a seus proacuteprios estados de experiecircncia interna de si (ABEL 2005 p
238-239)
Com ofenomenalismo e perspectivismo da experiecircncia interna entra
em cena o eu-consciecircncia ndash a perspectiva da primeira pessoa que surge no
momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a
consciecircncia Tambeacutem com ele o ldquocaraacuteter subjetivo qualitativo e
fenomenal da vivecircncia conscienterdquo (ABEL 2005 p 241) Tais aspectos satildeo
segundo Abel discutidos na atual filosofia da mente a partir de duas teses
(1) que os aspectos subjetivos qualitativos e fenomenais satildeo fundamentais
para a experiecircncia interna (2) [que] esses aspectos subjetivos qualitativos e
fenomenais ligados agrave perspectiva da vivecircncia na primeira pessoa natildeo podem
ser reduzidos agrave conformidade a leis fiacutesicas [que satildeo] explicadas da perspectiva
neutra da [] intersubjetividade [Esta] no entanto eacute precisamente aquilo
que natildeo somente eacute dado na vivecircncia factual subjetiva qualitativa e fenomenal
mas tambeacutem sistematicamente excluiacuteda (ABEL 2005 p 242)
Consciecircncia e Corporeidade
Apesar de natildeo poder representar ou sequer distanciar-se da rede natildeo
consciente de seus condicionamentos a consciecircncia ndash enquanto eu-
consciecircncia tem no entanto a ldquopossibilidade de abrir-se retroagindo a si
mesma em contraposiccedilatildeo ao complexo de suas condiccedilotildeesrdquo (ABEL 2005
p 244) Transiccedilatildeo essa que segundo Abel pode ser vista como a passagem
de uma consciecircncia autoteleoloacutegica e autocausal para um eu-consciecircncia
que sem perder a autoconsciecircncia eacute o proacuteprio si-mesmo do corpo ndash aquilo
que Nietzsche chama de grande razatildeo Isso implicaria a transiccedilatildeo de uma
128 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ldquoontologia moralrdquo (COLLI MONTINARI 1999b KSA XI 7 [4]) a uma
ldquofilosofia do corpordquo que comeccedila quando a pequena razatildeo se volta sobre si
por sua proacutepria autoconservaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo a seus
condicionamentos O que natildeo deve ser confundido como uma reduccedilatildeo a
um naturalismo ou biologismo ndash nem tampouco de uma ldquoneurofilosofiardquo
como em Churchland (1998) Natildeo se trata na filosofia do corpo de
Nietzsche de organismos corpos e neurocircnios mas do corpo-organizaccedilatildeo
Natildeo haacute aqui um ldquoalgordquo a ser estudado mas uma ldquocombinaccedilatildeo dinacircmica e
altamente complexa de [] inteligecircncias em processordquo (ABEL 2005 p
244) A passagem do eu-consciecircncia ao si-mesmo (o ldquodominador do eurdquo)
eacute nesse sentido a passagem de uma ldquosubjetividade produtorardquo para a
ldquoindividualidade no sentido da organizaccedilatildeo do corpo [Leib] () que cada
um eacute enquanto ser que interpretardquo ABEL 2005 p 246-7) Isto natildeo implica
um retorno da individualidade ao sujeito racional universal mas a
subsunccedilatildeo em uma ldquoindividualidade-corpordquo
Dois aspectos satildeo salientados aqui por Abel em primeiro lugar a
ldquocorporeidade preacute-cognitiva preacute-linguiacutestica e preacute-racional em seus
estados esteacuteticos pode ser vista como o lugar de surgimento dos signos
simbolizadores linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticosrdquo (ABEL 2005 p 247) em
cuja invenccedilatildeo estatildeo envolvidos estados corporais Na abertura do eu-
consciecircncia agrave rede de seus condicionantes revela-se ldquoo caraacuteter dos signos e
da interpretaccedilatildeo em sua posiccedilatildeo fundamentalrdquo (ABEL 2005 p 248) Por
outro lado o modo de consideraccedilatildeo do ldquofio-condutor do corpordquo apresenta-
se como um ldquofenocircmeno mais ricordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII
40 [15]) no sentido de que se situa no interior mesmo da posiccedilatildeo criticista
A posiccedilatildeo da consciecircncia bem como da criacutetica da linguagem eacute nesse
sentido aprofundada Trata-se nas palavras de Nietzsche ldquodo corpo em
todo o desenvolvimento do espiacuterito ele eacute a histoacuteria que se torna sensiacutevel
de que um corpo superior se formardquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X
24 [16]) Em que o mental por outro lado eacute a ldquolinguagem simboacutelica do
corpordquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X 7 [126])
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 129
Criacutetica da Consciecircncia e Criacutetica da Linguagem
Dois aspectos devem ser salientados quanto a este toacutepico por um
lado a importacircncia da consciecircncia e da linguagem nas relaccedilotildees humanas
ndash com o mundo com o outro e consigo ndash e por outro o reconhecimento
de seus limites ndash em uacuteltima instacircncia do limite-corpo que subjaz a ambas
linguagem e consciecircncia
No caso da linguagem os limites parecem ser bastante sutis no
sentido de que ela proacutepria enquanto ldquogramaacuteticardquo atua como preacute-
formadora do pensamento consciente e nesse sentido ldquoo que pode ser
pensado e dito em geral tem de estar jaacute na gramaacutetica de uma linguagemrdquo
(ABEL 2005 p 249) Como afirma Nietzsche em Crepuacutesculo dos iacutedolos
ldquoA lsquorazatildeorsquo na linguagem oh que velha e enganadora senhora Receio que
natildeo nos livremos de Deus porque ainda acreditamos na gramaacuteticardquo
(NIETZSCHE 2006 III sect5) Tais limites que a tornam suscetiacutevel a uma
petrificaccedilatildeo estatildeo precisamente pelo caraacuteter de universalidade das
sentenccedilas e palavras Principalmente quando estas se tornam conceitos
frutos da ldquoidentificaccedilatildeo do natildeo idecircnticordquo (NIETZSCHE 2007 1) e jaacute
distantes de sua ldquovivecircncia original uacutenica e totalmente individualizadardquo Haacute
aqui o risco de se fazer mitologia com o ldquomundo dos signosrdquo e de tornaacute-lo
o ldquoem si das coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 sect21)
Uma superaccedilatildeo no pensamento dos ldquoerrosrdquo da razatildeo petrificados na
linguagem ndash ou em uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo (NIETZSCHE 2006
III sect5) ndash seria no entanto impossiacutevel porque noacutes ldquonecessitamos do errordquo
O problema crucial aqui como aponta Abel eacute que o indiviacuteduo uma
sensaccedilatildeo ou o proacuteprio inefaacutevel jaacute pressupotildeem a linguagem quando satildeo
expressos comunicados Como entatildeo conciliar o caraacuteter individual de uma
sensaccedilatildeo com a pretensatildeo agrave universalidade e o caraacuteter comunicativo e
social da linguagem que a expressa
No acircmbito da consciecircncia por sua vez por intermeacutedio e constituiccedilatildeo
da linguagem tudo perde a individualidade e eacute traduzido para o acircmbito do
universal O que impede um acesso agrave profundidade e deixa agravequela apenas
130 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
um ldquomundo de superfiacutecies e signosrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354) A
consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo pertence propriamente agrave existecircncia
individual do homemrdquo A relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem mostra-se
uma relaccedilatildeo de constituiccedilatildeo universalizaccedilatildeo simplificaccedilatildeo e
superficializaccedilatildeo Os limites se datildeo em que nessa relaccedilatildeo com a iminecircncia
de uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo a consciecircncia corre de vaacuterias formas o
risco de hipostasiar-se a si mesma
Em primeiro lugar na medida em que ela pretende identificar-se com a ampla
situaccedilatildeo total de um homem Entatildeo conforme ela considera seu eu isto eacute o
sujeito como substacircncia ela assumiria como sujeito uma posiccedilatildeo aprioriacutestica
face aos conteuacutedos da consciecircncia Por fim na medida em que o eu isto eacute o
sujeito da consciecircncia vecirc suas determinaccedilotildees das representaccedilotildees da consciecircncia
dos objetos da experiecircncia como determinaccedilotildees ontoloacutegicas Aleacutem disso haacute o
risco de hipoacutestase no sentido de que [] a consciecircncia e a mente tendem a
entenderem a si mesmas de modo autoteleoloacutegico e autocausal como finis sui e
causa sui e que elas jaacute natildeo podem abrir-se desse modo agrave rede abarcante das
condiccedilotildees de sua proacutepria existecircncia (ABEL 2005 p 252)
A criacutetica de Nietzsche em suma natildeo se refere propriamente agrave
consciecircncia ndash erro necessaacuterio ndash nem tampouco tem caraacuteter reducionista
Antes dirige-se ao modelo cartesiano hipostasiado de reflexatildeo da
consciecircncia e da autoconsciecircncia em seus seis erros ou pressuposiccedilotildees
Filosofia Simboacutelica e Interpretativa da Mente
Pode-se formular a advertecircncia articulada na criacutetica da consciecircncia e da
linguagem do seguinte modo natildeo se confunda a circunstacircncia de que noacutes
temos a ver na consciecircncia assim como na autoconsciecircncia com signos e
interpretaccedilotildees com a concepccedilatildeo de que noacutes nos deparariacuteamos com as ldquocoisas
mesmasrdquo ou com as coisas-em-si-mesmas Assumir essa uacuteltima significa
recair no sofisma naturalista da consciecircncia (ABEL 2005 p 253-4)
Do que foi exposto quanto aspectos acima atenccedilatildeo especial deve ser
dada ao caraacuteter simboacutelico e interpretativo ndash semioacutetico ndash dos estados e
processos da consciecircncia da autoconsciecircncia e dos outros processos
Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 131
mentais conscientes e natildeo conscientes Consciecircncia eacute consciecircncia de signos
cujos elementos (sintaacuteticos semacircnticos e pragmaacuteticos) natildeo os precedem
mas satildeo eles mesmos constituiacutedos em sua ldquoorientaccedilatildeo a algo ou a outras
pessoasrdquo ndash orientaccedilatildeo que tem o caraacuteter de uma ldquointerpretaccedilatildeo
construcionalrdquo (ABEL 2005 p 253-4) As funccedilotildees da interpretaccedilatildeo
constituem assim o fundamento dos signos Todos os estados processos
e fenocircmenos mentais bem como a comunicaccedilatildeo desses conteuacutedos
realizam-se em e como signos e interpretaccedilotildees O ponto chave nessa
concepccedilatildeo pragmaacutetica simboacutelica e interpretativa diz Abel eacute que ldquonoacutes
temos consciecircncia mente e pensamento natildeo por meio mas por forccedila dos
processos de signos e interpretaccedilotildeesrdquo (ABEL 2005 p 256) A
interpretaccedilatildeo nesse sentido ldquoeacute condiccedilatildeo e natildeo opccedilatildeo para o emprego
bem-logrado dos signosrdquo (ABEL 2005 p 257)
Para o autor a construccedilatildeo nos dias de hoje de uma teoria da
consciecircncia que parta dessa tese ou seja para aleacutem da dicotomia
materialismofisicalismo e mentalismo deve levar em consideraccedilatildeo cinco
aspectos (1) uma postura contra o fisicalismo das funccedilotildees simboacutelicas dos
signos e interpretaccedilotildees (2) a introduccedilatildeo de sistemas e signos e
interpretaccedilotildees natildeo linguiacutesticos e natildeo proposicionais revelando a
insuficiecircncia dos siacutembolos linguiacutesticos e proposicionais como uacutenico meio
de representaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo mentais (3) a consideraccedilatildeo aleacutem de
Nietzsche do pragmatismo de Peirce da teoria geral do siacutembolo de
Goodman e a teoria das formas simboacutelicas de Cassirer (4) a ideia de uma
relaccedilatildeo ou uma ligaccedilatildeo interna entre signos interpretaccedilotildees e
possibilidade de accedilatildeo (5) a consideraccedilatildeo dos valores avaliaccedilotildees e normas
(sentido e dever) no emprego dos signos e nas accedilotildees
Assim o fundamental na concepccedilatildeo de uma filosofia da mente a
partir do pensamento de Nietzsche deve estar na ideia de que os processos
de interpretaccedilatildeo estatildeo implicados desde o iniacutecio tatildeo logo se trate de
submeter o que estaacute na consciecircncia a uma delimitaccedilatildeo ordenaccedilatildeo
classificaccedilatildeo coerecircncia ou comunicaccedilatildeo O orgacircnico mesmo jaacute eacute para
Nietzsche uma interpretaccedilatildeo contiacutenua
132 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Referecircncias
ABEL Guumlnter ldquoConsciecircncia-Linguagem-Natureza ndash A filosofia da mente em Nietzscherdquo In
MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo
Discurso Editorial 2005
_____ ldquoVerdade e interpretaccedilatildeordquo In MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad
Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo Discurso Editorial 2005a
CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia Trad Maria C Cescato Satildeo Paulo UNESP 1998
COLLI G MONTINARI M (orgs) Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe
(KSA v X) Berlim Munique Nova York Walter de Gruyter 1999a
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XI) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999b
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XII) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999c
_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XIII) Berlim
Munique Nova York Walter de Gruyter 1999d
NIETZSCHE Friedrich W Genealogia da moral (GM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo
Paulo Companhia das Letras 1998
_____ A gaia ciecircncia (FWGC) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das
Letras 2004
_____ Aleacutem de bem e mal (GBBM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia
de Bolso 2005
_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos (GDCI) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo
Companhia das Letras 2006
_____ Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WLVM) In Sobre verdade e
mentira Trad e Org Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2007
7
Habermas e o Problema do Mundo Objetivo
em Verdade e Justificaccedilatildeo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira 1
Introduccedilatildeo
O objetivo deste artigo eacute investigar a questatildeo do mundo objetivo a
partir da recente distinccedilatildeo que Habermas realiza entre verdade e
justificaccedilatildeo na obra de mesmo tiacutetulo Eacute preciso entatildeo entendermos o
lugar que o mundo objetivo passa a ter no pensamento habermasiano
sobretudo a partir da diferenccedila entre verdade e justificaccedilatildeo algo outrora
inexistente
Verdade e justificaccedilatildeo de 1999 reuacutene trabalhos escritos entre 1996 e
1998 que retomam o fio de uma reflexatildeo interrompida em Conhecimento
e Interesse (1987) Apesar de a pragmaacutetica da linguagem que Habermas
desenvolveu nos anos 1970 ter feito uso de conceitos como verdade
referecircncia validade objetividade realidade e racionalidade estes natildeo
foram abordados agrave luz da filosofia teoacuterica como em Verdade e justificaccedilatildeo
Habermas (2012) nos tempos da Teoria do agir comunicativo obra
de 1971 definia o sentido de verdade a partir da situaccedilatildeo ideal de fala
atraveacutes dos pressupostos idealizantes de 1) publicidade e total inclusatildeo de
todos os envolvidos 2) distribuiccedilatildeo equitativa dos direitos de
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) com Doutorado Sanduiacuteche pela Ludwig-Maximilian-Universitaumlt (LMU) em Munique Alemanha Poacutes-doutorando pela Universidade Federal do Piauiacute (UFPI) e Bolsista Capes Email julianocordeiro81gmailcom
134 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
comunicaccedilatildeo 3) caraacuteter natildeo violento de uma situaccedilatildeo que admite apenas
a forccedila natildeo coerciva do melhor argumento e 4) a probidade dos
proferimentos de todos os participantes Nesse sentido a verdade
relacionava-se diretamente com o consenso construiacutedo pelos sujeitos
atraveacutes da situaccedilatildeo ideal de fala
Entretanto Habermas em Verdade e justificaccedilatildeo partindo das
criacuteticas que recebeu por igualar o conceito de verdade agrave justificaccedilatildeo ao
longo de seu projeto teoacuterico afirma hoje em dia que a verdade natildeo pode
mais ser assimilada simplesmente agrave situaccedilatildeo ideal de fala agrave justificaccedilatildeo
pragmaacutetica dos sujeitos ldquoDe laacute para caacute percebi que essa assimilaccedilatildeo natildeo
pode dar certo Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade que
natildeo eacute errado mas eacute pelo menos incompletordquo (HABERMAS 2004 p 60)
A verdade agora tem a ver com o mundo objetivo que temos
inevitavelmente de pressupor nos atos de fala e nas nossas accedilotildees A
justificaccedilatildeo por sua vez seria um criteacuterio pragmaacutetico relacionado
unicamente aos sujeitos falantes natildeo podendo ser assimilado agrave verdade
como Habermas conceituava antes A verdade por assim dizer relaciona-
se com um pressuposto formal que os sujeitos precisam admitir sob pena
de natildeo falar nem agir no mundo
Poreacutem mesmo com a distinccedilatildeo habermasiana entre os conceitos de
verdade e justificaccedilatildeo continua natildeo estando em questatildeo a representaccedilatildeo
correta da realidade ou a estrutura ontoloacutegica do mundo Eacute impossiacutevel
determinar a significaccedilatildeo das palavras sem uma consideraccedilatildeo do contexto
social em que satildeo usadas porque eacute o uso que decide a significaccedilatildeo das
expressotildees linguiacutesticas caracteriacutestica central do pragmatismo No
Segundo Wittgenstein e tambeacutem em Habermas a ecircnfase eacute dada
sobretudo agrave pragmaacutetica
Como entatildeo entender o novo lugar que o mundo objetivo passou a
ter no pensamento habermasiano haja vista que ele continua a ser criacutetico
da noccedilatildeo representacionista de verdade Como conciliar a tese da
pressuposiccedilatildeo irrecusaacutevel de um mundo objetivo independente de nossas
descriccedilotildees e idecircntico para todos os observadores com a tese baacutesica da
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 135
reviravolta linguiacutestica de que natildeo temos acesso diretamente isto eacute natildeo
linguisticamente mediado a uma realidade ldquonuardquo Eacute o que veremos a
seguir
A Necessaacuteria Diferenccedila entre Verdade e Justificaccedilatildeo
Inicialmente Habermas conceituava a verdade como sinocircnimo de
justificaccedilatildeo Ou seja a verdade era aquilo que os sujeitos estabeleciam
consensualmente nas deliberaccedilotildees Wellmer (apud ALVARENGA 1999)
por exemplo numa criacutetica a Habermas destaca que racionalidade e
verdade natildeo necessariamente coincidem Para ele natildeo podemos afirmar
que havendo consenso racional exista verdade de imediato Nada impede
que no futuro seja considerado falso um consenso atual o que natildeo
implica que agimos irracionalmente A verdade eacute sempre algo maior do
que a racionalidade dos consensos situados Todo consenso encontra-se
sob reserva podendo no futuro ser posto em questatildeo mediante razotildees
Wellmer argumenta referindo-se agrave primeira concepccedilatildeo de verdade
de Habermas que um conceito de verdade como consenso eacute insuficiente
por natildeo abranger o aspecto da correspondecircncia da verdade Seria preciso
esse complemento na teoria discursiva de Habermas Mesmo que se
cumpram as condiccedilotildees ideais de fala tal fato natildeo significa que as razotildees
alegadas no processo deliberativo tenham sido boas Um consenso falso
pode ser racional no sentido de que foi alcanccedilado sob condiccedilotildees formais
de uma situaccedilatildeo ideal
Habermas a partir de tais criacuteticas reformulou sua concepccedilatildeo de
verdade distinguindo verdade de justificaccedilatildeo Ele assume que o consenso
natildeo pode ser considerado como um criteacuterio mas deve ser visto como um
mecanismo de certificaccedilatildeo da verdade Ele relaciona o conceito discursivo
mantido de aceitabilidade racional com um conceito de verdade
pragmaacutetico natildeo epistecircmico sem assimilar a verdade agrave assertibilidade
ideal ou seja agrave justificaccedilatildeo
136 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Inicialmente Habermas (2012) na Teoria do agir comunicativo
apresentou uma teoria consensual da verdade o consenso era o criteacuterio de
verdade O que eacute verdadeiro seria aquilo advindo de um consenso racional
e universal como consequecircncia de um diaacutelogo numa situaccedilatildeo ideal de fala
Entretanto como demonstra Puntel (2013) Habermas viu as dificuldades
dessa concepccedilatildeo uma vez que haacute uma incapacidade de explicar por que
mesmo as asserccedilotildees mais exaustivamente justificadas podem ser falsas
Habermas trabalha atualmente com uma concepccedilatildeo de verdade orientada
realisticamente denominada de realismo epistemoloacutegico pragmaacutetico
Os principais passos de Habermas na apresentaccedilatildeo e explicaccedilatildeo de
sua nova concepccedilatildeo pragmaacutetico-realista da verdade segundo Puntel
(2013) satildeo os seguintes 1) o ponto de partida satildeo pretensotildees de verdade
feitas no mundo da vida 2) a verdade eacute conceitualmente (natildeo
epistemologicamente) desconectada da justificaccedilatildeo a verdade eacute
transcendente agrave justificaccedilatildeo 3) a verdade implica uma referecircncia a um
mundo objetivo independente 4) a verdade articula a conexatildeo entre a
sentenccedilaproposiccedilatildeo qualificada como verdadeira e o mundo
Habermas (2004) explica que argumentos que nos convencem da
verdade de ldquoprdquo podem se revelar falsos em outra situaccedilatildeo epistecircmica Ou
seja por mais que ldquoprdquo seja bem justificado ele pode ainda revelar-se falso
A argumentaccedilatildeo permanece reforccedila ele como o uacutenico meio disponiacutevel
para se certificar da verdade de modo que natildeo haacute outra maneira de
examinar as pretensotildees de validade tornadas problemaacuteticas Entretanto a
justificaccedilatildeo natildeo pode ser validada ainda como verdade Habermas entatildeo
pretende salvar a dimensatildeo do mundo objetivo em sua teoria
relacionando-a com a verdade
Ele estabelece um conceito de verdade em que as pretensotildees de
validade transcendam toda justificaccedilatildeo ldquo() depois da
destranscendentalizaccedilatildeo do sujeito cognoscente continua a existir uma
lacuna entre o que eacute verdadeiro e o que conta como justificado ou
racionalmente aceitaacutevel para noacutesrdquo (HABERMAS 2002 p 44) Habermas
pretende assegurar a diferenccedila entre verdade e aceitabilidade racional
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 137
Contudo tal diferenccedila coloca os sujeitos numa situaccedilatildeo paradoxal De um
lado sem acesso direto agraves condiccedilotildees de verdade eles soacute podem resgatar as
pretensotildees de validade por meio de boas razotildees de outro as melhores
razotildees satildeo tambeacutem faliacuteveis Portanto Habermas defende que o abismo
entre aceitabilidade racional e verdade natildeo pode ser transposto uma vez
que todo acordo alcanccedilado pela justificaccedilatildeo eacute tambeacutem faliacutevel
Habermas (2004) destaca que verdade e falibilidade satildeo dois lados de
uma mesma moeda Ele entende que falta agrave justificaccedilatildeo no sentido por
exemplo de Richard Rorty uma referecircncia aos objetos Nesse sentido as
pretensotildees de validade devem transcender o contexto natildeo se satisfazendo
apenas com a justificaccedilatildeo alcanccedilada O verdadeiro para Habermas deve
ser defendido em todos os contextos possiacuteveis
Segundo ele uma concepccedilatildeo que faccedila justiccedila agrave intuiccedilatildeo realista de um
mundo que existe independentemente de noacutes mesmo sem a
representaccedilatildeo de uma correspondecircncia entre proposiccedilotildees e fatos favorece
o projeto de explicar os aspectos nos quais a verdade e a justificaccedilatildeo ao
mesmo tempo assemelham-se e distinguem-se Em suma a verdade eacute um
conceito que transcende toda justificaccedilatildeo natildeo podendo ser identificada
com o conceito de assertibilidade idealmente justificada
De acordo com Habermas a conexatildeo interna entre verdade e
justificaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo epistemoloacutegica pois natildeo estaacute em jogo a
representaccedilatildeo correta da realidade mas uma praacutexis que natildeo pode vir
abaixo O entendimento muacutetuo natildeo pode funcionar sem que os envolvidos
se refiram a um uacutenico mundo objetivo dentro de um espaccedilo puacuteblico
intersubjetivamente partilhado O conceito discursivo de verdade natildeo eacute
exatamente falso mas insuficiente ele natildeo explica o que nos autoriza a ter
por verdadeiro um enunciado suposto como idealmente justificado Dessa
forma asserccedilotildees bem justificadas podem se revelar falsas porque a
verdade deve transcender qualquer contexto de justificaccedilatildeo
Puntel (2013) destaca uma criacutetica a Habermas apontando-nos uma
dimensatildeo natildeo aprofundada por este Puntel com razatildeo critica Habermas
agrave medida que este rejeita a teoria tradicional da verdade sem oferecer uma
138 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
explanaccedilatildeo miacutenima do que ele chama de conexatildeo ou entrelaccedilamento de
verdade e mundo Sua concepccedilatildeo realista pragmaacutetica permaneceria vaga
Se Habermas acertou por um lado em separar verdade de
justificaccedilatildeo ele simultaneamente tambeacutem criou um novo problema em
sua filosofia O que realmente Habermas chama de mundo objetivo O que
de fato significa verdade em Habermas visto que esta se relaciona com um
mundo objetivo que apenas podemos pressupor mas natildeo tematizar tal
qual uma praacutexis que natildeo pode vir abaixo Que dimensatildeo eacute essa que
transcende a justificaccedilatildeo
O Estatuto do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo de um Novo
Acerto a um Novo Problema
Segundo Cliacutestenes Franccedila (2015) Habermas em Verdade e
justificaccedilatildeo substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da
justificaccedilatildeo deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuiacutena
Uma teoria da verdade e uma teoria da justificaccedilatildeo satildeo empreendimentos
teoacutericos distintos A primeira teoria da verdade de Habermas dos tempos
do Agir comunicativo era uma teoria antirrealista pois como vimos antes
a verdade era algo sinocircnimo de justificaccedilatildeo Ela natildeo dependia da
ocorrecircncia no mundo de um estado de coisas tendo a ver com a
legitimaccedilatildeo das pretensotildees de validade dos falantes
Jaacute em Verdade e justificaccedilatildeo a verdade natildeo se circunscreve agrave esfera
do discurso ela sempre o ultrapassa Portanto o maacuteximo que podemos
afirmar sobre a aceitabilidade racional de uma asserccedilatildeo eacute que muito
provavelmente ela eacute verdadeira mas natildeo podemos garantir que isso ocorra
de fato Criteacuterios de autorizaccedilatildeo entretanto satildeo formulados por teorias da
justificaccedilatildeo e natildeo por teorias da verdade Franccedila (2015) levanta a hipoacutetese
de que em Verdade e justificaccedilatildeo Habermas apresenta uma teoria da
justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade Habermas natildeo pode mais
dizer em que a verdade consiste mas apenas indicar o que nossas intuiccedilotildees
pragmaacuteticas realistas nos afirmam que ela seja
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 139
Para Franccedila (2015) agrave luz de Kirkham uma teoria da verdade seria
uma teoria metafiacutesica que buscaria fixar uma definiccedilatildeo do que seja a
verdade Uma teoria metafiacutesica da verdade contudo natildeo procuraria
oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos
encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro Jaacute uma teoria da
justificaccedilatildeo busca indicar as evidecircncias e garantias que algo deve possuir
para ser considerado como provavelmente verdadeiro Criteacuterios de
autorizaccedilatildeo satildeo formulados por teorias da justificaccedilatildeo e natildeo por teorias
da verdade
Habermas apresentaria em Verdade e justificaccedilatildeo uma teoria da
justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade A incorporaccedilatildeo de aspectos
realistas ao conceito da verdade na pragmaacutetica formal de Habermas
resultou no abandono de se oferecer uma definiccedilatildeo positiva do que eacute a
verdade de fato Como pensar a partir disso o problema do mundo
objetivo
Habermas chega ao mundo objetivo somente atraveacutes de anaacutelises das
accedilotildees e discursos que os falantes e agentes realizam no processo
comunicativo Mas isso natildeo transcende a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo
Segundo Puntel (2013) Habermas sempre privilegia a dimensatildeo
pragmaacutetica em relaccedilatildeo agrave semacircntica embora defenda que satildeo duas
dimensotildees co-originaacuterias
Ele supotildee que o ldquoproacuteprio mundordquo eacute o ldquoproacuteprio mundordquo apenas se
permanecer completamente intocado pela linguagem Habermas separa
fatos de objetos Ele natildeo menciona a perspectiva de que ao identificarmos
os objetos como elementos do ldquoproacuteprio mundordquo noacutes jaacute estamos falando
acerca desses objetos pertencentes ao ldquoproacuteprio mundordquo Aqui haacute como
pano de fundo a claacutessica criacutetica de Hegel a Kant
Se os fatos acerca dos objetos natildeo tecircm um status ontoloacutegico entatildeo somos
confrontados com uma declaraccedilatildeo incorreta Com efeito para que tenha um
significado inteligiacutevel lsquoser acerca de um objetorsquo deve ser entendido como
lsquoalcanccedilarrsquo ou lsquoatingirrsquo ou lsquoconcernirrsquo o proacuteprio objeto eacute algo sem sentido
declarar um fato acerca de um objeto e entatildeo defender que este fato nada tem
a ver com o objeto Se o fato expresso nada tem a ver com o objeto o objeto
140 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
permaneceria em um esplecircndido isolamento desconhecido inarticulado O
processo de aprendizagem que torna possiacutevel a expressatildeo de fatos acerca dos
objetos natildeo teria qualquer sentido (PUNTEL 2013 p 206)
Habermas (2004) por sua vez defende uma concepccedilatildeo nominalista
do mundo o mundo eacute a totalidade de objetos dos quais podemos
estabelecer fatos Segundo Habermas os fatos satildeo o que noacutes declaramos
acerca dos objetos Ele enfatiza que o nominalismo eacute menos suspeito do
que outras posiccedilotildees ontoloacutegicas especialmente as posiccedilotildees que atribuem
um status ontoloacutegico aos fatos De acordo com Puntel (2013) o argumento
de Habermas eacute incoerente visto que se os fatos tecircm uma relaccedilatildeo essencial
com a linguagem o mesmo deve ser dito dos objetos Se os fatos estatildeo
entrelaccedilados com a linguagem porque podem ser expressos o mesmo
ocorre com os objetos haja vista que podem ser referidos a algo
Habermas poreacutem defende que apenas os fatos satildeo tocados pela
linguagem natildeo os objetos
Podemos dizer que haacute um abismo que separa a dimensatildeo pragmaacutetica
da semacircntica em Habermas embora ele sempre argumente que satildeo duas
perspectivas inseparaacuteveis Esse eacute um aspecto a ser criticado no
pensamento de Habermas agrave medida que ele natildeo concilia de fato a
pragmaacutetica e a semacircntica Segundo Manfredo Oliveira (2010) do
pressuposto metodoloacutegico fundamental da razatildeo comunicativa Habermas
deriva uma consequecircncia temaacutetica draacutestica isto eacute a restriccedilatildeo do tema da
filosofia agrave dimensatildeo pragmaacutetica Dessa forma como tambeacutem aponta
Puntel (2013) a abordagem pragmaacutetica habermasiana considera que as
estruturas e praacuteticas da comunicaccedilatildeo satildeo a base uacutenica uacuteltima e decisiva
do pensar filosoacutefico privilegiando a linguagem natural em sua
integralidade
Habermas (2004) em Verdade e justificaccedilatildeo distingue entre as
funccedilotildees expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da
linguagem natural afirmando que elas se pressupotildeem mutuamente
aceitando a tese de Michael Dummett Poreacutem Habermas privilegia
claramente a dimensatildeo pragmaacutetica colocando a semacircntica em segundo
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 141
plano O resultado eacute que o problema do mundo objetivo em Habermas
natildeo eacute explorado suficientemente em sua teoria aparecendo apenas como
pressuposiccedilatildeo formal
Natildeo haacute uma clareza acerca da relaccedilatildeo entre verdade e mundo
objetivo apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade
Nesse sentido podemos dizer que haacute um deacuteficit ontoloacutegico em Habermas
pois a ontologia aparece sempre agrave sombra em sua teoria mas nunca como
algo tematizado e sim pressuposto formalmente Ou seja haacute uma
postulaccedilatildeo da dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo propriamente da ontologia que
eacute a teoria dessa dimensatildeo A semacircntica eacute reduzida agrave pragmaacutetica (ou pelo
menos articulada em funccedilatildeo da pragmaacutetica e a ela submetida) referecircncia
central de toda a filosofia de Habermas
Como vimos antes Habermas diz que a justificaccedilatildeo natildeo pode ser mais
um criteacuterio de verdade mas ela continua sendo um mecanismo de
certificaccedilatildeo da verdade De acordo com Puntel poreacutem quando uma
sentenccedila eacute qualificada como verdadeira supotildee-se a correspondecircncia com
algo no mundo levantando-se a questatildeo de como deve ser concebido esse
algo
Se assim eacute ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulaccedilatildeo ou
conexatildeo eacute exprimiacutevel e portanto natildeo somente pode mas deve ser explicitada
ndash caso contraacuterio falar dela seria vazio e autocontraditoacuterio Mas isto eacute algo que
Habermas poderia ou deveria aceitar De fato ele natildeo apresenta qualquer
explicaccedilatildeo relevante da dimensatildeo da conexatildeo ou entrelaccedilamento e isto deve
ser considerado como resultado de sua posiccedilatildeo poacutes-metafiacutesica (PUNTEL
2013 p 198)
Segue-se daiacute que a articulaccedilatildeo teoacuterica da dimensatildeo pressuposta ndash do
entrelaccedilamentoconexatildeo de verdade e mundo ndash natildeo pode ser realizada
pelo discurso pragmaacutetico ou dentro de seu quadro referencial teoacuterico
pragmaacutetico Isso torna claro que a afirmaccedilatildeo de Habermas a respeito de
uma verdade incondicional eacute extremamente restrita Em suma eacute uma
afirmaccedilatildeo dentro do acircmbito da pragmaacutetica que torna Habermas incapaz
de articular uma verdade genuinamente incondicional
142 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Ele fala da importacircncia de se reconhecer a dimensatildeo da validade
incondicionada mas natildeo avanccedila para aleacutem de tal afirmaccedilatildeo Se haacute a
necessidade de separar verdade de justificaccedilatildeo ele teria que aprofundar e
tematizar o que estaacute chamando de verdadee mundo objetivo Ou seja que
algo eacute esse que se encontra para aleacutem da justificaccedilatildeo e que ao mesmo
tempo pode pocircr abaixo as justificaccedilotildees no mesmo instante em que soacute
temos acesso ao mundo objetivo pelas proacuteprias justificaccedilotildees
A mesma criacutetica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradiccedilatildeo
transcendental oriunda de Kant Este afirma que a representaccedilatildeo das
coisas como nos satildeo dadas deve regular-se como fenocircmenos e natildeo como
coisas em si Em Kant natildeo eacute possiacutevel no conhecimento a priori
acrescentar aos objetos nada a natildeo ser o que o sujeito pensante toma de si
mesmo Todavia Kant exemplifica que se natildeo eacute possiacutevel conhecermos os
objetos como coisas em si mesmas podemos contudo pensaacute-los
Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa natildeo tanto
com objetos mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida
em que ele deva ser possiacutevel a priori Um sistema de tais conceitos denominar-
se-ia filosofia transcendental (KANT 1974 p 33)
Habermas segue a mesma perspectiva de Kant postulando a
intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito
transcendental Poreacutem a orientaccedilatildeo continua a mesma quando Habermas
afirma que podemos conhecer apenas os fatos natildeo os objetos do mundo
O mundo em Habermas natildeo nos impotildee sua linguagem ele natildeo fala e soacute
responde em sentido figurado
Habermas elabora uma teoria filosoacutefica centrada na dimensatildeo
comunicativa (pragmaacutetica) Seria a partir dela que outras dimensotildees
poderiam ser compreendidas Percebemos que a dimensatildeo expositiva
(semacircntica) eacute posta em segundo plano Em Habermas o modo como as
coisas do mundo satildeo apreendidas e denominadas se orienta no contato
comunicativo entre pessoas O mundo objetivo para ele soacute eacute conhecido
com base na relaccedilatildeo com o quadro referencial da comunicaccedilatildeo Ele eacute
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 143
apenas considerado de tal modo que a interaccedilatildeo entre pessoas se faccedila
possiacutevel Contudo Habermas natildeo se interroga pela condiccedilatildeo de
inteligibilidade da proacutepria pragmaacutetica sendo sua consideraccedilatildeo do mundo
objetivo algo vago
Conclusatildeo
Habermas como vimos distingue verdade de justificaccedilatildeo
entendendo verdade tal qual demonstra Puntel de alguma maneira no
sentido da teoria da correspondecircncia relacionada ao mundo objetivo Uma
pergunta contudo permanece sem resposta em Habermas o que significa
compreender algo Eacute preciso destacar contra ele que haacute um deacuteficit acerca
de uma consideraccedilatildeo da linguagem em sua dimensatildeo estruturalno que diz
respeito agrave dimensatildeo ontoloacutegica
Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificaccedilatildeo
haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo
mundo para todos) ele ao mesmo tempo natildeo consegue esclarecer como
ocorre a relaccedilatildeo da co-originaridade entre exposiccedilatildeo e comunicaccedilatildeo natildeo
aprofundando o estatuto que o mundo objetivo possui em sua filosofia
teoacuterica Habermas natildeo avanccedila de forma mais profunda acerca de questotildees
ontoloacutegicas exigidas por sua nova posiccedilatildeo realista-pragmaacutetica
Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questotildees filosoacuteficas que
tradicionalmente seriam chamadas de metafiacutesicas como a tematizaccedilatildeo do
mundo objetivo A virada radicalmente epistecircmica de toda a filosofia
moderna como no esquema transcendental deslocou o sujeito para o
centro de toda a empresa teoacuterica e desse modo tambeacutem da filosofia Fala-
se como sabemos no acircmbito da modernidade de uma filosofia do sujeito
No caso de Habermas e de seu kantismo pragmaacutetico revirado
linguisticamente podemos falar de uma filosofia centralizada na
intersubjetividade e na pragmaacutetica mas que manteacutem ainda a dicotomia
entre sujeitos e mundo
144 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Em Verdade e justificaccedilatildeo os sujeitos supotildeem em comum um
mundo objetivo como totalidade dos objetos que podem ser tratados e
apreciados Eacute justamente o conceito de fracasso performativo que nos
conduz em Habermas a uma pressuposiccedilatildeo formal de nossas accedilotildees
linguiacutesticas e de nossas intervenccedilotildees no mundo objetivo entendido como
sistema de possiacuteveis referecircncias e possiacuteveis manipulaccedilotildees
Trata-se em Habermas de um postulado que inevitavelmente temos
de fazer caso contraacuterio a fala e a intervenccedilatildeo no mundo se tornariam
impossiacuteveis Os participantes do discurso assumem a mesma
pressuposiccedilatildeo formal de um mundo independente de noacutes de nossas
descriccedilotildees de nossos esquemas conceituais
Nesse sentido em Habermas a referecircncia ao mundo natildeo eacute
apresentada como constituindo uma caracteriacutestica componente da
semacircntica da linguagem mas como um pressuposto acrescentado para
que possamos explicar nossas falas e nossas intervenccedilotildees Habermas fala
de semacircntica apenas como dimensatildeo da linguagem (Darstellung der
Welt) mas nunca a analisa Como ressalta Puntel (2013) as tentativas de
Habermas de abordar questotildees filosoacuteficas centrais sem deixar de ser fiel
ao pensamento poacutes-metafiacutesico conduziram-no a problemas
fundamentais obscuridades incoerecircncias ausecircncias de esclarecimentos e
soluccedilotildees
Referecircncias
ALVARENGA N Verdade contingecircncia e falibilismo a teoria discursiva da verdade de J
Habermas agrave luz das criacuteticas de A Wellmer Siacutentese Belo Horizonte v 26 n 86 p
347-373 1999
FRANCcedilA C A problemaacutetica incorporaccedilatildeo do realismo na pragmaacutetica-formal de Juumlrgen
Habermas In CARVALHO M (Org) Teoria criacutetica Coleccedilatildeo XI Encontro ANPOF
2015 p 159-173
HABERMAS J Conhecimento e interesse Rio de Janeiro Guanabara 1987
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 145
_____ Agir comunicativo e razatildeo destranscendentalizada Rio de Janeiro Tempo
Brasileiro 2002
_____ Verdade e justificaccedilatildeo ensaios filosoacuteficos Satildeo Paulo Loyola 2004
_____ Teoria do agir comunicativo 1 racionalidade da accedilatildeo e racionalidade social Satildeo
Paulo Martins Fontes 2012
KANT I Criacutetica da razatildeo pura Satildeo Paulo Abril Cultural 1974
OLIVEIRA M A Eacute a filosofia uma pragmaacutetica Revista Tempo Brasileiro Juumlrgen
Habermas ndash 80 anos Laranjeiras n 181-182 p 103-126 2010
PUNTEL L O pensamento poacutes-metafiacutesico de Habermas uma criacutetica Siacutentese Revista de
Filosofia Belo Horizonte v 40 n 127 p 173-223 2013
8
Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes
para se Pensar a Natureza de Sistemas Formais
Uma Abordagem Wittgensteiniana
Marcos Silva 1
I want to say an education quite different from ours
might also be the foundation for quite different concepts
(Wittgenstein Zettel 387)
Em 1930 segundo algumas conversas documentadas em
Wittgenstein (1984a)2 estava discutindo com alguns membros influentes
do Ciacuterculo de Viena aspectos importantes de sua filosofia Essas
discussotildees pretendiam esclarecer novidades e dificuldades advindas da
revisatildeo e aprofundamento de toacutepicos de seu Tractatus (1984b) Neste
contexto histoacuterico fica claro pela dinacircmica das conversas que Waismann
conduziu as discussotildees para a filosofia da matemaacutetica uma vez que
Wittgenstein estava preparando-o para um painel a tomar lugar em
Koumlnigsberg naquele mesmo ano O painel trataria justamente de
diferentes perspectivas a respeito dos desafios filosoacuteficos concernentes agrave
crise dos fundamentos na matemaacutetica Nesta discussatildeo em Koumlnisberg Von
Neumann representaria o formalismo Carnap o logicismo e Heyting a
escola intuitionista Jaacute Waismann o quarto membro ilustre da mesa de
1 Professor Adjunto do curso de Filosofia da UFAL e bolsista de produtividade do CNPq (2018-2021) Agradeccedilo aos comentaacuterios valiosos de Luiz Henrique da Silva Santos a este trabalho
2 Estas discussotildees foram documentadas por Waismann e organizadas para publicaccedilatildeo por McGuinness em Wittgenstein und Wiener Kreis doravante WWK
Marcos Silva | 147
discussotildees sobre o estado da arte da filosofia da matemaacutetica seria
responsaacutevel por representar a filosofia de Wittgenstein
A literatura secundaacuteria sobre estes toacutepicos de discussatildeo acerca da
natureza da matemaacutetica no WWK de maneira frequente e acertada a meu
ver aborda os comentaacuterios de Wittgenstein como sendo muito criacuteticos em
relaccedilatildeo ao programa de Hilbert A criacutetica tinha como alvo a meta do
programa que consistia na procura por uma prova absoluta para a
consistecircncia da matemaacutetica (Hacker 1986 Engelmann 2013) Segundo
Wittgenstein provocativamente afirma a tentativa de se fornecer uma prova
absoluta da consistecircncia da aritmeacutetica seria anaacuteloga agrave procura por uma
ldquodoenccedila escondidardquo em um corpo funcional (WITTGENSTEIN 1984a p
120) Contudo acredito que o ponto faltante nesta literatura seja a observaccedilatildeo
de que nesta altura Wittgenstein natildeo foi de forma alguma criacutetico de uma
tese central da tradiccedilatildeo formalista Essa tese diz respeito agrave arbitrariedade da
sintaxe Assim como as regras de um jogo as regras da sintaxe de sistemas
formais seriam para formalistas arbitraacuterias ou seja natildeo residiriam na
essecircncia da linguagem da mente ou do mundo Com efeito Wittgenstein
teria afirmado contundentemente nas discussotildees com os membros do
Ciacuterculo de Viena que ldquoa verdade no formalismo eacute que toda sintaxe pode ser
concebida como se fosse um sistema de regras de um jogo (hellip) Eu gostaria
de afirmar que natildeo somente os axiomas da matemaacutetica mas toda a sintaxe eacute
arbitraacuteriardquo (WITTGENSTEIN 1984a p103 minha traduccedilatildeo)
Minha hipoacutetese de trabalho para se entender esta formulaccedilatildeo forte
de Wittgenstein eacute a de que ela ilustra a sua reaccedilatildeo agrave visatildeo de Frege esta
muito criacutetica ao formalismo Esta reaccedilatildeo me parece ser baseada em uma
ainda incipiente aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de jogos para se entender de maneira
geral a natureza das regras da sintaxe e particularmente a proacutepria noccedilatildeo
de sistemas formais Em junho de 1930 Wittgenstein e Waismann estavam
lendo Grundgetsetze II de Frege em Viena como a entrada ldquoo que dizer
em Koumlnigsbergrdquo do WWK nos mostra No Grundgesetze II Frege (1903
sect106-119) defendeu inter alia contra teses formalistas que identificam a
natureza de sistemas formais com jogos que 1) nuacutemeros da aritmeacutetica natildeo
148 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
podem ser reduzidos a meros sinais ou marcas fiacutesicas porque por
exemplo lsquo0rsquo natildeo tem a propriedade de resultar no sinal lsquo1rsquo quando
adicionado ao sinal lsquo1rsquo ou seja sinais fiacutesicos eles mesmos em uma folha
de papel por exemplo natildeo possuem propriedades matemaacuteticas 2) que
uma contradiccedilatildeo um conceito propriamente loacutegico pode somente ocorrer
nas regras do jogo de xadrez e natildeo nas configuraccedilotildees baacutesicas isto eacute em
nenhum arranjo fiacutesico atual de peccedilas (do xadrez) e 3) que eacute impossiacutevel
inferir regras de um sistema formal pela mera inspeccedilatildeo de posiccedilotildees de
alguns sinais assim como seria impossiacutevel inferir as regras de um jogo de
tabuleiro dado a partir da mera disposiccedilatildeo de suas peccedilas
Nesta altura nas discussotildees com Waismann Wittgenstein parece
concordar com todas essas criacuteticas de Frege ao formalismo contudo vale
notar que Wittgenstein (1984a p 105) acusou indiretamente Frege de ter
cometido uma espeacutecie de falaacutecia do falso dilema se loacutegica e matemaacutetica
natildeo satildeo uma questatildeo de mera inspeccedilatildeo de sinais fiacutesicos ou da disposiccedilatildeo
de marcas materiais em um folha de papel por exemplo o significado de
seus sinais natildeo precisam ser fundados em seu Bedeutung ou seja em sua
referecircncia a entidades abstratas como Frege argumentou Wittgenstein
critica o seguinte raciociacutenio Se o significado de sinais em um sistema
formal natildeo pode ser dado pela mera configuraccedilatildeo de suas marcas fiacutesicas
entatildeo o seu significado deveria ser dado pela sua referecircncia a
determinados objetos especiais Wittgenstein parece ter defendido que ou
bem Bedeutung ou bem meramente sinais fiacutesicos natildeo satildeo todas as
alternativas neste horizonte De fato noacutes precisamos de sinais isto eacute de
algumas marcas fiacutesicas organizadas para a elaboraccedilatildeo de sistemas formais
variados mas noacutes precisamos ainda de regras para manipular estes sinais
Como consequecircncia uma compreensatildeo adequada da metaacutefora de jogos
dos formalistas deveria redundar na assimilaccedilatildeo da ideia que noacutes natildeo
precisamos nos engajar com algum Bedeutung transcendente ao jogo ele
mesmo para garantirmos que os sinais de um sistema formal tenham
significado Em outras palavras sinais seriam sim necessaacuterios mas natildeo
suficientes para a constituiccedilatildeo de um sistema formal mas nem por isso
Marcos Silva | 149
deveriacuteamos postular uma referecircncia a coisas fora do sistema ele mesmo
para dotaacute-lo de significado caso compreendamos a natureza das regras
que organizam o sistema e governam a manipulaccedilatildeo dos seus sinais
Eacute importante notar que Wittgenstein depois desta criacutetica
imediatamente comeccedila a usar o vocabulaacuterio que Frege introduziu ao criticar
formalistas a saber sistemas formais como jogos mas natildeo a posiccedilatildeo de
Frege de que a loacutegica deveria representar leis de uma realidade abstrata
Parece que Frege assumiu o vocabulaacuterio formalista como o de regras e
jogos para mostrar em uacuteltima instacircncia seu absurdo ou ao menos sua
implausibilidade para se entender a aritmeacutetica e a loacutegica Acredito que
Wittgenstein assumiu o vocabulaacuterio formalista de Frege mas condenou seu
falso dilema a saber ou bem somente sinais ou bem a necessidade de um
Bedeutung ao mostrar que formalistas fazem um bom ponto ao defenderem
que toda a sintaxe eacute arbitraacuteria como as regras de jogos Wittgenstein
assumiu o vocabulaacuterio formalista de jogos para mostrar que quaisquer
regras sintaacuteticas poderiam ser outras as regras de sistemas formais natildeo
precisam estar ancoradas na realidade mesmo que rejeitemos que natildeo
devem ser redutiacuteveis a meros sinais ou marcas fiacutesicas Nestas discussotildees
documentadas em WWK Wittgenstein natildeo parecia estar preocupado com
nenhuma lei loacutegica da realidade ou do pensamento mas sim com as regras
para manipular sinais que satildeo estipuladas quando noacutes estipulamos um
sistema loacutegico Ao se entender sistemas como jogos deveriacuteamos entendecirc-los
como independentes de uma realizaccedilatildeo material especiacutefica uma vez que o
fato de o rei num jogo de xadrez ser de plaacutestico madeira ou ateacute mesmo uma
bola de papel eacute irrelevante para a constituiccedilatildeo do proacuteprio sistema Os
sistemas formais como jogos deveriam ser compostos de marcas fiacutesicas sim
mas que possam exercer funccedilotildees variadas no sistema sempre determinadas
pelas regras de manipulaccedilatildeo do jogo
Neste periacuteodo histoacuterico no comeccedilo da deacutecada de 1930 a discussatildeo de
Wittgenstein estaacute ainda circunscrita agrave natureza de sistemas formais e natildeo
eacute desenvolvida para um entendimento geral da linguagem ou das
atividades humanas como um todo Wittgenstein eacute um pensador radical
150 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Eacute razoaacutevel defender que o desenvolvimento de sua filosofia madura possa
ser visto como o desenvolvimento proacuteprio das consequecircncias radicais
desta metaacutefora de jogos natildeo somente para entender matemaacutetica e loacutegica
mas para se entender a linguagem a intencionalidade e a normatividade
peculiares de atividades de seres humanos
No que se segue eu gostaria de responder a pergunta acerca do
porquecirc e de como a noccedilatildeo de jogos desenvolvida por Wittgenstein em 1930
(e nāo de jogos de linguagem porque ele natildeo tinha ainda este conceito
nesta eacutepoca) poderia ainda ser relevante para a filosofia da loacutegica Esta
questatildeo fica ainda mais premente ao considerarmos os problemas
contemporacircneos associados agrave emergecircncia de tantos sistemas natildeo-claacutessicos
legiacutetimos e seu desafio agrave natureza da racionalidade
Eu natildeo pretendo apresentar aqui um quadro nem original e nem
exaustivo de caracteriacutesticas filosoficamente importantes de sistemas
formais ao serem vinculadas a natureza de jogos Mas em vez disso eu
espero defender algumas intuiccedilotildees de Wittgenstein no comeccedilo da deacutecada
de 1930 sobre jogos e regras antes mesmo de suas noccedilotildees maduras (e
elusivas) de jogos de linguagem e semelhanccedila de famiacutelia Minhas
preocupaccedilotildees natildeo redundam em avanccedilar e defender todas as ideias
associadas agrave loacutegica como jogos mas restringir minhas ambiccedilotildees a
promover esta visatildeo filosoacutefica como cogente
Eacute importante evidenciar que os primeiros sistemas de ldquodeduccedilatildeo
naturalrdquo como introduzidos por Jaskowski (1934) e Gentzen (1934-35)
foram desenvolvidos na deacutecada de 1930 Nestes sistemas axiomas
foacutermulas bem formadas e pretensamente evidentes de onde se partem as
derivaccedilotildees satildeo substituiacutedos por conjuntos de inferecircncias que definem o
significado do vocabulaacuterio loacutegico de maneira que natildeo faz sentido dizer que
um sistema loacutegico descreve alguma coisa na realidade Embora as
conexotildees entre diferentes abordagens da loacutegica na deacutecada de 1930 e o
embate contemporacircneo entre teoria da prova e teoria de modelos sejam
histoacuterica e conceitualmente importantes seu exame natildeo estaacute no escopo
deste trabalho
Marcos Silva | 151
Com efeito muito mais poderia ser dito a respeito de jogos e seu uso
em abordagens anti-realistas na loacutegica e na epistemologia A teoria de
jogos foi oficialmente apresentada em 1944 mas foi antecipada por Borel
na deacutecada de 1920 Aleacutem disso a analogia com jogo de xadrez foi
frequentemente usada por exemplo por Weyl (1944) para criticar o
formalismo de Hilbert Vale tambeacutem notar que depois da segunda guerra
mundial o loacutegico Paul Lorenzen (1961) desenvolveu uma influente loacutegica
baseada em jogos dialoacutegicos materiais Estes jogos natildeo foram
influenciados por Wittgenstein mas por outras sugestotildees filosoacuteficas de
natureza construtivista Estes exemplos mostram a seminalidade filosoacutefica
e teacutecnica em se aplicar a metaacutefora do jogo agrave loacutegica independentemente de
uma abordagem wittgensteiniana Um projeto de pesquisa mais
abrangente a respeito disto parece ser bem-vindo
No que se segue eu natildeo estou interessado diretamente na exegese da
filosofia de Wittgenstein3 portanto natildeo vou me concentrar em seu
desenvolvimento filosoacutefico Eu proponho em vez disso oferecer uma
abordagem filosoacutefica mais geral sobre a loacutegica que tambeacutem poderia ser uacutetil
para se entender a natureza do vocabulaacuterio loacutegico
De fato a seguir eu seleciono e brevemente discuto algumas
caracteriacutesticas filosoficamente atraentes a respeito de se pensar loacutegica em
termos de regras em jogos isto eacute em tomar loacutegica como um conjunto de
praacuteticas governadas por regras engajadas por agentes racionais A
motivaccedilatildeo principal aqui eacute a respeito de como esta abordagem poderia ser
filosoficamente seminal para se entender loacutegica e racionalidade em um
ambiente de uma grande pluralidade de jogos Em outras palavras eu vou
mostrar como ao aceitarmos a ideia de sistemas loacutegicos como jogos
poderiacuteamos nos prover de ferramentas filosoacuteficas e loacutegicas para se avanccedilar
discussotildees contemporacircneas em filosofia da loacutegica
Um primeiro ponto relevante em se desenvolver a metaacutefora formalista
a respeito de sistemas formais como jogos eacute o anti-representacionismo
3 Estes problemas conceituais e histoacutericos satildeo tatildeo importantes quanto controversos por um nuacutemero grande razotildees Ver Engelmann (2013) para uma apresentaccedilatildeo mais detalhada Algum anacronismo seraacute cometido no presente trabalho
152 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Regras de um jogo natildeo precisam descrever a experiecircncia e nem a realidade
Regras natildeo podem ser falsificadas e nem verificadas pela experiecircncia uma
vez que natildeo satildeo proposiccedilotildees empiacutericas e natildeo descrevem nada
(WITTGENSTEIN 1984b 61222) De fato noacutes testamos nossa experiecircncia
do mundo usando regras como criteacuterio mas a regra ela mesma natildeo pode
ser testada pela experiecircncia como uma proposiccedilatildeo descrevendo-a pode ser
testada Uma distinccedilatildeo deve ser feita aqui por um lado noacutes testamos uma
proposiccedilatildeo a partir da experiecircncia porque a proposiccedilatildeo descreve o que
ocorre falsa ou verdadeiramente por outro lado proposiccedilotildees empiacutericas satildeo
diferentes de regras na medida em que noacutes testamos ou avaliamos a
qualidade de nossas descriccedilotildees usando algumas regras como criteacuterios Os
criteacuterios eles mesmo natildeo satildeo nem verdadeiros nem falsos Criteacuterios podem
contudo ser tomados como adequados ou inadequados para um
determinado contexto ou uso mas eles natildeo podem ser falsificados a partir
da comparaccedilatildeo com a realidade O motivo da recusa ou rejeiccedilatildeo de criteacuterios
para avaliar a qualidade de nossas praacuteticas discursivas satildeo quase sempre
pragmaacuteticas ou seja baseados na sua legitimidade ou adequaccedilatildeo conceitual
em contextos variados de accedilatildeo e natildeo metafiacutesicos
Outro ponto relevante envolvido na abordagem da loacutegica a partir da
noccedilatildeo de jogos eacute a ecircnfase na generalidade ao inveacutes da universalidade do
conhecimento Regras satildeo gerais isto eacute noacutes podemos compreender um
sistema complexo com um nuacutemero pequeno de regras simples e gerais e
estas natildeo satildeo e natildeo precisam ser universais ou seja ser vaacutelidas para o
domiacutenio de todas as coisas Regras satildeo aplicadas a muitos casos por pessoas
diferentes em contextos diferentes e em muitos periacuteodos diferentes Neste
sentido uma regra natildeo eacute conectada com uma situaccedilatildeo particular mas sim
com uma multiplicidade de situaccedilotildees possiacuteveis Noacutes podemos muito bem
entender um sistema complexo em um momento pela compreensatildeo das
regras que governam seu comportamento De fato a partir do entendimento
comum da noccedilatildeo de regras noacutes podemos pensaacute-las como uma foacutermula geral
que pode determinar um nuacutemero infinito de aplicaccedilotildees
Marcos Silva | 153
Ademais como em uma perspectiva funcionalista para o
entendimento do comportamento de sistemas complexos podemos
associar o desenvolvimento da metaacutefora formalista de jogos com uma
reaccedilatildeo criacutetica ao essencialismo uma vez que natildeo precisamos entender a
essecircncia do mundo para entender o funcionamento de sistemas loacutegicos
Por outro lado esta metaacutefora tambeacutem redunda em uma criacutetica ao
fisicalismo uma vez que a base material eacute irrelevante para o entendimento
da constituiccedilatildeo do significado a partir das regras de um dado sistema O
que Wittgenstein defende eacute um desenvolvimento importante da analogia
formalista de sistemas formais com jogos a saber assim como a base
material de um jogo de tabuleiro natildeo define o significado de suas peccedilas os
sinais na folha de papel por exemplo natildeo determinam o significado destas
marcas Satildeo contudo as regras que fixam o significado tanto das peccedilas do
jogo quanto dos sinais em um sistema formal
Vale notar tambeacutem que um jogo ou uma atividade regrada natildeo
precisa nem ter uma justificaccedilatildeo e nem ter uma fundamentaccedilatildeo Hacker
(1986) apresenta esta caracteriacutestica de jogos como a autonomia ou
arbitrariedade da sintaxe Isto significa que noacutes natildeo precisamos pensar ou
entender a essecircncia da linguagem ou do mundo para aprender como jogar
um jogo Jogos sāo auto-contidos o que eacute dito ou feito em um jogo natildeo
precisa ter nenhuma relaccedilatildeo com o que eacute feito num outro jogo Aqui noacutes
podemos ter uma interessante liberaccedilatildeo de restriccedilotildees metafiacutesicas
relacionadas agrave exigecircncia de referecircncia ao mundo para que estruturas
linguiacutesticas tenham significado uma vez que jogos natildeo precisam ser
pensados em relaccedilatildeo a alguma coisa isto eacute eles natildeo precisam ser
comportar de acordo com um fato determinado no mundo
Em se jogando jogos noacutes temos um claro aspecto de Handlung
dentro de sua dinacircmica loacutegica Ou seja para entendermos o que eacute um jogo
noacutes somos obrigados a pensarmos em termos de alguma accedilatildeo passos
(ldquomovesrdquo) operaccedilotildees ou em uma palavra praacuteticas em atividades regradas
(geregelte Handlung) Existe um niacutevel performativo mandataacuterio em jogos
Regras satildeo instruccedilotildees para atividades (jogos) ou para a construccedilatildeo de algo
154 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
por exemplo A ecircnfase filosoacutefica deve estar no procedimento pelo qual ou
a teacutecnica a partir da qual alguma performance eacute desempenhada e natildeo no
conhecimento proposicional a partir do qual o mundo eacute conhecido
verdadeiramente Natildeo eacute acidental que regras com frequecircncia funcionem
como normas para a accedilatildeo uma vez que expressam o que eacute considerado
adequado ou inadequado correto ou incorreto aceitaacutevel ou inaceitaacutevel
legiacutetimo ou ilegiacutetimo Um operador loacutegico neste contexto pode ser
tomado apenas como um procedimento tomado como legiacutetimo pelo qual
manipulamos sinais ou como uma seacuterie de manipulaccedilotildees permitidas que
contribui com o significado para proposiccedilotildees complexas
Nesta visatildeo que enfatiza o elemento humano em sistemas formais
como atividades regradas de seres humanos uma via de compatibilidade
com o pluralismo loacutegico a tese contemporacircnea que defende a
possibilidade de vaacuterios sistemas loacutegicos conflitantes serem legiacutetimos
conjuntamente pode ser pavimentada Ao se manter que sistemas loacutegicos
satildeo jogos noacutes podemos falar de maneira muito natural a respeito de vaacuterios
caacutelculos sem que precisemos nos comprometer com a verdade ou a
falsidade de alguns deles Com efeito caacutelculos natildeo podem ser falsos no
mesmo sentido que uma proposiccedilatildeo empiacuterica pode ser falsa Mesmo a
loacutegica proposicional entendida classicamente natildeo pode ser verdadeira ou
falsa Como eacute defendido aqui um jogo natildeo pode ser nem falso nem
verdadeiro uma vez que natildeo precisa descrever nada
Aleacutem disso vale notar que natildeo haacute nem um jogo sem regra ou seja
num certo sentido natildeo haacute um jogo anaacuterquico nenhuma regra sem jogo
ou uma regra sem o sistema em que ela deva estar situada Em outras
palavras regras satildeo mortas sem um sistema e um sistema sem regras natildeo
eacute realmente um sistema Aqui noacutes temos uma motivaccedilatildeo para introduzir
o que podemos chamar de holismo loacutegico para cada passo (ldquomoverdquo) ou
operaccedilatildeo em uma atividade governada eles devem estar inseridos em um
sistema Analogamente em sistemas formais operaccedilotildees ganham
significado em relaccedilatildeo a muitas outras Como resultado desta visatildeo
Marcos Silva | 155
mudar uma regra formal significa mudar o jogo uma vez que natildeo haacute
mudanccedila local que natildeo impactaria globalmente no sistema formal inteiro
O desenvolvimento da visatildeo formalista inspirada por Wittgenstein
tambeacutem permite as propriedades muito seminais de sistemas formais
como flexibilidade e plasticidade a partir da noccedilatildeo de jogos Em principio
noacutes podemos rejeitaraceitar ou mudar qualquer regraprinciacutepio em um
sistema loacutegico (claro evitando trivializaccedilāo com notado por Da Costa
1958) Em outras palavras operar em um sistema loacutegico eacute um Handlung
com signos governado por regras que satildeo convencionais no sentido que
poderiam ser outras
Consequentemente noacutes podemos rejeitar a visatildeo tiacutepica a respeito da
normatividade oferecida pelo realista monista Se noacutes temos apenas uma
uacutenica loacutegica verdadeira natildeo importando aqui qual e se a loacutegica determinar
as condiccedilotildees de inteligibilidade de nossas praacuteticas e os limites de nossa
racionalidade entatildeo eacute faacutecil transformar a discussatildeo loacutegica em uma discussatildeo
normativa qualquer desvio da supostaloacutegica verdadeira (como qualquer
outra loacutegica com outros princiacutepios) deveria ser tomado como contrassensual
Desvios sob o ponto de vista de um monista satildeo instacircncias de mau raciociacutenio
ou mesmo ilustraccedilotildees de nenhum raciociacutenio ou seja de que nenhum
raciociacutenio foi de fato feito Se noacutes levarmos a noccedilatildeo de jogos devidamente a
seacuterio a resposta para a normatividade da loacutegica fica encapsulada em normas
de accedilatildeo ou em instruccedilotildees para praacuteticas associadas com uma finalidade
particular Eacute evidente que noacutes poderiacuteamos ter outras normas como de fato
outras comunidades tecircm Com efeito existem outras comunidades que
obedecem outras regras uma comunidade de matemaacuteticos de orientaccedilatildeo
intuicionista por exemplo (LOumlF 1996 2013)
Como um uacuteltimo ponto para a relevacircncia filosoacutefica de se pensar
sistemas formais como jogos vale se destacar que regras satildeo puacuteblicas e
natildeo fundamentadas em representaccedilotildees privadas mentais ou em quaisquer
leis da mente Regras devem ser aprendidas em um ambiente social e a
partir de interaccedilotildees sociais Aqui a noccedilatildeo de educaccedilatildeo ou de iniciaccedilatildeo em
uma praacutetica naturalmente ganha importacircncia dentro do escopo da
156 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
discussatildeo em filosofia da loacutegica e da matemaacutetica Esta visatildeo encoraja
consequentemente uma virada antropoloacutegica na abordagem de sistemas
formais uma vez que enfatiza o niacutevel institucional e social na performance
de um jogo A questatildeo natural eacute Quem joga o jogo Quem aplica os
sistemas autocircnomos ao mundo Responder a esta questatildeo propondo um
sujeito metafiacutesico imaterial fora do mundo ou mesmo um
transcendental impondo estruturas a priori as suas representaccedilotildees
parece ser altamente inadequado Uma resposta natural deveria ser que
indiviacuteduos materiais com uma histoacuteria natural e social jogam os jogos ou
performam atividades regradas em uma comunidade de outros
indiviacuteduos Com efeito regras devem ser sempre associadas com uma
forma de vida Um indiviacuteduo radicalmente isolado natildeo pode jogar um jogo
ou seguir uma regra se noacutes aceitarmos as consequecircncias do famoso
argumento contra a linguagem privada de Wittgenstein em suas
Investigaccedilotildees filosoacuteficas Um jogo jogado objetivamente deve poder ser
ensinado para outros indiviacuteduos a partir dos criteacuterios puacuteblicos pelos quais
se corrigem passos inadequados ou ilegiacutetimos em atividades regradas
Com estas observaccedilotildees neste curto ensaio pretendi mostrar como a
noccedilatildeo de jogos pode ainda ser relevante filosoficamente para se entender a
natureza de sistemas formais a partir de uma abordagem wittgensteiniana
usando principalmente os textos compilados como WWK
Referecircncias
BOREL Eacute La theacuteorie du jeu et les eacutequations inteacutegrates agrave noyau symeacutetrique Comptes
Rendus Hebdomadaires des Seacuteances de lrsquoAcademie des Sciences 173 1304ndash1308
1921English Translation (Savage LJ) The theory of play and integral equations
with skew symmetric kernels Econometrica 21 97ndash100 (1953)
DA COSTA N C A Nota sobre o conceito de contradiccedilatildeo Anais da Sociedade Paranaense
de Matemaacutetica1 6ndash8 1958
ENGELMANN MauroWittgensteinrsquos philosophical development phenomenology
grammar method and the antropological view Hampshire Palgrave Macmillan2013
Marcos Silva | 157
FREGE G Grundgesezte der arithmetic Band II Verlag Hermann Pohle Jena 1903
GENTZEN G 1934ndash1935 Untersuchungen uumlber das logische schliessen
(Investigations into logical inference) PhD thesis Universitaumlt
GoumlttingenPublished in Gentzen 1969 68ndash131
_____ The collected papers of Gerhard Gentzen ed M Szabo Amsterdam North-
Holland 1969
HACKER PM S Insight and illusion 2 ed Oxford 1986
JASKOWSKI S On the rules of suppositions in formal logic Studia Logica 15-32 1934
LOumlF Martin On the meanings of the logical constants and the justifications of the logical
laws Nordic Journal of Philosophical Logic Vol 1 No 1 p 11ndash60 Scandinavian
University Press 1996
_____ Verificationism then and now In M van der Schaar (ed) Judgement and the
epistemic foundation of logic 3 Logic epistemology and the unity of science 31 p
03-14 Springer Science amp Business Media Dordrecht 2013
LORENZEN Paul Ein dialogisches konstruktivitaumltskriterium In Infinitistic methods 1961
Infinitistic methods (Proceedings of the Symposium on Foundations of Mathematics
Warsaw 2ndash9 September 1959) Oxford Pergamon Press p 193ndash2001961
WEYL Hermann David Hilbert and his mathematical work Bull Am Math Soc 50 612ndash
654 1944
WITTGENSTEIN L Some remarks on logical form Proceedings of the Aristotelian Society
Supplementary Volumes Vol 9 Knowledge experience and realism p 162-171
Published by Blackwell Publishing on behalf of The Aristotelian Society 1929
_____ Wittgenstein und der Wiener kreis (1929-1932) Translated into English by
Joachim Schulte and Brian McGuinnessWerkausgabe Band 3 Frankfurt am Main
Suhrkamp 1984a
_____ Tractatus logico-philosophicus Tagebuumlcher 1914-16 philosophische
untersuchungen Werkausgabe Band 1 Frankfurt am Main Suhrkamp 1984b
9
Revisitando o Argumento da Linguagem Privada
Marcus Joseacute Alves de Souza 1
Introduccedilatildeo
Falar de ldquolinguagem privadardquo aponta para um conceito intuitivamente
ou aparentemente contraditoacuterio como pode existir uma linguagem privada
uma vez que a linguagem de um ponto de vista simplista pressupotildee
comunicaccedilatildeo interaccedilatildeo entre falantes Linguagem privada parece um
oxiacutemoro patente Entretanto do ponto de vista teoacuterico a depender de qual
moldura teoacuterica do significado se adere ldquolinguagem privadardquo natildeo eacute algo tatildeo
contraditoacuterio assim Deste modo ao se falar de ldquoargumento da linguagem
privadardquo natildeo se estaacute pensando num argumento que demonstre a
plausibilidade da linguagem privada Na acepccedilatildeo corrente dos estudos sobre
o pensamento de Wittgenstein objeto desta reflexatildeo ldquoargumento da
linguagem privadardquo eacute o argumento mais especificamente os argumentos
que tecircm a linguagem privada como objeto a rigor argumentos contra a
linguagem privada Segundo Hacker (2010 p 616) o que a expressatildeo indica
natildeo satildeo argumentos claros que o filoacutesofo apresenta na verdade satildeo
argumentos de tortuosa interpretaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo presentes nos
paraacutegrafos de 243 a 315 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas
A proposta deste artigo eacute modesta Primeiro apresentar um possiacutevel
modo de estruturaccedilatildeo do argumento que tornaria plausiacutevel uma
linguagem privada argumento se de enquadra no acircmbito de uma
1 Professor de Filosofia da UFAL Liacuteder do Grupo Linguagem e Cogniccedilatildeo-UFAL
Marcus Joseacute Alves de Souza | 159
compreensatildeo mental de caraacuteter privatista A seguir indicar trecircs pontos de
ataques contra o argumento extraiacutedos dos paraacutegrafos das Investigaccedilotildees
Filosoacuteficas tentando mostrar falhas nas premissas do argumento
formalizado da plausibilidade da linguagem privada Feito isso encerra-
se o artigo anunciando brevemente alguns elementos desdobrados da
proposta do filoacutesofo para pensar o mental dentro do quadro da
compreensatildeo de linguagem do filoacutesofo
Argumento a Favor da Linguagem Privada
Natildeo eacute claro que Wittgenstein tenha em mente um alvo apenas de ataque
nos trechos indicados como referecircncia do que ficou conhecido como
ldquoargumento da linguagem privadardquo2 todavia eacute possiacutevel determinar que o
filoacutesofo busca atacar certa imagem de privacidade que podemos chamar de
moderna e o modelo de teoria do significado subjacente a tal privacidade
modelo mentalista de significado Nesta imagem existe o mundo da proacutepria
mente e o mundo exterior agrave mente dos objetos materiais e da mente das
outras pessoas O mundo da proacutepria mente eacute privado inicialmente
encapsulado em si e acessiacutevel privadamente de modo direto ao sujeito mental
e de modo indireto por outros sujeitos mentais (outras mentes)
Numa acepccedilatildeo cartesiana a mente eacute uma substacircncia imaterial ligada
ao corpo do portador da mente mas o corpo poderia existir por si proacuteprio
Na mente cartesiana se desenrola os pensamentos sentimentos
sensaccedilotildees Estes satildeo fundamentalmente privados Tal compreensatildeo cria
um problema efetivo quanto ao conhecimento de outras mentes
Tal imagem tambeacutem sobrevive numa acepccedilatildeo empirista mesmo que
o candidato a mente seja algo empiricamente observaacutevel o ceacuterebro Parece
existir uma dificuldade em transpor das operaccedilotildees neuroloacutegicas toda a
gama de manifestaccedilotildees comportamentais e toda a gama de capacidades
2 Eacute possiacutevel perceber que o ataque eacute claro para uma imagem cartesiana de mente bem como o modelo linguagem x designaccedilatildeo no ldquoargumento da linguagem privadardquo mas eacute possiacutevel perceber pelo itineraacuterio reflexivo do filoacutesofo que mesmo uma compreensatildeo empiacuterica mentalista da linguagem ou mesmo o ataque pode se conectar com problemas detectados naquilo que foi o projeto de linguagem fenomenoloacutegica Cf Nielsen 2008 Parte I
160 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
intelectuais disposiccedilotildees etc da nossa espeacutecie e de outras semelhantes o
que faz com que se estabeleccedila uma independecircncia de esferas mental e
fiacutesica (manifestaccedilotildees comportamentais x operaccedilotildees neuronais) que
alimenta a mesma imagem de mente
A compreensatildeo que a mente eacute algo privado e que a linguagem eacute
expressatildeo externa do que estaacute interno eacute a concepccedilatildeo em termos gerais
comum tanto do idealismoracionalismo quanto do
fisicalismoempirismo Isso cria um problema para o conhecimento de
outras mentes sendo que o encaminhamento da soluccedilatildeo se estabeleccedila por
analogia entre minha mente que tenho acesso direto e a mente dos
outros que numa hipoacutetese otimista tenho acesso indireto
Assim um dos alvos talvez o principal dos trechos das Investigaccedilotildees
Filosoacuteficas seja a compreensatildeo privada da mente e associada a esta a
teoria do significado que decorre desta privacidade que daacute condiccedilotildees para
se pensar uma linguagem privada No sect 243 Wittgenstein (1999) daacute as
bases para esta linguagem Natildeo se trata de uma linguagem
circunstancialmente privada algo como monoacutelogos criptografados mas
uma linguagem radicalmente privada A indicaccedilatildeo do filoacutesofo eacute uma
linguagem que diga respeito agraves proacuteprias ocorrecircncias mentais vivecircncias
interiores que seriam nesta moldura radicalmente privadas
Mas seria tambeacutem pensaacutevel uma linguagem na qual algueacutem pudesse para seu
uso proacuteprio anotar ou exprimir suas vivecircncias interiores ndash seus sentimentos
seus estados de espiacuterito ndash Natildeo podemos fazer isso em nossa linguagem
costumeira ndash acho que natildeo As palavras dessa linguagem devem referir-se
agravequilo que apenas o falante pode saber agraves suas sensaccedilotildees imediatas privadas
Um outro pois natildeo pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN
1999 p 98 sect 243)
Assim aquilo sobre de que a linguagem se compotildee signos regras
referecircncia enfim todos seus elementos seriam privados apenas o criador-
usuaacuterio definiria o significado e apenas ele saberia o significado dos signos
De modo esquemaacutetico o argumento a favor da possibilidade de uma
linguagem privada poderia ser feito assim
Marcus Joseacute Alves de Souza | 161
- ldquoSensaccedilotildees satildeo privadas da mente da pessoa que as temrdquo (premissa 1 = P1)
- ldquoAs sensaccedilotildees satildeo inacessiacuteveis a outras pessoas uma vez que os outros natildeo tecircm
certeza se algueacutem tem ou natildeo uma sensaccedilatildeo particularrdquo (premissa 2 = P2)
- ldquoAlgueacutem pode dar um nome a uma sensaccedilatildeo particular na privacidade de sua mente
e usar este nome e o acerto deste nome nunca seria acessado por ningueacutem a
natildeo ser o usuaacuterio privadordquo (premissa 3 = P3)
- ldquoO significado de um termo nesta linguagem nada mais eacute que a referecircncia de uma
ocorrecircncia mental (sensaccedilatildeo) e seu modo de expressatildeo (signo) sobre uma
sensaccedilatildeo presente ou passada eacute a simples indicaccedilatildeo privada (ostensatildeo) desta
ocorrecircncia mentalrdquo (premissa 4 = P4)
rarr ldquoA linguagem privada eacute possiacutevel seria a linguagem de nossas ocorrecircncias
mentaisrdquo (Conclusatildeo)
Fazendo uma avaliaccedilatildeo inicial dessas premissas se pode estabelecer
sobretudo dentro de uma moldura privatista da mente e uma concepccedilatildeo
mentalista do significado que existe uma certa plausibilidade do argumento
A premissa 1 (P1) parece ser verdadeira as ocorrecircncias mentais as
sensaccedilotildees satildeo privadas ldquoningueacutem sente a minha dorrdquo por exemplo eacute uma
afirmaccedilatildeo claramente verdadeira o que aponta para a verdade da
premissa 1
A premissa 3 (P3) parece ser verdadeira tambeacutem parece ser
plausiacutevel admitir sua verdade Sendo privadas e sendo algo as sensaccedilotildees
podem ser nomeadas como qualquer objeto exterior na linguagem puacuteblica
(mesmo que passe por um processo mental de representaccedilatildeo) Como
apenas o criador e usuaacuterio conhece o termo soacute ele conhece sua associaccedilatildeo
referencial com o objeto e soacute ele conhece o objeto logo eacute possiacutevel admitir
que soacute ele sabe se acertou ou natildeo no uso deste termo
A premissa 4 (P4) tambeacutem pode ser plausiacutevel uma vez que pode se
admitir que o ato de ostensatildeo eacute fundamental para a instanciaccedilatildeo do
significado de um termo eacute possiacutevel admitir que semanticamente o
significado de um termo eacute sua substituiccedilatildeo por ostensatildeo no plano da
linguagem e como os elementos satildeo privados tal mecanismo pode ser
executado privadamente
162 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
A premissa 2 (P2) parece ser a problemaacutetica pois parece existir uma
seacuterie de situaccedilotildees que claramente sabemos que uma pessoa tem dor por
exemplo o que aponta para uma implausibilidade da premissa Claro que
existem situaccedilotildees de simulaccedilatildeo de sensaccedilotildees mas seraacute possiacutevel duvidar que
ao enfiar um prego debaixo da unha de uma pessoa ela natildeo tenha dor Os
mais aferrados agrave moldura privatista da mente podem pensar que no maacuteximo
o que posso fazer eacute dado agraves reaccedilotildees da pessoa (comportamento) supor que
ela estaacute tendo dor pois natildeo sinto a dor dela logo natildeo tenho condiccedilotildees de
dizer com certeza que ela tem ou natildeo dor Assim mesmo que se possa pensar
que haacute uma inconfundiacutevel expressatildeo comportamental de dor natildeo existe clara
e confiaacutevel regularidade entre causa e efeito no caso das sensaccedilotildees Por mais
regular que seja a relaccedilatildeo entre enfiar um prego debaixo de uma unha de
algueacutem e este algueacutem gritar chorar se contorcer parece possiacutevel pensar
contra-exemplos desta regularidade algueacutem que fique impassiacutevel por
exemplo Assim parece natildeo existir uma correlaccedilatildeo perfeita entre tiacutepica causa
do comportamento de dor a dor e o comportamento de dor o que torna mais
plausiacutevel a premissa 2
Esta avaliaccedilatildeo preliminar tem como objetivo reforccedilar as bases da
plausibilidade da admissatildeo da linguagem privada P1 aponta para o
aspecto da natureza privada das ocorrecircncias mentais P2 para a dimensatildeo
epistemoloacutegica das ocorrecircncias mentais P3 e P4 para o mecanismo
semacircntico da proposta de linguagem privada
O exemplo recorrente de Wittgenstein eacute o da dor em algumas
ocasiotildees trabalha tambeacutem com o exemplo das cores Natildeo se pretende fugir
desses exemplos pois dado a sua vivacidade e forccedila retoacuterica servem
melhor para esclarecer a questatildeo e desdobrar para outros exemplos
Pontos de Ataque ao Argumento
A seguir tentaremos indicar a partir das reflexotildees de Wittgenstein o
ataque a este argumento na verdade indicando a inadmissibilidade do
argumento proposto para embasar a possibilidade da linguagem privada
Marcus Joseacute Alves de Souza | 163
A Engrenagem Solta
Este ponto de ataque pode ser detectado na sequecircncia dos paraacutegrafos
271 272 279 e 293 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas
Eacute uma das metaacuteforas recorrentes de Wittgenstein para explicar a
linguagem a das engrenagens Assim aponta para o fato do significado ser
uma articulaccedilatildeo de uma seacuterie de elementos
Para a formulaccedilatildeo deste ataque os paraacutegrafos apontam para a
ambiguumlidade possiacutevel na denotaccedilatildeo do significado de palavras de cores
Nos paraacutegrafos eacute possiacutevel perceber a alegaccedilatildeo de que cada pessoa processa
seu exemplar de cor na sua mente e que existe a possibilidade de confusatildeo
na denotaccedilatildeo das cores Eacute possiacutevel que eu e parte da humanidade tenham
uma sensaccedilatildeo de vermelho e outra parte tenha outra sensaccedilatildeo cromaacutetica
(WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 272)
Um empirista como Locke admite a mesma situaccedilatildeo mas
sabiamente ele aponta (como Wittgenstein) que eacute uma situaccedilatildeo
inverificaacutevel Ou seja se vocecirc tem um exemplar privado na memoacuteria que
vocecirc chama de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute verde e eu tenho um
exemplar privado que eu chamo de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute azul e
um terceiro chama seu exemplar privado de ldquovermelhordquo e ele na realidade
eacute vermelho Dado a privacidade efetiva natildeo posso verificar os exemplares
privados dos trecircs A questatildeo mais problemaacutetica entra pela porta dos fundos
pela linguagem Para Locke ndash e aqui eacute a oportunidade de expor uma teoria
mentalista standart do significado - os nomes satildeo marcas sensiacuteveis de ideias
armazenadas na memoacuteria assim as palavras estatildeo em associaccedilatildeo com ideias
da mente Se uma palavra natildeo ldquoexecutardquo a mesma ideia armazenada na
mente de duas pessoas ou mais pessoas ela natildeo seraacute significativa
Quando um homem fala com outro o faz para que possa ser entendido e o fim
da fala implica que estes sons como marcas devem tornar conhecidas suas
ideias ao ouvinte Essas palavras entatildeo satildeo as marcas das ideias de quem fala
ningueacutem pode aplicaacute-las como marcas imediatamente a nenhuma outra coisa
164 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
exceto agraves ideias que ele mesmo possui jaacute que isto as tornaria sinais de suas
proacuteprias concepccedilotildees e ao contraacuterio aplicaacute-las a outras ideias faria com que elas
fossem e natildeo fossem ao mesmo tempo sinais de suas ideias e deste modo natildeo
teriam de nenhum modo qualquer significado (LOCKE 1983 p 222)
Assim no uso puacuteblico o desacordo eacute detectaacutevel uma vez que um dos
falantes mostre publicamente o que eacute que ele tem como exemplar de
ldquovermelhordquo do mesmo modo o outro e assim aleacutem de detectar o desacordo
superaacute-lo isso mantendo a moldura mentalista Cores a princiacutepio satildeo
elementos ou aspectos fiacutesicos de objetos fiacutesicosmateriais uma vez que se
tem a vantagem de poder ldquomostrarrdquo exteriormente um exemplar fiacutesico
similar ou idecircntico com a cor para superar a ambiguumlidade Transpor esta
problemaacutetica para o exemplo da dor torna a situaccedilatildeo bem mais problemaacutetica
e complexa Dor eacute uma sensaccedilatildeo sendo privada ningueacutem que natildeo tenha a
experiecircncia da sensaccedilatildeo de dor saberaacute o que significa o signo qualquer que
o designa Se o usuaacuterio e falante do signo dor usa-o para significar X num
momento e noutro para significar Y natildeo haveraacute desacordo nem
possibilidade de verificaccedilatildeo Na verdade seraacute tomado pelo usuaacuterio da
linguagem privada como significando a mesma coisa A mesma situaccedilatildeo
pode ser pensada em uso comum Suponha que algueacutem se queixa de uma
dor sendo privada a sensaccedilatildeo pode variar de pessoa para pessoa se for
diferente de pessoa para pessoa a duacutevida eacute sem sentido pois eacute radicalmente
insuperaacutevel a privacidade o que afeta o uso puacuteblico da palavra ldquodorrdquo como
palavra significativa Tal situaccedilatildeo aponta para a ideia de engrenagem solta
no uso do termo torna-se irrelevante se este algueacutem tem dor ou natildeo para a
significaccedilatildeo do termo em uso privado e para a comunicaccedilatildeo em uso puacuteblico
ldquo[] a roda que se pode mover sem que mais nada se mova natildeo pertence a
maacutequinardquo (WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 271)
A este respeito Wittgenstein (1997 p 427 ndash traduccedilatildeo nossa) diz nas
notas para conferecircncia de filosofia3 ldquoNatildeo eacute um ato oculto nomear um
objeto que possa dar significado a uma palavrardquo
3 Este texto que ficou com o tiacutetulo Conferecircncia Filosoacutefica (MS 166) eacute um conjunto de notas segundo Von Wright de em 1935 ou 1936 denotando uma conferecircncia natildeo realizada pelo filoacutesofo que segundo Anthony Kenny deveria ser realizada em 1941 supostamente para Academia Britacircnica Essas notas dizem respeito agraves reflexotildees de Wittgenstein
Marcus Joseacute Alves de Souza | 165
O que significa essa reflexatildeo para o argumento a favor da linguagem
privada Natildeo eacute um reforccedilo agrave privacidade como uma esfera inexpugnaacutevel
mas para mostrar que eacute irrelevante o objeto referecircncia da sensaccedilatildeo numa
moldura mentalista que na verdade supostamente funciona como
elemento fundamental para a significaccedilatildeo Nisso mesmo sem entrar no
meacuterito de que as sensaccedilotildees satildeo privadas (P1) sendo inacessiacuteveis aos outros
(P2) elas natildeo jogam papel algum para a significaccedilatildeo o que tira a
plausibilidade de P3 Entretanto no uso comum natildeo eacute possiacutevel supor que
estejamos num permanente engano ou mal entendido do significado dos
termos de sensaccedilatildeo evidecircncia que ataca a premissa 2 (P2)
Ausecircncia de Criteacuterio
No sect 258 Wittgenstein (1999) cria uma hipoteacutetica situaccedilatildeo de algueacutem
que quer escrever em um diaacuterio sobre a repeticcedilatildeo de uma sensaccedilatildeo Diz
ele ldquoPara tanto associo-a com o signo lsquoSrsquo e escrevo este signo num
calendaacuterio todos os dias em que tenho a sensaccedilatildeordquo A ideia eacute que faccedilo isso
por uma espeacutecie de ostensatildeo privada concentro-me na sensaccedilatildeo como
um apontar interior e a nomeio A pergunta que surge eacute ldquopara que tal
ritualrdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 100 sect 258) Se ele serve para
estabelecer o significado de ldquoSrdquo deve-se dizer que toda vez que a sensaccedilatildeo
surgir e nomeaacute-la isso se deu porque me recordo da ligaccedilatildeo pois gravei
em mim a associaccedilatildeo de ldquoSrdquo e a sensaccedilatildeo Escreve-se ldquoSrdquo para expressar
minha certeza interior dessa associaccedilatildeo Esta seria uma possiacutevel
justificativa para o ldquoritualrdquo mas ela eacute claramente insuficiente Pensemos
que significa tal situaccedilatildeo Um dos aspectos que mostra a insuficiecircncia eacute o
fato de que pode existir uma falha na instanciaccedilatildeo por erro de memoacuteria
por exemplo Ou seja marco no diaacuterio ldquoSrdquo no dia X quando tenho a
sensaccedilatildeo S no mesmo dia X tenho a mesma sensaccedilatildeo e por familiaridade
interior tenha a certeza de que a sensaccedilatildeo foi a mesma e marco ldquoSrdquo no
sobre a linguagem privada sua implausibilidade Mesmo pouco sistemaacutetico o escrito eacute um grande auxiacutelio para a compreensatildeo e da evoluccedilatildeo do tema no pensamento do filoacutesofo
166 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
calendaacuterio Passados 15 dias tenho a sensaccedilatildeo mas natildeo estou tatildeo certo
fico titubeante tenho duacutevidas de mim para mim se eacute a mesma sensaccedilatildeo
minha memoacuteria natildeo me daacute a certeza que precisaria mas depois de um
pouco mais de introspecccedilatildeo e esforccedilo de lembranccedila a certeza vem e anoto
ldquoSrdquo no calendaacuterio No dia seguinte tenho a sensaccedilatildeo desta vez ela me
pareceu niacutetida e familiar e escrevo sem titubear ldquoSrdquo
A pergunta que surge eacute como se pode sustentar a correccedilatildeo deste uso
denotativo interno Algueacutem mais apegado ao quadro criado atribuiria agrave
sinceridade ou agrave honestidade do ldquousuaacuteriordquo Mas novamente como aferir
tal sinceridade ou honestidade desta associaccedilatildeo Em tese apenas o usuaacuterio
da definiccedilatildeo extensional seria o avaliador de tal sinceridade ou
honestidade Seria algo como ldquoserei sincero com minha honesta
associaccedilatildeordquo ldquoserei sincero comigo mesmo e por isso garanto que natildeo erro
(intencionalmente) ao associar repetidas sensaccedilotildees ao signo lsquoSrsquordquo Mas ser
vocecirc o avalizador de sua sinceridade serum sincero e honesto avalizador
de sua sinceridade e honestidade eacute expressatildeo de um sem sentido de falta
de engrenagem significativa desta situaccedilatildeo E segundo Wittgenstein (1997
p 427-438) nas notas para conferecircncia filosoacutefica se o objeto interno
muda e nossa memoacuteria nos engana o que eacute possiacutevel e usamos a expressatildeo
privada de boa-feacute para significar o objeto usamos a mesma expressatildeo a
cada vez para significar algo distinto Falar de sinceridade honestidade e
boa feacute neste contexto eacute sem sentido exatamente porque boa-feacute
honestidade e sinceridade satildeo conceitos puacuteblicos natildeo faz sentido a natildeo
ser figuradamente e em uso puacuteblico dizer que se eacute honesto consigo
mesmo natildeo existe honestidade ou sinceridade privada Isso marca o
aspecto da falta de criteacuterio de correccedilatildeo desta situaccedilatildeo Aleacutem disso se pode
pensar voltando ao exemplo que se houvesse uma falha na memoacuteria que
criasse a incerteza o usuaacuterio natildeo deveria escrever ldquoSrdquo no dia em que ficou
com duacutevida isso eacute expressatildeo de que seria possiacutevel evitar o erro ou o
engano desde que o usuaacuterio fosse diligente epistemologicamente no
reconhecimento da sensaccedilatildeo e na sua posterior nomeaccedilatildeo Mas a questatildeo
natildeo eacute de capacidade memoriacutestica de reconhecimento A memoacuteria eacute uma
Marcus Joseacute Alves de Souza | 167
habilidade construiacuteda numa linguagem puacuteblica natildeo um ldquobauacuterdquo privado de
vivecircncias acumuladas Neste caso se o ldquousuaacuteriordquo competente ou natildeo em
termos de memoacuteria associar a sensaccedilatildeo ao signo ldquoSrdquo e disser que associou
corretamente seraacute correto Se ele associar incorretamente e disser que
associou corretamente seraacute correto tambeacutem Ou mesmo numa hipoacutetese
de desonestidade se ele natildeo tiver sensaccedilatildeo alguma mas se disser que ldquoSrdquo
significou tal sensaccedilatildeo assim seraacute tido como correto Isso fica claro em
trechos dos sectsect 258 e 259 ldquoCorreto eacute aquilo que sempre me parecer
correto E isto significa apenas que natildeo se pode falar de corretordquo ou ldquoA
balanccedila na qual se pesa as impressotildees natildeo eacute a impressatildeo da balanccedilardquo
(WITTGENSTEIN 1999 p 101 sectsect 258 e 259)
Tal situaccedilatildeo aponta para o fato de que criteacuterio privado de correccedilatildeo
natildeo eacute criteacuterio eacute impressatildeo de criteacuterio Parece haver criteacuterio mas satildeo
impressotildees de criteacuterio natildeo se descrimina nem corrige nada
O interessante eacute que todo o ldquoritualrdquo descrito anteriormente se faz a
semelhanccedila de procedimentos regrados publicamente transpostos par
uma esfera privada numa clara hipostasia de significado
Esta reflexatildeo ataca diretamente a premissas 3 (P3) e 4 (P4) do
argumento em favor da linguagem privada Do mesmo modo que a
inscriccedilatildeo ldquoSrdquo natildeo denota a sensaccedilatildeo necessariamente eacute possiacutevel como
decorrecircncia atacar a premissa 1 (P1) uma vez que se for o caso nem o
usuaacuterioportador da sensaccedilatildeo ldquosaberdquo se a tem isso pela situaccedilatildeo criada
pelo diaacuterio
TransiccedilatildeoDescritibilidade
No modelo cartesiano seria possiacutevel algo como o que Wittgenstein
aventa no sect 257 da crianccedila gecircnio que descobre por si mesma o nome de
uma sensaccedilatildeo ldquolsquoComo seria se os homens natildeo manifestassem suas dores
(natildeo gemessem natildeo fizessem caretas etc) Entatildeo natildeo se poderia ensinar
a uma crianccedila o uso das palavras lsquodor de dentersquo ndash Ora imaginemos que
uma crianccedila seja um gecircnio e descubra por si proacutepria um nome para a
168 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
sensaccedilatildeordquo (WITTGENSTEIN 1999 p 101) Seria uma situaccedilatildeo em que se
aprende o que eacute dor sentindo-a De novo seria algo como ao me
machucar concentro-me na sensaccedilatildeo e imprimo em mim o que eacute ldquodorrdquo
com um signo qualquer Como vimos pela argumentaccedilatildeo anterior falta
criteacuterios para identificar corretamente as minhas proacuteprias dores por
exemplo Mas deixemos isso de lado por enquanto pois no sect 265 haacute um
interessante desdobramento Admitindo a princiacutepio ser possiacutevel
identificar minhas proacuteprias dores corretamente entatildeo rigorosamente eu
natildeo poderia ser capaz de entender proferimentos como ldquoX tem dorrdquo
Podemos supor que descrevo dores a partir da minha proacutepria dor por
introspecccedilatildeo (ostensatildeo interior) mas se eacute assim isso natildeo me permite
ensinar aos outros como descrever a sensaccedilatildeo para uma pessoa particular
a rigor nem a mesma pois isso natildeo foi feito privadamente (Hume jaacute
assinalava que o ldquoeurdquo natildeo eacute objeto de introspecccedilatildeo) Assim quando sinto
dor natildeo eacute meu ego sente dor nem uma parte especial de mim como meu
ceacuterebro Isso eacute claramente uma falaacutecia (falaacutecia do homuacutenculo4) Mas o
ponto aqui eacute o da transcriccedilatildeo de ldquohaacute doresrdquo de ldquoeu tenho doresrdquo uma vez
que satildeo identificadas como sendo a mesma descriccedilatildeo pois natildeo posso sair
de mim dado a privacidade radical das sensaccedilotildees Do mesmo modo ldquoele
tem dorrdquo natildeo significa que eu designei ldquodorrdquo como algo que acontece num
lugar que natildeo seja o da minha privacidade ou seja o corpo ou a mente de
outra pessoa Se o modelo cartesiano estaacute certo ldquodorrdquo eacute um evento
privado captado introspectivamente enquanto ldquodorrdquo no corpo ou na
mente de outrem natildeo eacute algo introspectivamente captaacutevel por mim Assim
falar de dor a partir de mim como ldquodorrdquo de outra pessoa eacute no miacutenimo
uma significaccedilatildeo indevida Natildeo haacute garantia alguma de identidade entre os
significados (WITTGENSTEIN 1999 p 107 sect 292) Sendo assim natildeo
posso descrever dores que sinto em mim como dores que outro sente Em
sect302 Wittgenstein diz ldquoSe precisamos representar-nos a dor dos outros
segundo modelo de nossa proacutepria dor entatildeo isso natildeo eacute coisa faacutecil pois
4 KENNY J P The homunculus fallacy Cf KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein Oxford Blackwell 1984 p 124-136
Marcus Joseacute Alves de Souza | 169
devo representar-me dores que natildeo sinto segundo dores que sintordquo
(WITTGENSTEIN 1999 p 108)
O objetivo deste ponto eacute destacar agraves avessas que o fundamento
privado de constituiccedilatildeo da linguagem eacute implausiacutevel Ele cria uma seacuterie de
dificuldades para o argumento por analogia para conhecimento de outras
mentes numa perspectiva puacuteblica mostra que pela ausecircncia de criteacuterios
para constituiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel estabelecer qualquer descriccedilatildeo sobre algo
que ocorra na mente de outro tal linguagem aleacutem de ser privada deve
ser autocontida o que se mostra sem sentido pois mesmo as
descriccedilotildeesnomeaccedilotildees privadas perdem toda funccedilatildeo como descriccedilatildeo ou
nomeaccedilatildeo Nomear natildeo eacute um ato privado e oculto para que o termo tenha
significado Segundo Wittgenstein nas notas para conferecircncia filosoacutefica
nomear estaacute dentro de uma teacutecnica de uso nomear natildeo eacute espeacutecie de
batismo maacutegico privado ldquonatildeo serve para nada dizer que temos um objeto
privado ante a mente e damos um nomerdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 129
sect 428) Soacute existe nome segundo ele quando haacute uma teacutecnica para usaacute-lo e
esta teacutecnica natildeo pode ser privada Isso atesta agraves avessas que para que as
descriccedilotildeesnomeaccedilotildees sejam significativas devem ser puacuteblicas O que
ataca especialmente a premissa 2 do argumento (P2) as sensaccedilotildees natildeo satildeo
autocontidas indescritiacuteveis e inacessiacuteveis a outrem logo nem sempre terei
duacutevidas sobre se o outro tem ou natildeo determinada sensaccedilatildeo pois para que
a nomeaccedilatildeodescriccedilatildeo qualquer seja significativa ela deve ser puacuteblica o
que aponta para a noccedilatildeo de que se algum termo ou descriccedilatildeo de sensaccedilatildeo
eacute significativo ele se construiu publicamente logo as sensaccedilotildees natildeo satildeo
inacessiacuteveis e natildeo vivemos numa permanente duacutevida sobre se o outro tem
ou natildeo uma sensaccedilatildeo qualquer como dor
Argumento da Linguagem Privada e Filosofia da Mente em
Wittgenstein
Argumento da linguagem privada eacute o esforccedilo de levar ao extremo das
contradiccedilotildees uma concepccedilatildeo privada e representacional de mente que
170 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
ganha forccedila ou eacute caudataacuteria de uma concepccedilatildeo referencialista de
significado (objeto ndash representaccedilatildeo ndash signo) Os argumentos apontam para
a perspectiva de fazer uma terapia de tal entendimento de apontar
deficiecircncias conceituais e de buscar suprimi-las com outro registro de
significado e mente
Este novo registro se encontra na concepccedilatildeo de linguagem como uso
como conjunto de accedilotildees puacuteblicas e regradas Nisso emergem conceitos natildeo
referencialistas de linguagem como jogos padrotildees regras criteacuterios
aprendizado e treinamento Tal conjunto de elementos numa avaliaccedilatildeo
panoracircmica dos usos de um termo e seus aparentados faz com que surja
a ldquogramaacuteticardquo de um conceito que abre espaccedilo para o entendimento da
filosofia da mente de Wittgenstein
A proposta de filosofia da mente do filoacutesofo se associa agrave gama de
conceitos surgidos do uso especialmente do uso de verbos intencionais
crer querer conhecer lembrar memorizar imaginar pensar etc cada
um com sua gramaacutetica Sendo assim mente natildeo eacute uma instacircncia
metafiacutesica privada e pneumaacutetica A configuraccedilatildeo dos elementos
conceituais extraiacutedo dos usos dos conceitos mentais traz uma explicaccedilatildeo
de uma seacuterie de fenocircmenos mentais a partir de
Nisso emergem conceitos de explicaccedilatildeo de uma seacuterie de fenocircmenos
mentais como
a) paracircmetros conceituais de definiccedilatildeo de conceitos mentais articulaccedilotildees e
exclusotildees pragmaacuteticas de uso que traccedilam o limite da gramaacutetica dos conceitos
mentais
b) assimetria pronominais de primeira e terceira pessoa como elementos
pragmaacuteticos que explicam a diferenccedila entre o interno e o externo como jogos
de linguagem entre auto e heacutetero descriccedilotildees ou expressotildees caracteriacutesticas de
exteriorizaccedilotildees (primeira pessoa) e afirmaccedilotildees sobre dimensotildees mentais de
outrem (terceira pessoa) diluindo o problema das outras mentes no formato
mentalista Assim interno e externo natildeo satildeo instacircncias metafiacutesicas o externo
natildeo eacute fachada do interno satildeo conceitos que tem um papel fundamental na nossa
imagem de pessoa como um conceito puacuteblico
c) comportamentos caracteriacutesticos associados pragmaticamente como conceitos
mentais
Marcus Joseacute Alves de Souza | 171
Outros aspectos da investigaccedilatildeo de Wittgenstein poderiam ser
levantados e aprofundados mas estes trecircs sumaacuterios elementos apontam
para onde se desenvolve a reflexatildeo do filoacutesofo A proposta aqui foi apenas
apresentar a discussatildeo sobre a plausibilidade da linguagem privada e
apontar elementos da filosofia da mente de Wittgenstein Do mesmo
modo compreender que o argumento contra a linguagem privada eacute de
fundamental importacircncia para o entendimento da filosofia da mente de
Wittgenstein
Referecircncias
HACKER P M S Privative language argument In DANCY J SOSA E STEUP M (eds)
A companion to epistemology 2 ed Oxford Wiley-Blackwell 2010 p 616-621
KENNY J P The homunculus fallacy In KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein
Oxford Blackwell 1984 pp 124-136
LOCKE J Ensaio acerca do entendimento humano Trad Anoar Aiex Satildeo Paulo Nova
Cultural 1983
NIELSEN K S The evolution of the private language argument Hampshire UK
Ashgate Publishing Company 2007
SCHROEDER S Private language and private experience In GLOCK H-J Wittgenstein
a critical reader Oxford Backwell Publishers 2001 p 174-198
WITTGENSTEIN L Ocasiones filosoacuteficas 1912-1951 Trad Angel Garcia Rodrigues
Madrid Ediciones Caacutetedra 1997
______ Investigaccedilotildees filosoacuteficas Trad Joseacute Carlos Bruni Satildeo Paulo Nova Cultural
1999
10
O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico
Ricardo S Rabenschlag 1
No capiacutetulo que publiquei nesta mesma seacuterie de livros que registram
parte da produccedilatildeo acadecircmica do grupo de pesquisa Linguagem e
Cogniccedilatildeo afirmei que seria inuacutetil tentar extrair uma concepccedilatildeo coerente
de ciecircncia a partir da anaacutelise das principais obras publicadas pelos Novos
Ateus Embora minha convicccedilatildeo a este respeito permaneccedila inalterada natildeo
creio ser inuacutetil a tentativa de identificar os principais equiacutevocos
epistemoloacutegicos que este e outros grupos de autodeclarados pensadores
criacuteticos cometem em sua cruzada contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo
Em sua acepccedilatildeo vulgar ter uma atitude criacutetica significa suspender o
juiacutezo acerca de uma ideia a menos que tenhamos argumentos logicamente
vaacutelidos e bem fundados seja para afirmaacute-la seja para negaacute-la
Compreendido dessa forma o pensamento ou a atitude criacutetica se opotildeem
de um lado ao raciociacutenio falacioso e de outro agrave atitude dogmaacutetica Por
que devemos preferir raciociacutenios vaacutelidos agrave raciociacutenios falaciosos eacute algo que
dispensa maiores explicaccedilotildees Com efeito o proacuteprio conceito de falaacutecia jaacute
conteacutem um elemento pejorativo e o mesmo se daacute em relaccedilatildeo agrave atitude
dogmaacutetica compreendida natildeo apenas como indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave
busca de razotildees para se afirmar ou negar certas ideias mas sobretudo
como recusa em fazecirc-lo mesmo quando a afirmaccedilatildeo ou a negaccedilatildeo destas
ideais entra em flagrante contradiccedilatildeo com aquilo que acreditamos com
base em argumentos vaacutelidos e bem fundados
1 Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Ricardo S Rabenschlag | 173
Mas se eacute assim o que poderia haver de errado com o Pensamento
Criacutetico Como jaacute disse natildeo creio que haja nada de errado com a ideia de que
devemos sempre que possiacutevel suspender nosso juiacutezo antes que tenhamos
boas razotildees quer para negar quer para afirmar algo A ressalva eacute importante
porque no acircmbito praacutetico nem sempre podemos nos dar ao luxo de
suspender nosso juiacutezo sobretudo quando as consequecircncias desta indecisatildeo
satildeo moralmente graves O problema com o Pensamento Criacutetico natildeo diz
respeito a esta atitude criacutetica moderada e sim a um conjunto mais ou menos
bem definido de crenccedilas largamente difundidas por autores que se
identificam como pensadores criacuteticos entre eles os principais
representantes do novo ateiacutesmo2 Neste breve capiacutetulo examinarei uma das
maacuteximas mais populares entre os autoproclamados pensadores criacuteticos3
Qualquer um que jaacute tenha passado dos cinquenta anos e que tenha
amor pela ciecircncia se lembra com carinho das noites em que assistiu pela
primeira vez e ao longo de vaacuterias semanas aos treze capiacutetulos da seacuterie
Cosmos apresentada por Carl Sagan Natildeo foi o primeiro programa do tipo
e nem o melhor segundo muitos criacuteticos4 mas sob um aspecto ele foi
uacutenico pois nenhum outro programa de divulgaccedilatildeo cientiacutefica alcanccedilou uma
audiecircncia tatildeo vasta Seja pela beliacutessima trilha sonora pelos efeitos
especiais inovadores ou pelo carisma do seu apresentador a seacuterie Cosmos
foi um marco na divulgaccedilatildeo cientiacutefica audiovisual
Uma das caracteriacutesticas principais da seacuterie Cosmos posteriormente
publicada em forma de livro com o mesmo tiacutetulo e que teve enorme
sucesso de vendas em todo o mundo eacute que ela natildeo visava apenas
2 Estou me referindo aqui aos Quatro Cavaleiros do Natildeo-Apocalipse Richard Dawkins Christopher Hitchens Daniel Dennett e Sam Harris
3 Esta eacute apenas uma pequena parte de um projeto mais amplo cujos resultados pretendo publicar num livro com o mesmo tiacutetulo do presente capiacutetulo
4 Muitos incluindo o autor deste capiacutetulo consideram a seacuterie A Escalada do Homem apresentada por Jacob Bronowski como sendo superior sobretudo em razatildeo do maior escopo profundidade e interdisciplinaridade
174 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
transmitir a moderna visatildeo cientiacutefica do mundo ela buscava tambeacutem
promover o espiacuterito cientiacutefico moderno que tornara possiacutevel aos cientistas
modernos descobrirem tudo aquilo que Carl Sagan nos apresentava de
maneira tatildeo cativante Em outras palavras uma parte substancial do
programa tinha como foco a proacutepria ciecircncia sua histoacuteria seus meacutetodos e
sobretudo a atitude criacutetica que segundo Carl Sagan estaacute na raiz dessa
inovadora e bem-sucedida maneira de buscar respostas para questotildees
fundamentais como a origem da vida a origem do homem e do pequeno
planeta que ele habita e ateacute mesmo a origem do proacuteprio Universo
Na tentativa de explicar para o grande puacuteblico os traccedilos essenciais da
atitude criacutetica que caracterizaria o pensamento cientiacutefico Carl Sagan fez
uso5 do seguinte aformismo que rapidamente foi adotado pelos
autoproclamados pensadores criacuteticos como um princiacutepio metodoloacutegico
essencial a toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica6
Princiacutepio de Sagan alegaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias
extraordinaacuterias7
Embora muitos educadores e divulgadores da ciecircncia entre eles
vaacuterios cientistas e alguns filoacutesofos interpretem o aforismo tornado ceacutelebre
por Carl Sagan como expressando um princiacutepio metodoloacutegico essencial a
toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica vejamos o que a
Epistemologia da Ciecircncia tem a dizer sobre essa suposta peacuterola do
pensamento criacutetico Nunca eacute demais lembrar que a Epistemologia da
Ciecircncia natildeo eacute uma ciecircncia que investiga a proacutepria ciecircncia como satildeo a
Histoacuteria da Ciecircncia e a Sociologia da Ciecircncia e sim uma disciplina filosoacutefica
que estuda a natureza a origem e os limites do conhecimento cientiacutefico
5 O aforismo eacute provavelmente uma adaptaccedilatildeo de uma frase praticamente idecircntica publicada num artigo de 1978 de autoria do socioacutelogo italiano Marcello Truzzi Com efeito em seu artigo ldquoOn the Extraordinary An Attempt at Clarification ele afirma que an extraordinary claim requires extraordinary proof
6 Uma busca raacutepida no Google Scholar revela que o aforismo na versatildeo tornada ceacutelebre por Sagan eacute usado em mais de 1000 publicaccedilotildees acadecircmicas
7 O aformismo orignal em inglecircs ldquoExtraordinary claims requery extraordinary evidencerdquo pode ser traduzido tambeacutem como ldquoAfirmaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias extraordinaacuteriasrdquo
Ricardo S Rabenschlag | 175
Antes de tudo eacute importante deixar claro que embora Carl Sagan
tenha empregado o aforismo para descartar explicaccedilotildees pseudocientiacuteficas
em momento algum ele afirmou que se tratava de um princiacutepio
metodoloacutegico e nem se deu ao trabalho de explicar seu sentido preciso e
a menos que se faccedila isso o tatildeo celebrado aforismo aparenta ser uma
apenas uma consequecircncia ilegiacutetima do fato psicoloacutegico de que em geral eacute
mais difiacutecil convencer algueacutem da verdade de uma crenccedila que contraria
suas expectativas do que da verdade de uma crenccedila que natildeo se contraria
suas expectativas Poderiacuteamos expressar essa compreensatildeo vulgar e
psicologista do Princiacutecio de Sagan do seguinte modo
Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas
requerem evidecircncias mais robustas
A consequecircncia eacute obviamente ilegiacutetima jaacute que da proposiccedilatildeo que
descreve o fato psicoloacutegico de que tendemos a rejeitar aquilo que contraria
nossas expectativas e a aceitar aquilo a que estamos acostumados natildeo se
segue o princiacutepio metodoloacutegico de que devemos ser mais exigentes em
relaccedilatildeo agraves evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que
contrariam nossas expectativas e menos exigentes em relaccedilatildeo agraves
evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que natildeo contrariam
nossas expectativas Mais importante que isso esta interpretaccedilatildeo
independentemente da sua origem natildeo eacute aceitaacutevel uma vez que se de fato
estamos naturalmente precavidos em relaccedilatildeo agraves alegaccedilotildees que
consideramos extraordinaacuterias nesse sentido psicoloacutegico do termo
ldquoextraordinaacuteriordquo o mais correto do ponto de vista metodoloacutegico seria
requerermos evidecircncias mais robustas justamente em relaccedilatildeo agraves
alegaccedilotildees que natildeo consideramos extraodinaacuterias
Outra possiacutevel leitura psicologista do Princiacutepio de Sagan resultaria de
uma interpretaccedilatildeo em que ambas as ocorrecircncias do termo
ldquoextraordinaacuteriasrdquo teriam a mesma acepccedilatildeo psicoloacutegica caso em que ele
assumiria a seguinte forma
176 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas
requerem evidecircncias igualmente contraacuterias as nossas expectativas
Em primeiro lugar cumpre observar que se o caraacuteter surpreendente
de uma evidecircncia for definido pelos seus efeitos isto eacute pelo caraacuteter
surpreendente daquilo que ela evidencia o aforismo natildeo passa de um
truiacutesmo pois nesse caso qualquer evidecircncia em favor de uma alegaccedilatildeo
que contrariasse nossas expectativas seria por definiccedilatildeo uma evidecircncia
contraacuteria as nossas expectativas Mais importante que isso por natildeo se
tratar de uma trivialidade evidecircncias cientiacuteficas possuem um caraacuteter
peculiar que deriva do fato de que as explicaccedilotildees cientiacuteficas operam por
meio de teorias Em razatildeo dessa dependecircncia muacutetua que existe entre as
teorias cientiacuteficas e as evidecircncias cientiacuteficas uma evidecircncia cientiacutefica
nunca deve ser considerada de modo independente Daiacute que mesmo os
eventos mais corriqueiros e ateacute mesmo banais aos olhos do cientista isto
eacute quando examinados a partir de um refencial teoacuterico particular possam
adquirir um significado surpreendente Lembro ainda hoje do espanto que
senti quando li pela primeira vez sobre o Paradoxo da Noite Escura8 Este
famoso paradoxo trata das implicaccedilotildees cosmoloacutegicas da escuridatildeo
noturna Ao menos para a maioria de noacutes eacute difiacutecil encontrar algo mais
banal do que a escuridatildeo noturna9 e no entanto Johannes Kepler
considerou justamente a escuridatildeo da noite como sendo uma evidecircncia da
finitude espacial do Universo
Em linhas gerais o raciociacutenio de Kepler foi o seguinte suponha que
as estrelas estejam distribuiacutedas regularmente e que o Universo seja
espacialmente infinito Para um observador em qualquer ponto deste
espaccedilo infinito haacute uma esfera com centro nele cujo volume aumenta com
o quadrado do seu raio Portanto agrave medida que nos dintanciamos deste
observador hipoteacutetico o nuacutemero de estrelas que intercepta o seu raio de
visatildeo cresce com o quadrado da distacircncia Como resultado natildeo importa
8 Tambeacutem conhecido como Paradoxo de Olbers
9 Os Esquimoacutes sabem muito bem que nem toda noite eacute escura
Ricardo S Rabenschlag | 177
para onde ele olhe haveraacute sempre uma estrela interceptando o seu raio de
visatildeo Portanto se nosso Universo fosse espacialmente infinto e estivesse
repleto de estrelas regularmente distribuiacutedas como defendia Giordano
Bruno o ceacuteu noturno deveria ser tatildeo brilhante quanto a superfiacutecie de uma
estrela meacutedia Como isso natildeo ocorre a conclusatildeo do argumento eacute falsa o
que implica que ao menos uma das premissas do argumento eacute igualmente
falsa ou seja ou o Universo eacute espacialmente infinito ou as estrelas natildeo
estatildeo regularmente distribuiacutedas ou ambos Como a distribuiccedilatildeo das
estrelas se mostrava regular Kepler inferiu que o Universo deveria ser
espacialmente finito mostrando que algo tatildeo coriqueiro como a escuridatildeo
da noite pode ser legitimamente tomado como evidecircncia de uma alegaccedilatildeo
absolutamente extraodinaacuteria10
Este eacute apenas um entre muitos exemplos em que eventos ou fatos
nada extraordinaacuterios serviram de evidecircncia para afirmaccedilotildees
extraordinaacuterias o que mostra claramente a inadequaccedilatildeo desta segunda
interpretaccedilatildeo psicoloacutegica do Princiacutepio de Sagan Outro que me traz boas
recordaccedilotildees eacute o do chuvisco que aparecia nos antigos televisores de tubo
quando as emissoras de TV encerravam a sua programaccedilatildeo diaacuteria e que
hoje sabemos ser causado pela Radiaccedilatildeo Coacutesmica de Fundo que teve
origem no Big Bang Em outras palavras uma evidecircncia de que o Universo
teve iniacutecio haacute bilhotildees de anos numa ldquogrande explosatildeordquo estava agrave vista de
todos sem que ningueacutem suspeitasse
Em resumo interpretado psicologicamente o tatildeo celebrado Princiacutepio
de Sagan ou eacute trivial ou deriva de uma concepccedilatildeo profundamente
equivocada acerca da natureza do conhecimento cientiacutefico moderno Em
ambos os casos o Princiacutepio de Sagan natildeo deve ser considerado vaacutelido e
seu uso como guia para a investigaccedilatildeo cientiacutefica tem consequecircncias
desastrosas para ciecircncia
10 A soluccedilatildeo atualmente aceita para o paradoxo eacute diferente daquela proposta por Kepler Atualmente o paradoxo eacute resolvido com base em duas descobertas a) que o Universo tem uma idade finita e b) a luz tem uma velocidade finita a luz das estrelas mais distantes ainda natildeo teve tempo de chegar ateacute noacutes Portanto o Universo que enxergamos eacute limitado no espaccedilo por ser finito no tempo A escuridatildeo da noite eacute uma prova de que o Universo teve um iniacutecio
178 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Mas natildeo haveria alguma interpretaccedilatildeo ao mesmo tempo natildeo trivial e
natildeo psicologista do Princiacutepio de Sagan No intuito de nos livrarmos de
uma leitura pscicologista da formulaccedilatildeo tornada ceacutelebre por Carl Sagan
poderiacuteamos reformular o Princiacutepio de Sagan como expressando a ideia de
que deve haver uma proporcionalidade entre a forccedila das nossas alegaccedilotildees
e a forccedila das evidecircncias que apresentamos em favor delas Uma maneira
de expressar isso poderia ser a seguinte
Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees extraordinariamente fortes requerem
evidecircncias extraordinariamente fortes
Com base nessa reinterpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan poder-se-ia
alegar por exemplo que acreditar na existecircncia de discos voadores com
base apenas no fato de que algueacutem afirma ter visto um disco voador seria
uma violaccedilatildeo do princiacutepio jaacute que a forccedila da alegaccedilatildeo medida pelo impacto
que ela tem sobre o conhecimento cientiacutefico exigiria evidecircncias mais
robustas como por exemplo a exibiccedilatildeo dos destroccedilos do disco voador que
a pessoa alega ter visto e natildeo o simples relato de uma testemunha
afirmando ter visto um disco metaacutelico voando em baixa altitude No
primeiro caso tudo o que temos eacute o relato do avistamento de um OVNI
(Objeto Voador Natildeo Indentificado) no segundo temos uma evidecircncia
material a saber o proacuteprio objeto avistado o que nos permite uma
avaliccedilatildeo direta e possiacutevel identificaccedilatildeo do objeto que iraacute ou natildeo confirmar
a afirmaccedilatildeo de que o objeto avistado era uma nave alieniacutegena O mais
provaacutevel eacute que a pilha de destroccedilos por mais extraordinaacuteria que pareccedila
aos olhos de um leigo seja imediatamente reconhecida por um especialista
como sendo os restos de um balatildeo meteoroloacutegico ou algum outro aparato
tecnoloacutegico humano como de fato aconteceu no famoso incidente ocorrido
em Roswell Novo Meacutexico em 1947
Mas seraacute que esta reformulaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan tem o mesmo
sentido que os autoproclamados pensadores criacuteticos conferem a sua
Ricardo S Rabenschlag | 179
formulaccedilatildeo original E ainda que a aceitemos como uma traduccedilatildeo razoaacutevel
do Princiacutepio de Sagan o sentido da expressatildeo ldquoextraordinariamete fortesrdquo
que aparece nas expressotildees ldquoalegaccedilotildees extraordinariamente fortesrdquo e
ldquoevidecircncias extraordinariamente fortesrdquo eacute o mesmo em ambos os casos E
ainda que se diga que elas tecircm o mesmo sentido eacute mesmo verdadeiro que
toda alegaccedilatildeo que tem grande impacto em nossa atual visatildeo cientiacutefica do
mundo requer evidecircncias igualmente extraordinaacuterias Natildeo poderia haver
evidecircncias absolutamente conformes agrave visatildeo cientiacutefica do mundo e que natildeo
obstante isso seriam uma soacutelida evidecircncia para alegaccedilotildees extraodinaacuterias
como a finitude espacial do Universo A forccedila de uma evidecircncia eacute medida
pelas suas consequecircncias ou haacute um criteacuterio intriacutenseco como sugere a
comparaccedilatildeo entre evidecircncias testemunhais e materiais Alegaccedilotildees
conformes a nossa visatildeo de mundo podem ser aceitas com base apenas em
testemunhos ao passo que as que contrariam o que acreditamos saber
requerem evidecircncias materiais Nesse uacuteltimo caso que admitimos ser o
mais promissor qual a relevacircncia da forccedila de nossas alegaccedilotildees no que diz
respeito ao tipo de evidecircncia que devemos exigir para aceitaacute-la
Uma vez mais nos vemos em meio a uma dupla confusatildeo De um lado
natildeo temos clareza sobre o significado do enunciado do princiacutepio de outro
natildeo temos uma concepccedilatildeo clara sobre e natureza do conhecimneto
cientiacutefico Visando sanar estes problemas poderiacuteamos interpretar a ideia de
forccedila de uma alegaccedilatildeo ou de uma evidecircncia como uma referecircncia agravequilo que
poderiacuteamos chamar de estatuto epistecircmico de uma proposiccedilatildeo definido
como o grau de confiabilidade de uma proposiccedilatildeo Assim compreendido o
Princiacutepio de Sagan seria um corolaacuterio da ideia de que o estatuto epistecircmico
das premissas de um argumento deve ser igual ao estatuto epistecircmico da
sua conclusatildeo e poderia ser enunciado do seguinte modo
Interpretaccedilatildeo espistecircmica alegaccedilotildees com alto grau de confiabilidade
requerem evidecircncias com alto grau de confiabilidade
Reneacute Descartes certamente concordaria com essa interpretaccedilatildeo do
Princiacutepio de Sagan afinal toda sua filosofia estaacute baseada na ideia de que
180 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
somente evidecircncias indubitaacuteveis podem servir de base para afirmaccedilotildees
indubitaacuteveis11 Natildeo foi outra a razatildeo que o levou numa das passagens mais
memoraacuteveis da histoacuteria da filosofia12 a apresentar o Cogito como a uacutenica
saiacuteda para o que ele chamou de duacutevida hiperboacutelica e tomaacute-lo como o uacutenico
fundamento aceitaacutevel para a filosofia Ainda que Descartes esteja longe de
ser um iacutecone dos ldquopensadores criacuteticosrdquo um projeto fundacionista anaacutelogo
ao cartesiano estaacute na raiz do Positivismo Loacutegico uma das fontes de
inspiraccedilatildeo da grande maioria dos autoproclamados pensadores criacuteticos
Rudolf Carnap o maior expoente desta corrente neopositivista buscou
ancorar todo o conhecimento humano no que ele chamou de enunciados
protocolares descritos por ele como sendo registros em primeira pessoa
de dados sensiacuteveis elementares (sense data) que estariam na base de toda
a experiecircncia humana
O problema com essa interpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan eacute que
embora a nova formulaccedilatildeo do princiacutepio seja mais promissora ela
obviamnete natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo plausiacutevel do Princiacutepio de Sagan jaacute
que o grau de confiabilidade de alegaccedilotildees extraordinaacuterias natildeo eacute alto e sim
extremamente baixo daiacute que a maioria de noacutes esteja naturalmente
precavido contra elas
Uma terceira interpretaccedilatildeo epistecircmica do Princiacutepio de Sagan resulta
de uma leitura indutivista humeana da ideia de estatuto epistecircmico de uma
proposiccedilatildeo A ciecircncia segundo David Hume eacute um empreendimento
essencialmente indutivo e provisoacuterio e sua grandeza reside precisamente
no fato de que a ciecircncia natildeo busca verdades absolutas Do fato de que todo
conhecimento eacute provisoacuterio e por conseguinte dubitaacutevel natildeo se segue
contudo que nossas crenccedilas tenham todas elas o mesmo grau de
confiabilidade Obviamente uma afirmaccedilatildeo que jaacute tenha sido refutada natildeo
eacute nem um pouco confiaacutevel Mas o que dizer das que ainda natildeo foram
refutadas Segundo David Hume o grau de confiabilidade de uma crenccedila
11 No caso do coacutegito a proacutepria afirmaccedilatildeo ou mais precisamente o pensamento que ela expressa eacute evidecircncia da sua veracidade
12 Iniacutecio da Segunda Meditaccedilatildeo das Meditaccedilotildees Metafiacutesicas de Reneacute Descartes
Ricardo S Rabenschlag | 181
eacute proporcional ao nuacutemero de vezes em que ela foi experimentalmente
confirmada Seguindo essa linha de raciociacutenio poder-se-ia interpretar o
Princiacutepio de Sagan como a recomendaccedilatildeo de que afirmaccedilotildees que
contrariem crenccedilas que tenham sobrevivido a inuacutemeras e variadas
tentativas de refutaccedilatildeo e que satildeo nesse sentido extraordinaacuterias devam
ser igualmente submetidas a um longo e variado processo de testes
acumulando assim uma quantidade igualmente extraordinaacuteria de
evidecircncias em seu favor antes de serem consideradas mais confiaacuteveis que
agraves antigas crenccedilas que elas pretendem substituir
Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees que contrariam crenccedilas
corroboradas por uma extraordinaacuteria quantidade de evidecircncias requerem um
nuacutemero igualmente extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis
A longa disputa entre os sistemas ptolomaico e copernicano que
marca o iniacutecio da ciecircncia moderna eacute um bom exemplo de como devemos
ser cautelosos em relaccedilatildeo a afirmaccedilotildees extraordinaacuterias como por
exemplo a afirmaccedilatildeo de que a Terra natildeo estaacute parada no centro do
Universo e sim girando em uma grande velocidade em torno do Sol Tenho
certeza de que a maioria dos Novos Ateus endossaria aliviado esta leitura
indutivista do Princiacutepio de Saganrdquo e natildeo ficaria de modo algum surpreso
se Richard Dawkins acrescentasse de forma desdenhosa a observaccedilatildeo de
que era exatamente isso que ele estava querendo dizer o tempo todo
embora nunca o tivesse feito por achar oacutebvio demais Infelizmente as
coisas natildeo satildeo tatildeo simples quanto parecem a um leigo em Espistemologia
da Ciecircncia como Richard Dawkins Em primeiro lugar mesmo nos casos
mais promissores como o da disputa entre geocentrismo e
heliocentrismo a interpretaccedilatildeo mencionada acima apresenta seacuterios
problemas jaacute que o que pocircs fim a disputa em favor do heliocentrismo natildeo
foi um nuacutemero extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis e sim a criaccedilatildeo da
primeira teoria fiacutesica moderna capaz de explicar de maneira unificada
fenocircmenos corriqueiros como o movimento dos corpos terrestres e o
movimento dos corpos celestes
182 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Uma vez mais o problema aqui eacute o de como evitar a confusatildeo entre
o loacutegico e o psicoloacutegico Natildeo resta duacutevida de que a repeticcedilatildeo de uma mesma
ocorrecircncia aumente nossa confianccedila em relaccedilatildeo ao enunciado universal
que a descreve a questatildeo contudo eacute saber se ela aumenta o nosso
conhecimento e natildeo as nossas expectativas Eacute provaacutevel que um iacutempeto
indutivista esteja na base de parte importante do apoio ao Princiacutepio de
Sagan embora natildeo devamos esquecer que boa parte dos seus apoiadores
em especial os autoproclamados pensadores criacuteticos tem imensa adoraccedilatildeo
pelo racionalismo popperiano e que Karl Popper considerava ilegiacutetima
qualquer tentativa de justificar indutivamente uma crenccedila De qualquer
modo tanto o fundacionismo como o indutivismo satildeo extremamente
problemaacuteticos razatildeo pela qual foram haacute muito tempo descartados e natildeo
haacute hoje muitos especialistas que defendam quer a ideia de um fundamento
inabalaacutevel para as ciecircncias quer a ideia de uma loacutegica indutiva
Pode-se contra-argumentar dizendo que natildeo haacute verdades ou
conhecimento em sentido absoluto que natildeo haacute um mundo ou uma realidade
independente do sujeito que tudo eacute relativo provisoacuterio e incerto e que
portanto uma loacutegica indutiva eacute tatildeo boa quanto uma dedutiva Mas
obviamente que se adotarmos esta estrateacutegia de defesa o problema assume
uma feiccedilatildeo ainda mais sombria pois a menos que ser possa conciliar esta
concepccedilatildeo relativista com a objetividade cientiacutefica natildeo haacute como evitar que o
ceticismo moderado que caracteriza a atitude cientiacutefica se transforme num
ceticismo radical e portanto numa nova e poderosa forma de irracionalismo
Se o Princiacutepio de Sagan eacute assim tatildeo inadequado por que ele eacute
considerado por muitos como uma das regras de ouro do pensamento
criacutetico Como dissemos anteriormente o enunciado do princiacutepio eacute vago
deliberadamente vago a ponto de comportar interpretaccedilotildees muito diferentes
e ateacute mesmo antagocircnicas o que certamente contribui para o seu sucesso Haacute
contudo uma outra razatildeo que julgamos ser ainda mais importante a saber
Ricardo S Rabenschlag | 183
que ele natildeo eacute uma ferramenta cientiacutefica e sim ideoloacutegica Ele natildeo eacute utilizado
por cientistas em suas investigaccedilotildees e sim por ativistas que podem ou natildeo
ser cientistas em sua luta contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo
O combate agraves pseudociecircncias eacute um combate justo e necessaacuterio e a
atitude criacutetica tem um papel fundamental nesse processo natildeo temos
duacutevida quanto a isso Nossa criacutetica natildeo busca desencorajar o combate agraves
pseudociecircncias ela busca apenas mostrar por um lado que a ciecircncia natildeo
estaacute inume ao irriacionalismo e por outro que o irracionalismo na ciecircncia
se manifesta sob a forma de pseudofilosofias e natildeo de pseudociecircncias
Evidentemente esta natildeo eacute uma tarefa faacutecil e este pequeno capiacutetulo natildeo
esgota de forma alguma o assunto Ainda assim espero que esta breve
criacutetica do tatildeo aclamado Princiacutepio de Sagan tenha despertado a atenccedilatildeo dos
leitores para a importacircncia de uma criacutetica do Pensamento Criacutetico13
Referecircncias
CARNAP R The Logical Structure of the World Open Court New York 2003
DAWKINS R The God Delusion Transworld Pub London 2016
DENNETT D Breaking the Spell Penguim London 2007
DESCARTES R Meacuteditations Meacutetaphysiques Nabu Press Paris 2014
HARRIS S The End of Faith WW Norton London 2005
HITCHENS C God Is Not Great Atlantic Books London 2008
HUME D On Miracles Open Court London 1985
POPPER K Conjectures and Refutations Routledge New York 2002
SAGAN C Cosmos Ballantine Books New York 2013
13 Talvez seja o caso de cunharmos a expressatildeo ldquoNovo Pensamento Criacuteticordquo a exemplo do que se fez em relaccedilatildeo aos Novos Ateus seja para reforccedilar o viacutenculo entre as duas correntes seja para diferenciar este Novo Pensamento Criacutetico da Filosofia Criacutetica de Kant No presente texto optamos por usar a expressatildeo empregada na literatura existente
11
A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo
Sagid Salles 1
Introduccedilatildeo
Haacute pelo menos duas coisas que tornam o fenocircmeno da vagueza
interessante Primeiro a vagueza estaacute espalhada por toda a linguagem
natural Uma parte significativa das expressotildees de nossa linguagem satildeo
vagas e podemos encontrar a vagueza em expressotildees de diferentes
categorias loacutegicas como termos singulares predicados e quantificadores
Por razotildees de simplicidade contudo ao longo deste artigo considero
apenas o caso dos predicados vagos Segundo o fenocircmeno da vagueza estaacute
por traacutes de um difiacutecil paradoxo conhecido como Paradoxo Sorites
Atualmente haacute muitas tentativas de explicar esse fenocircmeno e resolver o
Sorites sendo uma delas a Teoria Trivalente da Vagueza Essa teoria eacute
interessante natildeo apenas porque fornece uma explicaccedilatildeo elegante da
vagueza acompanhada de uma soluccedilatildeo engenhosa para o paradoxo em
questatildeo mas tambeacutem porque serve de base para a compreensatildeo de outras
teorias claacutessicas da vagueza Tanto o Gradualismo como o
Supervalorativismo por exemplo incorporam parte significativa de suas
ideias centrais A despeito disso existem alguns seacuterios obstaacuteculos para a
Teoria Trivalente Acredito que o principal deles eacute que ela falha em
satisfazer pelo menos um dos trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria
1 Sagid Salles eacute graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto Mestre e Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da UFRJ com sanduiacuteche realizado em University of Miami Atualmente eacute professor substituto de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (E-mail sagidsallesgmailcom)
Sagid Salles | 185
ideal da vagueza o criteacuterio da precisatildeo Meu objetivo eacute apresentar essa
teoria e mostrar como essa dificuldade surge para ela
O artigo seraacute dividido em quatro seccedilotildees Na primeira apresento o
problema da vagueza ressaltando os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma
teoria ideal o criteacuterio do Sorites o criteacuterio da coerecircncia e o criteacuterio da
precisatildeo Na segunda e terceira apresento respectivamente os aspectos
centrais da Teoria Trivalente e uma das soluccedilotildees da mesma para o Sorites
Por fim defendo que apesar de satisfazer os dois primeiros criteacuterios de
adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente falha com respeito ao criteacuterio da precisatildeo
Vagueza Sorites e os Trecircs Criteacuterios de Adequaccedilatildeo
A palavra ldquovaguezardquo eacute usada cotidianamente em diferentes sentidos
mas o interesse filosoacutefico pela vagueza eacute direcionado a um fenocircmeno
especiacutefico O que mais chama a atenccedilatildeo sobre esse fenocircmeno eacute que ele estaacute
por traacutes do que eacute conhecido como Paradoxo Sorites Esse paradoxo foi
descoberto por Eubulides de Mileto ainda no seacuteculo IV ac mas eacute
argumentaacutevel que somente recentemente (talvez nos uacuteltimos 60 ou 70
anos) ele venha recebendo a atenccedilatildeo que merece Aliaacutes atualmente existe
uma grande variedade de versotildees diferentes do paradoxo (HYDE 2011)
uma delas a versatildeo quantificada seraacute apresentada a seguir
Seja ldquoCrdquo o predicado ldquocarecardquo ldquoardquo um nome arbitraacuterio de pessoas e
deixe os nuacutemeros na direita inferior indicarem o nuacutemero de cabelos que a
tem na cabeccedila Nesse contexto a versatildeo quantificada do Sorites para
ldquocarecardquo pode ser formulada como segue
(SC)
(1) Ca0
(2) foralln (CanrarrCan+1)
_______________
(3) Ca10000
186 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
(SC) parte da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa
com 0 fios de cabelo na cabeccedila eacute careca para a conclusatildeo claramente falsa
de que uma pessoa com 10000 fios de cabelo na cabeccedila tambeacutem eacute careca
A conclusatildeo (3) se segue de (1) e (2) por repetidas aplicaccedilotildees de
Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens
Agora repare que podemos facilmente formular o Sorites na direccedilatildeo
inversa partindo da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa
com 10000 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca para a conclusatildeo
claramente falsa de que uma pessoa com 0 fios tambeacutem natildeo eacute careca
(notSC)
(1) notCa10000
(2)foralln (notCan+1rarrnotCan)
______________
(3) notCa0
A conclusatildeo de (notSC) tambeacutem eacute obtida por repetidas aplicaccedilotildees de
Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens Enquanto argumentos como (SC)
nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute careca argumentos como
(notSC) nos permite mostrar que cada indiviacuteduo natildeo eacute careca Se tomadas
em conjunto os argumentos nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute
careca e natildeo eacute careca ao mesmo tempo Resultado o predicado ldquocarecardquo eacute
incoerente Se isso jaacute nos parece absurdo a coisa fica muito pior quando
lembramos que o mesmo paradoxo pode ser formulado para muitos
outros predicados ldquoaltordquo ldquobaixordquo ldquoricordquo ldquopobrerdquo ldquovivordquo ldquomortordquo
ldquoraacutepidordquo ldquolentordquo ldquomonterdquo etc Em uacuteltima instacircncia aceitar a conclusatildeo
do Sorites implicaria em aceitar que cada um desses predicados eacute
incoerente
A premissa (1) de cada argumento acima eacute claramente verdadeira
enquanto a conclusatildeo se segue de (1) e (2) por regras de inferecircncia que
Sagid Salles | 187
natildeo gostariacuteamos de rejeitar Isso torna (2) a premissa quantificada na
principal suspeita Nesse contexto algueacutem poderia pensar que a soluccedilatildeo
do paradoxo reside na simples negaccedilatildeo da premissa (2) Infelizmente essa
estrateacutegia eacute mais difiacutecil do que parece Suponhamos por exemplo que a
premissa quantificada de (SC) eacute falsa Se esse eacute o caso entatildeo eacute verdade que
notforalln (CanrarrCan+1) Isso eacute logicamente equivalente a Ǝn (Can˄notCan+1) que
diz que haacute um nuacutemero natural n tal que a com n fios de cabelo na cabeccedila
eacute careca e a com n+1 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca O problema eacute
que esse resultado eacute difiacutecil de engolir Para qualquer valor que se atribua a
n a suposiccedilatildeo de que uma pessoa com n fios de cabelo eacute careca e uma
pessoa com n+1 natildeo eacute careca pareceraacute altamente contraintuitiva
O ponto fica mais claro se pensarmos em termos de sequecircncias
Imagine uma sequecircncia como segue
lta0 a1 a2 a5000 a5001 a9998 a9999 a10000gt
Intuitivamente o predicado ldquocarecardquo se aplica a a0 a1 a2 etc e natildeo se
aplica a a10000 a9999 a9998 etc Entretanto natildeo haacute um uacuteltimo caso na
sequecircncia ao qual ldquocarecardquo se aplica seguido por um primeiro caso ao qual
o predicado natildeo se aplica nenhuma linha divisoacuteria eacute traccedilada Se
simplesmente negarmos a premissa quantificada aceitando que Ǝn
(Can˄notCan+1) teremos de assumir que o predicado ldquocarecardquo estabelece
uma linha divisoacuteria desse tipo2 Isso implicaria que ldquocarecardquo eacute um
predicado preciso e portanto natildeo vago O mesmo vale para todos os
predicados vagos Na verdade ser vago e ser preciso satildeo propriedades
incompatiacuteveis de modo que nenhuma expressatildeo linguiacutestica pode ser vaga
e precisa ao mesmo tempo
2 Iago Bozza chamou minha atenccedilatildeo para o fato de que aceitar que Ǝn (CanʌnotCan+1) natildeo implica que haja um par de itens na sequecircncia que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo careca e o primeiro natildeo careca Considere uma analogia com caso dos nuacutemeros naturais Todos podemos aceitar que existe um nuacutemero n tal que n eacute iacutempar e n+1 natildeo eacute iacutempar Disso natildeo se segue que haacute um par de itens adjacentes na sequecircncia dos nuacutemeros naturais que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo iacutempar e o primeiro natildeo iacutempar da mesma Quando falamos que tal divisatildeo entre os carecas e os natildeo carecas se segue de Ǝn (CanʌnotCan+1) estamos adicionalmente assumindo que certas restriccedilotildees oacutebvias para a aplicaccedilatildeo do predicado ldquocarecardquo estatildeo em jogo Sobre tais restriccedilotildees veja-se GraffFara (2000 p 57)
188 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Por fim repare que essa breve apresentaccedilatildeo do Paradoxo Sorites nos
sugere trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria ideal da vagueza Satildeo
eles
a) O criteacuterio do Sorites resolver o Paradoxo Sorites
b) O criteacuterio da coerecircncia natildeo implicar que predicados vagos satildeo incoerentes
c) O criteacuterio da precisatildeo natildeo implicar que predicados vagos satildeo precisos
Ao alegar que (a)-(c) satildeo trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria
ideal da vagueza quero dizer que a falha em satisfazer algum deles deve
ser interpretado como um defeito para qualquer teoria da vagueza Noacutes
queremos uma teoria da vagueza que explique os predicados vagos de
forma a resolver o Sorites mas sem implicar que eles satildeo incoerentes ou
precisos (Uma defesa desses criteacuterios pode ser encontrada em Salles
2016) Eacute dentro desse pano de fundo que a Teoria Trivalente seraacute avaliada
Teoria Trivalente da Vagueza
Por ldquoTeoria Trivalente da Vaguezardquo entendo uma famiacutelia de teorias
que explicam a vagueza em termos de um terceiro valor de verdade ou
uma lacuna entre os dois valores claacutessicos verdadeiro e falso Apesar de
requererem uma loacutegica trivalente nem toda teoria da vagueza que faz uso
dessa loacutegica eacute uma instacircncia da Teoria Trivalente da Vagueza O traccedilo
distintivo dessas teorias eacute colocar o terceiro valorlacuna no centro da
explicaccedilatildeo das expressotildees vagas
A motivaccedilatildeo de base para essa teoria eacute a intuiccedilatildeo dos casos de
fronteira os predicados vagos admitem casos de fronteira casos a respeito
dos quais sua aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara A existecircncia desses casos serve como
um indiacutecio a favor da Teoria Trivalente Considere a frase (1)
Sagid Salles | 189
1 Joatildeo eacute careca
Se Joatildeo tem 0 fios de cabelo em sua cabeccedila entatildeo (1) expressa uma
proposiccedilatildeo verdadeira se Joatildeo tem todo o couro cabeludo coberto por
cabelo entatildeo (1) expressa uma proposiccedilatildeo falsa Mas o que dizer do caso
em que ele tem 85 do couro cabeludo coberto por cabelo (se quiser
pense em uma porcentagem que ache mais favoraacutevel ao exemplo)
Intuitivamente seria incorreto dizer que (1) eacute verdadeira nesse caso assim
como seria incorreto dizer que eacute falsa Uma explicaccedilatildeo para isso eacute que de
fato natildeo eacute verdadeira e de fato natildeo eacute falsa (1) eacute nem verdadeira nem falsa
ou como prefere Tye (1994) indefinida
Haacute duas interpretaccedilotildees de indefinido Pode-se interpretaacute-lo como um
terceiro valor de verdade ou como uma lacuna entre o verdadeiro e o falso
A vantagem de interpretaacute-lo como um terceiro valor eacute que fica mais faacutecil
explicar como (1) pode expressar uma proposiccedilatildeo Afinal proposiccedilotildees satildeo
tradicionalmente concebidas como os portadores dos valores de verdade
Por outro lado ficamos com o difiacutecil problema metafiacutesico de explicar o que
eacute esse terceiro valor o indefinido A vantagem da concepccedilatildeo da lacuna eacute
que natildeo carrega esse problema metafiacutesico pois natildeo aceita um terceiro
valor de verdade A desvantagem eacute que natildeo eacute claro como (1) nesse caso
poderia expressar uma proposiccedilatildeo Tanto quanto for possiacutevel manter-me-
ei neutro quanto ao ponto Para simplificar vou falar em uma frase sendo
indefinida e o leitor pode interpretar isso como significando que expressa
uma proposiccedilatildeo com o valor indefinido ou que falha em expressar uma
proposiccedilatildeo
A pergunta mais importante eacute como o apelo a frases indefinidas nos
leva a uma teoria dos predicados vagos A resposta se revela ao olharmos
para as expressotildees que constituem a frase Tradicionalmente entende-se
que uma frase como (1) eacute verdadeira se o objeto referido por ldquoJoatildeordquo
pertence ao conjunto de coisas selecionado pelo predicado ldquoeacute careca e
falsa de outro modo Nessa imagem o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de um
predicado pode ser dividido em duas partes (i) as coisas agraves quais o
190 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
predicado se aplica a sua extensatildeo positiva (ii) as coisas agraves quais o
predicado natildeo se aplica a sua extensatildeo negativa Cada elemento do
domiacutenio pertenceraacute a um ou a outro Se Joatildeo for um elemento da extensatildeo
positiva de ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute verdadeira se for um elemento da
extensatildeo negativa entatildeo eacute falsa natildeo haacute outra opccedilatildeo De acordo com a
Teoria Trivalente os predicados vagos natildeo se encaixam nessa imagem
O problema eacute que os predicados vagos natildeo dividem o seu domiacutenio em
duas partes Eacute verdade que eles tecircm uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo
negativa Mas fosse essa toda a histoacuteria cada frase como (1) seria
verdadeira ou falsa natildeo havendo espaccedilo para o nem verdadeiro nem falso
ou indefinido Para aleacutem da extensatildeo positiva e a extensatildeo negativa de um
predicado vago existe tambeacutem o que eacute chamado de ldquopenumbrardquo A
penumbra eacute formada pelos casos fronteira do predicado aqueles com
relaccedilatildeo aos quais a aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara Se Joatildeo estaacute na penumbra de
ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute indefinida ou nem verdadeira nem falsa
Pode haver divergecircncia sobre se a explicaccedilatildeo para o fato de que os
predicados vagos admitem penumbra eacute linguiacutestica ou metafiacutesica Tye
assume uma concepccedilatildeo metafiacutesica De acordo com ele satildeo os proacuteprios
conjuntos que satildeo vagos e os predicados satildeo vagos apenas porque os
conjuntos satildeo Nesse sentido o conjunto dos carecas eacute tal que para
algumas pessoas eacute indefinido se elas satildeo ou natildeo elementos do conjunto
(TYE 1994 p 195) Tye gosta de expressar isso dizendo que natildeo haacute uma
questatildeo de fato sobre se essas pessoas satildeo ou natildeo elementos do conjunto
dos carecas Predicados vagos satildeo vagos apenas porque satildeo associados a
conjuntos vagos Haacute tambeacutem aqueles que preferem uma explicaccedilatildeo
linguiacutestica para a penumbra Concepccedilotildees linguiacutesticas geralmente se datildeo
em termos das condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo do predicado Pode-se sustentar que
um predicado admite penumbra devido a alguma caracteriacutestica nas suas
condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo De acordo com Soames (1999 p 163) ndash que no
entanto natildeo defende a Teoria Trivalente da Vagueza ndash os predicados que
admitem penumbra tecircm condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida e
condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida Essas condiccedilotildees satildeo mutuamente
Sagid Salles | 191
exclusivas mas natildeo conjuntamente exaustivas Como as condiccedilotildees satildeo
mutuamente exclusivas se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-
sucedida de ldquocarecardquo entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-
sucedida e se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida
entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida Como natildeo
satildeo conjuntamente exaustivas haacute casos que nem satisfazem as condiccedilotildees
de aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem satisfazem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo
mal-sucedida os casos indefinidos Para criacuteticas agrave proacutepria ideia de um
terceiro valorlacuna veja-se Glanzberg (2009) Para os nossos
propoacutesitos contudo natildeo precisamos ir aleacutem do que jaacute fomos
Em resumo os predicados vagos natildeo cortam seu domiacutenio de
aplicaccedilatildeo apenas em uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo negativa Eles
tambeacutem admitem uma penumbra formada pelos casos fronteira do
predicado Eacute isso que explica o suposto fato de algumas frases contendo
predicados vagos serem nem verdadeiras nem falsas Quando a estaacute na
penumbra de ldquoFrdquo ldquoFardquo eacute indefinida A Teoria Trivalente assume que a
propriedade caracteriacutestica dos predicados vagos eacute encaixar-se na descriccedilatildeo
acima
Teoria Trivalente e a Soluccedilatildeo do Sorites
O modo como a Teoria Trivalente da Vagueza resolve o Paradoxo
Sorites depende dos detalhes de cada versatildeo Mais especificamente
depende do tratamento dado aos conectivosquantificadores e da
concepccedilatildeo de validade adotada A introduccedilatildeo de um terceiro valor ndash ou de
uma lacuna entre os dois valores claacutessicos ndash implica na necessidade de
reformular algumas definiccedilotildees Pode-se adotar uma concepccedilatildeo de validade
que nos permita rejeitar a validade do argumento Sorites mas a soluccedilatildeo
mais simples eacute manter a validade como preservaccedilatildeo de verdade e rejeitar
alguma premissa (KEEFE 2000 p104 e 107) Isto pode ser feito olhando
apenas para os conectivos e quantificadores Existem diferentes
interpretaccedilotildees dos conectivos Primeiro podem ser interpretados
192 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
verofuncionalmente (TYE 1994) ou natildeo verofuncionalmente (RICHARD
2009) Segundo mesmo que adotemos uma das duas haveraacute divergecircncia
sobre qual seraacute a interpretaccedilatildeo correta de cada um Natildeo vou entrar em
qualquer discussatildeo deste tipo aqui No que segue assumo a interpretaccedilatildeo
verofuncional de Tye e apresento a sua soluccedilatildeo do paradoxo
Tye (1994 p 194) adota uma das interpretaccedilotildees propostas por Kleene
(1952 p 332-340) dos conectivos
Natildeo eacute difiacutecil ver a motivaccedilatildeo por traacutes de cada tabela escolhida
Quando as frases componentes da frase mais complexa possuem apenas
valores claacutessicos os conectivos funcionam precisamente como funcionam
na leitura claacutessica ndash esse eacute o chamado ldquorequisito de normalidaderdquo (KEEFE
2000 p 86 MACHINA 1976 p 55) Assim as diferenccedilas relevantes
ocorrem apenas quando uma das frases componentes eacute indefinida
A negaccedilatildeo de uma frase indefinida A eacute ela mesma indefinida Por um
lado se notA fosse verdadeira entatildeo A seria falsa e consequentemente natildeo
seria indefinida Por outro lado se notA fosse falsa entatildeo A seria verdadeira
e portanto natildeo seria indefinida Para que uma disjunccedilatildeo seja verdadeira
A B notA AvB A˄B ArarrB
V V F V V V
V I F V I I
V F F V F F
I V I V I V
I I I I I I
I F I I F I
F V V V F V
F I V I F V
F F V F F V
Sagid Salles | 193
basta que uma disjunta seja verdadeira e para que seja falsa basta que
todas as disjuntas sejam falsas Nos outros casos a disjunccedilatildeo eacute indefinida
Uma conjunccedilatildeo eacute verdadeira se todas conjuntas satildeo verdadeiras falsa se
pelo menos uma conjunta eacute falsa e indefinida nos outros casos A
condicional eacute como se espera um caso problemaacutetico A uacutenica motivaccedilatildeo
notada por Tye eacute que ArarrB deve ser equivalente a notAvB Por fim AharrB
pode ser definido como (ArarrB) ˄ (BrarrA)
O quantificador existencial eacute definido como segue ƎxFx eacute verdadeiro
se tem uma instacircncia verdadeira falsa se todas as suas instacircncias satildeo
falsas e indefinida nos outros casos A intuiccedilatildeo por traacutes da definiccedilatildeo eacute que
uma afirmaccedilatildeo existencial seraacute indefinida quando nenhuma instacircncia for
verdadeira e pelo menos algumas forem indefinitas o mesmo que
ocorreria com a disjunccedilatildeo de todas as instacircncias Fa1vFa2vFa3v Fan O
quantificador universal eacute definido como segue forallxFx eacute verdadeira se todas
as suas instacircncias satildeo verdadeiras falsa se alguma instacircncia eacute falsa e
indefinida nos outros casos A ideia aqui eacute que uma afirmaccedilatildeo universal eacute
indefinida apenas quando nenhuma instacircncia eacute falsa e algumas satildeo
indefinidas o mesmo que ocorreria com a conjunccedilatildeo de todas as instacircncias
Fa1˄Fa2˄Fa3˄Fan
Essa leitura dos conectivos nos leva a alguns resultados
contraintuitivos quanto ao valor de verdade de certas frases Por exemplo
intuitivamente toda frase da forma A˄notA eacute falsa e toda frase da forma
AvnotA eacute verdadeira mas na leitura de Tye ambas as intuiccedilotildees estatildeo
erradas Quando A eacute indefinido tanto A˄notA quanto AvnotA seratildeo
indefinidos Tudo que Tye (1994 p 194) consegue reter de nossas
intuiccedilotildees eacute que nenhuma frase da primeira forma seraacute verdadeira (trata-
se de uma quase-contradiccedilatildeo) e nenhuma da segunda forma seraacute falsa
(trata-se de uma quase-tautologia) Agora imagine que Joatildeo eacute mais alto do
que Marcos mas ambos estatildeo na penumbra de ldquoaltordquo Nossa intuiccedilatildeo eacute que
a condicional ldquoSe Marcos eacute alto entatildeo Joatildeo eacute altordquo eacute verdadeira Na leitura
de Tye dos conectivos contudo a condicional seraacute indefinida Exemplos
do tipo podem ser multiplicados (KEEFE 2000 p 96-97 SANTOS 2015
194 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
p 5-6) Por fim problemas similares aparecem para diferentes
interpretaccedilotildees verofuncionais dos conectivos (WILLIAMSON 1994 cap
4)
Em todo caso o que nos interessa aqui eacute como Tye resolve o Paradoxo
Sorites A sua soluccedilatildeo consiste em rejeitar a premissa quantificada sem
com isso aceitar a sua negaccedilatildeo Na versatildeo para ldquocarecardquo a premissa
quantificada era foralln (CanrarrCan+1) Nenhuma instacircncia dessa premissa seraacute
falsa de modo que ela proacutepria natildeo seraacute falsa Por outro lado algumas
instacircncias seratildeo indefinidas dado que teratildeo antecedente e consequente
indefinidos Lembre-se de acordo com a Teoria Trivalente o predicado
ldquocarecardquo admite uma penumbra um conjunto de casos aos quais a sua
aplicaccedilatildeo eacute indefinida Eacute plausiacutevel supor que para algum n tanto Can
quanto Can+1 seratildeo indefinidas e nesse caso a condicional CanrarrCan+1 seraacute
tambeacutem indefinida Ora uma afirmaccedilatildeo universal com nenhuma instacircncia
falsa e algumas indefinidas eacute ela mesma indefinida Logo a premissa
quantificada eacute indefinida Assim Tye consegue rejeitar a premissa
quantificada sem precisar assumir que ela seja falsa e portanto sem
precisar aceitar a sua negaccedilatildeo
Teoria Trivalente e o Criteacuterio da Precisatildeo
Vimos que uma teoria ideal da vagueza satisfaria trecircs criteacuterios
resolver o Paradoxo Sorites natildeo implicar que os predicados vagos satildeo
incoerentes e natildeo implicar que eles satildeo precisos Na seccedilatildeo anterior vimos
que a Teoria Trivalente fornece uma resposta ao Sorites Aleacutem disso estaacute
claro que ela natildeo implica que os predicados vagos satildeo incoerentes Seu
principal problema eacute com o criteacuterio da precisatildeo
Na concepccedilatildeo tradicional o domiacutenio de um predicado eacute dividido em
uma extensatildeo positiva e uma negativa e todo objeto do domiacutenio estaacute ou
em uma ou na outra Supondo que o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo seja
o domiacutenio das pessoas cada pessoa ou estaacute na extensatildeo positiva ou estaacute
na extensatildeo negativa de ldquocarecardquo Isso implica que uma sequecircncia para
Sagid Salles | 195
ldquocarecardquo seria dividida de modo a haver um nuacutemero n tal que uma pessoa
com n fios eacute careca e uma pessoa com n+1 natildeo eacute O resultado pode ser
representado como segue
Extensatildeo Positiva Extensatildeo negativa
|a0 a1 a2 a3 an | an+1 an+2hellip an+m|
Verdadeiro Falso
Fica evidente que na concepccedilatildeo acima ldquocarecardquo eacute um predicado
preciso Existe um uacuteltimo caso ao qual ldquocarecardquo se aplica e um primeiro
caso ao qual natildeo se aplica A Teoria Trivalente evita isto por meio da
postulaccedilatildeo de uma penumbra entre a extensatildeo positiva e a negativa O
resultado pode ser representado como segue
Ext Positiva Penumbra Ext negativa
|a0 a1 an | an+1an+m | an+m+1 an+m+k|
Verdadeiro Indefinido Falso
Esta imagem no entanto natildeo evita o problema da anterior Eacute
verdade que a Teoria Trivalente eacute capaz de separar os casos nos quais a
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo gera uma verdade dos casos nos quais ela gera uma
falsidade Existe um uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo na sequecircncia an e
existe um primeiro caso negativo an+m+1 Entre eles contudo haacute um
conjunto de casos nos quais a aplicaccedilatildeo gera o valorlacuna indefinido
Chamemos-lhes de ldquocasos indefinidosrdquo Nada disso evita a consequecircncia
de que predicados vagos satildeo precisos Na imagem acima o predicado
ldquocarecardquo continua cortando a sequecircncia de forma ciruacutergica A uacutenica
diferenccedila relevante eacute que ao inveacutes de haver apenas uma fronteira ndash a
fronteira entre os casos positivos e negativos ndash agora haacute duas fronteiras a
fronteira positivoindefinido e a fronteira indefinidonegativo O item an eacute
o uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo seu vizinho imediato an+1 eacute o primeiro
caso indefinido Portanto haacute uma fronteira precisa entre os casos positivos
e os casos indefinidos de ldquocarecardquo O item an+m eacute o uacuteltimo caso indefinido
e seu vizinho imediato an+m+1 eacute o primeiro negativo Portanto haacute tambeacutem
uma fronteira precisa entre os casos indefinidos e os negativos de ldquocarecardquo
196 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Comeccedilamos com uma fronteira e terminamos com duas Ao inveacutes de
ldquocarecardquo cortar o seu domiacutenio cirurgicamente em um ponto corta em dois
A Teoria Trivalente natildeo satisfaz o criteacuterio da precisatildeo
O resultado acima eacute que a Teoria Trivalente implica que os
predicados vagos satildeo de fato precisos Assumindo a intuiccedilatildeo de que ser
preciso e ser vago satildeo propriedades incompatiacuteveis o resultado eacute que as
expressotildees aparentemente vagas natildeo satildeo realmente vagas Isso ainda nos
deixaria com o que chamei de ldquoproblema fundacional da precisatildeordquo
(SALLES 2016 p 163) Se os predicados vagos satildeo precisos entatildeo como a
sua extensatildeo eacute determinada Essa pergunta eacute ainda mais difiacutecil de ser
respondida pela Teoria Trivalente do que pela concepccedilatildeo tradicional
Afinal agora temos de explicar como cada uma das duas fronteiras de
ldquocarecardquo por exemplo eacute determinada Nossos usos desse predicado seriam
refinados o bastante para estabelecer um corte entre os casos
positivoindefinidos e outro entre os indefinidonegativos de ldquocarecardquo
No que segue considero duas respostas disponiacuteveis ao defensor da
Teoria Trivalente A primeira sustenta que o erro do argumento acima eacute
supor que todos os objetos do domiacutenio de aplicaccedilatildeo do predicado ou estatildeo
na extensatildeo positiva ou estatildeo na negativa ou estatildeo na penumbra Natildeo se
trata aqui de aumentar ainda mais o nuacutemero de fronteiras Pelo
contraacuterio o ponto eacute questionar que soacute existam aquelas trecircs opccedilotildees sem
no entanto afirmar que existam mais Essa eacute a estrateacutegia de Tye (1994 p
195) para quem devemos assumir o seguinte
bull Os predicados vagos admitem casos positivos indefinidos e negativos e natildeo
existe uma questatildeo de fato acerca de se esses satildeo ou natildeo os uacutenicos casos
A tese acima natildeo afirma que existem mais do que as trecircs opccedilotildees
consideradas Mas ela impede que suponhamos que existam somente as
trecircs Uma vez que o argumento contra a Teoria Trivalente depende dessa
suposiccedilatildeo ele falha
O argumento de Tye a favor dessa tese eacute como segue Considere a
pergunta existem apenas trecircs opccedilotildees Suponha que sim Nesse caso
Sagid Salles | 197
como vimos o predicado ldquocarecardquo eacute preciso Suponha que natildeo Nesse caso
existe ainda uma quarta opccedilatildeo Pode-se entatildeo perguntar satildeo essas quatro
opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo caiacutemos no mesmo problema de antes e
predicados vagos seratildeo de fato precisos Se natildeo entatildeo precisaremos de
uma quinta opccedilatildeo Satildeo as cinco opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo predicados
vagos satildeo precisos Se natildeo entatildeo precisamos de uma sexta opccedilatildeo e assim
por diante Por um lado natildeo eacute verdade que existam apenas trecircs opccedilotildees
pois isso implica que predicados vagos satildeo precisos Por outro natildeo eacute falso
que existam apenas trecircs opccedilotildees pois isso implica em esquisitices
metafiacutesicas (o proacuteprio quarto valor) ou regresso ao infinito Conclusatildeo
natildeo haacute uma questatildeo de fato sobre se existe ou natildeo uma quarta opccedilatildeo Isso
pode ser expresso dizendo-se que eacute em si mesmo indefinido se ou natildeo
existem apenas trecircs opccedilotildees
Keefe (2000 p 121) apresenta uma objeccedilatildeo que me parece decisiva
contra o argumento acima Podemos explicitar o argumento de Tye como
segue
α Natildeo eacute verdadeiro que existem apenas trecircs opccedilotildees
β Natildeo eacute falso que existem apenas trecircs opccedilotildees
γ Logo eacute indefinido se existem apenas trecircs opccedilotildees
Como (γ) se segue de (α) e (β) Suponha por exemplo que existe
uma quarta opccedilatildeo indefinido Nesse caso o maacuteximo que poderiacuteamos
concluir a partir de (α) e (β) eacute que eacute indefinido ou indefinido que existem
apenas trecircs opccedilotildees De fato para que a inferecircncia de (γ) no argumento
acima seja permitida eacute preciso que haja apenas trecircs opccedilotildees verdadeiro
falso e indefinido Para mostrar que eacute indefinido que existem apenas trecircs
opccedilotildees Tye assume justamente que existem apenas trecircs opccedilotildees No fim
das contas Tye assume aquilo que pretende rejeitar
Mark Richard (2009 p 476) sustenta que o erro do argumento contra
a Teoria Trivalente estaacute em assumir que existe um uacuteltimo caso positivo de
ldquocarecardquo e um primeiro caso indefinido A sua resposta passa pelas noccedilotildees
de penumbra e indefinido Primeiro ele adota uma concepccedilatildeo linguiacutestica do
198 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que eacute para um predicado possuir uma penumbra Seguindo Soames um
predicado possui uma penumbra quando haacute objetos que nem satisfazem as
condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo
mal-sucedida3 Se Joatildeo estaacute na penumbra de ldquocarecardquo entatildeo as condiccedilotildees de
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo nada dizem sobre se ele deve ser incluiacutedo na extensatildeo
positiva ou na extensatildeo negativa desse predicado Como as condiccedilotildees de
aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo natildeo determinam em qual lado estaacute Joatildeo eacute indefinido
se (1) eacute verdadeira ou falsa Por outras palavras (1) eacute indefinida (Richard
prefere indeterminada) Segundo indefinido natildeo eacute entendido como um
terceiro valor de verdade Nessa concepccedilatildeo soacute existem dois valores de
verdade mas pode estar indefinido qual deles uma frase tem
Agora o argumento procede como segue Uma vez que an+1estaacute na
penumbra de ldquocarecardquo natildeo estaacute definido se ele eacute careca ou natildeo Mas se natildeo
estaacute definido se an+1 eacute careca ou natildeo entatildeo natildeo podemos assumir que aneacute
o uacuteltimo caso de ldquocarecardquo na sequecircncia Por outro lado tambeacutem natildeo
podemos assumir que an natildeo seja o uacuteltimo item careca da sequecircncia Pois
soacute poderiacuteamos assumir isso se estivesse definido que o proacuteximo item an+1
eacute careca Mas isso tambeacutem estaacute indefinido Portanto natildeo haacute um caso que
possamos justificadamente apontar como sendo o uacuteltimo caso positivo de
ldquocarecardquo Um argumento similar nos permitiria mostrar que tambeacutem natildeo
haacute um que possamos apontar como sendo o primeiro caso negativo de
ldquocarecardquo Tatildeo logo entendemos corretamente no que consiste ser
indefinido se um item eacute ou natildeo careca percebemos que ldquocarecardquo natildeo
estabelece fronteiras e portanto natildeo eacute preciso
Natildeo acredito esse argumento evite a violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo
Mesmo aceitando tudo que foi dito continua sendo o caso de ldquocarecardquo
3 Haacute diferenccedilas entre Soames e Richard no que diz respeito ao mecanismo que faz com que um predicado acabe por ter uma penumbra De acordo com Soames isso ocorre porque o predicado (i) tem condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) essas condiccedilotildees satildeo mutuamente exclusivas mas (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas Richard (2009 p 465-467) pensa que essa definiccedilatildeo natildeo eacute boa o bastante para justificar uma lacuna entre os dois valores claacutessicos de verdade propondo uma pequena modificaccedilatildeo De acordo com ele um predicado ldquoFrdquo tem uma penumbra quando (i) tem um conjunto C de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) tem um conjunto Crsquo de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) C e Crsquo satildeo mutuamente exclusivas e (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas
Sagid Salles | 199
cortar o seu domiacutenio de forma precisa em trecircs partes Retorne agrave imagem
acima da divisatildeo tripartida do domiacutenio de ldquocarecardquo O item an eacute o uacuteltimo
para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo se aplica enquanto an+1 eacute o primeiro
para o qual estaacute indefinido Haacute uma fronteira precisa entre os casos
definidos e os indefinidos de ldquocarecardquo Do mesmo modo an+m eacute o ultimo
caso para o qual estaacute indefinido se ldquocarecardquo se aplica ou natildeo e an+m+1 eacute o
primeiro caso para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo natildeo se aplica Haacute uma
fronteira precisa entre os casos indefinidos e os definidos de ldquonatildeo-carecardquo
Novamente temos duas fronteiras precisas onde deveria haver nenhuma
O proacuteprio Richard reconhece essa objeccedilatildeo e apela a uma soluccedilatildeo
epistecircmica para a mesma (2009 p 476-477) Apesar dos predicados vagos
possuiacuterem fronteiras no sentido acima frequentemente natildeo eacute possiacutevel
para noacutes sabermos onde ela se situa Nesse caso natildeo eacute claro se natildeo seria
mais plausiacutevel rejeitar de uma vez por todas a Teoria Trivalente e aceitar
a Teoria Epistecircmica em seu lugar Seja como for essa soluccedilatildeo aceita a
violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo
Conclusatildeo
A principal conclusatildeo deste texto eacute que embora a Teoria Trivalente
satisfaccedila os criteacuterios do Sorites e da coerecircncia tem claros problemas em
satisfazer o criteacuterio da precisatildeo Em todo caso estou convencido de que
satisfazer a todos os trecircs criteacuterios eacute algo dificiacutelimo e que as outras teorias
tradicionais da vagueza (Gradualismo Supervalorativismo Incoerentismo
Epistemicismo etc) tambeacutem falham em satisfazer pelo menos algum deles
Se isso estiver correto fica em aberto a possibilidade de a Teoria Trivalente
ainda ser a nossa melhor opccedilatildeo Afinal nem sempre a melhor opccedilatildeo de que
dispomos eacute a opccedilatildeo ideal Por outro lado se houver uma teoria que satisfaccedila
conjuntamente a todos os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente
estaraacute em desvantagem quanto a mesma Eu de fato penso que exista tal
teoria mas essa eacute uma histoacuteria para outro momento
200 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Referecircncias
BURNNYEAT M F Gods and heaps In SCHOFIELD M NUSSBAUM M C Language
and logos Cambridge University Press 1982 p 315-338
GLANZBERG M Against truth-value gaps In BEALL J Liars and leaps Oxford
University Press 2003 p 151-194
GRAFF D Shifting sands an interest-relative theory of vagueness Philosophical Topics
v 28 n1 p 45-81 2000
HYDE D The sorites paradox In RONZITTI G Vagueness a guide Springer Science amp
Business Media 2011 p 1-17
KEEFE R Theories of vagueness Cambridge University Press 2000
KLEENE S C Introduction to metamathematics American Elsevier Publishing
Company 1952
MACHINA K F Truth belief and vagueness Journal of Philosophical Logic v 5 p 47-
78 1976
RICHARD M Indeterminacy and truth value gaps In DIETZ R MORUZZI S Cuts and
clouds Oxford University Press 2009
SALLES S O problema da vagueza Fundamento n 12 p 139-174 2016
SANTOS R Vagueza In BRANQUINHO J SANTOS R (Eds) Compecircndio em linha de
problemas de filosofia analiacutetica Lisboa 2015 p 1-18
SOAMES S Vagueness partiality and the sorites paradox In Understanding truth
Oxford University Press 1999 p 203-227
TYE M Sorites paradoxes and the semantics of vagueness Philosophical Perspectives
v8 (Logic and Language) p 189-206 1994
WILLIAMSON T Vagueness Routledge 1994
12
O Leibniz de Deleuze
Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido1
William de Siqueira Piauiacute 2
Introduccedilatildeo
O que gostariacuteamos ao menos de comeccedilar a fazer em nosso mini-curso
eacute semelhante ao que fez Derrida em ldquoCogito e Histoacuteria da Loucurardquo
(Escritura e diferenccedila de 1967) com o trabalho exegeacutetico realizado por
Foucault quando este havia tentado localizar nas Meditaccedilotildees de Descartes
uma recusa ou exclusatildeo criticaacutevel da loucura tratava-se de mostrar que
um especialista em modernidade naquele momento jaacute autor de As
palavras e as coisas (de 1966) podia natildeo ter compreendido corretamente
o texto cartesiano acusaccedilatildeo grave e que por isso exigia natildeo soacute um novo
trabalho exegeacutetico do texto em questatildeo mas tambeacutem a explicitaccedilatildeo dos
pontos mais importantes e o centro da argumentaccedilatildeo da hipoacutetese
interpretativa a ser criticada3 Assim em termos comparativos o que
pretendemos mostrar eacute quais seriam os pontos principais e mesmo o
1 Texto-aula do minicurso que de iniacutecio tinha o nome O Leibniz de Deleuze problemas de exegese ministrado no IV Encontro Linguagem e Cogniccedilatildeo realizado junto agrave 8ordf Bienal Internacional do Livro de Alagoas em outubro de 2017 texto que com algumas alteraccedilotildees serviu de base para a palestra Deleuze e a noccedilatildeo leibniziana de sujeito apresentada no III Congresso Ibero-americano Leibniz realizado na Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Curitiba em novembro de 2017 palestra que foi um desenvolvimento das hipoacuteteses interpretativas que levantamos no V Encontro do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporacircneo realizado em junho de 2017 na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
2 Professor do Departamento de Filosofia (DFL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) E-mail piauiuspgmailcom
3 E nos parece que Derrida faz o mesmo com Jean-Pierre Vernant em Khora cf por exemplo 1995 p 7
202 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
centro do trabalho exegeacutetico de Deleuze com relaccedilatildeo a Leibniz mostrar
que mesmo um ldquoespecialistardquo do seu quilate pode natildeo ter compreendido
bem a filosofia leibniziana ao fazer uma apropriaccedilatildeo elogiosa poreacutem
equivocada principalmente dos seus conceitos de mocircnada individual ou
substacircncia particular Deus mundo corpo e principalmente ao defender a
necessidade de certo deslocamento que corroboraria a hipoacutetese que
Leibniz teria ido muito longe naquilo que o francecircs compreendia como
gecircnese estaacutetica ontoloacutegica etapa fundamental de sua Loacutegica do sentido
obra que seraacute nosso principal ponto de partida Do nosso ponto de vista eacute
o que estaacute em jogo principalmente no seguinte trecho de sua 16ordf seacuterie
Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada
mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente
compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia dos
predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo expresso
natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas mocircnadas como
a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos verdade entretanto
que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas [ou seja Deus criou natildeo
exatamente Adatildeo-pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou] e [tambeacutem eacute
verdade] que o expresso natildeo se confunde com sua expressatildeo mas insiste ou
subsiste [] Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na
filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na mocircnada
expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo expresso e
esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo
as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma
loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e
da verdade Leibniz foi muito longe nesta primeira etapa da gecircnese [de um
certo campo transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades
entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentais o indiviacuteduo
constituiacutedo como centro de envolvimento como envolvendo singularidades
em um mundo e sobre seu corpo (DELEUZE 2003 p 114-5 grifo nosso)
Do nosso ponto de vista natildeo eacute necessaacuterio afirmar o deslocamento
defendido por Deleuze que corroboraria a obrigatoriedade do
encadeamento de I a III e natildeo do seu contraacuterio Em nossa opiniatildeo a
apropriaccedilatildeo equivocada da filosofia leibniziana fica mais evidente
William de Siqueira Piauiacute | 203
especialmente em parte do trabalho exegeacutetico que Deleuze faz do Discurso
de metafiacutesica em associaccedilatildeo com a Correspondecircncia de Leibniz e de
Arnauld dos sect408 sect409 e sect414 da Teodiceia na menccedilatildeo natildeo explicitada
de parte do sect47 da quinta carta da Correspondecircncia Leibniz Clarke ndash
que faz a base da noccedilatildeo de coexistecircncia ndash e inclusive no alcance que supocircs
do texto ldquoSobre o meacutetodo da universalidaderdquo ndash o que seraacute mantido em A
dobra ndash ao mencionar um suposto uso geral que Leibniz faria da noccedilatildeo de
ldquosigno ambiacuteguordquo e principalmente para defender que por conta de seu
antigeneralismo o alematildeo forneceria as bases para pensarmos um ldquocampo
transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades
entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentaisrdquo Para noacutes
Deleuze teria criado dado o uso que supocircs dos atributos verbais uma
ficccedilatildeo falsa a la Lorenzo Valha que se sobrepotildee ao que de fato eacute afirmado
no final da Teodiceia ndash talvez por ter decidido parar em seu sect408 ou pela
excessiva importacircncia que conferiu a uma parte de seu sect414 Tudo
apontando para uma aproximaccedilatildeo excessiva entre Leibniz e Newton
inclusive a partir de certa caracterizaccedilatildeo de um mundo expresso feito de
relaccedilotildees diferenciais e de singularidades adjacentes que acabariam por
conduzir a uma dinacircmica sem causa proacutexima
Quanto aos motivos que nos levam a rever a leitura de Deleuze jaacute haacute
tantos anos publicada e criticada temos que dizer que eles satildeo de caraacuteter
regional recentemente em 2015 vimos publicado no Brasil a traduccedilatildeo do
livro de Alain Badiou A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX que
conteacutem um capiacutetulo de tiacutetulo ldquoGilles Deleuze Sobre A dobra Leibniz e o
barrocordquo e a publicaccedilatildeo em 2016 do excelente artigo de Gonzalo
Montenegro ldquoDeleuze em diaacutelogo com Freacutemont tentativas de ler Leibnizrdquo
tais textos deixam claro que ainda haacute muito que problematizar quanto agraves
interpretaccedilotildees de Deleuze mesmo quanto agrave sua afirmaccedilatildeo que
permanecemos leibnizianos e eacute com esse trabalho que gostariacuteamos de
contribuir voltando especialmente ao texto que serviu de base para A
dobra Mesmo natildeo desconsiderando o ldquobrilhantismordquo ou a ldquogenialidaderdquo
da interpretaccedilatildeo do francecircs ndash o que tenta nos mostrar Badiou ndash para que
204 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
o leitor natildeo se engane quanto ao nosso ponto de vista de fundo fazendo
outros caminhos estamos mais de acordo com grande parte das objeccedilotildees
que Freacutemont fez agrave leitura deleuziana especialmente se tomarmos a Loacutegica
do sentido como ponto de partida inclusive consideramos a pertinecircncia
daquelas objeccedilotildees como o motivo mais forte para a obra A dobra ter
demorado vinte anos para ser confeccionada Para noacutes em termos de
comentaacuterio de obra a leitura de Fremoacutent eacute muito mais bem fundamentada
e corresponde mais apropriadamente com o que o texto leibniziano
permitiria concluir principalmente se natildeo aceitarmos o deslocamento
exigido em a Loacutegica do sentido ou se recusamos a inversatildeo do caminho
argumentativo da Monadologia bases da argumentaccedilatildeo defendida em A
dobra de qualquer modo natildeo nos parece que Gonzalo deixa claro com que
interpretaccedilatildeo estaria mais de acordo Eacute por aiacute portanto que caminharaacute
nossa tentativa de problematizar o trabalho interpretativo feito na Loacutegica
do sentido e que em grande medida prepara todo o trabalho realizado em
A dobra Por fim e em termos da leitura de Badiou mesmo que estejamos
de acordo com a opiniatildeo que A dobra eacute ldquoum livro rarordquo ldquoadmiraacutevelrdquo e que
ldquopropotildee-nos uma visatildeo e um pensamento do nosso mundordquo pretendemos
ainda uma vez voltar agraves querelas genealoacutegicas agrave agrimensura dos textos
especialmente daquele que lanccedila as bases da argumentaccedilatildeo defendida em
A dobra quem sabe tal empreitada nos permita recolocar a pergunta o
que vemos como ou pensamos ser o nosso mundo
I Parte ndash Entre Literatura Psicanaacutelise Linguiacutestica e Loacutegica Deleuze
de Loacutegica do Sentido e a Filosofia Contemporacircnea
Como nos diz Pierre Franccedilois Marietti (HUISMAN 2001 p 255) em
geral se costuma distinguir trecircs periacuteodos da filosofia do francecircs Gilles
Deleuze (1925-1995) O primeiro entre 1953 ou 52 e 1968 que
compreenderia a produccedilatildeo de vaacuterios trabalhos sobre filoacutesofos e literatos
o periacuteodo das monografias tais como sobre Hume em Hume sua vida e
sua obra de 1952 e em Empirismo e subjetividade de 1953 sobre
William de Siqueira Piauiacute | 205
Nietzsche em Nietzsche e a filosofia de 1962 ou simplesmente Nietzsche
de 1965 sobre Proust em Proust e os signos de 1964 sobre Bergson em
Bergsonismo de 1966 sobre Espinosa em Espinosa ou o problema da
expressatildeo de 1968 ano que marcaria o final deste periacuteodo O segundo
periacuteodo 1968-1972 teria iniacutecio com as produccedilotildees mais autocircnomas e
propriamente filosoacuteficas de Deleuze tais como os volumosos Diferenccedila e
repeticcedilatildeo de 1968 e Loacutegica do sentido de 1969 Mas eacute preciso dizer que
aquele primeiro tipo de produccedilatildeo caracteriacutestico do primeiro periacuteodo natildeo
seraacute abandonado e seratildeo produzidas dentre outras mais duas obras sobre
Espinosa (em 1970 e 1981) a obra Foucault de 1986 e a famosa A dobra
Leibniz e o Barroco de 1988 (publicado quase 20 anos depois de a Loacutegica
do sentido e que foi o resultado de aulas dadas nos anos 80 86 e 87)
Tambeacutem nesse periacuteodo se intensificaratildeo seus estudos sobre psicanaacutelise e
literatura isto eacute a produccedilatildeo das obras escritas em parceria com o
psicanalista Feacutelix Guattari (1930-1992) tais como O anti-Eacutedipo e mesmo
Kafka por uma literatura menor ambas de 1972 o primeiro estudo
marca o iniacutecio do que se costuma chamar de a grande ruptura que
certamente faz o pano de fundo de obras como O que eacute filosofia jaacute de
1991 e Criacutetica e Cliacutenica de 1997 este uacuteltimo publicado jaacute dois anos depois
da morte de Deleuze
Dito isso e como jaacute o indicamos a obra principal sobre a qual
falaremos neste minicurso seraacute a Loacutegica do sentido praticamente o tema
da nossa III Semana de Filosofia da Linguagem4 obra que foi publicada
em 1969 e que faria parte daquele segundo periacuteodo obra que segundo
Marietti mais que Diferenccedila e repeticcedilatildeo ldquoextrapola em muito os cacircnones
universitaacuterios vigentes na eacutepoca com seu interesse pelas meninasrdquo pelos
poetas ldquoe pelos esquizofrecircnicosrdquo ndash certamente uma referecircncia agrave 13ordf seacuterie
do livro ndash ldquocomrdquo completa ele uma ldquoreflexatildeo profunda sobre a linguagem
e a literaturardquo (HUISMAN 2001 p 255) e acrescentariacuteamos uma reflexatildeo
sobre o estruturalismo e ainda mais especifica sobre a loacutegica a qual
4 Evento ocorrido no DFL-UFS em marccedilo de 2017 e que teve por tema ldquoGilles Deleuze Loacutegica e Sentidordquo onde tambeacutem ministramos um minicurso sobre a Loacutegica do sentido
206 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
acompanharaacute Deleuze certamente ateacute o final de sua vida como o
comprova o capiacutetulo II (Prospectos e Conceitos) da parte II (Filosofia
Ciecircncia Loacutegica e Arte) do livro escrito em parceria com Guattari O que eacute
filosofia
O que extrapola os cacircnones universitaacuterios vigentes certamente natildeo
se associa somente a certas figuras que despertam o interesse de Deleuze
mas o proacuteprio assunto e a forma como ele seraacute exposto ou como nos diz
o proacuteprio tratar-se-aacute da ldquoconstituiccedilatildeo paradoxal da teoria do sentidordquo
teoria que seraacute apresentada em 34 seacuteries (espeacutecie de capiacutetulos) que
receberatildeo mais 2 apecircndices subdivididos em 5 tiacutetulos seacuteries em que
veremos a elaboraccedilatildeo de uma espeacutecie de histoacuteria ldquouma lsquohistoacuteria
embrulhadarsquordquo por fim a obra seraacute apresentada como um ldquoensaio de
romance loacutegico e psicanaliacuteticordquo Falar de loacutegica a partir do gecircnero
romance misturando tal tema com psicanaacutelise e ensaiando compor uma
histoacuteria embrulhada obra em que em muitos de seus capiacutetulos tratam do
tema ldquoparadoxordquo certamente tambeacutem significava extrapolar os cacircnones
universitaacuterios vigentes basta pensarmos em obras sobre loacutegica ou
linguagem como as de Frege (a Conceitografia por exemplo) Russell
(Principia mathematica) Carnap (Da construccedilatildeo loacutegica do mundo)
Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) Husserl (Investigaccedilotildees
loacutegicas) e mesmo a de Heidegger (Princiacutepios metafiacutesicos da loacutegica) ou
Merleau-Ponty (A prosa do mundo) ou ainda a de Foucault (As palavras
e as coisas uma arqueologia das ciecircncias humanas) e de Derrida
(Gramatologia) para imaginarmos quatildeo grande era aquela extrapolaccedilatildeo
Toda essa extrapolaccedilatildeo ou abandono daquele rigor claacutessico rigor
ainda presente segundo Marietti em Diferenccedila e repeticcedilatildeo jaacute garantiria
um lugar de destaque agrave obra Loacutegica do sentido junto agrave filosofia
contemporacircnea ou dos modernos como quer Badiou o que seraacute
intensificado pela valorizaccedilatildeo de um tipo de filosofia que jaacute tinha aceitado
a ponto de se misturar com elas seja a intromissatildeo da literatura seja a da
psicanaacutelise seja a da linguiacutestica Quanto agrave uacuteltima eacute faacutecil perceber a
importacircncia natildeo costumeiramente afirmada em livros de loacutegica que
William de Siqueira Piauiacute | 207
assumiratildeo as consideraccedilotildees de um Benveniste (de Problemas de
linguiacutestica geral por exemplo) de Jakobson (de dentre outros ldquoO signo
zerordquo) e mesmo que indiretamente de Sausurre (de Curso de linguiacutestica
geral) para a elaboraccedilatildeo das ldquotrecircs relaccedilotildees distintas da proposiccedilatildeo
(designaccedilatildeo ou indicaccedilatildeo manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo) tema da 3ordf seacuterie
Mais do que isto a contribuiccedilatildeo geral da linguiacutestica e estruturalismo seratildeo
enunciadas na 12ordf seacuterie do seguinte modo
Os autores que se costuma atualmente chamar de estruturalistas [tais como
Benveniste e Jakobson] natildeo tecircm talvez outro ponto em comum ndash poreacutem
essencial ndash aleacutem do seguinte o sentido natildeo como aparecircncia mas como efeito
de superfiacutecie e de posiccedilatildeo produzido pela circulaccedilatildeo da casa vazia nas seacuteries
da estrutura [le sens non pas du tout comme apparence mais comme effet de
surface et de position produit par la circulation de la case vide dans les seacuteries
de la structure] ([] significante flutuante valor zero cantonada ou causa
ausente etc) O estruturalismo conscientemente ou natildeo celebra novos
achados de inspiraccedilatildeo estoica ou carrolliana [] (DELEUZE 2003 p 73-4
grifo nosso)
Ora natildeo eacute o elogio de tipo semelhante que veremos em muitos outros
filoacutesofos contemporacircneos Ao menos podemos dizer que eacute o caso
inclusive dito de modo muito semelhante de Derrida em Escritura e
diferenccedila especialmente no capiacutetulo ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo E a noccedilatildeo do
sentido como superfiacutecie certamente marca uma das viradas mais
conscientemente assumidas e feita jaacute no iniacutecio de a Loacutegica do sentido ou
seja na atualidade ou a partir daqueles achados o ldquoProfundo deixou de
ser um elogiordquo (Idem p 16) Eacute preciso pois se aproximar da filosofia da
literatura ou da arte da psicologia ou psicanaacutelise das teorias da linguagem
ou dos estruturalismos que natildeo simulam mais a profundidade e vivem dos
incorporais ou da superfiacutecie Jaacute antecipamos que a obra buscaraacute
justamente tornar mais explicito e de modo talvez mais consciente o que
a literatura produzida por Carroll e a filosofia produzida pelos Estoicos
podem nos inspirar mas voltemos ao que diziacuteamos
208 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Haacute outros dois tipos de produccedilatildeo que jaacute haviam aceitado se
embrulhar na investigaccedilatildeo do sentido associada agrave superfiacutecie Deleuze natildeo
procura em Nietzsche ldquoum profeta da reviravolta nem da superaccedilatildeordquo nem
em Freud ldquoum explorador da profundidade humanardquo pois
Se haacute um autor para o qual a morte de Deus a queda em altura do ideal
asceacutetico natildeo tem nenhuma importacircncia enquanto eacute compensada pelas falsas
profundidades do humano maacute consciecircncia e ressentimento eacute sem duacutevida
Nietzsche [] Natildeo procuramos em Freud um explorador da profundidade
humana e do sentido originaacuterio mas o prodigioso descobridor da maquinaria
do inconsciente[ e vale lembrar que o paradoxo eacute a potecircncia do inconsciente]5
por meio do qual o sentido eacute produzido sempre produzido em funccedilatildeo do natildeo-
senso [] O que haacute de burocraacutetico nestas maacutequinas fantasmas que satildeo os
povos e os poemas [] Basta que nos dissipemos um pouco que saibamos
estar na superfiacutecie que estendamos nossa pele como um tambor para que a
ldquogrande poliacuteticardquo comece [] Fazer circular a casa vazia e fazer falar as
singularidades pre-individuais e natildeo pessoais [faire parler las singulariteacutes preacute-
individuelles non personnelle] [que natildeo satildeo nem da ordem do geral nem da
ordem do individual nem pessoais nem universais] em suma produzir o
sentido eacute a tarefe de hoje (Idem p 75-6)
Nenhuma novidade quanto agrave menccedilatildeo a Nietzsche e Freud geste que
tambeacutem lembraraacute Derrida em ldquoLa diffeacuterancerdquo6 trata-se de autores
fundamentais para pensar filosofia contemporacircnea ao menos a produzida
no continente Mantermo-nos na superfiacutecie naquele algo que insiste em
subsistir deixar de elogiar o profundo compreender ao menos em termos
gerais o que pretendiam os estruturalistas bem como Nietzsche e Freud
fazer comeccedilar a grande poliacutetica (incluiriacuteamos tambeacutem aiacute a justiccedila) e natildeo
apenas relembrar ou comentar mas produzir o sentido satildeo portanto as
tarefas da filosofia contemporacircnea defendida por Deleuze em Loacutegica do
sentido Mas assim como ao seu modo os Estoicos natildeo realizaram tal
tarefa eacute preciso estar atento ao fato que para Deleuze tambeacutem Nietzsche
teria se desviado dela ou como ele mesmo nos dizia
5 Cf op cit p 82
6 Cf Margens da filosofia 1991 p 49
William de Siqueira Piauiacute | 209
Nietzsche esteve primeiramente entre estes [Boehme Schelling etc] disciacutepulo
de Schopenhauer no Nascimento da trageacutedia quando ele faz falar Dioniacutesio
sem fundo opondo-o agrave individuaccedilatildeo divina de Apolo e natildeo menos agrave pessoa
humana de Soacutecrates [] Assim a descoberta de Nietzsche estaacute alhures[ em
outro lugar em outra parte] quando tendo se livrado de Schopenhauer e de
Wagner explora um mundo de singularidades impessoais e preacute-
individuais [un monde de singulariteacutes impersonnelles et preacute-individuelles]
mundo que chama agora de dionisiacuteaco ou da vontade de potecircncia energia livre
e natildeo ligada [] Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que
trata o sentido enfim natildeo como predicado [ou] como propriedade mas
como acontecimento [traite le sens enfin non pas comme preacutedicat comme
proprieacuteteacute mais comme eacuteveacutenement] [] Na sua descoberta Nietzsche entreviu
como em um sonho o meio de pisar a [superfiacutecie da] terra de roccedilaacute-la de
danccedilar e de trazer de volta agrave superfiacutecie o que restava dos monstros do fundo e
das figuras do ceacuteu Mas eacute verdade que ele foi tomado por uma ocupaccedilatildeo mais
profunda mais perigosa tambeacutem na sua descoberta ele viu um novo meio de
explorar o fundo [] correndo o risco de ser tragado por essa profundidade
(Idem p 110 grifo nosso)
Em sua avaliaccedilatildeo da filosofia nietzscheana embalado pela renovaccedilatildeo
da filosofia que ela sugeria Deleuze menciona uma espeacutecie de condiccedilatildeo da
tarefa fundamental de sua teoria do sentido ou seja aquele ldquoestranho
discursordquo deve nos conduzir a tratar ldquoo sentido enfim natildeo como
predicadordquo ou ldquocomo propriedade mas como acontecimentordquo para entatildeo
explorarmos ldquoum mundo de singularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo
inspiraccedilatildeo expliacutecita do Nietzsche de Nascimento da trageacutedia mas claro
tambeacutem que a noccedilatildeo freudiana de inconsciente e limite dado seu elemento
paradoxal limite do horizonte de saber (e talvez a grande poliacutetica e a
justiccedila tivessem justamente que assumir tal pressuposto) inclusive recusa
da profundidade das filosofias da intencionalidade satildeo fundamentais aqui
E vale repetir fonte inclusive da estranheza de seu discurso e que parece
ser a principal responsaacutevel pela distacircncia que separa ldquocontinentaisrdquo e
ldquoanaliacuteticosrdquo Nietzsche teria sonhado com o outro aspecto fundamental das
filosofias contemporacircneas que se embaralham com o problema do
significado e sentido o sentido natildeo deve ser tratado como predicado como
210 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
propriedade mas como acontecimento como eacuteveacutenement conceito
fundamental das filosofias e teorias da linguagem contemporacircneas
especialmente as continentais Tambeacutem eacute por causa deste aspecto que se
exigiraacute toda uma nova maneira de pensar a loacutegica do sentido que por isso
mesmo deveraacute ultrapassar aquelas trecircs relaccedilotildees distintas na proposiccedilatildeo
e seraacute especialmente associada agrave primeira a da designaccedilatildeo que Deleuze
formularaacute o problema mais geral de tal loacutegica
[] de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro agrave do sentido se fosse
para encontrar entre o sentido e o natildeo-senso [le sens et non-sens] uma relaccedilatildeo
anaacuteloga agrave do verdadeiro e do falso () A loacutegica dos sentidos vecirc-se
necessariamente determinada a colocar entre sentido e o natildeo-senso um tipo
original de relaccedilatildeo intriacutenseca um modo de co-presenccedila [] (Idem p 71)
Muitos foram os autores que esbarraram neste problema ou seja o
de determinar um novo e original tipo de relaccedilatildeo que permitisse
diferenciar de uma vez por todas os problemas de significaccedilatildeo ou
relacionados diretamente ao verdadeiro e falso dos de sentido e que ao
menos em termo de designaccedilatildeo adotaram ao menos a postura de aceitar
sua complexidade e dificuldade nem perto da radicalidade de um Deleuze
evidentemente foi esse o caso de Bertrand Russell em Significaccedilatildeo e
verdade7 em que afrontou dentre outras a noccedilatildeo de Carnap de sentido-
significado seja como for a descoberta da necessidade de um novo e
original tipo de relaccedilatildeo mais proacutepria ao sentido uma outra dimensatildeo ou
relaccedilatildeo jaacute havia sido descoberta haacute muito tempo ou como lembrava
Deleuze
O sentido eacute a quarta dimensatildeo da proposiccedilatildeo [aleacutem de designaccedilatildeo
manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo] Os estoicos a descobriram com o acontecimento
o sentido eacute o expresso da proposiccedilatildeo este incorporal na superfiacutecie das coisas
entidade complexa irredutiacutevel [que natildeo pode ser simplificada separada do
natildeo-senso] acontecimento puro (eacuteveacutenement pur) que insiste ou subsiste na
proposiccedilatildeo (Idem p 20)
7 Cf tambeacutem DELEUZE 2003 [Loacutegica do sentido] p 18-9
William de Siqueira Piauiacute | 211
E tal descoberta se repetiu na histoacuteria no medievo pelos
nominalistas da escola de Ockham Gregoacuterio de Rimini (1300-1358) e
Nicolas de Autrecourt (1299-1369) e depois pela loacutegica dos objetos
inexistentes de Alexius Meinong (1853-1920) que foi duramente atacada
pelo mesmo Russell E tal dimensatildeo teria sido chamada pelo fenomenoacutelogo
Edmund Husserl (1859-1938) de ldquoexpressatildeordquo quanto a quem e ao que
Deleuze afirmava ldquoHusserl natildeo menos que Meinong reencontra as fontes
vivas de uma inspiraccedilatildeo estoicardquo (Idem p 21) Ateacute certo ponto afinado com
aquela boa nova aquela inspiraccedilatildeo contudo semelhantemente a
Nietzsche Husserl tambeacutem teria sido tragado pelas profundezas neste
caso natildeo soacute por natildeo ter compreendido os atributos como verbos-
acontecimentos e sim como predicados-conceitos (Idem p 100) mas por
ter pecado em sua interpretaccedilatildeo contra uma filosofia propriamente da
expressatildeo supostamente defensora das ldquosingularidades nocircmades
impessoais e preacute-individuaisrdquo (Idem p 113) daiacute que em pleno acordo com
aquela tarefa de uma loacutegica do sentido Deleuze afirmasse
[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida
em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e
sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de
Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como
veremos uma mudanccedila muito importante [] A ideia de singularidades
logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-
individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste
domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)
Como era de se esperar dado a menccedilatildeo ao conceito de mocircnada para
fazer avanccedilar a determinaccedilatildeo daquele domiacutenio e constituir uma nova
noccedilatildeo de tal campo Deleuze trataraacute em seguida na 16ordf seacuterie (a da gecircnese
estaacutetica ontoloacutegica) da Loacutegica do sentido da filosofia de Leibniz Com o
que dissemos ateacute aqui fica evidenciado o quatildeo central seraacute a reavaliaccedilatildeo
da filosofia leibniziana especialmente de seu conceito de mocircnada
individual tendo vista que seraacute justamente ele que permitiraacute a base da
212 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
hipoacutetese ou seja a estruturaccedilatildeo da ldquoideia de singularidades logo de anti-
generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-individuaisrdquo daquelas
ldquosingularidades nocircmades impessoais e preacute-individuaisrdquo isto eacute daquilo
que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do sentido de qualquer
modo a conclusatildeo de tal seacuterie seraacute
Na obra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduo a mocircnada que descobre
o sentido e jaacute presente o natildeo-senso remontando agrave superfiacutecie a partir de um
mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que se envolve nela e lhe impotildee a
dura lei das misturas [jaacute] Silvia e Bruno seriam antes como as pessoas lsquovagasrsquo
que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo
comum a vaacuterios mundos mundo dos homens e mundo das fadas (Idem p
121)
O que novamente atesta o papel central que o conceito leibiziano de
mocircnada desempenha para toda a Loacutegica do sentido inclusive pela
apropriaccedilatildeo que ela faz da obra de Carroll ou seja o conteuacutedo da 16ordf seacuterie
deveraacute servir para voltar a compreender parte daquela boa nova agora
associada mais propriamente agraves obras Aventuras de Alice no paiacutes das
maravilhes Atraveacutes do espelho e o que Alice viu laacute e As aventuras de
Silvia e Bruno de Lewis Carroll que junto com a teoria dos incorporais
dos Estoicos satildeo os grandes temas de a Loacutegica do sentido Assim o que
trataremos a seguir eacute da reconstituiccedilatildeo deleuzeana do conceito de mocircnada
individual
II Parte ndash Interpretaccedilatildeo Deleuziana da Filosofia Leibniziana uma
Ficccedilatildeo Falsa
Como noacutes indicamos eacute jaacute a partir de 1968 que o filoacutesofo francecircs Gilles
Deleuze demonstra seu apreccedilo pela filosofia leibniziana como fica
evidente em alguns momentos da obra Diferenccedila e repeticcedilatildeo mas na
obra que escreve um ano depois Loacutegica do sentido tal seraacute sua
importacircncia que ela se tornaraacute o tema principal de toda uma seacuterie a 16ordf
seacuterie justamente um dos momentos mais cruciais de seu romance ou
William de Siqueira Piauiacute | 213
histoacuteria embrulhada momento em que veremos Deleuze caracterizar as
Alices e Silvia e Bruno de Carroll a partir do suposto8 conceito leibniziano
de pessoa vaga e do de mocircnada individual conceitos que ofereceriam as
bases para pensar aquilo que ele chamou de gecircnese estaacutetica ontoloacutegica de
um certo campo transcendental Satildeo certamente as consideraccedilotildees feitas
aqui que forneceratildeo a direccedilatildeo principal das leituras que Deleuze faraacute de
Leibniz nos trecircs cursos que deu na deacutecada de oitenta (1980 86 e 87) aulas
que receberatildeo o tiacutetulo de Exasperaccedilatildeo da filosofia e que com algumas
poucas mudanccedilas substanciais teratildeo como resultado a obra A dobra
Leibniz e o barroco publicada em 1988 Assim o que pretendemos eacute
problematizar a compreensatildeo dos conceitos leibnizianos que serviriam
para caracterizar os personagens de Carroll tentando apontar alguns dos
problemas da leitura de Deleuze especialmente se levarmos em conta
dentre outros textos a carta que Leibniz escreve a Molanus em 1679 bem
antes do Discurso de metafiacutesica este nosso principal ponto de partida e
o que faz a base do capitulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou diversidaderdquo
dos Novos ensaios (II XXVII) posterior ao Discurso e anterior tanto agrave
Teodiceia quanto agrave Monadologia Com isso esperamos lanccedilar luz sobre
a noccedilatildeo de fato leibniziana de sujeito ou indiviacuteduo e as bases do
deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo deleuziana Vejamos entatildeo como a
filosofia de Leibniz aparece na obra de 1969
Como jaacute o dissemos em Loacutegica do sentido tudo parece comeccedilar
com a criacutetica a Husserl em sua 14ordf seacuterie Deleuze considera que
[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida
em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e
sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de
Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como
veremos uma mudanccedila muito importante9 [] A ideia de singularidades
8 Dizemos ldquosupostordquo tendo em vista que em nossa opiniatildeo Deleuze forccedila demais a oposiccedilatildeo entre o que Leibniz afirmou na correspondecircncia que travou com Arnauld especialmente a nota agrave carta de 13 de maio de 1686 e teria querido dizer nos paraacutegrafos finais da Teodiceia especialmente o sect414 Cf DELEUZE 2003 p 118 [nota 4]
9 A expressatildeo ldquoHaacute contudo como veremos uma mudanccedila muito importanterdquo parece apontar para uma interpretaccedilatildeo diferente da de Husserl e que seraacute parte do motivo de retornar agrave filosofia leibniziana nas seacuteries seguintes diferenccedila
214 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-
individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste
domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)
Segundo Deleuze Husserl teria construiacutedo um campo transcendental
sem atentar para as condiccedilotildees impostas por Sartre em seu famoso artigo de
1937 intitulado ldquoA transcendecircncia do Egordquo e natildeo teria vislumbrado a ideia
de ldquosingularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo que jaacute estariam
suficientemente desenvolvidas na filosofia de Leibniz10 em uma palavra
Husserl teria se mantido kantiano demais11 talvez inclusive por natildeo ter
compreendido uma suposta precedecircncia do mundo com relaccedilatildeo agrave mocircnada
expressiva e a arbitrariedade da aplicaccedilatildeo irrestrita do princiacutepio de inclusatildeo
do predicado no sujeito dito de outra forma por Husserl natildeo ter visto em
Leibniz uma loacutegica do acontecimento ou topologia de superfiacutecie que
permitiria a ldquodeterminaccedilatildeo daquele domiacutenio e de sua potecircncia geneacuteticardquo e
ainda de outra forma por natildeo ter visto nos textos de Leibniz os elementos
para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese segundo a qual as ldquosingularidadesrdquo ou ldquoanti-
generalidadesrdquo devem ser consideradas ldquoimpessoais e preacute-individuaisrdquo
Como era de se esperar dada a associaccedilatildeo ao conceito de mocircnada Deleuze
trataraacute na 16ordf seacuterie (ldquoDa gecircnese estaacutetica ontoloacutegicardquo) da Loacutegica do sentido
da filosofia de Leibniz e como esta permitiria compreender a constituiccedilatildeo de
tal campo e tal ideia e que se tornaraacute a base de sua argumentaccedilatildeo em A
dobra ndash o que fica evidente especialmente em seu capiacutetulo 5 trata-se aqui
de levar adiante aquilo que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do
sentido ou do acontecimento12
Entatildeo nos voltando para a conclusatildeo da 16ordf seacuterie e parte da sua
hipoacutetese geral A primeira pergunta que devemos fazer eacute Qual eacute o
que causou muita estranheza a muitos interpretes de Leibniz Gonzalo deixa claro em seu artigo jaacute mencionado os termos em que se deu a polecircmica entre Fremont e Deleuze
10 Certamente o que permitiraacute a Deleuze terminar A dobra dizendo que permanecemos leibnizianos (DELEUZE 1991 p 208) posicionamento filosoacutefico com o qual esse sim Alain Badiou se potildee em desacordo ao defender a ldquooutra escolha ontoloacutegicardquo (BADIOU 2015 p 39-44)
11 DELEUZE 2003 p 101
12 Idem todo o final da 14ordf seacuterie
William de Siqueira Piauiacute | 215
imperativo do uso das obras de Carroll que marcaria as nuacutepcias da
linguagem e do inconsciente A resposta eacute a contestaccedilatildeo da identidade
pessoal (Idem p 3) Pressuposto que permitia a circulaccedilatildeo da ldquocasa vaziardquo
e o falar das ldquosingularidades pre-individuais e natildeo pessoaisrdquo ldquoque natildeo satildeo
nem da ordem do geral nem da ordem do individual nem pessoais nem
universaisrdquo ldquoem sumardquo o que possibilitaria a produccedilatildeo do sentido Se
deixar arrastar pelos verbos de puro devir natildeo deixar que a noccedilatildeo de
atributo verbal seja confundida e assimilada pela de predicado da loacutegica
formal (claacutessica-aristoteacutelica) dai que evidente e novamente se queremos
tomaacute-lo como ponto de partida tenha de ser arbitraacuterio na filosofia de
Leibniz a inerecircncia do predicado no sujeito (Idem p 115) o que deve levar
agravequeles conceitos de pessoa ou indiviacuteduo que permitiriam comparar Alice
com uma mocircnada e Silvia e Bruno com pessoas vagas Mas seraacute mesmo
arbitraacuterio
Assim e para o que nos interessa em Loacutegica do sentido os pontos
principais e o centro da interpretaccedilatildeo de Deleuze da filosofia leibniziana
estariam na seguinte afirmaccedilatildeo
Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada
mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente
compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia
dos predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo
expresso natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas
mocircnadas como a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos
verdade entretanto que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas (Dieu
creacutee le monde plutocirct que les monades)13 e [tambeacutem eacute verdade] que o expresso
13 Outra traduccedilatildeo possiacutevel dessa afirmaccedilatildeo e que afasta o problema da anterioridade temporal seria ldquoDeus cria o mundo e natildeo (plutocirct que) as mocircnadasrdquo A expressatildeo francesa plutocirct nos arrastaria inclusive para o que parece ser o contraacuterio da anterior ldquoDeus cria o mundo sobretudo (plutocirct) as mocircnadasrdquo Nossa interpretaccedilatildeo vai se basear na afirmaccedilatildeo e nota correspondente o que tambeacutem consideramos ser uma intensificaccedilatildeo feitas em A dobra Leibniz e o barroco ldquoEstas natildeo satildeo as generalidades mas acontecimentos gotas de acontecimento Nem por isso deixam [os acontecimentos as gotas de acontecimento] de ser preacute-individuais uma vez que o mundo eacute virtualmente primeiro em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que o expressam (Deus criou natildeo Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou) O indiviacuteduo nesse sentido eacute atualizaccedilatildeo de singularidades preacute-individuais [Elles nrsquoen sont pas moins preacute-individuelles dans la mesure ougrave le monde est virtuellement premier par rapport aux individus qui lrsquoexpriment (Dieu a creacuteeacute non pas Adam peacutecheur mais le monde ougrave Adam a peacutecheacute) Lrsquoindividu en ce sens est lrsquoactualisation de singulariteacutes preacute-individuelles et nrsquoimplique aucune speacutecification preacutealable Il faut mecircme dire le contraire et constater que la speacutecification suppose elle-mecircme lrsquoindividuation]rdquo (DELEUZE 1991 p 101) Podemos mesmo falar em
216 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
natildeo se confunde com sua expressatildeo mas [partindo de um ponto de vista
estoico] insiste ou subsiste () Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos
predicados na filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na
mocircnada expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo
expresso e esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras
singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que
pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a]
uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdade Leibniz foi muito longe nesta
primeira etapa da gecircnese [ontoloacutegica de um certo campo transcendental
impessoal e preacute-individual ou das singularidades entendidas como
verdadeiros acontecimentos transcendentais14] o indiviacuteduo constituiacutedo
como centro de envolvimento como envolvendo singularidades em um
mundo e sobre seu corpo (Idem p 114-5 grifo nosso)15
Como jaacute indicamos ao falar da associaccedilatildeo de Husserl com os achados
estoicos para aleacutem da noccedilatildeo de sujeito indiviacuteduo ou pessoa o outro tema
cariacutessimo agrave Loacutegica do sentido e que tambeacutem deve ter contribuiacutedo para a
escolha da filosofia leibniziana eacute o de ldquoexpressatildeordquo tema que leva agrave
pergunta Como as mocircnadas expressariam o mundo e qual a ordem de
precedecircncia ou preferecircncia seja com relaccedilatildeo a Deus ao mundo ou aos
corpos De qualquer modo com relaccedilatildeo agrave polecircmica entre ambos natildeo eacute
preciso muito para compreender a insistecircncia de Fremoacutent na reconstruccedilatildeo
anterioridade virtual do mundo em Leibniz Seria isso suficiente para aceitarmos o deslocamento proposto por Deleuze desde a Loacutegica do sentido
14 Cf a p 105 da mesma obra
15 ldquoSrsquoeffectuer crsquoest aussi ecirctre exprimeacute Leibniz soutient une thegravese ceacutelegravebre chaque monade individuelle exprime le monde Mais cette thegravese nrsquoest pas suffisamment comprise tant qursquoon lrsquointerpregravete comme signifiant lrsquoinheacuterence des predicats dans la monade expressive Car il est bien vrai que le monde exprimeacute nrsquoexiste pas hors des monades qui
lrsquoexpriment donc existe dans les monades comme la seacuterie des preacutedicats qui leur sont inheacuterents Il nrsquoest pas moins vrai cependant que Dieu creacutee le monde plutocirct que les monades et que lrsquoexprimeacute ne se confond pas avec son expression mais insiste ou subsiste [nota 1] [] Il est arbitraire de privileacutegier lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la philosophie de Leibniz Car lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la monade expressive suppose drsquoabord la compossibiliteacute du monde exprimeacute et celle-ci agrave son tour suppose la distribution de pures singulariteacutes drsquoapregraves des regravegles de convergence et de divergence qui appartiennent encore agrave une logique du sens et de lrsquoeacuteveacutenement non pas agrave une logique de la preacutedicacion et de la veacuteriteacute Leibniz a eacuteteacute tregraves loin dans cette premiegravere eacutetape de la genegravese lrsquoindividu constitueacute comme centre drsquoenveloppement comme enveloppant des singulariteacutes dans un monde et sur son corps et Adammiddotnon peacutecheur deacutecoule de lrsquoincompossibiliteacute des mondes ougrave Adam pegraveche et ne pegraveche pas Dans chaque monde les monades individuelles expriment toutes les singulariteacutes de ce monde - une infiniteacute - comme dans un murmure ou un eacutevanouissement mais chacune nrsquoenveloppe ou nrsquoexprime laquoclairementraquo qursquoun certain nombre de singulariteacutes celles au voisinage desquelles elle se constitue et qui se combinent avec son corpsrdquo (DELEUZE 1969 p 134-5) Ao que segue o comentaacuterio da nota 1 ldquoTema constante das cartas de Leibniz a Arnauld Deus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou (Theme constant des lettres de Leibniz agrave Arnauld Dieu a creacuteeacute non pas exactament Adam-pecheur mais le monde ouacute Adam peacutecheacute)rdquo
William de Siqueira Piauiacute | 217
dos conceitos leibnizianos de Deus e de indiviacuteduo fica evidente com a
citaccedilatildeo feita acima que esses deveriam fazer a base da argumentaccedilatildeo do
proacuteprio Deleuze que muitas vezes prefere recorrer aos textos esparsos e
de difiacutecil interpretaccedilatildeo em que Leibniz fala de compossibilidade ou
incompossibilidade da universalidade ou generalidade e singularidade ou
especificaccedilatildeo das regras de convergecircncia ou divergecircncia e mesmo do
caacutelculo diferencial e integral mas natildeo tanto aos em que o alematildeo fala
propriamente dos conceitos de substacircncia particular ou mocircnada
individual Todavia natildeo eacute nossa intenccedilatildeo remontar tal embate Assim eacute
nossa pretensatildeo problematizar ainda uma vez a partir dos textos onde
Leibniz de fato trata deles inclusive os associando os assuntos ldquoinerecircncia
do predicado no sujeitordquo ldquoDeusrdquo ldquomocircnada individualrdquo ou ldquosubstacircncia
particularrdquo e ldquoacontecimentordquo tentando remontar o que do nosso ponto
de vista parece ser um dos principais problemas da leitura deleuziana
certa cadeia argumentativa e associaccedilatildeo inevitaacutevel de temas presentes nos
textos leibnizianos
Dito isso em primeiro lugar mesmo que acreditemos que a leitura
que faz Russell da filosofia de Leibniz eacute purista demais com relaccedilatildeo agrave sua
vinculaccedilatildeo agrave loacutegica aristoteacutelica se eacute arbitraacuterio a inerecircncia do predicado no
sujeito com relaccedilatildeo agrave mocircnada individual expressiva ndash que devemos fazer
preceder da noccedilatildeo de uma substacircncia individual16 ndash Deleuze deveria ter se
explicado melhor quanto agrave afirmaccedilatildeo feita no sect8 do Discurso de
metafiacutesica que trata justamente do conceito de Deus e de ldquoem que
consiste uma substacircncia individualrdquo a saber
Ora eacute bem constante que toda predicaccedilatildeo tem algum fundamento verdadeiro
na natureza da coisa e quando uma proposiccedilatildeo natildeo eacute idecircntica isto eacute quando
o predicado natildeo estaacute compreendido expressamente no sujeito eacute preciso que
esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filoacutesofos in-esse
16 Com relaccedilatildeo ao modo como compreendemos a associaccedilatildeo do conceito de mocircnada humana com o de substacircncia individual indicamos nossos artigos ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo e ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e Infinito em Leibnizrdquo seja como for eacute no sentido do conceito de substacircncia individual ou noccedilatildeo de indiviacuteduo singular ou noccedilatildeo individual completa ou mesmo de pessoa possiacutevel que Deleuze entende o conceito de mocircnada individual ou humana
218 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
dizendo estar o predicado no sujeito Eacute preciso pois o termo do sujeito
conter sempre o do predicado de tal forma que quem entender
perfeitamente a noccedilatildeo do sujeito julgue tambeacutem que o predicado lhe
pertencerdquo (LEIBNIZ 1983 p 124 grifo nosso)
Afirmaccedilatildeo que fundamentaraacute as seguintes consequecircncias
Isto posto podemos dizer que a natureza de uma substacircncia individual ou
de um ser complexo consiste em ter uma noccedilatildeo tatildeo perfeita que seja
suficiente para deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se
atribui estaacute noccedilatildeo [] [Daiacute que] Deus vendo a noccedilatildeo individual ou
ecceidade de Alexandre nela vecirc ao mesmo tempo o fundamento e a razatildeo
de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar []
(Idem grifo nosso)
Apesar do deslocamento quanto agrave noccedilatildeo de criaccedilatildeo antes ou depois
de preferecircncia ou natildeo com relaccedilatildeo ao mundo ateacute aqui nada aponta para
uma restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse a natildeo ser a menccedilatildeo ao virtual
(virtuellement) ou seja nada aponta para a restriccedilatildeo do princiacutepio de
inerecircncia do predicado no sujeito especialmente quando se trata de pensar
a natureza de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo individual
completa ou perfeita noccedilatildeo individual ou ecceidade bem como nada
parece apontar para algo que permitisse concluir que ldquoDeus criou natildeo
exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo talvez no
sentido que a qualidade o adjetivo ldquopecadorrdquo o predicado natildeo seria
previa e propriamente ldquoinerenterdquo ao sujeito Adatildeo Restaria pois
compreender o que seria essa visatildeo sem precedecircncia ou preferecircncias e ldquoao
mesmo tempordquo da noccedilatildeo individual ou ecceidade O que quer dizer este
ldquoao mesmo tempordquo esta simultaneidade e como compreender este
fundamento e razatildeo de todos os predicados que verdadeiramente se
podem afirmar de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo
individual completa ou perfeita de um ser complexo (talvez o misteacuterio
mencionado em A dobra) Mas natildeo resta duacutevida que a verdade entra em
jogo aqui jaacute que se trata tambeacutem do fundamento de ldquotoda predicaccedilatildeordquo
por isso mesmo podemos colocar o problema no mesmo registro da
William de Siqueira Piauiacute | 219
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld17 quando o alematildeo afirma jaacute
na carta de 14 de julho de 1686 que semper enim notio praedicati inest
subjecto in propositione vera18 Nesse sentido a questatildeo seria perguntar se
o conhecimento que Deus tem de uma substacircncia individual noccedilatildeo
individual completa ou perfeita um noccedilatildeo individual ou ecceidade eacute certo
ndash infaliacutevel ndash a ponto de dizermos que as proposiccedilotildees formadas com relaccedilatildeo
a elas tecircm de ser ditas verdadeiras ou falsas mas claro que para Leibniz o
conhecimento de Deus eacute infaliacutevel e mesmo que em termos de predicaccedilatildeo
tiveacutessemos que levar a anaacutelise de tais noccedilotildees ao infinito temos de lembrar
que aquele conhecimento tambeacutem compreende o infinito Restaria ainda
perguntar se tal conhecimento se prenderia a uma caracteriacutestica
semelhante a um atributo verbal no sentido deleuzeano ou a um predicado
no sentido claacutessico De qualquer modo no sect31 do Discurso de metafiacutesica
que trata justamente da ldquorazatildeo que fez Deus chamar agrave existecircncia tal pessoa
possiacutevelrdquo tal substacircncia individual noccedilatildeo individual completa ou perfeita
noccedilatildeo individual ou ecceidade possiacuteveis e dos acontecimentos relacionados
a tais pessoas possiacuteveis ao menos parte da questatildeo eacute resolvida com a
seguinte consequecircncia geral
[] creio mais exato e seguro dizer segundo nossos princiacutepios e como jaacute notei
ser forccediloso haver entre os entes possiacuteveis a pessoa de Pedro ou Joatildeo cuja
noccedilatildeo ou ideia conteacutem toda esta seacuterie de graccedilas ordinaacuterias e todo o resto
destes acontecimentos (eacuteveacutenements) com suas circunstacircncias e que entre
uma infinidade de outras pessoas igualmente possiacuteveis agradou a Deus
escolhecirc-la para existir atualmente (actuellement) (Idem p 147 grifo nosso)19
17 Insistindo pois naquele lugar onde esse tema teria sido tatildeo debatido cf DELEUZE 2003 [nota 1] p 114
18 ldquoDe fato [ou manifestamente] na proposiccedilatildeo verdadeira sempre a noccedilatildeo do predicado lsquoinerersquo ao sujeitordquo
19 De pleno acordo com o que Leibniz defende na nota agrave carta de Arnauld com relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma noccedilatildeo vaga de sujeito ldquo[primeira resposta] que minha suposiccedilatildeo natildeo eacute simplesmente que Deus tenha querido criar um Adatildeo cuja noccedilatildeo seja vaga e incompleta mas que Deus quis criar um tal Adatildeo suficientemente determinado para um indiviacuteduo Esta noccedilatildeo individual completa encerra [ou envolve] em minha opiniatildeo relaccedilotildees com toda a serie das coisas o qual deve parecer tanto mais razoaacutevel quanto que o Sr Arnauld me concede aqui o enlace que haacute entre as resoluccedilotildees de Deus a saber que Deus ao resolver-se a criar determinado Adatildeo tem em conta todas as resoluccedilotildees que toma sobre toda a seria do universo agrave maneira de uma pessoa prudente que ao tomar uma resoluccedilatildeo com respeito a um propoacutesito tem em vista em sua totalidade dito propoacutesito jaacute que pode decidir-se melhor quando se resolve sobre todas as partes (que ma supposition nrsquoest paacutes simplement que Dieu a voulu creacuteer un Adam dont la notion soit vague et incomplegravete mais que Dieu a voulu creacuteer un tal Adam assez deacutetermineacute agrave un individu Et cette notion individuelle complete selon moi enveloppe decircs rapport agrave toute la suite des choses ce qui doit paraicirctre
220 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Fica evidente inclusive que mesmo quanto aos acontecimentos
(eacuteveacutenements) todos jaacute com suas circunstacircncias devem ser considerados
incluiacutedos nas ideias das pessoas possiacuteveis ou nas noccedilotildees completas das
pessoas possiacuteveis ou seja nas noccedilotildees das substacircncias individuais ou
particulares noccedilotildees individuais ou ecceidades possiacuteveis Em que sentido
portanto interpretar a afirmaccedilatildeo ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo
pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo Talvez ou no sentido que haacute
uma ruptura no desenvolvimento da filosofia de Leibniz entre o conceito
de substacircncia individual e mocircnada como querem muitos comentadores
ou concedendo que em Leibniz haveria a afirmaccedilatildeo do conceito de pessoa
vaga o que natildeo vemos como corroborar tendo em vista o que eacute afirmado
na nota agrave carta que mencionamos em nota mais acima mas poderia ser
um problema com relaccedilatildeo agrave hipoacutetese interpretativa que o sect414 da
Teodiceia exige uma ldquounidade objetividade muito especialrdquo para ser
compreendido e neste caso voltariacuteamos a uma saiacuteda semelhante agrave
daqueles comentadores Mas se nos mantemos na eacutepoca do Discurso
certamente podemos dizer que aquela consequecircncia seraacute seguida da
explicaccedilatildeo que parte dos princiacutepios fundamentais que guiam a
argumentaccedilatildeo de Leibniz satildeo 1) o da perfeiccedilatildeo ou completude das
operaccedilotildees de Deus e 2) o da noccedilatildeo individual completa ou perfeita (uma
noccedilatildeo natildeo vaga e natildeo incompleta) que encerra in-esse todos os
acontecimentos com todas as suas circunstacircncias Ateacute este momento o do
Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld
portanto nada parece apontar para o acontecimento ou gota de
acontecimento no sentido deleuziano mesmo que o revolucionaacuterio artigo
drsquoautant plus raisonnable que M Arnauld mrsquoaccorde ici la liaison qursquoil y a entre les reacutesolutions de Dieu savoir que Dieu prenant la reacutesolutions de creacuteer un tel Adam a eacutegard agrave toutes lecircs reacutesolutions qursquoil prend touchand toute la suiacutete de lrsquouniverse agrave peu pregraves comme une persone sage qui prend une reacutesolutions agrave lrsquoegard drsquoune partie de son dessein lrsquoa tout entier em vue et se reacutesoudra drsquoautant mieux si elle pourra se reacutesoudre drsquoautant mieux si elle pourrra se resoudre sur toutes lecircs parties agrave la fois)rdquo (LEIBNIZ 1900 p 182) Cf tambeacutem DELEUZE 2003 p 118 [e tambeacutem a nota 4] Vale lembrar que a questatildeo da escolha entre uma infinidade de pessoas possiacuteveis leva o problema do conhecimento do infinito natildeo mais para uma anaacutelise infinita de uma noccedilatildeo e sim para a de uma infinidade de noccedilotildees uma multidatildeo ou conjunto infinitos nesse sentido agrave de compossibilidade e incompossibilidade quanto ao que pensamos sobre a ligaccedilatildeo desse detalhe com o labirinto da liberdade gostariacuteamos de indicar novamente nosso artigo ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibnizrdquo
William de Siqueira Piauiacute | 221
sobre ldquoUm novo meacutetodo para os maacuteximos e miacutenimos assim como para as
tangentes que natildeo para ante quantidades fracionaacuterias ou irracionais e eacute
um gecircnero singular de caacutelculo para estes problemasrdquo jaacute esteja pronto
comprovadamente desde 1684 Na verdade cremos que a melhor
estrateacutegia para pensar uma topologia da superfiacutecie em Leibniz a partir de
1684 seria reconstituir sua noccedilatildeo de funccedilatildeo e se voltar para a sua
dinacircmica20 mas se distanciando de sua noccedilatildeo de mocircnada humana e
afirmando inclusive diferenccedilas importantes entre o conceito de substacircncia
individual do Discurso e o de mocircnada na Monadologia
De qualquer modo e em sentido contraacuterio agora a noccedilatildeo de pessoa
defendida no Discurso parece ser um desenvolvimento da de pessoa
espiritual que Leibniz defendia jaacute na carta a Molanus de 167921 justamente
contra a moral Estoica ndash o que deveria ter chamado a atenccedilatildeo do jovem
Deleuze ndash e a de Descartes e natildeo eacute diferente da utilizada na
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld portanto ambas as seacuteries de
cartas estariam em pleno acordo com o Discurso Mais que isso do nosso
ponto de vista trava-se desde a carta a Molanus daquilo que permitiraacute
compreender a peculiaridade e novidade do fatum christianum do iniacutecio
da Teodiceia novamente contra o fatum stoiumlcum vale lembrar Aleacutem
disso a noccedilatildeo individual completa ou perfeita eacute reafirmada nos Novos
ensaios justamente no capiacutetulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou
diversidaderdquo ndash capiacutetulo curiosamente natildeo analisado por Deleuze seja em
Loacutegica do sentido seja em A dobra ndash onde jaacute aparece o conceito de
mocircnada que a partir dali assimilaraacute grande parte das caracteriacutesticas do
conceito de noccedilatildeo individual completa ou perfeita capiacutetulo que deveria ter
sido interpretado por Deleuze ou ao menos mencionado dado que tanto
em A dobra e mais ainda em Loacutegica do sentido se tratava do problema
da identidade pessoal Assim ateacute por conta da boa nova que representaria
a obra carrolliana quanto agrave dissoluccedilatildeo da identidade pessoal nos parece
20 Quanto ao que pensamos sobre o conceito leibniziano de funccedilatildeo associado ao de continuidade e histoacuteria gostariacuteamos de indicar nosso artigo ldquoLeibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologiardquo
21 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartesrdquo
222 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
que teria faltado um agrupamento mais cuidadoso dos textos a partir do
tema geral da noccedilatildeo individual completa ou perfeita De qualquer modo
ateacute esse momento o do Discurso ou em torno dos Novos ensaios e com
relaccedilatildeo seja ao conceito de mocircnada humana individual seja o de noccedilatildeo
individual completa natildeo vemos a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos alcanccedilados com o
artigo de 1684 ou que nos obrigue a leitura do texto ldquoSobre o meacutetodo da
universalidaderdquo de conforme Couturat o mais tardar 167422 o que parece
deixar sem fundamento o deslocamento exigido por Deleuze ao menos em
a Loacutegica do sentido A partir de quais textos que tratem propriamente do
problema do sujeito indiviacuteduo e mocircnada humana com as associaccedilotildees que
mencionamos acima fundamentariacuteamos aquela exigecircncia de recusarmos
o princiacutepio inesse e a de estarmos obrigados a apelar para as regras de
divergecircncia e convergecircncia ou para outro tipo de singularidade
Arriscariacuteamos dizer que por conta do todo da obra apenas os sect6 que
menciona a noccedilatildeo de funccedilatildeo e sect17 a sect22 que trabalham o conceito de
forccedila e causalidade final do Discurso poderiam fornecer algum
fundamento para tal deslocamento mas todo o resto da obra seria prova
suficiente que a adoccedilatildeo de tais regras em nada invalida o princiacutepio inesse
principalmente se as questotildees tiverem a ver com a tentativa de pensar a
noccedilatildeo completa de indiviacuteduo ou aquele conceito de mocircnada humana
defendido nos Novos ensaios e mesmo os conceitos de acontecimento e
suas circunstacircncias ou o conteuacutedo do intelecto divino23
Dito assim voltando ainda uma vez ao Discurso de metafiacutesica o
sect14 que trata das perspectivas do universo que Deus decide criar e que
corresponderiam ao que acontece agraves substacircncias individuais ndash talvez
daquilo que sem nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de Leibniz permitiria falar
da aplicaccedilatildeo das regras de convergecircncia e divergecircncia ou ao novo meacutetodo
para os maacuteximos e miacutenimos ndash natildeo deixa duacutevidas quanto agrave noccedilatildeo de
22 Anterior agrave carta a Molanus portanto
23 Vale lembrar o tiacutetulo que recebeu o sect6 do Discurso ldquoDeus nada faz fora de ordem e nem eacute possiacutevel forjar acontecimentos (eacuteveacutenements) que natildeo sejam regularesrdquo Neste caso os outros paraacutegrafos que mencionamos encaminham a pergunta que talvez impediria aquele deslocamento Com relaccedilatildeo ao conteuacutedo do intelecto divino o que faz o fundamento ou substacircncia da continuidade da mudanccedila Problema que no nosso entender eacute o principal que aparece jaacute desde o iniacutecio da Monadologia cf sect8 e que exige a noccedilatildeo de mocircnada individual fechada
William de Siqueira Piauiacute | 223
acontecimento e emprego irrestrito do princiacutepio da inclusatildeo do predicado
no sujeito com relaccedilatildeo agraves ideias de pessoas ou noccedilotildees completas ali
Leibniz afirmava
De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poder-se-aacute dizer
que nunca uma substacircncia particular atua (agit) sobre uma outra substacircncia
particular e tampouco padece se os eventos24 de cada um satildeo considerados
apenas como consequecircncia de sua simples ideia ou noccedilatildeo completa pois
esta ideia [ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular] encerra jaacute
todos os predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime
(exprime) todo o universo Com efeito nada pode acontecer-nos (arriver)
aleacutem de pensamentos e percepccedilotildees e todos os nossos futuros pensamentos e
percepccedilotildees natildeo passam de consequecircncias embora contingentes
(contingentes) dos nossos pensamentos e percepccedilotildees anteriores de tal modo
que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora
me acontece ou aparece nessa percepccedilatildeo poderia ver tudo quanto me
aconteceraacute e apareceraacute sempre o que natildeo falharia e aconteceria da mesma
maneira embora tudo quanto existisse fora de mim fosse destruiacutedo desde que
restasse Deus e eu (LEIBNIZ 1983 p 129-30)
A ideia ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular encerra jaacute
todos os predicados ou acontecimentos e exprime todo o universo E
exprime jaacute enquanto ideia ou noccedilatildeo completa todo o universo Claro que
um grande problema eacute compreender aquela contingecircncia mas natildeo no
esqueccedilamos da intensificaccedilatildeo que vem a seguir ldquodesde que restasse
apenas eu e Deusrdquo Apesar da necessidade de problematizar quatildeo longe
vai a impossibilidade de distinccedilatildeo completa dos nossos pensamentos e
percepccedilotildees certamente associada agrave necessidade de uma anaacutelise infinita
para a compreensatildeo total ou perfeita de uma noccedilatildeo individual o que pode
apontar para aquela contingecircncia em nenhum momento da Carta a
Molanus do Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz
e de Anauld vimos Leibniz afirmar a precedecircncia ou preferecircncia do
mundo e mesmo dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de pessoas
24 Aqui podemos ter um problema de traduccedilatildeo de fato soacute mais agrave frente surgiraacute no original francecircs a palavra lsquoeventorsquo ou lsquoacontecimentorsquo ou seja eacuteveacutenement
224 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
especialmente no sentido que haveria singularidades que precederiam as
individualidades o que justificaria a necessidade de recorrermos agraves suas
noccedilotildees de compossibilidade e incompossibilidade ou agraves regras de
convergecircncia e de divergecircncia Parece-nos que a afirmaccedilatildeo ldquoesta ideiardquo ou
noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular ldquoencerra jaacute todos os
predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime
(exprime) todo o universordquo vai justamente no sentido contraacuterio ao
pretendido por Deleuze De qualquer modo o problema da significaccedilatildeo do
conceito de expressatildeo seu campo semacircntico parece nos obrigar a passar
para a regiatildeo dos possiacuteveis e vai mais no sentido das noccedilotildees completas
para o universo do que o contraacuterio Assim eacute preciso atentar para o fato
que ao menos aqui ldquopredicadordquo ldquoacontecimentordquo e ldquoexpressatildeordquo satildeo
colocados no mesmo registro daquelas ideias e nada aponta para uma
restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse ou para a anterioridade ou preferecircncia do
mundo com relaccedilatildeo agraves ideias ou noccedilotildees completas de substacircncias
particulares ou mocircnadas individuais De qualquer modo e essa eacute nossa
opiniatildeo os paraacutegrafos finais da Teodiceia e a uacuteltima carta que Leibniz
escreveu a Samuel Clarke parecem ser decisivos Primeiro
Vocecirc vecirc [afirma a deusa Palas Atena] que meu pai [Juacutepiter] natildeo fez Sextus
mau ele [Sextus] o foi [mau] desde toda a eternidade ele o foi sempre
livremente [meu pai] soacute fez lhe consentir a existecircncia que sua sabedoria
natildeo podia recusar ao mundo em que ele estaacute compreendido ele o fez
passar da regiatildeo dos possiacuteveis para a dos seres atuais (LEIBNIZ 2013
[Teodiceia] sect416 p 415 grifo nosso)
Aqui eacute afirmada a necessidade de uma determinada pessoa possiacutevel
dever estar compreendida em um determinado mundo possiacutevel25 que
Deus ou na histoacuteria que termina a Teodiceia Juacutepiter faz ou consente vir
agrave existecircncia suposto ser o melhor dos mundos possiacuteveis ldquopassar da regiatildeo
dos possiacuteveis para a dos seres atuaisrdquo e certamente podiacuteamos pensar tal
25 A partir da perfeiccedilatildeo das operaccedilotildees do intelecto divino Leibniz natildeo soacute natildeo defende que haacute pessoas possiacuteveis vagas mas tambeacutem natildeo haacute propriamente falando mundos possiacuteveis vagos
William de Siqueira Piauiacute | 225
necessidade nos valendo da noccedilatildeo de compossibilidade e
incompossibilidade mas natildeo nos adiantemos Eacute preciso voltar ao que diz
o texto e lembrar que Juacutepiter apenas consentiu a existecircncia a Sextus
existecircncia que eacute precedida portanto de uma noccedilatildeo completa individual
que faz parte do conteuacutedo do intelecto divino e que se relaciona com as
perfeiccedilotildees de suas operaccedilotildees daiacute sua eternidade perfeiccedilatildeo ou completude
(em oposiccedilatildeo a vago) e precedecircncia com relaccedilatildeo agrave existecircncia isto eacute agrave
posterior atualizaccedilatildeo Em que sentido portanto interpretar a afirmaccedilatildeo
ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo
pecourdquo Contra parte da interpretaccedilatildeo de Deleuze pois Apolo-Juacutepiter natildeo
criou Sextus mau ou fez a inclusatildeo de tal predicado ou atributo verbal a
partir de uma seacuterie universo ou mundo determinado de singularidades
adjacentes preacute-individuais natildeo eacute nesse sentido que o mundo precede ou
tem preferecircncia com relaccedilatildeo a Sextus De todo modo e no mesmo sentido
das trecircs obras que mencionamos mais acima nem o Deus cristatildeo criou
Adatildeo pecador nem Juacutepiter criou o Sextus violador (de Lucreacutecia)26 eles o
foram de modo completo e perfeito desde sempre e seus acontecimentos
com todas as circunstacircncia estavam registrados no livro dos destinos ou
das verdades eternas no palaacutecio dos destinos ou na regiatildeo dos possiacuteveis
no mesmo ldquolugarrdquo em que Leibniz diz muitas vezes deveriacuteamos ldquobuscarrdquo
os mundos possiacuteveis as seacuteries que corresponderiam aos universos etc
Deus ou Juacutepiter os teriam visto como ideias ou noccedilotildees completas e sem
precedecircncia de tempo ou preferecircncia moral ao mesmo tempo e antes do
decreto da criaccedilatildeo Justamente o que permite dizer do diabo que ldquoporque
estava escrito no livro das verdades eternas que conteacutem tambeacutem os
possiacuteveis antes de todo o decreto de Deus que essa criatura [o diabo] se
dirigiria livremente para o mal se ela fosse criadardquo (Idem p 329)27
26 A partir disso perguntariacuteamos O Deus leibniziano a partir de sua ciecircncia de simples inteligecircncia natildeo vecirc desde sempre na ideia da natureza das criaturas livres Adatildeo e Sextus que elas satildeo pecadoras e violadoras (ou preguiccedilosa) Se sim natildeo fica claro de fato o que faz a base da necessidade daquele deslocamento e termos de supor uma noccedilatildeo leibniziana de acontecimento a partir de singularidades adjacentes
27 Eis o motivo porque Derrida achou necessaacuterio criticar em ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo (Escritura e diferenccedila) de 1967 as noccedilotildees leibnizianas de livro e histoacuteria criticar a noccedilatildeo de repeticcedilatildeo associada aos destinos depositados no palaacutecio dos destinos (Teodiceia sect414) ou no livro dos destinos (Teodiceia sect275) Certamente o que faria eco agrave recusa por parte de Badiou quanto agrave inclusatildeo de Mallarmeacute em A dobra E talvez aqui possamos pensar que tendo em vista que
226 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Somente assim Jupiacuteter natildeo se torna o culpado do destino de Sextus e natildeo
nos perdemos nessa regiatildeo do labirinto da liberdade Seja como for a
partir de seu conhecimento infinito e infaliacutevel Deus criou fez vir agrave
existecircncia exatamente Adatildeo pecador e de um soacute golpe o mundo em que
ele pecaraacute
Natildeo vemos outra maneira de interpretar o final da Teodiceia a natildeo
ser que queiramos e contra o que estabelece a filosofia leibniziana nos
perder no labirinto da liberdade e necessidade Daiacute que natildeo vemos como
corroborar aquela divisatildeo em seleccedilotildees28 que faz a base da hipoacutetese
interpretativa formulada no segundo momento da nota 4 da 16ordf seacuterie de
Loacutegica do sentido e que nos obrigaria aceitar aquele deslocamento e
ordem de dependecircncia Seraacute mesmo que precisamos pensar ldquouma unidade
objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo
de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo
infinitordquo base daquela necessidade de deslocamento e ordem de
dependecircncia que nos levaria para muito longe do que afirmava a nota agrave
carta a Arnauld de 13 de maio de 1686 que jaacute mencionamos em nota para
compreender os paraacutegrafos finais da Teodiceia
Deleuze natildeo menciona Derrida em a Loacutegica do sentido publicada um ano apoacutes Escritura e diferenccedila ou em A dobra a menccedilatildeo a Husserl e a inclusatildeo de Mallarmeacute podem ser indicadoras de sua oposiccedilatildeo agravequela interpretaccedilatildeo De qualquer modo tanto Derrida quanto Badiou recusam ou recusariam a opiniatildeo que permanecemos leibnizianos especialmente se queremos fazer Mallarmeacute estar de acordo conosco Se o leitor quiser entender melhor o que estamos tentando dizer aqui teraacute de cruzar nossos artigos ldquoLeibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agrave teoria tradicional da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegadardquo e ldquoDerrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeordquo e se perguntar se Leibniz natildeo tem de ser colocado naquele momento preacute Mallarmeacute e Goumldel em que se acreditava na completude sistecircmica da linguagem
28 Nos referimos agrave seguinte afirmaccedilatildeo ldquo[I momento] Distinguimos pois trecircs seleccedilotildees (seacutelections) conforme ao tema
leibniziano uma que define um mundo por convergecircncia uma outra que define neste mundo indiviacuteduos completos uma outra enfim que define elementos incompletos ou entes ambiacuteguos comuns a vaacuterios mundos e aos indiviacuteduos correspondentes [II momento] Sobre esta terceira seleccedilatildeo ou sobre Adatildeo lsquovagorsquo constituiacutedo por um pequeno nuacutemero de predicados (ser o primeiro homem etc) que devem ser completados diferentemente em diferentes mundos cf Leibniz lsquoObservaccedilotildees sobre a carta de M Arnauldrsquo [que citamos na nota 15] [] Eacute verdade que neste texto Adatildeo vago natildeo tecircm existecircncia por si mesmo vale somente com relaccedilatildeo ao nosso entendimento finito seus predicados natildeo satildeo mais que generalidades Mas ao contraacuterio no texto ceacutelebre da Teodiceia (sectsect414-416) os diferentes Sextus nos mundos diversos tecircm uma unidade objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo infinito Muito cedo Leibniz havia elaborado uma teoria dos lsquosignos ambiacuteguosrsquo em relaccedilatildeo com os pontos singulares tomando por exemplo as seccedilotildees cocircnicas [les diffeacuterents Sextus dans les mondes diverses ont une uniteacute objective tregraves speacuteciale qui repose sur 1a nature ambigueuml de la notion de singulariteacute et sur la cateacutegorie de problegraveme du point de vue drsquoun calcul infini Tregraves tocirct Leibniz avait eacutelaboreacute une theacuteorie des lsquosignes ambigusrsquo en rapport avec les points singuliers prenant pour exemple les sections coniques] cf lsquoDo meacutetodo da universalidadersquo (Opuacutesculos Couturat [p 97-144])rdquo (DELEUZE 2003 p 118 grifo nosso)
William de Siqueira Piauiacute | 227
Dito isso nos parece que o que faltou a Deleuze foi buscar
compreender melhor as noccedilotildees de ideia e representaccedilatildeo associadas agrave de
noccedilatildeo completa de um individuo singular tanto no Discurso e
Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld quanto nos paraacutegrafos finais
da Teodiceia e como o uso indistinto que ele proacuteprio faz do filosofema o
comprova pouco importa os detalhes do desenvolvimento do conceito de
mocircnada humana individual Mas isso se pareceria muito com a criacutetica que
fez Derrida a Foucault e que jaacute mencionamos no iniacutecio Eacute como se Deleuze
tivesse ficado parado na parte da ficccedilatildeo em que Lorenzo Valla fala de um
querer ainda indeterminado uma singularidade preacute-individual apenas
que permitiria bifurcaccedilatildeo e soacute posterior inclusatildeo base de sua gecircnese
estaacutetica ontoloacutegica como um pecar ainda indeterminado um verbo-
atributo que permitiria falar em inclusatildeo do que ainda natildeo estava
totalmente ldquodeterminadordquo natildeo exatamente determinado o em bifurcaccedilatildeo
base daquela ldquounidade objetiva muito especialrdquo a partir de um mundo de
singularidades adjacentes um mundo regido por uma espeacutecie de siacutentese
disjuntiva que permitiria falar em ldquonatureza ambiacutegua da noccedilatildeo de
singularidaderdquo e em ldquocategoria do ponto de vista de um caacutelculo infinitordquo e
permitiria pensar indiviacuteduos possiacuteveis lsquovagosrsquo constituiacutedos ldquopor um
pequeno nuacutemero de predicados que devem ser completados
diferentemente em diferentes mundosrdquo mas tivesse se esquecido que
trata-se para Leibniz de uma ficccedilatildeo falsa que teria desconsiderado o
segundo aspecto do tipo de conhecimento que Apolo-Juacutepiter-Palas-Atena
teria ou seja soacute teria considerado algo semelhante agrave ciecircncia divina de
visatildeo (que vecirc as existecircncias o mundo ou os corpos) e esquecido a ciecircncia
da simples inteligecircncia (que vecirc todos os possiacuteveis sem precedecircncia ou
preferecircncia) neste caso justamente contra ao que advertia o proacuteprio
Leibniz a saber a ciecircncia da simples inteligecircncia eacute ldquoonde eacute preciso
procurar a fonte de todas as coisasrdquo (Idem p 416 [sect417]) tanto dos
mundos ou seacuteries universo quanto dos indiviacuteduos possiacuteveis
Segundo de qualquer modo pouco antes de morrer Leibniz afirmava
para Samuel Clarke
228 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
[sect6] Mas nem essa presciecircncia nem essa preordenaccedilatildeo atentam contra a
liberdade De fato Deus levado pela suprema razatildeo [que pode ser comparada
agrave suprema perfeiccedilatildeo do sect31 do Discurso de metafiacutesica] a fazer a escolha
entre muitas sequecircncias [ou seacuteries] de coisas ou mundos possiacuteveis daquele
em que as criaturas livres tomassem tais e tais resoluccedilotildees ainda que natildeo sem
seu concurso tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez
por todas (tout eacuteveacutenement certain et determine une fois pour toutes) [] esse
simples decreto da escolha natildeo muda mas apenas atualiza as suas naturezas
[as das criaturas livres] vistas por ele em suas ideias (LEIBNIZ 1983 [Quinta
carta] p 194)29
Tanto Arnauld quanto o teoacutelogo Clarke teriam se incomodado com o
mesmo Novamente tendo em vista que a criaccedilatildeo do mundo eacute uma
atualizaccedilatildeo das naturezas das criaturas livres que foram vistas por Deus
em suas ideias e que eacute a partir do conhecimento preacutevio presciecircncia ou
ciecircncia da simples inteligecircncia de ldquotodasrdquo as resoluccedilotildees que elas tomaratildeo
que podemos falar em pontos de vistas de um mundo que as compreende
e que seraacute atualizado junto com elas tendo em vista tudo isso natildeo haacute
motivo para falar em precedecircncia de mundo que resulte em singularidades
preacute-individuais ou que Deus cria ou vecirc primeiro o mundo onde Adatildeo eacute
pecador que levaria a crer que Deus natildeo vecirc ou cria um Adatildeo exatamente
pecador Ou seja nada aponta para uma ldquounidade objetiva muito especialrdquo
que nos obrigaria a diferenciar a noccedilatildeo de individuo possiacutevel com relaccedilatildeo
ao Adatildeo da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld ou do Discurso
da com relaccedilatildeo aos Sextus dos paraacutegrafos finais da Teodiceia Se levarmos
a seacuterio as obras que mencionamos ateacute aqui e principalmente a histoacuteria
contada ao final da Teodiceia mesmo os mundos possiacuteveis tecircm como
conteuacutedo as noccedilotildees completas ou perfeitas de pessoas possiacuteveis e natildeo haacute
por que falar em anterioridade ou preferecircncia do mundo com relaccedilatildeo ao
seu conteuacutedo
29 Mais ny cette prescience ny cette preordination ne derogent point agrave la liberteacute Car Dieu porte par la supremo raison agrave choisir plusieurs suites des choses ou mondes possibiles celuy ougrave les creatures libres prendroient telles ou telles resolutions quoyque non sans son concours a rendu par lagrave tout evenement certain et determine une fois pour toutes sans deroger por lagrave a liberte de ces creatures ce simple decret du choix ne changeant point mais actualisant seulement leur natures libres quirsquoil y voyoit dans ses ideacutees
William de Siqueira Piauiacute | 229
Agora fica claro que ateacute o final da sua vida Leibniz defendeu natildeo soacute
uma noccedilatildeo de pessoa espiritual (previamente conhecida) daiacute de mocircnada
humana individual que de modo nenhum se assemelha agrave noccedilatildeo de uma
pessoa vaga mas tambeacutem de acontecimento (previamente conhecido e
ordenado) que de modo nenhum se assemelha agrave ideia de caos ou que
lembre siacutenteses disjuntivas portanto ambas nada tecircm a ver com as boas
novas que Deleuze viu seja nas trecircs obras de Carroll seja na filosofia dos
Estoicos Na verdade se obedecemos seja agrave ordem de argumentaccedilatildeo do
Discurso seja agrave da Monadologia quem ilumina a noccedilatildeo de
acontecimento mudanccedila ou movimento eacute a de substacircncia individual ou
mocircnada e natildeo o contraacuterio aleacutem disso o que permite compreender o
conhecimento preacutevio que o deus leibniziano teria do mundo a ser
efetivado daiacute criado depende do que ele considerava ser a ciecircncia de
simples inteligecircncia e natildeo de visatildeo
Do nosso ponto de vista o que dissemos ateacute aqui jaacute nos impediria de
aceitar a natildeo ser com muitas ressalvas e natildeo vemos qualquer vantagem
nisso o deslocamento exigido por Deleuze seja na 16ordf seacuterie de Loacutegica do
sentido seja no capiacutetulo ldquoIndividuaccedilatildeo e especificaccedilatildeordquo de A dobra ou
seja inclusive por que natildeo vimos motivo para aceitar a defesa daquela
ldquounidade objetiva muito especialrdquo nos uacuteltimos paraacutegrafos da Teodiceia os
textos que mencionamos parecem fornecer prova suficiente que natildeo eacute
necessaacuterio nos encaminhar para as noccedilotildees de compossibilidade ou
incompossibilidade e regra de convergecircncia ou divergecircncia se queremos
compreender adequadamente o que Leibniz entendia por pessoa ou
indiviacuteduo possiacutevel associado a acontecimento e que seria muito diferente
do que o tinha visto Husserl Ao inveacutes de comeccedilarmos por aceitar tal
deslocamento preferimos nos perguntar Mas quais entatildeo seriam as
principais fontes do deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo de Deleuze ou
da peculiaridade daquela unidade objetiva Nossa hipoacutetese eacute que a Loacutegica
do sentido e mesmo A dobra Leibniz e o barroco estariam associados agrave
excessiva importacircncia que ele deu agrave seguinte parte do sect414 da Teodiceia
230 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
E quando as condiccedilotildees natildeo estiverem determinadas o bastante haveraacute tanto
quanto se quiser de tais mundos diferentes entre si que responderatildeo
diferentemente agrave mesma questatildeo de tantas maneiras quanto eacute possiacutevel Vocecirc
aprendeu geometria quando era ainda jovem como todos os gregos bastante
elevados Vocecirc sabe entatildeo que quando as condiccedilotildees de um assunto que se
pergunta natildeo o determinam o bastante e que haacute uma infinidade deles e ao
menos esse lugar que frequentemente eacute uma linha seraacute determinado Desse
modo vocecirc pode afigurar uma sequecircncia regrada de mundos que conteratildeo
todos ou somente o caso de que se trata e nisso variaratildeo as circunstacircncias e
as consequecircncias Mas se vocecirc coloca um caso que natildeo difere do mundo
atual exceto numa uacutenica coisa definida e na sua sequecircncia um certo
mundo determinado lhe corresponderaacute esses mundos estatildeo aqui [no
palaacutecio dos destinos] quero dizer em ideias (LEIBNIZ 2103 p 413 grifo
nosso)
Novamente os mundos enquanto ideias estatildeo naquele ambiente
regido pela ciecircncia de simples inteligecircncia Mas talvez tenhamos aqui o
uacutenico caso em que uma variedade de mundos eacute posta antes dos indiviacuteduos
possiacuteveis ou da determinaccedilatildeo completa dos acontecimentos com suas
circunstacircncias e permitiria falar em uma unidade objetiva especial
entretanto eacute preciso lembrar que trata-se de uma suposiccedilatildeo em que ldquoas
condiccedilotildees natildeo estejam determinadasrdquo exatamente com o mesmo sentido
de suposiccedilatildeo da menccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pessoa vaga da nota agrave carta de Arnauld
ndash que jaacute mencionamos tantas vezes de qualquer modo tal suposiccedilatildeo deve
ser compreendida com a ajuda de noccedilotildees tiradas de uma geometria que jaacute
era conhecida dos gregos30 e no miacutenimo natildeo justifica simplesmente o
apelo ou passagem para uma topologia de superfiacutecie ou para a defesa da
tese que em Leibniz podemos encontrar a defesa da noccedilatildeo completa ou
perfeita de uma substacircncia particular a partir da de singularidade
subjacente ou de uma unidade objetiva especial Todavia e em primeiro
lugar tambeacutem eacute preciso lembrar o que vem logo em seguida e que
grifamos no texto acima justamente o que permite a consequecircncia e
30 Vejam que aqui o proacuteprio Leibniz natildeo faz qualquer referecircncia agraves novidades que havia descoberto em matemaacutetica seja com relaccedilatildeo ao infinito agraves singularidades ou aos signos ambiacuteguos o que ele faz ou daacute a entender em outros momentos da Teodiceia ele prefere tendo em vista a eacutepoca em que viveria o personagem Teodoro se referir ao que jaacute era conhecido a partir da geometria dos gregos
William de Siqueira Piauiacute | 231
comparaccedilatildeo que viratildeo a seguir ou seja neste palaacutecio dos destinos Palas
Atena diz que mostraraacute a Teodoro ldquoonde (ougrave) ele [Sextus] se encontraraacuterdquo
ao que se seguira a advertecircncia ldquonatildeo completamente o mesmo Sextus que
vocecirc viu isto natildeo pode ser pois ele leva sempre consigo aquilo que ele
seraacute mas outros Sextus semelhantesrdquo mas tambeacutem totalmente
determinados ldquoque teratildeo o que vocecirc jaacute conhece do verdadeiro Sextusrdquo
Tudo segue no sentido de que haacute presciecircncia das ldquosequecircncias [ou seacuteries]
de coisas ou mundos possiacuteveisrdquo nos quais tais ou tais ldquocriaturas livres
tomassem tais e tais resoluccedilotildeesrdquo Claro que aquele ldquoonderdquo se refere a um
lugar que deve ser pensado no plano das ideias e aqui sim poderiacuteamos
utilizar a topologia leibniziana (Caracteriacutestica Geomeacutetrica ou Analysis
situs) ou a doutrina do espaccedilo e tempo relacionais para compreender o
que seria a noccedilatildeo individual completa e perfeita de um tal Sextus Seja
como for jaacute podemos dizer que tal ou tais Sextus nada tecircm a ver com o
Fang de ldquoO jardim de caminhos que se birfurcamrdquo31 de Borges daiacute de Silvia
e Bruno ou das Alices de Carroll ou seja apesar de estar de acordo que
Leibniz eacute um antigeneralista quando se trata das noccedilotildees completas ou
perfeitas isso natildeo traz a consequecircncia que por isso ele teria de defender a
constituiccedilatildeo de indiviacuteduos a partir de singularidades adjacentes A natildeo
necessidade da consequecircncia pode ser pensada natildeo soacute a partir do que de
fato lemos no sect414 da Teodiceia mas ainda mais explicitamente nos dois
momentos do sect9 do Discurso eacute verdade que ali Leibniz se mostra um
antigeneralista e nesse sentido um antitomista mas tambeacutem eacute verdade
que manteacutem a noccedilatildeo tomista das inteligecircncias separadas para a
compreensatildeo adequada do que ele havia defendido no sect8 da mesma obra
a saber quod ibi omne individuum sit specie infima Concordamos que
para pensar a noccedilatildeo leibniziana de espeacutecie a partir dessa antigeneralidade
eacute preciso opor a noccedilatildeo matemaacutetica de espeacutecie agrave noccedilatildeo fiacutesica de espeacutecie
mas novamente isso natildeo eacute razatildeo suficiente para recusar o que ele mesmo
afirma no sect9 e que faz o fundo de grande parte da oposiccedilatildeo dele ao
nominalismo de um Locke nos Novos ensaios E quanto ao que Leibniz
31 Cf BORGES 2005 [Ficciones] p 80
232 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
diz da existecircncia das espeacutecies no sentido matemaacutetico prefeririacuteamos
interpretaacute-la a partir do embate que ele teve com Newton quanto agrave
realidade e materialidade dos objetos matemaacuteticos que pode ser
depreendida do que eacute afirmado em Sobre o peso ndash a gravitaccedilatildeo ndash e
equiliacutebrio dos fluidos (De gravitatione et aequipondio fluidorum)32
Cremos que para o alematildeo as figuras matemaacuteticas natildeo precisam existir
para que falemos em verdade ou em movimentos em acordo com elas a
verdade de tais objetos eacute de outra ordem satildeo verdades eternas que
tambeacutem mas diferentemente das noccedilotildees de indiviacuteduos fazem o conteuacutedo
do intelecto divino Mas isso natildeo eacute o fundamental aqui
De qualquer forma parece-nos que foi justamente a excessiva
importacircncia que Deleuze conferiu a aquela parte tendo sido separada de
seu final consequecircncia e comparaccedilatildeo que conduziu Deleuze ao final do
texto ldquoSobre o meacutetodo universalrdquo33 o que seraacute mantido e de certa forma
intensificado em A dobra o que mais uma vez seraacute chamado para
fundamentar a exigecircncia de parte daquele deslocamento isto eacute o
pensamento generalista de Leibniz conduziria diretamente agrave exigecircncia do
uso geral das regras de convergecircncia e divergecircncia ndash e mesmo a um caacutelculo
do infinito ou agrave noccedilatildeo de signo ambiacuteguo ndash para as singularidades
adjacentes e o consequente delas para as noccedilotildees de compossibilidade e
incompossibilidade34
Do nosso ponto de vista talvez associada a essa importacircncia
exagerada e por que natildeo interpretaccedilatildeo equivocada outro problema talvez
ainda mais grave de exegese parece ter tido origem no lugar de parada que
Deleuze fez ou permite que faccedilamos no iniacutecio do sect47 da Quinta carta a
Clarke texto que de fato soacute pode ser interpretado a partir de parte da
32 Para um comeccedilo de conversa indicariacuteamos o nosso artigo ldquoQuerela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo agrave filosofia modernardquo
33 Cf LEIBNIZ 1903 [Opuscules et fragments ineacutedits de Leibniz] p 145
34 Vale relembrar a ordem de dependecircncia das suposiccedilotildees ldquoEacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na filosofia de Leibniz Pois (III) a inerecircncia de predicados na mocircnada expressiva supotildee primeiro (II) a compossibilidade do mundo expresso e esta por sua vez supotildee (I) a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdaderdquo (DELEUZE 2003 p 115)
William de Siqueira Piauiacute | 233
topologia leibniziana e da doutrina do espaccedilo e tempo relacionais quer
dizer ele teria parado justamente no modo como os homens
semelhantemente a Newton pensam a noccedilatildeo de movimento (daiacute mudanccedila
referente aos corpos por consequecircncia acontecimento) situaccedilatildeo e
possiacutevel teria parado e pensado a noccedilatildeo de indiviacuteduo apenas a partir de
uma topologia posicional que desconsidera justamente a necessidade de os
acidentes natildeo passearem fora das mocircnadas Neste caso Deleuze teria
esquecido de separar e mesmo teria invertido a importacircncia as duas
partes do texto ou seja a que comeccedila com ldquoEis como os homens chegam
a formar a noccedilatildeo de espaccedilordquo e a que comeccedila com ldquoE eacute bom considerar aqui
a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa
o lugarrdquo que continua com ldquodois sujeitos diferentesrdquo ldquonatildeo poderiam ter
precisamenterdquo de modo completamente determinado ldquoa mesma situaccedilatildeo
individual natildeo podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em
dois sujeitos nem passar de sujeito para sujeitordquo Onde pois colocar o
Fang de Borges se natildeo queremos ir contra a doutrina leibniziana do espaccedilo
e tempo relacionais ou fazer esquecer a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo
de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugar ou que um mesmo acidente
individual natildeo pode encontrar-se em dois sujeitos Trata-se de retomada
explicita do sect7 da Monadologia que deve ser compreendida a partir de
uma noccedilatildeo de mocircnada fechada e natildeo vemos outro jeito do princiacutepio do
predicado inerente ao sujeito ou de predicados acontecimento (sentido
claacutessico) dados de uma vez por todas e natildeo atributos verbais que se
associem a uma espeacutecie de siacutentese disjuntiva ou exijam uma unidade
objetiva muito especial
Uma interpretaccedilatildeo atenta agrave inversatildeo necessaacuteria teria permitido a
Deleuze compreender o motivo da afirmaccedilatildeo de Leibniz no sect61 da
Monadologia segundo a qual os corpos les composeacutes apenas simbolizam
(symbolisent) no sentido que apenas ldquoconcordam comrdquo e que remeteria
ao convencionalismo no sentido que sozinhos careceriam de fundamento
defendido no sect1 do De interpretatione de Aristoacuteteles os fenocircmenos bem
234 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
fundados apenas simbolizam os simples35 e natildeo o contraacuterio o que mais
uma vez parece colocar Deleuze em dificuldades se se pretende afirmar a
precedecircncia do mundo ou dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees completas de
indiviacuteduos ou agrave necessidade de recorrer agraves singularidades adjacentes
E aqui do nosso ponto de vista chegamos ao ponto central do
deslocamento exigido por Deleuze desde a Loacutegica do sentido ele toma
seu pleno sentido somente se invertermos o plano argumentativo da
Monadologia ou seja se recusamos o caminho sinteacutetico do simples para
o composto dito de outro modo se pensarmos o conceito de mocircnada a
partir de uma matemaacutetica uma topologia que utilizariacuteamos para dar
conta das mudanccedilas que ocorreriam no plano dos corpos mas sem
individuaccedilatildeo preacutevia isto eacute a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos corpos viria em
primeiro lugar e comporia a seacuterie universo mas isso eacute inverter a ordem
de importacircncia entre a metafiacutesica e dinacircmica ndash ir contra o que diz o sect18
do Discurso ndash e eacute preciso estar muito atento para natildeo defender sem o
saber uma distinccedilatildeo que funciona muito bem no plano dos corpos mas
que eacute solo nuacutemero com relaccedilatildeo ao que de fato resolve o problema da
mudanccedila dito de outro modo tal inversatildeo desconsideraria justamente o
fundamento da ldquorelaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo
A proacutepria ordem dos capiacutetulos de A dobra evidenciaria tal inversatildeo as
consideraccedilotildees sobre as redobras na mateacuteria vecircm antes das sobre as dobras
nas almas e seu capiacutetulo 5 estaacute repleto de consideraccedilotildees que tomam o
corpo ou o mundo antes daquilo que faz o fundamento ldquoda relaccedilatildeo de
situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo
35 ldquoEt les composeacutes symbolisent en cela avec le simplesrdquo (LEIBNIZ 2004 p 235) Mais natildeo eacute o exato contraacuterio que defendiam os estoicos nesse sentido invertendo o valor da ldquoexpressatildeordquo do expresso do lekton Seria estranho que algueacutem que defendeu muitas vezes tanto o fato que os estoicos foram os criadores da filosofia da linguagem quanto que sua diferenciaccedilatildeo e dependecircncia entre lekton e corpo eram baacutesicas para a loacutegica do sentido e do acontecimento defendesse o contraacuterio mas aqui mantemos a suposiccedilatildeo de uma mudanccedila de ponto de vista que parece ter ocorrido por volta da elaboraccedilatildeo de Mil platocircs e que ficaria mais evidente nos capiacutetulos de tiacutetulo ldquoPostulados da linguiacutesticardquo e ldquoSobre alguns regimes de signosrdquo ou seja a partir de 1980 o conceito de palavra de ordem (le mot drsquoordre) o registro do lekton passa a assumir o mesmo valor causal que os corpos mais forccedila ainda para o plano da expressatildeo Marca inconteste da ldquogenialidaderdquo do francecircs teriacuteamos permanecido ainda mais leibnizianos ndash um Leibniz deleuzeano natildeo nos esqueccedilamos ndash a partir da deacutecada de 80 portanto talvez o principal motivo que levou Deleuze a voltar aos textos de Leibniz e intensificar os pontos principais da 16ordf seacuterie de a Loacutegica do sentido
William de Siqueira Piauiacute | 235
Do nosso ponto de vista tal inversatildeo que consideramos ser o
fundamento real da exigecircncia daquele deslocamento eacute o problema mais
grave da interpretaccedilatildeo que Deleuze faz da filosofia leibniziana ela teria
desconsiderado a resposta que Leibniz teria dado a um outro problema
levantado por Newton em De gravitatione et aequipondio fluidorum
mas que se associava agrave caracterizaccedilatildeo cartesiana do movimento e que fica
explicito no uso da expressatildeo affectiones locorum ou the properties of
places por parte do inglecircs Problema que para Leibniz tem de ser
resolvido para que possamos falar em mudanccedila ou movimento real Isso
nos permite formular um questionamento para a interpretaccedilatildeo geral
empreendida por Deleuze seja em A dobra seja em Loacutegica do sentido
Como diferenciar a noccedilatildeo newtoniana de individuaccedilatildeo (solo numero) da
leibniziana se nos mantemos apenas nas affectiones locorum36 Vale
lembrar que a filosofia natural de Newton e sua matemaacutetica tambeacutem
permitem singularidades adjacentes Com as agravantes Como o
equacionou Leibniz natildeo eacute justamente por seu fechamento que o conceito
de mocircnada resolve o problema cartesiano do movimento Dito de outro
modo Como o conceito de mocircnada baseado em singularidades adjacentes
tatildeo semelhante ao de vizinhanccedila imediata resolveria o problema da causa
proacutexima do movimento Assim cremos que a leitura de Deleuze aproxima
perigosamente Leibniz de Newton sem ter respondido suficientemente agrave
pergunta geral Por que a preferecircncia pelo alematildeo se em termos de
descoberta e grande parte do tipo de uso que ambos fizeram do caacutelculo
diferencial e integral de uma geometria de posiccedilatildeo e mesmo das regras de
convergecircncia e divergecircncia nada impediria de ver tambeacutem na filosofia do
inglecircs uma topologia de superfiacutecies37 E terminariacuteamos com as
provocaccedilotildees oacutebvias Permanecemos leibnizianos ou newtonianos
36 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect47 da uacuteltima carta a Clarkerdquo ou ldquoLeibniz y el papel de la imaginacioacuten en la geacutenesis de la nocioacuten de espacio newtonianordquo
37 Referimo-nos ao que eacute defendido entre outros no excelente livro De Newton y los newtonianos entre Descartes e Berkeley de Laura Benitez Grobet e Joseacute A Robles Garciacutea cf Bibliografia De qualquer modo o que estamos tentando dizer aqui agravaria ainda mais tais questionamentos desde que a hipoacutetese defendida por Benitez Grobet e Robles Garciacutea eacute a de que Newton precisava de um outro modelo de predicaccedilatildeo que natildeo a aristoteacutelica e por que natildeo da recusa do princiacutepio in-esse para levar a cabo sua filosofia natural e nesse sentido vale lembrar as muitas vezes em que Leibniz pergunta a Clarke que papel em termos de predicaccedilatildeo aristoteacutelica em termos de sujeito predicado
236 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
Conclusatildeo
Do nosso ponto de vista em primeiro lugar a tese ceacutelebre de Leibniz
segundo a qual cada mocircnada individual exprime o mundo pode e deve ser
compreendida a partir do princiacutepio de inerecircncia do predicado no sujeito
obviamente um grande desafio para o inteacuterprete em segundo lugar natildeo
eacute verdade que para Leibniz Deus criou o mundo antes das ou de
preferecircncia agraves mocircnadas ao menos natildeo no sentido que haveria de fato
inclusatildeo posterior de algum acidente (enquanto predicado um adjetivo)
natildeo jaacute preacute-vista nas noccedilotildees completas de indiviacuteduos ou pessoas ou mesmo
na seacuterie possiacutevel de um mundo em terceiro lugar se aquela precedecircncia
ou preferecircncia for pensada em termos de compossibilidade e
incompossibilidade ndash que oferecesse alguma alternativa para o princiacutepio
de contradiccedilatildeo ndash eacute preciso lembrar que o entendimento divino eacute fora da
ordem do tempo e mais uma vez natildeo podemos falar em precedecircncia ou
preferecircncia de partes de suas operaccedilotildees e por fim natildeo vemos como as
regras de convergecircncia e divergecircncia nos ajudariam ou seria necessaacuterio
recorrer a elas para corroborar a interpretaccedilatildeo de Deleuze se aquela
precedecircncia ou preferecircncia natildeo se viu confirmada Assim natildeo vemos
motivos para aceitar a necessidade do deslocamento que Deleuze pretende
impor desde a Loacutegica do sentido Vale lembrar que nossa oposiccedilatildeo nada
tem a ver com o uso do caacutelculo diferencial e integral e as regras de
convergecircncia e divergecircncia para pensar o conceito de mocircnada ldquofechadardquo
e mesmo de uma topologia de superfiacutecie jaacute mostramos em outro lugar38 o
como a matemaacutetica criada por Leibniz pode ajudar a pensar um conceito
de mocircnada humana individual fechada e de seacuterie universo fechado em
e acidente desempenharia o tempo e espaccedilo absolutos de Newton Sendo que o sect47 da quinta resposta que deu a Clarke deve ser considerado justamente natildeo soacute como uma tentativa de se manter fiel aacute metafiacutesica que fundamenta a loacutegica aristoteacutelica e o inicio da Monadologia mas tambeacutem sem perder de vista seja os princiacutepios de sua topologia (Caracteriacutestica Geometrica ou Analysis situs) seja de sua doutrina do espaccedilo e tempo relacionais
38 Cf nossos artigos ldquoMatemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e Integral e o processo psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeordquo e ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo
William de Siqueira Piauiacute | 237
pleno acordo com sua metafiacutesica e sua dinacircmica em uma palavra em
pleno acordo com a histoacuteria contada ao final da Teodiceia
Por fim se na ldquoobra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduordquo
ldquoque descobre o sentido e jaacute pressente o natildeo-senso remontando agrave
superfiacutecie a partir de um mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que
se envolve nela e lhe impotildee a dura lei das misturasrdquo ela nada tem a ver
com o conceito leibniziano de mocircnada humana individual ou substacircncia
particular e se novamente na ldquoobra de Carrollrdquo ldquoSilvia e Bruno seriam
antes como as pessoas lsquovagasrsquo que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila
ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo comum a vaacuterios mundos mundo dos
homens e mundo das fadasrdquo a proacutepria referecircncia agrave noccedilatildeo lsquopessoa vagarsquo
deveria ser prova suficiente que natildeo podem ser melhor compreendidas a
partir das noccedilotildees leibnizianas de mocircnada humana individual ou
substacircncia particular Mas natildeo eacute justamente porque queremos estar com
Carroll ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de sujeito ou contestaccedilatildeo da
identidade pessoal ndash e Mallarmeacute ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de
livro ou texto ndash que natildeo somos leibnizianos e nem mesmo newtonianos
E aqui deixamos algo mais que a simples discordacircncia entre os ldquofiloacutesofosrdquo
Badiou e Deleuze
Referecircncias39
BADIOU Alain A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX Trad Antonio Teixeira e
Gilson Iannini Belo Horizonte MG Autecircntica 2015
BENITEZ GROBET Laura e GARCIacuteA Joseacute A Robles De Newton y loacutes newtonianos entre
Descartes e Berkeley Argentina Universidad Nacional de Quilmes 2006
BORGES Jorge Luis O jardim de caminhos que se bifurcam In _____ Ficccedilotildees Trad
Carlos Nejar Satildeo Paulo Ed Globo 1989
39 Tendo em vista que se tratava inicialmente de um minicurso cremos ser justificativa suficiente para oferecermos uma Bibliografia ao inveacutes de apenas referecircncias bibliograacuteficas
238 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ El jardiacuten de senderos que se bifurcan In _____ Ficiones Buenos Aires Emeceacute
Editores 2005
CARROLL Lewis (Charles Lutwidge Dodgson) As aventuras de Alice no paiacutes das
maravilhas e Atraveacutes do espelho e o que Alice encontrou laacute Trad Sebastiatildeo
Uchoa Leite Satildeo Paulo Ed Summus 1980
_____ Algumas aventuras de Siacutelvia e Bruno Trad Seacutergio Medeiros Satildeo Paulo
Iluminuras 1997
_____ Complete Works Nova York Vintage Books 1976
_____ Diaries Londres Cassell 1953
_____ The selected letters Londres Macmillan 1989
DELEUZE Gilles A dobra Leibniz e o barroco Trad Luiz B L Orlandi Campinas SP
Papirus 1991
_____ Loacutegica do sentido Trad Luiz Roberto Salinas Fortes Satildeo Paulo Ed Perspectiva
2003
_____ Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro
Graal 2006
_____ Exasperacioacuten de la filosofiacutea el Leibniz de Deleuze Trad equipe editorial Cactus
Buenos Aires Ed Cactus 2006
_____ Conversaccedilotildees Trad Peter Paacutel Pelbart Rio de Janeiro Ed 34 2013
DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia Trad Luiz
B L Orlandi Rio de Janeiro Ed 34 2011
DERRIDA Jacques ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo In _____ A escritura e a diferenccedila Trad
Maria Beatriz Marques Nizza da Silva et al Satildeo Paulo Ed Perspectiva 2014
HUISMAN Denis Dicionaacuterio de filoacutesofos Trad Claudia Berlinder et al Satildeo Paulo Martins
Fontes 2001
William de Siqueira Piauiacute | 239
HUSSERL Edmund Meditaccedilotildees cartesiana introduccedilatildeo agrave fenomenologia Trad Frank de
Oliveira Satildeo Paulo Ed Madras 2001
LEIBNIZ G W Opuscule et fragments ineacutedits de Leibniz Organizado por Louis
Couturat Paris Alcan 1903
_____ Correspondance Leibniz-Clarke (Org Andreacute Robinet) Paris Presses
Universitaires de France (PUF) 1957
_____ The Leibniz-Clarke correspondence with extracts from Newtonrsquos ldquoPrincipiardquo and
ldquoOpticsrdquo Org H G Alexander Manchester Manchester University Press 1956
_____ Die philosophischen Schriften (GP IV Letter to Molanus (p 297-303) On God
and Soul (1679) e GP V Nouveaux essais Hildesheim Olms 1960
_____ Mathematische Schriften (GM) Hildesheim Olms 1962
_____ Anaacutelisis infinitesimal Trad Teresa Martin Santos Madri Tecnos 1987
_____ Sobre a anaacutelise da situaccedilatildeo Trad Homero Santiago Cadernos de filosofiacutea alematilde
n 5 p 64-75 1999
_____ La caracteacuteristica geacuteomeacutetrique Trad Marc Parmentier Paris J Vrin 1995
_____ Discurso de metafiacutesica Monadologia Correspondecircncia com Clarke Trad
Marilena de Souza Chauiacute e Carlos Lopes de Mattos Satildeo Paulo Ed Abril Cultural
1983
_____ Discurso de metafiacutesica e outros textos Trad Marilena Chauiacute e Alexandre da Cruz
Bonilha Satildeo Paulo Ed Martins Fontes 2004
_____ Discours de metaphysique suivi de Monadologia et autres textes Estabelecido
apresentado e com notas de Michel Fichant Paris Gallimard 2004
_____ La monadologiacutea Trad Virginia Naughton Buenos Aires Quadrata 2005
_____ Novos ensaios Trad Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Abril Cultural 1984
_____ Nouveaux essais Paris Flamarion 1990
240 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo
_____ Correspondencia con Arnauld Trad Vicente P Quintero Buenos Aires Ed
Losada 2004
_____ Correspondance de Leibniz et drsquoArnauld In _____ Œuvres philosophiques de
Leibniz aos cuidados de Paul Janet) Paris Alcan 1900
_____ Observaccedilotildees quanto ao livro sobre a origem do mal publicado haacute pouco na
Inglaterra (sectsect 18-22) [Leibniz e a metafiacutesica das diferenccedilas qualitativas dos
possiacuteveis] Theoria revista eletrocircnica de filosofia v 4 n 11 p 151-60 2012
_____ Ensaios de Teodiceia Trad William de Siqueira Piauiacute e Juliana Cecci Silva Satildeo
Paulo Ed Estaccedilatildeo Liberdade 2013
_____ Essais de theacuteodiceacutee Paris Flamarion 1969
_____ Escritos Filosoacuteficos Org Ezequiel Olaso Buenos Aires Ed Charcas 1982
PIAUIacute William de Siqueira Leibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da
criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartes Prometeus ano 10 n 22 p 49-64 2017
_____ Derrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeo
Prometeus ano 10 n 24 p 178-93 2017
_____ Leibniz y el papel de la imaginacioacuten em la geacutenesis de la nocioacuten de espacio
newtoniano Imaginacioacuten y conocimiento de Descartes a Freud NASR Zuraya
Monroy e RODRIacuteGUEZ-SALAZAR Luis Mauriacutecio Meacutexico Ed Corinter e Ed Gedisa
p 33-49 2016
_____ Leibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologia Prometeus ano 9 n 19 p 100-26
2016
_____ Querela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo aacute filosofia
moderna Kalagatos v 11 n 21 p 523-49 2014
_____ Leibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect 47 da uacuteltima carta a Clarke
Prometeus ano 6 n 11 p 9-34 2013
_____ Noccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibniz Cadernos de
histoacuteria e filosofia da ciecircncia v 21 n 1 p 257-87 2011
William de Siqueira Piauiacute | 241
_____ Matemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e integral e o processo
psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeo Theoria ndash Revista eletrocircnica de Filosofia Pouso
Alegre v 5 p 1-16 2010
_____ Leibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeo Aacutegora filosoacutefica
Pernambuco Universidade Catoacutelica ano 6 n 1 p 117-36 2006
PIAUIacute William de Siqueira e CECCI SILVA Juliana Leibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agraves
teorias tradicionais da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegada O
Mutum revista de literatura e pensamento (Dossiecirc Literatura escrever o pensar)
Org por Piero Eyben Brasiacutelia UnB n 1 v 1 p 183-203 2013
SARTRE Jean-Paul A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica
Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Cadernos
espinosanos n 22 2010 p 183-228
_____ A transcendecircncia do ego esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica Trad Joatildeo
Batista Kreuch Petroacutepolis RJ Ed Vozes 2013
Sobre os Organizadores
Natural de Brasiacutelia Marcus Joseacute Alves de
Souza eacute Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal da Paraiacuteba
Professor do Instituto de Ciecircncias
Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes e do
Mestrado em Filosofia da Universidade
Federal de Alagoas Liacuteder do Grupo de
Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo
Potiguar de Mossoroacute Maxwell Morais de
Lima Filho eacute Doutor em Filosofia pela
Universidade Federal do Cearaacute e
Professor do Instituto de Ciecircncias
Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes da
Universidade Federal de Alagoas desde
2011
A Editora Fi eacute especializada na editoraccedilatildeo publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de pesquisa
acadecircmicacientiacutefica das humanidades sob acesso aberto produzida em parceria das mais diversas instituiccedilotildees de ensino superior no Brasil Conheccedila
nosso cataacutelogo e siga as paacuteginas oficiais nas principais redes sociais para acompanhar novos lanccedilamentos e eventos
wwweditorafiorg
contatoeditorafiorg
Top Related